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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros SERRA, O. O sagrado e o profano nas “festas de largo” da Bahia. In: Rumores de festa: o sagrado e o profano na Bahia [online]. 2nd ed. Salvador: EDUFBA, 2009, pp. 69-112. ISBN 978-85-232-1231-5. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>. All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International license. Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribição 4.0. Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento 4.0. O sagrado e o profano nas “festas de largo” da Bahia Ordep Serra

O sagrado e o profano nas “festas de largo” da Bahiabooks.scielo.org/id/83rmh/pdf/serra-9788523212315-03.pdf · No latim eclesiástico da Idade Média, fixou-se o sentido de profanum

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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros SERRA, O. O sagrado e o profano nas “festas de largo” da Bahia. In: Rumores de festa: o sagrado e o profano na Bahia [online]. 2nd ed. Salvador: EDUFBA, 2009, pp. 69-112. ISBN 978-85-232-1231-5. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>.

All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International license.

Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribição 4.0.

Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento 4.0.

O sagrado e o profano nas “festas de largo” da Bahia

Ordep Serra

I. Preliminares

Muitas vezes se encontra usado o termo “profano”como equivalente de “não religioso”. Mas a idéia doprofano só tem sentido numa perspectiva religiosa, ouseja, no domínio fenomenológico em que se opõe à noçãodo sagrado. Essa oposição liga as duas referidas categoriasde forma necessária, numa estreita correlação. Aquelepara quem não há nada sagrado, nada pode considerarprofano. A religião é que divide o mundo nesses doisdomínios. Neste ponto, há voltar a um clássico. Em umfamoso ensaio, Durkheim (1912) assinalou com clareza acorrespondência estreita que vincula estes conceitos:mostrou que seria impensável uma determinação

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absoluta (universalmente válida) do âmbito do sagrado,pois os objetos estimados sacros variam de cultura paracultura, de religião para religião – e concomitantemente,o profano também varia. Por isso mesmo, ele definiu osagrado em termos abstratos, cingindo-se ao determinanteda correlação com seu oposto: caracterizou o sagradocomo aquilo que se põe de parte, que se distingue esepara... do profano: aquilo que o profano, em princípio,não pode tocar, que um tratamento de exceção retira docampo ordinário de seus usos.

Do ponto de vista etimológico, a palavra “pro-fano” encerra uma ambigüidade. A forma originária éprofanum, onde o prefixo pro- se combina ao nome fanum(“templo”, “lugar sagrado”). A ambigüidade acusadaestá em que profanum, além do sentido básico com quepassou às línguas românicas, tem o significadocontrário: também quer dizer “consagrado”. Isso fazlembrar a ambivalência de outro termo latino: sacer(feminino sacra, neutro sacrum) de que derivam as formasportuguesas “sacro” e “sagrado”. Sacer tanto significa“santo”, “divino”, “sublime”, quanto “execrável”,“abominável”.1 Aí (na homóloga anfibologia dos doistermos) se acha mais um sinal da estreita correlação dasidéias de sagrado e profano.

No latim eclesiástico da Idade Média, fixou-seo sentido de profanum que prevaleceria nas formas ro-mânicas derivadas. Nessa altura, em função do costu-me de realizar certas manifestações públicas defrontede igrejas – a encenação de autos e a realização de fei-ras, por exemplo –, o termo veio a (re)ter uma conotaçãoespacial que adiante cairia no olvido. Vou seguir aqui apista do significado que se ocultou.

Começo lembrando colocações bem conhecidasde um grande estudioso do assunto. Segundo mostrou

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Mircea Eliade (1973, p. 28), na ótica religiosa, o espaçonão é homogêneo. Ele ilustrava essa afirmativa com umexemplo simples: convidando a pensar numa igreja emuma cidade moderna. Para um crente, a igreja faz partede um espaço diverso do que a envolve, na rua ondeela se encontra. A porta que abre para a nave do temploassinala uma solução de continuidade. O umbralcorresponde, aí, a uma espécie de fronteira que distin-gue e opõe dois mundos, é o lugar paradoxal onde elesse comunicam e onde pode efetuar-se a passagem deum ao outro: do profano ao sagrado, e vice-versa.

Recordo essas coisas para introduzir a meuassunto. Vou tratar aqui de festas baianas em que aoposição de sagrado e profano, inscrita no espaço (assimcomo no tempo), tem uma importância decisiva: as festasde largo. Por sua origem, elas têm a ver com uma tradiçãoeuropéia, a qual também frutificou em outros pontos daAmérica Latina. No continente americano, ela freqüen-temente sofreu modificações, em contato com outrossistemas rituais, de diferentes culturas. Não me detereinas origens européias do fenômeno, nem tampouco noamplo espetro da variação americana que acabo de evocar:não vou fazer aqui um estudo histórico, nem umaabordagem transcultural. Devo cingir-me ao caso daschamadas “festas de largo” de Salvador e do RecôncavoBaiano, tendo em mente, sobretudo, as do principal ciclofestivo da capital da Bahia: o que começa nos primeirosdias de dezembro e se fecha com o carnaval.

II. A festa de largo: caracterização

Uma festa de largo compreende sempre um rito,ou um conjunto de ritos sacros, cujo foco espacial é um

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templo: eles têm lugar no interior de uma igreja, e/oupara ela se voltam.2 Mas as cerimônias sagradascentradas no templo não constituem a totalidade da fes-ta desse tipo. Ela inclui ainda a realização de outros de-sempenhos, que têm lugar nas imediações do templo –geralmente num largo, como indica sua denominação.3

Esses “outros desempenhos” vêm a ser, principalmen-te, folguedos populares. A festa de largo pode compre-ender ainda uma feira4 e outras promoções: sempre ati-vidades que associam comércio com diversão pública.A periferia do templo é o espaço dos folguedos e do co-mércio associado ao evento.5 Ela não se demarca apenascom elementos da organização urbana permanente dolugar (a disposição que a relaciona com o edifíciocentralizador, o arranjo da área). Não é só com isso quese estrutura o campo da ocorrência. O espaço do largoremodela-se com a inclusão de traços e componentesefêmeros, isto é, com equipamentos e signos festivos (en-feites, bandeirolas, gambiarras etc.), todo um mobiliá-rio de ocasião.

Um traço efêmero característico da configura-ção espacial do largo das festas é dado por um estabele-cimento típico: as barracas, que, segundo o modelo deorigem, vêm a ser casinholas de madeira onde são pre-parados os quitutes e guardadas as bebidas aícomercializadas, além de uns poucos acessórios (gela-deiras, fogões etc.); elas contam ainda com uma peque-na mobília externa para o atendimento da freguesia:mesas e bancos rústicos, tradicionalmente identificadospela pintura, e dispostos diante de cada barraca duran-te a festa. As barracas armam-se no largo e imediações,em lugares predeterminados, alinhando-se em seqüên-cia contínua, geralmente de modo a estabelecer linhasde contorno do espaço festivo.6 Os que exploram esse

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tipo efêmero de estabelecimento, os chamados barraquei-ros, comercializam principalmente bebidas, mas tambémservem comidas (tira-gostos e alguns pratos típicos) e,às vezes, outros itens.

O tempo de duração da festa de largo é variá-vel, e o principal marcador que define essa duração vema ser o rito sagrado.7 Este pode limitar-se a um episódioque define o centro festivo de uma data consagrada, mastambém pode estender-se por um período maior. 8

Insistirei na polaridade ritual que define a es-trutura da festa de largo. Entre os atos solenes que trans-correm no interior do templo e as manifestações popu-lares que sucedem no domínio imediatamente oposto (olargo), há contrastes que podem assumir graus diver-sos. Em muitos pontos, há inversão. A expressão “festade largo” já dirige a atenção para o que ocorre no espaçofronteiro à igreja, mas o que então se dá no largo temsua oportunidade determinada pelo que acontece notemplo.

A maioria absoluta dos freqüentadores das fes-tas de largo só quer divertir-se, mas uma grande partedeles “dá valor” ao que se faz na igreja, ainda que esse“dar valor” se limite a uma vaga atribuição de impor-tância, a um simples testemunho de aceitação da reali-dade do sagrado (um breve ato de fé, com uma declara-ção de respeito distante, em reconhecimento da eficáciado santo e da riqueza de uma tradição)9.

Por outro lado, muitos dos que vão à igreja nãoparticipam das folias do largo.

Porém há os que se fazem presentes nos doisespaços da festa.

A festa de largo pode ser considerada uma situ-ação ritual contraditória: os cenários onde tem lugar cir-cunscrevem procederes opostos, embora igualmente fes-

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tivos. Começarei evocando os tipos de comportamentoadotados nesses dois domínios. O interesse antropoló-gico sugere uma abordagem “de primeira visita”: umaobservação no estilo do persa de Montesquieu. Paramaior clareza, na pequena descrição a seguir destacareios parágrafos que correspondem aos “campos festivos”do templo (a) e do largo (b):

a) Dentro da igreja, durante o ofício sagrado (anovena, a missa) os dizeres solenes das preces e homiliasrecortam-se contra um fundo de silêncio reverente, al-ternando com uma música serena. Os diálogos confor-mam-se a um texto preestabelecido e a um modelo queevita a superposição de falas.10 Estas se limitam, quasepor completo, a fórmulas prescritas: apenas o oficiantepode improvisar o discurso, num determinado momen-to. As fórmulas que se repetem e a alocução que se im-provisa recorrem a uma linguagem “elevada” (não co-loquial) e “pura”. Os papéis dos atores envolvidos(celebrante, acólitos, coro, assistência) acham-se fixados,limitando-se a desempenhos predeterminados: segue-se um protocolo. Os movimentos são restritos, as posi-ções adotadas obedecem a um código que as padronizae também regulamenta sua mudança, a intervalos cer-tos. Os gestos dos fiéis são contidos, limitados a certosmodelos de expressão, e os dos oficiantes se mostramainda mais estereotipados. Procede-se com recato. A co-municação é formal. Os contatos físicos são evitados,tanto quanto possível11 (a não ser em um momento desaudação respeitosa, bem controlada). As atitudesconotam paz, reverência, contrição, profundo respeito...Assim tem lugar, na igreja, uma (e só uma) representa-ção coletiva, executada segundo um roteiro bem conhe-

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cido: o drama de uma liturgia, limitado ao cenário dotemplo, que o circunscreve.

b) No largo, ao vozerio contínuo somam-se asmúsicas em alto volume – músicas populares, de forteapelo sensual e marcada acentuação rítmica, nos padrõesda moda ou de uma tradição jocosa, em seqüência nãoprevisível, brotando de distintas fontes. Os risos e ex-clamações se cruzam, os diálogos se entrecortam esuperpõem; pessoas desconhecidas conversam entre sie tratam-se com expansiva familiaridade.12 Os gestos sãoespontâneos, adequando-se, consciente ou inconscien-temente, à ginga imposta pela onipresença da música(de alto-falantes, trios elétricos, conjuntos de batuqueiros,bandas, coros improvisados etc.); ou seguem o esquemade danças lascivas; ou ganham uma ênfase próxima doexagero, por conta da euforia geral... e dos efeitos dabebida. As moças que passeiam sem boa escolta de ra-pazes “de confiança” sabem muito bem que se sujeitama todo tipo de galanteios: frases picantes, convites amo-rosos muito explícitos, carícias ousadas feitas de passa-gem – e sugestivos beliscões na bunda. Brigas, xingas etumultos não são incomuns. Diversas “dramatizações”podem ocorrer ao mesmo tempo, no espaço aberto darua, e o improviso prevalece nas trocas comunicativas.A linguagem empregada no largo, seja nos diálogos, sejanas letras das cantigas entoadas, é coloquial – e muitasvezes chula.

De um lado, portanto, ordem, solenidade,circunspecção, recolhimento, decoro, discrição, atitudepública pacífica e reverente, com a atenção chamada parao eterno; do outro, conduta informal e espontânea,sensualidade, irreverência, disposição promíscua e

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permissiva, atitudes provocantes (de intenção erótica ouagressiva), profusa embriaguez, intermitência de conflitose tumultos – com toda a atenção voltada para o passageiro.

Em grande medida, as linhas de conduta pare-cem inverter-se quando se passa de um domínio ao ou-tro, de um pólo a outro da festividade.

As atitudes dos devotos no templo e as dosfarristas na praça têm pouca coisa em comum, mas têm:

1) o fato de não serem ordinárias, fugirem à ro-tina do dia a dia, correspondendo a uma circunstânciaespecial;

2) o fato de que, em ambos os espaços, um con-torno dramático se associa aos gestos dos envolvidos.

O colorido “teatral” das atitudes é mais percep-tível na igreja. No entanto, o bom observador o advertelogo no largo, onde todos se sentem parte de um espetá-culo a que também assistem.

Dá-se ainda uma outra homologia entre os dois“cenários”, do ponto de vista simbólico. O templo é per-cebido como uma Casa extraordinária: a “Casa de Deus”,que abriga personagens “do outro mundo”: o divinoSenhor, e os santos (mais os defuntos aí sepultados). Emcerto sentido, vem a ser o oposto de uma moradia co-mum: pertence a quem não é da terra. Afora Deus, sómortos “residem” nela. Aí os fiéis se sentem, ou pelomenos se afirmam, irmãos, mas adotam uma condutacerimoniosa, ao contrário do que sucede nas casas ondesão realmente “familiares”.

Já no largo das festas, o espaço que é normal-mente rua tem alguns usos domésticos: aí se come e bebe– geralmente em grupos de pessoas amigas, que se tra-tam “sem cerimônia”, mas sempre na proximidade de

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pessoas estranhas, de modo que entre elas podem vir aestabelecer-se relações próximas, até íntimas (em todo ocaso “sem muita cerimônia”, também). Nessa rua sim-bolicamente alterada podem até acontecer desempenhosque no cotidiano requerem muita privacidade. 13

Pensando nos estudos de Da Matta (1985) sobreos valores simbólicos do binômio casa x rua na ideologiabrasileira, eu diria que nas festas de largo de Salvador,nos dois espaços simétricos onde ela ocorre, esses“campos” se aproximam pela homologia do uso“aberrante”, ao divergir da configuração normal de cadaum deles. O templo é uma Casa “alterada” no sentidoda estranheza do sagrado: pertence a seres do outromundo, requer condutas cerimoniosas o tempo todo,abriga permanentemente defuntos em vez de vivos (quesó a visitam). Já a rua se reveste de uma “domesticidadeanormal”: aproxima estranhos, produz intimidadespúblicas ou semi-públicas.

O certo é que os comportamentos adotados notemplo e no largo são muito nitidamente simétricos, emdiversos aspectos. Um bom “persa de hipótese” nãodeixaria de ficar espantado de ver grupos reunindo-seem espaços contíguos, numa ocasião especial, para pro-ceder de formas tão opostas. Certamente acharia aindamais estranho ver que alguns circulam nos dois ambi-entes, mudando de água para vinho na passagem.

Talvez me objetem que é um exercício fútilcontrastar as atitudes adotadas dentro e fora da igreja,numa festa dessas. Talvez se alegue que eu poderia obteruma série de contrastes ainda mais impressionantecomparando o que se faz num palácio, numa cerimôniacívica, e o que se pratica num parque de diversõespróximo, na mesma hora. Mas a objeção seria inócua,por desconsiderar um ponto crítico: numa festa de largo,

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os eventos decorridos na praça e no templo pertencema um mesmo conjunto de sucessos, a uma contraditóriaunidade ritual. Na Bahia, ninguém admitirá que umafolia realizada numa praça qualquer, sem santo cele-brado na ocasião, seja uma “festa de largo”. Ainda queuma folia se dê no tipo de praça mais especificamentechamada de largo – com uma igreja como edificaçãodominante –, não tendo a complementá-la algum tipode rito sacro, ela não será “festa de largo”, mas apenas“de rua”. Por outro lado, claro está que uma celebraçãoencerrada nos limites do templo, sem o complementode folguedo, não pode ser categorizada como “festa delargo”.

Mas não é só isso... Dá-se que a oposição ritualentre os espaços da igreja e do largo veio a ser efe-tivamente marcada, na cultura baiana, através deprocedimentos simbólicos expressivos, que envolvemo jogo das categorias de sagrado e profano. Algunsainda se acham em vigor. Outros entraram (ou começama entrar) em desuso. Atribuo um significado históricoao abandono progressivo desses procedimentos, ao fatode que eles perdem impacto ou seus vestígios sedebilitam: assim o sentimento religioso se enfraqueceno horizonte das festas de largo. Isso também tem a vercom uma mudança no rito de carnaval, que o afeta domesmo modo. Mas a metamorfose não se completou.Uma transformação dessa ordem não se dá de uma vez.Para apreciá-la melhor, é necessário um recuo...

Os sucessos que evocarei primeiro pertencema um passado mais ou menos recente. Logo depois,tratarei de ritos que ainda se realizam. Considerareia oposição de sagrado e profano no espaço marcadopelo tempo festivo, segundo a perspectiva de umatradição cambiante.

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III Marcadores simbólicos,espaço e tempo ritual.

“Zero Hora”, Festa da Ajuda,ritos do trio elétrico : limiares

Até coisa de trinta anos atrás, um evento curio-so acontecia todo ano, às portas da igreja da Barroquinha,na Baixa dos Sapateiros (no Centro Histórico da Cidadedo Salvador), por volta da meia noite do sábado de car-naval: um bloco muito popular aí se reunia, à frente deuma multidão de atentos foliões. Os membros do grupocarnavalesco, vestidos com suas fantasias, mantinhamuma formação de cortejo, e todos esperavam, mais oumenos quietos, em silêncio relativo – sem cantar e dan-çar, sem batuque – que os ponteiros assinalassem a horazero. Quando isso acontecia – nesse exato momento –, abatucada rasgava, foguetes espoucavam e os participan-tes do bloco começavam a cantar um belo samba, comqualquer coisa de hino:

É meia noiteA capela bateu [...]

Então, em meio a gritos, aplausos, pulos, risos,casais beijavam-se, amigos cumprimentavam-se na mul-tidão com abraços comovidos, e via-se em todos umaeuforia generosa, como no romper do Ano Novo.

No que o Zero Hora saía do largo para as aveni-das, a massa frenética o acompanhava, já em plena folia.

Posso dizer de experiência própria que uma belaemoção envolvia os assistentes a essa cerimônia.

Merecem destaque certos elementos da pequenarepresentação: a reunião de foliões em atitude de expec-tativa diante de uma igreja, seu cuidado em aguardar o

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instante exato de um toque de sino associado à definiçãode um tempo (ou entretempo) crítico, liminal – a hora zero,aquela que parece não existir senão como um limbo entreo dia passado e o por vir – e (em contraste com essacontida espera) a explosão entusiástica que finalmenteocorria. Esses elementos compõem um quadro muitosugestivo: a dramatização de uma passagem.

Sublinho mais um aspecto da cena evocada: a ri-gor, os membros e adeptos do Zero Hora começavam afolia dando as costas à igreja. De um ponto de vista sim-bólico, o espaço extra-muros da capela era assim implici-tamente contrastado com seu interior: o largo (de que obloco “transbordava” ao toque liberador) de certo modose “estendia” a toda a cidade, ou melhor, ao corpo dasruas onde o carnaval é vivido; e o recinto fechado atrásdas portas da Barroquinha era mais que a nave da velhacapela: figurava os espaços sagrados de Salvador, suasinúmeras igrejas. Essa divisão se fazia sensível por umcorte no tempo: o bater do sino que dava a meia noite.

A espera diante da porta sagrada já implicavaum afastamento preliminar do mundo ordinário, donormal cotidiano: para que o rito ocorresse, os mem-bros do bloco deviam arrumar-se, vestir suas fantasias,compor a “bateria” e dispor-se, com antecedência, emformação de cortejo, no lugar oportuno (se assim possodizer...). Quem queria assistir a essa função devia tam-bém acomodar-se à exigência do prazo, arrumando-se atempo: os preparativos do carnaval tomavam assim, paratodos os envolvidos, um aspecto algo ritualizado, emface do momento posto em destaque.

Mas não era só isso. Requeria-se ainda uma pe-quena ficção “teatral”, visto como o rito do Zero Hora sórepresentava o início do carnaval baiano para quem opretendia, decidia e convencionava: enquanto os mem-

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bros do bloco e sua ansiosa assistência aguardavam oinstante “definitivo”, já muitos outros foliões brincavampelas ruas da cidade... Na porta da capela, fazia-se deconta que a festa não tinha começado, para começá-ladevidamente.

O ato protagonizado pelo Barroquinha Zero Horaqualificava o domínio onde os foliões assim ingressa-vam (rua/carnaval) opondo-o, em termos simbólicos,ao domínio de que eles se representavam como egres-sos (igreja/mundo dos valores consagrados): um pontoa que, em princípio, deveriam regressar na Quarta-Fei-ra de Cinzas.

O Barroquinha Zero Hora deixou de existir há trêsdécadas. Faz tempo, também, que o grande Bloco Apachesdo Tororó não se reúne, para o início do desfile, defronteà igreja do bairro, como antes fazia a (extinta) Escola deSamba local. Mas o significado da cerimônia acima des-crita prende-se a um elemento importante da tradiçãodas festas públicas da Bahia. Para confirmá-lo, evocareioutro festejo – e de novo recuando um pouco. Passareiao Recôncavo.

Na cidade de Cachoeira, até coisa de umas quatrodécadas atrás, as celebrações de Nossa Senhora da Ajudaocupavam um pequeno período festivo, no início do mêsde outubro, com um misto de pompa religiosa e carnaval:além da novena e da missa solene que era celebrada nadata magna, aconteciam pregões e folguedos de rua nessatemporada. A tradição da efeméride é antiga, vem de erascoloniais. Houve tempos em que se interrompeu. Voltoua realizar-se, sem o mesmo brilho de outras épocas. Notempo a que me reporto14, o movimento da grande festaprincipiava com a Alvorada: repique de sinos, estrondode foguetes, toque de clarins e tambores em frente à Casa

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da Virgem. Desde então começavam a aparecer na rua oscaretas, os mandus, os grupos de foliões fantasiados quetomavam conta da cidade.15 Os mais estranhos, sem dúvida,eram os diabos: homens inteiramente pintados de preto (àexceção dos lábios, transformados em beiçorras cor defogo), metidos em calções vermelhos muito justos, comrabos de boi presos aos fundilhos, e tendo na cabeçapequenas toucas escuras, com chifres cômicos. Armadosde açoites, espetos, chocalhos, esses devotos saíam embandos para fazer suas arrelias pelas ruas da cidade. 16

Como se vê, a festa da Ajuda se desenrola-separte na rua, parte na igreja, onde tem momentos decisivosritualmente assinalados: (1) a Alvorada, defronte da igreja;(2) a celebração de ofícios religiosos, no interior dotemplo; e (3) a Lavagem, realizada sempre às seis horas datarde, quando o cortejo das baianas com a água lustral,seguidas por devotos foliões, por toda uma multidãofestiva, sobe a colina onde se acha o templo, para lavar-lhe ritualmente o adro.Os mascarados comuns sempreparticiparam desse episódio festivo, mas os diabos nãopodiam aproximar-se da igreja com tão imprópriafigura.17

Como se percebe, na celebração cachoeirana deNossa Senhora da Ajuda, que dantes envolvia um gran-de carnaval (hoje enfraquecido), a oposição entre os doisespaços da festa via-se sublinhada com o máximo vigorpossível: dentro do santuário, reinava a Mãe de Deus;na rua, os diabos faziam suas reinações...

O Zero Hora acabou, e hoje o Carnaval de Sal-vador “pega fogo” muito antes do sábado. A folia car-navalesca desta metrópole também termina um bocadotarde, para desgosto do Arcebispo: encerra-se já em ple-

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na Quarta de Cinzas, com sol alto. Mas ainda aconte-cem ritos que mostram a permanência de vestígios domesmo código. Curiosamente, eles envolvem a grandemáquina de folia que muito contribuiu para transfor-mar o carnaval baiano numa festa de massas gigantes-ca, dissolvendo várias características tradicionais do fes-tejo. O testemunho é de Fred de Góes, em seu livro so-bre o trio-elétrico (1982, p. 110):

Seria também às vésperas do carnaval de 1981, mais preci-samente, na quinta feira que antecede o carnaval, que euteria a oportunidade de assistir, pela primeira vez, um dosmais importantes espetáculos de sincretismo cultural quetem lugar em Salvador. Esse espetáculo ocorre desde osanos 50, embora seja de conhecimento somente dos mora-dores da Ribeira. Trata-se da bênção do trio elétrico de Dodôe Osmar diante da Igreja do Bonfim.

Tão logo o caminhão fica pronto para fazer o carnaval, eisso ocorre geralmente na madrugada do sábado ou dasexta feira gorda, o gigantesco veículo é levado para a por-ta da igreja do Bonfim e lá é testado o som e os mecanismosde iluminação.

O espetáculo tem início com todos os músicos a postos,sobre o caminhão iluminado, executando o Hino do Se-nhor do Bonfim para então começar a tocar, sob proteçãosagrada, o profano repertório.

Logo nos primeiros acordes pode-se observar o início deum outro espetáculo: a saída, ainda em trajes de dormir,dos moradores da proximidade da igreja que, às centenas,abandonam suas casas já pulando ao ritmo do trio.

Talvez seja necessário acrescentar um dado. Esteesclarecimento me foi feito, primeiro, por moradores dasvizinhanças da basílica; tive depois sua confirmação porprotagonistas do curioso rito. Contaram-me no Bonfimque outros trios imitavam, também nisso, o de Dodô e

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Osmar... Explicaram-me ainda que a bênção não era ofi-ciada por um sacerdote: a turma do trio consideravaabençoado o carro pelo simples fato de levá-lo à “sagra-da colina”, inaugurando aí seu desempenho. Músicosde um desses grupos disseram-me que “davam um tem-po” (esperando à porta da igreja) para que o Senhor doBonfim “viesse” e abençoasse sua máquina. Quandoachavam que isso já tinha acontecido, partiam tocandocom grande entusiasmo.18

Em outro estudo (SERRA, 1996, p. 230), referi-me a um rito semelhante, simétrico, que tem lugar nãono começo, mas no fim do carnaval: no termo do já famo-so encontro dos trios elétricos, na Praça Castro Alves. Trata-se de um rito de encerramento da folia carnavalesca, quan-do os músicos tocam e os foliões entoam um hino de pre-ce, celebrando o que há de mais sagrado para a maioriacatólica dos foliões de Salvador: o Senhor do Bonfim, opadroeiro da cidade, o próprio Deus. Citarei a breve des-crição que fiz deste episódio:

[...] os trios elétricos rivalizam durante os dias de agitaçãofestiva, procurando mostrar-se cada qual mais empolgan-te, bonito, frenético e capaz de arrastar a multidão, que elesdividem em grandes rios de gente; porém, no encerramentoda folia, os maiores trios se encontram na Praça CastroAlves e realizam uma espécie de desafio cordial em quealternam a tocar com virtuosidade para o povo reunido, epor último executam juntos o Hino do Senhor do Bonfim,celebrando uma confraternização de que os foliões partici-pam reverentes e emocionados. Não há dúvida de que setrata de um rito religioso.

No apagar-se do festejo, o sagrado reaparece...

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IV. Festas de largo e carnaval:reminiscências de um

calendário violado

Em Salvador, o carnaval situa-se no termo de umlongo ciclo de celebrações que principia em dezembro.Nele “desembocam” as festas de largo, que começam noprimeiro dia do último mês do ano (com o início da Festada Conceição). Depois disso, outras grandes festividadespúblicas só vão acontecer, na capital baiana, durante aSemana Santa. As festas da Semana Santa se passambasicamente dentro das igrejas, ou tendo-as como focodos ritos sacros em que consistem: envolvem missas,ofícios religiosos diversos e procissões. Só um apêndiceprofano as tangencia: a queima do judas, no Dia daRessurreição.

No passado, todo um campo da heortologiasoteropolitana era configurado através do jogo das re-lações entre três de seus momentos19:

(1) o ciclo das festas de fim de ano, que se esten-de dos primeiros dias de dezembro até o carnaval;

(2) o período carnavalesco;(3) a Semana Santa.

A conexão que antigamente estruturava essehorizonte ritológico rompeu-se. O cânon litúrgico daIgreja Católica deixou de ter a importância que antespossuía para a definição do tempo social, enfraquecen-do a cadeia de ritos acima descrita. Hoje, a relação entreo [antigo] “intervalo” carnavalesco e a quaresma é ge-ralmente desconhecida. Continua valendo apenas o nexoque relaciona seqüencialmente as festas de largo com ocarnaval, pois esta seqüência assinala um período ca-

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racterístico, oposto ao corpo rotineiro do ano: o verãofestivo de Salvador. Mas quando se recua ao quadrooutrora vigente, emerge uma correlação significativaentre os três segmentos heortológicos acima discrimi-nados: logo se adverte que as festas de largo compreen-dem desempenhos de sentidos opostos, como são a “fo-lia” e a “reza”, englobando manifestações verificadasumas dentro, outras fora dos templos (nos seus arredo-res), enquanto o carnaval é fundamentalmente uma fes-ta de rua – não inclui nada que se passe nas igrejas – eos ritos da Semana Santa celebram-se apenas nos santu-ários (na esfera de duração que propriamente lhescorresponde, não há folguedos de rua). 20

As festas de largo parecem tornar-se mais ex-travagantes, com o progressivo eclipse da sensibilida-de religiosa que nelas fazia (para alguns, ainda faz) aarticulação entre o sagrado e o profano. Nos últimostempos, a dimensão de folia dessas festas cresceudesproporcionalmente. Tornando-se um fenômeno demassa, elas se carnavalizaram muito... A separação es-perada já se faz, mas não por completo. Isto que pareceaumentar-lhes a extravagância.

V. O limiar da lavagem

Abordarei agora a figura espacial de umarepresentação que associa o sagrado e o profano nocontexto de grandes festas populares baianas: o rito daLavagem. A mais característica e paradigmática Lavagemde Salvador vem a ser a do Bonfim. Esse rito há muito éprotagonizado pelas baianas, isto é, por mulheres negras,sacerdotisas do candomblé, que, vestidas com trajestípicos, transportam processionalmente os vasos com

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água de cheiro para a lustração do adro da basílica deItapagipe. No passado não muito longínquo, o chão dotemplo todo era festivamente lavado pelo povo devoto.Mas as autoridades eclesiásticas acabaram por proibi-lo: no dia da Lavagem, as portas da igreja são fechadas.

O fato de que hoje são sacerdotisas do candom-blé as protagonistas do ritual da Lavagem induziu muitosa pensar que esse rito foi criado pelo povo dos terreiros.Mas trata-se de uma velha tradição ibérica – que na Bahiacombinou-se à lógica do culto do candomblé, segundoa qual foi reinterpretada.

Em Portugal, era comum pessoas devotasfazerem a promessa de lavar uma igreja, em pagamentode graças solicitadas ao respectivo orago. Já em terraslusitanas, essas manifestações de fé acabaram porcarnavalizar-se, provocando as interdições eclesiásticas.Foi isto mesmo que aconteceu aqui...21 As descriçõesexistentes dessa devoção, conforme ela se realizava noséculo passado, sugerem que então se dava mesmo umpequeno carnaval dentro do santuário. Aqui como lá,tendo perdido o controle do rito, a igreja reagiu: em 1889,o arcebispo dom Luis Antonio de Sousa proibiu aLavagem da Basílica do Bonfim. O povo revoltou-se.Foi preciso que a polícia (a Guarda Cívica) interviessepara garantir o acatamento do interdito. A Lavagem doBonfim não acabou de todo, mas passou a limitar-se aoadro e às escadarias do templo.

A proibição teve conseqüências que o episco-padonão previu: limitada a lustração ao adro, acentuou-se, navisão religiosa do povo, o sentimento da significatividadedesse espaço ambíguo do umbral, e consolidou-se a idéiade uma alternativa aberta no cerrar-se da porta católica:o rito do candomblé surgiu como a via disponível parao sacramento, quando as sacerdotisas negras assumiram

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o desempenho dessa reduzida Lavagem... então solenizadae reinterpretada segundo os cânones do seu culto, em queo simbolismo dos limiares é muito acentuado. Em outroestudo (SERRA, 1995, p. 237 sq.), tratei da base sincréticadesta ligação. Recapitularei de um modo breve algunspontos, e acrescentarei uma ou duas observações.

A identificação entre o Orago da colina doBonfim e Oxalá estabeleceu-se a partir de analogiascogentes. No século passado, em Salvador, a maioriados escravos africanos se compunha de nagôs, quecelebravam em sua terra o Orixá Criador (Orixalá, Oxalá),atribuindo-lhe a condição de Filho do Deus supremo eo status de Pai de todos os orixás, de todos os santos (comoeles aqui vieram a chamar-se), prestando-lhe um cultoespecial em colinas: de acordo com um seu mito, quandoOxalá fez emergir a terra do seio das águas do pri-mórdio, despontou primeiro uma elevação, considerada“o umbigo do mundo”. É Oxalá o senhor do montesagrado22, e também das águas fecundas, festejado comritos lustrais... ritos que se caracterizam, nos terreirosdo candomblé, por uma serena solenidade.

No Bonfim, o rito lustral em si mesmo foi sole-nizado quando as baianas passaram a protagonizá-lo: eleé cumprido por suas oficiantes com unção e reverência.A folia fica por conta do povo ao redor.

As autoridades eclesiásticas católicas muitasvezes entenderam a Lavagem como um ato profano rea-lizado indevidamente num contexto religioso, no do-mínio do sagrado. Mas é preciso distinguir. Quando sefala na Lavagem do Bonfim, pode-se ter em mente duascoisas, associadas por metonímia: uma jornada festivae o rito lustral que é seu clímax. A jornada festiva com-preende, no mínimo (na sua forma tradicional):

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(1) um cortejo, uma espécie de procissãojubilosa, iniciada aos pés da Basílica da Conceição, poruma multidão alegre que, cantando e bebendo, a pé,em carroças enfeitadas, ou em caminhões “fantasiados”,acompanha as baianas até o Bonfim;

(2) o rito lustral celebrado pelas baianas, no adroda igreja;

(3) a farra que se segue (e precede, e é concomi-tante): os comes-e-bebes nas barracas, as danças efolguedos nas proximidades da igreja, em avenidas daCidade Baixa, e mesmo além.

O ato que as baianas celebram é religioso, umacelebração do sagrado na fronteira com o profano. Doponto de vista de seu culto, nada mais santo que umrito dedicado ao Criador, mesmo que seja tão simplescomo este: um breve derramar de água de cheiro dospotes floridos, um rápido movimento de vassouras agi-tadas em esfregadelas vigorosas, entre cânticos.

Muitos do que assistem a essa cena ritual dãovivas ao Senhor do Bonfim, e rezam. Alguns procurammolhar-se com um pouco da água que as boas senhoraslhes vertem na cabeça, como penhor de boa sorte. Ospolíticos aproveitam-se do momento para mostrar-sepopulares: fazem questão de aparecer na TV commáscaras devotas, procuram as fotos, exibem-se aosjornalistas; em busca de destaque, às vezes tomamverdadeiros banhos da água florida. Seu fervor nãoparece muito sincero... Mas muitas pessoas do povoemocionam-se de verdade com o rito lustral da SagradaColina. À chegada do cortejo, quando a Lavagempropriamente dita começa, canta-se com emoção o hinodo Senhor do Bonfim. Uns pulam, outros se benzem,outros invocam Orixalá, outros brincam e riem, enquanto

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pedem graças. As baianas são aplaudidas. Há pessoasque entram em transe, ou chegam perto disso. Namultidão, há um sentimento difuso, denso, de amorautêntico pelo Santo – misturado com a vontade defoliar, dançar, namorar, beber, comer, divertir-se... Nãoduvido nem um pouco da sinceridade dos queaplaudem o Senhor do Bonfim e caem na farra, dosbêbados que invocam o Velho com fervor trôpego e logodepois tentam uma carícia furtiva na bela mais próxima,ou entornam o que restou na lata de cerveja. Nãodescreio da fé de quem diz: – “Puta que pariu, que festalinda! Viva o Senhor do Bonfim!” – ou reza – “Ô Velho,vê se me dá um ano melhor! Tá me esquecendo? Quêque é isso, meu Pai?” –. Com certeza é verdadeiro osentimento de quem faz ao Santo uma confissão comoesta23 : – “ Tou aqui aos tombos, meu Senhor do Bonfim!Me ajude! Eu não presto, mas eu Te amo!”

Alguns rezam com profunda piedade, na portado templo, trocando empurrões, e vão logo beber nasbarracas. A brincadeira continua pelo resto do dia, e varaa noite, nos arredores da Sagrada Colina, com muito sam-ba, cachaça, zoeira, bêbados, amores rápidos, brigas,xingas, roubos, confusões. Tudo isso integra a festa daLavagem. Mas o rito que lhe dá o nome é singelo e fervo-roso. Sua realização acentua com clareza o significadoprofundo do umbral que reúne os espaços então opos-tos: destaca a entrada/saída do templo, o valor das por-tas nesse tempo fechadas – pois seu fechamento é arre-batado por um sentido novo, que dele se apropria. Aágua que rola do adro e das escadarias (que antes sederramava do próprio corpo da igreja) torna sensíveluma fronteira fecunda, volta a inaugurá-la. Caracteriza-se assim a liminariedade da festa que tem como focoritual um limiar.

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Num estudo há pouco citado, observei24 queexistem diversos componentes de inversão na devoçãocatólica luso-brasileira da lavagem de santuários. Des-taco dois aspectos:

(1) enquanto nos ofícios regulares da Igreja opovo acorre ao templo para purificar-se, numa “Lava-gem”, o templo é purificado pelo povo;

( 2) os sacerdotes e acólitos que protagonizamos ritos da liturgia canônica ficam ausentes do cumpri-mento desse tipo de promessa: então seu rebanho temtoda a iniciativa, ao contrário do uso normal.25

Outros fatores de carnavalização que apontei,além dessas inversões acentuadas pela “anarquia” pro-visória do rito, derivariam da azáfama do serviço feitoespontaneamente, com alegre entusiasmo: isso bastapara qualificá-lo como um anti-trabalho, numa culturaem que a idéia do trabalho liga-se com a de obrigaçãopenosa, imposta, humilhante até.26

A limpeza festiva da igreja era um serviço exe-cutado na base do improviso, de maneira algodispersiva, por muita gente a acotovelar-se... coisas quetornavam inevitável molharem-se os devotos uns aosoutros. Isso já constituía um ingrediente “carnavales-co”: recorde-se que no Entrudo – o carnaval antigo dosportugueses, e do Brasil –, molhar-se uns aos outros (ea quem quer que pegassem desprevenido) era a grandediversão dos foliões.

Como se vê, nesse rito oriundo de promessasdevotas, a vivência do sagrado dá-se de modo particu-larmente ambíguo, no limite de sua ligação com o pro-fano. Mas importa agora considerar uma situação emque ele se transfere plenamente para o campo da folia,convertido em mock-rite.

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A lavagem do Bonfim não é a única em Salva-dor.27 Mas veio a tornar-se um paradigma. Além dalustração ritual dos adros de certas capelas, surgiramnovas e insólitas “lavagens”, muito especiais. Elas sãoparódicas: extrapolam o domínio sacro, afastam-se desua fronteira... sem perdê-la de vista: só a lembrançairreverente do modelo sustenta a cópia cômica. Essaslavagens constituem mimos jocosos da devoção, trans-posta em pura folia: um mock-rite que se repete em di-versos lugares de Salvador, geralmente no fim do ano,nas proximidades ou no meio do carnaval.

Darei um exemplo recente: há coisa de uns cin-co anos, moradores da rua Oito de Dezembro, no bairroda Barra, em Salvador, resolveram organizar uma festaem seu logradouro. Oito de dezembro é a data da Con-ceição. A festa burlesca da rua da Barra, que se realizano mesmo dia, tem no seu horizonte de referência, por-tanto, aquela cujo centro se acha na basílica das cercani-as do porto, na Cidade Baixa. Mas na Barra, é só folia...

Tudo começou por iniciativa dos fregueses deum barzinho (o Bar Pingüim) da ladeira que forma aque-la rua: eles idealizaram uma lavagem de seu ponto deencontro, vestindo-se de baianas para protagonizar a cenado rito cômico. Os indivíduos que fazem esse papel sãoquase todos homens de meia idade, casados, pais defamília. São ajudados por suas mulheres notravestimento burlesco.

O que acabo de citar é, como disse, um exemplorecente de paródia do rito da Lavagem; outro bemanterior, e de fama um bocado maior, ocorre em plenocarnaval: a Lavagem da escadaria do antigo prédio daBiblioteca Pública (hoje Palácio dos Esportes), que ficana Praça Castro Alves – um dos pontos quentes docarnaval baiano. Aí, na segunda-feira da folia, gays

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fantasiados, travestidos, reúnem-se, desfilam imitandoas baianas, e lavam os degraus do edifício, sob aplausosdelirantes dos foliões. No começo, a polícia intervinha,tentando acabar com a brincadeira das “bichas”. Mas opúblico reagia: os policiais eram vaiados de formaimplacável pela massa carnavalesca. Sua simplesaproximação já provocava um clamor gaiato:

– Lá vêm as enrustidas!Que eu saiba, os PM nunca conseguiram impe-

dir esse ritual. Até já desistiram de participar do even-to... Mas o que pensam dele seus protagonistas? Talvezse imagine que sua irreverência define uma atitudeoposta aos valores religiosos, e que eles menosprezamo rito imitado em sua paródia. Isto parece óbvio. Masnão é certo. Conheço um dos instituidores da lavagemfoliã: um artista plástico de renome, o pintor Babalu.Trata-se de um homem profundamente religioso, quecultua Oxalá e o identifica com o Senhor do Bonfim.

VI. A tradição alterada:mudanças no tempo festivo

No mundo todo, há muito que o carnaval sedestacou do contexto religioso onde os marcos referen-ciais de um calendário litúrgico o assinalavam comouma espécie de intervalo profano. Se, na Bahia, a relaçãoentre o período carnavalesco e esses marcos se fezsensível por mais tempo, isto se deve à existência, nacapital baiana, de um grande ciclo de festas de largo,caracterizadas por envolverem elementos de folia e atosde culto, precedendo o carnaval: assim, era possível elógico situar o carnaval, na heortologia da cidade, entreessas grandes festas e uma série de celebrações que

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envolvem apenas atos de culto. No passado remoto, naEuropa (e também na América Latina), o carnaval eraplenamente caracterizável como uma festa profana, numantigo e fundamental sentido do termo: o períodocorrespondente era definido por oposição a um temposagrado, contrastava com períodos referidos a ritossacros. Marianne Mesnil (1974:9-10) observa que aetimologia mais verossímil do nome dessa festividadefoliã reporta-se à expressão carne levaris, “qui renvoie àun contexte de permissions et d’interdits écclesiastiquesliés au cycle liturgique des Pâques.” É claro que isto jánão ocorre: o carnaval não é mais uma festa “profana”em sentido estrito – no sentido em que este conceito vema ser oposto e correlato ao de sagrado, ligando-se um aooutro de maneira indissolúvel, lógica e necessária. Ocarnaval secularizou-se decisivamente, perdendo osvínculos que o uniam (embora em termos antitéticos) aum campo religioso. Apesar disso, no carnaval da Bahia(e por certo em outros, pelo mundo afora), ainda se podeencontrar alguns traços da oposição sagrado x profano.

Também no caso das festas de largo baianas, estáem curso um vigoroso processo de mudança no mesmorumo: isto se evidencia no distanciamento cada vezmaior entre os campos simbólicos correspondentes aosdomínios opostos onde elas transcorrem (o templo e arua – enquanto lugares do festejo, evidentemente): istose vê no fato de que os acontecimentos do largo tendema assumir independência total com respeito aos ofícioscelebrados na igreja, de modo que a oposição destesespaços faz-se progressivamente menos complementar,do ponto de vista simbólico: em muitos casos, a ruptu-ra é quase completa... As festas de largo do ciclo de fimde ano de Salvador tornam-se, a rigor, pré-carnavales-cas, em todos os sentidos.

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Esta mudança está associada à massificação dofenômeno, que já não ocorre num contexto predominan-temente comunitário. O círculo da comunidade festeiradilui-se num horizonte maior: hoje é uma multidão emgrande medida amorfa que acorre a essas festas, consu-mindo aí diversões produzidas à sua escala, e de acordocom o código da “cultura de massa”. O espaço quecorrespondia a um circuito tradicional agora comportaa superposição de distintos canais de difusão demensagens variadas. A própria tradição torna-se umbem de consumo, levado a mercado pelas agências deturismo.

Ainda assim, a festa de largo baiana não podeser entendida sem que se interrogue o seu backgroundtradicional. Tipologicamente, ela corresponde ao mo-delo de velhas celebrações católicas populares européi-as, realizadas em dias santos, em centros urbanos, comgrande concentração de povo, intensa movimentaçãocomercial e lúdica: um paradigma cristalizado na Ida-de Média, mas que se manteve com vigor não só naModerna como bem depois – apesar dos esforços siste-máticos empreendidos pela Igreja e pelo Estado pararestringir esses festejos, que sempre ameaçavam esca-par-lhes ao controle... Esse trabalho de repressão veio aser em grande medida vitorioso; mas em alguns luga-res as festas do gênero sobreviveram, preservando mui-tos dos traços que as faziam transcender o raio das ins-tituições envolvidas em sua origem.

VII. Multifesta

Uma característica importante das festas de lar-go baianas vem a ser o sincretismo que as afeta, em maior

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ou menor medida: elas são realizadas, interpretadas evividas à luz de diferentes perspectivas religiosas – se-gundo crenças, valores, doutrinas e símbolos diferen-tes em sua origem, mas que se combinam aos olhos deexpressivos segmentos da população.

Torno a um exemplo notável: como já se obser-vou aqui, parte das pessoas que acorrem ao Bonfim, nosdias festivos consagrados ao Patrono de Salvador, vaitambém homenagear Oxalá, o orixá identificado com oOrago da igreja da Sagrada Colina.

Na Festa de Santa Bárbara, a maioria expressi-va dos fiéis se constitui de pessoas ligada ao candom-blé. A Santa é ovacionada na sua procissão aos gritos de– Eparrei! –, ou seja, com a saudação ritual de Iansã... emesmo dentro da igreja, alguns entram em transe, pos-suídos pela deusa.

Na Festa de São Lázaro, são os filhos do orixáObaluaê que enchem o santuário católico...

A incidência do sincretismo é mais um fator,entre outros, da complexidade simbólica desse tipo defesta, que supõe a vigência de consensos significativos,mas também envolve, por outro lado, um fluxo de sen-tidos e interesses diversificados, fazendo-se interpretarpor seus participantes de modos que diferem e variam.

Vejamos: vão às festas de largo baianas – pelomenos às maiores – tanto gente devota como pessoas quenão têm qualquer preocupação religiosa e circulam só napraça, com o único intento de divertir-se. Nesse grupo dosque só querem brincar, há quem chegue ao adro e se per-signe, “por via das dúvidas”; há quem aguarde na rua aprocissão (bebendo, brincando, ou “curtindo ressaca”) paraaplaudir o santo com entusiasmo... Mas a imensa maioriadesse contingente não liga para os ritos sagrados; nemmesmo se dirige ao templo, ainda que folie bem perto.

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Dentre os crentes, há os que entendem essascelebrações exclusivamente segundo a regra católica; háos que cultuam os santos do cristianismo ao par dosorixás; e há os que, na prática, não cultuam nem unsnem outros, mas os respeitam e identificam. Estes últi-mos podem nem ir até o adro da igreja cujo santo feste-jam pulando e bebendo; podem, também, não freqüen-tar terreiros... mas declaram com ênfase a sua reverênciapelos oragos dos templos em festa, e pelos orixás “cor-respondentes”. Além disso (vale repetir), algunsfreqüentadores das festas de largo participam apenasdos ritos sacros do templo, enquanto outros – a absolu-ta maioria – se limitam à praça da farra, e outros aindacirculam nos dois espaços.

VIII. Folia e religião:arqueologia da festa

A oposição dramática que relaciona os camposfestivos da igreja e do largo é um traço encontrável nomodelo antigo. Nas festas-de-santo da Idade Média (que,em grande parte da Europa católica, conservaram seufastígio e suas características populares, “pagãs”, pelomenos até a primeira metade do século XVII),28 era gran-de a folia dos largos, tomados por um comércio inten-so, por danças e espetáculos, jogos, comes-e-bebes etc.Por vezes, a brincadeira invadia o campo dos ritos sa-grados: algumas procissões foram bastante “carna-valizadas”...29 e não era incomum a irrupção de dançasjocosas nas igrejas. Em suma, a folia então integravamuitas celebrações cristãs, correspondendo a uma afir-mação do povo, das culturas populares.30 Assim, na Ida-de Média, os rituais solenes das igrejas geraram seu

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oposto festivo, das portas para fora – no espaço profa-no. Basta que se recorde o Risus Paschalis... ou senão aFesta do Asno, em que um folião oficiante, fantasiado depadre, mas com cabeça de burro, em face de um “altar”de comédia zurrava sua paródia de missa cantada... ouainda a Festa Stultorum, isto é, a Festa dos Doidos (ou dosFoliões), geralmente realizada no início do ano, na épocamedieval, e que perdurou até o século XVI, apesar dascondenações da Igreja e do Estado. Nesse pequeno car-naval,

Até padres geralmente piedosos e cidadãos ordeiroscolocavam máscaras grotescas, cantavam insinuantesmodinhas, mantinham todo mundo suspenso por suassátiras e folias. Componentes do baixo-clero lambuzavama cara, estadeavam por aí em trajes reservados a seussuperiores e arremedavam os pomposos rituais da Igreja eda Corte. Às vezes, escolhia-se um príncipe da bagunça,um rei-palhaço, ou um bispo-garoto para presidir oseventos. Em alguns lugares, o bispo-garoto até parodiava acelebração duma missa.31

Ainda hoje, uma folia atenuada é tranqüilamen-te admitida como uma parte integrante de festas religio-sas católicas do Brasil. Refiro-me às Folias do Divino –festas do Espírito Santo celebradas em diversos pontosdo país.32 A singeleza delas, o caráter moderado dosfolguedos que envolvem, explicam a tolerância de queatualmente gozam, da parte da instituição eclesiástica...embora no passado elas fossem, muitas vezes, olhadoscom suspeita pela mesma Igreja, por causa de ligaçõesde origem com uma heresia (a joaquinita).33 Embora nemde longe emulem o frenesi do culto de São Gonçalo daSalvador setecentista, ou a agitação de festas de largobaianas de hoje, as festas do Divino têm alguns aspec-tos que permitem relacioná-las com a cultura dessas

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manifestações. Afinal, tanto quanto as agitadas, as sere-nas são folias, ou seja, loucuras: mergulhos no sonho, nadimensão de um Wunschzeit, em liberdades que a or-dem do cotidiano inibe... Em pacatos festejos do Divinoainda hoje celebrados, coroa-se um Imperador (em geral,um garoto) cujo reinado começa com a libertação de umpreso, culminando com um banquete, isto é, com abun-dância de comida e bebida, pois

O Divino Espírito SantoÉ um grande foliãoAmigo de muita carneMuito vinho e muito pão.34

Com um governo de brinquedo, liberta-se umtransgressor, celebra-se a liberdade e a fartura...

Vêm a ser ainda folias as de Reis, com dançasingênuas de bois-bumbá e autos pastoris, que envolvemrezas nas lapinhas; elas juntam aos ritos da Epifaniasingelas preces cantadas à beira de presepes onde seadora um Menino rodeado de bichos, de pastores e desoberanos humildes, num mundo de brinquedo. Doponto de vista clerical, esses bailes e reisados sãoatividades profanas; mas para o povo, eles envolvemum culto e constituem não só um divertimento comouma autêntica devoção: muitos reiseiros que entrevisteino sertão baiano qualificam-se de devotos; e as pessoasque mantêm com sacrifício os pastoris da Festa daLapinha, em Salvador, explicam sua dedicação afolguedos em desuso por razões não só sentimentaiscomo religiosas.

Em suma, a palavra folia é popularmente usadapara qualificar práticas lúdicas associadas aos cultos deDeus Menino e do Espírito Santo, não só em terrasbaianas como pelo Brasil afora. Mas ela tem ainda ou-

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tro emprego, que se relaciona com o carnaval: folia e car-naval são quase sinônimos.

No presente estudo, uso folia também para de-signar a parte lúdica das festas de largo, transcorridaextra-muros das igrejas. Não é difícil justificá-lo... Em-bora esse emprego do nome não seja muito comum, nãoé de todo insólito: sempre há quem prometa, num votoimpossível, “cair na folia na Conceição, e só voltar pracasa depois do Carnaval...”

Jean de Léry deixou uma descrição impressio-nante de uma festa religiosa a que assistiu na Bahia, em1660, numa igreja onde padres, freiras, fidalgos e ho-mens do “populacho” dançavam de mãos dadas, empares ou em roda. Mais de dois séculos após, Le Gentilde la Barbinais dava um testemunho notável sobre osexcessos da folia de São Gonçalo, em que da arraia miú-da aos nobres, todos pulavam no templo... e ainda bati-am uns nos outros, de brincadeira, com uma pequenaimagem do santo. 35 A tradição da folia associada a fes-tejos religiosos é inveterada por aqui. No passado, comose vê, nem sempre o limiar das igrejas separou a foliada solenidade... São Gonçalo que o diga!

Também os protestos eclesiásticos contra os“abusos” verificados nessas benditas festas não são dehoje: repetem-se de maneira monótona, ano após ano,reclamando sempre da novidade do desmando. Mas sehá desmando, ou abuso, não é coisa nova, nem “inven-ção moderna” – ainda que cada tempo traga seucontributo.

Outra coisa é preciso constatar: não foi o cultoafro-brasileiro que gerou a folia das festas de largo. Issovem da Europa.

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IX. Sincretismo afro-católicono horizonte das festas de largo baianas

Os criadores do candomblé conheciam, em suasterras de origem, festivais assinalados pela combinaçãode ritos sacros a festejos de tipo carnavalesco (lato sensu).Familiarizaram-se com as festas de santo católicas em partepor isso, em parte por que elas lhes oportunizavam al-gumas licenças – o que, sem dúvida, tinha muita im-portância para a massa escrava. Mas é o preconceito queleva a atribuir ao povo-de-santo tudo quanto represen-ta folia nas festas de largo... mesmo porque, às vezes, asautoridades da Igreja Católica consideram “profana”qualquer manifestação que extrapole seus cânones. Ora,é preciso ponderar... Talvez as mais tranqüilas de todasas festas de largo baianas sejam as de São Lázaro e SãoRoque. A primeira realiza-se em meados de janeiro, e asegunda em agosto. Ambas têm lugar na Estrada de SãoLázaro, bairro da Federação, em Salvador, com o centronuma igrejinha, num sítio onde antes havia um hospi-tal. Essa tranqüilidade em parte se deve ao fato de queo logradouro onde elas transcorrem é pouco espaçoso:não comporta grande multidão, e verifica-se inviávelpara trios elétricos. Porém não é só isso. As festas deRoque e Lázaro têm outras características que as singu-larizam. A maioria expressiva dos participantes se cons-titui de pessoas ligadas ao candomblé: se elas fossemexcluídas, não só a praça se esvaziaria, como a igrejaficaria erma. Neste caso, são raros os festeiros que dei-xam de entrar na igreja. Ao pé do cruzeiro chantadodefronte do templo, muitos acendem velas e fazemoferendas (ou descarregos) com “flores do Velho”.36 Emsuma, as festas de largo de São Lázaro e São Roque es-tão, sem sombra de dúvida, entre as que envolvem maior

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participação do público em ritos sacros. A paz que ne-las reina deve-se, ao menos em parte, ao temor que ins-pira o orixá Omolu por seus poderes sobre a doença e amorte.

É fato que na maior parte das festas de largobaianas a folia cresceu em proporções espantosas, nosúltimos tempos. Os motivos dessa expansão não se cir-cunscrevem, porém, à influência de ritos que o clerocatólico por vezes classifica de “pagãos”. A intensifica-ção da folia de largo acompanhou o extraordinário in-cremento do carnaval baiano nas três últimas décadas,em que ele se afirmou como o maior do Brasil e passoua atrair foliões do país inteiro, inclusive do Rio (queoutrora foi hegemônico nas artes de Momo).

A carnavalização atinge todo o ciclo dos feste-jos campais de Salvador iniciado no primeiro de dezem-bro. Não se cingiu a instâncias em que teria dominado aparticipação de ritos ligados ao candomblé. Mas não lheficou imune uma festa que se destaca por ser a únicaentre as congêneres centrada de forma expressa e exclu-siva em atos do culto afro-brasileiro: a do Presente daMãe d’Água, no Rio Vermelho, no dia dois de fevereiro.Segundo os cronistas, ela começou por uma substitui-ção: como o padre da igreja de Santana recusou-se a aten-der ao pedido dos pescadores do bairro, de celebrar-lhes uma missa solene, eles se dirigiram a uma Mãe-de-Santo, que sugeriu a oferenda a Iemanjá. O Presente tor-nou-se logo uma tradição, e a oferenda dos pescadoresmultiplicou-se muito: de diversas partes da cidade, co-meçaram a acorrer pessoas desejosas de presentear aMãe d’Água. (Hoje, vêm devotos de diferentes pontosdo Brasil, e até de outros países).

Desde a véspera, já há quem se dirija à cabanaarmada junto à Casa do Peso37 para levar ao orixá flo-

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res, perfumes, bonecas, sabonetes... No famoso Dia Dois,a fila dos presenteadores forma-se desde as seis horasda manhã, e cresce até pouco antes das quatro da tarde,hora em que o presente é levado em procissão marítimaao meio da baía. Muitos devotos retardatários têm dedepositar sua dádiva na praia mesmo.

O núcleo religioso da festa é muito significativo:poucos ritos públicos de caráter devocional atraemtantos fiéis. Os ofertantes, que misturam oblatos epedidos (deitando ao mar, entre flores, seus bilhetes àMãe d’Água) formam uma multidão. Mas as ruas do RioVermelho desde a véspera se enchem de barracas, ondecorre a cerveja; inúmeros foliões aproveitam para pularatrás dos trios elétricos, das bandas e batuques, numafarra que se prolonga noite adentro. Segundo dizem, ada Sereia é a festa de largo em que mais se bebe, depoisda de Nosso Senhor do Bonfim... Em suma, o sagrado eo profano se entrelaçam, também, na efeméride baianadedicada diretamente a um orixá, a uma divindadenegra.

IX. A ruptura

A aproximação de sagrado e profano em festasde largo da Bahia não ocorre sem rupturas e conflitos.Em certos casos, ela se vê progressivamente transfor-mada em uma relação muito tensa e instável, induzin-do um corte. Na Festa do Bonfim, no episódio da Lava-gem,38 a crise manifestou-se, recentemente, de modo bemagudo. Precipitou uma divisão significativa. O fato tema ver com o gigantismo da festa, que foi acentuado como crescimento de sua dimensão de folia: um desenvol-vimento apenas em parte espontâneo.

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No passado mais remoto, quando a tradiçãonasceu, além dos devotos a pé, e de alguns cavaleiros,participavam do préstito da Lavagem veículos humil-des39, muito característicos: carroças ornadas com ramos,puxadas por burros caprichosamente enfeitados comtiras coloridas, flores de papel, “arreios” e adornos defantasia.40 Anos mais tarde, ganharam destaque os ca-minhões, com uma decoração também fantástica, a trans-portar bandos alegres de festeiros, em grupos organi-zados por pessoas empreendedoras. As filas de cami-nhões logo passaram a formar-se dias antes da Lava-gem, tomando todo o espaço da Avenida Contorno, en-tre a Cidade Alta e a Cidade Baixa de Salvador. A coisacomplicou-se um bocado com a participação dos trioselétricos, que não só agravaram o congestionamento,como tumultuaram o préstito: logo tornou-se necessá-rio tomar medidas disciplinadoras especiais. Hoje, ostrios não participam do cortejo, nem têm acesso aoBonfim durante o episódio nuclear da festa.41

No ano de 1997, grandes blocos carnavalescosempresarialmente organizados, e outras agências inte-ressadas no marketing da folia, armaram camarotes aolongo daquela avenida, onde se deteve grande parte damultidão mobilizada para a “Festa do Bonfim”; muitosdaí não passaram, e inúmeros outros festeiros que des-ceram à Cidade Baixa para acompanhar o início dopréstito da Lavagem retornaram logo à Contorno eadjacências, cingindo-se à área percorrida pelos trios.Dos que seguiram além, pela Cidade Baixa, nem todosforam até Itapagipe – o bairro onde fica o templo doSenhor festejado: como ocorre há anos, muitos se deti-veram a meio caminho, em pequenas praças, em bares,cantinas ou estacionamentos transformados em áreas debar (por vezes reservadas com antecedência por insti-

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tuição ou grupo organizado), para fazer com maior tran-qüilidade a comemoração carnavalesca do dia santo – commúsica, cerveja etc.42

Em 1998, por fim, os trios foram impedidos departicipar do préstito da Lavagem, sendo organizadauma festa paralela (“profana”, naturalmente) no Portoda Barra.

Dos seguidores do cortejo, poucos sobem, nomomento da chegada do préstito da Lavagem, ao topoda elevação onde está a igreja. É verdade que váriosdentre os fregueses das barracas próximas vão até aporta do templo, em algum (outro) momento, fazer aomenos um pelo-sinal, antes de voltar para casa... mas oespaço não comportaria se todos os que vão “ao Bonfim”de fato se dirigissem à basílica, à hora do rito pretextode todo o festejo.43

Em suma, como se viu, a maioria dos foliões daLavagem do Bonfim não vai ao Bonfim, e os que assistemà Lavagem propriamente dita vêm a ser uma minoria.No ano de 1997, o espaço festivo que atraiu e concen-trou a maior multidão foi o que se estende da AvenidaContorno44 até ao começo da Cidade Baixa. Em 1998, afolia da Barra também foi a mais animada.

Os festeiros que acorrem à Colina e suas imedi-ações, na ocasião da Lavagem, embora atraídos pelogozo da folia, também demonstram sentimentos devo-tos: muitos rezam e aplaudem o santo na hora do breverito, ou lhe fazem pedidos e preces ao aproximar-se dabasílica. Mesmo na farra, esses foliões tratam de reco-mendar-se ao Senhor do Bonfim, a Oxalá...

Quem hoje toma o trabalho de acompanhar opréstito até perto da igreja, deixando o puro carnavalde outros espaços, se não for turista curioso, vai moti-vado por apego a uma tradição também tocada de reli-

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giosidade: esses festeiros que se deslocam rumo aItapagipe com o préstito são em regra mais velhos, emais pobres (de classe média baixa para baixo).45 Osjovens (de classe média e alta) concentram-se no espaçoalternativo de festejo carnavalesco concomitante. A fes-ta dividiu-se...

Notas

1 Cf. DLV, s.v. profanum (Marques Leite e Novaes Jordão, 1956). Idem s. v.sacer, sacra, sacrum. Ver Benveniste, 1995 (vol. 2., Livro 3, cap. I, p. 198).Essa ambivalência manteve-se no adjetivo francês derivado sacré (fem.sacrée).2 Este “voltar-se para a igreja” pode ser entendido ao pé da letra: quasetoda festa de largo inclui procissões, isto é, cortejos que têm o seu pontode partida e a sua meta num santuário Na procissão, o edifício da igreja (otemplo) ainda centraliza os desempenhos sacros.3 A parte “profana” da festa de largo não se dá necessariamente numapraça defronte da igreja. Pode transcorrer em outro espaço, não contíguoao templo. A festa de Santa Bárbara, celebrada em Salvador a 4 dedezembro, merece ser categorizada assim – embora a missa da Santa sejacelebrada na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, no Pelourinho,e o caruru, com os sambas e folguedos, tenha lugar adiante: no Mercadode Santa Bárbara.4 Se hoje, na maioria dos casos, o comércio de ocasião que acontece numafesta do gênero está diretamente ligado ao folguedo, nem sempre limitou-se a isto: uma feira dedicada à venda de frutas e de peças de cerâmica, naRampa do Mercado, era parte da Festa da Conceição, que se celebra noinício do grande ciclo, em Salvador... Embora tenha perdido vulto, umpouco deste comércio ainda subsiste, no período festivo, nas imediaçõesda basílica; porém aí o comércio principal é mesmo o de bebidas e comidascujo consumo in loco, nas barracas armadas nas cercanias da igreja, integraa dimensão lúdica do festejo. É o comércio típico das festas do gênero.5 Algumas festas são consideradas “de largo” porque se realizam naproximidade temporal de uma celebração sagrada – e nas cercanias de umtemplo: é o caso, por exemplo, da chamada “Segunda Feira da Ribeira”,que “prolonga” a Festa do Bonfim, em Salvador.6 Em geral, é o que acontece: o campo da festa tem os limites demarcadospelas linhas das barracas. Muito recentemente, a Prefeitura Municipal do

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Salvador interveio de forma tão rigorosa quanto estúpida na configuraçãodeste elemento das festas de largo, impondo uma padronização castradora.A beleza das pinturas com que os barraqueiros tradicionalmenteprocuravam identificar seus estabelecimentos, e os nomes pitorescos quelhes davam, foram proscritos. As barracas tradicionais foram substituídaspor monstrengos cinzentos, à imagem da burrice autoritária dos burocratasempenhados numa “higienização” fascista da imagem urbana de Salvador,segundo velhos preconceitos.7 Acontece de uma festa dessas estender-se jornadas além da que acelebração religiosa assinala como propriamente festiva – no entanto,percebe-se isto como um prolongamento mesmo. Conta-se entre as festasde largo de Salvador a da “Segunda Feira da Ribeira” (“Segunda FeiraGorda”), que surgiu como uma extensão da Festa do Bonfim, prolongando-a e “deslocando-a” um pouco. Ver nota 5.8 A Festa da Conceição, por exemplo, vai de primeiro a oito de dezembro,em noites de folguedos que acompanham a “novena” e culminam no “diasanto” (em que a missa e a procissão se realizam de manhã).9 Em geral, os que se limitam a foliar na praça mostram uma atituderespeitosa quando a rua onde brincam é atravessada pela procissão, porexemplo.10 Mas cantos e outros enunciados musicais podem ser simultâneos a falas.11 Algumas festividades levam ao interior das igrejas multidões de fiéis.Então é claro que o contacto físico entre eles se dá de modo inevitável...mas todos procuram cingi-lo ao limite da maior discrição possível,movendo-se pouco, e de forma cerimoniosa.12 Ao passo que, no interior do templo, mesmo os familiares se dirigemuns aos outros de modo contido, discreto.13 A carência de sanitários públicos, sempre insuficientes (de resto, só hápouco tempo eles entraram em uso) faz com que, nas festas de largo, oshomens urinem pelos cantos um pouco mais discretos da via pública,quase sempre sob as vistas de outros cavalheiros, tocados pela mesmanecessidade. Mesmo as mulheres aficionadas de festa de largo, duvidoque não tenham mijado na rua alguma vez. Nos recantos que podem seraproveitados, não é incomum que alguns casais ávidos consumem atossexuais mais ou menos completos... ou cheguem muito perto disso. Semprehá, por outro lado, os que se embebedam e dormem na rua.14 A Festa da Ajuda ainda é celebrada, com menos pompa, e seu carnavalse atenuou. Mas ainda se faz. Recuo aqui a uma época em que era muitomais animada.

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15 Para uma descrição completa do ciclo festivo da Ajuda ver Nascimento,1995. O autor não se preocupou muito em caracterizar diferentes fases daevolução do festejo. Seu relato parece um pouco impreciso por isso. Masele descreveu bem muitos dos seus elementos, como a figura do manduque aparece na folia cachoeirana: “O mandu é um personagemrepresentado por uma figura viva amorfa. Faz-se um mandu colocandouma ‘arupemba’ (peneira confeccionada com fios de palha) sobre a cabeçada pessoa e sobre ela um lençol branco preso no pescoço ou solto. Veste-se ainda na pessoa um paletó branco, em cujas mangas é atravessado umcabo de vassoura... Por fim, veste-se uma calça branca de tamanho maiorque o da pessoa. No final, é uma figura irreconhecível... um egun (espírito).”16 Já foi muito animada a diabrura da festa cachoeirana, que hoje nãoocorre mais com a mesma intensidade. Há quem diga que a origem docostume remonta ao tesouro dramático dos jesuítas. Seria um recurso decatequese: os bons padres empregariam essa mascarada para incutir nosíndios o temor de Deus – e salvá-los do que encenavam... A terra foi tãobem cristianizada que logo se acabaram os seus antigos habitantes pagãos,mas o drama edificante prosseguiu como tradição popular associada aosfestejos do Orago do velho templo cachoeirano. Teria sofrido mudanças,de modo que as autoridades eclesiásticas com freqüência se opuseram àrealização do folguedo de (suposta) origem pia, achando-o muito carregadode paganismo... Na verdade, a diabaria foi aqui reinventada: trata-se deum velho costume carnavalesco europeu, ibérico (ver Baroja, 1979:237sobre os cachidiablos). Mas emprestou-lhe um novo alento suareinterpretação no código de ritos afro-brasileiros. Nascimento (1995)relaciona diretamente com Exu a figura mais assombrosa do “terno danegrada”, figura que veio a singularizar-se: ele cita um festejo do ciclo daAjuda de trinta anos atrás, no qual saiu às ruas, nesse terno, “a figura dodiabo (Exu) representado por um negro peixe conhecido por Losa. Nafrente da massa lúdica ia ele com o corpo seminu e untado com azeite dedendê e pó de carvão, vestido com um calção vermelho com um rabo deboi. Na cabeça, vestia um gorro também vermelho com dois cornosbovinos e nas mãos um chocalho de latão e um tridente.Losa conseguianão só amedrontar as crianças. Pessoas adultas saíam em polvorosa ao veraquela figura de olhos arregalados, bêbado, rindo freneticamente ecorrendo de um lado para o outro como se estivesse em busca de algumacoisa.”17 Um samba entoado nessa altura da festa, marcava a passagem: A Capelada Ajuda já deu o sinal/ - Tira a másc’ra, careta!

18 Já segundo me contou um dos dirigentes do “Cheiro de Amor” (oempresário Valter Alves Brito Filho) desde a sua fundação os responsáveispor esse Bloco e pelo respectivo trio elétrico levam-no à famosa basílica deItapagipe, todo ano, antes da primeira saída carnavalesca; lá permanecempor algum tempo em silêncio, sem tocar, enfeitando o carro com fitas do

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Senhor do Bonfim; depois partem de maneira discreta, prontos para ocarnaval. Além disso, na sua concentração, antes de partir para a rua, osmúsicos do trio elétrico desse Bloco tocam o Hino do Senhor do Bonfim, quetodos ouvem com muito respeito.19 Há outros, que aqui não considero: trata-se de uma heortologia muitorica.20 No Carnaval, um ato celebrado no templo ocorre depois que ele acaba:a cerimônia da Quarta de Cinzas, de que hoje só participa gente que nãovai ao Carnaval . No passado, um número não insignificante de recém-foliões comparecia então ao templo, para purificar-se. As festas da SemanaSanta são apenas “festas de igreja”... embora envolvam procissões que, noefêmero transcurso, estendem além dos limites dos templos o espaçosagrado desses edifícios – sua origem e destino. De acordo com a percepçãopopular, tradicional, a Semana Santa é o que também se chama de Semanada Paixão; no Domingo da Páscoa, ela já chegou ao fim.21 V. Bastide, 1945. Segundo contam, um soldado que lutou na Guerra doParaguai tinha feito o voto de lavar a basílica do Bonfim, se retornassecom vida a Salvador. De volta da guerra, ele tratou de cumprir a promessa,e muita gente apareceu para ajudar, com grande entusiasmo... Mas háquem diga que a Lavagem era realizada desde os fins do século XVIII, porsenhoras devotas que a faziam com suas escravas, preparando a igrejapara a festa propriamente dita. A edificação da Basílica foi concluída em1754, abrigando a imagem do Senhor do Bonfim, trazida em 1745 deSetúbal (Portugal) por Teodósio Rodrigues de Faria, oficial da marinhalusitana. A respeito veja-se Verger, 1975.22 Daí o seu título de Babá Oké, o “Pai da Colina”.23 Ouvida nos degraus da igreja do Bonfim, pouco depois da Lavagem. Asoutras frase que cito nesta passagem também foram registradas no mesmolugar.24 Cf. Serra, op. cit., p. 236-7.25 Há nisso uma negação da hierarquia, acentuada pelo fato de que asdiferenças sociais tendem a diluir-se na massa dos alegres devotos.26 Refiro-me à cultura das antigas sociedades escravistas portuguesa ebrasileira, em que os trabalhos manuais eram desqualificantes,estigmatizados como ocupação de cativos, e a gente boa não podia prestarestes baixos serviços. Nas lavagens de templos luso-brasileiras, mesmonobres, gente rica e poderosa, participavam do serviço de faxina,misturando-se aos subordinados, para demonstrar assim humildade diantede Deus... Isso propiciava mais uma inversão (mostrando o rico a cumprirfunção de pobre, o poderoso numa prática humilde) e ainda uma certaconfusão (uma certa mistura de categorias: pois evidentemente servos e

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“arraia miúda” também participava da alegre labuta). Issos por certoestimulava o sentimento da communitas.27 São tradicionais e animadas as das capelas da Pituba, de Itapoã eArembepe, por exemplo.28 Em algumas regiões da Europa, elas as preservaram até bem depois –até à época contemporânea, ou quase.29 A exemplo da de Corpus Christi. na França medieval, por exemplo. Vera propósito Bakhtine (1970: 229-30).30 A propósito ver Burke, 1989.31 Cf Cox, 1974:11.32 Acha-se uma bonita descrição das Folias do Divino, como eram celebradasno Brasil do século passado, no clássico de Manoel Antonio de AlmeidaMemórias de um Sargento de Milícias (cf. Almeida, 1959:110): “Durante osnove dias que precediam o ao Espírito Santo, ou mesmo não se sabe seantes disso, saía pelas ruas da cidade um rancho de meninos, todos denove a onze anos, caprichosamente vestidos à pastora: sapatos de cor derosa, meias brancas, calção da cor do sapato, faixas à cintura, camisa brancade longos e caídos colarinhos, chapéus de palha de abas largas ou forradosde seda, tudo isso enfeitado com grinaldas de flores e com uma quantidadeprodigiosa de laços de fita encarnada. Cada um desses meninos levavaum instrumento pastoril em que tocavam, pandeiro, machete e tamboril.Caminhavam formando um quadrado, no meio do qual ia o chamadoimperador do Divino, acompanhados por uma música de barbeiros, eprecedidos e cercados por uma chusma de irmãos de opa levando bandeirasencarnadas e outros emblemas, os quais tiravam esmolas enquanto elescantavam e tocavam.”

“O imperador, como dissemos, ia ao meio: ordinariamente era um meninomais pequeno que os outros, vestido de casaca de veludo verde, calção deigual fazenda e cor, meias de seda, sapatos afivelados, chapéu de pasta, eum enorme e rutilante emblema do Espírito Santo ao peito; caminhavapausadamente e com ar grave.”

“Confessem os leitores se não era coisa deveras extravagante ver-se umimperador vestido de veludo e seda, percorrendo as ruas cercado de umrancho de pastores, ao toque de pandeiro e machete. Entretanto, apens seouvia a ao longe a fanhosa música dos barbeiros, tudo corria à janela paraver passar a Folia: os irmãos aproveitavam-se do ensejo, e iam colhendoesmolas de porta em porta.” Para o conhecimento das Folias do Divinocontemporâneas, o melhor estudo etnográfico é um fime, um documentáriode Hermano Penna.33 E quiçá também pelo fato de que a essa devoção do Divino dedicavam-se muito especialmente cristãos-novos de origem açoriana.

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34 Cf. Almeida, op. cit., p. 111.35 A propósito, veja-se Verger, 1981.36 Pipocas.37 sede da Colônia dos Pescadores do Rio Vermelho.38 Do ponto de vista dos estritamente (exclusivamente) católicos, a Festado Bonfim é a que se celebra na igreja no segundo domingo depois daEpifania, culminando numa missa solene, e afora este dia consagradoenvolve ainda um novenário. Pois bem: a rigor, a festa “estritamentecatólica” viu-se interrompida pela da Lavagem: na quinta-feira em queesta acontece (a que precede o segundo domingo depois da Epifania), aigreja não se abre... E para compensar a interrupção, os fiéis principiam anovena um dia antes. Ora, como se viu, o dia assim perdido para a devoçãodo pessoal da novena envolve ainda um rito que é sacro... para outros.39 Hoje, no cortejo do Bonfim, ainda se vê alguns cavaleiros; aindacomparecem carroças decoradas de maneira jocosa, puxadas por animaisfantasiados, transportando foliões devotos; continua a haver ciclistas queenfeitam seus veículos da mesma forma garrida. Mas isso ocorre em muitomenor proporção que antigamente.40 Consagrou-se um dito popular, ainda corrente entre os mais velhos,empregado na crítica a pessoas vaidosas que se vestem de maneira poucodiscreta: – Fulano está tão bonito que parece um jegue da Lavagem!.41 Em 1996, os trios sofreram o controle de uma primeira medida restritiva:apenas duas horas depois da partida do pessoal da Lavagem eles puderamcomeçar a tocar, e só podem ir até a altura do Mercado do Ouro.42 Atualmente já não se permite armar barracas de bebida na Colinapropriamente dita. Mesmo assim, a Lavagem não se faz sem dificuldade...43 Em 1997 a Polícia Militar armou três barreiras para permitir às baianas,às autoridades e aos membros do Afoxé Filhos de Ghandi (cuja participaçãono evento veio a tornar-se tradicional) acesso um pouco mais fácil aopalco do rito, o adro da Igreja do Bonfim: só relaxou este esquema aospoucos, depois de realizada a breve cerimônia.44 O boom da Contorno não se deu por acaso. Tratou-se de uma iniciativaprogramada por grupos, empresas e agências que hoje tocam os negóciosmais lucrativos do carnaval baiano. Fez-se um investimento muitocalculado, e não desprezível. Alguns dos camarotes estavam tão bemequipados que, além de confortáveis sanitários e de lanchonete, tinhamaté posto médico para pronto atendimento. Além do mais, mesmo tendoseus trios a desfilar na avenida, os blocos não descuidaram de prover osrespectivos camarotes com bandas, de modo que seus clientes, sequisessem, podiam brincar sem descer à rua. O principal interesse dos

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grupos carnavalescos que armaram camarotes na Contorno durante afesta da Lavagem do Bonfim era a propaganda, o aliciamento da clientelapara o carnaval propriamente dito: vendendo como ingressos, a preçosentre 20 e 30 reais, camisas com suas marcas, fizeram bem sua propaganda.Uma reportagem do jornal A Tarde, publicada na página 2, na sexta feira,17 de janeiro de 1997 (o dia seguinte ao da Lavagem do Bonfim), mostraque esses promotores não se frustraram: Segundo os dirigentes dasentidades [carnavalescas], “faltou para quem queria”. André Soledade,diretor da Timbalada, disse que as camisas (a R$ 20,00) acabaram na terçafeira. O bloco produziu novas camisas e vendeu por R$ 30,00, mesmoassim ainda ficou muita gente insatisfeita porque não conseguiu comprara sua. O Cheiro de Amor optou pela divulgação do bloco. Vendeu apenas100 camisas, a R$ 25,00, mas fez cortesia a mais de mil pessoas. Ari Ribeiroexplicou que se gasta até R$ 40.000, 00 para fazer um camarote com aestrutura apresentada ontem. (...). Soledade afirmava que o [camarote] daTimbalada estava capacitado a abrigar até sete mil pessoas, mas ficou comcinco mil porque o bloco não quis “inchar”o local. No camarote doInterAsa, 1700 foliões pulavam no salão principal e mais 400 divertiam-seno anexo. Aleô de Almeida, gerente de Alimentos e Bebidas do HotelTropical, que fez parceira com o Bloco, afirmou que o objetivo dadivulgação e da mostra que o InterAsa vai apresentar no Carnaval foiatingido. É perfeitamente correta a manchete que encima a reportagemcitada: Avenida Contorno foi palco de prévia do Carnaval 97... Mas houve outros“camarotes”: alguns foliões preferiram curtir a “Festa do Bonfim” nomar, em barcos e escunas – com muita bebida, música e “agito carnavalesco”a bordo, evidentemente. É claro, pois, que essa festa desligou-se, em grandemedida, do foco local anterior e se esparramou, lembrando muito a foliade Momo. O componente religioso já não motiva a maioria dos envolvidosno “mega-evento”... Mostra-o bem a declaração de um estudante àmencionada reportagem:-“A gente deixa essa coisa de igreja para os maisvelhos de idéias.” A carnavalização da festa do Bonfim foi mesmoprofunda... A propósito, vale a pena citar um trecho de uma crônica doArcebispo da Bahia (o Cardeal Dom Lucas Moreira Neves) publicada emsua coluna “Mensagem Dominical” (A Tarde, 19 de janeiro deste ano de1997): “... o evento [a festa da Lavagem] de católico só tem os sentimentosíntimos e invisíveis dos católicos, poucos ou muitos, que chegam até otemplo e rezam um Pai Nosso ou fazem o sinal da cruz; de afrobrasileiro sótem os cinco minutos de abluções das “baianas” que logo se retiram, umtanto constrangidas; no mais, a “lavagem”é evento lúdico, marketing emerchandising de pessoas e grupos, bebida, a inevitável licenciosidade.Cada ano mais, torna-se prévia e ensaio geral do carnaval, com todos osingredientes, e uma gigantesca empresa com altíssimos investimentos enão menores lucros.”45 Outros, não poucos, vão ao Bonfim no dia da Lavagem, porém maistarde, bem depois da celebração desse rito: à noite, por exemplo.

3_2a EDIÇÂO_Sagrado e Profano CAP 2.PMD 12/5/2009, 17:36112