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PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 12(2):345-373, 2002 345 O Sujeito da Neurociência: da Naturalização do Homem ao Re-encantamento da Natureza JANE A. RUSSO 1 EDNA L. T. PONCIANO 2 RESUMO O objetivo deste trabalho é circunscrever a concepção de sujeito que emerge das teorias neurocientíficas sobre a mente. Para tanto, abordamos três auto- res-chave do campo da neurociência: Francisco Varela, Humberto Maturana e Gerald Edelman. A partir da análise de seus trabalhos, concluímos que uma determinada concepção de sujeito, calcada numa visão inteiramente materi- alista da mente, se apresenta como substituto vantajoso de uma concepção que poderíamos chamar de “psicológica”, calcada principalmente, mas não exclusivamente, na psicanálise. Procuramos demonstrar a hipótese de que o atual sucesso da visão “neurocientífica” do ser humano, se de fato aponta para algum grau de ruptura com o chamado “paradigma moderno”, também pode ser interpretado como a radicalização de determinadas características e contradições presentes na própria constituição desse paradigma e, por con- seqüência, da pessoa moderna. Palavras-chave: Neurociência; pessoa moderna; mente.

O Sujeito Da Neurociência Russo e Ponciano

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  • O Sujeito da Neurocincia: da Naturalizao do Homem ao Re-encantamento da Natureza

    PHYSIS: Rev. Sade Coletiva, Rio de Janeiro, 12(2):345-373, 2002 345

    O Sujeito da Neurocincia: da Naturalizaodo Homem ao Re-encantamento da Natureza

    JANE A. RUSSO1

    EDNA L. T. PONCIANO2

    RESUMO

    O objetivo deste trabalho circunscrever a concepo de sujeito que emergedas teorias neurocientficas sobre a mente. Para tanto, abordamos trs auto-res-chave do campo da neurocincia: Francisco Varela, Humberto Maturanae Gerald Edelman. A partir da anlise de seus trabalhos, conclumos que umadeterminada concepo de sujeito, calcada numa viso inteiramente materi-alista da mente, se apresenta como substituto vantajoso de uma concepoque poderamos chamar de psicolgica, calcada principalmente, mas noexclusivamente, na psicanlise. Procuramos demonstrar a hiptese de que oatual sucesso da viso neurocientfica do ser humano, se de fato apontapara algum grau de ruptura com o chamado paradigma moderno, tambmpode ser interpretado como a radicalizao de determinadas caractersticas econtradies presentes na prpria constituio desse paradigma e, por con-seqncia, da pessoa moderna.

    Palavras-chave: Neurocincia; pessoa moderna; mente.

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    Nous en sommes au dbut de la rvolution des neurosciences. Lorsquellesera acheve, nous saurons comment fonctionne lesprit, nous comprendronsce qui rgit notre nature, et aussi comment nous faisons pour connatre lemonde. En fait, ce qui se passe actuellement en neurosciences peut treconsider comme le prlude la plus grande des rvolutions scientifiques,une rvolution aux rpercussions sociales invitables et fondamentales.(Edelman, 2000a, Prefcio).

    O corpo subiu-lhe cabea. (Frase atribuda a Dorothy Parker, citada emDamsio, 1998, p. 254).

    Vivemos atualmente a hegemonia do paradigma biolgico no campo ci-entfico. O modelo da fsica enquanto cincia paradigmtica estaria cedendolugar ao modelo do organismo calcado na biologia (Bezerra Jr., 2000). O quepoderamos chamar de ufanismo biolgico se expressa, por um lado, emconquistas cada vez mais ousadas no campo da biotecnologia. Por outro,num plano que poderamos chamar de ideolgico, assistimos ao ressurgimen-to, a partir dos anos 70/80 do sculo passado, de trabalhos cientficos cal-cados num forte determinismo biolgico, implicando a interpretao biologizantede uma vasta gama de comportamentos e fenmenos, tais como a diferenade gnero, a homossexualidade, as diferenas de performance escolar, dife-renas raciais, alm, evidentemente, das chamadas doenas mentais, cujofundamento psicolgico descartado em favor de provveis disfunes dosistema nervoso.

    Em meio a essa voga biolgica, a chamada neurocincia vem proporuma leitura radicalmente naturalizante e materialista da mente humana, pre-tendendo superar a tradicional viso dualista que separa o homem em corpoe mente.

    Buscaremos, neste trabalho, circunscrever a concepo de sujeito queemerge das teorias neurocientficas sobre a mente, procurando determinar oque o aproxima ou o afasta do chamado sujeito moderno.

    Algumas Questes Preliminares

    Iniciaremos com o relato de um desenho animado, episdio de uma sriebastante popular nos dias que correm (As Meninas Superpoderosas), queuma das autoras assistiu pela televiso.

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    No episdio em questo, um dos personagens um cientista conseguirainventar um raio que, transmitido pelo ar atravs de uma antena, trocava oscorpos das pessoas. Ou seja, uma das meninas superpoderosas acordara demanh no corpo do prefeito, este por sua vez acordara dentro do corpo desua secretria. O prprio cientista encontrava-se dentro de um corpo queno era o seu. O sinal que indicava a verdadeira pessoa dentro do corpoerrado era a voz dos personagens. Algumas premissas sobre corpo epessoa premissas que fundamentam o senso comum de modo que qual-quer criana entenda esto a colocadas. Em primeiro lugar, evidente, apremissa de que pessoa uma coisa e corpo outra. Isto , h algo,uma substncia, que define a pessoidade (ou a identidade) de algum eque, no apenas no se reduz sua aparncia fsica imediata, como tem umaexistncia prpria, independentemente dessa aparncia, podendo, por isso,migrar de uma aparncia (corpo) para outra.

    Usamos o termo aparncia de propsito, j que nos parece evidente aoposio entre a aparncia (do corpo) versus uma essncia imaterial (quecuriosamente se materializa na voz, que, por sua vez, tambm uma matriainvisvel) que dele independe. Outra oposio subjacente a que distingueentre dentro e fora. A pessoa, de fato, embora esteja dentro de um corpo,no esse corpo. Enquanto uma essncia, a pessoa mais que o corpo,est para alm dele, embora de alguma forma a ele se ligue. Isto , o quedefine a identidade de um sujeito, o que define aquilo que ele de fato ,no sua aparncia fsica (seu corpo), mas algo que est dentro dessecorpo.

    O fenmeno de almas, ou mentes, que migram de um corpo para outro,j foi tema de inmeros filmes e romances dos mais populares aos maisintelectualizados. muito comum, em obras de fico cientfica, extraterres-tres que, para invadir a Terra, invadem corpos de terrqueos. A fora dessarepresentao do ser humano como ser provido de um corpo mais algumaoutra coisa que no da ordem do corporal no Ocidente inegvel.Reconhecemos seus fundamentos na cultura judaico-crist que sustenta nossaviso de mundo e se constituiu em torno da oposio hierrquica entre corpoe alma. Reconhecemo-la, ainda, no dualismo que marcou, como se sabe,todo o empreendimento cientfico ocidental, atravs da noo de uma razodesprendida e de um sujeito desencarnado que se debrua sobre um mundonatural objetificado.

    Apesar da fora ainda visvel nos produtos da cultura de massa, como odesenho animado descrito, tal representao parece apresentar sinais de

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    esgotamento3 . Acreditamos ser possvel apontar tal esgotamento num con-junto de fenmenos de ordens e nveis diversos, que determinados autoresidentificam como indicativos de uma crise do paradigma moderno ou dosurgimento de uma pretensa era ps-moderna.

    Nosso objetivo caracterizar o sujeito da neurocincia como um dossignos desse esgotamento. Pretendemos demonstrar como uma determinadaconcepo de sujeito, surgida a partir dos avanos da neurocincia, se apre-senta como um substituto vantajoso de uma concepo que poderamoschamar de psicolgica, calcada principalmente, mas no exclusivamente,na psicanlise. Ou seja, tratar-se-ia da substituio de uma viso dualista dohumano, baseada na afirmao de um plano psquico distinto do orgnico,por outra monista, que pretende fornecer uma leitura orgnica (ou natura-lista) do que at ento tem-se chamado psquico (ou mental). Trabalharemoscom a hiptese de que o atual sucesso da viso neurocientfica do serhumano, e conseqente declnio da viso psicolgica, se de fato apontapara algum grau de ruptura com o chamado paradigma moderno, tambmpode ser interpretado como a radicalizao de determinadas caractersticase contradies presentes na prpria constituio desse paradigma e, porconseqncia, da pessoa moderna.

    O fato de trabalharmos com concepes letradas de pessoa requeralgumas observaes. A primeira diz respeito ao fato de a cincia, a partirdo esfacelamento de uma viso unitria e transcendente do mundo fornecidapela religio, apresentar-se como Weltanschauung, buscando fornecer in-terpretaes que preencham os espaos deixados pela retrao do poderexplicativo da religio. Uma Weltanschauung que, sendo um produto dasecularizao e conseqente desencantamento do mundo, guarda suas mar-cas: fragmentada em diversos compartimentos que se comunicam emgraus variveis, est comprometida com a idia de progresso e descobrimen-to, sendo suas teorias, portanto, passveis de refutao e/ou superao. Porseu alto grau de especializao, depende de um corpo tcnico altamentequalificado, que produz um conhecimento esotrico que no acessvelnem a outros especialistas, nem aos chamados leigos. No entanto, o conhe-cimento cientfico se difunde e acaba sendo incorporado, de forma modifi-cada e/ou simplificada, pelo senso comum. A psicanlise um bom exemplodessa incorporao4 .

    Por outro lado, estamos lidando com um tipo de conhecimento que, es-tando na rbita da medicina e das cincias do comportamento, tem umavocao intervencionista isto , um conhecimento que, para alm de

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    uma pura interpretao dos fatos, produz propostas de interveno na vidadas pessoas e das coletividades. Da as anlises de diversos autores que sereferem a uma medicalizao, ou mesmo psiquiatrizao da sociedade.Essa medicalizao/psiquiatrizao, como se sabe, implica no apenas inter-venes diretas do poder pblico, mas uma penetrao mais sutil e capilarizadano interior das famlias e na regulao das relaes entre seus membros(Foucault, 1988; Donzelot, 1980; Castel, 1987; Costa, 1979). Neste sentido,poderamos dizer que temos a no apenas a produo de teorias sobre apessoa, mas de verdadeiros modos de construo da pessoa.

    Por isso acreditamos que examinar as novas teorias sobre a pessoaproduzidas no mbito da neurocincia significa examinar uma nova forma decompreender/interpretar a pessoa que, ao mesmo tempo, indica novos modosde construo de si.

    Uma segunda ressalva se faz necessria. Uma interpretao inteiramen-te fisicalista do ser humano vem sendo objetivo da psiquiatria desde seusprimrdios. A interpretao psicolgica da mente sempre conviveu com seuoposto, seja atravs da noo de hereditariedade ou dos esforos de loca-lizao cerebral dos distrbios mentais. Entre meados do sculo XIX e inciodo XX, tais concepes foram mesmo hegemnicas no campo. Ainda assim,a distino orgnico/psquico permanecia como pano de fundo, o que seexpressava na prpria diviso do campo em duas especialidades psiquiatriae neurologia.

    Embora essa diviso permanea, a moderna designao neurocinciaparece ser uma clara tentativa de ultrapass-la. Alm do mais, o surgimentodesse novo ramo cientfico parece estar ancorado em um movimento culturalmais amplo que, do nosso ponto de vista, o distingue das leituras fisicalistasempreendidas no sculo XIX. Gostaramos de explicitar melhor essa distin-o.

    Isso que estamos chamando de movimento cultural mais amplo pode serdescrito como uma forte reao anti-racionalista, que floresce na segundametade do sculo XX, calcada na crtica contundente idia de que h umabase racional para os fenmenos humanos que permite compreend-los deforma previsvel, e ao uso de categorias universais como base do conhe-cimento. Sua influncia nas cincias humanas e na filosofia foi marcante,expressando-se no abandono de ou crtica aos grandes esquemas explicativose concomitante adoo de um individualismo metodolgico que, por suavez, implicou a nfase na historicidade dos fenmenos e na sua especificidadee/ou originalidade, a afirmao da multiplicidade/pluralidade de fatores

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    explicativos, a crtica rgida separao entre um sujeito do conhecimentoe objeto a ser conhecido. Ao lado de sua face mais letrada, possvelreconhec-lo nas diversas manifestaes da cultura da juventude que, apartir de finais dos anos 60 do sculo passado, surgiram nos pases centraise seus satlites e que se convencionou reunir sob a rubrica contracultura5 .

    De fato parece um tanto difcil explicar a ancoragem de um novo ramoda cincia em um movimento claramente anti-racionalista e praticamenteanticientificista. Esperamos esclarecer esse argumento no decorrer do tra-balho. Por enquanto, consideramos importante apontar duas caractersticasdo referido movimento que nos parecem relevantes para a construo denosso argumento.

    Em primeiro lugar, a crtica razo desprendida e separao sujeito/objeto implica uma reencarnao do sujeito isto , este no poder maisser pensado como um sujeito do conhecimento desprendido de sua experi-ncia carnal no mundo que pretende conhecer. Neste sentido, o anti-racionalismo contracultural encerra uma crtica concepo dualista fsico/mental a que nos referimos no incio do trabalho. Em segundo lugar, estareencarnao permite articular a valorizao do individual, do especfico, doidiossincrtico, afirmao de uma totalidade fsico-moral em sentido amplo.Isto , no apenas o ser humano pode/deve ser compreendido como umatotalidade fsico-moral, mas o prprio ambiente em que ele vive no maiscomporta esse tipo de separao.

    Esse movimento cultural mais amplo, que poderia ser descrito como umavoga neo-romntica pelo seu aspecto anti-racionalista e antidualista, para-lelo a uma hegemonia das cincias biolgicas no campo cientfico mais geral, qual nos referimos em nossa introduo. O movimento contracultural e avoga biologizante parecem, primeira vista, incompatveis, dada a preocu-pao objetivante e cientificista desta. Procuraremos demonstrar que aneurocincia, constituindo importante vertente dessa virada biolgica, seaproxima da ideologia subjacente ao movimento contracultural, ao afirmarum monismo naturalista, que praticamente extingue o mental (ou o psicol-gico) como realidade sui generis, construindo uma viso totalizante eencorporada do ser humano.

    Uma vez feitas essas observaes preliminares, necessrio esclarecera via escolhida para abordar o tema do sujeito da neurocincia. Aneurocincia faz parte das chamadas cincias cognitivas termo que porsua vez designa um conjunto de saberes congregados em torno do objetivode explicar cientificamente (ou materialmente) o esprito, a saber, a psico-

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    logia cognitiva, a epistemologia (filosofia da mente), a lingstica, a intelign-cia artificial e a neurocincia (Varela, s/d).

    O campo da neurocincia , evidentemente, bastante vasto e heterog-neo. No foi e no poderia ter sido nossa inteno abarc-lo em toda suamultiplicidade. Escolhemos, em nossa abordagem, alguns autores-chave Francisco Varela, Humberto Maturana e Gerald Edelman que nos pare-ceram representativos, no apenas de uma certa vanguarda neurocientfica,mas de uma ambio explicativa mais abrangente e, sobretudo por seremautores que se dedicam popularizao das descobertas da teorianeurocientfica. Todos, em especial Varela e Maturana, estenderam sua in-fluncia para alm do campo restrito da neurocincia, empenhando-se emdialogar com outros campos de conhecimento e em propor uma espcie denova filosofia acerca do esprito humano6 .

    Procuraremos, num primeiro momento, caracterizar o surgimento dascincias cognitivas e seu posterior desenvolvimento de modo a situar nossosautores. Em seguida, buscaremos expor suas teorias acerca do ser humano,de modo a construir o retrato, por assim dizer, do sujeito tal como conce-bido pela neurocincia. Numa ltima etapa, examinaremos esse retrato como intuito de determinar afastamentos e aproximaes com a concepomoderna de pessoa.

    A Neurocincia no Campo das Cincias Cognitivas

    Em julho de 1990, o ento presidente americano, George Bush, assinouuma proclamao declarando os anos 90 a dcada do crebro. A procla-mao foi fruto de uma lei, proposta a partir de uma recomendao dacomunidade neurocientfica, votada no ano anterior pelo Congresso norte-americano. O argumento que a sustentava baseava-se no impacto econmi-co negativo das diversas doenas e afeces do crebro que estariam aco-metendo a populao americana.

    Subjacente aos argumentos econmicos, sustentados em estudosepidemiolgicos e clculos estatsticos, porm, estava (e ainda est) em jogoum novo modo de compreender e lidar com as perturbaes ditas mentais.E, mais ainda, um novo modo de compreender e lidar com a prpria mente.De fato, desde pelo menos meados dos anos 80, a mdia passou a alardearcom insistncia cada vez maior as conquistas cientficas que justificariam aposterior proclamao de uma dcada do crebro.

    Fizeram parte de tais conquistas determinados avanos tecnolgicos

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    como as tcnicas de neuroimagem estrutural e funcional atravs da resso-nncia magntica, da tomografia computadorizada, da tomografia por emis-so de psitrons (PET) e da tomografia por emisso de ftons (SPECT) que tornaram possvel observar o crebro em pleno funcionamento. Asnovas teorias sobre o funcionamento cerebral deixaram o campo restrito dosperidicos especializados e ganharam as manchetes das revistas de amplacirculao. Nestas se festejavam no apenas a descoberta dos mecanismospelos quais a mente funciona, mas os usos de tal descoberta no tratamentode doenas mentais, na compreenso do desenvolvimento infantil, na preven-o de problemas da velhice, na promoo da inteligncia e de outras facul-dades mentais. Diversos best-sellers foram (e so) publicados em torno dotema, indo desde obras assemelhadas a livros de auto-ajuda, como A inte-ligncia emocional, de Daniel Goleman, at textos mais srios de divulga-o cientfica, como O erro de Descartes - emoo, razo e o crebrohumano, de Antonio Damsio. Este, a comear pelo seu ttulo, um bomexemplo da abrangncia pretendida por esse tipo de literatura de divulgao.O objetivo do autor, tal como descrito na orelha de sua edio brasileira,parece ultrapassar em muito a mera transposio de determinadas teoriaspara uma linguagem mais acessvel ao grande pblico:

    Na viso inovadora de Damsio, sentimentos e emoes so uma percepodireta de nossos estados corporais e constituem um elo essencial entre ocorpo e a conscincia. (...) Ao tirar o esprito de seu pedestal e coloc-lodentro do organismo que possui crebro e corpo totalmente integrados, oautor sublinha a complexidade, a finitude e a singularidade que caracterizamo ser humano.

    Toda essa agitao em torno do crebro e seu funcionamento veio, naverdade, coroar o esforo de um conjunto de pensadores, filsofos e cien-tistas que, h algumas dcadas, desenvolviam estudos reunidos sob a deno-minao de cincias cognitivas.

    Tudo comeou, segundo reza a lenda, no final dos anos 40, a partir deuma srie de conferncias, organizadas pela Fundao Josiah Macy Jr.,conhecidas como Conferncias Macy, que congregou bilogos,neurofisiologistas, matemticos, antroplogos, psicanalistas, psiclogos e en-genheiros, com o objetivo de criar uma cincia do esprito isto , umacincia natural (no mentalista) da mente (Dupuy, 1994).

    A cincia cognitiva surgida a partir das Conferncias Macy foi batizadapor Norbert Wiener como ciberntica, no decorrer das conferncias, entre

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    1946 e 1953. O cerne dessa primeira formulao cognitivista era a analogiaentre o funcionamento cerebral e o funcionamento de uma mquina, concre-tizada posteriormente no computador. Tratava-se de uma teoriarepresentacional, a partir da qual considerava-se que a estrutura fsica docrebro, tal como um hardware, seria alimentada por um conjunto de sm-bolos articulados atravs de uma gramtica previamente estabelecida (umaespcie de software). A eficcia do modelo se basearia na correspondnciaentre as aes do organismo e as exigncias externas, isto , se os objetosexternos estariam ou no sendo corretamente representados no crebro.

    Essa teoria sofre uma srie de crticas, a partir dos anos 70, e umasegunda corrente cognitivista emerge, o chamado conexionismo, desta feitaabandonando o modelo computacional em favor do organismo vivo. Baseadanos conceitos de auto-organizao e emergncia, a teoria conexionista tra-balha com a noo de redes neurais. O modelo input-output da vertenteciberntica abandonado: a informao (input) vinda do mundo externodeixa de ser fundamental para o desenvolvimento das capacidades cognitivasdo crebro. Ao contrrio, a noo de auto-organizao, surgida pela for-mulao da Segunda Ciberntica de Von Foerster, implica que tais capaci-dades dependem do modo como o prprio crebro se organiza, a partir daschamadas redes neurais. A ao ocorre no nvel da conexo dos neurnios,que devem ser estudados como membros de vastos conjuntos que apare-cem e desaparecem constantemente durante suas interaes cooperativas,onde cada neurnio tem reaes mltiplas e diversas consoante o contexto(Varela, s/d, p. 58).

    Essa virada biolgica das cincias cognitivas aprofundada por teoriassubseqentes. Dentre os autores ps-conexionistas mais conhecidos estoFrancisco Varela, Humberto Maturana, Gerald Edelman, que sero aborda-dos por ns, e Antonio Damsio, bem-sucedido divulgador, j mencionado.

    Segundo essa vertente ps-conexionista, a partir de sua prpria auto-organizao que o indivduo organiza o mundo sua volta. Abandona-se,com isso, a idia de um mundo de objetos fsicos preexistente ao qual se temacesso a partir da correspondncia de um cdigo (ou gramtica) e de sm-bolos predefinidos. Ao contrrio, o mundo fsico, exterior, produzido,por assim dizer, pelo prprio organismo na ao de auto-organizar-se. Estaperspectiva, posterior ao conexionismo, conhecida como enao, e sevolta para a ao ao invs da representao.

    A partir da emergncia das redes neurais, a percepo, as reaes percepo e o que percebido se organizam em conjunto. Ao mesmo

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    tempo, a ausncia de uma gramtica ou smbolos predefinidos implica queo desenvolvimento do sistema no segue um encadeamento preestabelecido.As redes que emergem so, de algum modo, contingentes. Dependem dasaes do organismo no mundo e do efeito dessas aes no prprio organis-mo. O determinismo, isto , a certeza de que, dado um certo input, seguir-se- certo output, presentes no modelo computacional, do espao para oimprevisvel, a criatividade, o acaso.

    Esse organismo, que se auto-organiza, dono, portanto, no apenas deuma autonomia razovel com relao ao meio, mas tambm tem um per-curso absolutamente individual, prprio, no que tange ao seu desenvolvi-mento. Isso porque, dada a imprevisibilidade do modelo, cada crebro vai seorganizar de modo absolutamente idiossincrtico. Embora seja possvel falarde estruturas morfolgicas comuns a determinadas espcies, os indivduosque compem essas espcies sero biologicamente idiossincrticos7 .

    Hoje em dia, essas duas vertentes convivem, em embates e articulaes,nas cincias cognitivas: uma representacional, fundamentada pela contnuaanalogia com o computador e seus avanos tecnolgicos, a conhecida inte-ligncia artificial; e a outra representada pela ascenso da viso biolgica,anti-representacional, conhecida como neurocincia.

    A inteligncia artificial permanece referida, de certo modo, ao velhodualismo, j que, na relao entre hardware e software, este pode sedesvincular do primeiro, ou seja, um programa pode rodar em outros espaosfsicos. Para o neurocientista, porm, no h programa nem prvio, nemfixamente estabelecido, que possa ser desvinculado do corpo que o possui.No h separao entre corpo e comportamento (entre sistema nervoso +organismo e sua conduta), sendo a histria de um estritamente vinculada histria do outro. Isto refora uma concepo material em que o indivduoest encarnado em seu corpo, no podendo sua existncia ser compreen-dida fora dele.

    A paulatina ancoragem das cincias cognitivas na biologia do crebroafastou-as cada vez mais da interdisciplinaridade que marcou seu surgimento.O paradigma da pesquisa biolgica, com sua nfase nos achados empricose na evidncia material, passa a ser determinante no desenvolvimento dasnovas teorias sobre a cognio humana.

    Antes de prosseguirmos na caracterizao do novo sujeito que surge apartir de tais teorias, apresentaremos de forma breve o percurso dos autoresque examinamos.

    Humberto Maturana um bilogo chileno que obteve seu PhD em Harvard,

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    no final dos anos 50. Tornou-se inicialmente conhecido por seus estudossobre a viso e a percepo das cores nos animais, incluindo o homem.Adota, desde ento, uma compreenso contrria influncia do exterior nadeterminao do objeto percebido. No entanto, por ter realizado parte deseus estudos nos Estados Unidos e trabalhado no MIT (MassachusettsInstitute of Technology), e apesar de evitar o Laboratrio de IntelignciaArtificial, recebeu influncia das cincias cognitivas. Hoje professor daUniversidade do Chile, divulga seu trabalho e influencia um amplo pblico,entre filsofos, educadores, terapeutas etc. Maturana construiu seus concei-tos ao longo de seu trabalho como pesquisador. Ao abordar a questo dofuncionamento do ser vivo, ressaltou a autonomia como a caracterstica dovivente. Da surgem questes epistemolgicas, e elabora uma teoria nome-ada Biologia do Conhecer. Deseja, assim, determinar uma concepo cien-tfica do estudo do ser humano e de sua cognio.

    Francisco Varela, tambm bilogo, chileno e com PhD em Harvard, foialuno de Maturana no Chile, no final dos anos 60, tendo trabalhado com eleno laboratrio da universidade. Ao ressaltar a influncia que recebeu de seumestre, Varela acrescenta a descoberta da ciberntica e da biologia tericacomo importantes na sua formao, alm de ter na Fenomenologia umaporte terico e prtico para a compreenso do ser vivo. Varela faleceurecentemente na Frana (em maio de 2001), onde realizava suas pesquisasdesde 1986, no CREA (Centre de Recherche en Epistmologie Applique).Parte de sua obra inicial foi escrita com Humberto Maturana, quando for-mularam conjuntamente o conceito de autopoiese. Parece ter alcanado,porm, uma paulatina independncia, criando conceitos que afiguram umasutil diferena entre os autores. Por exemplo: Maturana no parece serafeito a comparaes entre disciplinas, enquanto Varela, em um dos seusmais importantes livros The embodied mind escrito em conjunto comoutros autores, prope construir uma ponte entre a mente e a cincia damente, articulando um dilogo entre duas tradies: a cincia cognitiva e obudismo. Defende que a noo de experincia, entendida como predomnioda ao sobre a razo, que construir esta ponte.

    Gerald Edelman, americano, mdico e bioqumico, foi prmio Nobel emmedicina, em 1972, por suas pesquisas sobre a estrutura e a natureza qu-mica dos anticorpos. Seus trabalhos iniciais, na dcada de 50, foram voltadospara estudos na rea de imunologia. Hoje professor da Universidade deRockefeller e diretor do Instituto de Neurologia, na Califrnia. Edelman tipicamente um homem de cincia, tendo praticado a medicina nos anos 50

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    e, aps este perodo, desenvolveu pesquisas em vrios laboratrios dos EstadosUnidos. Prope, por conseqncia, a formulao de uma teoria da mentebaseada na investigao do crebro e/ou na realidade biolgica do sistemanervoso. Em seu livro Bright air and brilliant fire, de 1992, Edelmansintetiza sua teoria biolgica da mente, chamando-a de Teoria de Seleo deGrupos Neurais (TSGN) ou Darwinismo Neuronal, por estar baseado nateoria da Seleo Natural de Darwin. Devido a sua formao, Edelmancomeou a estudar o sistema nervoso comparando-o com o sistemaimunolgico, caracterizando ambos como sistemas de reconhecimento dosinvasores externos ao organismo, procurando classificar as invases comoself e no-self. Da depreende-se uma construo de sujeito, a partir de umanova compreenso da conscincia, que Edelman tambm tem divulgado aum pblico mais amplo, levando a possveis aproximaes com a psicanlise,por exemplo (Soussumi, 2000).

    possvel afirmar que os trs autores expressam o esprito de umtempo, por isso os escolhemos para anlise. Os trs produzem um pensa-mento que nega qualquer teleologia ou transcendncia, um pensamentobasicamente anti-essencialista e antimetafsico, que enfatiza a experincia ea ao8 . Consideram que uma compreenso a respeito do humano devepartir de suas caractersticas enquanto ser vivo (dotado de corpo). A partirdeste fato, constroem teorias, que tanto se originam no laboratrio quantopodem retornar a ele para serem experimentadas

    importante ressaltar que os trs autores esto em constante dilogointerno com seus pares, ocupando cargos institucionais, ensinando em uni-versidades e recebendo prmios oficiais. Dialogam tambm com um pblicoexterno, formado por profissionais interessados em aproveitar suas formula-es para prticas especificas, construindo tcnicas, no caso da terapia(Maturana, 2000; Varela, 1989), e novas formas de compreenso da pato-logia, no caso da Psiquiatria (Serpa Jr., 2000). Constroem-se, sobretudo,teorias definidoras de uma nova forma de se conceber o humano, formandoum movimento conhecido como terceira cultura, a partir do qual inmeroscientistas surgem como um novo tipo de intelectual.

    The third culture consists of those scientists and other thinkers in theempirical world who, through their work and expository writing, are takingthe place of the traditional intellectual in rendering visible the deeper meaningsof our lives, redefining who and what we are (Brockman, 1995. Introdu-o)9 .

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    Auto-organizao: Autonomia do Ser Vivo

    Maturana e Varela (1995; 1997), a partir de seus experimentos, afirmamque o mecanismo de funcionamento do sistema nervoso fechado10 . Essesautores cunharam o termo clausura operacional, estendido a todo ser vivo,incluindo o ser humano. Este conceito marca uma diferena entre o operardo sistema nervoso e o operar do computador. Pensam, assim, escapar deuma viso representacionista ou solipsista.

    No se vem como solipsistas porque entendem que o meio participa dastransformaes do sistema nervoso, perturbando-o e desencadeando mu-danas estruturais. Mas enfatizam que, para o operar do sistema nervosono h dentro nem fora, razo pela qual o meio no determina as mudan-as. O que acontece uma co-deriva, ou seja, o ser vivo e o meio pertur-bam-se mutuamente, sem que um tenha o outro como causa (acoplamentoestrutural). Ambos so sistemas fechados. Descries que vejam a relaoser vivo/meio como de causa e efeito podem ser feitas por um observador,mas no configuram uma compreenso do operar do ser vivo.

    O organismo como um todo e o sistema nervoso de um ser vivo, portanto,so definidos por sua organizao e determinados por sua estrutura11 isto o que caracteriza a autopoiese. Um ser vivo autopoitico porque gerao seu prprio processo de produo, atravs da contnua interao de seuscomponentes, constituindo-se como uma unidade independente no espaofsico.

    O sistema nervoso constitudo de uma deriva filognica (evoluo), noobedecendo a qualquer desgnio prvio. Produz um mundo em co-deriva como meio, especificando as perturbaes que, vindas do meio, podem desen-cadear mudanas no organismo (Maturana e Varela, 1995). No se trata deadaptao e sim de mudanas que ocorrem naturalmente, sem inteno oupropsito (Teoria da Deriva Natural)12 , como parte do processo espontneodo viver.

    Buscando escapar de uma viso da representao interna do mundoexterior, Varela cria uma nova perspectiva analtica, conhecida como enao.Afirma, basicamente, que a ao predomina sobre a representao. Deseja,assim, elaborar uma compreenso da cognio que no seja desvinculada dosenso comum (nossa histria fsica e social), concluindo pela assero de umsaber ontolgico, ou seja, sujeito e objeto so a especificao um do outro,emergindo na ao. Por conseqncia, o crebro um rgo que se baseiana enao de mundos diferentes. um rgo que constri mundos, na

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    vivncia da experincia, e no os reflete (Varela, s/d).Tambm para Edelman o sistema nervoso fechado, no-representacional

    e capaz de se auto-organizar. Possui uma definio de crebro como umsistema seletivo de reconhecimento de sinais, crendo obter com isto a van-tagem de prescindir de uma idia de homnculo no interior do homem. Noh necessidade de uma agncia interna centralizadora para explicar a rela-o entre o sistema nervoso e o exterior. Como no uma questo de trocade informaes, no h uma sucesso sem fim de processadores de infor-mao no crebro. No existem homnculos que interpretem os sinais e ossmbolos vindos do exterior. O modelo do crebro como um computador,portanto, no explica o processo de cognio.

    Edelman (2000a) prope, ento, uma teoria oposta, chamando-a de Te-oria da Seleo dos Grupos Neuronais (ou Darwinismo Neuronal) que con-siste, basicamente, em compreender o funcionamento do sistema nervoso apartir da relao entre grupos de neurnios. Esses grupos so identificadosatravs de mapas porque operam por pontos de relaes com outros grupos.Sinais so percorridos de um lado a outro, entre mapas, ocorrendo diversasconexes paralelas, ao mesmo tempo.

    O sistema nervoso, visto como uma cartografia global, capaz deajustar continuamente o comportamento, independentemente dos sinais sen-soriais. Ao contrrio do que pensamos comumente, a atividade sensrio-motora depende da cartografia global, que seleciona os grupos neuronaise ajusta o comportamento. A definio de um comportamento adequado ,portanto, um critrio exclusivamente interno. Um mecanismo semelhante seleo natural darwiniana faz com que grupos de neurnios morram, sobre-vivam ou sejam fortalecidos. O nvel principal em que a seleo naturalocorre encontra-se no indivduo, devido a suas conexes neuronais, comconseqncias em seu comportamento.

    A viso do sistema nervoso como um sistema fechado se alastra a todoo organismo e relao entre as suas partes. O sistema nervoso, na relaocom o organismo, tambm no determinado, mas perturbado por ele, tendocomo uma das suas tarefas manter o corpo funcionando equilibradamente(temperatura, presso etc.). Cada parte do organismo, enfim, vista comofechada e autnoma.

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    Sistema Nervoso: uma Diferente Concepo de Conscincia e deSujeito

    Para Edelman (2000a), a conscincia humana compe-se pela integraode dois tipos diferentes de conscincia e seu modo de operar. No nvel maisbsico, est a conscincia primria que, encontrada nos mamferos comsistema nervoso, consiste em uma atividade neuronal, vinculada a certasreas cerebrais e a percepo sensorial. Essa conscincia primria ativadaatravs das reentradas dos sinais entre diversos mapas (grupos deneurnios), associados a distintas modalidades sensoriais. como estar di-ante de uma cena (comer uma ma), experimentando a cada instante umasucesso contnua de vivncias sensoriais (tato, olfato, paladar, viso e au-dio unem-se na composio da cena). , assim, uma conscincia do pre-sente, vinculada em tempo real s experincias sensoriais. A cada experi-ncia sensorial, porm, h uma atividade neuronal que a precede e a deter-mina como vivel ou no. Essa atividade neuronal, chamada por Edelman dememria de valor, adquire significado por sua evoluo (presente recor-dado).

    A conscincia secundria (ou conscincia de ordem superior) surgiu coma evoluo de certas estruturas cerebrais, que possibilitaram a emergnciada linguagem, sendo observada somente nos humanos, embora esteja esboadaem chimpanzs. Essa conscincia s possvel se existem a conscinciaprimria e a habilidade de produzir conceitos. desse modo que funciona:os processos da conscincia primria so recategorizados mediante pa-dres de reentrada (sinais trocados entre grupos neuronais) que vo geran-do, no longo prazo, modelos relacionados com a noo de self e no- self.Como conseqncia desta modelizao, o indivduo gera modelos de si e domundo, surgindo uma distino entre passado, presente e futuro, veiculadapela linguagem e aumentando a flexibilidade do comportamento.

    Conscincia primria (experincia global e imediata) e conscincia deordem superior (recategorizao, produo de si e do mundo) somam-separa formar a conscincia humana. Esta , portanto, um somatrio de sen-saes, sentimentos que decorrem das experincias sensrias e de modelosconceituais (linguagem). A conscincia no uma instncia racional. Arazo perde sua importncia, passando a ser a conseqncia, e no a causa,de um fenmeno fsico, baseado na relao entre o sistema nervoso, oorganismo e o meio desencadeante das suas respectivas operaes.

    Maturana e Varela tambm esperam compreender a conscincia a partir

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    do sistema nervoso, entendendo-o como fechado e/ou como autopoitico,ligando razo (pensamento) e emoo (sensao + sentimento) em um mesmoprocesso fsico. Mas, diferentemente de Edelman, no possuem uma teoriaque especifique mais diretamente a atividade neuronal e a experincia cons-ciente. A conscincia exclusivamente compreendida como um fenmenoque ocorre na linguagem.

    O espao psquico, para Maturana (1997), compreendido, enfatizandoo determinismo estrutural do sistema nervoso, na relao do organismo (con-duta) com o meio, isto , explica o psquico pelo relacional13 . A conscincia,portanto, um fenmeno que deve ser entendido pelas descries feitas nalinguagem, de acordo com a conduta consensual de cada indivduo.

    O pensamento de Maturana parece ser causal: o sistema nervoso produz,evolutivamente, seres dotados de linguagem que passam a se descreverfazendo distines entre si. A conscincia de si explicada pelo surgimentoda linguagem humana que, gerando o fenmeno da conscincia (nolinguajar), possibilita ao ser humano o dilogo consigo mesmo, como umoutro (autoconscincia). Ambas, a linguagem e a conscincia, necessitam dosistema nervoso para ocorrer, mas no esto em seu interior. So fenmenoslingsticos e sociais (social aqui entendido como coordenao de condu-tas). Constituem simplesmente uma capacidade de falar e descrever expe-rincias em conjunto. A conscincia , enfim, uma experincia que se d nalinguagem, no relacional e no a partir de uma entidade interior.

    Assim, uma definio de self, que se depreende da neurocincia, e vemsendo denominada como ps-moderna14 , caracteriza-se principalmente pelaausncia da noo de substncia. No h uma idia de unidade. No h aidia de uma agncia central. H uma composio da identidade que sed na linguagem, na descrio de si-mesmo. A conscincia biologicamentedeterminada, mas no localizvel no crebro, e, por conseqncia, o proces-so humano de se referir a si-mesmo no se d por uma entidade especial.A figura de uma exterioridade ao self que o definiria, como Deus, deve sersubstituda por uma noo de autotranscendncia (Dupuy, 1988), isto , aproduo de si-mesmo engendra uma exterioridade que lhe prpria,constituindo a identidade pelo fluxo de um self que sempre se reconstri, umself que causa de si mesmo ao transformar sua produo.

    Outra caracterstica a comparao com outros animais, levando concluso de que ns, humanos, no somos superiores. Somos to-somentediferentes, pela nossa capacidade de auto-referncia, a partir de um relatoque se d na linguagem. No h um sentido a priori que determine quem

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    somos. H, outrossim, uma evoluo em que foi construdo o crebro e oorganismo que temos, habilitando-nos para a fala, para a auto-expresso e,assim, inventamos valores morais ou sentidos em nossas relaes e con-versaes.

    Os trs neurocientistas definem como caracterstica fundamental do servivo a sua autonomia, caracterizando o seu modo de operar como indepen-dente em relao ao meio. Uma teoria da conscincia deve partir destapremissa, fundamentando uma concepo que, intitulada ps-moderna,refora categorias modernas, como autonomia, individualidade e liberdade,vestindo-as com novas roupagens biolgicas15 .

    Uma Lebensphilosophie Biolgica?

    Antes de passarmos ao exame do sujeito da neurocincia, cabe umabreve discusso acerca da dualidade que marca a constituio do sujeitomoderno e sua relao com a natureza.

    Essa dualidade tem sua origem no fato de a pessoa moderna se constituire ser pensada como um indivduo significando que seu pertencimento auma totalidade, seja ela csmica ou social, problematizado. O individualis-mo moderno assenta-se sobre dois pilares fundamentais: a igualdade e aliberdade. Todos os indivduos nascem livres e iguais, reza a DeclaraoUniversal dos Direitos Humanos, que pressupe uma concepo geral eabstrata universal do ser humano, capaz de atravessar sculos, culturase diversidades biolgicas.

    Quanto liberdade, esta pode ser pensada a partir de dois pontos de vistano necessariamente convergentes. De um lado, a liberdade do cidado,participante de uma sociedade de contrato. De outro, a liberdade de cons-cincia, de crena como liberdade interior. Esta nos remete concepofundamental de interioridade, que, desde pelo menos Agostinho, delineiauma espcie de espacialidade (um dentro e um fora) para a pessoa moderna,concebida como dotada de uma vida interior, espiritual que a define intrin-secamente. A interioridade e a liberdade a ela associadas, alm de implica-rem a afirmao da singularidade desse indivduo, associaram-se paulati-namente a um plano mental ou psicolgico distinto do corporal ou fsico.

    Em outro trabalho chamamos ateno para a tenso entre essas duasfaces do indivduo moderno: de um lado, a igualdade poltica e jurdica; deoutro, a diferena baseada na completa singularidade interior (Russo, 1995).Referimo-nos aqui j clssica formulao de Simmel sobre o individualismo

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    da singleness (que enfatiza a igualdade) versus o individualismo dauniqueness (baseado na liberdade). Essa dualidade recobre modos diferen-tes de relao com a natureza. Em As fontes do self, Charles Taylor serefere a duas constelaes de idias formativas do universo de pensamentomoderno, vinculando-as a percepes divergentes da natureza:

    (...) uma liga uma percepo intensa de nossas capacidades de razo des-prendida a uma leitura instrumental da natureza; a outra concentra-se emnossas capacidades de imaginao criativa e conecta-as a uma percepo danatureza como fonte moral interior. Essas formas apresentam-se como rivais,e a tenso entre elas um dos traos dominantes da cultura moderna(Taylor, 1997, p. 532).

    Tais percepes esto imbricadas em um conflito constitutivo da pessoamoderna:

    Algo fundamental muda no final do sculo XVIII. O sujeito moderno j nose define apenas pela capacidade de controle racional desprendido, mastambm por essa nova capacidade de auto-articulao expressiva a capa-cidade que tem sido atribuda desde o perodo romntico imaginaocriativa. Ela atua, em certos aspectos, na mesma direo que a capacidadeanterior: intensifica a sensao de interioridade e leva a um subjetivismo maisradical ainda e a uma internalizao das fontes morais. Mas, em outrosaspectos, essas capacidades esto em conflito. Seguir a primeira at o fim adotar uma postura de desprendimento da prpria natureza e dos prpriossentimentos, o que torna impossvel exercer a segunda. Uma pessoa modernaque reconhea ambas essas capacidades est constitucionalmente em confli-to (Taylor, 1997, p. 499-500).

    A postura instrumental (personificada no sujeito da razo desprendida),implica a objetificao e neutralizao da natureza, vista como separada dosujeito, que por sua vez mantm com relao a ela uma independnciamoral. A era romntica nos teria legado a aspirao de reunificao: de-volver-nos o contato com a natureza, eliminar as divises interiores entrerazo e sensibilidade, superar as divises entre as pessoas e criar a comu-nidade (Taylor, 1977, p. 492). Segundo Taylor, essa batalha entre, de umlado, a razo instrumental e, de outro, uma concepo expressivista danatureza, continua sendo travada em nossos dias, na controvrsia sobrepoltica ecolgica em que duas perspectivas se opem:

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    [uma que] v a dignidade do homem em seu controle de um universoobjetificado por meio da razo instrumental e outro que afirma a necessidadede se reconhecer que somos parte de uma ordem maior de seres vivos, nosentido de que nossa vida vem dela e mantida por ela (Taylor, 1997, p.492).

    Nossa inteno verificar de que modo a concepo de sujeito queemerge das teorias neurocientficas se articula a essa dualidade constitutivado pensamento moderno a afirmao concomitante de um sujeito des-prendido, capaz de um conhecimento neutro e objetivante, e de um sujeitoque parte de uma totalidade a qual ele s pode conhecer, atravs daexperincia encarnada.

    Uma primeira leitura de nossos autores revela, de imediato, a proposta deuma ancoragem biolgica da singularidade e da autonomia. Caractersticasque, como vimos mais acima, esto referidas interioridade propriamentepsicolgica, aqui passam a se ancorar numa interioridade biolgica (ex-presso, como veremos, inadequada).

    A ancoragem da liberdade na natureza biolgica ou material do homemimplica uma radical mudana de perspectiva, j que a afirmao da autono-mia do ser humano sempre serviu como argumento contra uma leitura es-tritamente biolgica do homem. Dentro de uma concepo kantiana de ummundo fsico sem alma, essa viso mais tradicional concebia o biolgicocomo sinal de determinismo absoluto e, portanto, falta de liberdade. Domesmo modo, o estrito determinismo que se atribua ao mundo material/natural ia de encontro a uma definio do ser humano como agente criador,original e singular.

    A novidade, portanto, da viso fornecida pela neurocincia articularesses valores fundamentais total naturalizao do ser humano16 . Poisno apenas nele que a autonomia e a individualidade/singularidade surgemcomo valores. Ao contrrio, s so valores humanos porque so valores doser vivo em geral, independentemente do seu grau de organizao ou com-plexidade. Os valores humanos por excelncia, na verdade, se aplicam aqualquer ser vivo. O homem, sua mente, seu esprito, podem ser naturalizadosporque as caractersticas bsicas de seu funcionamento so as caracters-ticas bsicas do funcionamento da natureza como um todo.

    Neste sentido, talvez seja possvel falar que a naturalizao do ser huma-no correlata a uma espcie de humanizao e, por que no dizer, encan-tamento da natureza17 . Esta deixa de ser um objeto (de interveno, de

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    manipulao, de investigao) que se oferece ao esprito humano para setransformar num sujeito de suas prprias transformaes. possvel vernesse movimento a radicalizao de uma das caractersticas bsicas doindividualismo moderno: o igualitarismo, isto , o achatamento das diferenaspela negao de qualquer hierarquia. A naturalizao do humano/humanizaoda natureza nos parece ser claramente a exacerbao da postura anti-hierrquica e niveladora que caracteriza o universo de valores moderno.

    Por outro lado, trata-se do achatamento de um determinado tipo de di-ferena uma diferena propriamente hierrquica, porque calcada numadisparidade de valor que implica superioridade de um dos termos sobre ooutro (no caso, das capacidades superiores do ser humano frente aosoutros animais e seres vivos). O achatamento dessa diferena de valor concomitante valorizao da multiplicidade, da pluralidade e daimprevisibilidade que marcam as diferenas entre indivduos de uma mesmaespcie ou entre espcies. Ou seja, a uma espcie de igualdade radical entreos seres vivos corresponde uma singularidade no menos radical.

    A negao de qualquer hierarquia vincula-se a um antiessencialismoextremado. As noes de acaso e contingncia, j presentes na teoriadarwiniana, so levadas a seu extremo, e a noo de viabilidade apre-sentada como justificativa para a existncia ou persistncia de um determi-nado ser vivo (ou uma caracterstica deste)18 . Qualquer idia de um desg-nio, ou de uma predeterminao, negada. Do mesmo modo, a idia segun-do a qual a sobrevivncia depende de uma melhor ou pior adaptao ao meio descartada, pois suporia uma gradao de valor entre os diferentes orga-nismos ou suas caractersticas.

    Alm disso, a prpria noo de auto-organizao que, levada ao limite,implica a negao de um mundo prvio ao sujeito, problematiza a noo deadaptao ao meio. Ao contrrio, o organismo, ao se auto-engendrar, engen-dra tambm o mundo em que vive. A distino entre dentro e fora seesfumaa, j que a auto-organizao pressupe um acoplamento organismo-meio em que cada um dos termos no pode ser pensado separadamente.Esse modo de conceber a relao organismo-meio tem conseqncias im-portantes no que tange forma tradicional de se pensar o ser humano.

    Em primeiro lugar, a negao de qualquer essncia e a nfase no pro-cesso de auto-engendramento implicam a negao do self como algo queexiste em si, uma espcie de agncia central, responsvel pela organizaoe ordenao das percepes (o que vem de fora) e pelas aes e pensa-mento (que vm de dentro). O self, ao contrrio, est sempre se constitu-

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    indo, um processo19 . Essa concepo se assenta na afirmao de umaradical plasticidade das redes neurais que compem o sistema nervoso.

    Esse eu exteriorizado em processo aponta muito mais para o desenrolarde suas aes no futuro do que para nexos causais localizados em suahistria passada. Pelo contrrio, a prpria noo de causalidade se complicadadas a multiplicidade, a complexidade e a imprevisibilidade das conexesneurais. No se trata tanto de buscar no passado as causas do comporta-mento presente, mas sim de operar no presente e no futuro, visando a umcomportamento mais vivel ou mais interessante. Embora a histria de cadaum seja singular e irrepetvel (ou por isso mesmo), ela no produz umaestrutura subjacente passvel de anlise atravs dessa prpria histria (como o caso com a psicanlise). As conexes e redes que emergem em deter-minado momento e em determinado contexto, embora possam acionar amemria de conexes e redes passadas, no so congelveis numa estru-tura estvel, j que novas propriedades globais podem sempre emergir.

    A neurocincia radicaliza, neste sentido, o descentramento do eu jesboado pela psicanlise. De fato, todo o arcabouo terico da psicanlisese construiu em torno do tema da diviso de si, isto , da negao de umaunidade ou coerncia do eu. Entretanto permanece, de algum modo, a idiade uma espcie de agncia central, o ego, mesmo que sua ao comoagncia central seja uma iluso frente s exigncias do id e do super-ego.A diferena crucial parece-nos estar na permanncia de uma hierarquia ouum certo tipo de organizao (ou estrutura) entre as diferentes instnciasque compem o sujeito, o que no o caso agora, na neurocincia. Amultiplicidade subjacente ao self (que d a idia de mltiplos selves) noimplica qualquer hierarquia. E, longe de ser o sinal de algum tipo de sofri-mento ou destino trgico do ser humano, como o caso da relao conflituosaego-id-superego, constitui-se numa caracterstica positiva e desejvel, poisaponta para a plasticidade, a capacidade adaptativa e criativa do ser vivo emgeral (e do ser humano em particular).

    A afirmao de uma radical plasticidade do sistema nervoso e do seufuncionamento de fato distancia a neurocincia do decantado pessimismofreudiano. Por um lado, a indeterminao/imprevisibilidade dos seres vivos,bem como sua originalidade e capacidade de responder criativamente asituaes tambm imprevistas so enfatizadas. Por outro, as possibilidadesde auto-aperfeioamento, auto-reparao, expanso das prprias possibilida-des aumentam exponencialmente. De fato, toda uma puericulturaneurocientfica, por exemplo, tem surgido com o objetivo de ensinar pais,

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    professores e cuidadores de um modo geral, a desenvolver apropriadamenteas capacidades cognitivas/intelectuais das crianas desde a mais tenra idade.A neurocincia nada mais faz que seguir e aprofundar o caminho j traadopela chamada medicina do comportamento (psiquiatria, psicanlise, psicolo-gias), oferecendo um aconselhamento especializado na arte do bem-viver.H, entretanto, uma diferena importante. O trabalho sobre si, proposto poresse novo aconselhamento cientfico, no envolve um processo reflexivo deauto-exame. Trata-se, ao contrrio, de uma espcie de autocultivoexteriorizado, que se processa no fazer, na experincia de viver, no em umaindagao sobre si. Como j vimos, a prpria idia de uma interioridadepropriamente espiritual ou psicolgica que descartada.

    Voltamos afirmao feita mais acima: o radical desencantamento oudessacralizao das qualidades distintivas do ser humano parece correspondera um re-encantamento da natureza. Se o ser humano pode ser reduzido sua natureza de ser vivo, se toda sua complexidade (pensamento, razo,conscincia, linguagem) pode ser compreendida a partir dessa natureza, porque a natureza em si possui as qualidades que antes atribuamos apenasao ser humano. A natureza capaz de intencionalidade, autonomia ecriatividade. Neste sentido, pode-se falar numa totalidade fsico-moral, noapenas no que diz respeito ao sujeito humano no qual a separao corpo/mente deixa de fazer sentido mas tambm, e principalmente, no que tangeao mundo dos seres vivos como um todo. A moral ou o valor estoentranhados (encarnados) no prprio modo como a vida se organiza noplaneta. Neste sentido, acreditamos ser possvel falar de um mundo fsicore-encantado. O que nos leva de volta a uma questo colocada nas nossasobservaes preliminares: a articulao possvel entre a viso de mundoproposta pela neurocincia e o movimento contracultural da segunda metadedo sculo XX.

    Como vimos, a atual tendncia adoo de uma viso totalmente natu-ralizada do ser humano sobretudo daquelas caractersticas, tais comoconscincia, razo, linguagem, que tradicionalmente o distinguiam dos outrosanimais corresponde ancoragem do esprito no corpo, o que significou,no tanto uma reduo materialista do humano, mas uma transfiguraoespiritual da natureza material. Esta, como se viu, passa a ser dotada decaractersticas tradicionalmente vistas como humanas, numa espcie deneovitalismo sem princpio vital. Parecemos estar frente a umaLebensphilosophie materialista20 , fundada em uma crtica ao paradigmaracionalista clssico e ao materialismo mecanicista e afirmando a vida como

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    valor supremo. guisa de concluso, possvel afirmar que o sujeito da neurocincia,

    tal como se depreende da leitura dos trabalhos de Varela, Maturana e Edelmane seus comentadores, no parece tanto se fundamentar na negao dospressupostos que sustentam o sujeito moderno, mas sim na sua radicalizao.Como vimos, singularidade/originalidade e autonomia so caractersticasfundantes daquele. Do mesmo modo, a negao anti-essencialista do selfpode ser interpretada como a radicalizao do descentramento do sujeitoproposto pela psicanlise e presente em importante vertentes do pensamentofilosfico do sculo XX, calcadas na crtica viso unitria e coerente doeu.

    A leitura radicalmente materialista do esprito, numa espcie de novaaliana entre homem e natureza, por sua vez, nos remete velha aspiraode reunificao romntica a que se referiu Taylor.

    Por outro lado, verdade que o sucesso da leitura neurocientfica doser humano faz parte da virada biolgica mais ampla a que nos referimosem nossa introduo. Essa virada, sabemos, motivo de grande preocupa-o, j que o sonho totalizante da biologia como uma cincia unificadora,aliado ao desenvolvimento aparentemente ilimitado da biotecnologia, guardasemelhanas assustadoras com o pesadelo eugnico dos anos 30. No entan-to, embora fazendo parte do ufanismo biolgico que alimenta a biotecnologia,a leitura hipernaturalista do humano empreendida pela neurocincia, comovimos, leva a uma espcie de re-encantamento da natureza, aproximando-se das crticas ecolgicas ao cientificismo mecanicista e instrumental.

    Neste sentido, a atual hegemonia do paradigma biolgico contempla asduas vertentes que, citando Charles Taylor, assinalamos como constitutivasdo universo do pensamento moderno a razo desprendida e a naturezacomo fonte moral. Seu contnuo enfrentamento parece ser a garantia de quenossa aproximao de um admirvel mundo novo huxleyano uma ameaas vezes perigosamente palpvel, mas nunca realizada.

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    Referncias Bibliogrficas

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    NOTAS

    1 Antroploga, professora adjunta do Departamento de Polticas e Instituies de Sade,Instituto de Medicina Social da UERJ.

    2 Psicloga, doutoranda do Programa de Ps-graduao em Psicologia Clnica da PUC-RJ.

    3 Colin Campbell, em seu texto A orientalizao do Ocidente, afirma que a teodicia crist,tradicionalmente hegemnica na cultura ocidental, estaria sendo substituda por outra, que elechama oriental, no por influncia de uma pretensa cultura oriental, mas pela ascensode uma vertente at ento dominada da prpria cultura ocidental, vertente esta que eleidentifica ao movimento romntico e seus sucedneos. Outros autores, como Charles Taylore, entre ns, Luiz Fernando Duarte, argumentam a favor de uma tenso constitutiva entreessa vertente romntica e o racionalismo universalizante que a ela se ope (Taylor, 1997e Duarte, 1994).

    4 No vamos discutir aqui a questo certamente importante da difuso diferencial da psicanlise(e de qualquer outro conhecimento douto) entre indivduos pertencentes a camadas sociaisdiversas e com diferentes nveis de escolaridade.

    5 Em The romantic ethic and the spirit of modern consumerism, Collin Campbell chama atenopara o claro parentesco entre o movimento contracultural do sculo XX e o movimentoromntico que marca a passagem do sculo XVIII para o XIX.

    6 Estamos deixando de fora toda a importantssima discusso sobre a relao corpo-mente levadaa cabo no interior da filosofia da mente contempornea, cujo dilogo com a neurocincia intenso. Tambm ao escolher esses autores, deixamos de lado outra vertente (como arepresentada por Francis Crick ou Roger Penrose), cujo reducionismo fisicalista maismarcado, dificultando o intercmbio com as cincias humanas (Searle, 1998). As teorias deVarela, Maturana e Edelman, ao contrrio, freqentam com desenvoltura o discurso depsiclogos, psicanalistas, filsofos e mesmo socilogos up to date, o que certamente asqualifica como srias candidatas a Weltanschauungen contemporneas.

    7 Aps descrever a complexidade envolvida no funcionamento cerebral, Edelman afirma: Ilest presque impossible dtablir des comparaisons entre individus concernant le nombre decombinaisons molculaires significatives qui interviennent dans une telle squencedvenements, mme lorsquil sagit de jumeaux identiques (Edelman, 2000a, p. 257-8).

    8 Podemos encontrar uma fonte de inspirao para esses autores na histria da filosofiaamericana que, segundo Land (2001), tem como principal corrente o naturalismo pragmtico,tendo sofrido a influncia do materialismo, do empirismo e do positivismo lgico.

    9 Mais informaes e o texto completo do livro citado podem ser encontradas na pgina

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    www.edge.org. L se encontram textos e posicionamentos desses novos intelectuais, inclusiveos mencionados por ns. Argumentamos no decorrer deste artigo que essa redefinioproposta pela terceira cultura, bem como a concomitante nfase na experincia e na ao,localiza-se no interior da voga neo-romntica contempornea, a que Campbell se refere comoorientalizao do Ocidente (ver nota 4).

    10 Um exemplo continuamente retomado em suas argumentaes. Trata-se de um experimentorealizado com um girino. Foi cortada a borda do seu olho, sem tocar no nervo ptico, girandoo olho at completar 180 graus. O animal desenvolveu-se at a fase adulta. Foi mostradoum verme ao sapo de laboratrio, cobrindo o olho que foi virado. Ele acerta o alvo comsua lngua. O experimento foi repetido cobrindo o olho normal e o sapo projeta a lngua comum desvio de 180 graus, errando o alvo. Maturana e Varela chegam concluso de que o sapoprojeta a lngua como se a zona da retina onde a imagem da presa se forma estivesse emsua posio normal. Por conseqncia, demonstrado, pela conduta deste animal, que oespao do mundo exterior no existe, j que no recebe uma informao espacial e sim umaorientao advinda de uma correlao interna entre o lugar de onde a retina recebe umadeterminada perturbao e as contraes musculares que movem a lngua, a boca, o pescooe, em ltima instncia, todo o corpo do sapo (Maturana e Varela, 1995, p. 157).

    11 Chamarei a esses elos necessrios entre elementos constitutivos que do a um sistema aidentidade invarivel, a sua organizao. E chamarei a tudo que muda, embora permanecendosujeito organizao, a estrutura do sistema (Varela, 2000, p. 106).

    12 Influenciado por Darwin, pelo aspecto da evoluo (transformao contnua), Maturana tece,entretanto, algumas crticas, construindo uma teoria da evoluo diferenciada (Graciano,1998). Sua teoria isenta de uma conotao competitiva, encontrada inicialmente emDarwin, quanto sobrevivncia das espcies; e tambm isenta de uma determinao genticaestrita (ps-Darwin), em que o meio no desempenharia nenhum papel. A evoluo, paraMaturana, um somatrio de processos, determinados estruturalmente, que ocorrem nointerior do ser vivo, mais sua conduta no meio em que vive.

    13 Graciano, em sua tese sobre Maturana, explica: Maturana funde os termos psquico,mental e espiritual, e aponta o domnio de nossa conduta como o domnio de existnciadesses fenmenos (Graciano, 1997, p. 29).

    14 Dennett, filsofo da mente, articulador da inteligncia artificial e das descobertas da biologia,defende uma idia de mltiplos selves, anloga experincia que costuma receber o diagnsticopsiquitrico de personalidade mltipla (Dennett, 1986; 1989; 1997). Gergen (1992), psiclogosocial, tambm defensor de uma noo de self composto por mltiplas identidades, carac-terstico da ps-modernidade, mas no faz referncias biologia. O universo desta com-preenso de self vem, portanto, se estendendo.

    15 Os autores tematizados descartam cientificamente a viso de um sujeito com uma substnciaintrnseca e mundo interno independentes do corpo, tal como propunha Descartes no incioda modernidade. Conjugam o operar do ser vivo autnomo (mas sem alma) com a produode uma dinmica sempre original, nunca transcendendo o corpo. Dessa forma, ns, sereshumanos, tornamo-nos, mais e mais eficientemente, observadores e construtores da nossaprpria realidade individual e social. O mundo s existe para cada indivduo singular a partirdos sentidos construdos a posteriori na linguagem. H muitos selves que podem ser descritos.Cada self vai assim emergindo na relao entre seres que se autocriam e configuram o seumeio. Neste sentido, o social sempre uma construo que parte de uma iniciativa individual,sendo caracterizado pela singularidade de cada parte envolvida e no por um todo quepredominaria sobre as partes (Maturana e Varela, 1997; Edelman, 2000a; Maturana, 2000).

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    16 Da ciberntica ao conexionismo, observa-se a passagem de mquinas com uma finalidade pr-programada (reducionismo) para mquinas autnomas (complexidade). A autonomia, an-teriormente vista como originada de uma fonte espiritual, agora material. Essa nova visode autonomia, mesmo sendo vista como fruto de um modo de operar maquinal que caracterizatodo ser vivo, refora a produo da diferena exponencialmente, caracterizando a vida poresta autoproduo (Dupuy, 1988).

    17 J em 1979, data da primeira edio de seu livro La nouvelle alliance, Illya Prigogine eIsabelle Stengers ele detentor de um prmio Nobel em qumica, ela qumica e filsofa dacincia referiam-se a um re-encantamento do mundo a partir do novo paradigma surgidonas cincias a partir de meados do sculo XX.

    18 Segundo Faveret, o mundo vivo tambm um mundo totalmente marcado pela indeterminao,em que os possveis, as contingncias e as circunstncias so os nicos eixos a orientara atividade vital. Se h alguma determinao que se imponha sobre o ser vivo, apenas ade que ele se mantenha vivel, num processo incessante (Faveret, 1996/7, p. 68).

    19 Desta forma, os seres vivos tm uma identidade flutuante, que se afirma em e por seufuncionamento, uma identidade processual (Faveret, 1996/7, p. 66).

    20 A Lebensphilosophie surge na Alemanha na virada do sculo XIX para o sculo XX, tendocomo seus expoentes Dilthey, Simmel, Scheler, Jaspers e Henry Bergson, na Frana. ummovimento de revitalizao sustentado na crtica ao materialismo mecanicista, ao individu-alismo extremado e ao racionalismo cientificista. Retoma de Nietzche a afirmao de umaNova Ordem, de uma sociedade revitalizada. Toma a vida como valor supremo, enfatizandoa experincia e a intuio em detrimento do empirismo e da razo.

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    ABSTRACT

    The Subject in Neuroscience: from the Naturalization of Man to theRe-Enchantment of Nature

    The objective of this article is to circumscribe the concept of subject thatemerges from neuroscientific theories of the mind. We approach three keyauthors from the field of neuroscience: Francisco Varela, Humberto Maturana,and Gerald Edelman. Based on an analysis of their work, we conclude thata given concept of subject, founded on an entirely materialist view of themind, emerges as an advantageous substitute for what we could call apsychological concept, based principally but not exclusively onpsychoanalysis. We discuss the hypothesis that the current success of theneuroscientific vision of human beings, while in fact pointing to somedegree of break with the so-called modern paradigm, may also be interpretedas the radicalization of given characteristics and contradictions present in theconstitution of this paradigm itself and, consequently, that of the modernperson.

    Keywords: Neuroscience; modern person; mind.

    Recebido em: 01/11/2002.Aprovado em: 02/12/2002.