O Mercado LingüÃsitico (Pierre Bourdieu)

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O MERCADO LINGSTICO1Pierre Bourdieu

Vou tentar expor o que tenho a dizer de uma maneira progressiva, levando em conta a diversidade da audincia, que no poderia ser mais dispersa do que , devido tanto diversidade das disciplinas como diversidade das competncias nas disciplinas, etc., correndo risco de parecer um pouco simplista para alguns e muito rpido e alusivo para outros. Num primeiro momento, apresentarei alguns conceitos e princpios que me parecem fundamentais, esperando que em seguida possamos precisar, discutir, voltar a um ou outro ponto que poderei ter evocado muito rapidamente. Fundamentalmente, queria explicitar um modelo muito simples que poderia ser formulado assim: habitus lingstico + mercado lingstico = expresso lingstica, discurso. Explicarei sucessivamente os termos desta frmula muito geral comeando pela noo de habitus. Advertindo, como fao sempre contra a tendncia a fetichizar os conceitos: preciso levar a srio os conceitos, control-los, e sobretudo faz-los trabalhar na pesquisa sob controle, sob vigilncia. assim que eles vo melhorando pouco a pouco, e no pelo controle lgico puro, que os fossiliza. Um bom conceito que me parece ser o caso de habitus destri muitos falsos problemas (a alternativa do mecanicismo e do finalismo, por exemplo) e faz surgir muitos outros, mais reais. Quando bem construdo e bem controlado, ele tende a se defender por conta prpria das redues. Grosseiramente definido, o habitus lingstico se distingue de uma competncia de tipo chomskiano pelo fato de ser o produto das condies sociais e pelo fato de no ser uma simples produo de discursos, mas uma produo de discursos ajustados uma "situao", ou de preferncia, ajustados a um mercado ou a um campo. A noo de situao foi invocada1

Conferncia feita na Universidade de Genebra, em dezembro de 1978.

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muito cedo (penso por exemplo em Prieto, que nos Principes de noologie insistia sobre o fato de uma quantidade enorme de comportamento lingstico no poder ser compreendida independentemente de uma referncia implcita situao: quando digo eu, preciso saber que sou eu quem digo eu, seno pode ser um outro; podemos pensar tambm nas confuses entre eu e voc que as histrias de humor utilizam, etc.) como uma correo a todas as teorias que acentuavam exclusivamente a competncia, esquecendo as condies do acionamento da competncia. Ela era utilizada, em particular, para colocar em questo os pressupostos implcitos do modelo saussuriano no qual a palavra (como em Chomsky a performance) reduzida a um ato de execuo, no sentido que tem esta palavra no contexto da execuo de uma obra de msica, mas tambm no da execuo de uma ordem. A noo de situao vem lembrar que h uma lgica especfica da execuo; o que se passa a nvel da execuo no simplesmente dedutvel do conhecimento da competncia. A partir da, fui levado a me perguntar se, conservando esta noo, ainda muito abstrata, de situao, no fazamos o que Sartre criticava na teoria das tendncias: reproduzir o concreto cruzando duas abstraes, isto , neste caso, a situao e a competncia. Os sofistas invocavam uma noo que me parece muito importante, a de kairos. Professores da palavra, eles sabiam que no bastava ensinar s pessoas a falar, mas que era preciso lhes ensinar a falar no momento oportuno. Ou seja, a arte de falar, de falar bem, de utilizar figuras de linguagem ou de pensamento, de manipular a linguagem, de domin-la, no significa nada sem a arte de utilizar de forma oportuna esta arte. Originalmente, o kairo era o centro do alvo. Quando voc fala de forma oportuna, voc atinge o centro do alvo. Para atirar no alvo, para que as palavras acertem na mosca, para que as palavras rendam, para que as palavras produzam seus efeitos, preciso dizer no apenas as palavras gramaticalmente corretas, mas as palavras socialmente aceitveis. Em meu artigo sobre a "Langue Franaise", tentei mostrar como a noo de aceitabilidade que os chomskyanos reintroduziram, permanece totalmente insuficiente porque reduz a aceitabilidade gramaticalidade. Na verdade, a aceitabilidade sociologicamente definida no consiste apenas no fato de se falar corretamente uma I ngua: em alguns casos, por exemplo, se 2

for preciso uma certa descontrao, um francs muito impecvel pode ser inaceitvel. Em sua definio completa, a aceitabilidade supe que as palavras estejam conformes no apenas s regras imanentes da lngua, mas tambm s regras intuitivamente dominadas, imanentes a uma "situao", ou melhor, a um mercado lingstico. O que este mercado lingstico? Darei uma primeira definio provisria para em seguida complicar um pouco mais. Existe mercado lingstico sempre que algum produz um discurso para receptores capazes de avali-lo, de apreci-lo e de dar-lhe um preo. Apenas o conhecimento da competncia lingstica no permite prever qual ser o valor de uma performance lingstica num mercado. O preo que os produtos de uma determinada competncia recebero num mercado determinado

dependem das leis de formao dos preos prprios a este mercado. Por exemplo, no mercado escolar, o imperfeito do subjuntivo recebia um grande valor no tempo de meus professores que identificavam sua identidade de professor ao fato de empreg-lo pelo menos na terceira pessoa do singular coisa que, hoje, provocaria risos e no mais possvel ser feita diante de um pblico de estudantes, exceto como um signo metalingstico para marcar que o fazemos mas que poderamos no faz-lo. Da mesma forma, a tendncia hipocorreo controlada dos intelectuais de hoje se explica pelo seu medo de serem certos demais e, como a recusa em usar a gravata, uma dessas formas controladas de no-controle, ligadas a efeitos de mercado. O mercado lingstico algo muito concreto e, ao mesmo tempo, muito abstrato. Concretamente, uma certa situao social, mais ou menos oficial e ritualizada, um certo conjunto de interlocutores, situados abaixo ou acima na hierarquia social, ou seja, uma srie de propriedades percebidas e apreciadas de maneira infra-consciente e que orientam inconscientemente a produo lingstica. Definido em termos abstratos, um certo tipo de leis (variveis) de formao dos preos das produes lingsticas. Lembrar que h leis de formao de preos, lembrar que o valor de uma competncia particular depende do mercado particular onde ela colocada em ao e, mais exatamente, do estado das relaes que constituem o contexto onde se define o valor atribudo ao produto lingstico de diferentes produtores. Isto faz com que se substitua a noo de competncia pela noo de capital lingstico. Falar de capital lingstico, dizer que h lucros lingsticos: 3

qualquer pessoa que nasceu na 7 Circunscrio Administrativa de Paris o caso da maioria das pessoas que governam a Frana atualmente , do momento em que abre a boca, recebe um lucro lingstico que no tem nada de fictcio e de ilusrio, como nos faria crer esta espcie de economicismo imposto por um marxismo primrio. A prpria natureza de sua linguagem (que pode ser analisada foneticamente, etc.) diz que ela est autorizada a falar de forma tal que pouco importa o que diz. O que os lingistas apresentam como a funo eminente da linguagem, a saber, a funo de comunicao, pode deixar completamente de ser cumprida sem que no entanto sua funo real, social, deixe de s-lo. As situaes de relaes de fora lingstica so as situaes em que a linguagem fala sem comunicar, o exemplo limite deste caso sendo a missa. por isto que me interesso pela liturgia. So casos em que o locutor autorizado tem uma tal autoridade e tem a seu favor de tal forma a instituio, as leis do mercado, todo o espao social, que pode falar para no dizer nada, porque, de todos as maneiras, fala-se. O capital lingstico o poder de fazer funcionar em seu proveito as leis de formao dos preos, e de retirar a mais-valia especfica. Todo ato de interao, toda comunicao lingstica, mesmo entre duas pessoas; entre dois companheiros, entre um rapaz e sua namorada, todas as interaes lingsticas so espcies de micro-mercados, sempre dominados por estruturas globais. Como bem mostram as lutas nacionais onde a lngua uma questo importante (por exemplo, em Quebec), existe uma relao muito clara de dependncia entre os mecanismos de dominao poltica e os mecanismos de formao dos preos lingsticos caractersticos de uma situao social determinada. Por exemplo, as lutas entre as pessoas que falam francs e as que falam rabe, observadas em numerosos pases de lngua rabe colonizados pela Frana, tm sempre uma dimenso econmica, no sentido como eu compreendo esta questo, isto , no sentido de que, atravs da defesa de um mercado para seus prprios produtos lingsticos, os detentores de uma determinada competncia defendem seu prprio valor como produtores lingsticos. Diante das lutas nacionalistas, a anlise pende entre o economicismo e ri misticismo. A teoria que proponho permite compreender que as lutas lingsticas podem no ter bases econmicas evidentes ou apenas 4

muito mediatizadas e, no entanto, mobilizar interesses to vitais, s vezes at mais vitais que os interesses, econmicos (no sentido restrito). Portanto, reintroduzir a noo de mercado lembrar este fato to, simples, de que uma competncia s tem valor quando existe um mercado para ela. assim que as pessoas que atualmente querem defender seu valor enquanto detentoras de um capital de latinista so obrigadas a defender a existncia de um mercado do latim, isto , em particular, a reproduo pelo sistema escolar dos consumidores de latim. Um certo tipo de conservadorismo no sistema escolar, s vezes patolgico, s compreensvel a partir desta lei simples uma competncia sem mercado perde seu valor ou, mais exatamente, deixa de ser um capital lingstico para se tornar uma simples competncia no sentido dos lingistas. Assim, um capital s se define como tal, s funciona como tal, s traz lucros, num determinado mercado. Agora, temos que precisar um pouco esta noo de mercado e tentar descrever as relaes objetivas que conferem uma estrutura a este mercado. O que mercado? H produtores individuais (representao marginalista do mercado) que oferecem seu produto; em seguida as pessoas julgam esse produto e da resulta o preo de mercado. Esta teoria liberal do mercado to falsa para o mercado lingstico quanto para o mercado dos bens econmicos. Da mesma forma como no mercado econmico existem monoplios, relaes de fora objetivas, que fazem com que todos os produtores e todos os produtos no sejam iguais desde o comea, no mercado lingstico tambm h relaes de fora. Portanto, o mercado lingstico possui leis de formao de preos que fazem com que nem todos os produtores de produtos lingsticos, de palavras, sejam iguais. As relaes de fora, que dominam este mercado e que fazem com que certos produtores e certos produtos tenham um privilgio desde o comeo, supem uma relativa unificao do mercado lingstico. Vejam o documento extra (do de um jornal bearns, que publiquei no artigo intitulado "l'illusion du communisme linguistique": vocs a encontraro, em algumas frases, a descrio de um sistema de relaes de fora lingsticas. A propsito do prefeito de Pau, que durante uma cerimnia em homenagem a um poeta bearns dirige-se ao pblico em bearns, o jornal escreve: "Esta ateno comove a assistncia". Esta assistncia composta de pessoas cuja primeira 5

lngua o bearns e elas se "comovem" pelo fato de um prefeito bearns lhes falar em bearns. Comovem-se com a ateno que lhes dada, que uma forma de condescendncia. Para que haja condescendncia preciso que haja uma distncia objetiva: a condescendncia a utilizao demaggica de uma relao de fora objetiva, pois quem condescendente serve-se da hierarquia para neg-la; no mesmo momento em que a nega, ele a explora (como a pessoa de quem se diz que "simples"). Eis um caso onde uma relao de interao num pequeno grupo deixa bruscamente transparecer relaes de fora transcendentes. O que se passa entre um prefeito bearns e os bearneses no redutvel ao que se passa na interao entre eles. Se o prefeito bearns pode dispensar uma ateno aos seus concidados bearneses, porque joga com a relao objetiva entre o francs e o bearns. E se o francs no fosse uma lngua dominante, se no houvesse um mercado lingstico unificado, se o francs no fosse uma lngua legtima, a lngua que se deve falar nas situaes legtimas, isto , nas situaes oficiais, no exrcito, no correio, nas coletorias, na escola, nos discursos, etc., o fato de falar o bearns no teria este efeito "emocionante". isto que entendo por relaes de fora lingsticas: so relaes que transcendem situao, que so irredutveis s relaes de interao tais como podemos apreend-las na situao. Isto importante porque, quando se fala de situao, pensa-se que o social foi reintroduzido porque a interao foi reintroduzida. A descrio interacionista das relaes sociais, que em si muito interessante, torna-se perigosa quando esquecemos que estas relaes de interao no so como um imprio num imprio; se esquecemos que o que se passa entre duas pessoas, entre uma patroa e sua empregada ou entre dois colegas ou entre um colega que fala francs e um colega que fala alemo, que estas relaes entre duas pessoas so sempre dominadas pela relao objetiva entre as lnguas correspondentes, isto , entre os grupos que falam estas lnguas. Quando um suo que fala alemo e um suo que fala francs se falam, a Sua francesa e a Sua alem que se falam. Voltemos ento pequena histria do comeo. O prefeito bearns s pode produzir este efeito de condescendncia porque um doutor. Se no fosse, seu bearns seria um bearns de campons, e portanto sem valor, e os camponeses, a quem por sinal este "bearns de qualidade" no dirigido (pois eles quase no 6

freqentam as reunies oficiais) s tem a preocupao de falar francs. Este bearns de qualidade restaurado no momento em que os camponeses tendem, cada vez mais, a abandon-lo para adotar o francs. preciso perguntar quem tem interesse em restaurar o bearns, no momento em que os camponeses se sentem obrigados a falar francs com os filhos para que eles possam se sair bem na escola. O campons bearns que para explicar porque nunca sonhou em ser prefeito de sua aldeia mesmo tendo recebido o maior nmero de votos, diz que "no sabe falar", apresenta uma definio inteiramente realista, inteiramente sociolgica, da competncia legtima: a definio dominante da competncia legtima se impe de tal forma que sua competncia real ilegtima. (Seria preciso partir da para analisar um fenmeno como o do porta-voz, palavra interessante para os que falam da lngua e da palavra). Para que os efeitos do capital e da dominao lingstica se exeram, preciso que o mercado lingstico seja relativamente unificado, isto , que o conjunto dos locutores seja submetido mesma lei de formao dos preos das produes lingsticas; concretamente, isto quer dizer que o ltimo dos camponeses bearneses, quer ele saiba ou no (e de fato ele o sabe muito bem, pois diz que no sabe falar) objetivamente medido em relao a uma norma, a do francs parisiense padro. E mesmo que ele nunca tenha ouvido "o francs parisiense padro" (na verdade ele o ouve cada vez mais, "graas" televiso), mesmo que ele nunca tenha ido Paris, o locutor bearns dominado pelo locutor parisiense e, em todas as suas interaes, no correio, na escola, etc., ele tem uma relao objetiva com ele. isto o que significa unificao do mercado ou relaes de dominao lingstica: no mercado lingstico se exercem formas de dominao que tm uma lgica especfica e, como em todo mercado de bens simblicos, h formas de dominao especficas que no so absolutamente redutveis dominao estritamente econmica, nem em seu modo de exerccio nem nos lucros que elas obtm. Uma das conseqncias desta anlise se refere prpria situao de entrevista que, enquanto interao, um dos lugares onde se atualizam as relaes de fora lingsticas e culturais, a dominao cultural. No se pode sonhar com uma situao de entrevista "pura", livre de todos os efeitos da dominao (como pensam s vezes alguns scio-lingistas). Com o risco de 7

tomar os artefatos por fatos, pode-se apenas introduzir, na anlise dos "dados", a anlise das determinaes sociais da situao em que eles foram produzidos, a anlise do mercado lingstico onde os fatos analisados se constituram. H uns quinze anos, fiz uma pesquisa sobre as preferncias das pessoas, os gostos no sentido amplo, em matria de cozinha, de msica, de pintura, de vestimenta, de parceiro sexual, etc. A maior parte do material tinha sido recolhido em interaes verbais. Ao fim de toda uma srie de anlises, fui levado a me perguntar qual era o peso relativo, na determinao das preferncias, do capital cultural medido a partir do ttulo escolar e da origem social e como os pesos relativos desses dois fatores variavam de acordo com os diferentes domnios da prtica por exemplo, os gostos em matria de cinema pareciam mais ligados origem social e em matria de teatro mais ligados instruo. Eu poderia continuar calculando indefinidamente os coeficientes de correlao, mas a hipercorreo metodolgica teria me impedido questionar a situao em que eu havia recolhido este material. Ser que entre as variveis explicativas, a mais importante no estaria oculta por detrs do prprio material, o efeito das prprias caractersticas da situao de pesquisa? Desde o comeo da pesquisa, eu estava consciente de que o efeito de legitimidade, que tambm desempenha um papel muito importante quanto linguagem, fazia com que os membros das classes populares, ao serem interrogados sobre sua cultura, tendessem, conscientemente ou

inconscientemente, na situao de entrevista, a selecionar o que lhes parecia se adequar mais imagem que eles se faziam da cultura dominante, de maneira que no se podia conseguir que eles simplesmente dissessem do que gostavam de verdade. O mrito de Labov foi ter insistido sobre o fato de que uma das variveis que deve ser utilizada por uma anlise scio-lingstica rigorosa a prpria situao da entrevista: a originalidade de seu estudo sobre o falar do Harlem consiste, em grande parte, no fato de considerar este efeito da relao de entrevista para ver o resultado obtido quando o pesquisador no era um anglfono branco, mas um membro do gueto falando a um outro membro do gueto. Se variamos a situao da entrevista, observamos que quanto mais relaxamos a tenso do controle ou quanto mais nos afastamos dos setores mais controlados da cultura, mais o desempenho 8

est ligado origem social. Ao contrrio, quanto mais se refora o controle, mais ele est ligado ao capital escolar. Ou seja, o problema do peso relativo das duas variveis no pode ser resolvido no absoluto, por referncia a um tipo qualquer de situao, considerada como constante; ele s pode ser resolvido se introduzimos uma 1Iarivel considerada como fator destas duas variveis: a natureza do mercado onde so oferecidos os produtos lingsticos ou culturais. (Parnteses: a epistemologia freqentemente percebida como uma espcie de metadiscurso transcendente prtica cientfica; para mim, uma reflexo que realmente modifica a prtica, que faz com que se evite erros, que no se mea a eficcia de um fator esquecendo o fator dos fatores, ou seja, a situao na qual os fatores so medidos. Saussure dizia: preciso saber o que o lingista faz; a epistemologia, significa trabalhar para saber o que se faz). O que registrado pela pesquisa cultural ou lingstica no uma manifestao direta da competncia, mas um produto complexo da relao entre uma competncia e um mercado, produto que no existe fora desta relao; uma competncia em situao, uma competncia para um mercado particular (muito freqentemente o scio-lingista tende a ignorar os efeitos do mercado devido ao fato de seus dados terem sido recolhidos numa situao constante sob este ponto de vista, isto , a relao com o prprio pesquisador). A nica maneira de controlar a relao faz-la variar fazendo variar as situaes do mercado, em lugar de privilegiar uma nica situao de mercado entre outras (como por exemplo faz Labov com o discurso de um negro do Harlem para outros negros do Harlem) e ver assim a verdade da lngua, a lngua popular autntica, no discurso que produzido nestas condies. Os efeitos de dominao, as relaes de fora objetivas do mercado lingstico, se exercem em todas as situaes lingsticas: na relao com um parisiense, o burgus da provncia que fala provenal "perde seus recursos", seu capital se desmorona. Labov descobriu que o que apreendido pela pesquisa como linguagem popular, a linguagem popular tal como ela aparece numa situao de mercado dominado pelos valores dominantes, isto , uma linguagem desequilibrada. As situaes em que as relaes de dominao lingstica se exercem, isto , as situaes oficiais (formal em 9

ingls), so situaes em que as relaes realmente institudas, as interaes, se encontram perfeitamente de acordo com as leis objetivas do mercado. Voltemos ao campons bearns que diz: no sei falar; ele quer dizer, no sei falar como se deve falar nas situaes oficiais; tornando-me prefeito eu me tornaria um personagem oficial, tendo que fazer discursos oficiais e portanto submetido s leis oficiais do francs oficial. No sendo capaz de falar como fala Giscard, eu no sei falar. Quanto mais uma situao oficial, mais a pessoa que ter acesso palavra deve ser "autorizada". Deve possuir ttulos escolares, ter uma boa pronncia, deve portanto ter nascido no lugar adequado. Quanto mais uma situao se aproxima do oficial, mais a sua lei de formao de preos so as leis gerais. Ao contrrio, quando se diz "a coisa informal", pode-se falar como num botequim: pode-se dizer, vamos criar uma espcie de ilha de liberdade em relao s leis da linguagem que sabemos continuam a funcionar, mas vamos nos dar uma licena (licena, uma palavra tpica dos dicionrios). Pode-se ter, como se diz, uma linguagem direta, pode-se falar francamente, pode-se falar livremente. Este linguajar espontneo o falar popular em situao popular, quando as leis do mercado so colocadas entre parnteses. Mas seria um erro dizer: a verdadeira linguagem popular a linguagem espontnea. Ela no mais verdadeira do que a outra: a verdade da competncia popular est tambm no fato de que, quando ela confrontada com um mercado oficial, torna-se desequilibrada, enquanto que em seu prprio ambiente, numa relao familiar, ntima, com os seus, uma linguagem espontnea. importante saber que a linguagem espontnea existe, mas como uma ilha fora das leis do mercado. Uma ilha que se consegue pela auto-concesso de uma franquia (h sinais avisando que se trata de um jogo excepcional, que podemos nos permitir isto). Os efeitos de mercado sempre se exercem, inclusive sobre as classes populares que sempre so virtualmente passveis da justia das leis do mercado. isto que chamo de legitimidade: falar de legitimidade lingstica, lembrar que ningum considerado como ignorando a lei lingstica. Isto no quer dizer que as pessoas das classes populares reconheam a beleza do estilo de Giscard. Isto significa que se elas se encontram frente Giscard perturbamse: que de fato sua linguagem ser cortada, e se calaro, sero condenadas, ao silncio, um silncio considerado respeitoso. As leis do mercado exercem 10

um efeito muito importante de censura sobre os que s podem falar numa situao de linguajar espontneo (isto , supondo que por um momento se deve abdicar das exigncias comuns) e que so condenados ao silncio nas situaes oficiais em que se travam as lutas polticas, sociais, culturais, importantes. (O mercado matrimonial , por exemplo, um mercado onde o capital lingstico desempenha um papel determinante: acho que uma das mediaes atravs da qual se realiza a homogamia de classe). O efeito de mercado que censura a linguagem espontnea um caso particular de um efeito de censura mais geral que leva eufemizao: cada campo especializado, o campo filosfico, o campo religioso, o campo literrio, etc., possui suas prprias leis e tende a censurar as palavras que no se conformam a estas eis. As relaes com a linguagem me parecem muito prximas das relaes com o corpo. Por exemplo, para encurtar a histria, a relao burguesa com o corpo ou com a I ngua uma relao de quem se sente vontade no seu ambiente tendo as leis do mercado a seu favor. A experincia de se sentir vontade uma experincia quase divina, Sentir-se da maneira certa, ideal, a experincia do absoluto. O mesmo que se pede s religies. O sentimento de ser o que se deve ser um dos lucros mais absolutos dos dominantes. Ao contrrio, a relao pequeno-burguesa com o corpo e com a lngua uma relao que pode ser descrita como de timidez, de tenso, hipercorreo; eles exageram ou se limitam, no ficam vontade. P - Que relao voc estabelece entre o ethos e o habitus, e outros conceitos como de hexis, que voc tambm emprega? - Empreguei a palavra ethos, depois de muitas outras, em oposio tica, para designar um conjunto objetivamente sistemtico de disposies com uma dimenso tica, de princpios prticos (a tica sendo um sistema intencionalmente coerente de princpios explcitos). Esta distino til, principalmente para controlar erros prticos: por exemplo, se esquecemos que podemos ter princpios no estado prtico, sem no entanto ter uma moral sistemtica, uma tica, esquecemos que pelo simples fato de colocarmos questes, de perguntarmos, obrigamos as pessoas a passarem do ethos tica: pelo fato de submeter sua apreciao normas constitudas, 11

verbalizadas, supomos que esta passagem esteja resolvida. Ou, num outro sentido, esquecemos que as pessoas podem se mostrar incapazes de responder a problemas de tica sendo capazes de responder na prtica s situaes que colocam as questes correspondentes. A noo de habitus engloba a noo de ethos, e por isso que emprego cada vez menos esta ltima noo. Os princpios prticos de classificao que so constitutivos do habitus so indissociavelmente lgicos e axiolgicos, tericos e prticos (no momento que dizemos branco ou negro, dizemos bem ou mal). Na medida em que a lgica prtica voltada para a prtica, ela inevitavelmente engaja valores. Foi por isso que abandonei a distino a que tive que recorrer uma ou duas vezes, entre eidos como sistema de esquemas lgicos e ethos como sistema dos esquemas prticos, axiolgicos (e mais ainda porque ao compartimentar o habitus em dimenses, ethos, eidos, hexis, corre-se o risco de reforar a viso realista que leva a pensar em termos de instncias separadas). Alm do mais, todos os princpios de escolhas so incorporados, tornando-se posturas, disposies do corpo: os valores so gestos, maneiras de ficar de p, andar, de falar. A fora do ethos que se trata de uma moral que se tornou hexis, gesto, postura. Foi por isso que pouco a pouco fui comeando a utilizar apenas a noo de habitus. Esta noo de habitus tem uma longa tradio: a escolstica empregou-a para traduzir a hexis de Aristteles. (Ela reencontrada em Durkheim que, em L'volution pedagogique en France, nota que a educao crist teve que resolver os problemas colocados pela necessidade de moldar os hbitos cristos com uma cultura pag; e tambm em Mauss, no famoso texto sobre as tcnicas do corpo. Mas nenhum destes autores lhe d um papel decisivo). Por que ir buscar esta velha palavra? Por que esta noo de habitus permite enunciar algo que se aparenta quilo que evoca a noo de hbito, distinguindo-se desta num ponto essencial. O habitus, como se diz a palavra, aquilo que se adquiriu, mas ,que se encarnou no corpo de forma durvel sob a forma de disposies permanentes. Esta noo lembra ento, de maneira constante, que se refere a algo de histrico, que ligado histria individual, e que se inscreve num modo de pensamento gentico, por oposio a modos de pensamento essencialistas (como a noo de 12

competncia que encontramos no lxico chomskiano). Alis, a escolstica designava tambm com o nome de habitus algo como uma propriedade, um capital. E de fato, o habitus um capital, que, sendo incorporado, se apresenta com as aparncias de algo inato. Mas por que no dizer hbito? O hbito considerado espontaneamente como repetitivo, mecnico,

automtico, antes reprodutivo do que produtivo. Ora, eu queria insistir na idia de que o habitus algo que possui uma enorme potncia geradora. Para resumir, o habitus um produto dos condicionamentos que tende a reproduzir a lgica objetiva dos condicionamentos, mas introduzindo neles uma transformao; uma espcie de mquina transformadora que faz com que ns "reproduzamos" as condies sociais de nossa prpria produo, mas de uma maneira relativamente imprevisvel, de uma maneira tal que no se pode passar simplesmente e mecanicamente do conhecimento das condies de produo ao conhecimento dos produtos. Se bem que esta capacidade de engendramento de prticas de discursos ou de obras no tenha nada de inato, que ela seja historicamente constituda, ela no completamente redutvel as suas condies de produo, sobretudo no sentido de que ela funciona de maneira sistemtica. No se pode falar de habitus lingstico por exemplo, a no ser sob a condio de no esquecer que ele apenas uma dimenso do habitus como sistema de esquemas geradores de prticas e de esquemas de percepo das prticas, e de evitar autonomizar a produo de palavras em relao produo de escolhas estticas, ou de gestos, ou de qualquer prtica possvel. O habitus um princpio de inveno que, produzido pela histria, relativamente arrancado da histria: as disposies so durveis, o que acarreta todos os tipos de efeitos de histrese (de atraso, de defasagem, cujo exemplo por excelncia Don Quixote). Pode-se penslo por analogia a um programa de computador (analogia perigosa, porque mecanicista), mas um programa auto-corrigvel. constitudo por um conjunto sistemtico de princpios simples e parcialmente substituveis, a partir dos quais uma infinidade de solues podem ser inventadas, solues que no se deduzem diretamente de suas condies de produo. Princpio de uma autonomia real em relao s determinaes imediatas da "situao", o habitus no por isto uma espcie de essncia ahistrica, cuja existncia seria o seu desenvolvimento, enfim um destino 13

definido uma vez por todas. Os ajustamentos que so incessantemente impostos pelas necessidades de adaptao s situaes novas e imprevistas, podem determinar transformaes durveis do habitus, mas dentro de certos limites: entre outras razes porque o habitus define a percepo da situao que o determina. A "situao" , de certa maneira, a condio que permite a realizao do habitus. Quando as condies objetivas da realizao no so dadas, o habitus, contrariado, e de forma contnua, pela situao, pode ser o lugar de foras explosivas (ressentimento) que podem esperar (ou melhor espreitar) a ocasio para se exercerem e que se exprimem no momento em que as condies objetivas (posio de poder do pequeno chefe) se apresentam. (O mundo social um imenso reservatrio de violncia acumulada que se revela ao encontrar as condies de sua realizao). Em suma, em reao ao mecanismo instantanesta, somos levados a insistir sobre as capacidades "assimiladoras" do habitus; mas o habitus tambm adaptao, ele realiza sem cessar um ajustamento ao mundo que s excepcionalmente assume a forma de uma converso radical.

P - Qual a diferena que voc faz entre um campo e um aparelho? - Uma diferena que me parece capital. A noo de aparelho reintroduz o pior dos funcionalismos: uma mquina infernal, programada para realizar certos fins. O sistema escolar, o Estado, a Igreja, os partidos, no so aparelhos, mas campos. No entanto, em certas condies eles podem funcionar como aparelhos. So estas condies que preciso examinar. Num campo, os agentes e as instituies esto em luta, com foras diferentes e segundo as regras constitutivas deste espao de jogo, para se apropriar dos lucros especficos que esto em jogo neste jogo. Os que dominam o campo possuem os meios de faz-lo funcionar em seu benefcio; mas devem contar com a resistncia dos dominados. Um campo se torna aparelho quando os dominantes possuem os meios de anular a resistncia e as reaes dos dominados. Isto , quando o baixo clero, os militantes, as classes populares, etc., no podem fazer mais do que sofrer a dominao; quando todos os movimentos so de cima para baixo e os efeitos de dominao so tais que a luta e a dialtica constitutivas do campo cessam; 14

Existe histria enquanto existe pessoas que se revoltam, que fazem histrias. A. "instituio total" ou totalitria, asilo, priso, campo de concentrao, tal como a descreve Goffman, ou o estado totalitrio, tenta instituir o fim da histria. A diferena entre os campos e os aparelhos bem percebida nas revolues. como se bastasse se apoderar do "aparelho do Estado" e mudar o programa da grande mquina, para conseguir uma ordem social radicalmente nova. De fato, a vontade poltica deve contar com a lgica dos campos sociais, universos extremamente complexos onde as intenes polticas podem estar desviadas, reviradas (isto verdadeiro tanto para a ao .dos dominantes quanto para a ao dos subversivos, como testemunha tudo aquilo que se descreve na linguagem inadequada da recuperao, que ainda ingenuamente finalista). Uma ao poltica s pode se sentir segura de produzir os efeitos desejados quando lida com aparelhos, isto , com organizaes onde os dominados so reduzidos execuo perinde ac cadaver (militantes, militares, etc.). Os aparelhos so portanto um estado dos campos que se pode considerar como patolgico.2

Desenvolvimentos complementares sobre este tema podero ser encontrados em P. Bourdieu, "Le ftichisme de Ia langue", Actes de Ia recherche en sclences sociales, 4, julho de 1975; "L'conomie des changes linguistiques", Langue Franaise, 34, maio de 1977, "Le langage autoriz, note sur les conditlons sociales de I'efficacit du discours rituel", Actes de le recherche en sciences sociales, 5-6, novembro de 1975.

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