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O MITO DE ORFEU NA LITERATURA E NO CINEMA

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTECCHLA – DLLEMCÁTEDRA: LITERATURA COMPARADA IESTUDANTE: IGOR ANDRADE VARELA BARCA

O MITO DE ORFEU NA LITERATURA E NO CINEMA

1. Introdução.

O mito de Orfeu é bastante conhecido e conta a história de um casal apaixonado, Orfeu e Eurídice. Há muitas versões do mito e muitas narrativas dele derivadas, mas o ponto comum é que em todas elas Eurídice morre, Orfeu vai ao inferno, encantando a todos com sua música (em algumas versões, com sua poesia), convence Plutão/Hades a retirar Eurídice de lá, mas com uma condição: não olhar para ela. Como em todas as tragédias, Orfeu acaba não resistindo à tentação e vê sua amada pela última vez.

Este trabalho irá resumir e comentar algumas dessas narrativas que envolve o mito, na literatura e no cinema. Começaremos por Virgílio, nas Geórgicas, que tem algumas páginas dedicadas a Orfeu. Logo em seguida, resumiremos uma peça teatral de Vinícius de Moraes, intitulado Orfeu da Conceição – Tragédia Carioca; um filme franco-ítalo-brasileiro de Marcel Camus, chamado Orfeu Negro; e, finalmente, um filme brasileiro, de Carlos Diegues, intitulado simplesmente Orfeu.

Após o resumo das obras, procurarei tecer alguns comentários críticos, buscando sempre estabelecer comparações entre uma e outra. Comecemos, então, pelo autor latino.

2. Orfeu nas Geórgicas de Virgílio.

Eurídice, amor de Orfeu, fugia do apicultor Aristeu, que tanto a desejava. Na fuga pela margem do rio, ela descuidou-se e pisou em uma serpente. A serpente a picou e ela morreu. Orfeu, desesperado, busca por sua amada até mesmo no inferno, onde acalma com sua bela música as almas carentes de luz, os magnânimos heróis, donzelas cremadas jovens e, inclusive, Cérbero, o cão de três cabeças, guarda do inferno.

Estando diante de Plutão e Prosérpina, convence o casal de que ele poderia levar sua amada com ele. No entanto, Prosérpina impõe uma só condição: de que ele não olhe para trás enquanto não estiver sob a luz do Sol. Orfeu não resiste e quando estavam saindo do inferno, olha para conferir se sua adorada o segue e a perde para sempre. Pela segunda vez, sua esposa foi arrebatada.

Nosso herói continua buscando Eurídice por sete meses consecutivos, tocando músicas tristes e lamentosas. Em profundo luto, recusa casar-se com belas mulheres e elas, sentindo-se desprezadas, atacam Orfeu e espalham seus pedaços esquartejados pelos campos. Sua cabeça, jogada no Ebro, na corrente de Eagro, ainda clama por sua amada, chamando seu nome com uma voz frígida e mísera, enquanto todo o rio, ao longo das margens, repete seu canto.

3. Orfeu da Conceição – Tragédia Carioca.

Orfeu, sambista e morador da favela, toca o seu violão. A bela melodia que sai do instrumento atrai seus pais, Apolo e Clio. Os dois iniciam uma conversa sobre a virtuosidade de seu filho e logo Orfeu está dando explicações à sua mãe sobre seu desejo

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de casar com Eurídice, aquela que ele considera o amor de sua vida. Clio tenta convencê-lo do contrário, argumentando que ele pode ter qualquer mulher que desejar e que um casamento apenas anularia a sua liberdade.

Apesar dos argumentos de mãe, Orfeu não se dá por vencido e pede para que sua mãe vá dormir. Enquanto dedilha um samba em seu violão, abaixo de um céu estrelado, ele se encontra com Eurídice, que chega de surpresa. Os dois trocam carícias físicas e verbais e se declaram um para o outro como se estivessem a dizer a cor da roupa que estão vestindo. A paixão toma conta de Orfeu e ele quase sucumbe à tentação de possuir Eurídice, o que não acontece por intervenção dela, já que faltavam apenas dois dias para o casamento.

Talvez para acalmar os ânimos de Orfeu, ela vai à casa de sua mãe, com a desculpa de ver como tudo está correndo. Nesse meio tempo, Mira, um antigo amor do negro sambista, aparece e lança provocações. Ele, de sangue quente, não consegue se controlar e a agride. Todo esse tumulto acorda sua mãe, que novamente sai de casa e busca seu filho, para que ele também vá dormir.

É a vez de Aristeu aparecer. O apicultor se apresenta, profere um pequeno monólogo, declarando seu amor por Eurídice e desgraçando Orfeu. Logo em seguida, é provocado por Mira, que relata sua visão dos amantes. Enquanto os dois sussurram, Orfeu sai com seu violão e encontra-se com a Dama Negra. Ele a desafia e ela, não resistindo ao ritmo contagiante de seu violão, vai embora dançando, como se estivesse possuída.

Orfeu para de tocar, a Dama Negra foi-se e surge Eurídice. Recomeça o clima de paixão, de pequenas rejeições que querem dizer sim e eles se entregam um aos braços do outro. Aristeu planta-se em frente ao barracão onde estão os amantes e a Dama Negra aparece para ele, anunciando a morte de Eurídice e sua total entrega à Orfeu. O apicultor, desesperado, investe contra a casa de seu rival e encontra Eurídice saindo de lá. Aproveita a ocasião para matá-la com um punhal. E assim termina o primeiro ato.

O segundo ato inicia-se em meio a uma festa, onde Plutão e Prosérpina, rei e rainha da escola de samba “Os maiorais do Inferno”, incitam todos a dançar e a curtir a vida. Nem o volume da música, nem o tumulto dos bêbados impedem que o som do violão de Orfeu invada o ambiente. Em uma busca desesperada pela sua amada, ele chama seu nome de maneira longa e triste, de modo que as mulheres do baile o acompanham e ecoam o nome daquela que já se foi. Platão consegue retomar o clima de festa e Orfeu não é mais escutado, apesar de não deixar de tocar seu violão.

Nesse momento, Cérbero, o leão-de-chácara da escola de samba, enfrenta Orfeu, que o apazigua com o belo e angustiante som de sua música. Plutão tenta colocá-lo para fora do baile, mas o sambista domina todos os capachos do rei com sua música. O som conquista não apenas os homens do rei, mas exerce influência também sobre a mulher, Prosérpina, que convence seu marido a deixá-lo em paz. Enquanto Orfeu chama Eurídice, todas as mulheres do baile declaram sê-la, o que torna Orfeu ainda mais angustiado na sua incessante busca. Eis o fim do segundo ato.

O terceiro e último ato é o mais curto. É nele em que todos comentarão sobre a loucura de Orfeu. A mãe também parece enlouquecer, desejando seu filho de volta e pedindo para morrer. Ouve-se bastantes murmúrios de mulheres que relatam fatos recentes relacionados a Orfeu e, enquanto elas conversam, uma ambulância chega parra assistir Clio, a mãe daquele que enlouqueceu.

Em uma tendinha, Mira se embebeda com algumas amigas que a provocam, sempre se referindo ao seu antigo namorado que, quando menos se espera, aparece com seu violão clamando por sua Eurídice. As mulheres não aguentam a obsessão de Orfeu e o atacam, cortam-no selvagemente e matam-no. A Dama Negra aparece e leva-o com ela, cobrindo-o com um manto branco. Eis a tragédia carioca.

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4. Orfeu Negro.

O filme inicia-se com uma cena um tanto exótica aos olhos de um estrangeiro: mulheres com latas d'água na cabeça subindo o morro, meninos jogando futebol, empinando pipas e com uma balsa com várias pessoas tocando e dançando samba. Logo aparece uma das personagens principais, Eurídice, assustada com um vendedor cego que a interpela de repente. Ela avança pela cidade, passando por uma feira e sendo cercada por alguns homens que sambam para ela, pede informações ao guarda e segue suas orientações.

Aparecem, então, um bonde repleto de foliões e seu condutor, Orfeu, morador da favela e noivo de Mira. Eurídice, que entrou no bonde para ir até o fim da linha, tem seu primeiro encontro com Orfeu, eles trocam algumas palavras e se despedem. Mira aparece, conversa com seu noivo e vê Eurídice sendo orientada pelo vigia da estação e também por seu noivo, que pergunta se ela encontrou o caminho.

O casal vai ao cartório se casar e o tabelião, quando pergunta os nomes dos noivos, brinca com o conhecido mito, dizendo que “Orfeu ama Eurídice e todo mundo sabe”. Mira, naturalmente, sente-se enciumada e exige uma explicação e um anel de casamento para colocar no dedo. Saindo do cartório, depois de combinarem como comprariam o anel, os dois vão tirar o violão de Orfeu do prego.

Eurídice chega na casa da prima e revela que está com medo de um homem que deseja matá-la. Elas saem da casa em direção à feira e passam por alguns garotos sambando. Um deles entrega uma figa, amuleto que Eurídice guardará sempre com ela. Elas encontram Orfeu, que foge de fininho de Mira e vai ensaiar em sua casa, que é repleta de animais. Lá dentro ele se encontra com dois garotos e é questionado sobre sua habilidade de fazer nascer o Sol, ocasião em que também confirma a existência de Orfeus anteriores e de prováveis sucessores. Canta uma bela canção e faz Eurídice dançar. Encontra-se com ela e conta a história do velho mito que envolve os dois, história que ela diz lembrar muito bem. Pela primeira vez, eles estão a sós, admiram o Sol que se põe e logo são interrompidos pelos garotos, que chamam Orfeu para o ensaio.

Todos dançam no ritmo frenético do samba e o ensaio começa ao som da música tema do desfile do outro dia. Enquanto o ensaio acontece, Eurídice observa e descobre através de Benedito que Mira é sua noiva. Serafina, a prima, mais um vez, distrai Mira para que Orfeu fuja e possa dançar com sua predestinada, com aquela que está nas velhas histórias e que hoje volta para brincar o carnaval. O sambista pede uma fantasia para sua amada e o homem que estava perseguindo Eurídice aparece fantasiado de caveira.

Uma grande perseguição inicia-se e o homem vestido de caveira quase consegue seu objetivo, sendo impedido por Orfeu. Apesar de ter sido frustrado, o homem diz não ter pressa e Orfeu declara seu amor à Eurídice. Ele a leva para o seu barraco, onde passam a noite juntos. Quando a manhã vem, ele pega o seu violão, deixado ali pelos garotos e canta para sua musa, fazendo nascer o Sol.

Na manhã de Carnaval, Serafina tem uma ideia: fazer Eurídice dançar com Orfeu para que ela possa aproveitar o tempo com seu namorado que chegou há pouco de viagem. Enquanto acontece o desfile, o homem vestido de caveira reaparece e parece procurar Eurídice. Mira assiste ao casal dançando e desconfia de algo, enquanto o homem ameaçador continua a procurar sua vítima. No meio do tumulto do desfile, Eurídice perde sua figa e quando Benedito, o garoto que lhe deu o presente, vai buscá-la, um guarda a pisoteia e acaba por quebrá-la. O mascarado percebe que a fantasiada, na verdade, é Eurídice e também o percebe Mira, que inicia uma grande confusão da qual a amada de Orfeu tenta escapar, mas acaba por cair nas mãos de seu assassino.

Inicia-se a perseguição, tendo como final a estação de bonde, casa do seu vigia. Prevenido pelo vigia, que sabia da ida de Eurídice à estação, Orfeu vai até lá para

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defendê-la, mas ele mesmo eletrocuta sua amada, ao tentar acender as luzes do lugar. Quando desperta, depois da briga com o mascarado, vai ao hospital procurar por Eurídice, que está morta. É expulso do hospital e, no meio do caminho para algum lugar, encontra um policial que o indica o local onde procurar pessoas desaparecidas. Chegando lá, Orfeu encontra apenas papéis.

O varredor do prédio indica um outro lugar, um terreiro de candomblé. Entrando lá, encontra seu guardião, um cachorro feroz chamado Cerbero, que é apaziguado pelo zelador. As pessoas dançam em um ritmo ainda mais forte do que o do Carnaval, enquanto algumas recebem espíritos, os santos do candomblé. Uma das mulheres recebe um santo e, quando Orfeu começa a cantar, escuta a voz de Eurídice que pede para não olhar para ela, mas ele não resiste e ela desaparece. Ele vai ao necrotério, pega o corpo de sua amada, volta ao morro e, assim que chega, recebe uma pedrada de Mira, que está revoltada por ter sido trocada.

Depois da morte de Orfeu, é preciso que haja um outro Orfeu, para dar continuidade à história. Eis que surge um dos garotos tocando o violão para fazer o Sol nascer, enquanto uma outra Eurídice dança, apaixonada por Orfeu.

5. Orfeu.

Tudo começa com a leitura de “São demais os perigos desta vida”, de Vinícius. Orfeu, músico e conquistador da favela, é conhecido, dentre outras coisas, por fazer o Sol nascer. Algumas crianças duvidam de sua habilidade e ele prova que é capaz, tocando seu violão em uma varanda e erguendo o astro que aquece nossas manhãs. Animais rodeiam sua casa e também são acalmados pela música.

Seus pais no quarto ao lado conversam sobre a música que Orfeu estava tocando e ficamos conhecendo a personagem que dormiu com ele: Mira, sua noiva. Na cena seguinte, uma nova mulher chega ao morro. Dois outros personagens muito importantes na narrativa também aparecem pouco tempo depois: o tráfico e a polícia que, enquanto Orfeu está sendo entrevistado por ser o carnavalesco responsável pelo bicampeonato da sua escola de samba, entram em confronto entre as vielas do lugar. O conflito acaba quando Orfeu desce e negocia com os policiais.

A mulher que acabou de chegar procura por alguém chamada Carmen, sua tia. Quando as duas se encontram, logo seu nome é revelado, ela se chama Eurídice, vinda do Acre e descendente de índios. Dona Conceição, mãe de Orfeu, pretende apresentar o Rio de Janeiro à sua convidada e a leva para sua casa, onde seu filho dorme. Passando por ele, Eurídice para e olha para ele, como se o reconhecesse de algum lugar. Orfeu acorda e vê aquela bela mulher, dizendo que tinha acabado de sonhar com ela, mas foi mesmo a própria Eurídice que apareceu diante dele e não apenas uma imagem onírica.

Ele vai ao barracão ensaiar a escola para o Carnaval e lá encontra a sua nova paixão, que tinha sido levada ao barracão pela sua tia, já que ela desejava conhecer um lugar animado. Quando o casal iria começar a conversar, chega Mira, anunciando que posou para uma revista masculina. Eurídice, ao ver a cena, sai do barracão e Orfeu vai atrás dela. Saindo de lá, se encontra com a polícia, que pede explicações sobre a filmagem da invasão. Enquanto Eurídice tenta encontrar o caminho de casa, passando por um pequeno altar, Orfeu tenta se esquivar da polícia, tentando sair do carro onde entrou para se esconder de Mira. Apesar de conseguir sair de lá, recebe ameaças de morte da polícia.

Ele encontra sua amada na casa onde está hospedada, rouba um beijo dela e consegue marcar um encontro. Corre para fora da casa e dialoga com a Lua, mandando-a ir embora para o Sol nascer mais rápido. Sob esse mesmo luar, encontra-se com Lucinho, o chefe do tráfico do morro, que lamenta que ele não tenha aceitado o dinheiro oferecido

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para fortalecer a escola. Nessa conversa, pede para que seu amigo vá embora do morro, para fugir da polícia.

Quando chega em casa, cantando um novo samba, Orfeu dá de cara com Mira que, em um ataque de ciúmes, diz que vai acabar com Eurídice. Uma bela música começa a sair pela janela do quarto e Mira se esforça para acreditar que aquela canção tenha sido composta para ela. Porém, todos sabem que foi feita para seu novo amor.

Amanhecendo, um garoto chama Eurídice para ver um fato curioso da favela: uma execução. O homem tinha estuprado uma criança e deveria escolher entre pular do precipício ou morrer queimado. A nova moradora intervém e pede para que ele seja entregue a polícia. Nesse meio tempo, a criança violentada pega a arma de um traficante e mata seu estuprador. Apesar de tudo, o Carnaval continua e Eurídice vai até Orfeu, revoltada com o que viu e desejando ir embora dali. Orfeu decide ir falar com Lucinho, pedindo para que ele saia do morro até a quarta-feira de cinzas, ameaçando-o.

Eurídice não vai embora sem antes cair nos braços do amado. Pela manhã, ainda no morro, ela fala ao telefone com Orfeu, que está no sambódromo acertando os últimos detalhes para o desfile. Nesse telefonema, ele promete que sairão do morro para sempre, só os dois. Nessa mesma manhã, um homem fantasiado de super-homem sobe em uma laje que possui visão direta para o sambódromo e retira do seu tambor, um rifle. Quando anoitece e a festa começa, Eurídice vai à igreja do pai de Orfeu e o homem, com o fuzil em mãos, tenta acertar Orfeu. Porém, recebe uma ligação no meio de sua missão: Lucinho pede para que ele a aborte, sem dar muitos motivos.

A musa do nosso herói decide sair para olhar o lugar onde ela tinha acabado de decidir ficar o resto de sua vida. Sai fantasiada, cantando a música composta em sua homenagem e encontra o chefe do tráfico no caminho. O traficante inicia uma conversa com Eurídice, convencendo-a a ficar ao lado dele só um pouco. Ele, drogado, tenta agarrá-la e ela foge. Durante a fuga, Lucinho atira para o chão e atinge uma pedra. A bala ricocheteia na pedra e acerta Eurídice, que cai no chão e clama por ajuda.

Depois do desfile, Orfeu sobe o morro novamente conversando com sua mãe, que pede para ele não se casar, vai à casa onde está Eurídice, mas só encontra sua mala. Passa a noite inteira esperando por ela e quando amanhece, vai à polícia, prestar queixa de seu desaparecimento. E inicia-se a busca desesperada de Orfeu. Pela boca do traficante, descobre que Eurídice foi morta e jogada no precipício, precipício esse que Orfeu descerá para buscar o corpo da amada, depois de matar seu amigo criminoso com um tiro, diante de todos os homens do tráfico.

Ele desce em um ambiente parecido com um lixão, onde passa por uma serpente até encontrar o corpo de quem tanto deseja. Encontra o corpo, mas enlouquece, vaga por aí com sua amada nos braços, conversando às vezes só e às vezes com ela. A polícia invade novamente a favela enquanto Mira e suas amigas conversam no bar. As mulheres vão até Orfeu para provocá-lo: enquanto ele chama por Eurídice e pede ajuda a Mira, elas dizem que também são Eurídice. Mira não suporta mais o chamado de Orfeu por sua amada morta, rouba das mãos de Carmen um pedaço de ferro e o enterra em seu noivo. Ele morre ao lado de quem tão profundamente amou e por tão pouco tempo.

6. Breve análise comparativa.

Para realizar uma breve análise comparativa e tecer comentários a respeito das obras resumidas, dividiremos este tópico em quatro outros sub-tópicos: Família e Sociedade, Música, Inferno e Morte, escolhidos por representarem pontos comuns importantes que merecem ser analisados. Tentarei comparar cada obra por seu próprio conteúdo, sem sobrepor uma à outra, mesmo sabendo que Orfeu Negro e Orfeu foram filmes que surgiram a partir da peça de Vinícius, Orfeu da Conceição.

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6.1. Família e Sociedade.

Duas das obras que resumimos neste trabalho fazem referência direta à família de Orfeu: o livro de Vinícius e o filme de Cacá Diegues. Na primeira, o autor utiliza os nomes de um deus e de uma musa gregos: Apolo, deus do Sol e Clio, musa da história e da criatividade. Em algumas versões do mito, é esse o parentesco estabelecido para Orfeu, porém, muitas vezes, vemos o nome de Calíope (musa da eloquência) no lugar de Clio e de Eagro, um deus-rio, no lugar de Apolo. Na segunda obra, percebemos uma homenagem do cineasta ao livro de Vinícius, nomeando a mãe de Orfeu, de Conceição.

Apesar de não referir-se diretamente à genealogia de Orfeu, o filme de Camus traz a figura do Sol como uma alegoria de Carnaval, alegoria esta que está presente na casa de Orfeu e que fará parte do desfile, contando a história do Sol e da Lua. Na obra brasileira, Diegues faz a mesma referência, mas de maneira sutil, incluindo em uma das músicas da trilha sonora, o verso: “Levanta o Sol do meu coração”. Não podemos nos esquecer da habilidade concedida à Orfeu: fazer o Sol nascer todas as manhãs, apenas tocando seu violão.

Ainda no filme de Camus, o personagem principal tem consciência de que não é o único e de que antes deles existiram outros e de que ainda existirão muitos outros depois dele. A velha história do mito é contada por Orfeu e emociona Eurídice, que diz lembrar muito bem do que eles viveram. Essa vida anterior é motivo de ciúmes para Mira e irá gerar um desejo de sucessão por parte dos garotos, sendo confirmada no final do filme, após a morte do dono do violão que encanta o Sol.

Dentro deste contexto de família, também podemos explorar um pouco o tema da sociedade, que se apresenta de modo diferente em todas as obras às quais se referem este trabalho. A peça de Vinícius retrata uma minoria étnica sem contrapô-la à maioria, já que todos os atores devem ser interpretados por negros e que o cenário é basicamente o morro. Nos dois filmes, enxergamos melhor essa contraposição, da parte de cima com a parte de baixo da cidade, onde as diferenças entre os dois ambientes estão marcadas, tanto pela presença de prédios, quanto pela presença de brancos.

Em Orfeu, o desejo da maioria dos habitantes do morro é escapar da violência do lugar e mudar-se para a parte de baixo da cidade, onde acreditam ser possível ter uma vida mais digna. A presença de uma outra minoria étnica também pode ser considerada de extrema relevância na narrativa de Diegues: Eurídice nasceu no Acre e descende de índios. Um união tão comum em determinado ponto da nossa história é mais uma vez revivida. O filme franco-ítalo-brasileiro, porém, nos apresenta um outro ângulo: a cidade grande é, na verdade, um inferno, onde tudo de fatídico acontece – a morte de Eurídice, sua perda e sua busca. Apesar de mostrar a cidade grande por esse ponto de vista, acredito que o retrato feito pelo filme é um tanto exótico, misturando todos os elementos de um esterótipo brasileiro para talvez chamar a atenção do público estrangeiro e conquistar o prêmio mais importante do cinema.

6.2. Música.

O semi-deus Orfeu é conhecido por tocar maravilhosamente seu violão e encantar a todos com sua música. Esse elemento, portanto, não poderia deixar de aparecer nas narrativas que o têm como personagem. Vinícius preenche sua peça com suas canções à medida em que o personagem as compõe, contextualizando sua música e transformando-a em concretizações de uma inspiração que acabou de ocorrer. Nos filmes, até mesmo pela diferença de linguagem, a música funciona como trilha sonora, apesar de algumas delas serem cantadas pelo próprio Orfeu.

No longa-metragem de Camus, a música é tão insistente que se torna um incômodo, uma batucada incessante que está sempre presente como música ambiente.

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Orfeu, mesmo desempenhando a função de músico e compositor, pouco utiliza seu violão e não colabora para a mesma formação de imagem que temos no mito, parecendo mais um malandro que ilude as mulheres. A meu ver, o filme de Diegues se distingue também nesse ponto, pois consegue criar a imagem de um músico apaixonado, que compõe por inspiração feminina. Não desejo comparar a qualidade e a quantidade de paixão dos dois Orfeus, mas apenas me posicionar no tocante à presença da música e da imagem que ela pode criar nos dois filmes.

Na peça, não há tanta presença de animais, fato que é enfatizado principalmente no longa de Camus, no qual vários animais habitam a casa de Orfeu. O que aparece em Orfeu é uma breve referência ao filme anterior, onde podemos ver que alguns bichos espalhados pela favela são influenciados pela música do compositor. As duas obras fazem Orfeu nascer o Sol com seu violão, destacando mais uma vez sua habilidade musical e sua relação com Apolo.

Um último ponto a ser relatado se refere ao fato da temporalidade. Explico-me: enquanto o primeiro filme foi escrito no final dos anos 50, o segundo foi produzido em 1999. Essa diferença de tempo permitiu que Cacá Diegues modernizasse a sua produção e apresentasse novas tecnologias e realidades, como a dominação da favela pelo tráfico e a presença de computadores na favela, instrumento utilizado por Orfeu para gravar uma canção em homenagem à Eurídice.

6.3. Inferno.

O inferno, para onde Orfeu se dirige para buscar sua amada Eurídice, em todas as versões do mito, também é retratado nas outras obras que dele se originam. Nos versos de Virgílio, o inferno fica aos pés do monte Tênaro e corresponde ao Hades grego, tendo, inclusive, por guardião, o Cérbero. Na peça de Vinícius, o inferno é o barracão onde se está ensaiando para o Carnaval e a presença de seus governantes (Plutão e Prosérpina) e do leão-de-chácara, Cérbero, confirmam a tese.

Os filmes, porém, dão soluções diferentes para o inferno: no de Camus, o inferno é um espaço imenso, com vários ambientes, a cidade grande, a parte que se contrapõe ao morro. Talvez possa dizer, mais precisamente, que o inferno de Camus é o terreiro onde Orfeu irá procurar Eurídice, pois, além de ter um guia que o auxilia na travessia, ele enfrenta um guardião, um cachorro chamado Cerbero. O necrotério, as ruas, a repartição pública, todos esses lugares também fazem parte do mesmo local assustador, onde reina o caos. Em Orfeu, a configuração do inferno é outra, é o fim do precipício onde os corpos mortos pela lei do tráfico são jogados, um ambiente tenebroso, semelhante a um lixão e que abriga diversos cadáveres. É de lá que ele retira o corpo de Eurídice e encontra uma cobra, que talvez seja a sua guardiã e que, com certeza, faz referência ao mito grego.

Tanto o inferno quanto a morte estão presentes no imaginário humano e são representados de maneiras diversas. Na Idade Média, a Igreja o pintava de uma maneira terrível, para que os fiéis temessem a Deus; os gregos, representava-o como o Hades, espaço onde as almas vagavam e pagavam suas penas; no livro de Vinícius, o inferno é o Carnaval, solução encontrada depois de anos de iniciado o escrito e que fez parte de sua realidade e da realidade da sociedade em que vivia. Era preciso, porém, encontrar uma solução para o inferno de Diegues, pois não fazia sentido separar o tráfico, elemento novo e de relevante crítica social, do fim que muitos tinham devido à sua lei.

6.4. Morte.

Seria muito interessante fazer uma análise mais profunda sobre a imagem da morte nas diferentes narrativas de Orfeu, mas nos contentemos com o pouco que analisaremos a seguir. Acredito que o primeiro ponto importante a analisar é a

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sexualidade da morte. Em português e acredito que em todas as línguas latinas, morte é um substantivo feminino, mas esse fato morfológico nem sempre é obedecido e temos figuras masculinas que a representam. A mais difundida é a do ceifador, a do esqueleto que porta um capuz negro e uma foice e que toca aqueles que estão em sua lista para levá-los com ele.

Em nossos objetos de análise, a morte se apresenta de diversas maneiras: no mito latino, talvez não haja uma figura tão definida, mas se considerarmos a cobra como representação, podemos concluir que ela é feminina; o mesmo acontece na peça de Vinícius, a Dama Negra cumpre o papel da morte, vestindo-se de azul e portando um manto branco, com o qual cobre aqueles que se foram, com a delicadeza feminina. Porém, nos filmes, a morte é representada por figuras masculinas, o tráfico e o homem fantasiado de esqueleto que persegue Eurídice.

Nessas duas últimas obras, o personagem de Aristeu (presente no mito e na peça de Vinícius) confunde-se com a imagem da morte, haja vista que tanto Lucinho (chefe do tráfico) quanto o homem mascarado desejam Eurídice. No filme de Camus, esse fato é mais óbvio, já que há uma verdadeira perseguição, mas no de Cacá Diegues a perseguição se consolida em apenas uma cena: aquela na qual Lucinho força a amada de Orfeu a conversar com ele e ainda a beija, para somente depois matá-la por acidente, assim como acontece no mito.

7. Considerações finais.

Todas essas diferenças têm origem nas diversas leituras que podem ser feitas do mito de Orfeu e Eurídice e, é claro, no que se deseja e se pode expressar através de uma determinada obra. Outro ponto crucial é a linguagem, pois o processo de escrita de uma peça, de um filme ou de versos, apesar de partirem de um ponto em comum, se configuram de maneiras diferentes, fato que pode ser claramente observado apenas comparando os dois filmes. Os diálogos que eles estabelecem entre o mito, a obra de Vinícius e até mesmo entre outras obras, como o Orphé, de Cocteau, originam relações ricas que possibilitam novas leituras, tornando-as obras únicas.