Upload
hoangdien
View
216
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
O método mútuo e a formação docente no Brasil no século XIX: a
qualificação da escola e a desqualificação do trabalho docente.
Luciano Mendes de Faria Filho1
Walquíria Miranda Rosa2
Marcilaine Soares Inácio3
Este texto propõe-se a analisar a divulgação e implantação do método mútuo em Minas
Gerais, nas décadas iniciais do século XIX, como estratégia fundamental de
institucionalização da educação escolar e momento fundador da discussão da formação
de professores entre nós. Tal perspectiva de análise possibilita-nos pensar a história da
escola como estando relacionada, portanto, tanto com a constituição de mecanismos
internos e de uma materialidade própria à escola, quanto com a produção da própria
noção de educabilidade da infância e, ainda, com o deslocamento operado nas formas
anteriores de educar e instruir as novas gerações. A escola, ao constituir-se como
agência responsável pela educação e instrução das novas gerações o faz não de forma
pacífica e consensual, mas de forma conflituosa, buscando agressivamente resgatar a
infância de outros espaços-tempos de formação, notadamente a família, a religião e o
trabalho.
Há grandes evidências, hoje, de que tais processos ocorreram de maneira bastante
diferenciada nos diversos países do mundo ocidental. Mas, os estudos mostram,
também, que nos três últimos séculos este fenômeno sofreu um impulso jamais visto, e
acabou por legar-nos toda uma tradição e cultura no trato da infância, escolarizada ou
não. No Brasil, não resta dúvida de que, mesmo considerando a existência de
instituições escolares anteriores ao início do século XIX e que a marca da cultura letrada
se faz presente desde o momento inicial de nossa história pós 1500, foi no período pós
independência que o processo de escolarização foi grandemente impulsionado.
1 Professor de História da Educação da FaE-UFMG, Coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas em História da Educação(GEPHE) e bolsista do CNPq.2 Professora de História da Educação da UEMG, Mestre em Educação pela FaE-UFMG e pesquisadora do GEPHE.3 Aluna do Mestrado em Educação da FaE-UFMG.
Esse fato, no entanto, não quer dizer que a influência da instituição escolar não tenha se
feito sentir, ao longo de nossa história, lá onde ela não existia ou por aqueles que não a
freqüentaram. Pelo contrário, a ação escolar fez-se sentir além de seus "muros",
irradiando para o conjunto da sociedade, constituindo-se em referência importante para
a definição de identidades pessoais e coletivas, públicas e privadas, políticas e
profissionais, dentre outras.
Por isso mesmo, é preciso que se diga, de início, que o termo escolarização estará
sendo utilizado neste texto em um duplo sentido, os quais estão intimamente
relacionados. Num primeiro, escolarização pretende designar o estabelecimento de
processos e políticas concernentes à "organização" de uma rede, ou redes, de
instituições, mais ou menos formais, responsáveis seja pelo ensino elementar da leitura,
da escrita, do cálculo e, no mais das vezes, da moral e da religião, seja pelo atendimento
em níveis posteriores e mais aprofundados.
Em outra acepção, estamos entendendo por escolarização o processo e a paulatina
produção de referências sociais tendo a escola, ou a forma escolar de socialização e
transmissão de conhecimentos, como eixo articulador de seus sentidos e significados.
Neste caso, nossa atenção está voltada para o que temos chamado de "conseqüências"
sociais, culturais e políticas da escolarização, abrangendo questões relacionadas ao
letramento, ao reconhecimento ou não de competências culturais e políticas dos
diversos sujeitos sociais e à emergência da profissão docente.
O fenômeno da escolarização entendido no seu sentido mais amplo, somente pode ser
plenamente dimensionado e razoavelmente entendido se levarmos em conta um tempo
relativamente longo como, por exemplo, os últimos dois séculos na sociedade brasileira.
É nesse tempo mais longo que podemos perceber com mais precisão, com mais clareza,
os múltiplos significados e os diversos fatores intervenientes da radical mudança em
nossa sociedade no que diz respeito à escola: de uma sociedade sem escolas no início do
século XIX, chegamos ao início do século XXI com a quase totalidade de nossas
crianças na escola. Nunca é demais lembrar, por exemplo, que os professores públicos
em Minas Gerais eram pouco mais de uma centena no início dos oitocentos, em torno de
2.000 no início do século seguinte e mais de 200.000 no final do mesmo século. O
2
mesmo poder-se-ia dizer do alunado. Como não considerar uma mudança de tal
magnitude?
Assim, parafraseando E. P. Thompson (1984.p.271), podemos dizer que na transição de
uma sociedade não escolarizada para uma escolarizada, a tensão desta recai sobre a
totalidade do social, não deixando intocada nenhuma de suas diversas dimensões. Tal
tensão pode ser percebida não apenas naquilo que toca diretamente à escola e ao seu em
torno, mas naquilo que de mais profundo há na cultura e nos processos sociais como um
todo: das formas de comunicação, às formas de constituição dos sujeitos, passando pelas
inevitáveis dimensões materiais garantidoras da vida humana e de sua reprodução, tudo
isso modifica-se, mesmo que lentamente, sob o impacto da escolarização.
O reconhecimento do fato de que a escola produz a sociedade, de que a escolarização
tem um impacto direto ou indireto no conjunto da vida social, ou, tal como o faz A.
Chervel (1990), que a cultura escolar é uma autêntica e original cultura produzida pela
escola, nada disso pode nos levar, no entanto, ao entendimento de que a escola o faz
independentemente da sociedade na qual está inserida. A escola é tanto produtora
quanto produto da sociedade como um todo. O que importa estudar, em última
instância, é como este fenômeno se dá em suas múltiplas facetas em tempos e espaços
determinados.
I. Método mútuo: um discurso fundador na educação?
Dizíamos, anteriormente, da importância do período imediatamente posterior à
independência para a história do processo de escolarização no Brasil. Isto se deve, a
nosso ver, a dois motivos fundamentais: o primeiro, porque é neste momento que se
produz um discurso fundador acerca da escolarização no Brasil, cujas características
retrataremos mais à frente; em segundo lugar, porque, na produção deste discurso,
sobressai-se um sujeito de grande importância em nossa história educativo-cultural, o
bacharel. Comecemos por este segundo aspecto.
Em trabalho anterior, Faria Filho (1998) defende a necessidade de uma mudança em
nossa forma de conceber a legislação como objeto e como fonte para a pesquisa
3
histórico-educacional. Fruto de nossa cultura política e jurídica e de um forte viés
ideológico na compreensão dos fenômenos histórico-sociais, tal visão não nos
possibilita, penso eu, compreender a importância da legislação e da ação legislativa na
configuração do campo pedagógico no Brasil.
A necessidade de uma revisão das formas de compreensão da legislação e do aparato
jurídico foi, também, abraçada por Sérgio Adorno, quando este afirma que, num período
muito recente de nossa história,
“Questões a propósito dos fundamentos sociais que presidem a jurisprudência
normativa, ou a respeito das forças de transformação e conservação que atuam
sobre o Direito não pareciam seduzir a mentalidade de nossos principais
cientistas sociais. Salvo raras exceções muitos aceitavam, sem grandes reservas,
que a função do aparelho judiciário era fundamentalmente repressora, que os
profissionais da lei, enquanto categoria social, mantinham irrefutáveis
compromissos com as estruturas de apropriação econômica e de dominação
política, e finalmente, se aceitavam que a ordem jurídica estava formalmente
organizada sob inspirações de princípios liberais, seus fins concretos estavam
voltados para a ‘legalização’ dos interesses das classes dominantes.”
(Adorno,1988.p.20)
Voltar o olhar para o século XIX e, nele descobrir a singular importância da legislação
como estratégia de conformação da realidade social, implica, a meu ver, deter-se na
figura do bacharel. Sejam formados em Coimbra ou no Brasil4, tais sujeitos acabaram
por ocupar a cena política brasileira ao longo de nossa história, sobretudo no período
pós independência. Conforme nos alerta Sérgio Adorno,
“De fato, o liberalismo brasileiro foi, durante longo tempo, quase privilégio de
uma categoria de homens: o bacharel, que se converteu em político profissional
e procurou ascender ao poder por intermédio do partido. Bacharel que fez da
política vocação, lutou pelo êxito das causas e que se apaixonou e transformou a
política em atividade ética, em verdadeira cruzada civilizatória. No entanto,
4 José Murilo de Carvalho(1996) chama a atenção para a diferença existente para a formação oferecida em Coimbra e aquela das Faculdades de Direito brasileira oitocentistas. Considero, no entanto, que para o que estamos argumentando aqui estas diferenças não são relevantes.
4
contraditoriamente ao que ocorreu no mundo europeu ocidental, na sociedade
brasileira a profissionalização da política não foi acompanhada da
democratização da sociedade. No meu entender, a natureza quase
exclusivamente juridicista do liberalismo brasileiro e as características da vida
acadêmica, no século passado, respondem pela formação desses intelectuais,
pelo processo particular de profissionalização da política e pelo dilema
democrático dessa sociedade.”(Adorno,1988.p.75)
Assim colocado, o bacharel será o responsável por toda uma forma de compreender e
produzir, no Brasil, o ideário liberal e iluminista e as possibilidades de constituição da
Nação brasileira. Para analisar a realidade plasmada neste momento inicial, lanço mão
de uma noção de grande alcance, sobretudo para os estudos sobre o processo de
escolarização da infância brasileira. Trata-se da idéia de discurso fundador. Segundo
Eni P. Orlandi, o que caracteriza um discurso como fundador,
“ é que ele cria uma nova tradição, ele re-significa o que veio antes e institui aí
uma memória outra. É um momento de significação importante, diferenciado.
O sentido anterior é desautorizado. Instala-se outra ‘tradição’ de sentidos que
produz os outros sentidos nesse lugar. Instala-se uma nova ‘filiação’. Esse dizer
irrompe no processo significativo de tal modo que pelo seu próprio surgir produz
sua ‘memória’.(Orlandi,1993.p.13)
Ainda segundo Orlandi(1993.p.12-4) os discursos fundadores
“são enunciados que ecoam (...) e reverberam efeitos de nossa história em nosso
dia-a-dia, em nossa reconstrução cotidiana de nossos laços sociais, em nossa
identidade histórica. (...)
Essa é também uma das características do discurso fundador: a sua relação
particular com a ‘filiação’. Cria tradição de sentidos projetando-se para frente e
para trás, trazendo o novo para o efeito do permanente. Instala-se
irrevogavelmente. É talvez esse efeito que o identifica como fundador: a eficácia
em produzir o efeito do novo que se arraiga no entanto na memória permanente
5
(sem limite). Produz desse modo o efeito do familiar, do evidente, do que só
pode ser assim”(Orlandi,1993.p.13-4)
Portanto, tais noções ajudam-nos a mostrar que no momento imediatamente posterior à
proclamação da independência do Brasil, articulam-se discursos sobre a escolarização
da população brasileira, e da infância em particular, que terão grande importância ao
longo de nossa história educacional e, mais ainda, que um dos produtores/portadores de
tais discursos são os bacharéis, convertidos em políticos, formadores/fundadores do
Brasil e educadores do povo. Tais discursos ao conceberem que o problema da
escolarização das camadas inferiores da sociedade era um problema que deveria ser
atacado, em primeiro lugar, pelo artifício formal da produção de leis, acabam por
atualizar, no Brasil, toda uma tradição ibérica no diz respeito do ato legislativo. No
entanto, nossos sujeitos pretendem fazê-lo fundando uma nova tradição, no momento
mesmo em que pretendem fundar o Brasil e propor o caminho único para a ordem, o
progresso e a civilização: a educação do povo.
II. Método mútuo e formação de professores em Minas Gerais
A imprensa foi, sem dúvida, uma das principais estratégias utilizadas pelos intelectuais
para difundir os seus discursos civilizatórios e legalistas. Em Minas, até então a
província de maior população do Império, o jornal O Universal(1825-1842)5 foi,
naquele momento, o principal divulgador de tal ideário. No entanto, em suas páginas,
qual era o diagnóstico feito a respeito da educação brasileira? Diziam, numa clara
disposição de romper discursivamente com o passado que “o sistema de educação
elementar, que se tem seguido no Brasil, desde o seu descobrimento, tem sido mui
dispendioso, e mui delimitado; ainda sem notar outros defeitos, que de tempos a tempos
se tem conhecido, e se tem tentado remediar com algumas providencias oportunas.”( 18
de Julho de 1825)
Animados que estavam com a recém conquistada independência diziam que “se a
cultura do espírito aumenta a felicidade dos homens, não pode deixar de ser grande
5 Este foi, sem dúvida, o principal jornal mineiro da primeira metade do século XIX. Além disso, para o que nos interessa aqui, são muitos os relatos e evidências que ligam o periódico a Bernardo P. de Vasconcelos. Seu primeiro número foi editado em uma segunda feira no dia 18 de julho de 1825 e o último no dia 10 de junho de1842.
6
serviço a humanidade inventar meios, pelos quais essa cultura se generalize”. Para
tanto, propõe-se um projeto de instrução que: 1º abrevie o tempo necessário para a
educação das crianças; 2º diminua as despesas das escolas; 3º generalize a instrução
necessária ás classes inferiores da sociedade. ( 27 de Julho de 1825) Tal escola seria
organizada de acordo com o método mútuo de ensino, cujos defensores diziam tornar
possível a instrução de um número de até 1.000 alunos para cada professor. Tal
possibilidade animava aqueles que, no Brasil e na América Latina, defendiam a
incorporação de um número maior de sujeitos à instituição escolar.6
A respeito da questão metodológica, é preciso considerar a hipótese de que seria em
torno das discussões a respeito do método que se articulou a passagem de uma instrução
desenvolvida em torno da casa e da vida doméstica para uma instrução elementar
escolarizada. Tal hipótese mostra-se particularmente rica para explicar o porquê do fato
de que, não por acaso, a institucionalização da escola elementar e do processo de
escolarização no Brasil são sobremaneira reforçados no mesmo momento e no interior
da mesma discussão que estabelece, de uma vez por todas, o primado do método
também na organização escolar. Não me parece restar dúvida de que se produz, entre os
anos 20 e 40 do século XIX, uma clareza muito grande de que o método individual é
próprio ao ensino doméstico e que, se se queria instruir um número maior de pessoas
por meio da escola, era preciso inventar uma nova maneira, a qual foi representada
como sendo ora o método mútuo, ora o método simultâneo, ora o método misto.
Tais elementos, articulados discursivamente desde muito cedo em nossa história
educacional, representam um fundamental legado dos debates travados nos anos 20 e
30 do século XIX, momento em que, não por acaso, a educação escolar da infância
passa a ser objeto de crescente atenção por parte da sociedade como um todo, e dos
legisladores em particular, inaugurando um tempo de submetimento e constituição de
novos sujeitos, dentre eles o nosso conhecido aluno. É preciso também considerar que o
nosso próprio entendimento do que seja a profissão docente e, mesmo, da noção de
criança e de aluno deve muito às discussões do período enfocado.
6 Para maiores informações sobre a divulgação do método mútuo em alguns países como Brasil, Argentina, Portugal e França, ver Bastos e Faria Filho, 1999.
7
É a partir da década de 20 do século XIX, que a importância da formação dos
professores é discutida de forma mais intensa em Minas Gerais. Essa discussão esteve
atrelada a uma organização que se propunha para o ensino público naquele período. A
necessidade acerca da escolarização da população, principalmente, daquelas que eram
consideradas pelos dirigentes como a “camadas inferiores da sociedade” foi
intensamente discutida nas Províncias de todo o Império na primeira metade do século
XIX. O mesmo acontecia em Minas Gerais. Observa-se nas discussões sobre a
importância de se organizar um sistema público de ensino e de escolarizar a população,
a produção de um discurso, no qual a falta de uma formação específica dos mestres de
primeiras letras, passa a ser colocada como a principal causa para o baixo sucesso da
instrução primária na Província de Minas Gerais.
Os professores que ensinavam até então foram considerados incapazes e desinteressados
pelos dirigentes mineiros. Os saberes e as práticas escolares utilizados por eles foram
desqualificados. Era preciso garantir um outro conjunto de saberes, o qual os mesmos
deveriam dominar.
Várias foram as estratégias utilizadas pelos governantes mineiros e pela elite local, no
sentido de construir uma nova representação acerca dos professores primários. Entre
elas, podemos citar a produção e circulação do discurso jornalístico, do qual tomamos
como exemplo o já citado jornal O Universal iniciada em 1825. Desde o seu primeiro
número com a publicação de uma matéria intitulada Educação Elementar, na qual traz à
cena a defesa do método mútuo, o jornal defende a necessidade de escolarização para
toda a população.
O texto Educação elementar está organizado em cinco partes, a saber: Introdução,
Origem de novo sistema em Inglaterra, Princípios em que se funda esse sistema,
Emprego das diferentes classes de meninos na escola. Esse último tópico inclui um
subitem denominado Disciplinas das escolas. Prêmio. A terceira parte da matéria
Princípios em que se funda esse sistema começa a ser publicada no dia 27 de julho de
1825. O autor desenvolve o texto dando especial atenção às dimensões espaço-
temporais do método. Ele propõe-se a demonstrar os elementos centrais a partir dos
quais a proposta se organiza, apresentando as idéias relativas à sala de aula, aos
8
materiais necessários, à divisão das classes, ao papel dos decuriões, ao tempo, dentre
outros aspectos.
A matéria inicia atribuindo críticas ao sistema de instrução seguido até então no Brasil,
no qual era adotado o método individual, afirmando ser o mesmo dispendioso e
limitado. Defende, em contraposição, a necessidade de uma educação para todo o povo,
com o propósito de generalizar uma educação de qualidade, sem grandes despesas para
o governo e cuidando também para que fosse rápida e para que o trabalhador não fosse
privado do tempo que deveria ser empregado no trabalho.7
Nesta série de artigos, fica evidente quais eram as grandes questões a serem resolvidas
para a melhoria da instrução pública na visão dos dirigentes - o melhor aproveitamento
do tempo e a redução dos gastos. A maior complexificação da organização da instrução
proposta pelo método mútuo trás também uma discussão sobre a necessidade de
oferecer uma formação adequada aos professores primários.
Dois anos depois, veio a público aquela que seria a principal estratégia de divulgação e
expansão do método de ensino mútuo no país: a lei de 15 de outubro de 1827. Nela
foram definidos vários aspectos da instrução pública relacionados às escolas e aos
professores, às matérias ensinadas, aos métodos e outros. Essa lei determinava a criação
de escolas de primeiras letras em todas as cidades, vilas e lugares mais populosos.
Estabeleceram, ainda, quais os conteúdos a serem ensinados e que estes deveriam ser
ensinados pelo método mútuo.
Os defensores do método mútuo defendiam-no como uma poderosa arma na luta para
fazer com que a escola atingisse um número maior de pessoas. A crença no método fez
7Essa preocupação ficava evidente, quando em 1826 encontramos no dia 10 de Fevereiro, uma carta publicada intulada “Carta de Americus”, na qual o autor afirma que o “fim principal da educação he fazer de hum individuo o instrumento da sua propria felicidade (...).” Nessa carta, o autor defende a educação como um todo, devendo a mesma conter a educação física, moral e intelectual. Afirma que a educação moral tem que ser de responsabilidade da família e a terceira da escola. A referida carta é publicada em duas partes, sendo a segunda publicada no dia 20 de fevereiro do mesmo ano. Na continuação da carta, ao falar da importância do trabalho, defende que o homem deve trabalhar, mas quem trabalha, segundo Americus, não consegue estudar, daí a necessidade que o conhecimento seja dado proporcionalmente a condição social dos indivíduos. Americus defende também que a Educação deve vir na infância/ adolescência. Tempo em que, segundo ele, fisicamente o homem não está apto para o trabalho e da educação colherá frutos depois. Aqui se percebe a preocupação do autor com o fato de que se possa conciliar a instrução escolar com o tempo dedicado ao trabalho. Era preciso que o tempo escolar que queria se instituir levasse em conta os outros tempos sociais, principalmente o tempo reservado ao trabalho. Essa passa a ser uma das principais questões a serem resolvidas pelos dirigentes mineiros na ampliação do sistema de ensino.
9
com que em Minas Gerais algumas escolas fossem organizadas segundo tais
ordenamentos pedagógicos. No ano de 1829, o conselho da Província mandou publicar,
um livro com não mais de 14 páginas com o seguinte título: Castigos Lancasterianos -
Em consequência da Resolução do Exmo. Conselho de governo da Província de Minas
Gerais, mandando executar pelos Mestres de 1as letras e de gramática Latina. Neste
livro consta uma lista de castigos lancasterianos para serem aplicados nas escolas de
primeiras letras da Província. O que denota a importância que foi atribuída a tal método.
Ao longo dos anos as discussões sobre o melhor método de ensino continuarão a ocupar
a atenção daqueles que organizavam a instrução pública, juntamente com a discussão
acerca da necessidade de formar um professor que melhor pudesse praticá-lo.
Paralelamente ao discurso jornalístico, são produzidas outras estratégias para
consolidação do objetivo de organizar a instrução e de normatizar esse ramo da
administração pública, como é o caso da produção de uma legislação específica para a
área.
É partir da lei de criação das escolas de primeiras letras no ano de 1827 e, no caso de
Minas Gerais, em 1835, a partir da Lei n. 13, a primeira Lei Provincial sobre a
instrução, que se intensifica a preocupação com a formação dos professores e torna-se
esta também uma questão central. É nesse momento que os vários discursos produzirão
um sentido para a questão da formação dos professores, através das representações que
se constrói sobre quem deveria ser professor e os conhecimentos que o mesmo deveriam
adquirir.
A produção de uma legislação própria permitiu dar origem a um novo sentido para a
instrução, na medida em que buscava normatizar e regular a instituição escolar, bem
como conferir identidade aos profissionais que nelas deveriam atuar. A legislação pode
ser considerada como uma das estratégias que os dirigentes mineiros utilizaram para
produzir a necessidade da formação do professor e para controlar quem poderia exercer
a função.
Essa preocupação com a formação dos professores se traduz com clareza através da
criação de uma Escola Normal (artigo 7º da Lei n.13). Esta instituição teve uma grande
importância para a instrução elementar no século XIX, sendo considerada como o local
10
de transmissão de um saber pedagógico que é construído a partir da confluência de
diversos discursos, como o jornalístico, o legal, os discursos encontrados em relatórios
de Presidentes de Província e aqueles encontrados em documentos escritos por
professores. Foi o espaço legitimado de produção e circulação de um saber pedagógico
que tentava racionalizar e legitimar as práticas educativas escolares, tendo como papel
principal formar os professores, através da transmissão de métodos de ensino. Esse
espaço produziu aquilo que estamos chamando de um modelo de professor, e, ao
mesmo tempo, a desqualificação dos mestres de primeiras letras que atuavam até então.
No decorrer dos anos 30, a idéia de que a instrução escolar atenderia de forma efetiva o
objetivo de moralizar e educar o povo é afirmada como central. As discussões sobre
qual o melhor método de ensino a ser adotado continua a ganhar a atenção dos
dirigentes mineiros. Percebe-se que a partir dos anos 30 dos oitocentos, há toda uma
preocupação por parte dos governantes da Província de Minas Gerais no sentido de
organizar a instrução pública. Os argumentos desses governantes foram o de que os
professores, que até então eram responsáveis pela instrução da população, passaram a
ser considerados incapazes para atuar no magistério público primário.
As décadas de 30 e 40 do século XIX foram se mostrando momentos importantes para a
constituição desses processos, pois percebemos, através das diversas fontes pesquisadas,
um discurso articulado a respeito da necessidade de formação dos professores e da
criação de uma instituição onde esses pudessem ser devidamente preparados para o
exercício do magistério. Parece-nos que foi nesse momento que se produziram discursos
fundadores sobre a necessidade de formação dos professores, tomando-se a Escola
Normal como o elemento aglutinador desses discursos. Veremos que a Escola Normal
de Ouro Preto foi a principal estratégia e espaço de produção e de estabilização do
discurso sobre a necessidade de formação dos professores.
O modelo de professor forjado pelos governantes da Província mineira deveria
freqüentar a Escola Normal, dominar os conhecimentos exigidos na Lei e os métodos de
ensino, além de ter uma moral exemplar, de encarar a profissão como um sacerdócio e
de ter uma sólida formação religiosa.
11
A Instrução Pública teve também um papel importante no processo de consolidação do
Estado, aparecendo como uma das estratégias fundamentais defendidas pelos
governantes do País para a produção de um povo ordeiro e civilizado e, sobretudo, para
a construção da nação brasileira.
Considerando-se que antes das décadas de 30 e 40 do século XIX, a preocupação com a
instrução pública e com a formação dos professores era muito dispersa, dando-se ênfase
a questões políticas, acreditamos que é nesse momento que se intensifica a preocupação
com a educação. A necessidade de formação dos professores impõe-se, ao mesmo
tempo, que se produz estratégias para a construção do modelo de professor, calcado no
sacerdócio e na abnegação. A partir de então intensifica - se a necessidade de uma
instituição que seja capaz de formar esse professor, tornando-o capaz e habilitado. A
experiência que o mestre tinha em ensinar não mais é considerada como suficiente para
o exercício do magistério. Nesse processo foi se produzindo a necessidade de uma outra
formação e da necessidade da Escola Normal. Na medida em que a Escola Normal é
criada, ela vai se produzindo como fundamental.
A Escola Normal de Ouro Preto funciona neste movimento como o elemento
aglutinador, produtor de um discurso sobre modelo de professor que se queria formar, e
terá como função unificar o discurso acerca da formação. Será através da Escola Normal
que esse discurso se estabilizará, criando condições de possibilidade para sua
reprodução ao longo do tempo. Nesse processo, a Escola Normal não será apenas uma
agência de formação dos futuros professores, mas uma entidade portadora de um
sentido para a profissão docente e para a própria formação.
O discurso da necessidade de civilizar a nação através da instrução e o entendimento de
que o fracasso da mesma, naquele momento, estava vinculado à falta de professores
com uma formação adequada, vai ser encontrado ainda nos relatórios de Presidentes de
Província no final da segunda metade do século XIX. Isso reforça a nossa hipótese, pois
esse discurso que se inicia mais ou menos no final da década de 20 e ganha força na
década de 30 e 40, vai continuar criando um novo sentido para a instrução e para a
formação dos professores. Interessa saber por que esse discurso é tão eficaz que se
impregna nas representações sobre a formação? Com quais forças ele atua que permite a
sua longevidade?
12
Os exames de Instrução Pública realizados pelos professores, após freqüentarem a
Escola Normal de Ouro Preto, foram analisados nessa pesquisa a fim de contribuírem
para o entendimento de como ocorreu o processo de produção da profissão docente em
Minas Gerais.
Até os meados da década de 30 do século XIX, os exames para o provimento das
cadeiras de primeiras letras, na província mineira, eram realizados de forma pouco
sistemática. Neste período o processo de contratação de professores era feito através da
avaliação oral e escrita dos candidatos, na qual assumia centralidade a análise de seus
conhecimentos sobre o sistema de ensino mútuo.
Em meados da década de 30, através do estabelecimento da Lei n.13 de 1835 e a criação
da Escola Normal, regulamentam-se os exames para seleção de professores. O artigo 17
da referida lei passa a exigir que os “conhecimentos exigidos nesta lei se provarão por
exames públicos, feitos com approvação perante o governo ou delegados de ensino, a
quem elle cometter”.
Os critérios de seleção foram aos poucos se especificando. Se em 1835 a Lei n 13 não
determinava um método a ser seguido na Escola Normal e não se exigia o domínio de
um método do professor, já em 1846, a Lei n.311 de 8 de abril adota o método
simultâneo para a instrução elementar. Através do seu artigo n. 11, estabelece, ainda,
que os professores que já atuavam no magistério e aqueles que desejavam concorrer a
uma vaga de professor, para ser admitidos ao exame de que trata o artigo, deveriam
freqüentar a Escola Normal por um período de dois meses. O exame constava de uma
dissertação sobre aqueles métodos de ensino que eram seguidos na província mineira até
aquele momento, e sobre aquele que era ensinado na Escola Normal, além da produção
de um texto em língua portuguesa e a resolução de um problema de aritmética.
Outra questão que ganha destaque nesse momento é a preocupação com a organização
do espaço escolar. Ao se constituir e construir a especificidade da forma escolar, com
seus tempos, sujeitos e modos de organização, transmissão de conhecimentos, na
produção de um modo de socialização específico da escola. A organização é pensada de
forma detalhada, sendo considerada primordial para que a eficácia do método adotado
fosse garantida.
13
O domínio do espaço escolar pelo professor, através da organização eficaz deste, vêm
somar-se ao domínio dos métodos de ensino, proporcionando um melhor
aproveitamento do tempo escolar discutido anteriormente, devendo estes formar um
conjunto das novas habilidades do professor que atuaria no sistema de ensino de
primeiras letras.
Como podemos perceber através das reflexões feitas até aqui, a instituição escolar não
surge no vazio de outras instituições, como muitos textos querem nos fazer crer. Os
defensores da escola e de sua importância no processo de civilização do povo tiveram
que, lentamente deslocar tradicionais instituições de educação e instrução, apropriando-
se, remodelando ou recusando a tempos, a espaços, a conhecimentos, a sensibilidades e
a valores próprios às mesmas. Mas não apenas isso, a escola teve também de inventar,
de produzir, o seu lugar próprio, e o fez, também em íntimo diálogo com outras esferas
e instituições sociais.
Era clara necessidade de estender as possibilidades de acesso da população à escola. A
preocupação se dava, sobretudo, em relação aos rudimentos do ler e escrever,
estendendo-se, porém, aos homens livres. Ao estudar a instrução escolar em Minas
Gerais no século XIX, podemos afirmar que a maior preocupação daqueles que estavam
no poder era quanto a melhor forma de utilização do tempo. Esta questão, estando no
cerne da modernidade e não poderia deixar de ser um aspecto central no interior dos
processos de escolarização.
Uma melhor e mais eficiente organização e utilização dos tempos escolares foram a
grande preocupação daqueles que estavam envolvidos na discussão sobre o processo de
escolarização no século XIX e que defendiam a centralidade da escola na vida nacional,
na formação de um povo ordeiro e civilizado. As determinações sobre os conteúdos
escolares estavam intimamente relacionados à organização e à utilização dos tempos
escolares e, em decorrência, relacionados aos métodos pedagógicos, e ainda, mais
especificamente, à organização das turmas e das classes.
Utilizando a noção de discurso fundador, podemos dizer que as discussões sobre os
métodos de ensino e conseqüentemente sobre o melhor aproveitamento do tempo, dos
14
espaços escolares e da organização do sistema público de ensino, iniciam um discurso
fundador sobre a necessidade de formação dos professores.
A formação dos professores não mais será pensada a partir da década de 20 do século
XIX, até as primeiras décadas do século XX, sem que se discuta a questão dos métodos
de ensino. A legitimidade da formação do professor será conferida através do domínio
que este possuía em relação ao tempos e espaços escolares. As discussões sobre os
métodos de ensino, que enfocavam a questão da organização da classe, do espaço e o
papel do professor como agente e organizador da instrução, vai ao mesmo tempo
produzir a necessidade da formação do professor para o sistema de ensino que se
pretendia organizar.
A primeira metade do século XIX, em Minas Gerais, foi um momento de intensos
debates sobre a organização da instrução pública e da formação dos professores. O
período foi marcado pela produção de discursos, nos quais a necessidade de organização
da instrução pública e da formação de professores era insistentemente pregada. Através
de discursos como o jornalístico, o legislativo, aqueles produzidos por presidentes de
Província, por professores e por tradução de manuais didáticos, foram construídas
representações sobre quem deveria ser o professor primário e os conhecimentos que
estes precisariam adquirir.
III. Método Mútuo: as apropriações dos professores.
A província mineira não dispunha das condições necessárias para implantar em suas
escolas o método de ensino mútuo. Contudo frente à imposição de organizarem suas
escolas pelo método lancasteriano os professores mineiros manipularam e alteraram
com criatividade suas prescrições. Manejaram um saber pedagógico buscando adaptá-lo
às condições das quais dispunham para realizar a tarefa de ensinar. O que pudemos
apreender da prática de ensino nas escolas mineiras entre os anos 20 e 30 dos oitocentos
nos revela uma rica interação entre os dispositivos de normatização pedagógica e a
atuação dos agentes que se apropriam deles.
15
Encontramos no Arquivo Público Mineiro um conjunto bastante extenso de
correspondências, recebido pela Presidência da Província mineira entre os anos de 1827
e 1838. Boa parte das cartas foi enviada pelos delegados de círculos literários. Esses
delegados eram os sujeitos encarregados de fiscalizar as escolas de primeiras letras. As
informações acerca de seu funcionamento e da atuação dos professores eram
transmitidas ao presidente da província via escrito. Por meio desse instrumento os
delegados davam ciência ao governo do estado em que se encontravam as escolas da
Província e algumas vezes reivindicavam melhores condições materiais para as mesmas.
As cartas se configuraram em um importante instrumento de participação dos
professores na configuração da instrução pública em Minas Gerais. Lançando mão desse
instrumento eles reivindicaram os utensílios necessários e as casas adequadas á
organização de suas escolas, buscaram da maneira que lhes foi possível, melhorar o
fazer cotidiano do ensino. A grande quantidade de correspondências enviada por
professores à Presidência da Província nos permite dizer que as questões relativas á
escolarização da população não eram motivo de preocupação somente dos intelectuais e
políticos. Os professores se revelaram como sujeitos atuantes no processo de afirmação
da forma escolar como modo ideal de socializar as crianças e os jovens e de um modelo
escolar de transmissão de conhecimento.
Neste sentido os conceitos de estratégia e tática, tomados de empréstimo de Michel de
Certeau, tornam-se fundamentais. A estratégia é uma ação supõe a existência de um
lugar entendido como algo próprio, base de onde se pode dirigir as relações com uma
exterioridade. A existência deste próprio pressupõe um lugar de poder. A tática é a ação
calculada, determinada pela ausência de um próprio. Ela não tem lugar a não ser o do
outro. O que distingue um conceito do outro é o tipo de operação que se pode realizar as
estratégias são capazes de produzir e impor e as táticas só permitem utilizar, manipular
e alterar algo, que neste caso é o modelo pedagógico do método mútuo.
Dedicarmo-nos a um trabalho sobre a relação entre as táticas de apropriação e as
estratégias de imposição de um modelo cultural nos permite não só pesquisar os
modelos pedagógicos, mas também as múltiplas e diferenciadas práticas de apropriação
desses modelos. “O conceito de apropriação, como tática que subverte dispositivos de
modelização, também tomado de Michel de Certeau, põe em cena o hiato entre os usos
16
e suas prescrições. O hiato evidencia a complexidade da relação entre modelos
pedagógicos e seus usos e está no cerne de uma história cultural dos saberes
pedagógicos” (Carvalho, 1998.p. 36)
Procuramos apreender as táticas de apropriação dos professores mineiros em relação ao
modelo pedagógico do ensino mútuo, identificando neste movimento os usos criativos
deste saber pedagógico. O método lancasteriano apresentava-se como uma proposta de
organização do ensino que compreendia todos os elementos constitutivos do fenômeno
educativo quais sejam os tempos, os espaços, os sujeitos, os conhecimentos e as práticas
escolares. Entretanto o arranjo material era um dos fatores determinantes da eficiência
de tal método. Sua aplicação propunha a diversificação e a racionalização dos materiais
escolares. Sua prática apoiava-se em uma grande quantidade de utensílios aos quais o
professor deveria recorrer durante as aulas.
Ao assumirem uma escola de primeiras letras os professores enviavam ao Governo
Provincial uma relação de materiais necessários á organização da escola. Os professores
que assumiam cadeiras de primeiras letras já criadas costumavam enviar uma lista dos
utensílios recebidos de seu antecessor, muitas vezes acompanhada de outra onde
constavam os apetrechos de que carecia a aula. Os utensílios não chegavam facilmente
às escolas, muitas vezes eram enviados aquém da quantidade e da variedade necessárias.
Instrumentos como areeiros, ardósias de diferentes tamanhos, esponjas, lápis com que se
escrevia em pedras, traslados, tabelas para aprendizagem da leitura e do cálculo
tornariam a aprendizagem da leitura, da escrita e das quatro operações aritméticas mais
fácil e rápida. Os compêndios de doutrina cristã, de gramática e de aritmética
permitiam que os alunos realizassem as mesmas atividades ao mesmo tempo,
conferindo uniformidade ao que era ensinado. Para manter a disciplina e a ordem
utilizavam-se sinetas, apitos e campanhias para reger o trabalho. Recomendava-se ainda
premiar os alunos, que mais se distinguiam pela sua aplicação e boa conduta incitando a
emulação.
Diante desta situação os professores mineiros exercitavam sua criatividade. Perante a
falta de tabelas impressas os professores manuscreviam tabelas para a leitura dos
aprendizes dos primeiros bancos. Além das tabellas faltava nas escolas outros utensílios,
17
do consumo diário dos alunos, como papel, penas e tinta. Após várias solicitações de
envio do material, os professores faziam a despesa à própria custa para depois receber
da Fazenda Pública e para não paralisar o ensino.
O delegado do 11o circulo literário enviou em 1835 um relatório à Presidência da
Província dizendo que o professor público de primeiras letras de uma das vilas, tinha
sido examinado pelo método do ensino mútuo, ou seja que o professor tinha habiltação
para aplicação do mesmo. Entretanto ele não podia torna-lo efetivo pela falta de
cômodos suficientes na casa e dos utensílios necessários. Sendo assim das disposições
prescritas naquele método somente era possível dividir os alunos em classes e decúrias.
Outro delegado expõe a situação da aula pública de primeiras letras da vila de Baependi
na qual o professor ensinava pelo método individual também chamado método antigo,
com habilidade e proveito dos alunos por não ter em sua escola nenhum dos utensílios
necessários para a prática do método monitorial. Dizia ainda que a escola achava-se
estabelecida em um edifício alugado pelo próprio professor. Naquele momento o fato de
não haver um prédio próprio para abrigar a escola já era visto como um problema. Outro
delegado relata as mesmas coisas em relação à aula de primeiras letras de Paracatu.
Visitando a escola de Ouro Preto, organizada segundo o método monitorial, o delegado
do 1o circulo literário encontrou vários problemas na prática de ensino. Segundo ele
“era lastimável que o Sistema Lancasteriano, sem duvida preferivel ao antigo methodo,
fosse por este supplantado”. Para organizá-la adequadamente e propiciar a propagação
do método pela província o delegado pedia a transferência ou reoganização da escola
por não ser o edifício suficiente para receber 300 ou 400 alunos que poderia vir a
frequentá-la”.
O delegado exigia o fornecimento periódico de tabelas, traslados, compêndios, e mais
utensílios, sem esquecer os distintivos honoríficos, e prêmios, considerados os
principais agentes da instrução e mesmo da moralidade dos alunos. Ele sugeria as
providências necessárias ao seu melhoramento e caso não fosse possível propunha que
ela fosse abolida. Ele dizia ser indispensável a criação de outras escolas, ainda que de
ensino individual. As tabelas, traslados e compêndios impressos ou estampados eram
igualmente necessários nas escolas do ensino individual, ainda que particulares. A
existência deste material ajudaria a conferir uniformidade ao ensino.
18
Entre as correspondências recebidas pela Presidência da Província entre os anos de 1827
e 1838 encontram-se quatorze cartas enviadas pelo mesmo professor entre 11 de abril de
1830 e 10 de junho de 1837. Trata-se de Joaquim Zacharias Pacheco, professor público
de primeiras letras que lecionou em Ouro Preto durante o ano de 1829 e parte de 1830.
Em 03 de abril de 1830 o referido professor foi transferido da capital da província para
o Arraial do Tejuco, atual Diamantina. O objetivo era organizar lá uma escola de ensino
mútuo sob os cuidados do mesmo mestre. No período decorrido entre a primeira e a
última correspondência ele busca organizar sua escola e o ensino segundo as prescrições
do método mútuo.
Nas correspondências o professor pede que lhe seja entregue a casa e os utensílios
necessários à instalação e ao funcionamento da sua aula de primeiras letras. A casa que
abrigaria a escola havia sido requisitada para tal fim dois anos antes da chegada de
Joaquim Zacharias. Ao chegar no arraial, encontrou a casa destinada ao estabelecimento
da aula de ensino mútuo servindo de residência para o Administrador Geral dos
Diamantes. Segundo o professor aquela casa era a única que havia no Tejuco capaz de
abrigar a escola com as comodidades precisas. Durante o longo período, entre a chegada
do professor e a entrega da casa e dos materiais destinados à escola, o mestre teve que
lançar mão do improviso para realizar seu trabalho.
Não podemos precisar o período durante o qual Zacharias Pacheco desempenhou o
ofício de professor público de primeiras letras no Arraial do Tejuco, mas as fontes nos
permitem ver o seu empenho em exercer o magistério público. É possível perceber um
grande esforço por parte dele para ver sua escola funcionando em um local apropriado,
mobiliada e aparelhada adequadamente e ainda receber seu salário. O conteúdo das
correspondências revela as precárias condições do exercício de seu magistério.
No 11 de abril de 1830 Zacharias Pacheco envia a primeira correspondência à
presidência da província comunicando que a casa que deveria abrigar a escola servia de
residência para o Administrador Geral dos Diamantes. Ele pede providências não só a
esse respeito, mas no que concerne à organização material da escola “ além do referido
tenho mais a lembrar a V. Ex.a mandar apromptar os utensílios já p.r mim requisitados
p.a o diário andamento do ensino; e qdo se não possa verificar com brevidade a
19
promptificação conceder-me fazer eu os gastos, do q. mais precizar, pa depois há ver da
Fazenda Publica p.a não paralizar o ensino.”
Foram sete anos de querelas durante os quais professor teve que encontrar formas de
continuar exercendo o magistério público. A princípio o Administrador Geral dos
Diamantes reservou da uma pequena sala da casa “sem commodo; nem proporção
alguma pa o estabelecimento do Ensino Mútuo”. O professor se dizia tolhido ensinando
em um pequeno cômodo da casa de seus pais “sem idoniedade pa receber Alumnos”.
Novamente ele se dirigi ao presidente da província pedindo providências referentes à
entrega e despesa com a reforma do imóvel e a preparação dos utensílios já requisitados
para o consumo diário das escolas.
Enquanto a casa que abrigaria a escola não era desocupada o mestre de primeiras letras
permanecia ensinando em sua própria casa. Os utensílios solicitados não chegavam às
suas mãos, enquanto isso ele arcava com as despesas de papel, penas, tinta, algumas
louzas, lápis, livros e traslados; essenciais ao andamento do ensino para depois haver da
Fazenda Pública.
Joachim Zacharias se dizia arrependido de ter deixado Ouro Preto para ensinar no
Tejuco. Alegava não ter dinheiro, nem ordenado suficiente, para alugar uma casa, fato
que o impedia de receber um número grande de alunos e ensinar adequadamente aos já
se encontravam matriculados.Segundo ele o salário não era suficiente para sua
subsistência e estava atrasado há mais de um ano.Ele se via obrigado a pedir uma sala
emprestada para realizar o exame publico de seus alunos, por não ter a pequena casa de
seus pais espaço suficiente para abrigar as autoridades e demais pessoas que se faziam
presentes.
Decorridos mais de três anos da transferência do mestre Joachim Zacharias para o
Tejuco a muito custo e frequentes requisições foi-lhe entregue uma sala para lecionar.
Entretanto nada mais recebeu além da dita sala, as mesas, os bancos e demais utensílios
não lhe foram entregues. Em 10 de março de 1837 Joachim Zacharias envia a nona
correspondência à presidência da província dizendo que havia aceitado a transferência
na certeza de que a escola do Tejuco seria completamente organizada segundo o sistema
de Lencaster como ordenava a Ley de 15 de outubro de 1827. Dizia que apesar das
20
repetidas exigências não se tinha organizado a escola, nem a equipado com lousas,
canetas e demais utensílios precisos. Por isso ele se via na “necessidade de ensinar pelo
método individual como antigamente”
O professor diz ainda que observando que mesmo depois da Lei nº 13 o governo da
província não pretende abolir o ensino mutuo continuando a existir as escolas
organizadas na capital Ouro Preto e em São João Del Rey que funcionam em prédios
alugados. Ele argumenta que em Diamantina há um prédio público adequado à uma
escola de ensino mútuo e uma numerosa população que se faz digna de tal beneficio. O
professor pede providencias para que a sua aula sua aula seja organizada conforme a da
capital pedido que o governo defere. O governo autoriza ainda a compra de tabelas e
folhetos da constituição, compêndios de doutrina cristã, compêndios de aritmética, de
gramática brasileira e ortografia. Assim com papel tinta e pena para o uso dos alunos
pobres.
As tentativas de implantação do método mútuo em Minas Gerais geraram uma série de
reclamações, mas resultaram também em um enriquecimento material das escolas. O
papel, a tinta e a pena já se encontravam na escolas antes da década de vinte dos
oitocentos. Entretanto as ardósias, os quadro de pedra, os lápis de gesso, os lápis para
escrever em ardósia e o areeiro faziam parte do arranjo material das escolas de ensino
mútuo e passaram a integrar o quadro de materiais escolares após as tentativas de
utilização do método lancasteriano na educação elementar mineira.
A implantação do método mútuo como estratégia pedagógica de remodelização das
práticas escolares fracassou, mas alguns materiais escolares colocados em circulação
resistiram a este fracasso e ganharam vida autônoma no cotidiano escolar. A grande
quantidade de pedidos de aluguel e reforma de casa para a escola encontrados indica
que as tentativas de implementação da proposta do método mútuo resultaram no
aumento da preocupação com os espaços escolares. A ação educativa passou cada vez
mais a requerer um espaço próprio e adequado.
As estratégias de difusão e implantação do método lancasteriano não foram suficientes
para superar as precárias condições materiais e a falta de professores preparados para
implementar a proposta pedagógica. Os professores por sua vez não dispunham de
21
poder para se opor à imposição do método. Diante disso servindo-se de variadas táticas
eles não rejeitavam as prescrições, à sua maneira eles as empregavam a serviço da
melhoria de suas condições de trabalho e do ensino. Na presente pesquisa a análise das
relações entre estratégias e táticas enriquece sobremaneira a história dos saberes
pedagógicos, pois permitem investigar não só o modelo pedagógico, mas também as
práticas diferenciadas de apropriação deles.
22
Referências bibliográficas:
ADORNO, Sérgio. Os Aprendizes do Poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
ARIÉS, Philippe. História social da infância e da família. Rio de Janeiro:Zahar, 1978.
BASTOS, Maria H. Câmara.; FARIA FILHO, Luciano M. (orgs.) A escola elementar no século XIX. Passo Fundo:EdUPF, 1999.
CARVALHO, José Murilo de (org.). Bernardo Pereira de Vasconcelos. São Paulo: Editora 34, 1999,1ª ed..
------. A construção da ordem/Teatro de sombras. Rio de Janeiro:Ed. UFRJ/Relume Dumará, 1996.
CARVALHO, Marta Maria Chagas. Por uma história cultural dos saberes pedagógicos. In: SOUZA, Cynthia Pereira de; CATANI, Denice Bárbara(orgs.). Práticas Educativas, culturas escolares e profissão docente. São Paulo: Escrituras Editora, 1998.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis.RJ: Vozes, 1994.
CHERVEL, André. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa. Porto Alegre, Teoria e Educação, 2, p.177-229, 1990.
CHIZZOTTI, Antônio. A constituinte de 1823 e a educação. In: FÁVERO, Osmar.(Org.) A educação nas constituintes brasileiras - 1823-1988. Campinas:Autores Associados, 1996, p.31-54.
DEL PRIORI. Mary.(org.) História da criança no Brasil. São Paulo:Contexto, 1992.
FARIA FILHO, Luciano M. (org.) Educação, modernidade e civilização. Belo Horizonte:Autêntica, 1998
FARIA FILHO, Luciano Mendes. Escolarização, cultura e práticas escolares no Brasil: elementos teóricos -metodológicos de um programa de pesquisa. In: LOPES, Alice Casimiro; MACEDO, Elizabeth (orgs.). Disciplina e Integração curricular: História e políticas. Rio de Janeiro: DP& A, 2002.
FREITAS, Marcos Cesar de. (org.) História social da infância no Brasil. São Paulo:Cortez/USF, 2001, 3ª ed.
GÉLIS, Jacques. A individualização da criança. In: História da vida privada. São Paulo: Companhia das Letras, v. 3, 1991.
GONDRA, José G.; LEMOS, Daniel C. A .Poderes da assinatura: Abaixo-assinados como fonte para a História da Educação Brasileira do século XIX. 2002, 17p. Impresso.
HORTA, José Silvério Baía. Planejamento educacional. In: Mendes, Durmeval Trigueiro. (Coord.) Filosofia da educação brasileira. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 1983.
23
KUHLMANN JR. Moysés. Educando a infância brasileira. In: LOPES, Eliane M. T.; FARIA FILHO, Luciano M.; VEIGA, Cynthia G. (orgs.) 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte:Autêntica, 2000, 2ª ed., p. 469-496.
NUNES, Clarice; CARVALHO, Marta Maria Chagas. Historiografia da Educação e fontes. Porto Alegre, Cadernos Anped, nº 5, 1993. p. 7-64
MINAS GERAIS. Instrução Pública. SP. Relatórios de Presidente de Província. 1828- 1852. A.P.M.
MINAS GERAIS. Instrução Pública. Lei nº13 de 28 de março de 1835. Livro das Leis Mineiras. A.P. M.
MINAS GERAIS. Instrução Pública. Originais mais pareceres e atos relativos a exames de Instrução Pública (1846-1850). SP.392.A.P.M.
MINAS GERAIS. Instrução Pública. Memória (1839).S.P. 236. A.P.M.
NARODOWSKI, Mariano. Infância e poder. Bragança Paulista:USF, 2001.
ORLANDI, Eni Puccinelli. Vão surgindo os sentidos. In: ______.(Org.) Discurso fundador: a formação do país e a construção da identidade nacional. Campinas:Pontes, 1993, p.11-26.
SOUZA, Octavio Tarquinio de. Bernardo Pereira de Vasconcellos e seu tempo. Rio de janeiro: José Olynpio Editora, 1937. ( Documentos Brasileiros, 3).
THOMPSON. E. P. Tradición, revuelta y consciencia de clase. Barcelona:Ed. Crítica, 1984, 2ª ed.
UNIVERSAL (O). Ouro Preto. 1825-1842.
VASCONCELOS, Bernardo Pereira de. Manifesto Político e Exposição de Princípios. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1978.
VASCONCELOS, Salomão de. Bernardo Pereira de Vasconcellos. Belo Horizonte: (s.n.), 1953.
24