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O Homem Que Roubou Portugal - Murray Teigh Bloom

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  • Murray Teigh Bloom

  • Organizao e prefcio

    "Uma aventura desenvolvimentista"

    Gustavo H.B. Franco

    Anexo: Uma testemunha especial

    Notas de Fernando Pessoa sobre o julgamento de Alves Reis

  • 7 PREFCIO

    Uma aventura desenvolvimentista, GUSTAVO H.B. FRANCO

    19 PRLOGO

    Londres, 28 de abril de 1932

    21 CAPTULO UM: 1924

    Lisboa, 24 de novembro

    Paris, 28 de novembro

    Lisboa, 30 de novembro

    Berlim, l de dezembro

    Haia, 2 de dezembro

    Haarlem, 2 de dezembro

    Londres, 4 de dezembro

    Lisboa, 5 de dezembro

    Haia, 5 de dezembro

    Lisboa, 7 de dezembro

    Haia, 13 de dezembro

    Londres, 17 de dezembro

    Haia, 18 de dezembro

    Lisboa, 22 de dezembro

    113 CAPTULO DOIS: 1925

    Londres, 6 de janeiro

    Lisboa, 13 de janeiro

  • Londres, 10 de fevereiro

    Haia, 11 de fevereiro

    Lisboa, 16 de fevereiro

    Lisboa, l de maro

    Lisboa, 15 de abril

    Paris, 29 de abril

    Londres, 9 de maio

    Haia, 21 de maio

    Lisboa, 28 de maio

    Haia, 26 de julho

    Londres, 29 de julho

    Lisboa, l de agosto

    Londres, 6 de agosto

    Haia, 8 de agosto

    Carlsbad, Tchecoslovquia, 12 de agosto

    Paris, 27 de agosto

    Londres, 29 de agosto

    Lisboa, 14 de setembro

    Angola, 8 de outubro

    Londres, 9 de outubro

    Haia, lo de outubro

    Lisboa, 12 de novembro

    Angola, 14 de novembro

    Lisboa, 23 de novembro

  • Porto, 4 de dezembro

    Haia, 5 de dezembro

    S.S. Woerman, 6 de dezembro

    Lisboa, 6 de dezembro

    Londres, 9 de dezembro

    Lisboa, 12 de dezembro

    Londres, 12 de dezembro

    Lisboa, 14 de dezembro

    Lisboa, 24 de dezembro

    Londres, 28 de dezembro

    235 CAPTULO TRS: 1926-1932

    Haia, 11 de janeiro

    Lisboa, 13 de janeiro

    Haia, maro

    Lisboa, 28 de maio

    Haia, 26 de novembro

    Helsa, Alemanha, maio de 1927

    Londres, julho

    Lisboa, 27 de abril de 1928

    Lisboa, 31 de maio

    Londres, 29 de novembro

    Paris, janeiro de 1929

    Nice, abril

    Londres, 9 de novembro

  • Lisboa, dezembro

    Lisboa, 6 de maio de 1930

    Lisboa, 11 de maio

    Londres, 24 de novembro

    Lisboa, janeiro de 1931

    Londres, 26 de maro

    Londres, 6 de julho

    Londres, 28 de abril de 1932

    313 EPLOGO: 1932-1964

    Berlim, 20 de setembro

    Seaford, Sussex, Inglaterra, 22 de dezembro de 1933

    Lisboa, 1935

    Berlim, 29 de agosto de 1936

    Lisboa, 7 de maio de 1945

    Cannes, 13 de fevereiro de 196o

    Londres, 17 de maro

    Lisboa, 30 de maro

    Caracas, Venezuela, maio de 1964

    Londres, 3o de julho

    Lisboa, agosto

    Haarlem, 24 de agosto

    Haia, 25 de agosto

    ANEXO: UMA TESTEMUNHA ESPECIAL 351

    Notas de Fernando Pessoa sobre o julgamento de Alves Reis

  • 361 Agradecimentos

  • Gustavo H.B. Francos

    * Gustavo H.B. Franco professor do Departamento de Economia da PUC-Riodesde 1986. Foi diretor e presidente do Banco Central do Brasil entre 1993 e 1999e um dos mentores do Plano Real. scio fundador da Rio Bravo Investimentos eautor de vrios livros, entre os quais: A economia em Pessoa (Zahar, 2007),Aeconomia em Machado deAssis (Zahar, 2007), Crnicas da convergncia, Odesafio brasileiro e O Plano Real e outros ensaios.

    Esta uma histria real, uma minuciosa e cativante reportagem escrita por umespecialista, o experiente e renomado jornalista americano Murray TeighBloom, certa vez descrito, numa homenagem pela Universidade de Columbia,onde se formou em 1937, como "o mais puro e exemplar jornalistaindependente" de sua poca. Bloom foi fundador e presidente da AssociaoAmericana de jornalistas e Autores, e entre tantos livros e feitos, foi o autor deum clebre artigo para a revista True, em 1952, revelando a verdadeiraidentidade do assassino de Trotsky, que estava incomunicvel no Mxico desde asua priso em flagrante.

    Esta advertncia inicial deve ser feita com toda a nfase, para o benefcio doleitor, pois, com certeza, ele vai duvidar do enredo, especialmente dos detalhesda narrativa que ter diante de si. E, ao refugiar-se na licena potica geralmenteconcedida aos romances policiais, perderia o melhor aspecto desta histria: o quese segue inacreditavelmente verdadeiro!

    Se enquadrarmos o episdio contado neste livro em uma definiosimplificada, como um "crime de falsificao'; no h dvida de que estamosdiante do maior e mais extraordinrio caso da espcie, seja pelas cifras, sejapela sua arquitetura. Nenhum dos mais famosos falsrios que se conhece - e umaboa coleo dos maiores e melhores nesse ramo foi organizada pelo prprioBloom* - chegou a transformar suas atividades em um problemamacroeconmico. Os prejuzos que causaram foram sempre de alguns milhes,nunca mais que isso, e alguns pareciam se encantar mais - mas no muito mais, claro - com o desafio, o valor artstico, ou o engenho de suas cpias do que como resultado financeiro propriamente dito. Nenhum jamais causou danos medidosem bilhes, nem nada em que coubesse a mtrica usada para grandezasmacroeconmicas, ou seja, em porcentagens do PIB.

  • Exceto um, o assunto deste livro, Artur Virgilio Alves Reis.

    Alves Reis, como conhecido, provocou um terremoto monetrio emPortugal iniciado em 1925, e que se diz ter sido to srio quanto o de 1755, esteum verdadeiro evento ssmico, e que teria destrudo simultaneamente a polticamonetria e a democracia em Portugal. Esta ltima alegao polmica, masgeralmente aceita como plausvel, o que basta para ns. O valor da fraude,conforme uma cuidadosa estimativa recente, foi calculado em extraordinrios2,6% do PIB portugus da poca."

    Nem mesmo se tomarmos os maiores farsantes de nosso mundo financeiroglobalizado, incluindo os que se tornaram lendas em tempos recentes, gnios domal operando com derivativos e outros materiais de altssima periculosidade einexistentes em 1925, vamos chegar perto de Alves Reis. O maior deles, JeromeKerviel, da Socit Gnrale, provocou um prejuzo de cerca de 7 bilhes dedlares em 2007, quantia equivalente a 0,28% do PIB francs da ocasio.

    O tamanho do problema criado por Alves Reis comea a se apequenarapenas quando entramos no terreno das grandes crises bancrias, como, porexemplo, a que se passa diante de nossos olhos nos EUA. A fabulosa cifra de 70obilhes de dlares, contida na proposta de "pacote salvador" pelo secretrio doTesouro Henry Paulson em setembro de 2008, corres pondiam a pouco menosde 5% do PIB americano. Mas no vamos confundir as coisas: jamais uma crisedessa natureza foi trabalho de um homem s, uma vez que envolve choques detodo tipo, econmicos, sociais, meteorolgicos, bolhas, muitos atos individuais ecoletivos, pequenos e grandes, de imprudncia e impercia, e tambm, em grauvarivel, a inao ou paralisia de reguladores e autoridades. Muitas dessas crisestiveram viles e predadores, mas, na grande maioria dos casos, no passavam deilustraes, personagens menores de um enredo bem maior, criaturas da crise eno a causa primria da confuso.

    Com essas ressalvas, a experincia de Alves Reis uma das poucas em que otrabalho de um nico personagem gerou prejuzos e tumultos prximos daquelesde uma crise de natureza macroeconmica.

    Tudo comeou de forma simples, com uma falsificao que assumiu escalaindustrial, e da degenerou em algo muito maior em razo da soluo encontradapara as dificuldades prticas envolvidas na distribuio de dinheiro falsificado:Alves Reis formou e capitalizou um banco, o Angola e Metrpole. Desta forma, oprojeto foi se desdobrando, a contraveno se ampliando e se confundindo com aidia de desenvolver Angola e outros tantos empreendimentos; a vilania foi sediluindo em meio a tantas iniciativas, negcios, projetos, que foram assumindo

  • uma dinmica virtuosa e prpria a tal ponto que, o crime original, sepropriamente "lavado"; poderia ter permanecido desconhecido. O empresrio"schumpeteriano'; ou saint-simoniano, com seu crdit mobilier feito de genuno"capital fictcio'; mistura-se ao criminoso verdadeiramente falsificadoradicionando mais esta alegoria "fustica" tragdia do desenvolvimentocapitalista. O "desenvolvimentismo" inerente ao processo tornou o crime originalapenas um detalhe menor, pois afinal de contas, como diria Alves Reis maistarde, no era diferente do "crime" praticado cotidianamente pelo Banco dePortugal, ao emitir papel-moeda sem valor para atender s necessidades dogoverno. Mais impressionante ainda que, para ocultar esse pequeno "vcio deorigem" de seu empreendimento, o Angola e Metrpole chegou a conduzir um"take over" hostil do prprio Banco de Portugal, na poca, uma empresa decapital aberto e sem controlador definido.

    Nesta incrvel trajetria, o Banco Angola e Metrpole "compartilhou"; aindaque de forma ilegal, com o Banco de Portugal, a prerrogativa de um Estadosoberano, a de emitir moeda, que havia sido concedido a este e ao BancoUltramarino, responsvel pela circulao monetria nas colnias. Dessa formacuriosa, mas no muito estranha a arranjos ocorridos em outras partes, o BancoAngola e Metrpole pde seguir uma agenda de poltica monetria e creditciaparalela, e mesmo contraditria, do Banco de Portugal. Era como se houvesseum "segundo" banco central, com um vezo "desenvolvimentista"; um "emissorparalelo"; tal qual observamos no Brasil com os bancos pblicos, notadamente osestaduais, antes do Proes (Programa de Incentivo Reduo da Presena doEstado na Atividade Bancria), lanado em agosto de 1996. Esta analogia, emparticular, bastante reveladora, pois a despeito de diferenas nas ilegalidadescometidas, os efeitos so muito semelhantes, e talvez o mesmo possa ser dito, emalguns casos, das motivaes. Um estudo minucioso revela que 24 bancosestaduais brasileiros foram objeto de regime especial entre 1996 e 2001, dissoresultando que os estados controladores assumiram dvidas da ordem de 61bilhes de reais, algo como 5% do PIB brasileiro da poca.

    exatamente o ngulo macroeconmico que mais encanta nesta histria: foicomo se um empreendedor, que era o proprietrio de uma causa toinquestionvel quanto incompreendida, se insurgisse contra a ortodoxia do Bancode Portugal e a inao do Banco Ultramarino, e resolvesse fazer justia, valedizer, a poltica monetria, com as prprias mos. Na verdade, foi este ocaminho da defesa de Alves Reis: tratava-se de colocar, junto a ele, o Banco dePortugal no banco dos rus, e explicitamente o seu presidente, InocncioCamacho Rodrigues, a quem acusava de fazer parte de sua quadrilha. Atravsdesta associao, todavia, Alves Reis levava o debate para um terreno maiselevado, onde se situavam os aspectos subjetivo e institucional da ordem

  • monetria, e perpetrava um ataque conceitual poderosssimo noo de moedafiduciria, ou de papel-moeda de curso forado, cujo efeito simblico talveztenha sido to grande quanto o valor de troca dos pedaos de papel pintado quecolocou em circulao.

    O contexto o ajudava. Em toda parte, ainda prevaleciam dvidas sobre anatureza ideal da moeda, se metlica (ou plenamente conversvel em ouro), ouse na forma de pedaos de papel de aceitao obrigatria definida em lei. Nestemesmo ano de 1925, a Inglaterra retornava ao padro-ouro, e mesma paridadesuspensa em 1914, mas na "periferia" prevaleciam muitas dvidas. Portugal tinhatido uma experincia singular: permaneceu disciplinadamente num regime deconversibilidade de 1854 a 1891, embora suas finanas no fossem exatamentemuito bem-comportadas. A razo para este surpreendente sucesso empermanecer no padro-ouro era simples: as remessas de cidados portuguesesresidentes no Brasil, que abasteciam fartamente o balano de pagamentosportugus. O colapso em 1891 se explica a partir de um interessanteencadeamento de eventos: as dificuldades do banco ingls Baring Brothers,causadas por problemas de balano de pagamentos na Argentina, resultaram emfechar o mercado de capitais londrino e em uma crise financeira internacionalde amplas repercusses, da qual no escapou a jovem Repblica brasileira, queexperimentou a sua primeira crise cambial.* A desvalorizao cambial, e asoutras mudanas tendo lugar no Brasil, reduziram drasticamente, e de formapermanente, as remessas para Portugal, de tal sorte que, exceto por alguns mesesem 1931, o pas jamais conseguiu retornar a um regime de conversibilidade, adespeito dos reiterados esforos de Salazar, reconhecidamente um "linha-dura"quando se tratava de padro-ouro.**

    verdade que desde 1891, todos os governos que se sucederam em Portugal,e foram muitos,"' com maior ou menor nfase, mantiveram o retorno conversibilidade como uma "questo de honra'. Mas o fato que, durante todosesses anos, Portugal permaneceu regido por arranjos temporrios eexcepcionais, como se via na "periferia" em toda parte, e viveu em permanentetenso com a doutrina, que tomava o papel-moeda como um atentado aoscnones da civilizao, ou como uma "criatura do mal"; o resultado de doistostes de farsa e outro tanto de mgica. Em Portugal, contudo, esses arranjospareciam precrios a ponto de atingir a ilegalidade. Alves Reis afirma que teriaconcebido seu esquema ao ler um discurso do deputado Cunha Leal na Cmarados Deputados, na sesso de 29 de outubro de 1923, onde o parlamentar afirmavaque existiam cinco maneiras de se aumentar a circulao monetria no pas:

    Primeira: legalmente ...; h outro ... que consiste em interpretar mal umalei...que declara que est em vigor uma coisa que no existe. Terceiro

  • processo: o gnero de portaria surda...; quarto processo: por comum acordoentre o Banco de Portugal e o governo, sem necessidade de portaria surda ouqualquer outro decreto legal. H ainda um quinto processo que consiste em oBanco no dar cavaco ao governo, aumentar a circulao fiduciria e ogoverno, a certa altura, dar conta disso, e no se importar.`

    As "portarias surdas" eram as "autorizaes"; tecnicamente ilegais, e por issomesmo no publicadas no Dirio de Governo, e que se utilizava para amparar asemisses do Banco de Portugal, at que viesse, a posteriori, a homologaolegislativa. Conforme posteriormente diria Alves Reis, referindo-se ao discursode Cunha Leal: "os cinco processos de aumento na circulao fiduciria foramum raio de luz que me guiou na vereda das emisses clandestinas'."' Junte-se aisso o fato de que proliferavam em Portugal emisses privadas no autorizadas,mas toleradas, de cdulas de pequenas denominaes para fins de troco. Comoafirma um pesquisador: "no difcil sustentar a hiptese de que a enormeprofuso de emisses privadas de cdulas tenha constitudo, com as sucessivase`misses surdas' de notas que ento ocorreram, uma fonte de inspirao daencomenda ordenada por Alves Reis Waterlow, de Londres, no incio de 1925"'

    verdade que o raciocnio, e a seqncia de atos que levou Alves Reis montagem do esquema, parece tortuoso, intuitivo, e mesmo acidental. Mas oscinco anos que transcorreram entre a priso e o Julgamento em 1930 0 levarama construir uma poderosa racionalizao para o esquema cuja base era adesconstruo do regime "excepcional" em que vivia o Banco de Portugal. Noera difcil, na ocasio, argumentar que o papel-moeda de curso forado era umaanomalia diante da doutrina e de leis que consagravam a moeda metlica; bemcomo que era absurda a concesso do monoplio para a fabricao desses papisa um banco privado, como o Banco de Portugal, que prestava contas unicamentea seus acionistas. Tambm era fcil evocar a discusso legislativa, o absurdo das"emisses surdas"; o caos poltico e institucional no terreno da moeda, e colocar oBanco de Portugal entre os rus, pois, afinal, todos estavam "irregulares". E,como no bastasse, Alves Reis descobriu que o Banco de Portugal no tinhamatrcula do Registro Comercial de Lisboa, e tampouco tinha registrado qualqueremisso de suas notas como determinava o Cdigo Comercial de 1914. Situaoconstrangedora que o Banco de Portugal reconheceu e corrigiu em abril de 1926,registrando-se em definitivo como sociedade annima de responsabilidadelimitada, mas no sem passar pelo vexame de ver escrito na certido de registroo seguinte: "Certifico que revendo os livros de inscries relativas a sociedades;desde 1 de janeiro de 1889 at a data desta certido [18.10.1926], neles noencontrei lanado qualquer registro de emisso de notas feitas pelo referido`Banco de Portugal."**

  • Diante desse estado de coisas, como no se impressionar com Alves Reisquando ele escreve (grifo nosso):

    Sendo criminosa a emisso clandestina "Vasco da Gama', so maiscriminosas todas as emisses clandestinas com que o Banco de Portugalinundou o pas durante seis anos, criando a derrocada do crdito do Estado, decrdito pblico e da economia nacional. ... Provada a anarquia monetria,verificadas as fraudes urdidas pelo Banco de Portugal e por vrios governos ...montada a mquina infernal que levou a nao quase bancarrota,demonstraramos como a emisso clandestina "Vasco da Gama" foi, por ns,posta diretamente em circulao, para reparar os pssimos efeitos dasanteriores emisses clandestinas nas quais por felicidade no tivemos a menorinterferncia.*

    Nada h de surpreendente em Alves Reis ter deixado uma forte impressoem seus contemporneos, sensao proporcional s dvidas deste tempo sobre anatureza do dinheiro, que evolua na direo da moeda fiduciria e fornecia umrico pano de fundo para os mais variados experimentalismos, para esquemasinovadores, idias pioneiras, e para os delrios de uma mente inquieta e alertacomo a de Alves Reis. Com efeito, enquanto prosseguia o julgamento em 1930 a"revoluo key nesiana" se espalhava pelo mundo, embora ainda sem esteapadrinhamento e o "selo" de legitimidade que viria a proporcionar. Em todaparte autoridades econmicas experimentavam com esquemas fiscais emonetrios criativos, at ento tomados como herticos, mas que ascircunstncias excepcionais da Grande Depresso faziam convenientes epromissores. E, mais que isso, o sucesso de muitos desses mecanismos lhesgarantiu a qualificao de "revolucionrios". A Teoria Geral foi publicada em1936, e resultou em dar autoridade intelectual a muitos experimentos bem-sucedidos, ainda que justificados a priori por teorias questionveis. Mas estareviravolta keynesiana no foi suficiente para resgatar Alves Reis das prises deSalazar, um "antikeynesiano" convicto. Em 1931, no sexto ano dos ao anos decadeia que teria de cumprir, na flor de seus 34 anos, um key nesiano empotencial, sem ainda o saber, portanto, duplamente precoce, Alves Reis publica oseu terceiro livro. Das vrias passagens de interesse, a que se segue, onde serefere a si mesmo na terceira pessoa, especialmente interessante:

    Voltaire ... ensinou-me que "os fins intrinsecamente bons justificam os meiosintrinsecamente maus". E sem facciosismo de qualquer espcie, os fins daemisso clandestina de notas de 500 escudos efgie Vasco da Gama eramintrinsecamente bons, e, por isso, dentro dos princpios materialistas, que meorientavam, tinha o direito de usar meios intrinsecamente maus para auxiliar

  • Angola ... Angola precisava de muito dinheiro. E, como o revolucionrio queem nome dos interesses pblicos se apodera ilicitamente dos selos do Estado eapregoa restabelecer a ordem por meio da desordem, Alves Reis queria,ilicitamente, assaltar o Banco de Portugal, organizar uma finana vazada emnovos moldes e, Senhor Onipotente, salvar Angola!

    Bem. Tudo isso no obstante, no vamos nos deixar levar pela tentao deexagerar o papel de Alves Reis como um visionrio, como tantos naquelemomento em outros pases, a se rebelar contra uma ortodoxia monetria queparecia levar o pas estagnao. mais fcil imaginar que foi o produto deuma conjuntura poltica confusa, e particularmente desarrumada no tocante sinstituies monetrias do pas. mais recomendvel acreditar no depoimento deum ex-funcionrio da casa Waterlow, os impressores da "emisso clandestina",feito ao prprio Murray Bloom anos depois da publicao deste livro:

    Por qualquer padro normal e razovel de sorte, isso no poderia teracontecido de nenhuma maneira....O que me incomoda realmente osentimento que tenho tido por muitos anos de que deuses caprichososestiveram envolvidos de alguma maneira. Eles tiveram uma noite debebedeira no Olimpo e algum disse, vamos grimpar as engrenagens deWaterlow ... Raios, algum, algo, estava protegendo Reis de todos os seuserros estpidos, suas trapalhadas idiotas que facilmente poderiam ter parado acoisa toda em seus trilhos antes que Waterlow imprimisse uma msera cdula.

    O leitor ter amplo contato com o personagem logo a seguir, e poder fazerseu prprio julgamento, se temos aqui um heri desenvolvimentista ou umfalsrio de grande imaginao, e muita sorte, que buscou um libi para seuscrimes em ventos heterodoxos e dvidas doutrinrias que mal compreendia.

    Resta mencionar, por fim, que quase simultaneamente ao julgamentocriminal de Alves Reis em Portugal, o caso ganhou outra interessantssimadimenso quando se iniciou em Londres o processo, ajuizado pelo Banco dePortugal, contra os fabricantes do meio circulante portugus, a reputada casaWaterlow & Sons, por quebra de contrato e negligncia. O leitor ter aoportunidade de avaliar por si mesmo a boa-f de sir William Waterlow aoaceitar a encomenda para imprimir cdulas de 500 escudos, feita por supostosrepresentantes do Banco de Portugal. Entretanto, este julgamento se tornou umclssico no terreno do direito monetrio na medida em que a discusso sobre osdanos causados a Portugal atingiam o cerne das dvidas acima aludidas sobre anatureza jurdica da moeda fiduciria de curso forado. "Senhoriagem" era umconceito conhecido no mundo da moeda metlica, e tinha a ver com umapequena taxa que os soberanos cobravam para ter sua efgie em moedas

  • cunhadas pela fundidora real, que atestava o peso e a pureza do metal. No mundodo papel-moeda, a senhoriagem era algo muito diferente e muito maisimportante: era a diferena entre o custo de produo do papel pintado e o valorde troca do papel-moeda. Foi exatamente esta a questo levada, na ltimainstncia, aos Lordes em Londres: o prejuzo causado aos portugueses era apenaso custo de imprimir e trocar as cdulas de Soo escudos, estimado em 5 mil librasaproximadamente, ou seria o valor de troca das cdulas retiradas de circulao,fixado em cerca de milho de libras?

    de notar, ademais, que se a "atuao anticclica" do Banco Angola eMetrpole elevou o nvel de atividade econmica, ou se provocou inflao oudepreciao do escudo, toda a lgica do clculo de "dano" fica subvertida. Osportugueses poderiam ver-se diante da constrangedora situao de os Lordesdecidirem que houve o contrrio de dano. Tambm esse aspecto ser exploradopor Bloom, embora sem os detalhes tcnicos que o leitor interessado poderachar em alguns dos melhores tratados do ramo.

    No se deve esquecer, em meio a esta busca de significados maiores doepisdio, que o leitor ter diante de si indivduos comuns, ou incomuns,inventando negcios medocres ou mirabolantes, metendo-se em esquemasdifceis de funcionar, mas que foram se sucedendo, um aps o outro, e gerandoum efeito inesperado e extraordinrio. Tudo se desenrola em torno de uma meiadzia de pessoas, cuja histria j serviu para romances, estudos acadmicos,quadrinhos e minissries na televiso portuguesa. Portugal conhece bem opersonagem, mas no o Brasil. O julgamento foi acontecimento histrico no pase, entre tantas curiosidades assinaladas por Bloom, uma lhe escapou, a presenado poeta Fernando Pessoa nas audincias decisivas. Melhor ainda, Pessoa deixouanotaes sobre o que viu e ouviu. Antonio Mega Ferreira, um de seus bigrafos,o que primeiro se debruou sobre as notas tomadas nesses "trs dias de folga";observa que "nem possvel imaginar por que razo til (se que existiu), opoeta consumiu trs dias da sua vida na sala acanhada de Santa Clara, a no ser acuriosidade de ver e ouvir de perto o principal ator da tragicomdia financeiraque abalou os ltimos anos da Repblica e se propagou em ondas de choque, aosprimeiros tempos da ditadura'. Seria fcil contra-argumentar que no sempreque se v um "heternimo" de banco central, e um "outro" dinheiro, depersonalidade diferente do oficial. As notas so fragmentos, impresses,comentrios, nada organizado ou conclusivo, como, de resto, seria de esperar deFernando Pessoa. H uma aluso indireta a este caso em um dos clebres artigossobre economia que escreveu para a Revista de Comrcio e Contabilidade em1926 - intitulado "Quando a lei estimula a corrupo'." Mas o contedo das notasno diverge do que parece ter sido a reao mais comum do pblico portugusaos eventos: um deslumbramento contido, prudentemente distante, mas no

  • estranho admirao.

    O homem que roubou Portugal foi publicado originalmente em 1966, e traduesdo texto para o portugus circularam em Portugal e no Brasil nesse mesmo ano.A maior parte das aes contadas no livro tem lugar entre 1924 e 1932, mas hum eplogo com vrios episdios principalmente dos anos 1960, e resultantes deentrevistas e diligncias conduzidas pelo prprio Bloom. Esta uma histriarepleta de valores em dinheiro que o autor cuidadoso em transformar emvalores em dlares sempre relativos poca em que se passa a ao. No hnada de simples em se trazer valores monetrios de 8o anos atrs para os dias dehoje, pois no se trata apenas de considerar a inflao acumulada, mas tambmde atentar para o fato de que o PIB de Portugal ou dos EUA eram muitomenores. fcil ver que, por exemplo, too dlares de 1925 equivalem a 1.173dlares de hoje, e too dlares de 1965 equivalem a 651 dlares de hoje, seapenas considerarmos a inflao observada nesses anos. Porm h mais. O PIBde Portugal hoje algo dez vezes o de 1925 (medido em dlares), de tal sorteque, como porcentagem do PIB de 1925, too dlares de 1925 dez vezes maiorque 1.173 dlares comparados ao PIB de hoje. Ou seja, uma "atualizao"completa, e que atente para a importncia econmica das quantias envolvidas,deve considerar tambm a variao do tamanho do PIB em cada poca. Grossomodo, uma maneira simples de o leitor "atualizar" os valores em dlares comque deparar multiplic-los por 117.

    Muitas pessoas colaboraram para esta edio. Nossos agradecimentos aDenise Barreto e Neide Frana, da Rio Bravo, e a Pedro Cardigos pela gentilezaem nos disponibilizar os livros escritos por Alves Reis. A obteno e a verificaoda autenticidade das notas de Fernando Pessoa envolveu diversas pessoas, queso credoras de nossos especiais agradecimentos, destacadamente Ftima Lopes,da Biblioteca Nacional de Portugal, o embaixador Celso Vieira da Silva, aprofessora Cleonice Berardinelli e o professor Jos Blanco. Nossosagradecimentos tambm a Luiz Alberto Rosman e Guilherme Fiuza.

  • At o ltimo dia do julgamento na Cmara dos Lordes nenhum dos cinco Lordesda Lei tinha produzido uma sntese superlativa do caso.

    Naquele dia, no plenrio da Cmara dos Lordes, a sublime sede gtica dospares do reino, o baro Macmillan de Aberfeldy finalmente corrigiu a omisso.

    Ele declarou que a mais alta corte de apelao do Imprio deliberava sobre"um crime para cuja concepo singela e audaciosa dificilmente se encontrariaum paralelo.

    Na pequena tribuna de imprensa no extremo norte do amplo salo, osreprteres impressionaram-se com o elogio e sua extravagante sintaxe. O nico adivergir foi um reprter londrino desempregado que assistia s longas sries desesses a pedido de Edgar Wallace, escritor de romances policiais e de mistrioextremamente prolfico dos anos 1920.

    Aos 14 anos, Wallace trabalhara como revisor de provas para a Waterlow &Sons, empresa vtima do crime, por um salrio de quatro xelins e meio [cerca deum dlar] por semana. Ao longo dos anos o escritor acompanhara o casomotivado pela empatia e pelo interesse profissional. Anunciara em vriasoportunidades a inteno de publicar um livro sobre o tema. Mas em fevereiro de1932, morreu em Hollywood, sem escrev-lo.

    Naquela manh, depois que os Lordes proferiram seu veredicto, o amigo deWallace confidenciou a outro reprter:

    - Ah! De qualquer modo, Dickie jamais teria escrito esse livro.

    - Por que no? Este um dos mais extraordinrios casos...

    - Extraordinrio demais... Imagine um desses artistas de rua, em Londres, queganhe a vida desenhando repetidamente o pr-do-sol, com giz colorido. Vocpassa, olha e, porque lhe agradam a simplicidade e o colorido vvido obtido peloartista no desenho, joga algumas moedas em seu chapu. Ento, numa tarde devero, cai uma chuvinha. Quando a calada seca, o artista pega seu giz colorido ed incio a mais um pr-do-sol. De repente, percebe que ningum o observa elevanta os olhos. No cu, dois magnficos arco-ris com maravilhosos tons devioleta e vermelho. Na calada, o artista sabe que no pode rivalizar com aquilo.

  • Guarda, ento, seu chapu e o giz e vai embora. Pois bem, se Dickie tivesseescrito sobre este caso, todas as histrias que inventara at ento pareceriam umdesrespeito a seus leitores. Como o artista de rua, Wallace sabia reconhecerquando tinha sido completamente superado!

  • s 22h, um jovem portugus, comerciante e fumante inveterado, que seencontrava beira da falncia e da desonra, sentou-se diante da mquina deescrever em seu escritrio a fim de arquitetar um crime impossvel.

    Martelou sem descanso as antiquadas seis fileiras de teclados da sua Smith1918. Seus cinco funcionrios - um gerente, trs escriturrios e uma datilgrafa -havia muito tinham deixado o escritrio, localizado no segundo andar de umprdio da Baixa, o desrtico centro comercial de Lisboa. s 23h3o, finalizou asquatro pginas do documento que o ajudariam a se tornar, no prazo de um ano, ohomem mais rico de Portugal e, em dois, o mais rico e o mais poderoso. Tinha,ento, 28 anos de idade.

    A maioria dos grandes criminosos de colarinho branco da era moderna operade dentro, como insider em uma grande organizao, valendo-se de uma posiode confiana para perpetrar fraudes e desfalques. Falsrios e falsificadores bem-sucedidos, atuam de fora, como free-lancers, e se fiam em habilidadesrefinadas, no zelo desmedido pelos detalhes e em comparsas bem treinados paraobter as condies favorveis sua atividade.

    Artur Virgilio Alves Reis, o amador que concebeu o crime, no possuanenhuma dessas vantagens. Em relao s suas vtimas - o Banco de Portugal e omundo dos impressores de papel-moeda -, ele era um completo estranho e,quela altura, em 1924, encontrava-se praticamente sem dinheiro. Alm de nose destacar por nenhuma habilidade criminosa, com freqncia negligenciava osdetalhes. Alm disso, os trs homens que escolhera para auxili-lo no podiamconhecer toda a verdade, pois qualquer um com um mnimo de bom senso veriaque aquele esquema delirante no tinha a menor chance de sucesso.

    A despeito de sua evidente desqualificao, Alves Reis foi bem-sucedido.Triunfou porque tinha a imaginao frtil dos ignorantes, a segurana dosdesinformados e a sorte absurda dos principiantes.

    A enorme repercusso do seu xito deu a Portugal o pior choque econmicodesde o grande terremoto de 1755: deu origem mais duradoura ditadura denosso tempo, arruinou o prefeito de Londres, decretou a falncia de uma dasmaiores empresas impressoras do mundo e culminou num dos processos maislongos e custosos da histria judiciria da Inglaterra.

    O brilhante esquema de Alves Reis teve reflexos duradouros, que por dcadasinterferiram na vida da mais prestigiosa atriz holandesa, na prosperidade de

  • vrias famlias portuguesas, na afluncia de um fabricante francs de aparelhoseltricos e, at mesmo, nos speros debates nas Naes Unidas sobre a Angolaportuguesa.

    Quase todos os criminosos so imitadores sem imaginao. Fazem o queoutros criminosos fizeram antes deles. Os mais espertos trazem alguma inovaotcnica, planejam de modo mais elaborado, calculam com maior cuidado.Apesar disso, durante o sculo XIX, trens transportando valores foram assaltadoscentenas de vezes e caixas-fortes de bancos aparentemente inexpugnveis foramrotineiramente violadas, nos fins de semana. Desde que os chineses inventaram opapel-moeda, no h sequer uma cdula que no tenha sido falsificada. E, numarotina similar, falsificam-se milhares de cheques todas as semanas. O crime deAlves Reis, todavia, alm de jamais ter sido feito antes, apresentava tambmuma limitao intrnseca: no poderia ser repetido. Era - e - o crime nico, algoto raro que ocorre apenas uma vez na histria de uma civilizao. Ele concebeue executou um plano perfeito de falsificao.

    Qualquer pessoa medianamente inteligente capaz de perceber os trsgrandes obstculos com os quais se defronta um falsificador. Para incio deconversa, as matrizes de cdulas que fizer ou obtiver jamais chegaro perto, emqualidade, s do prprio governo. Afinal, no verdade que os melhoresgravadores e impressores prefiram a segurana de um bom emprego no governoou num banco existncia clandestina e miservel de um criminoso autnomo?Matrizes grosseiras resultam em notas grosseiras, por isso, logo, um caixa debanco ou um balconista atento identificam as notas falsas. E rapidamente todo oaparato de segurana do Estado se volta contra o falsificador.

    Tome-se o segundo grande obstculo: quem se pode recrutar para correr orisco de passar as notas falsas em pequenos estabelecimentos comerciais erestaurantes? Para isso, s se pode contar com os marginais do submundo, osvencidos da vida, cuja prpria aparncia suficiente para que o mais negligentecomerciante examine com redobrada ateno uma cdula que lhe caia nasmos. H ainda os criminosos que adquirem as notas no atacado, ao custo degrandes descontos, os quais colocam em risco o prprio falsificador devido suanatural ansiedade para se livrar o mais breve possvel das notas, e assimdespertam de imediato a ateno dos bancos e do governo.

    No fim, h a inevitabilidade do inqurito, priso e condenao. A falsificaode dinheiro representa para o Estado uma ameaa s comparvel ao crime detraio. Aos falsificadores se aplicam penas severas e rpidas. Bem alm deuma questo restrita justia, e muito mais do que um problema de imagempara o Estado, trata-se de autodefesa. O funcionrio que se corrompe, o homem

  • que mata o amante da esposa ou o escroque que aplica um golpe na empresa,todos podem esperar e, at mesmo, comprar a indulgncia. No entanto, nenhumEstado admitir qualquer indulgncia em casos de falsificao, quer de umpunhado de moedas, quer de um milho de cdulas de dinheiro.

    Esses trs obstculos so bastante bvios, e muitos dos melhores profissionaisdo crime ousaram enfrent-los no passado. Todavia, Artur Virgilio Alves Reis foio primeiro a encontrar solues eficazes. Elaborou um esquema de falsificaoperfeitamente lgico. At mesmo seus inimigos - e, naturalmente, havia muitos -foram obrigados a reconhecer o brilho des- concertante e a lgica luminosa deseu plano. O Estado, na condio de seu principal inimigo, assim se manifestaria,muito mais tarde, por intermdio de um de seus mais eloqentes representantes:

    Para Alves Reis no havia o que se costuma chamar de dificuldade lgica.Nele, a concepo precede imediatamente a execuo. ... Dotado deimaginao extremamente frtil e de atividade mental assombrosa e quasefebril ... jamais se perguntou se uma idia que lhe passava pela cabea eraexeqvel. ... Tudo o que imaginava parecia-lhe possvel e, at mesmo, fcil.Tal como os movimentos de sstole e distole do ciclo cardaco, sua espantosaatividade e ilimitada ousadia nada mais eram que dois aspectos motores dadeslumbrante vivacidade de suas imagens mentais e da profunda escuridoem que mergulhavam suas inibies residuais.

    Alves Reis nasceu em 8 de setembro de 1896, numa famlia de classe mdiacom reivindicaes remotas de grandeza histrica. Embora seu pai, AugustoGuilherme Alves Reis, fosse um contador autodidata que chegara a scio de umacasa funerria no bairro de So Tiago, em Lisboa, jamais permitiu que o jovemAlves Reis esquecesse que seu pai era primo do grande almirante Reis, que davanome a uma rua importante da capital portuguesa.

    Alm da funerria, o velho Reis tinha outros interesses comerciais, entre osquais o de emprestar dinheiro. Em 1914, quando seu filho deveria seguir para auniversidade aps concluir os estudos no liceu local, perdeu todas as economiasda famlia num investimento na Companhia Portuguesa de Petrleo, que, em suabusca por leo natural, escavara uma quantidade grande demais de poos secosem Angola.

  • Por um ano, o jovem Alves Reis freqentou um curso de engenharia prtica,que logo abandonou para se casar. Conheceu Maria Luzia Jacobetti d'Azevedodurante um piquenique numa praia prxima a Cascais. Ela era filha doencarregado de uma firma britnica de especialistas aduaneiros em Lisboa.Como Alves Reis, ela tambm tinha um parente famoso: seu bisav fora umimportante e prolfico dramaturgo italiano chamado Jacobetti. Ela freqentarauma escola francesa para moas, onde aprendera a ler, a escrever, a tocar pianoe a falar francs.

    Aos 20 anos de idade era quatro meses mais jovem que o noivo, erazoavelmente atraente, com as mas do rosto salientes, nariz levementeprotuberante e queixo delicado. Como muitas mulheres portuguesas, era baixa eum pouco cheinha. Estava de fato apaixonada por seu noivo, de voz grave esempre bem vestido. Ele tinha cerca de 1,70m de altura, porm os ombros muitolargos lhe conferiam uma aparncia mais atarracada. Antes mesmo dos 20 anoscomeou a perder os cabelos, e para esconder a florescente calvcie, passou arepartir o cabelo ao meio.

    Aps um ano de noivado, Artur e Maria se casaram em agosto de 1916.Como ainda no haviam completado 21 anos, para que o casamento serealizasse, foi necessria a autorizao dos pais, atravs da "emancipao" deambos.

    Em 1916, Portugal entrou na Primeira Guerra Mundial ao lado dos Aliados.Em vez de seguir para a frente europia, o recm-casado Alves Reis no tevedificuldades para ardilosamente obter permisso de ir para Angola. Antes departir, preparou um documento que viria a lhe garantir grande respeito nacolnia: um diploma - N. 2.148 - da "Escola Politcnica de Engenharia" daUniversidade de Oxford. O fato de tal escola jamais ter existido no eraimportante.

    Para os dizeres do documento, que datou de maro de 1916, simplesmentetraduziu o diploma que um conhecido obtivera na Universidade de Coimbra. Ograu de bacharel, afirma o texto, era conferido a Alves Reis por sua aplicaonas disciplinas de:

    Cincia da engenharia, geologia, geometria, fsica, metalurgia, matemticapura, matemtica, paleografia, engenharia eltrica, engenharia mecnica,matemtica aplicada, qumica, fsica experimental, mecnica aplicada, fsicaaplicada, engenharia civil geral, engenharia civil e mecnica, engenhariageral, desenho de projeto mecnico e civil.

  • Alm disso, estava habilitado "a dirigir quaisquer atividades relacionadas aograu em que se especializara" Em resumo, tudo estudara e poderia fazerqualquer coisa.

    O diploma ostentava a assinatura do "diretor da politcnica'; Henry Spooner, edo "reitor da universidade"; John D. Peel. A ele se anexaram um glorioso ecriativo "Selo de Ouro da Universidade de Oxford" e o carimbo da "EscolaPolitcnica de Engenharia"

    Em julho de 1916, Alves Reis fez uma cpia do diploma autenticada por umtabelio tolo e negligente de Sintra, a fim de que aqueles que no confiassemplenamente num diploma estrangeiro pudessem comprovar sua autenticidade,visto que estava atestada por um tabelio portugus.

    Em novembro de 1916, Alves Reis levou sua noiva para Angola, na CostaOeste da frica, ao sul do Congo Belga. Ao chegar a Luanda, capital e principalporto do pas, arranjou sem dificuldades um emprego no Departamento de ObrasPblicas, no qual era responsvel pela aprovao dos projetos de construo e dedesenho de esgotos.

    Angola tem a forma aproximada de um retngulo de cerca de 1 milho dequilmetros quadrados - 14 vezes maior que a metrpole, Portugal. QuandoAlves Reis ali aportou, havia cerca de 20 mil brancos, lo mil mulatos e3 milhesde negros nativos, pejorativamente chamados de "jagas". Em 1916, como notinha carvo ou ferro, Angola era essencialmente agrcola. Exportava caf,milho, algodo, acar, tabaco e arroz.

    Como nico indivduo a possuir um diploma de Oxford em Angola, Alves Reisrapidamente sentiu a necessidade de buscar novas oportunidades, alm de seuemprego enfadonho no Departamento de Obras Pblicas. Arranjou umacolocao como engenheiro-chefe nas oficinas de reparos da estrada de ferrolocal. Ali trabalhava das 5 s 9h, quando ento se dirigia para a repartiopblica.

    Naquela poca, em Angola, poucas estradas faziam a ligao entre asfazendas e os mercados, e a maioria dos colonos dependia da ferrovia paraescoar seus produtos para o porto de Luanda. O problema era que havia poucaslocomotivas em operao. A maior parte se encontrava parada porque no seconseguia comprar peas de reposio da fbrica na Blgica, que estavadevastada pela guerra.

    Reis rapidamente percebeu que o trabalho burocrtico no escritrio jamaisconsertaria as locomotivas. Numa demonstrao de coragem, fez algo que todo

  • portugus de classe mais alta preferiria morrer a fazer: vestiu uma roupa deoperrio.

    Na lngua portuguesa, essas roupas de trabalho so conhecidaspejorativamente como "fatos-macacos" (em Portugal) ou "macaces" (noBrasil), e em poucos dias Alves era zombeteiramente tratado como o"engenheiromacaco. Para descobrir os defeitos, costumava escalar as caldeirasdas locomotivas. certo que apresentava algumas habilidades como engenheiro,pois, quando explicava o que estava errado aos mecnicos e o modo deconsertar, comprovava-se, com surpreendente freqncia, que estava corretoem suas instrues. Ainda era chamado de "nosso engenheiro-macaco", masagora com orgulho. Como no poderia deixar de ser, ficou conhecido como ohomem que pusera os trens para funcionar. No os fez andar no horrio, mas osfez andar.

    Sua sugesto de comprar locomotivas novas nos Estados Unidos foi aceitarapidamente. A idia era boa, mas as mquinas americanas apresentavam certosproblemas que no foram previstos por Reis. Elas eram mais longas e maispesadas do que as locomotivas belgas, e, quando chegaram a Luanda, alguns deseus colegas, enciumados, estavam certos de que o en genheiro-macaco fizerauma grande trapalhada. Utilizando-se de algumas frmulas-padro de tenso eresistncia, provaram de modo categrico ao diretor da ferrovia que as novaslocomotivas no poderiam cruzar as pontes, por serem demasiado pesadas.

  • Alves Reis numa expedio em Angola, 1920

    Reis no dispunha de conhecimentos suficientes de matemtica, muito menosde engenharia, para discutir com eles no papel. Por isso props umademonstrao. Dirigiu-se com uma das novas locomotivas norte-americanas ata primeira ponte na sada de Luanda. O trem parou, e ele anunciou tripulao eaos passageiros que, caso no confiassem em suas concluses, ele estava dispostoa acompanh-los, ao lado da esposa e do filho Guilherme, ainda de colo. Todosse sentiram constrangidos a prosseguir. O trem atravessou com segurana aponte - todas as demais, tambm. Foi um grande triunfo!

    Com a reputao em alta, Reis galgou novos postos na carreira. Em maro de1918, foi nomeado inspetor das Obras Pblicas e, ainda naquele ano, se tornouengenheiro-chefe em exerccio das Estradas de Ferro de Angola. Ainda assim,buscava novos desafios.

    Um amigo que cultivava tabaco estava prestes a perder a colheita devido escassez de chuva. Reis reuniu 5o nativos e em menos de uma semana construiu,na encosta de uma colina, um rstico, mas eficiente, aqueduto de madeira,desviou as guas de um rio prximo e salvou a lavoura. Agradecido, o amigo lhecedeu a metade dos lucros auferidos.

    Reis se apaixonou por Angola, apesar das muitas doenas tropicais que eramendmicas por l. Mais tarde, ele prprio analisaria a natureza dessa irresistvelatrao pelo pas:

    Naveguei pela extensa costa angolana, empreendi muitas jornadas rduaspelo interior, a estudar com cuidado os recursos do pas, e agora ficavamaravilhado ao relembrar a imensa riqueza do solo e do subsolo. Qualquerespcie de produto, tanto da zona temperada quanto da trrida, ali se podiacultivar, como se a natureza se revelasse ao homem com todo vigor ecapricho! No subsolo, ouro, prata, cobre, estanho, ferro e diamantesfornecem os meios necessrios para tornar a Angola de amanh uma dasmais prsperas terras de todo o continente africano. Engrossam a lista de suasriquezas naturais, planaltos nos quais os homens brancos se deparam comcondies climticas que nada devem Europa. Quo estimulantes eenlouquecedoras so para seus filhos as promessas da Me Terra!

    Em maio de 1919, com 24 anos incompletos, Alves Reis decidiu que era horade fazer sua fortuna em Angola. Ao renunciar ao cargo de engenheirochefe daferrovia, o Dirio Oficial fez questo de assinalar que o governador de Angolalamentava a perda de seus servios. "Alves Reis desempenhou suas funes com

  • grande zelo e competncia, servindo bem, desse modo, Colnia e Repblica"

    Passou, ento, a viajar por toda a colnia, comprando colheitas para revend-las em Luanda. Com as excelentes ligaes na ferrovia, os produtos semprerecebiam prioridade e garantia de pontualidade. A esposa sempre oacompanhava nas viagens, enquanto os dois filhos pequenos permaneciam emcasa, em Luanda, aos cuidados de empregados nativos de confiana. A senhoraReis foi a primeira mulher branca a visitar vrias vilas angolanas. Com seuscavalos brancos e chapus de cortia, ambos eram relquias admirveis docolonialismo do sculo XIX - e do comrcio do sculo XX.

    Reis prosperou e, no final de 1919, partiu para a Europa a fim de comprarexcedentes de guerra a preo de liquidao. Adquiriu, na Frana, umcarregamento de sacos de papel reforado, que vendeu para Angola como sacosde juta. Embora ludibriados, os compradores no se queixaram muito, poisdescobriram que, para suas necessidades, o papel reforado se equiparava juta.

    No caminho de volta a Angola, deparou-se, num depsito abarrotado deLisboa, com 20 tratores alemes sem uso, mas muito enferrujados. Comoningum soubera faz-los funcionar, Alves Reis comprou-os por uma bagatela.Em seguida, contratou dois mecnicos e, ao lado deles, trabalhou toda umasemana para pintar as mquinas e as pr em funcionamento. Assim conseguiuvend-las como novas para um importador de Angola.

    Em 1922, Reis decidiu que era hora de voltar para Lisboa. Tinha acumuladolucros de 60o mil escudos [cerca de 30 mil dlares na poca] e achava terterminado seu aprendizado no mundo dos negcios internacionais.

    A volta se deu em grande estilo. Com a ajuda de dois scios, que investiramalgum capital, constituiu a A.V. Alves Reis Ltda. Alugou um amplo apartamentode 12 cmodos por mil escudos por ms, valor elevado para os padres deLisboa, apesar de equivaler a apenas cerca de 5o dlares mensais. Contratou umcozinheiro, uma arrumadeira, uma costureira e um motorista para conduzir seused Nash - sua empresa adquirira o direito de representar em Portugal a fbricanorte-americana de automveis - e mobiliou com esplendor sua casa e seuescritrio. Gabava-se, por exemplo, de ser o primeiro homem de negcios emLisboa a possuir um apartamento privativo contguo ao escritrio para que, naeventualidade de trabalhar at mais tarde, pudesse descansar.

    Com o transporte de mercadorias entre Portugal e Angola, a firma conquistouuma relativa prosperidade, embora, pessoalmente, Reis se encontrasse semdinheiro, devido aos excessivos investimentos que fizera na Companhia de

  • Minerao da Angola Meridional, que ainda no produzira sequer uma toneladade minrio de ferro. Mas o pior ainda estava por vir: em setembro de 1923,Angola estava mergulhada em profunda crise financeira. O escudo angolano,que fora inflacionado continuadamente pelo Banco Ultramarino de Portugal,quase no possua mais valor de compra. As transferncias de moeda entreAngola e Portugal foram proibidas.

    Reis partiu em busca de novos capitais, e alguns amigos o aconselharam atentar pr em ordem os confusos negcios da Ambaca, a Compa nhia RealTransafricana de Estradas de Ferro de Angola. O valor das aes da companhiadespencara para alguns poucos escudos, e os estrangeiros detentores de aes ede ttulos de dvida se queixavam contra a falta de pagamento de dividendos ejuros.

    O interesse de Reis pela Ambaca aumentou consideravelmente assim quedescobriu que, nos cofres da empresa, havia ioo mil dlares, provenientes de umemprstimo portugus, destinados ao pagamento dos juros dos ttulos de dvida. Atentao era grande demais. Mais tarde, afirmaria que ele simplesmente sentiraa necessidade de

    movimentar todo aquele capital estagnado. Para alcanar esse propsito, euprecisava comprar um nmero suficiente de aes que me permitisse eleger-me presidente da companhia. No havia tempo a perder. Um lance deousadia resolveria a situao, no entanto, se desse ouvidos minhaconscincia, o fracasso seria inevitvel. No mundo materialista a queperteno, no h homens honestos nem escroques - h somente vitoriosos ederrotados. Assim no hesitei em assumir o controle da companhia e de usaro dinheiro dos acionistas.

    Mas como um homem de negcios praticamente falido obteria capital paracomprar as aes necessrias para se apossar da Ambaca e pilh-la? Alves Reisdescobrira que o segredo se encontrava na combinao de cheques rpidos enavios lentos. Em virtude de sua concessionria Nash, tivera de abrir uma contano National City Bank de Nova York e, por isso, adorava passar cheques do banconova-iorquino, que demoravam ao menos oito dias para alcanar o outro lado doAtlntico. Com esse intervalo para empregar livremente altas somas, um sujeitoesperto poderia fazer muitas coisas, principalmente se fosse cuidadoso osuficiente para enviar por cabo o dinheiro ao banco em Nova York no stimo dia.Ainda se esquecesse ou no pudesse obter o dinheiro a tempo, no seria muitocomplicado convencer o credor a reapresentar o cheque, imputando a culpa aalgum funcionrio do banco. Desse modo, o cheque percorreria mais uma vez olongo caminho martimo e, como certos vinhos, muito se beneficiaria disso. Com

  • um pouco de sorte e algumas mentiras tpicas do mundo dos negcios, erapossvel obter o livre acesso a largas somas por at 24 dias.

    Com cerca de 40 mil dlares em cheques do National City Bank, Alves Reisadquiriu o controle da Ambaca. De posse do caixa da companhia, foi capaz decobrir esses cheques.

    E os 6o mil dlares restantes serviram para adquirir o controle da Companhiade Minerao da Angola Meridional. Com a destreza inata de um especulador,espalhou tanta informao exagerada sobre a empresa que aumentou o preodas aes, muito embora seus engenheiros responsveis pela minerao aindano tivessem descoberto nenhuma lavra com potencial econmico.

    No incio de 1924, Alves Reis foi apresentado a Jos Bandeira, supostorepresentante de um importante grupo financeiro holands interessado noscampos petrolferos angolanos. Como a Companhia de Minerao da AngolaMeridional detinha igualmente alguns campos de petrleo,Alves Reis estavaansioso por um encontro com Bandeira. Segundo o prprio Reis, entenderam-semuito bem:

    Bandeira deixou-me com a impresso de que conversara com ummandachuva angolano. Na manh seguinte, encontrei-me com Bandeira espera de um txi. Dei-lhe carona em meu carro, conduzido por meumotorista. Em meu escritrio, Bandeira ficou to impressionado que mesolicitou o direito opo de compra das aes da companhia de minerao ese disps a me apresentar a seus amigos, caso um dia eu fosse Holanda. Aoperceber que ele tinha timas relaes em Haia, tomei a deciso de us-lo damesma forma que se usam os limes: ns os esprememos e descartamos. Emmeus planos, Bandeira era um agente, um colaborador cego, relesinstrumento para alcanar meus objetivos.

    Em maio de 1924, Reis foi a Haia, e Bandeira o apresentou a seus amigosHennies e Marang.

    Fiquei encantado com Hennies, que conhecia em detalhes o mundo dasfinanas internacionais.... Era mais um financista que um homem denegcios, mais prtico que terico, com clareza de raciocnio e grandeargcia, testada em triunfos e fracassos. Estava acostumado aos caprichos dodestino.

    Reis ficou um pouco menos impressionado com Karel Marang.

  • Um tpico negociante holands, mais esperto que inteligente, masprofundamente versado em transaes comerciais.

    Firmaram um acordo informal para a realizao de alguns negcios emAngola, que envolviam principalmente o comrcio de cerveja alem. Apossibilidade de Hennies e Marang comprarem aes da Companhia deMinerao da Angola Meridional parecia remota. Ambos tinham o des-concertante costume de perguntar qual tinha sido exatamente o volume deproduo de minrio da empresa; promessas eles sempre descontavam a ioo%imediatamente.

    Em junho, de volta a Lisboa, Reis deparou com a pior crise que sua empresaj enfrentara: os dois scios queriam abandon-lo. Aps tomarem conhecimentodo golpe com o caixa da Ambaca, temiam que seu scio acabasse na priso.

    Em 5 de julho, Reis foi preso e levado para o Porto naquela mesma noite, soba acusao de desviar ioo mil dlares da Ambaca. A denncia fora apresentadapor trs membros do conselho de administrao da empresa. Dois destestambm eram diretores de bancos do Porto, e usaram sua influncia paragarantir que ele fosse levado at l para ser interrogado. "Uma cidade onde euno conhecia ningum", lamentou-se Reis.

    No mesmo dia, Hennies e Jos Bandeira desembarcaram em Lisboa. Quandosouberam que Alves Reis fora preso, decidiram retornar a Haia. Porm a esposade Reis, ciente de quanto o marido estava interessado em uma associao com osinvestidores holandeses, foi ao hotel onde se encontravam hospedados e, emlgrimas, suplicou-lhes que fossem priso no Porto para conversar com omarido, que certamente lhes explicaria tudo.

    Na priso, Reis denunciou com veemncia a inveja de seus inimigos polticos,que haviam conspirado contra ele. Hennies indagou-lhe por que no resolvia oproblema com a venda de suas aes da companhia de minerao para restituiro dinheiro aos cofres da Ambaca. Reis fez uma longa e confusa explanao(como poderia confessar-lhes que aquelas aes no valiam quase nada?) e osvisitantes o deixaram satisfeitos consigo mesmos por no terem se envolvido. EmLisboa, Hennies telegrafou a seu agente em Angola para suspender a remessa decerveja que despachara para a companhia de Alves Reis. De volta a Haia,imaginavam que jamais ouviriam falar novamente em Reis, que de incio lhesparecera to promissor.

    A fim de reunir dinheiro para sua defesa e possvel restituio aos acionistas einvestidores lesados da Ambaca, Alves Reis teve de liquidar todos os seus bens. A

  • esse respeito, escreveu da priso esposa uma carta furiosa, quase incoerente:

    Minha querida e santa esposa,

    Ferreira [o confivel gerente do escritrio] chegou h pouco e me relatouque em casa, at ontem, tudo estava tranqilo.... A despeito de meus 27 anos,tenho mais experincia que todos os outros ... Perdi todas as esperanas dedeixar esta priso antes do julgamento. ... No se preocupe com o dinheiro,meu amor. Siga minhas exatas instrues para a venda da casa e das jias. Odinheiro auferido com o leilo dever ser suficiente. provvel que toda estahistria se resolva em breve. Traga-me as jias e a prataria que noconseguir vender. Durante as duas horas dirias de visita que temos,trataremos de tudo.

    No se preocupe, amor, assim a vida, e devemos nos conformar.... Seumarido, querida esposa, sempre ajudou a todos, agora ningum o ajuda. Queme sirva de lio! Beijos para as crianas. E traga-me alguns lenis.

    Milhes de beijos de seu afetuoso marido

    Alves Reis permaneceu 54 dias numa priso no Porto. Quando afinal se viulivre da autocomiserao e da amargura diante da ingratido daqueles queajudara no passado, passou a refletir sobre as causas daquele contratempo. Aprimeira, claro, era a simples falta de dinheiro.

    O que era o dinheiro, afinal? Um mero pedao de papel! Portugal havia muitoabandonara o padro-ouro. Tome-se, por exemplo, a postura oficial daAlemanha em relao sua galopante inflao de notas bancrias: sempre quenecessitava de dinheiro, o governo ligava suas mquinas de impresso. Veja aHungria... Veja a Itlia... Em toda parte se imprimia dinheiro sem parar.

    E, em Portugal, no era o Estado quem detinha este privilgio: havia cedido opoder de atribuir valor legal a um diminuto pedao de papel a uma instituiosemiprivada: o Banco de Portugal." Tal privilgio'; escreveu Reis, " capaz defazer do Estado escravo dos detentores desse imenso poder"

    Alves Reis solicitara a Ferreira que lhe levasse tudo o que encontrasse arespeito do Banco de Portugal e sua organizao: estatutos, histricos, relatriosanuais, recortes de jornais.

    Segundo descobriu, de acordo com uma lei de 1887, o Banco de Portugaltinha a licena exclusiva de emitir no pas uma quantidade de papelmoedacorrespondente ao dobro do capital integralizado. A maior parte das aes do

  • banco se encontrava nas mos de investidores privados; o restante era controladopelo governo. Os considerveis lucros anuais da instituio eram divididosproporcionalmente entre os acionistas privados e o governo.

    Reis descobriu indcios de que, em 1924, o banco, a fim de acomodar asnecessidades fiscais do governo, emitira notas que excediam mais de cem vezeso capital da instituio. Sempre que se encontrava em apuros - o que ocorria combastante freqncia - o governo apelava ao Banco de Portugal e, simplesmente,ordenava-lhe a impresso de novas notas. Tendo em vista que, desde 1891, asnotas no eram conversveis em ouro ou prata, a nica despesa envolvida era ocusto da impresso. Felizmente, em Portugal, a inflao no atingira os nveisalarmantes a que chegara na Alemanha no incio dos anos 1920.

    Entre 1918 e 1923, a quantidade de escudos emitidos pelo Banco de Portugalsextuplicou. Naturalmente, quanto maior o volume de dinheiro em circulao,menor o valor da moeda portuguesa em relao a moedas estrangeiras noinflacionadas. Assim, enquanto em 1918, uma libra esterlina valia cerca de oitoescudos [um escudo correspondia aproximadamente a 6o centavos de dlar]; em1923, era possvel trocar uma nica libra por 105 escudos [um escudo valia,ento, menos de cinco centavos de dlar].

    Havendo clareza sobre os padres nas emisses, Alves deparou com outradescoberta encorajadora. Ele tinha elaborado um esquema completo dofuncionamento dos vrios departamentos do banco. Ficou satisfeito em descobrir,num misto de alvio e surpresa, que nenhum setor se encarregava de averiguar aexistncia de cdulas com numerao duplicada ou a coincidncia denumerao com aquelas emitidas pelo prprio banco, que recolhia em suasagncias e outras instituies bancrias as notas velhas e sujas, as quais, lavadas epassadas, eram distribudas de acordo com a srie e o nmero para reutilizao.Embora o Banco de Portugal tenha seguido o modelo do pai de todos os bancoscentrais, o Banco da Inglaterra, houve graves omisses. Quando uma cdula,ainda que pouco desgastada, retornava ao banco ingls, anotava-se o nmero desrie antes de retir-la de circulao. Emitia-se, ento, uma nova cdula parasubstitu-la. Um pas pobre como Portugal no podia se dar ao luxo de prescindirdesse vil metal.

    Fiz e refiz meus clculos [escreveu ele mais tarde] para obter uma estimativa,a mais conservadora, da soma de dinheiro que eu mesmo poderia emitir semque isso interferisse no funcionamento da mquina oficial do banco. A ciframais conveniente foi de 300 milhes de escudos, cerca de 3 milhes de libras[na poca, aproximadamente 15 milhes de dlares]. Que grande avano,que esplndidos empreendimentos eu poderia promover em Portugal e

  • Angola com todo esse dinheiro!

    Como os tribunais portugueses suspendiam suas atividades ao longo do vero,Reis teve disposio julho e agosto inteiros para traar o primeiro rascunho deseu plano. No julgamento de 27 de agosto de 1924, o juiz o absolveu da acusaode desfalque, mas resolveu process-lo por fraude, pela emisso, sem a devidacobertura, de um cheque de 5 mil dlares do National City Bank de Nova York.Em seguida, foi liberado mediante o pagamento de uma fiana de 1o mil dlares,que angariou com a venda de jias, carros e emprstimos com amigos. Almdisso, reuniu outros 5 mil dlares para cobrir o cheque sem fundos e, com osnimos apaziguados, seus credores permitiram que o caso fosse julgado por umtribunal civil, em vez de criminal, onde as possibilidades de vitria eram bemmaiores para Alves.

    Depois de 54 dias, o obscuro, mas potencial, conquistador do Banco dePortugal saiu da priso. Seguiu s pressas para um balnerio nas proximidades doPorto, onde a esposa e os trs filhos - o terceiro nascera em maio - o receberamcom lgrimas e beijos. Naquela mesma noite comprovou-se que de fato osamigos no o haviam abandonado. Em sua homenagem, organizou-se umbanquete num importante restaurante da cidade, prtica que, ento, era bastantecomum na vida comercial portuguesa. Organizavam-se banquetes para celebraruma promoo dentro da empresa ou a concretizao de um grande negcio.

    - Meus amigos - afirmou Reis entre lgrimas -, graas a vocs, nestaoportunidade, reabilitei-me a meus prprios olhos.

    A retratao pblica seria igualmente importante.

    Com habilidade fiz com que a imprensa de Lisboa e do Porto divulgassemnotcias em que se revelava ao pblico o conluio poltico e financeiro que melevara injustamente priso.

    Essa no foi, como poderia parecer, uma jogada de relaes pblicas muitodifcil. Em Portugal, no possvel distinguir com facilidade as notcias dosanncios publicitrios. Muitas colunas esto venda e, ao contrrio da imprensanorte-americana, os anncios pagos atendem a uma infinidade de propsitos.

    Cpias dos "desagravos" dos jornais foram enviadas a Hennies e Marang,pois, bem o sabia Reis, ambos seriam de muita importncia para conseguir suaprpria emisso de papel-moeda.

    Todavia jamais sonhei em ter Hennies, Bandeira ou qualquer outra pessoa

  • como cmplice. S possvel manter um segredo quando no ocompartilhamos com ningum. Assim como no aceitaria ser subordinado aMarang, Hennies ou Bandeira, eu tinha certeza de que eles no aceitariam sermeus subordinados. No, o nico modo de faz-los trabalhar a meu favorseria fingir que agia a mando de uma entidade superior, o prprio Banco dePortugal.

    Para entrar em contato com Marang e Hennies, Reis precisava recorrerquele que lhes apresentara: Jos Bandeira, que estava em Haia. Este, porm,no respondia s cartas e a telefonemas. Para quem j estivera atrs das grades,Jos alimentava uma extravagante superstio: achava que todos os outros ex-detentos traziam azar.

    Em outubro de 1924, a persistncia de Reis foi recompensada. Jos mostrou-se to interessado numa nova proposta de emprstimo de 5 mi lhes de dlarespara Angola - com uma comisso de 2% para quem o intermediasse - quetelefonou para Reis e disse que gostaria de se reunir com ele em Paris.

  • Alves Reis, Lisboa, 1925

    De Paris, Jos e Reis seguiram ao encontro de Hennies em Berlim, ondeestava hospedado no Hotel Bristol.

    Hennies recebeu-me com cortesia e demonstrou grande interesse em meusplanos, mas percebi que no estava muito disposto a emprestar um milho delibras a uma colnia que considerava falida. Jantamos a ss e, aos poucos,

  • direcionei a conversa para os dados que levantara sobre as emissesclandestinas do Banco de Portugal. Mais tarde, na sute do hotel, mostrei-lhe odossi que fizera sobre o banco. Convenci-o de que aquelas notas haviam sidoemitidas em segredo com o intuito de ajudar o governo e o Banco dePortugal. Ao perceber que Hennies mordera a isca, aparentei certo ceticismoem relao ao sucesso daquela operao financeira, visto que eu noconhecia ningum no exterior a quem pudesse confiar uma ordem secretapara a fabricao de papel-moeda. Hennies ponderou que no haveriaqualquer dificuldade em produzir notas do Banco de Portugal, se os contratosdessem os poderes necessrios a qualquer casa impressora. No dia seguinte,apresentou-me a seu advogado alemo, que me esclareceu as exigncias deum tal contrato para que uma empresa alem se encarregasse da tarefa.

    Ao retornar a Lisboa, em meados de novembro de 1924, Alves Reis tinhauma idia bastante clara de como o primeiro contrato fraudulento deveria serescrito. No estava preocupado com sua lgica.

    O documento que Alves Reis preparou em seu escritrio naquela noite denovembro era claramente absurdo e superficial - considerando seus propsitos delongo prazo, totalmente inadequado. Era como se os construtores de um fogueteespacial contassem apenas com um rolo de fita adesiva, dois clipes de papel etrs pregos para alcanar a Lua.

    O contrato estabelecia que um grupo de investidores internacionaisemprestaria um milho de libras [cerca de 5 milhes de dlares] colniaportuguesa de Angola. Em troca, obteriam o direito de emitir um valorequivalente em papel-moeda para a colnia. Havia outros pormenores, mas, nogeral, a empreitada parecia to descabida quanto investir alto na falsificao decdulas de cruzeiros reais em 1995.

    Em novembro de 1924, a economia angolana passava por sua pior crise nos40o anos de histria colonial. A moeda no era conversvel em nenhuma similareuropia, nem mesmo a portuguesa. O comrcio era escasso; as falncias, tocomuns quanto a malria. A maioria dos colonos portugueses teria voltado paracasa de bom grado se encontrasse algum disposto a adquirir seus negcios esuas fazendas. Angola no possua ouro ou qualquer outro recurso natural devalor imediato - grandes reservas de petrleo s seriam descobertas 3o anosdepois - e suas exportaes estavam em declnio.

    Portugal, conhecido em certos crculos como a Quinta do Vaticano, referia-sezombeteiramente a Angola como sua prpria quinta empobrecida. Era evidenteque dificilmente um banqueiro que se dispusesse a analisar a balana comercial

  • da colnia aceitaria lhe emprestar um milho de libras. Por essa quantia, valeriaa pena comprar todo o territrio - que, afinal, estendia-se por quase um milhode quilmetros quadrados -, mas por certo no valia o risco de um emprstimo.

    Alm de um emprstimo para Angola ser to arriscado quanto jogar naroleta, a prpria idia de um governo soberano permitir que um grupoestrangeiro duplicasse para uso prprio a moeda do pas era totalmenteimpensvel. A ltima vez que se pensara em tal absurdo fora em 1914, quandoAlfred Loewenstein, um pragmtico investidor belga, oferecera a seu pas, entoocupado e devastado pela guerra, um emprstimo de 50 milhes de dlares paraassegurar a estabilizao do franco belga. Em troca pedia apenas uma mdicataxa de juros - e o direito de emitir papel-moeda no pas. A reao no seriamais violenta se tivesse proposto transformar o palcio real numa estrebaria.

    A insensatez e a bvia inviabilidade do esquema impediam que Alves Reis seaconselhasse com homens mais experientes. Mas ficamos assim.

    "A ingenuidade chave para todas as aventuras'; sentenciou G.K. Chesterton,no que, para alguns, era um estmulo aos criminosos amadores. "O principianteh de ser o supremo conquistador; a ele caber o melhor da vida."

    Alves Reis recordava que, como na pea O capito de Kipenick, dodramaturgo alemo Carl Zuckmay er, um sapateiro em trajes de oficial prussianoadquiria poderes fantsticos. Da mesma forma, um ridculo documento em papelselado, o papel usado em documentos comerciais oficiais, podia investir-se dedignidade e importncia.

    Na poca, como ainda por muitos anos, o papel selado era o solventeuniversal no qual se dissolvia a aprovao para todos os contratos comerciais etodas as transaes com o governo. S era possvel adquirir o papel com o selo dalei em lojas autorizadas. Ainda se fazia necessrio em todas as transaesoficiais, seja para se inscrever para um emprego, obter certido de nascimento,atestado de bito, escritura de compra e venda ou passaporte. At os anos 1960,os turistas preenchiam esses papis at mesmo na hora de alugar um automvel.Dobrado ao meio, obtinham-se quatro folhas pautadas e, ao preench-lo, no sedeveria saltar sequer uma linha. Caso se errasse a grafia de alguma palavra, paracorrigi-la, dever-se-ia empregar a expresso "digo"; seguida da forma correta. Anica informao impressa no papel com o selo oficial emitido pelo governo eraa expresso "Imposto do Selo 1$5o" [i,5 escudo que, em 1924, correspondia a oitocentavos de dlar], no alto da primeira e da quarta pginas.

    Em geral, na ocasio, os contratos comerciais datilografados em papel selado

  • exigiam estampilhas equivalentes ao valor do contrato. No entanto, como o"governo estava envolvido", Alves Reis determinou que os selos fiscais eramdispensveis. No havia, porm, como contornar o registro em cartrio. Narealidade, Reis recebeu de bom grado esse pormenor, pois a chancela cartorialdaria ao documento a aparncia de autenticidade de que tanto necessitava.

    Pouco antes da meia-noite, fechou o escritrio e desceu at a rua estreitaonde estacionara seu sed Nash. Uma concessionria de automveis da marcaamericana fora um dos empreendimentos malogrados da A.V. Alves Reis Ltda.e, no dia seguinte, precisaria vender o carro para acertar a folha de pagamentoda empresa. Quando passou prximo ao edifcio de cinco andares e quase iioanos do Banco de Portugal, lanou-lhe um beijo, como um conquistador certo deseu triunfo. Dirigiu a esmo a fim de aproveitar aquele ltimo passeio. Na partealta da cidade, passou diante do quartel do Exrcito, pelas proximidades da velhaigreja anglicana e do cemitrio.

    meia-noite, a sentinela do exrcito bradou num ingls quase ininteligvel:"Twelve o'clock and all is well!" Como inmeras ordens da cavalaria portuguesa,esse tradicional grito ainda era proferido em ingls, um resqucio da passagem doduque de Wellington pela cidade. Alves Reis, que se orgulhava de limitadosconhecimentos da lngua inglesa, lanou uma vaga saudao sentinela. Nemtudo estava bem, mas em breve ficaria.

    Passou em frente ao prdio onde ele e sua famlia possuam, at poucosmeses antes, um suntuoso apartamento de 12 cmodos. Devido a sua derrocadafinanceira, precisara vender o apartamento, junto com boa parte da moblia edas jias de sua esposa. Por fim, chegou ao Metrpole, um hotel de segundacategoria onde ocupavam dois quartos. Os trs meninos j estavam dormindo e,na ponta dos ps, ele entrou em seu quarto para beijar Guilherme Joaquim, deseis anos, Manuel Filipe, de cinco, e o beb Jos Lus, cujo nome era umahomenagem a Jos Bandeira, o mais novo scio de seu pai. J no quarto, AlvesReis descalou os sapatos com um suspiro de alvio, despiu-se rapidamente efumou o centsimo cigarro de sua cota diria.

    Na manh seguinte, levou o contrato que redigira a um tabelio amistoso, odr. Avelino de Faria. Em Portugal, todos os negociantes eram obrigados aregistrar os contratos em cartrio e a reconhecer ali as assinaturas. Ao iniciar umnegcio, todo portugus registra firma em cartrio. Da por diante, o tabelioconfirma a assinatura de seu cliente em todos os contratos, comparando-a com aque consta nos arquivos. Os cartrios portugueses constituam uma verdadeirasinecura: toda vez que autenticavam a assinatura de um cliente, embolsavam 75centavos de dlar. Recebiam ainda 1% do valor do contrato, de modo que um

  • negcio de, digamos, too mil dlares representava um lucro de mil dlares para otabelio. Uma parte dessa taxa era repassada para o governo. Em troca,esperava-se que o tabelio lesse o contrato com cuidado para garantir que nocontivesse nada ilcito ou, at mesmo, clusulas criminosas. Os cartrios notinham o direito de cobrar taxa de contratos que envolvam agnciasgovernamentais.

  • O edifcio do Banco de Portugal em Lisboa, 1925

    O tabelio no se encontrava no escritrio, apenas seu assistente, que, sem aomenos ler - afinal, todos sabiam que Alves Reis era um empresrio digno eimportante-, aps o carimbo do cartrio e sua assinatura ao documento. Depoisdo almoo, Alves Reis levou o contrato autenticado ao consulado britnico. Elesabia que todos os consulados estrangeiros possuam cpia das assinaturas oficiaisdos tabelies portugueses. Em poucos minutos, sem que lesse o contrato, ofuncionrio consular verificou a autenticidade da assinatura do tabelio Avelinode Faria no documento. Aplicou ao documento a impressionante chancela doconsulado britnico, recolheu a taxa equivalente a 2,5o dlares e devolveu ocontrato a Alves Reis. Naquele mesmo dia, Reis enviou um funcionrio deconfiana, Ahrens Novaes, aos consulados francs e alemo para que estestambm autenticassem a assinatura de Avelino de Faria. Naquela noite, tinha em

  • mos um documento impressionante, mas ainda incompleto.

    Encarregou, ento, o gerente do escritrio, o ex-tenente do Exrcito FranciscoFerreira Jr., de reescrever o contrato em papel selado, com o texto distribudo emduas colunas datilografadas: uma em portugus, a outra em ingls. Ferreira,lisonjeado com o fato de o patro lhe ter confiado um segredo estatal de tamanhaimportncia, redigiu um documento ainda melhor que o original e, ao mesmotempo, corrigiu o francs capenga da traduo do patro. Ao terminar, Alvesinformou-lhe que providenciaria as assinaturas oficiais necessrias.

    Naquela noite, aps a sada dos funcionrios, Reis providenciou as assinaturas- forjando-as. Acrescentou ainda as de Francisco da Cunha Rego Chaves, o alto-comissrio de Angola; de Daniel Rodriguez, o ministro da Fazenda; e DelfimCosta, o representante tcnico do governo angolano. No precisava se preocuparcom a acuidade de suas falsificaes - afinal, as chancelas dos consuladosatestariam sua autenticidade. Recortou cuidadosamente as autenticaescartoriais das duas pginas do papel selado original e as colou no novo documentocom fita adesiva e lacre. Na cera ainda mole, pressionou cuidadosamente umanel de sinete com o braso portugus. Ento, como toque final, anexou duascdulas novas - uma de mil escudos [na poca, cerca de 5o dlares] e outra deSoo escudos. Supostamente, aquelas eram as notas que, pelo acordo, poderiamser duplicadas pelo grupo financeiro internacional em troca do emprstimo de 5milhes de dlares empobrecida Angola.

    Agora Alves Reis estava pronto para apresentar o impressionante contrato adois dos trs homens que escolhera para ajud-lo em seu plano grandioso. KarelMarang e Jos Bandeira se encontravam hospedados no Avenida Palace Hotel -o melhor de Lisboa - e aguardavam pacientemente a oportunidade de pr osolhos no mgico contrato de que Alves Reis lhes falava havia semanas.

  • No carro, a caminho do Avenida Palace, Reis ensaiou uma vez mais seupequeno discurso a respeito da dificuldade de obteno do contrato junto aogoverno, do pequeno nmero de pessoas que estava a par do segredo e danecessidade de completo sigilo. Uma pena, pensou, que no poderia lhes revelara habilidade com que preparara o documento, pois, a menos que acreditassem nalegitimidade do contrato, no poderia contar com sua cooperao.

    Karel Marang van Ysselveere teria apreciado a astcia de Reis. Mas, claro,no podia saber de nada. Era ele quem financiaria a operao.

    PARIS, 28 DE NOVEMBRO DE 1924

    A semana fora frustrante para Karel Marang.

    Recebeu, em seu escritrio em Haia, o telegrama de Lisboa com a notcia deque o contrato estava prestes a ser assinado. Sem demora, resolveu aproveitar aviagem ao sul para resolver um contratempo em Paris. Algo to delicado epessoal, que nem sequer o mencionara a seu amigo e colega, Jos Bandeira, oirmo caula do ministro portugus para a Holanda. Foi Jos quem apresentouKarel Marang a Alves Reis.

    Como no podia discutir com Jos o problema parisiense, Marang combinouque viajariam separadamente de Haia at Lisboa. Jos, que possua uma intensavida sexual, julgou simplesmente que Marang desejava fazer algumasprolongadas visitas aos luxuosos bordis da capital francesa, como o Sphinx.Marang no o conhecia o suficiente - na verdade, talvez no compartilhasse comningum tamanha intimidade - para confessar que sua irremedivel paixo noeram tetas, mas ttulos.

    Em Paris, Marang tinha encontro marcado com um baro.

    O baro Rudolf August Louis Lehmann, o ministro plenipotencirio daRepblica da Libria junto Terceira Repblica Francesa e Liga das Naes,vivia num apartamento amplo e suntuoso no nmero 8o da avenida do Bois deBoulogne, prximo ponte de Neuilly. Posteriormente denominada avenidaFoch, naquela poca abrigava as mais distintas residncias de Paris. Havia duasmanses dos Rothschild naquela mesma rua.

  • Karel Marang ( esquerda), o financista holands que operava de Haia e, maistarde, de Paris, com seu advogado, Bemmel Suy k

    Enquanto aguardava o baro, Marang contemplou, com rpida e firmeaprovao, o teto imponente incrustado de mrmore, ouro e prata.

    Antes daquela visita, Marang fizera algumas indagaes: o baro era umOficier de l'Inspection Publique pelos "servios prestados educao francesa" -um primeiro passo para os aspirantes Lgion d'Honneur - e pertencia a trsclubes elegantes da cidade. Possua um chteau no campo e era casado comuma distinta americana da sociedade, conhecida por Charlotte Dell quandosolteira.

    A mais importante descoberta de Marang foi que o nome do baro no seencontrava registrado em nenhum dos arquivos nobilirios da Alemanha, daustria ou da Holanda, nem mesmo naqueles da Santa S, em vista de umpossvel ttulo do Vaticano. O baro, nascido em 1870 em Amsterd, de

  • prsperos pais alemes, possua alguns poucos tufos de cabelo na cabeapraticamente calva e um bigode pontiagudo. A testa era alta e enrugada epapadas lhe rodeavam o pescoo. Trajava-se com esmero.

    O visitante holands foi rapidamente dissecado pelo baro, que deparou comum sujeito alto, de boa aparncia e bigodes, em torno dos 40 anos, que falava umfrancs correto, mas no fluente. Os cabelos e os olhos eram castanhos e haviauma pequena marca de nascena arroxeada do lado esquerdo do pescoo.

    Marang, deduziu o baro, j tivera bastante dinheiro - provavelmente emdecorrncia da guerra-, mas no momento devia passar por dificuldades: ossapatos londrinos, feitos a mo, comeavam a dar sinais de desgaste devido falta de cuidado, e ele provavelmente viera a p desde a estao mais prximado metr at a casa. Havia poeira nos sapatos, e a face revelava sinais detranspirao. Mas, afinal, o que desejava aquele sujeito?

    Marang logo esclareceu. Para reforar seu pedido, o visitante trouxera algunsdocumentos que comprovavam, de fato, sua condio de cnsul-geral daRepblica de El Salvador e tambm de cnsul-geral da Prsia em Haia.

    Marang desejava renovar seu passaporte diplomtico liberiano, que, naquelaocasio, encontrava-se vencido havia dez anos. Tinha sido emitido em 1914 peloconde Matzenauer de Matzenau, que atuara como embaixador liberiano junto Rssia imperial. O passaporte declarava que o portador, Karel Marang, erasecretrio e conselheiro da misso diplomtica liberiana em Petrogrado.

    O que um srvio estava fazendo como embaixador liberiano na Rssia? Obaro Lehmann, um holands que atuava agora como embaixador liberiano naFrana, bem o sabia. A empobrecida Repblica da Libria, que em 1923 possuaum oramento anual de 38o mil dlares-provenientes em sua quase totalidade detarifas alfandegrias-,claramente no podia arcar com o dispendioso aparato deuma representao prpria no exterior. Em 1909, uma comisso norte-americana em visita ao pas declarou-o oficialmente falido. Em 1912, umpequeno emprstimo internacional possibilitou a continuidade do governo, cujaslimitaes, no entanto, no admitiam manter representao diplomtica noexterior.

    Havia muito a Libria seguira o exemplo de pases mais ricos e confiara ospostos diplomticos a europeus que, em troca de honrarias e privilgios,aceitavam o encargo de representar o governo liberiano no exterior. A despeitodo carter eminentemente social, tais privilgios atraam devido a seu potenciallucrativo. Ao atuar como ministro plenipotencirio ou cnsulgeral, um europeu

  • podia usar a imunidade diplomtica para contrabandear produtos de grandedemanda, mas sobre os quais recaam taxas pesadas, tais como caf, cigarros e,at mesmo, automveis. Tambm podia negociar vrios postos inexistentes emsua misso diplomtica com outros europeus desejosos de obter honraria e opassaporte diplomtico. Caso fosse ainda mais ambicioso - e estivesse maisdesesperado - poderia at usar o cargo para o exerccio de espionagem discreta aservio de certas potncias.

    Em outubro de 1914, Marang adquiriu seu passaporte diplomtico liberiano doconde Matzenauer por 1,1 mil dlares. J naquele momento o documento novalia nada: Matzenauer tinha sido demitido do corpo diplomtico em 1913. Osabusos que cometera no exerccio de suas atividades foram tantos, que nemmesmo o conivente governo liberiano pde toler-los. E, como a Libria nohavia reconhecido a Unio Sovitica, o passaporte de Marang estava duplamentesem valor.

    Marang recebeu a notcia com certa tranqilidade e no demonstrou muitasurpresa, ainda que lhe desagradasse ser visto como o tolo que comprara umpassaporte diplomtico de um sujeito que no tinha o menor direito de vend-lo.No entanto, em outubro de 1914, quando o comprou do conde Matzenauer, entode passagem pela Holanda, um pas neutro, no teve oportunidade de apurar asituao.

    Os 1,1 mil dlares pagos a Matzenauer davam direito a outros servios:asseguraria a incluso do nome de Marang no Almanaque de Gotha. A maiorparte das pessoas no sabia que esse volume de referncia padro tambmpublicava, em alemo, guias menores sobre a pequena nobreza europia. Paraser arrolado nessas listas, era necessria a aprovao de Hofrat Wendelmarth, oeditor do Almanaque. A solicitao deveria se fazer acompanhar de um histricoda famlia, cartas patentes, uma descrio do braso familiar e uma lista de todosos membros ainda vivos.

    Matzenauer deixou claro que, como fizera em outras ocasies, cuidaria dessesdetalhes "enfadonhos". No castelo de Matzenau, em Proseny akovsei, na Srvia,mantinha uma oficina excelente para esse tipo de trabalho. Mas, afinal, era elede fato um conde? 0 guia de Gotha afirmava que sim.

    Em 1924, o novo ditador italiano, Benito Mussolini, promulgou uma leicuriosa: todos que portassem um ttulo de nobreza que no fosse autenticado peloregistro oficial italiano estariam sujeitos a multa mnima de 5 mil liras ou 30odlares. As autoridades italianas estimavam que apenas dez mil dos 250 milttulos existentes fossem legtimos. As multas subiam com o grau de nobreza: o

  • falso duque deveria desembolsar 70 mil liras, ou 4,2 mil dlares; o conde, 2,4 mil;e baro ou algum que desejasse ser reconhecido como baro, somente 1,8 mil.

    Na Frana a situao no era mais favorvel, embora a Cmara dosDeputados no tivesse o engenho tributrio de Mussolini. Ali, segundo estimativasde uma autoridade, de cada ioo ttulos, apenas cinco eram legtimos - e mesmoesses apresentavam curiosas duplicaes. Havia oito condes de Andigne, oitocondes de Bearn, dez condes de Chabanne e i9 condes de Rochefoucauld - e 50prncipes ou princesas de Broglie.

    Marang chegou concluso de que somente em seu pas, a Holanda, haviauma escassez razovel de ttulos, legtimos ou no. Em 1915, comprou o ttulo doSolar de Ysselveere-les Krimpen, o que lhe permitiu adicionar van Ysselveere aseu nome. O nico empecilho era o fato de que as autoridades holandesas noaceitariam essa mudana. Seu passaporte holands ostentava, assim, o nomeplebeu Karel Marang. Ysselveere era um vilarejo prximo cidade deDordrecht - a cerca de 25 quilmetros de Roterd. Marang nasceu l em 13 dejulho de 1884.0 pai era um coletor de impostos que empregava mtodosprimitivos e violentos.

    Em geral indiferente aos estudos, Marang se dedicou com afinco ao estudodas diferentes formas de fazer dinheiro com pouco capital. Em 1914, tinhaacumulado modesto p-de-meia - bem a tempo de aproveitar sua grandeoportunidade.

    Tornou-se um dos muitos fornecedores de trigo, presunto, chocolate e leospara os alemes, em cuja vitria acreditava. Alm disso, era mais fcil secomunicar com os alemes e receber deles os pagamentos devidos. O comrciocom os Estados Unidos e a Gr-Bretanha passava por enormes dificuldadesdevido ao dos submarinos alemes, enquanto as rotas comerciais com aAlemanha permaneciam praticamente desembaraadas. A nica fonte decarvo, ferro e ao para a Holanda, ento um pas neutro, era a Alemanha.

    certo que os comerciantes holandeses que negociavam com a Alemanhaprecisavam enfrentar o Netherlands Overseas Trust, rgo que abrigavaimportantes comerciantes e banqueiros que se empenhavam em impedir o enviode produtos Alemanha, a no ser que as exportaes fossem autorizadas pelosAliados. Havia, porm, meios de contornar as restries, e as fronteiras eramnotavelmente flexveis. Em geral, algumas centenas de florins eram suficientespara que os agentes alfandegrios fizessem vista grossa.

    O principal contato de Marang era Adolf Gustav Hennies, membro da

  • Comisso de Compra Alem que possua passaporte suo. Hennies afirmava queo pai era suo e a me, brasileira. Entre esses dois homens estabeleceu-se umaperfeita relao comercial: Marang repassava a Hennies, a ttulo de "Comisso",lo% do valor bruto dos produtos exportados para a Alemanha.

    O negcio foi lucrativo at o incio de 1917, quando os holandeses criaram aCompanhia Holandesa de Exportao, que passou a controlar com rigor todas asexportaes e importaes e a limitar os lucros faixa dos 5% - um valorirrisrio em comparao com os 40 ou 50% que boa parte dos exportadoresauferia. Antes de os Estados Unidos entrarem na guerra, Marang recebia navioscarregados de carvo, que, em seguida, rumavam para a Alemanha atravs daNorddeutscher Lloy d Line, para a qual atuava como agente holands.

    Quando os Estados Unidos entraram na guerra, os lucros com as exportaesdespencaram. Havia pouco a exportar. Na Holanda, trigo e carvo j eram alvode severo racionamento. Marang contrabandeava chocolate para a Alemanha econtinuou a obter bons dividendos; no entanto, no incio de 1918, nem isso maisera possvel e, no restante do ano, amargou profundas perdas, a fim de mantersua longa folha de funcionrios.

    De 1920 a 1923, a Marang & Collignon, sua firma de importao eexportao, prosperou com o envio de caf para a Prsia e o Oriente Mdio e devrios leos africanos para a Alemanha.

    Em 1922, Marang comprou a parte do scio e passou a dirigir os negcios desua residncia em Haia. O primeiro andar do edifcio foi transformado emescritrio, enquanto os outros trs abrigavam a famlia - ele, a esposa e os doisfilhos - e os criados.

    No incio de 1924, a firma passava por dificuldades. Os preos do caf tinhamcado e Marang encontrava-se bastante endividado. Antes da viagem de Maranga Paris, em novembro de 1924, seu contador fez uma amarga constatao: aMarang & Collignon devia mais de too mil dlares aos bancos. Com grandeesforo, Marang obteve a renovao dos vrios emprstimos bancrios, aoconcordar com taxas de juros mais elevadas.

    Mas, afinal, por que um negociante beira do desastre econmico estaria tointeressado em obter outro passaporte diplomtico? Para Marang, que dispunhade uma formao medocre e viera de uma humilde famlia de classe mdiabaixa, aquelas honrarias estrangeiras poderiam ajud-lo a virar o jogo. Eleacreditava que, com um novo passaporte em mos, surgiriam novasoportunidades de negcios.

  • Naquela noite, tomou o Sud Express para Lisboa. O baro Lehmann tinhanegado seu pedido completamente. E de forma insolente.

    LISBOA, 30 DE NOVEMBRO DE 1924

    Naquela noite, ao jantar numa sala particular do restaurante Silva no Chiado -luxuoso distrito comercial de Lisboa - Marang reviu o contrato pela quarta vez.Era, de fato, como Reis dissera, um negcio da China - expresso que heranado velho imperialismo portugus no Extremo Oriente.

    Embora resistisse ao entusiasmo contagiante de Reis, Marang novislumbrava grandes obstculos quele negcio, a partir do momento em queencontrassem uma empresa impressora especializada disposta a produzir as notasque lhes seriam autorizadas. Todos sabiam da difcil situao financeira deAngola e, devido parca remunerao dos funcionrios portugueses, de suadisposio para negcios escusos. E tambm sabia-se em toda a Europa que,depois da Primeira Guerra Mundial, a emisso de crescentes quantidades depapel-moeda era a medida mais comum que os governos profundamenteendividados adotavam.

    Alm disso, na opinio de Marang, os demais esperavam que ele financiassetoda a operao. Antes que pudesse render um nico centavo, aquela empreitadapoderia lhe custar io mil ou, at mesmo, 15 mil dlares. Mas os lucros potenciaiseram de tal ordem que at mesmo os contratos que fechara com os alemesdurante a guerra pareciam uma ninharia.

    Naquela noite, conversaram at altas horas sobre quem poderia imprimir asnotas. Parecia-lhes que a Alemanha era o lugar ideal - afinal houve toda aexperincia com impresso de papel-moeda durante a Repblica de Weimar.

    Naturalmente isso exigiria uma consulta a Hennies - seu especialista emquestes alems. Marang assegurou a Reis e Jos Bandeira que Hennies no smantinha relaes com os principais nomes dos crculos financeiros alemes,como dispunha