O xamã como construtor de mundos - Overing

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    ,/80 Principio.\l'u ndamenlais d a l'ilo.\ofla [)ireilo.:Adendo . Os dois principios que consideramos ate agora, 0 bern abstratoassim como a s c i ~ n c i a moral, carecem do seu oposto : 0 bern abstratose volatiliza em algo completamente desprovido de forp, no qual euposso introduzir qualquer contetJdo, e a subjetividade do espirito nao setorna menos desprovida de teor, por Ihe fugir a significa9ao objetiva.Pode surgir dai a nostalgia por uma objetividade, na qual 0 homem prefere rebaixar-se il servidao e acompleta depe'ndencia, tao s6 para escapardo torme;nto do v ~ z i o e da negatividade. Se, recentemente, muitos protestantes se converteram a Igreja 'Cat6lica, e por que 0 seu interior seIhes deparou sem c o n s i s t ~ n c i a e buscavam algo de s61ido, urn apoio ,uma autoridadt;, ainda que nao fosse' a solidez do pens-amen to 0 queobtinham. A unidade do bern subjetivo e do bern objetivo sendo em si cpot si e a eticidade, e nela realizou-se a reconcilia9ao 'segundo 0 conceito . Pois, se a moralidade e a orma da vontade em geral segundo 0 ladeda subjetividade, entao a eticidade nao e rtleramente a forma_subjeUva ca utodetermina9ao da vontade, senao que consiste em ter por conteudoo conceito dessa forma subjetiva, a saber, a liberdade . 0 juridico e 0moral nao podem existir por si, e necessitam ter 0 etico por suporte efUJ'lda9aO, pois aodireito falta 0 momento da subjetividade, que a moraltern, sozinha, por si, e, assim, ambos os momentos nao tern, por si,nenhuma efetividade. S6 0 infiniLO , s6 a ideia e efetiva: 0 direito s6existe como ramo de urn todo, como a hera que serpent; ia em torno deuma arvoreestavel em si e por si .

    Ideias , Campinas, 1(2): 39-80, jul.ldez., 1994

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    o XAMA COMO CONSTRUTOR DE MUNDOS:NELSON GOODMAN NA AMAZONIA

    Joanna Overing ..

    "Se mundos sao tao construidos quanta dados, assim tambem conhecer e tanto refazer quanta descrever . . Compreensao e c r i a 9 ~ 0 caminham juntas.o realista resistira a concJusao de que nao hcimundo; 0 idealista resistini a concJusao de que todas as vers6es conflitantes descrevem diferentesmundos . De minha parte, considero estes pontos de

    ,vista tao atraentes quanta deploraveis - porque, afinal, a diferen9a entre eles e meramente convencionat" . 1

    o caminho para compreender 0 conhecimento especializadoentre os Piaroa - povo da floresta tropical da bacia do qrinoco,na Veqezuela - foi para mim longo e frustrante, perturbado pordesvios e vias de mao (mica . Finalmente chegou urn tempo em'que .eu podia obter do ruwang, 0 lider poiftico e religioso Piaroa,respostas acerca dos territ6rios de seu universo que ja hao me*Publica do original mente em Man (n .s.) 25:602-19, este texto foi apresentadoem conferencia ao IFCH/UNICAMP em abril de 1992 . - Tradw,:ao da Profa .Nadia Farage - Departamento de Antropologia, IFCH/UNICAMP.**London School of Economics & Political ScienceIN. Goodman, Ways of Wordmaking , Brighton , Harvester Press, 1978, pp. 22e 19.ldeias, Campit;tas, 1(2): 81 -1l8,jul.ldez., 1994 ,

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    82 oXama clomo cOl1slrulor de mundm':"surpreendiam, e eu comecei mesmo a predize-Ias. Encontrar meu

    pr6prio_caminho era uma coisa, comunicar e traduzir seus ensinamehtos, poiem, era outra. S6 quando Ii 0 trabalho de NelsonGoodman - Ways of Worldmaking - fui capaz de entender suficientemente os processos pelos quais 0 ruwang constru'ia conhecimento; de modo a esboc;ar mapas que 0 leitor ocidental pudesseseguir. A riqueza da linguagem cantada pela qual 0 ruwallg manifestava seu conhecimento tornou-se mais perceptive'!, ganhandocoerencia aquilo que eu: por longq tempo, entendi como caos,obscuridade, ambigiiidade e confusao.

    Na qualidade de reconhecido fil6;ofo da ciencia e da lin--guagem americano - bern conhecido por seu trabalho em quest6esaltamente tecnicas, tais como teoria indutiva, condicionais contrafactuais e medidas de simplicidade em sistemas construtivos -,Goodma.n e uma surpreendente fonte de auxflio para 0 antrop6-logo que tenta fazer sentido do pensamento alucinogenico examanlstico entre...povos da floresta tropical. No entanto, em seuultimo trabalho, eXemplificado por do s c;le seus livros -Languages of Art (1968) e Ways of Worldmaking (978)-, seuinteresse por estrutura 0 levou a cruzar as fronteiras entre arte eciencia, e olhar para os processos cr.iativos seguidos por amba.sem' suas respectivas constru

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    84 o Xama como cons/rut or de mundos: ... .na filosofia da ciencia) para uma preocupa():ao mais ampla com aestrutura de diversos sistemas de sfrnbolos nas ciencias, fIJosofia, 'artes, percep():ao e discurso cotidtano. .

    Um argumento que avan():are . neste artigo e 0 de que osprocessos de . onstru():ao de mundo (para substituir minha metafora inicial de elabora():ao de mapas pela metafora de Goodman)observados no O c i d ~ n t e e na fluresta sao bastante s.emelhantes. 0cientista, 0 artista, 0 narrador de mitos, 0 historiador e 0 xamacurador estao "fazendo, em larga medida, a mesma coisa" emconstru

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    86 o Xam5 como construtor de mundos: ...bate antropol6gico tenha sido dedicado a esta questao (0 primitivo como poeta ou cientista), a resposta, em si mesma, naa eimportante. Precisamos, de novos meios - quanta mais tecnicos,melhor - que permitam compreender processos de cria

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    88 - 0 XamG como construtor de 'mundos: ... ."processo de pensamento" .14 No maximo, podemos dizer quenossos informantes estao sendo poeticos e ambfguos, apesar deliriveridfcos, tgnorantes ou indiferentes quanta a verdade sabre 0mundo. Vma solw;:ao prevalente, nesta linha, 'e a de afirmar quediscurso simbolico nao pode nunca ser tomad.o literalmente, porque sua i n t e n ~ a o reale expressar chavoes metaforicos ace rca 'daestrutura social. .

    Certo e que a confusao e frequentemente nossa: nos e.que assumimos esta ' imagem de urn mundo unificado, unico, enao .eles. Nos tentamos tratar o'(s) mundo(s) inteiro(s) de conI:tecimento de uma outra cuItura como urn sistema unitario, como 0l 'mito da ciencia diz que 0 mundo (tealidade) e, e .entao nosperguntamos porque "as leis da logica'" nao se aplicam. Nosratulamos "0 outro" de o b s c u r ~ e misteJioso em seu processo depensamento, quando e mais provavelque nao tenhamos entendido .a r e 1 a ~ a o entre sua " s i m b o l i z a ~ a o " e seus padr6es de conhecimento e de explicac;ao, bern como a r e l a ~ a o de tais padroes comquestoes praticas. ,

    Em Ways of Worldmaking, Goodman sustenta que se haurn mundo ou muitos, isto depende de nosso modo de falar, eque, para ele, se de fato ha urn 6u diversosrnundos nao e umaquestao relevante,pois 0 'que p o d e m o s s a b e r sao vers6es demundos, que se encontram sempre ligadas a quadros de referencia. Nao se pode dizer 0 que _algo e sem urn quadm de r e f e r e n ~

    cia. Sob urn quadro de referencia A, 0 mundo tern pontos comoi r t t e r s e c ~ o e s de pares de linhas. Sob urn quadro de referencia B, 014 Veja-se a interessante, mas quase incompreensivel, s o l u ~ a o de S p e r b ~ r , quediz que "conhecimento ~ i m b o l i c o nao e nem acerca de categorias semanticamente entendidas, nem acerca do muodo, mas acerca de entradas encic\opedicas de categorias. Este conhedmento nao e nem ac e rca de pal avras. nem acercade .caisas , mas ace rca da memoria de p alavras e de coisas", in RethinkingSimbolism, op. cit., p. 108.

    , ideias, Campinas, 1(2): 81-118,jul.ldez., 1'994'-

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    Joanna Overing 89. .mundo tern Iinhas trac;adas entre pares de pontos. Ou, .em outrocaso, sob 0 quadro de refetencia A, a terra danc;a . no papel dePetrouchka, enquanto sob 0 quadro de referencia B, a terra permanece imovel.. 0 argumento de Goodman e 0 de que taiS quadros de re.ferencia per:tencem antes a sistemas de descric;ao, e naQ ao que edescrito)5 Cilda uma das afirmac;6es acima relaciona 0 que edescrito a urn tal sis'tema. Nas palavras de Goodman:( ...."Se eu pergunto acerca do mundo, voce pode se

    Oferecer a me contar coll?o ele e: ob urn au m-aisquadros de referencia; mas se euinsisto que voceme conte como ele e fora de todos os quadros, 0que voce pode dizer? Somas confinados a modos de .descri!;ao, seja a descri-to 0 que for" .16I.Goodman observa que nossoconhecimento epercepc;oes

    sao informados por uma vasta variedade de versoes de mundoproveniente das varias ciencias, das obras de pintores e ae escritores, da execuc;ao de sinfonias, e assim por diante . Estas vers6esde mundo, muitas vezes' dramaticamente contrastantes, n a ~ s i i oredutivds uma a outra; todaselas' participam do processo de conhecer.17 Nos fazemos e refazemos mundos 'descritos de variosmodos. Que haja muitas vers6es de mundo naot! questao trivialporque, em sua multiplicidade,. elas participam dos processospelos quais nos conhecemos,percebemos, compreendemos e,portanto, experimentamos, "0 mundo" .18 ,15 Quanto a esse ponto, veja-se tambem os fil6sofos da ciencia como A. Rortyem Philosophy-and the Mirror of Nature, Oxford, Ed. Basil Blackwell, 1980, eP. Feyerabendem Against Method, Londres, New Left Books, 1975.16 WaY-I: of Worldmaking, op.' cit., pp. 2-3 . . ,17 Idem, ibidem, p. 22.18 Idem, ibidem, p. 3.Jdeias, Campinas, 1(2): 81-118, jul.ldez., 1994

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    90 () .ramo ( ) ~ ( ) COl7strutor de mundo.\: .Isto posto, Goodman entao silstenta que nao ha urn solidoalicerce de realidade ao qual possamos nos voltar a fim de eSli-mar vers6es de mundo . Uma vez 'que a redw:;ao de um sistema aoutro c rara,

    "em qualquer scntido razoavclmcntc estrito, de-mandar redutibilidadc total c (mica a fisica au qualquer outra versao seria se adiantar a quasc todas asoutras versoes".1

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    92 o Xam5 como cons/ru/or de mundos: ..."mftico"). Em outras palavras, identidade ou c o n s t a n c ~ em urnO1undo e sempre, identidade com r e l a ~ a o ao que e naquele mundo,em sua o r g a n i z a ~ a o p a r t i ~ u l a r . Mundos contrastantes podemigualmente ser -criados at raves de processos de . pondera9ao, de

    v a r i a ~ o ~ s em ordenamento, de supressao ou suplementa9ao, bern ,como de d e f o r m a ~ a o . 25 No retratar, a p o n d e r a ~ a o visual de aspectos como volume, linha, posi9ao ou luz pode-se 'alterar, e, assim, retratos antigos podem ser considerados estranhamente pervertidos, enqUlinto as . ' ecentes parecem deliciosamente"corretos". Propositos conflit'!ntes podem ,criar nuan-ces irreconciliaveis, e portanto, mundos contrastantes. Ordenamentos de diferentes tiposperpassam a p e r c e p ~ a o e c o g n i ~ a o pnitica. Porexemplo, a natureza das formas varia sob diferentes geometrias,assir,n cQ;no os . pad roes percebidos var iam sob estes di ferentesordenamentos . .Em contrapartida, 0 artista que produz uma repre-,senta9ao espacial, que olhosocidentais contemporaneos aceitaraocomo confhivel, deve desafiar as "leis da geometria" .26 0 cientista despreza (suprime). ou depura a maior parte 'das entidades eeventos do mundo das coisas cotidianas" ao mesmotempo empreenche as curvas a p ~ n a s insinuadas por dados escassos. 27 0 ffsica 'pode .suavizar a mais simples e tosca curva, enquanto 0 caricaturista pode exagera'r sua irregularidade.

    Po r meio da discussao de ,Goodman destes varios processqsde constru9ao de mundo, eu comecei a cOElpreender a cons

    t r u ~ a o de mundo do ruwang Piaroa. 0 ruwang era 0 IfderPiaro

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    94 () .\"ama com;) c ~ J I 1 . \ ' l r u l ( ) r de mundos: .. ,,0 ruwang como especialistamis r e l a ~ o e s entre 0"tempo de hoje" e 0 "tempo de antes"

    Na cosfl)ologia Piaroa, te!npo e espac;o estavam divididosemdois grandes perfodos: 0 "tempo de antes" dos deuses criado- ,res e "tempo de hoj ,e", que sobreveio a ruptura de tempo .e espac;ono perfodo de criac;ii.o cosmogonica.30 0 nome "tempo de antes"(to'pu) literalmente signi'fica "antes" e nao "passado", e seres dot e m p o mftico eram descritos como" gente de antes", nao como"antepassados". To 'Pll refere-se ao tempo e a organizac;ii.o dascoisasantes da ruptura, embora os Plaroa pudessem tambemquerer dizer"o perfodo 'da historia antes do tempo" ou "antes da se- 'quencialidade": ac;6esl mitlcas possufanl seu proprio tempo verbalmitico 'a sepanl-Ias definitivarnente das ~ < ; o e s do "tempo de hoje"que, a diferenc;a da ac;ii.o mttlca, podiarn-se distinguir entre passado d'istante ou proximo, presenre e futuro.. 0 "tempo de antes" c e r t a r r i e n t e t e v ~ seus elementos desequencialidade: foi urn periodo de rapido desenvolvimento tecnol6gico, quaI)do foram criados os meios para utilizar os recursosda terra - 0 cultivo, a caas forc;as transformacionais, q}le , permitiram esta cria

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    96 a Xama como conslrulor de mundos: .. .levar uma vida social; porque somente os humanos do tempo p6s

    c r i a ~ a o foram capazes de aqquirir e usar, embora em quantidadelimitada, a capacidade para transformar rec.ursos da terra 'Y 1'0-dos os outros seres haviain perdido sua 'capacidade human a para asocialidade e para a r a n s f o r m a ~ a o de recursos da terra, para seuuso. Por estes motivos, os Piaroa receberam a mortalidade: no"tempo de hoje" . e1es sofriam d o e n ~ a e morte, porque muitos dosseres que, ao' fim do "tempo de antes", perderam suas capacida-

    ' des'voltaram-se a i n g a n ~ a contra os Piaroa por esta perda.Era a tarefa do ruwang lidar com todas as forps perigo

    sas.de mundos que cotidianamente a m e a ~ a v a m a existencia de suacomunidade e de seus membros. Como urn "homem de/ pensamentos" (tu 'eparing) , ele era 0 guerreiro da comunidade. Paraser eficaz como urn guerreiro, ele precisava obter conhecimento eexperiencia do cosmos, 0 mais que fosse capaz, trabalho que elerealizava atraves de seus p o d ~ r e s de' visao e de movimento. Por,meio de voos de seu "mestre de pensamentos", urn homunculoque habitava 'seus olhos, ci ruwang ia da comunidade em que vivia as terras dos deuses sob as cachoeiras no topo das montanhas,que eram sua morada no c e u ~ ele visitava a morada dos pais primordiais de anima s sob a terra; ele voava para lugares do"tempo de antes" onde os elementos sobre a terra, e a capacidadede utiliza-los, foram primeiramente criados.Os Piaroa diziam que 0 ruwang possufa "umariena t'oputsu"; a magia'para transitar no ,"tempo de antes". Por seu trabaIho de voar para outros lugares e tempos, por que neles vagueavae via, ele .adquiria 0 conhecimento destas terras estranhas, perigosas, e do agentes p o d e r o s o ~ que nelas habitavain, ' e podiaentao usar de armas contra eles. Era capaz, por seu conheci-32 Cf. J. Overing, " L e s ~ o n s . i n wizardry : personal autonomy and thedomestication of the self in Piraoa society", in I. Lewis & G. lahoda (orgs.),Acquiring Culture, Londres, Ed. Croom Helm, 1988 .Jdeias, Campinas, 1(2): 8 1 - 1 1 ~ , jul./dez., 1994

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    Joqnna Overing 97mento, de ' Ii'dar com as relar;6es de poder, muitas vezes, destrutivas ,e predatorias, entre aqueles agentes e sua comu!lidade. Urnprop6sito principal do canto do r:uwang, que durava ate oito horas noite adentro, era neut(alizar 'a v i n g a n ~ a dos' seres imortaisque viviam fora do "ceu dos d o m e s t i c a d o s ' ~ , a fronteira que separava osPiaroa de outros domfnios. I

    Os ruwatu diziam que as palavras de seus cantos, bernc;:omo as fon;as para curar doencas, foram dadasao ruwang pelosdeuses celestiais Tianawa, que, no tempo atu;ll, possufam as caixas de cristal que continham as capacidades transformacionais e 0conhecimento. Ao mesmo tempo diziam que muito das d,escri,

    ~ 6 e s de eventos era a e x p e r i m e n t a ~ a o do ruwang durante seusv60s para outrosmundos de ambos "tempo de antes" e presente -porque so entao ele podia ver e .entender as forcas que contribufam para qualquer d o e n ~ a especifica, e, portanto, era capaz de

    . descreve-Ias. As.palavras do canto tinham f o r ~ a para curar: naspalavras, e atraves delas, o ruwang ' compelia seres de outrosdominios a entrar no paciente a fim de travar uma batalha canibalistica com os seres causadores da d o e n ~ a que estavam, por suavez, engajados em comer sua vftima Piaroa, 0 que vern novamenteatestar a relaC;ao predador/presa tipicamente estabelecidaentre 0 domfnio humano e outros dominios. 33

    FoLa partir destes longos cantos- que eu aprendi a historiado cosmos, tal como os ruwatu ,a entendiam, e os elementos deque se compunha; com efeito, foi sempre 'at raves de long as sess6es de r e c i t a ~ 6 e s cantadas, e de sua exegese, que eles contaramacerca de seu conhec'imento ed e sua atividade. Fiquei, por longotempo, confusa pelo que via como tolerancia de cada ruwimg patacom a ambigiiid;lde, a contradiC;ao, a obscuridade e 0 misterio .

    33 Cf. J. Overing. "Images of cannibalism, rdeath and domination in a 'nonviolent' society", in J. Soc. Americain,'nO 72, 1986.ideias, Campinas, 1(2): 81-118, jul./dez., 1994

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    98 o Xamii como conslrular de mundos:nesta hist.6ria: muito, pelas nossas nor;oes de tempo, hist6ria el6gica, era total mente incoererite.

    o "problema" da obscuridade, do misterio,da c o n t r a d i ~ a o e 0 incoerente

    Os d.etalhes das aventuras e d ~ s a v e n t u r a s do "tempo deantes" pertenciam ao dominio do conhecimento e experiencia dosruwatu, e eram estes detalhes que freqiientemente me desconcertavam. 0 desdem dispensado pelo ruwang ao tempo e a identidade era tao extremo que ambos pareciam desalentadoramentemisturados em sua hist6ria. Havia . urn desenvolvimento paralelodo tempo da criar;ao: personagens estabeleceram r ~ l a r ; o e s , casaram e lutaram. Ou, nas palavras de Levi-Strauss ,34 0 tempo durante 0 periodo de criar;ao tinha uma tendencia "irreversivel" ,bern como uma "reversfvel". 35 Esta ultima tendencia estava bern/ .evidente, porqueerasempre 0 caso de que seres, ao princfpio do"tempo de antes", fossemdescritos em transformar;oes, relar;oes e

    . eventos que poderiam apenas ter ocorrido mais tarde em sua hist6ria: animais obtiveram sua forma somente ao fim do tempo decriar;ao, porem em uma dada hist6ria da "origem da noite" ', urnevento do distante "tempo de antes", urn deus estava tambemcriando animais, concedendo-Ihes sua forma animal; a vinganr;ada doenc;a tambem foi concedida aos animais pelos deuses criado-

    , res muito antes de que os , animais fossem criados, !! assim pordiante.

    . ;34 Op. cit., p. 237.35 Veja-se tambem, sobre a cosmogonia Achuar, Desco\a, La Nature'Domestique: Symbolisme et Praxis dans I'Ecologie des Achuar. Paris, Ed. deMaison des Sciences de \'HomlJ1e, Fondation Singer-Polignac. 1976 .JdeiaS, Campinas, 1(2): 81-118,j ul./dez:, 1994

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    Joanna Overing 99Fato ainda mais perturbador, os seres durante 0 "tempo

    de antes" inuitas vezes assumiam as caracteristicas, qualidadeserelar;oes que eram parte de sua transformac;ao do "tempo dehoje", e vice-versa: No canto de cura contra a paralisia, 0ruwang descrevia a doenc;a como as "tangas" do queixada e QOtatu cobrindo e se entrelac;ando aos ossos da vitima. Mas os animais, que no "tempo de hoje" davam doenr;as aos Piaroa, naou.savam tangas, embora as tenham certameilte usado durante 0"tempo de antes", quando eram gente que nao lanr;ava doenc;as.Tal embaralhamento de )dentidades do "tempo de antes" e do ."tempo de hoje" e ra urn aspectd recorrente das d e s c r i ~ o e s doruwang e de sua explicac;ao das coisas; parecia que a noc;ao levibruhliana do desrespeito pela 16gica e pela racionalida& .porparte, do "primitivo"p.ooeria fomecer ' a resposta, e que a nOc;aolevi-straussiana de "pensamento anal6gico" falhara 0 alvo.

    Tomando apenas a Iinguagem cantada como evidencia,seria tentador atribuir as ambigiiidades de identidade aos mistrios da met:ifora xamanistica, e deixar assim a questao. Faze-Io,entretanto, teria sido urn erro, foi 0 que ' a conversa cotidiana t6rnou claro. Incerteza acerca de identidade era urn quebra-cabec;asontol6gico cotidiano para 'os- Piaroa, motivo para infindaveis discussoes. Assim, a conversil cotidiana leigos poderia ser taoconfusa para 0 antrop610go incauto quanto ' ascomplicad,!-s"metaforas" e ambigtiidades de identidade apresentadas peloruwang. Mas tais "problemas" de identidade nest as conversas dodia a dia nap eram decerto relativos a "meta(ora", porque aqui osPiaroa estavam obviamente preocupados com identidade factual:"0 queixada e urn humano ou urn vegetal?"; "a onr;a e urn animal,urn feiticeiro ou urn deus do "tempo de antes"?"; "aquelaborboleta ou aquele morcego sao feiticeiros de uma comunidadeestrangei,ra?" . Entendiam que, se interpretassem errado, asconseqtiencias Iiterais poderiam ser horriveis - oindividuoIdeias, Campinas, 1(2): .81-118,jul./dez., 1994

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    100 o Xama como constru(or de mundos: ...poderia ficarsuJeJto ao ataque de urn predador. 0 ruwang eraaquele capaz de esclarecer tais, misterios de idenfidade: era quemtransformava carne de 'queixada, de fato carne humana, em uma

    s ~ g u r a co:mida vegetal; era quem poderia ver O .feiticeiro emroupagem de morcego, e c.ontra'elelutarefetivamente.

    Ora sustento que urna abordagem "Goodman", onde vemos 0 ruwimg como urn 'construtor de mundo" oferece umaviamuito mais poderosa a compreensao. Por esta,via, pqdemos com e ~ a r a perceber 'que nossos problemas antropologicos com met M o ~ a e 16gica provavelmente se devem ao fato de que damospouca atem;ao a' detalhes de ontologias ou vers6es do mundo estranhas.36 Em outras palavras, nosso problema de c o m u n i c a ~ a o

    .com' 0 ruwang nao ocorre por que se u pensamento ' e "0pensa-mento pothico em atividade, c),iando obscuridade", mas se deve,em' larga medida, a i f e r e n ~ a em ~ r i n c i p i o s metafisicos basicos(premissas sobre 0 que 0 muhdo e) que nos e ele assuminios. Estee urn velho ~ n s i g h t antropoI6gi

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    '.102 o Xama como construtor demundo,s: ...hole". Seria urn e q u i v o buscar, em tal o n s t r u ~ a o de mundo,urn alicerce de reaUdade .Uma vez entendido que aqualidade moral de uma, e l a ~ a oou a intencionalidade de uma a ~ a o - por exemplo, t r a i ~ a o - erafrequentemente uma questao mais importante para ruwang doque, diganios, urn principia de s e q u ~ n c i a l i d a d e , muitas das ll1aisdificeis anomalias ge identidade em seu canto tornarain-se compreensiveis. Identidade, para 0 ruwang, 0 que algo- ou, alguemera, muitas vezes ,dependia nao de I i g a ~ o e s sequenciais, comotende a ser -0 caso para n6s, mas do que aquele algo au alguemera moralmente, dentro de uin mundo tal como organizado durante urn event a particu lar. I .

    , -Algumas vezes a ruwang era intencionalmente ambiguoace rca de i

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    .104 o Xama como conslrulor de mundos: ...nhecimentoe experimenta

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    106 oXama como cons/ru/or de mundos: .. ,da "velha fala"" ql!ando utilizada na conversacotidiana .Urnexemplo foi 0 usa feito por urn velho homem da frase "distanteGuakamaya enviuvou pessoa vermelha" (otoaerae tuarekua) parae.xpressar "vamos ao banho" (ahe tiahae): nem 0 conhecimentodos jovens, nem 0 desta antropologa, eram suficientes paraapreender arelar;:ao entre banhar-se e este trecho de "fala de antes" . I, 0 principal padrao u t ~ l i z a d o pelos Piaroa para uma"velha

    fala" apropriada era 0 da poderosa organizac;ao do conhecimento,que possufsse efeito pnitico nas atividades de curar e proteger.Os Piaroa abertamente reconheciam os elementos-cofistitutivos dacura do ruwang: cada cura bem-sucedida era considerada urn ateoriginal, e 0 ruwang privilegiado no trabalho de cura eradenominado k'adak'a mellye, ou "aquele que pade curar tudo(at raves do carita)" . K'adak'a era a ":palavra para a raiz primaria

    . de uma arvore, usada metaforicamente na linguagem cantadapara significar a "primeira ideia de", ou "0 primejro tempocriado". Era igualmente utilizada para afirmaro primeiro dequalquer coisa: 0 primeiro ser a lanc;ar doenc;a, ou 0 primeiro aser morto. Significava a criac;ao de algo.

    Cada ocasiao de doenc;a exigia sua propria explicar;:ao, eportanto sua propria, e unica, experiencia de historia para acederacura. Para que cad a cura se efetivasse, 0 ruwang tinha que experimentar em suas viagens, e explicar em grande profundidade,

    . causas determinantes ,no "tempo de antes" da doenr;:a especificamente em pauta; tinha que recriar. os motivos por que esta havia side dada, em particular, aquela vftima do "tempo de hoje" .Sua experiencia e explicac;ao tinham' que abranger as grandes batalhas do "tempo de antes",' quando as capacidades transformacionais foram criadas,possufdas, disputadas e roubadas.As doenc;as que urn Piaroa sofria no "tempo de hoje" tinham sua origem em uma serie de atos .de traic;ao e soberbaideias, Campinas, 1(2): 81-118, jul .ldez., 1994

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    Joanna Overing 107ocorridos no "tempo de antes", usualmente provocados por sentimenttJs de raiva, cobir;:a, perfidia ou arrogancia . Ouvindo estahistoria, se comec;ava a perceber que, ao se vangloriar de que 'erao "Senhor das montanhas; dos rios, ' das corredeiras, do ceu, daterra e das cataratas", 0 deus criador dos Piaroa nao trouxe qualquer bern ahumanidade. Sua dedarac;ao de direito a uma vida depromiscuidade - "tal comodevida a tao grande ruwang" - levaram, em parte, a ser a condir;:ao humana uma condir;:ao que indUla a experiencia do mal e da ' loucura44 (veja-se Overing1985a). Como mencionado acima, muitos seres, ao encerrar-se 0"tempo de antes", pe,rderam suas c a p a ~ i d a d e s transformacionaispara a cac;a, a pesca e 0 cultivo; estes mesmos seres entao pene- Itraram no "tempo de hoje" para vingar esta perda, l a n c ; a n ~ odoenc;as aos humanos. Em urn canto para curar doenr;:a de peJe, 0ruwang explorou os artefatos culturais e 0 conhecimentoperdidospeJos animais aqmiticos, listando as doenc;as queespecificamentetomaram seu lugar. Tais doenc;as eram a "perda cultural" do a n i ~mal transformada e venenosa, que 0 animal (nao sofria, mas, no

    " t e ~ p o de hoje" : l a n r ; : a v ~ aos Piaroa em revanche pelas capacidades que havia perdido. , Cada aspecto do conhecimento cultural,tais como a capacidade de cultivar e de c a r ; : ~ r , cada artefato cultu'ral, tinham sua contrapartida em doenr;:a. Cada doenc;a era emparte causada peJa 'violencia da cultura do "tempo de antes" dosanimais, atacando a vitima no "tempo de hoje". Assim, 0 fogo,que teve sua origem em rios e era possuldo por enormes criaturasaqmiticas (em forma humana); tornara-se no "tempo de hoje"adoenc;a que criaturas aqmiticas dao aos Piaroa. Quando urn Piaroag a n h a ~ a uma infec-:ao de pele, parte do processo da doenr;:a con-

    44 Cf. 1. Overing. "There is no end of evil : the guilty innocents and their falibleGod". cit./deias, Campinas, 1(2): 81-1l8,jul.ldez., 1994

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    108 o Xamu como cons/ru/or de mundos: '"sistia em ser queimado pelo fogo da criatura aquatica que o/a ata

    ,cava. 45Era devido a complexidade hist6rica do processo' de, , ,

    d o e r i ~ a que OS cantos de cada ruwang variavam tanto urn paraoutro; porque cada canto agregava os fios de r e l a ~ o e s hist6ricasde diferentes modos. Nesse sentido, denominar urn curador bemsucedido k'adak'a menye era reconhecer que tanto 0 diagn6stico ,quanto a cura eram atos criativos e, como tais, ocorrl!ncias unicas ; Os Piaroa concordariam com Goodman em interpretar a ,aquish;:ao de conhecimento, e 0 poder daf advindo, como atos dec o n s t r u ~ a o de mundo, '/

    sucesso em criar uma expressao competente e poderosada "fala de antes" era julgado pelo grau em que, atraves dela, 0 'ruwang capturava a complexidade relevante da hist6ria do "tempo-de antes "1 ou, em outi-os termos, os aspectos significativos da"existencia hist6rica de seres em suas r e l a ~ 6 e s com outros. Osruwatu podiam ser altamente crfticos quanta a r g a n i z a ~ a o e ac r i a ~ a o da' "fata .de antes.': de outros. Enquanto 0 canto de urn jovern aprendiz era muito f:icil de entender, a "fala de antes" maispoderosa parecia, a primeira vista, ser a mais "obscura" e

    " ~ b s t r a t a " , porque urn grande ruwang podia ftequentemente integrar muito da hist6ria de urn ser atraves de urn trecho multifacetado de "fala de antes", cujo deslindamento tomaria de um amuitos mundos e'tempos de hist6ria significativa. "Descascar" ascomplexas palavras do ruwang que' encapsulavam a hist6ria deseres era urn processo em que os 'ouvintes Piaroaconstantemente

    /"-, 45 cr, J, Overing, "Images of cannibalism, death and domination in a 'non-vio

    lent' society", cit., para m'aiores detalhes quanto ab entendimento d05 Piaroa doprocesso de doen

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    110 a Xam5 comocons/rutor de mundos: ..."Os filhos do deus Tianawa, Muk 'a estao se movendo dentro da agua. Eles estao i ~ d o ao fundo.Por isso nossos filhos hem . A cata(ata db deus Tianawa, Anemei, cai-na agua. A cat{rata acorda e cai.Os filhos de Muk'a podem comer a tanga. As flores bran cas do deus Tianawa, W irik' a, movem-se dentro da agua ....

    o ruwang estava aqui chamando as fon;:as cJos ;tuais deuses Tianawa p ~ r a ajuda-Io a combater 0 poder da "tanga do q4ei- .xada", palavras , em si mesmas, tinham eflcaCia porque, enquanto ele .cantava" p ~ r i o d i c a m e n t e as soprava, com sua forc;a, 'em recip ientes contendo agua ou mel; pel a manha, todos -osQ1embros de sua comunidade bebiam as palavras, que entao agiamneles como urn remedio ou profilatico . Os filhos ' de Muk'aHteralmente entravam em seus corpos para combater os poderesdo queixada e utrosdeuses do "t,empo de antes" que haviam. en-trado, ou poderiam neles entrar. _ 'Fornec;o mais doisexemplos de "falade antes" onde referencia multipla e complexae evidente: urn e somente uma palavrae Q segundo, uma serie de trocadilhos . Em ambos os casos, 0ruwang estava criando "simultaneidade" de tempo e espa96 atrayes do uso especiaJizado de ' afixos, a fim de referir, em suacomplexidade historica, a tipos especfficos de jntervenc;ao que 'afetam a comunidade humana. .

    No mito que de'talha a criac;ao da s u c ; u a r a n Kuemoi (0deus louco e possesso, criador 'da cac;a e do cultivo) fez todas aspartes deste animal, inclusive sua pelagem, que foi denominada ,peIo ruwang que cantava,"aerarinyo 'u", Tipicamente 'excessiveem comportamento, este deus criador estava tentando fazercaes de cac;a, mas, ao inves, criou os grandes felinos, Seria umaaboraagem muito simpies da construc;ao aeraenyo'u se a omassemos como uma metafora para "a pelagem vermelha da onc;a" ,Ideias, Campinas, 1 ~ 2 ) : !I-1I8, jul.ldez., 1994

    .Joanna oVering I I Iseu primeiro nfvel de significado na exegese Piaroa , No entanto,a palavra demandava expiicac;ao, uma vez que a' frase cotidianapara "pelagem da onc;a" era yaewi wotsae,.

    A exegese continuava como segue. Atraves do usociente de afixos na c o n s t f ) . l ~ a o de aeraerinyo 'u, esta se referia aoalg,odaovermelho (aerae=Gllakamaya vermelha) a partir de que apelagem foi criada, e ao "Iag.o vermelho das onc;as : , 0 lago deorigem (Iago=yo'u) pertencente a Kuemoi, em que a onc;a foicriada. Kuemoi' igualmente nasceu neste lago, e foi nele que 0

    _ primeiro fogo. broto.u, q ~ a s e no' inicfo do tempo. Assim, 'a referencia a criac;ao Cia '''pelagem da onc;a vermelha" remetia a esteprimeiro fogo, que, no "tempo de hoje", em sua forc;a malignaenquanto doenc;a (a perda cultural dos animais aquaticos ao fimdo "tempo de ' antes"), causava-queimaduras nos seres hU,manos .o lago em que 0 fogo originalmente nasceu era tambetn chamado"0 lago -do (passaro) Guakamaya". Aeraerinyol,u era,alem diss6,o nome da pecfra vermelha que formava a prac;a dentro 'do lago, e\ foi nesta prac;aque, mais tarde, Kuemoi tolamente criou a onc;a eoutros grandes felinos (eles-sujaram a prac;a com fezes e v,omito:depois de suas primeiras incursoes predatorias) , Apos criar 'a

    onc;a, Kuemoi entao usou sua forc;a (transformada em onc;as) parasua cac;a predatoria de humanos .'Ao fim da historia do "tempo deantes", os Piaroa, eles mesm9s, usaram as forc;as criativas deKuemoi para matarem-se uns aos outros : enlouquecidos por estasforc;as venenosas para cac;a e cultivo de que haviam se apro- -priado, os Piaroa transformaram-se em onc;as para se atacarem eentre devorarem. . .

    Deste modo, atraves do uso de referencia multipla ecomplexa, 0 ruwang, na construc;ao de . uma so palavra -aeraerinyo'u - integrava urn numero de diferentes tempos eeventos articulados no "tempo de antes" que se referiam as excessivas e, por .fim, . raic;oeiras ' ac;oes prov09adas peio usa dosIdeias, Campinas, 1(2): 81-118,jul.ldez.; 1994

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    112 . 0 Xamii .como conslrulor de mundos:poder!s de Kuemoi; e n q u a n t ~ c o n s t r u c ; i i ~ tinha; portanto, efeitopoderoso na cura 'de uma queimadura grae.

    As palavras ea e s t r u ~ u r a deste tanto de urn ruwang renomad.o ,contrasta, de maneira considenivel, com urn exemplo decanto por urn jovem aprendizde ruwang que parcial mente cobriaos mesmos eventos, em especial aqueles das batalhas canibalisticas dos Piaroa"ao se encerrar 0 "tempo de antes". Em seu cant o,o jovem descrevia em detalhe esta loucura, 'mas sua estoria tornava-se repetitivae' entediante porque sua o n ~ t r u c ; a o carecia douso habil de afixos, Por isso, ele fazia pouca refen!ncia a iriterligac;ao dos corriplicados eventos e relaC;6es do "tempo de a n t e sreferencia que teria conferido raziio, motivac;iio, e, portanto, .poder efetivo a sua estoria. Para fins de cura, esta versiio foi considerada " e r r a d a ' ~ , nao "certa", quando contrastada a versao discu-'tida anteriormente.

    Muitas palavras da Iinguagem cantada fOram criadas viaurn complicado- processo de trocadilho. A exege'se que segue mefoi f o r n e c ~ d a q u a n t ~ .ao uso -dil constrU"c;iio de tres palavras. -t'eoraenyu, maerianeyu e maertaenyu - em l,Ima das.historias sobre as batalhas havidas entre Wahari, 0 deus criador dos Piaroa,e seu sogro (Kuemoi}, 0 criador das forc;as 'para a culinaria, a

    .cac;a e 0 cultivo. Elementos fie suas oatalhas eram sempte incIufnos cantos de cura, porque foi sobretudo a luta entre KU(!moi

    Wahari, ace rca da propriedade e controle -das capacidades predatoriaspara ~ o m e r civilizado, gue levou ao caos e a destruic;aocaracteristicos dq em;erramento da h i s ~ o r i a do "tempo de antes",e a morte ,e as .doenc;as experimentadas hoje pelos Piaroa

    o incidente no mito que estava sendo descrito era' 0 voode Wahari em sua canoa magica em direc;ao a morada de Kuemoi:ele desejaya roub'ar de Kuemoi as capacidades de' cac;a para daraos seres da floresta, seus companheiros. Diz-se que ele "tomavaa forc;a do beija-.f!or" para fazer sua canoa se mover 'at raves do

    ldeias., Campinas, 1(2): 81-118,j ulJdez., 1994

    , Joanna'Overing . 113espac;o, tanto alem como sob a terra. 0 beija- flor era u,ma transformac;iio recorrente deste deus criador e uma de suas maioresmanifestac;6es de poder. Em cortttaste, seu sogro, Kuemoi, umapessoa-violenta e malevola, tendia a usar como. sua transformac;aoseu proprio animal de estimac;ao, a onc;a. ' . .

    o termo. para beija-f1or era. maeriaenyuu, mas 0 termoque urn ruwang utilizava era ('eoraenyu. "nihho branco". Esteninho pertencia a Woninyu, que era u m a ~ s p e c i e de beija-flor,urn instrumento musical sagrado, e a "mae" de W ~ h a r i . "Ninho

    . braneo" era ainda 0 termo utilizado .para a eesta de urn mago . .Maeri" 0 prefixo da palavni para beija-flor, era 0 termo paramagia na Ifngua Piaroa: toda vez que algliem obtinha a lgo at ravesde maeripa, ele/ela "0 fazia atraves de magia: Com a silaba tonicamudada para aenyu ("nlnho"), a palavra tornava-se aenyu,ou"objeto ,pont,iagudo", 0 t ~ r m o igualmente utllizado para uma eanoa de terminaC;Qes poritiagudas. Quando a silaba tonica 'era mudada no termo para beija-flor (maeriaenyu) para fazer a palavramaeriaenyu, esta se tornava tudo 0 que segue: 1) 0 nome da canoa de Wahari, 2) 0 nome para a "forc;a dobeija-flor" . e 3)/ 0

    .nome para 0 "ninho de Woranyu".O troeadilho por acentuac;iio... em beija-flor tambem eriava uma descric;iio para a "forc;a do

    beija-flor" eomo mneri (magia) t ae"nyu (objeto pontiagudo), ouo longo bico do passaro. Neste seu outro usa, como 0 nome aaeanoa magica, 0 termo maeriaenyu Iiteralmente significava "pontade magia". A frase maeripa aenyu era tambetn utilizada paradeserever esta forc;a. .

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    IdeiGS, Campinas, 1(2): 81-118,julJdez., 1994 -

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    114 o Xama como' construlor de mundos: ...Diagrama do Trocadilho: T'EORAENYU

    T'eoraenyu = ninho branco maeriaenyu '= beija-flor= cesta ( b o ~ s a ) de magiat'eo ,;, brancD .

    aenyu = ninhof1Z!leriaenyu = nome da canoa

    = for9a do beija-flor= ninho de Woranyu= ponta de magia

    maeri = magiaenyu = objeto pontiagudo= canoa

    maeripa .aenyu magia at raves da u t i l i z a ~ a o da f o r ~ a do beija-flor . .Quando entendi 'que 0 principal papel do ruwang como

    lfder era 0 d

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    116 () Xama como cOl1s/ru/or de, mundos: ...conexao entre cosmologia e morali.dade e crucial par.a a compreensao da maio ria dos conhecimentos, e da sua c r i a ~ a o . 4 R Nessesentido, subterfugios como mundos compostos de relac;oes significativas - mundos 'valorados, como ' 9 expressa Hesse,49 .ou"ontologias semiologicas" (mundos como ordens de significar;ao),nos termos de Taylor50 - levam inevitavelmente ' a confusao emqualquer d i s c ~ s s a o sobre ;'mlmdos existentes", quando a distinc;aoliterallmetaforico e rejeitada. A posir;ao de Goodman ao longo-deWays of Worldmaking, onde ele nega quaisquer privilegiosuniversalistas inerentes as assim chamadas predicac;oes literais,envolve uma rejeic;ao da , importfmcia da distinr;ao literal/metaforico. Alem disso, ele define verdade como ,pertencentea afirmar;oes Iiteralmente feitas, apesar de subjugar a verdade aopadrao mais geral de justeza de adequar;ao: "verdade; como inteligencia, e talvez apenas 0 que os testes testam" .51Muito embora defenda que "a verdade deve ser concebida como outra coisa que naa.urn correspondente de urn mundoja pronto",52 e afirme que seus mundos sao sistemas .conceituais,que ele deseja dar lugar .a diferehr;as de opiniao quanta a quemundo ou mundos e xistem,53 Goodman, em sua distinr;ao entre .mundos "cotidiano" e "ficcional", manifesta porem 0 que Hesse

    48 Veja-se'Eo Gellner, "The savage and the modern mind"; in R. Horton & R.Finnegan(orgs.), Modes of Though, Londres, Ed . Faber & Faber, 1973, pp .170 ss., que argumenta que a compn:ensao c i e ~ t i f i c a da verdade !!ncontra-se emnitido contraste aos sistemas de conhecimento de Olitras sociedades , em que e

    - comu'm que as verdades fisicas, estejam vinculadas a utras verdades, cujo escopo e social, moral e politico .49 'Cf. op. cit., p. 40 .50 ' . ., Cf. op. cit., p. 223.51 N. Goodman, Ways of World making, cit., p. 122 .52 Idem, ibidem, p. 94 .53 Idem, ibidem, pp. 94-95.Jdei1, Campinas, 1(2): 81-11S,jul.1dez., 1994

    Joanna Overing 117chamou de "ut11a me 'ra -ontologia naturalista jaconhecida" .54 ParaGoodman" t:rin unicornio tern denotac;ao nula, nao denota nada nomundo real. Uma pintura de Dom Quixote nao 'denota nada literalmente. No entanto,seu retrato pode efetuar "uma reorganiza-"c;ao de nosso mundo famiUar s e l e c i o n a ~ d o - o (ao retrato) . . .cdmouma televante , categoria de especie que atalha trilhas ja batidas" ,55 e uma pessoa pode entao ser considerada "quixotesca" nomundo do dia-a'-dia; Goodman argumenta que ficr;ao, portanto,aplica-se "verdadeiramente" aos mundos reais., Mas, e quanto aos cantos retigiosos e "mitos" em que aJ econstrur;ao de mundos pode dizer respeito a mudanc;as e efeitosno mundo do "dia-a-dia"? A perspectiva de Goodman e adosPiaroa difeririam. 0 que os "simbolos" da linguagem cantada re- .'presentariam do ponto de vista de Goodman? ConformeHesse,eles nada representariam, uma vez qU 'e para Goodman seriam ficc;oes. 56 A autora considera interessante que ', em suas discussoes -sobre conhecimento, Goodman nun s:a mencione milo (ou conhecimento religioso), apesar de no primeiro capitulo de Ways ofWorldmaking preSlar homenagem a Cassirer e, em especial, aopluralismo de Cassirer, tal como expresso em sua obra Linguagem e MilO (1946). A soluc;ao das discrepfmcias entre estas duasperspectivas, a de Goodman e aguela dos 'Piaroa, levaria aocampo de uma revisao da ontologia e teoria do conhecimento e daverdade, e nesse sentido, muito alem deste artigo e de minhapropria capacidade. Para comer;ar, teria de ser encontrada uma'res posta satisfat6ria- a questao ,de se afirmac;oes metaforicas ternvalor de verdade. 57

    54 M. Hesse, op.. cit., p. 36, grifo da autora .55 N. Goodman , Waysof Worldmaking, op. cit., p. 104 . .56 ' , 'Cf. M. Hesse, op. CI t ., p. 38 ..57 Idem , ihidem. .Ideias , Campinas, 1(2): 81-118, juL/dez., 1994

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