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SOLNESS, O CONSTRUTOR. Peça teatral de Henrik Ibsen escrita em 1892. PRIMEIRO ATO Em casa de Solness. Um gabinete de trabalho mobiliado de maneira simples, ao fundo, a sala de desenho, onde Knut e Ragnar Brovik fazem cálculos. Knut Brovik é um velho magro, de barba e cabelos brancos. Veste uma sobrecasaca preta, séria, embora um pouco gasta, e usa óculos. A gravata é de um branco amarelecido. Ragnar Brovik é um homem louro de uns trinta anos, bem vestido e um pouco encurvado. Kaia Fosli é uma moça delgada de vinte e poucos anos, vestida com apuro mas de aparência doentia. Os três trabalham algum tempo em silêncio. Por fim, Brovik explode. BROVIK - Não! Isto não pode durar muito tempo! KAIA - Estás te sentindo muito mal hoje, tio? BROVIK - Sinto que vou piorando a cada dia RAGNAR- Era melhor que fosses para casa, papai, e procurasses dormir. BROVIK - Ir para a cama não! Queres que eu morra? Não sairei daqui antes dele chegar. Tenho de explicar-me hoje mesmo... Com ele... com o patrão! KAIA - Não, tio! Espera ainda, eu te peço! RAGNAR- É mesmo, pai: será melhor que esperes. BROVIK - Mas não tenho tempo para esperar. Voltam ao trabalho. Depois de alguns momentos chega Halvard Solness, um homem de meia- idade, de aparência sadia e forte, cabelos curtos e crespos, barba preta aparada em ponta, sobrancelhas pretas e espessas. Dirige-se aos empregados que trabalham na sala de desenho. SOLNESS - Não veio ninguém na minha ausência? BROVIK - Sim, o jovem casal que quer construir uma casa de campo. SOLNESS - Ah, aqueles dois? Que esperem! Ainda não fiz o plano. BROVIK - Eles têm pressa de se instalar. SOLNESS - Está bem, muito bem. E com essa pressa toda acabam se contentando com qualquer coisa... Ah, não! Que se dirijam a outro. Diga-lhes isto quando voltarem. BROVIK - A outro? Como? O senhor vai deixar escapar este pedido? SOLNESS - Sim, sim, sim! Que diabo! Já que é assim... Antes isso do que construir no ar, de qualquer jeito. Sei lá quem é essa gente!... BROVIK - É gente séria. Ragnar os conhece. Freqüenta-lhes até a casa. Gente muito séria. SOLNESS - Ora! Sérios!... Santo Deus! Será que vocês não me compreendem mais... vocês também? Não quero negócios com esses estranhos. Procurem quem quiserem. Pouco se me dá. BROVIK - O senhor está falando seriamente? SOLNESS - É sim senhor! É o que estou dizendo (PAUSA) BROVIK - Posso falar um momento com o senhor? SOLNESS - Perfeitamente.

Solness O Construtor

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Page 1: Solness O Construtor

SOLNESS, O CONSTRUTOR. Peça teatral de Henrik Ibsen escrita em 1892.

PRIMEIRO ATOEm casa de Solness. Um gabinete de trabalho mobiliado de maneira simples, ao fundo, a sala de desenho, onde Knut e Ragnar Brovik fazem cálculos. Knut Brovik é um velho magro, de barba e cabelos brancos. Veste uma sobrecasaca preta, séria, embora um pouco gasta, e usa óculos. A gravata é de um branco amarelecido. Ragnar Brovik é um homem louro de uns trinta anos, bem vestido e um pouco encurvado. Kaia Fosli é uma moça delgada de vinte e poucos anos, vestida com apuro mas de aparência doentia. Os três trabalham algum tempo em silêncio. Por fim, Brovik explode.

BROVIK - Não! Isto não pode durar muito tempo!

KAIA - Estás te sentindo muito mal hoje, tio?

BROVIK - Sinto que vou piorando a cada dia

RAGNAR- Era melhor que fosses para casa, papai, e procurasses dormir.

BROVIK - Ir para a cama não! Queres que eu morra? Não sairei daqui antes dele chegar. Tenho de explicar-me hoje

mesmo... Com ele... com o patrão!

KAIA - Não, tio! Espera ainda, eu te peço!

RAGNAR- É mesmo, pai: será melhor que esperes.

BROVIK - Mas não tenho tempo para esperar.

Voltam ao trabalho. Depois de alguns momentos chega Halvard Solness, um homem de meia-idade, de aparência sadia e forte, cabelos curtos e crespos, barba preta aparada em ponta, sobrancelhas pretas e espessas. Dirige-se aos empregados que trabalham na sala de desenho.

SOLNESS - Não veio ninguém na minha ausência?

BROVIK - Sim, o jovem casal que quer construir uma casa de campo.

SOLNESS - Ah, aqueles dois? Que esperem! Ainda não fiz o plano.

BROVIK - Eles têm pressa de se instalar.

SOLNESS - Está bem, muito bem. E com essa pressa toda acabam se contentando com qualquer coisa... Ah, não! Que

se dirijam a outro. Diga-lhes isto quando voltarem.

BROVIK - A outro? Como? O senhor vai deixar escapar este pedido?

SOLNESS - Sim, sim, sim! Que diabo! Já que é assim... Antes isso do que construir no ar, de qualquer jeito. Sei lá quem

é essa gente!...

BROVIK - É gente séria. Ragnar os conhece. Freqüenta-lhes até a casa. Gente muito séria.

SOLNESS - Ora! Sérios!... Santo Deus! Será que vocês não me compreendem mais... vocês também? Não quero

negócios com esses estranhos. Procurem quem quiserem. Pouco se me dá.

BROVIK - O senhor está falando seriamente?

SOLNESS - É sim senhor! É o que estou dizendo

(PAUSA)

BROVIK - Posso falar um momento com o senhor?

SOLNESS - Perfeitamente.

BROVIK - Vai para a outra sala, Kaia!

SOLNESS - Sente-se. O que há?

BROVIK - Ah, é Ragnar que me preocupa... É nele que eu penso... É ele que me causa mais pesar. Que vai ser dele,

meu Deus!

SOLNESS - Seu filho? Naturalmente que ficarei com ele tanto tempo quanto ele quiser.

BROVIK - É justamente o que ele não quer. Acha que isso é cada vez menos possível.

SOLNESS - Eu creio, entretanto, que ele é bem remunerado. Mas no caso de ele querer mais, não estou longe de...

BROVIK - Não, não. Não se trata disso. É que ele quer afinal trabalhar por sua própria conta...

SOLNESS - Acha o senhor que Ragnar tenha bastante talento para isso?

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BROVIK - Não. E o mal está justamente nisso: começo a ter dúvidas sobre o meu rapaz. O senhor nunca disse a

respeito dele uma palavra que... que deixasse perceber um elogio.

SOLNESS - Sim... Mas o caso é que ele nunca estudou nada a fundo, a não ser desenho.

BROVIK - O senhor também não entendia grande coisa do ofício, na época em que trabalhava em minha casa. Nem por

isso deixou de ir para a frente. O senhor subiu e nos esmagou a todos. A mim... e a muitos outros.

SOLNESS - Que quer o senhor! Tive sorte.

BROVIK - Tem razão: teve sorte em tudo. Mas creio que não pode ter a coragem de me deixar morrer... sem ter visto o

que Ragnar vale. Além disso, eu muito desejaria vê-los casados antes de ir-me.

SOLNESS - É essa também a opinião dela?

BROVIK - Não, não é bem a opinião de Kaia, mas... Enfim. Ragnar fala constantemente nisso. É preciso... é preciso o

senhor arranjar-lhe algum trabalho independente. É preciso que eu veja algum trabalho dele, do meu pobre rapaz, está

ouvindo?

SOLNESS - Mas que inferno! Eu, afinal, não posso fazer com que lhe venham encomendas da Lua!

BROVIK - Justamente agora ele poderia ter uma bela encomenda, um grande trabalho.

SOLNESS - Que trabalho é esse?

BROVIK - Ele poderia construir essa casa de campo.

SOLNESS - Essa casa de campo? Mas se sou eu que a vou construir!...

BROVIK - O senhor não faz questão disso.

SOLNESS - Não faço questão? Eu? Quem se atreve a supô-lo?

BROVIK - O senhor mesmo acaba de dizê-lo.

SOLNESS - Ora, não leve em conta tudo o que eu digo, assim. Acha que Ragnar poderia construir essa casa de

campo?

BROVIK - Sim. Ele conhece a família. E, além disso, ele fez... simplesmente para se divertir... ele fez os desenhos, o

orçamento, enfim, todo o projeto...

SOLNESS - E as pessoas que querem fazer essa construção estão satisfeitas com os desenhos?

BROVIK - O projeto dele agradou-lhes extraordinariamente. É alguma coisa de completamente novo, disseram eles.

SOLNESS - Realmente? Qualquer coisa de completamente novo... e não velharias como as que eu edifico, não é isso?

BROVIK - Eles acham diferente, eis tudo.

SOLNESS - Então, quer dizer que foi em busca de Ragnar que eles vieram... enquanto eu estava ausente!

BROVIK - Eles vieram procurar o senhor e saber se queria desistir.

SOLNESS - Desistir? Eu?

BROVIK - No caso em que os desenhos de Ragnar lhe parecessem...

SOLNESS - Eu? Ceder o lugar a seu filho?

BROVIK - Não, mas ceder-lhe o negócio. É isso o que eles pretendem.

SOLNESS - Dá no mesmo. Ah! É assim! Halvard Solness... começando a ceder o lugar! Dar lugar aos moços, aos bem

moços, talvez! Querem que ele ceda o lugar!... O seu lugar!

BROVIK - Ora, meu Deus! Há lugar para mais de um...

SOLNESS - Não há tanto assim. Mas a questão não é essa. Fique sabendo que, por minha vontade, eu jamais recuarei,

jamais, diante de quem quer que seja! Nunca, repito-lhe!

BROVIK - Nesse caso deixa-me ir deste mundo sem levar comigo nenhuma certeza, nenhuma alegria, nenhuma

confiança em Ragnar? Sem ver realizada nenhuma obra dele? É o que deseja?

SOLNESS - Não falemos nessas coisas.

BROVIK - Falemos sim. Preciso de uma resposta. Quer que eu parta deste mundo depois de ter perdido tudo?

SOLNESS - O senhor partirá dele como puder e como quiser.

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BROVIK - Está bem.

SOLNESS - Creia-me, não posso proceder de outra forma! Fui feito assim! Não posso mudar a minha natureza!

BROVIK - Sim, sim, compreendo, o senhor não pode...

SOLNESS - Boa-noite.

BROVIK - Boa noite. Durma bem... se puder

SOLNESS - Kaia, por favor. Então, segundo parece, quer casar-se.

KAIA - Ragnar e eu somos noivos faz quatro... cinco anos... e...

SOLNESS - E vocês acham que já é tempo que isso se realize, não é?

KAIA - Ragnar e o tio dizem que é preciso. Que me resta a fazer?

SOLNESS - Ouça, Kaia: confesse que, no fundo, você ama um pouco a esse Ragnar.

KAIA - Eu o amava muito... antes de vir para a sua casa...

SOLNESS - E agora? Nem mais um pouco?

KAIA - O senhor sabe perfeitamente que só amo a uma pessoa no mundo. Nunca amarei outra, nunca!

SOLNESS - Sim, você o diz, mas isso não a impede de ir-se e me deixar aqui a me debater sozinho no meio de tudo

isto.

KAIA - Mas não poderei ficar perto do senhor, mesmo se Ragnar?...

SOLNESS - Não. É completamente impossível. Se Ragnar me deixar e for trabalhar por conta própria, precisará de você

para a sua empresa.

KAIA - Mas não poderei me separar do senhor! Isso me parece de todo impossível!

SOLNESS - Nesse caso trate de tirar da cabeça de Ragnar esse capricho tolo. Case-se com ele quantas vezes quiser...

Quero dizer... convença-o a conservar-se no bom emprego que tem aqui em casa. Assim, querida Kaia, eu poderei

conservá-la... a você também.

KAIA Que felicidade, se isso pudesse se arrumar assim!

SOLNESS - É que não posso passar sem você, Kaia. Preciso sempre tê-la a meu lado.

Aline Solness entra no escritório. É uma mulher que ainda conserva alguns vestígios de beleza, mas em seu rosto vêem-se as marcas de um grande sofrimento. Está vestida de negro. Fala muito lentamente, sempre com voz chorosa.

ALINE - Halvard!

SOLNESS - Ah, és tu querida!

ALINE - Parece-me ter chegado mal a propósito.

SOLNESS - De modo nenhum. A senhorita Fosli tem simplesmente de escrever uma carta.

ALINE - Sim, estou vendo.

SOLNESS - Tens alguma coisa a dizer-me, Aline?

ALINE - Nada, a não ser que o doutor Herdal está aí ao lado, na saleta. Quem sabe se o queres ver?

SOLNESS - Hein? O doutor faz muita questão de me ver?

ALINE - Não, ele não faz questão nenhuma... Ele veio ver-me e queria aproveitar para te fazer uma visita.

SOLNESS - Muito bem. Nesse caso pede-lhe que espere um momento.

ALINE - Pelo menos, não te esqueças de vir, Halvard.

SOLNESS - Kaia, é melhor que você vá agora. E trate de resolver aquele outro assunto, ouviu?

KAIA - Se isso dependesse de mim, eu...

SOLNESS - Quero que o assunto fique resolvido, já lhe disse! Amanhã, sem mais tardar!

KAIA - Se não houver outro meio... consinto em romper com ele.

SOLNESS - Romper! Ora essa! Está louca?

KAIA - Prefiro isso. É preciso que eu fique aqui. Não posso deixá-lo! É impossível!

SOLNESS - E Ragnar, com os diabos? Mas se é Ragnar que eu...

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KAIA - É então por Ragnar acima de tudo que o senhor...

SOLNESS - Claro que não! Você não compreende as coisas. É você quem eu quero conservar. É você, Kaia. Mas é

justamente por isso que você deve convencer Ragnar a não sair do escritório. Vamos, vá agora para casa.

KAIA - Sim, boa noite.

SOLNESS - Boa noite. Diga-me: os desenhos de Ragnar estão aí, não é? Quero examiná-los um pouco.

KAIA - Sim, faça isso!

SOLNESS - Por você, querida Kaia.

KAIA - Boa noite. E pense em mim com bondade.

SOLNESS - Sim, é o que sempre faço. Boa noite, querida Kaiazinha. Vá, vá.

ALINE - Já terminou a carta?

SOLNESS - Sim, eram poucas palavras para escrever.

ALINE - Deves estar contente, Halvard, por teres encontrado essa moça, não?

SOLNESS - Certamente. Ela entende de tudo.

ALINE - É uma coisa que se está vendo.

Aline retira-se. O Dr. Herdal e Solness conversam então longamente sobre as estranhas coincidências que Solness percebe em sua vida: Kaia Fosli, por exemplo, veio oferecer-se para trabalhar depois de uma visita que fez a seu noivo no escritório. Solness, ao vê-los embevecidos um com o outro, pensou que a melhor forma de reter Ragnar seria empregar-lhe a noiva. Apenas pensou isto, nada disse. Olhou firme para Kaia e ela no dia seguinte apresentou-se para empregar-se. O Dr. não compreende nada deste raciocínio e já prepara-se para ir visitar um doente quando chega Hilda Wangel. É uma jovem esbelta de vinte e poucos anos, em traje de turista - saia mais curta que o habitual, gola estilo marinheiro e chapéu. Seu rosto está queimado pelo sol, ela traz uma mochila às costas e um bastão de alpinista. O Doutor reconhece-a: é a filha do médico do distrito de Lysanger. Solness então lembra-se da torre que construiu para a velha igreja da cidadezinha. O Doutor vai, enfim, ver seu doente e Solness e Hilda podem então entregar-se às recordações do passado.

HILDA - Sim, foi naquele verão.

SOLNESS - Foi há muito tempo isso.

HILDA - Exatamente dez anos.

SOLNESS - Era uma criança naquele tempo, não?

HILDA - Oh! Nem tanto assim: eu podia ter doze para treze anos.

SOLNESS - É a primeira vez que vem por aqui, senhorita Wangel?

HILDA - É a primeira vez.

SOLNESS - E sem dúvida não conhece ninguém aqui?

HILDA - Ninguém mais a não ser o senhor. É verdade, conheço também sua senhora.

SOLNESS - Sim, conhece minha mulher?

HILDA - Muito pouco. Estivemos juntas uns dias no sanatório em que ela estava fazendo um tratamento.

SOLNESS - Admira-me que ela nunca tenha me falado nisso.

HILDA - Peço-lhe que me dê hospitalidade aqui por esta noite. É que não tenho outro traje a não ser o que trago

vestido. Só roupa branca na minha mochila. E assim mesmo bem suja... Preciso mandar lavá-la.

SOLNESS - Bem, muito bem. Vamos arranjar isso. É preciso somente que avise à minha mulher... Aline! Vem cá! Ouve!

Está aqui uma senhorita Wangel que tu conheces.

ALINE - Quem é? Ah, é a senhorita! Ei-la aqui na nossa cidade!

SOLNESS - A senhorita Wangel acaba de chegar e pede para pousar hoje aqui em casa.

ALINE - Aqui em casa? Será um prazer.

SOLNESS - Compreendes... Só o tempo necessário para pôr o vestuário em ordem.

ALINE - Tratarei de ajudá-la do melhor modo possível. É o menos que posso fazer. Com certeza vão trazer a sua mala.

HILDA - Não tenho mala.

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ALINE - Enfim, creio que arranjaremos isso. Mas espere-me um pouco aqui no gabinete do meu marido. Vou ver se

lhe arrumo um bom quarto.

SOLNESS - Não poderíamos dar um dos quartos de crianças? Estão todos arrumados.

ALINE - Podemos sim. Temos lá mais lugar do que é preciso. Sente-se e descanse um pouco.

HILDA - O senhor tem muitos quartos para crianças?

SOLNESS - Há três desses quartos aqui em casa.

HILDA - Tantos assim? Tem então uma legião de crianças?

SOLNESS - Não, não temos filhos. Mas a senhorita fará as vezes de um filho, durante uns momentos.

HILDA - Mestre Solness, o senhor é muito esquecido, não?

SOLNESS - Esquecido? Eu? Que eu saiba não.

HILDA - Então não quer que continuemos a conversa que tivemos lá em cima?

SOLNESS - Em Lysanger? Parece-me que não tivemos conversa nenhuma.

HILDA - Quando terminaram a construção da torre, houve uma grande festa.

SOLNESS - Sim, foi um dia que jamais esquecerei.

HILDA - Havia música em frente à igreja, e centenas e centenas de pessoas. Nós, as meninas do colégio, estávamos

vestidas de branco e cada uma trazia na mão uma bandeirinha.

SOLNESS - Ah, sim. Lembro-me bem.

HILDA - O senhor subiu no andaime, até lá em cima, bem no alto. E levava na mão uma grande coroa de folhagens. E,

essa coroa, o senhor pendurou no catavento.

SOLNESS - Era meu hábito naquele tempo. Uma velha tradição...

HILDA - Que impressão dava aquilo! Ver o senhor assim, para nós, cá de baixo... ‘’E se o construtor caísse?’’

SOLNESS - Sim, sim, era uma coisa que podia acontecer. Porque um daqueles diabretes, de branco, mexia-se tanto e

gritava tão alto ao me olhar...

HILDA - ‘’Viva mestre Solness!’’ Não foi?

SOLNESS - ... e agitava tanto a sua bandeira que eu... que quase tive uma vertigem.

HILDA - Esse diabrete era eu.

SOLNESS - Agora tenho certeza. Era a senhorita.

HILDA - Era... porque havia naquilo qualquer coisa de tão belo, de tão comovente... Eu não acreditava que houvesse,

no mundo inteiro, outro construtor capaz de construir uma torre tão alta. E ao vê-lo lá em cima, bem no alto, em carne e

oss,; vendo que o senhor não tinha a menor vertigem, era isso... sobretudo... que se tornava vertiginoso!

SOLNESS - Mas como podia ter certeza de que eu...

HILDA - Certamente! Eu sentia isso no íntimo. De outra forma, como poderia, o senhor, cantar lá em cima?

SOLNESS - Cantar? Eu então cantei?

HILDA - Cantou, sim.

SOLNESS - Nunca cantei na minha vida.

HILDA - Nesse momento o senhor cantou. Ouviam-se no ar acordes de harpa... Mas foi depois disso... sim... foi depois

disso que veio o essencial.

SOLNESS - O essencial?

HILDA - Deve lembrar-se da grande recepção que lhe ofereceram no clube?

SOLNESS - Lembro-me muito bem. Foi naquela mesma tarde, porque parti no dia seguinte.

HILDA - O senhor tinha sido convidado para passar a noite lá em casa, depois do clube.

SOLNESS - Perfeitamente, senhorita. É admirável como todos esses pequenos acontecimentos se gravaram no seu

espírito.

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Page 6: Solness O Construtor

HILDA - Esses pequenos acontecimentos! Teria sido também um pequeno acontecimento o fato de estar eu só na

sala, quando o senhor entrou?

SOLNESS - Era então a senhorita?

HILDA - O senhor disse que me achava encantadora com o meu vestido branco e que eu parecia uma princesinha.

SOLNESS - Isso devia ser verdade, senhorita Wangel. E além disso, nessa noite, eu me sentia tão alegre, tão livre...

HILDA - E o senhor disse mais:disse que, quando eu fosse grande, eu seria a sua princesa.

SOLNESS - Como? Eu também disse isso?

HILDA - Sim, o senhor disse. E, quando eu lhe perguntei quanto tempo teria de esperar, o senhor respondeu que dentro

de dez anos, voltaria para me raptar e me levar para a Espanha, ou não sei aonde. E que uma vez que chegássemos lá

o senhor me compraria um reino.

SOLNESS - Sim, depois de uma boa refeição, fica-se muito generoso. Mas então é certo que eu disse tudo isso?

HILDA - Sim. E disse até o nome desse reino. Devia chamar-se o Reino de Orângia.

SOLNESS - Por Deus que aí está um nome bem convidativo.

HILDA - Pois não me agradou. O senhor parecia estar zombando de mim.

SOLNESS - E com certeza não era assim.

HILDA - Não, não era possível julgar isso, depois do que o senhor fez em seguida.

SOLNESS - Que teria eu feito, santo Deus?

HILDA - O senhor me tomou em seus braços e me beijou, senhor Solness!

SOLNESS - Como! Eu fiz isso?

HILDA - Sim, o senhor me pegou nos seus dois braços, me inclinou para trás e me beijou não sei quantas vezes.

SOLNESS - Ora, querida senhorita Wangel!...

HILDA - Acho que não vai negar isso?

SOLNESS - Sim, nego-o completamente!

HILDA - Está muito bem!

(PAUSA)

SOLNESS - Senhorita Wangel! (PAUSA) Não fique aí assim como que petrificada. O que acabou de dizer deve ter sido

um sonho. (PAUSA) Pois bem, sim! que me leve o diabo! Eu o fiz, pronto!

HILDA - Confessa então?

SOLNESS - Sim. Tudo o que quiser.

HILDA - Que me tomou nos seus braços?

SOLNESS - Sim, sim.

HILDA - Que me inclinou para trás?

SOLNESS - Quase até o chão.

HILDA - Que me beijou?

SOLNESS - Que a beijei.

HILDA - Várias vezes?

SOLNESS - Tantas quanto quiser.

HILDA - Já vê que eu acabei por lhe fazer confessar tudo.

SOLNESS - Como pude esquecer-me de uma coisa dessas!

HILDA - Oh, o senhor deve ter beijado tanto na sua vida!...

SOLNESS - Não, julga-me mal.

HILDA - E a data?

SOLNESS - A data?

HILDA - Sim, o dia em que o senhor colocou a coroa no alto da torre? Vamos, diga-a depressa!

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SOLNESS - A data?... Esqueci a data. Sei somente que isso foi há dez anos.

HILDA - Foi há dez anos... No dia 19 de setembro.

SOLNESS - Sim, é mais ou menos isso. Mas... espere!... Hoje é dia 19 de setembro!

HILDA - Sim, 19 de setembro. E os dez anos passaram. E o senhor não veio como havia prometido.

SOLNESS - Pôde acreditar seriamente durante todo esse tempo que eu voltaria?

HILDA - Sim, seguramente! Eu acreditava que o senhor voltaria.

(PAUSA)

SOLNESS - Faz muito que sabe que sou casado?

HILDA - Sim, soube-o logo. Por que me pergunta isso?

SOLNESS - Por nada... Uma idéia... (PAUSA) Por que veio?

HILDA - Quero o meu reino. O prazo está esgotado.

SOLNESS - A senhorita tem graça.

HILDA - Que saia o reino, mestre Solness! Vamos! Apresente-me o reino!

SOLNESS - Seriamente: por que veio? Que veio fazer aqui, diga-o com franqueza?

HILDA - Oh, primeiro quero visitar a cidade e ver tudo que o senhor construiu.

SOLNESS - Nesse caso vai ter muito que andar.

HILDA - É verdade. O senhor fez tantos edifícios!

SOLNESS - Sim, principalmente nestes últimos anos.

HILDA - E inúmeras torres de igreja, não é? Muito, muito altas?

SOLNESS - Não. Eu não construo mais torres de igrejas... nem igrejas.

HILDA - Que é que constrói, nesse caso?

SOLNESS - Casas onde os homens possam estabelecer seu lar.

HILDA - E nessas casas o senhor não podia acrescentar uma pequenina... uma pequenina torre?

SOLNESS - Que quer dizer com isso?

HILDA - Penso em alguma coisa... que se erga... que se erga livremente nos ares... e cujo catavento gire numa altura

vertiginosa.

SOLNESS - É singular. Isso de que me está falando é o que mais me seduz.

HILDA - Mas, nesse caso, por que não o faz?

SOLNESS - Porque os homens não o querem.

HILDA - Eles não querem? É espantoso!

SOLNESS - Mas agora estou construindo um lar novo para mim mesmo. Aqui em frente.

HILDA - Para o senhor mesmo?

SOLNESS - Sim. A casa está quase construída. E é encimada por uma torre.

HILDA - Por uma alta torre?

SOLNESS - Dirão, talvez, que é demasiado alta... para uma casa, para um lar.

HILDA - Quero ver essa torre, já amanhã de manhã.

SOLNESS - Diga-me senhorita Wangel... como se chama?... O seu nome de batismo, bem entendido...

HILDA - Chamo-me Hilda... O senhor sabe.

SOLNESS - Hilda?

HILDA - Como? Tinha esquecido? O senhor me chamou de Hilda... no dia em que foi tão impertinente.

SOLNESS - Não é admirável? Quanto mais penso nisso, mais me parece que durante todos esses anos intermináveis

eu me torturei por...

HILDA - Por?

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Page 8: Solness O Construtor

SOLNESS - Por procurar lembrar-me de alguma coisa que me tivesse acontecido, como eu acreditava, e que tivesse

esquecido. Mas nunca encontrei a pista do que era. Foi uma boa coisa ter vindo procurar-me neste momento.

HILDA - Realmente? Foi bom?

SOLNESS - Sim. Eu estava aqui, tão só, a olhar para diante de mim, sem poder nada contra todo esse... É preciso que

lhe diga... estou com um tal medo... um tão horrível medo da juventude.

HILDA - Ora! será que a juventude pode causar medo?

SOLNESS - Certamente que sim. E eis por que eu me encerro aqui fechado a chave. Fique sabendo que a juventude

quer invadir minha casa!

HILDA - Parece-me que, nesse caso, o senhor deveria abrir as portas para a juventude.

SOLNESS - Abrir?

HILDA - Sim, para que a juventude possa entrar em sua casa. Como amiga, compreende?

SOLNESS - Não, não e não! A juventude... a juventude é a expiação, ouviu? Virá à frente ca reviravolta. Chegará,

digamos assim, com uma bandeira nova.

HILDA - Pensa em empregar-me em alguma coisa, senhor Solness?

SOLNESS - Sim, posso fazê-lo! Justamente neste momento! Porque, a senhorita também, posso dizer, chega com

bandeira nova. Será, então, juventude contra juventude.

(ALINE INTERROMPE)

ALINE - Está tudo providenciado, senhorita Wangel. Seu quarto está pronto.

HILDA - Oh, como a senhora é gentil comigo!

SOLNESS - Um dos quartos de criança?

ALINE - Sim, o do meio. Mas antes temos de ir para a mesa.

SOLNESS - Vamos! Hilda vai ter um quarto de criança.

ALINE - Hilda?

SOLNESS - Sim. A senhorita Wangel chama-se Hilda. Eu a conheci menina.

ALINE - É verdade, Halvard? Está muito bem... E agora vamos jantar.

HILDA - É verdade o que me disse? Pode empregar-me em algum serviço?

SOLNESS - Você é tudo quanto me estava faltando.

HILDA - Oh! Que bom! Consegui!

SOLNESS - Como?

HILDA - Alcancei o meu reino... Ou quase...

SEGUNDO ATOUm pequeno salão agradavelmente mobiliado em casa de Solness. Por uma porta envidraçada, ao fundo, vê-se uma varanda e, para além dela, um jardim. É cedo ainda. Aline está pronta para ir até a cidade: está vestida de negro, como no primeiro ato. O chapéu, o casaco e a sombrinha estão sobre uma cadeira. Antes de sair, entretanto, ela rega os vasos de plantas e flores enquanto Solness, sentado no sofá olha os desenhos de Ragnar, detendo-se atentamente sobre alguns deles. Kaia Fosli vem avisar que já chegou e traz notícias de Knut Brovik: seu estado piorou muito e ele teve que ficar de cama. Ao ver que Solness está examinando os desenhos de Ragnar anima-se a perguntar-lhe se gostaria de falar com o rapaz quando ele chegar mas Solness afirma não ter nada de particular a dizer-lhe. Kaia retira-se. Solness tenta iniciar uma conversa com Aline, apesar das dificuldades que têm de falar de si mesmos e de sua vida em comum.

SOLNESS - Até que acabamos por utilizar um dos quartos de crianças, não é, Aline?

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ALINE - É verdade.

SOLNESS - Sempre é melhor, creio eu, que vê-los sempre vazios, os três.

ALINE - Oh, esse vazio é apavorante! Tens razão.

SOLNESS - Vais ver, Aline, que daqui por diante tudo vai melhorar. A vida será mais agradável... sobretudo para ti.

ALINE - Dizes isso... por ela ter vindo?

SOLNESS - Não, refiro-me... à nova casa, onde brevemente nos instalaremos.

ALINE - Essa nova casa não me interessa nem um pouco.

SOLNESS - É-me muito penoso ouvir-te falar assim. Porque se a construí foi principalmente pensando em ti.

ALINE - Tens feito tanta coisa para mim!...

SOLNESS - Não, Aline, não deves dizer isso! Não o posso consentir!

ALINE - Está bem, Halvard, calar-me-ei.

SOLNESS - Mas eu não me convenço do contrário. Vais ver que tudo te correrá bem na nova casa.

ALINE - Oh, para mim...

SOLNESS - Sim, sou eu quem te diz isso! Vais encontrar tanta coisa que te fará lembrar o teu antigo lar...

ALINE - O lar de meu pai e de minha mãe... Tudo o que se queimou...

SOLNESS - Sim, minha pobre Aline! Aquilo foi um golpe bem rude para tua alma.

ALINE - Podes construir tudo o que quiseres, Halvard... mas nunca tornarás a dar-me um verdadeiro lar!

SOLNESS - Pois bem, nesse caso, não falemos mais nisso.

ALINE - Não é nosso hábito falarmos nesse assunto. Tu sempre hás de repelir essas recordações.

SOLNESS - Eu? E por que o faria? Por quê?

ALINE - Oh, Halvard, eu te compreendo bem. Queres antes de tudo poupar-me. Fazes tudo o que podes.

SOLNESS - Tu! És mesmo tu que assim falas, Aline?

ALINE - Sim, sou eu mesma.

SOLNESS - Era só o que faltava!

ALINE - Porque a velha casa... meu Deus! O que aconteceu, aconteceu... Já que essa desgraça devia vir...

SOLNESS - Sim, tem razão. Nunca se pode impedir que a desgraça chegue.

ALINE - Mas as consequências do incêncio... essas horríveis consequências!... Oh, foi isso! Foi isso que...

SOLNESS - Não deves mais pensar nisso, Aline!

ALINE - Sei. Mas preciso pensar. Preciso, também falar disso, afinal! Não posso mais! E quando penso que nunca terei

o direito de me perdoar a mim mesma...

SOLNESS - A ti mesma?...

ALINE - Sim. Porque eu tinha deveres por dois lados. Para contigo e para com as crianças. Deveria ter sido forte. Não

me deixar abater nem pelo medo, nem pela dor de ter perdido o meu lar. Ah, se eu tivesse podido, Halvard.

SOLNESS - Aline... precisas prometer-me que nunca mais te deixarás invadir por pensamentos desta natureza.

Promete, vamos!

ALINE - Ora, meu caro! Prometer... prometer... Não custa nada prometer...

SOLNESS - Oh, não agüento mais! Nunca um pouco de sol, Nunca um simples raio de sol neste lar!

ALINE - Mas isto não é um lar, Halvard.

SOLNESS - Não. E bem o podes dizer. E sabe Deus se não tens razão... Sabe Deus se alguma coisa melhorará na

nova casa...

ALINE - Nada melhorará. Será sempre o mesmo vácuo, o mesmo deserto... tanto lá, quanto aqui.

SOLNESS - Mas então para que construir essa casa? Podes dizer-me?

ALINE - Não. Responde tu mesmo.

SOLNESS - Que queres dizer, Aline? Tens uma expressão tão estranha... Dir-se-ia que ocultas algum pensamento.

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Page 10: Solness O Construtor

ALINE - Não, asseguro-te que...

SOLNESS - É inútil tentares iludir-me. Eu sei o que sei. Tenho bons olhos e bons ouvidos, Aline, não duvides.

ALINE - Mas que há, santo Deus?

SOLNESS - Confessa que achas qualquer dissimulação, qualquer coisa de insidioso em todas as minhas palavras...

mesmo as mais inocentes.

ALINE - Eu?

SOLNESS - Compreende-se, Aline. Quando se tem de viver com um homem doente...

ALINE - Doente?... Estás doente, Halvard?

SOLNESS - Meio louco, pronto!... Um homem que já perdeu o juízo.

ALINE - Halvard... Por favor!

SOLNESS - Mas você se engana. Ainda não cheguei ao ponto que imaginam. No fundo, não tenho nada.

ALINE - Não, não é? Mas então de onde te vêm essas idéias?

SOLNESS - De onde elas me vêm? É que, de quando em quando, me sinto esmagado por essa dívida terrível.

ALINE - Uma dívida? Mas, Halvard, não deves nada a ninguém!

SOLNESS - Sim, estou endividado, terrivelmente endividado contigo... contigo... Aline.

ALINE - Que significa isso? Prefiro que me digas imediatamente.

SOLNESS - Não há nada de concreto. Nunca te fiz mal... pelo menos propositalmente, conscientemente. Sinto-me,

contudo, como esmagado pelo peso de uma dívida.

ALINE - É então verdade, Halvard: estás... estás doente.

SOLNESS - É possível. Ou, então, é coisa parecida. Ah, aqui está um raio de luz!

HILDA - Bom dia, senhor Solness.

SOLNESS - Dormiu bem?

HILDA - Admiravelmente. Como se estivesse num berço. Ah!... Estendi-me na cama como... como uma princesa.

ALINE - Agora, Halvard, preciso ir à cidade. Tratarei de conseguir-lhe certas pequeninas coisas de que poderá precisar.

HILDA - Oh, adorável senhora Solness! A senhora é realmente muito gentil.

ALINE - Faço apenas o meu dever e gosto de cumpri-lo. Até logo.

HILDA - Foi o senhor quem desenhou tudo isso?

SOLNESS - Não, é um rapaz que trabalha no meu atelier.

HILDA - Um rapaz a quem o senhor ensinou?

SOLNESS - Sim. Alguma coisa ele aprendeu aqui.

HILDA - Francamente! E eu que não sabia que era tão tolo...

ALINE - Tão tolo? Julga-me então muito tolo?

HILDA - Julgo-o sim. Para perder seu tempo ensinando a esses cabeças de vento...

SOLNESS - Como! Que há nisso de tão extraordinário?

HILDA - Ora, meu caro senhor Solness! Que quer! Só o senhor deveria ter o direito de construir. Pronto!

SOLNESS - Hilda!... De onde lhe vêm essas idéias?

HILDA - Por que pergunta? Acha-as assim tão aloucadas?

SOLNESS - Não, não é isso. É que vivo aqui, continuamente... a ruminar em silêncio na minha cabeça... esse

pensamento que acaba de exprimir.

Solness mostra a Hilda, pela janela, a casa nova. Diante de seu espanto ao saber que lá também haveria três quartos de crianças, sem crianças, Solness conta-lhe que ele e Aline tiveram, há treze anos, dois meninos, gêmeos que viveram apenas quinze dias. Logo depois do nascimento das crianças, sobreveio um incêndio que destruiu a velha propriedade da família de Aline onde o casal morava. Todos se salvaram mas Aline ficou extremamente abalada pelo medo e pela perda de tudo o que havia pertencido a seus pais. Teve a febre do leite mas insistiu em amamentar os bebês, pois considerava que este era o seu dever. As crianças não resistiram. A vida de Aline encerrou-se ali. Para Solness, apesar do sofrimento pela perda dos filhos, o incêndio representou

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Page 11: Solness O Construtor

o grande impulso de que sua carreira de construtor necessitava: ele loteou o terreno e ali construiu habitações, lares. Nunca mais, por livre e espontânea vontade, no entanto, Solness construiu nem igrejas nem campanários.

Hilda avalia que, feitas as contas, Solness deve ser um homem feliz. Ele discorda: se os outros acham que ele é um homem feliz, é porque não percebem o preço que ele teve de pagar por isto. Para dar às famílias lares onde é bom viver, ele teve de renunciar a ter sua própria família: depois do incêndio, Aline nunca recuperou totalmente a saúde. Os quartos de crianças são, para eles, a marca do impossível, do impossível que solicita e atrai. Hilda retoma o fio do raciocínio de Solness: se ele conhece o poder de sedução do impossível é porque para ele também há feitiçaria. Solness concorda: é inevitável que alguém constantemente favorecido pela sorte, como ele, acabe por tornar-se um pouco feiticeiro. No entanto, a moeda que ele ofereceu ao destino foi a felicidade, a dele e a de outros, especialmente Aline. Ela teria sido uma excelente mãe mas sua vocação foi destruída e de tudo o que ela poderia ter feito, nada restou. Esta é a culpa que atormenta Solness dia e noite.

SOLNESS - Suponha por um instante que eu tenha alguma culpa...

HILDA - O senhor!... Culpa do incêncio?...

SOLNESS - De tudo o que aconteceu. E talvez... inocente apesar de tudo.

HILDA - Oh, senhor Solness! Para falar dessa forma... é preciso que de fato esteja doente!

SOLNESS - Creio que nunca me restabelecerei.

(ENTRA RAGNAR)

RAGNAR- Queira desculpar-me, senhor Solness...

SOLNESS - Pelo que me disseram seu pai não está melhor?

RAGNAR- Meu pai está piorando cada vez mais. E isso me leva a suplicar-lhe que escreva numa dessas folhas

algumas palavras boas!... Qualquer coisa que eu possa mostrar ao pai antes dele...

SOLNESS - Não quero mais ouvir falar de todos esses desenhos!

RAGNAR- Examinou-os?

SOLNESS - Sim... examinei-os.

RAGNAR- E não valem nada? E eu tampouco, não valho nada?

SOLNESS - Ouça, Ragnar, fique aqui em casa. Você estipulará, você mesmo, as suas condições. Case-se com Kaia.

Não terá preocupações. Talvez mesmo venha a ser feliz. Mas renuncie a trabalhar por conta própria.

RAGNAR- Voltarei à casa para levar sua resposta a meu pai. Prometi-lhe fazer isso. Devo realmente dizer isso a meu

pai antes dele morrer?

SOLNESS - Diga-lhe... diga-lhe o que quiser. Andaria mais acertado se não lhe dissesse nada! Não posso agir de outro

modo, Ragnar!

RAGNAR- Nesse caso posso levar os desenhos?

SOLNESS - Sim, leve-os! Estão ali, em cima da mesa.

RAGNAR- Obrigado.

HILDA - Não, não! Deixe-os aí.

SOLNESS - Por quê?

HILDA - Quero vê-los.

SOLNESS - Mas se já os viu. Vamos. Deixe-os aí.

RAGNAR- Com muito prazer.

SOLNESS - E volte para junto de seu pai.

RAGNAR- Já que o permite...

SOLNESS - Não me deve pedir o impossível, Ragnar! Está ouvindo, Ragnar... Não deve...

RAGNAR- Está bem, desculpe-me. Já estou indo.

HILDA - Procedeu muito mal, agora.

SOLNESS - Mas ainda há pouco, a senhorita não dizia que só eu deveria ter o direito de edificar?

HILDA - Eu posso dizer isso. O senhor, não.

SOLNESS - Cabe principalmente a mim dizê-lo. Lembre-se do preço que me custou o lugar.

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Page 12: Solness O Construtor

HILDA - Sei-o perfeitamente. Custou-lhe a alegria do lar, como diz, e tudo mais que se segue...

SOLNESS - Sem falar na tranquilidade de minha alma. Vou lhe contar uma coisa interessante.

HILDA - Que é?

SOLNESS - À primeira vista, parece tratar-se de um gracejo. Imagine simplesmente uma fenda num cano de chaminé.

HILDA - Uma fenda num cano de chaminé?...

SOLNESS - Eu a tinha notado, muito tempo antes do incêndio. Toda vez que ia ao sótão, verificava se ela não havia

desaparecido.

HILDA - Não preveniu ninguém?

SOLNESS - Não.

HILDA - E não se lembrou de fazer consertar a chaminé?

SOLNESS - Sim... Lembrar-me, lembrei-me. Mas foi só. Todas as vezes que ia providenciar o conserto, eu tinha a

impressão de que qualquer coisa me impedia. Hoje não, pensava eu. Amanhã. E nunca se fez nada.

HILDA - Mas por que essa moleza?

SOLNESS - Porque eu tinha uma idéia. A sorte podia chegar-me por aquela fenda.

HILDA - Oh, como devia ser emocionante!

SOLNESS - Era-me impossível proceder de outro modo. Eu achava aquilo tão simples, tão natural. Eu queria que aquilo

acontecesse no inverno... um pouco antes do meio-dia. Nessa hora, Aline e eu estaríamos fora. Em casa, os criados

teriam acendido um bom fogo... Quando chegássemos já toda a casa estaria em chamas... Eis como eu queria que a

coisa viesse.

HILDA - Mas o senhor tem certeza de que foi aquela pequena fenda na chaminé que provocou o incêncio?

SOLNESS - Pelo contrário: tenho certeza que ela não foi a causa dele.

HILDA - Como assim?

SOLNESS - Está perfeitamente provado que o fogo se iniciou num guarda-roupa, na extremidade oposta da casa.

HILDA - Mas nesse caso, por que me fala da chaminé?

SOLNESS - Não acredita como eu, Hilda, que haja certos eleitos, certos homens excepcionais que tenham recebido a

graça, a faculdade, o poder de almejar uma coisa, de desejá-la, de querê-la... com tanta intensidade... tão

implacavelmente... que por fim a obtém? Não crê nisso?

HILDA - Se é assim, veremos um dia se estou no rol dos eleitos.

SOLNESS - Não é possível obter sozinho esses efeitos poderosos. Não. Para consegui-los, é necessário ter-se

ajudantes e servidores. Estes não se apresentam espontaneamente. É preciso chamá-los com persistência para que

venham. Chamá-los pelo pensamento, compreende?

HILDA - O senhor acredita que, se não tivesse desejado o incêndio, ele se teria dado da mesma maneira?

SOLNESS - Admitamos que a casa tivesse pertencido ao velho Knut Brovik. Ela nunca teria ardido tão a propósito.

Porque ele não sabe chamar em seu auxílio os ajudantes e os servidores. Está vendo bem, Hilda que, afinal, eu tenho

alguma culpa se a vida dos dois pequeninos foi sacrificada.

HILDA - Mas uma vez que foram esses ajudantes, esses servidores que...

SOLNESS - Quem os chamou a esses ajudantes, a esses servidores? Eu! Foi à minha vontade que eles vieram

submeter-se. Aí está o que se chama ter sorte. Pois bem! Vou dizer-lhe o que se sente, quando se tem essa sorte. É

como se se tivesse aqui, no peito, uma chaga viva. E os ajudantes, os servidores, vão cortando pedaços de pele dos

outros para enxertá-los nessa chaga. Mas a chaga jamais cura... Jamais... Jamais!

HILDA - Está doente, senhor Solness. Muito doente.

SOLNESS - Diga louco. É o que pensa.

HILDA - Não, não creio que o senhor esteja louco.

SOLNESS - Ah, Hilda, há pelo mundo uma tal quantidade de demônios que nós não vemos!...

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Page 13: Solness O Construtor

HILDA - Demônios também?

SOLNESS - Sim, demônios. Alguns bons, outros maus. Se pelo menos a gente soubesse de que demônios depende!

Então seria fácil entender-se com eles.

HILDA (PAUSA) - Diga-me, senhor Solness: tem certeza de nunca me ter chamado... pelo pensamento?

SOLNESS - Tenho quase certeza de que a chamei.

HILDA - Que queria de mim?

SOLNESS - Você é a juventude, Hilda.

HILDA - Essa juventude de que o senhor tem tanto medo?

SOLNESS - Essa juventude a que tanto aspiro. Eis a verdade.

HILDA - Então... Aqui estão aqueles desenhos...

SOLNESS - Deixe aí esses rabiscos...

HILDA - E as palavras que tinha de escrever?

SOLNESS - Escrever?... Isso nunca!

HILDA - Uma vez que o velho pai está para morrer!... Não lhes poderia dar essa alegria... ao filho e a ele? E além disso

esses desenhos talvez possam servir ao rapaz.

SOLNESS - Sem dúvida.Ele iria construir de acordo com esse plano.Foi uma oportunidade que ele mesmo se reservou.

HILDA - Pois, se é assim... não poderia o senhor pregar uma mentirazinha?

SOLNESS - Uma mentira? Hilda... vá embora com esses desenhos!

HILDA - Puxa! Que ferocidade! Não vai me morder, não é? Onde tem pena e tinta?

SOLNESS - Não há aqui.

HILDA - Mas acharei ali, com aquela senhorita.

SOLNESS - Fique, Hilda!... Eu deveria mentir, disse você. Oh, sim. Poderia fazê-lo por causa do velho pai que em

outros tempos arruinei...

HILDA - Como os outros?

SOLNESS - Eu precisava de lugar. Mas quanto a esse Ragnar... Não! Não quero que ele suba. Por nada deste mundo!

HILDA - Pobre rapaz! Não é provável que o consiga. Já que ele não serve para nada...

SOLNESS - Se Ragnar Brovik triumfar, ele me derrubará, me destruirá, como eu destruí o pai dele.

HILDA - Ele o destruirá? Então tem algum valor?

SOLNESS - Ah, sim, pode ter certeza! Ele faz parte dessa juventude que está pronta a bater-me à porta... a liquidar o

grande construtor Solness.

HILDA - E o senhor não quer abrir!... É lamentável!

SOLNESS - Paguei minha vitória com o meu sangue!... E além disso, tenho medo de perder meus ajudantes e meus

servidores.

HILDA - Ora, o senhor trabalhará só, se não houver outro meio.

SOLNESS - Seria em vão, Hilda. A reviravolta virá de qualquer forma... mais cedo ou mais tarde. Não se esqueça de

que a expiação obedece a seu próprio fatalismo... e não se deixa manobrar.

HILDA - Não fale assim! Quer matar-me!... Quer tirar-me o que prezo mais do que a vida?

SOLNESS - Que é?

HILDA - A felicidade de vê-lo grande... de vê-lo um dia com uma coroa nas mãos. Alto, bem no alto de uma torre de

igreja! Vamos, um lápis, depressa! Tem, ao menos um lápis consigo?

SOLNESS - Aqui tem um.

HILDA - Está bem. Agora escreva

Por insistência de Hilda, Solness escreve algumas palavras nos desenhos de Ragnar. Pergunta-lhe, então, seriamente por que veio. Ela reitera que veio em busca de seu reino. Aline chega com vários embrulhos: são as compras que fez para Hilda. Solness devolve os desenhos a Kaia e demite-a, bem como a Ragnar. Kaia,

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Page 14: Solness O Construtor

trêmula, obedece e parte. Aline inquieta-se com esta decisão, mas seu marido afirma-lhe que sua única preocupação agora deve ser a inauguração da casa nova: ainda esta tarde a coroa será colocada no alto da torre. Hilda entusiasma-se com a oportunidade de ver mestre Solness subir novamente a uma altura vertiginosa. Aline, no entanto, não acredita que seu marido, que sofre de vertigens a ponto de não poder manter-se firme na varanda de um segundo andar, queira subir. Ao perceber que a situação é séria, ela se apavora e decide escrever ao Dr. Herdal para que venha impedir esta loucura. Hilda não se conforma com o que acabou de ouvir. HILDA - Isso é verdade? Sim ou não?

SOLNESS - Que sou sujeito a vertigens?

HILDA - Que meu arquiteto não ouse... não possa subir tão alto quanto o que ele constrói?

SOLNESS - É assim que interpreta as coisas?

HILDA - Sim.

SOLNESS - Dir-se-ia que nem um recanto em mim lhe escapa.

HILDA - Lá em cima! Bem no alto!...

SOLNESS - Lá, num quarto, bem no alto da torre, você poderia morar, Hilda. Ficaria instalada... como uma princesa.

HILDA - Sim. Foi o que o senhor me prometeu.

SOLNESS - É verdade mesmo que lhe prometi?...

HILDA - Que pergunta! O senhor me disse que eu me tornaria princesa, e que me daria um reino. E depois o senhor...

SOLNESS - Tem certeza de que não foi uma espécie de sonho... de alucinação?

HILDA - Como! Então isso não aconteceu?

SOLNESS - Eu mesmo não sei. Mas o que agora sei, é que...

HILDA - É que?... Diga!

SOLNESS - ... é que deveria ter acontecido.

HILDA - Não. O senhor não sofre de vertigem!

SOLNESS - Esta tarde colocaremos a coroa... princesa Hilda!

HILDA - Sim. Sobre o seu novo lar.

SOLNESS - Sobre a nova casa... que para mim nunca será um lar.

HILDA - Terrivelmente emocionante!

TERCEIRO ATONa varanda da casa de Solness: dali vê-se o jardim e parte da casa nova, especialmente a torre ainda cercada

pelos andaimes. O sol poente dá uma coloração dourada à cena. Aline Solness, envolta num grande xale de

crepe branco, repousa numa poltrona. Logo chega Hilda vindo do jardim com um pequeno ramo de flores do

campo enfeitando a blusa.

ALINE - Percorreu o jardim, senhorita Wangel?

HILDA - Sim, dei um passeio.

ALINE - E encontrou flores, pelo que vejo... Quase nunca vou por ali. Tenho a impressão de não estar mais no que é

meu. Parece-me que ele nem me pertence mais.

HILDA - Por que diz isso?

ALINE - Não, não é mais o meu jardim. Não é mais o mesmo do tempo de meus pais. Ah! senhorita Wangel, se

soubesse como o mutilaram... a esse pobre jardim. Construíram nele casas para estranhos, para gente que eu não

conheço... e que de suas janelas pode me ver.

HILDA - Diga-me uma coisa, Senhora Solness...

ALINE - Que é?

HILDA - Permite-me ficar um momento a seu lado?

ALINE - Com muito prazer... se isso lhe dá prazer também.

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Page 15: Solness O Construtor

HILDA - Ah! como se está bem aqui! Como é bom a gente se aquecer, como um lagarto ao sol!

ALINE - É uma gentileza de sua parte ficar aqui perto de mim. Eu pensei que fosse ter com meu marido.

HILDA - Para quê?

ALINE - Para ajudá-lo.

HILDA - Muitíssimo obrigada. Aliás, ele está lá com os operários! Eu o vi, mas tinha o aspecto tão carrancudo, que não

me arrisquei a abordá-lo.

ALINE - E, contudo, ele tem uma natureza tão meiga, tão terna!...

HILDA - Ele?

ALINE - Ainda não o conhece bem, senhorita Wangel.

HILDA - Está contente por ir morar na casa nova?

ALINE - Deveria estar, porque é esse o desejo de Halvard.

HILDA - Não é assim que eu compreendo as coisas.

ALINE - Sim, senhorita Wangel. É um dever, para mim, fazer a vontade dele. Mas obedecer, não é sempre muito fácil.

HILDA - Quando se passou por tantas provações...

ALINE - Como o sabe?

HILDA - Seu marido me disse.

ALINE - É tão raro ele se abrir comigo... Sim, senhorita Wangel, sofri muitas provações na minha vida, pode crer!...

HILDA - Pobre Senhora Solness! Primeiro esse incêndio...

ALINE - Sim, tudo que me pertencia se queimou.

HILDA - E isso não é ainda o mais triste.

ALINE - E que mais então?

HILDA - Perderam dois filhinhos.

ALINE - Ah! sim. Mas isso é outra coisa.Era um decreto da Providência.Devemos submeter-nos dando graças aos céus.

HILDA - Mas não vejo...

ALINE - Sim, senhorita Wangel... Não me fale mais dessas duas criancinhas. Só devemos pensar na felicidade delas.

São agora tão felizes... tão felizes! Não, o que despedaça a alma são as pequenas perdas da vida... a perda daquilo que

para os outros não significa nada, nada. Meu Deus! Todos aqueles velhos retratos pendurados nas paredes e os velhos

vestidos de seda... Estavam na família desde tempos imemoriais. E as velhas rendas feitas por minha mãe e por minha

avó... Tudo isso se foi!... Imagine só... até as minhas jóias! (Com um suspiro profundo) E todas as bonecas!...

HILDA - As bonecas?...

ALINE - Eu tinha nove bonecas encantadoras.

HILDA - E todas se queimaram?

ALINE - Todas! Oh, isso me causou tanto pesar, tanto!

HILDA - Sim? A senhora tinha conservado todas essas bonecas? Desde a infância?

ALINE - Não as conservei. As bonecas e eu continuamos a viver juntas.

HILDA - Mesmo depois que a senhora ficou grande?

ALINE - Sim, muito tempo depois.

HILDA - Depois que se casou?

ALINE - Sim. Quando ele não me via, eu... Mas o fogo destruiu-as todas, as pobrezinhas! Ninguém se lembrou de salvá-

las... Oh! Fico tão triste ao pensar nisso... Não deve rir-se de mim, senhorita Wangel.

HILDA - Eu não rio, absolutamente.

ALINE - Porque elas tinham uma espécie de vida. Eu as trazia dentro do coração, como criancinhas que estivessem por

nascer.

O Dr. Herdal chega atendendo ao chamado de Aline e toma conhecimento da intenção de mestre Solness de subir à torre para colocar ele mesmo a coroa que celebrará a inauguração da casa nova. Ao perceber que seu

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Page 16: Solness O Construtor

marido se aproxima, Aline recomenda a Hilda que, pelo amor de Deus, tire-lhe esta idéia da cabeça. Em seguida, entra em casa com o Doutor. Solness comenta que sua mulher sempre se retira quando ele chega mas que isso lhe causa uma espécie de alívio: é-lhe muito penoso contemplar sempre o sofrimento e a tristeza de Aline. Depois de um silêncio, Hilda comunica que decidiu partir. Solness não se conforma mas ela não vê possibilidade de ficar depois de ter-se tornado amiga da Sra. Solness. Ele fica desesperado: o que será de sua vida depois que Hilda partir?

SOLNESS - De agora em diante não farei mais grande coisa.

HILDA - Já sei o que o senhor construirá!

SOLNESS - Pois bem! Diga! Que será?

HILDA - O castelo. Não me prometeu um reino?

SOLNESS - Sim! É o que deve ser feito.

HILDA - Pois então! Depressa! Construa-o.

SOLNESS - Como assim?... Imediatamente?

HILDA - Sim! Os dez anos estão decorridos e não quero mais esperar. Vamos, vamos, meu castelo, depressa!

SOLNESS - Confesso que não é brincadeira dever-lhe alguma coisa, Hilda.

HILDA - Não devia ter prometido.Agora é demasiado tarde. Vamos!Que saia o castelo!Ele é meu!Eu o quero. Aqui. Já!.

SOLNESS - Será permitido ao construtor subir aos aposentos da princesa?

HILDA - Se o construtor quiser.

SOLNESS - Nesse caso creio que o construtor irá.

HILDA - Sim... o construtor irá.

SOLNESS - Mas depois disso ele deixará de edificar... o pobre construtor.

HILDA - Oh! não! Edificaremos juntos o que há de mais delicioso no mundo.

SOLNESS - Hilda!... Diga-me o que é.

HILDA - Esses construtores são pessoas bem... bem bobas!

SOLNESS - Sim, já se sabe disso. Mas, diga-me, que é que vamos construir juntos?

HILDA - Castelos no ar!

SOLNESS - Castelos no ar?

HILDA - Sim, realmente! Eles são tão acessíveis, os castelos no ar... E tão fáceis de construir... Principalmente para os

arquitetos propensos a vertigens.

SOLNESS - De agora em diante, Hilda, construiremos juntos.

Entra Ragnar Brovik trazendo a coroa de folhagens, enfeitada com flores e fitas de seda.

HILDA - A coroa! Oh! Como vai ser esplêndido!

SOLNESS - É você, Ragnar, quem traz a coroa?

RAGNAR - Prometi ao contramestre trazê-la.

SOLNESS - Vejo que seu pai melhorou.

RAGNAR- Não.

SOLNESS - Não o reconfortou ler o que eu escrevi à margem dos seus desenhos?

RAGNAR- Chegou tarde. Quando ela trouxe a pasta, ele havia perdido os sentidos.

SOLNESS - Mas então volte para casa! Vá cuidar de seu pai!

RAGNAR- Ele não precisa mais de mim.

SOLNESS - Mesmo assim. Você há de querer ficar perto dele.

RAGNAR- Ela está lá para velá-lo.

SOLNESS - Quem? Kaia?

RAGNAR- Sim, Kaia...

SOLNESS - Volte para casa, Ragnar. Fique com eles. E dê-me a coroa.

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Page 17: Solness O Construtor

RAGNAR - Não é o senhor que?

SOLNESS - Sou eu quem a dependurará... E agora volte. Não precisamos de você hoje.

RAGNAR - Sei que não precisa mais de mim. Mas, hoje, ficarei.

SOLNESS - Pois fique, já que faz tanta questão.

HILDA - É daqui que ficarei olhando para o senhor.

SOLNESS - Para mim?

HILDA - Vai ser muito comovente.

SOLNESS - Tornaremos a falar nisso, Hilda.

HILDA - Parece-me que o senhor bem podia ter agradecido.

RAGNAR- Agradecer-lhe?... A ele?...

HILDA - Sim. Era o que deveria ter feito.

RAGNAR - Era à senhora que eu deveria agradecer.

HILDA - Como assim?

RAGNAR - Mas tome cuidado, senhorita Wangel! A senhora ainda não o conhece.

HILDA - Oh! Eu o conheço melhor do que ninguém.

RAGNAR - Agradecer a ele! Ele, que durante anos me conservou na obscuridade! Ele, que é a causa de meu pai ter

duvidado de mim... de eu mesmo ter duvidado de mim!... E tudo isso por quê?

HILDA - Por quê? Diga depressa!

RAGNAR - Porque queria que ela ficasse junto dele.

HILDA - A senhorita da escrivaninha?

RAGNAR- Sim.

HILDA - É falso! O senhor mente!

RAGNAR- Eu não acreditei até que ela me dissesse... hoje mesmo.

HILDA - Que disse ela? Quero saber! Depressa! depressa!

RAGNAR - Ela me disse que ele fizera com que ela perdesse o juízo, que ele se apoderara de todos os seus

pensamentos, que ela nunca se poderia afastar dele, que sempre lhe seria dedicada...

HILDA - Ela não tem esse direito!

RAGNAR - E quem lhe proíbe?

HILDA - Ele mesmo, entre outros!

RAGNAR - Agora compreendo tudo. Daqui por diante ela se tornaria um obstáculo.

HILDA - O senhor não compreende nada!... Eu lhe direi o motivo pelo qual ele a queria.

RAGNAR - Sim, diga. Por quê?

HILDA - Para conservar o senhor com ele.

RAGNAR-- Foi ele quem lhe disse isso?

HILDA - Não. Mas é a verdade! É preciso que seja verdade! Eu quero... quero que seja verdade.

RAGNAR - E foi justamente quando a senhora chegou ... que ele a largou.

HILDA - Foi o senhor... o senhor quem ele largou! Julga por acaso que ele seja homem capaz de se preocupar com

qualquer senhorita?

RAGNAR-- Será que ele teve medo de mim durante todo esse tempo?

HILDA - Medo?... Ele?... O senhor é realmente muito presunçoso!

RAGNAR - Oh! Ele terá percebido, há muito tempo, que eu também prestava para alguma coisa. Quanto ao medo...

Solness não é inacessível a ele.

HILDA - Ora, deixe-se disso!

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RAGNAR - Sim, é como lhe digo. Esse grande construtor... que não receia destruir a felicidade dos outros, que agiu

como agiu com meu pai e comigo... tem medo de subir a um simples andaime. Oh! Quanto a isso ele nunca se animará.

HILDA - Ah! Devia tê-lo visto na altura em que o vi! Era de se ter vertigem.

RAGNAR - A senhora viu isso?

HILDA - Sim, eu o vi. Livre e altivo, de pé, no cimo de uma torre de igreja! E lá suspendeu a coroa!

RAGNAR - Eu sei que ele se animou a fazê-lo uma vez na vida. Uma única vez. Entre nós, os moços, esse fato foi

muito comentado. Mas nenhuma força humana será capaz de o fazer repetir a façanha.

HILDA - Verá isso, hoje!

RAGNAR - Ah! sim? Havemos de ver!

HILDA - Certamente.

RAGNAR - É mais fácil vir o mundo abaixo.

HILDA - Eu quero vê-lo. Eu quero e assim será!

RAGNAR - Ele não se animará. O grande construtor... tem medo!

ALINE - Ele não está aqui! Onde estará?

RAGNAR - O senhor Solness está com os operários.

HILDA - Levou a coroa com ele.

ALINE - A coroa! Oh! meu Deus... Meu Deus! Vá procurá-lo Ragnar! Procure trazê-lo!

RAGNAR - Devo dizer a ele que a senhora quer falar-lhe?

ALINE - Não, não lhe diga isso! Diga-lhe que alguém o espera... e que ele venha imediatamente.

RAGNAR - Está bem, senhora. Vou já.

ALINE - Senhorita Wangel, não pode imaginar as angústias que ele me causa.

HILDA - Mas o que há nisso de tão apavorante?

ALINE - A senhora deve compreender. Imagine só se, de fato, ele resolveu subir no andaime...

HILDA - Acredita que o faça?

ALINE - Oh! Nunca se sabe do que ele é capaz!

HILDA - A senhora então o julga... como direi...?

ALINE - Nunca se sabe do que ele é capaz. Por favor, retenha-o com as duas mãos, peço-lhe. Preciso receber a

senhoras que estão chegando para a inauguração da casa nova. É minha obrigação.

HILDA - Não seria melhor a senhora mesma tentar retê-lo?

ALINE - Sim, meu Deus! Seria meu dever. Mas quando se tem deveres por todos os lados...

Aline entra em casa, enquanto Solness aproxima-se pela escada que vem do jardim.

SOLNESS - Disseram-me que há aqui alguém perguntando por mim.

HILDA - Sim, senhor Solness: sou eu.

SOLNESS - Ah! é você, Hilda? Estava com medo que fossem Aline e o Doutor.

HILDA - O senhor facilmente tem medo.

SOLNESS - Acredita?

HILDA - Sim, dizem que o senhor tem medo de subir nos andaimes.

SOLNESS - Isso é uma outra história.

HILDA - Então é verdade?

SOLNESS - Sim, é verdade!

HILDA - Tem medo de cair e de morrer?

SOLNESS - Não.

HILDA - Então, de que é que tem medo?

SOLNESS - Temo a expiação, Hilda.

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HILDA - A expiação? Não compreendo.

SOLNESS - Eu lhe disse que comecei a vida construindo igrejas.

HILDA - Sim, sei.

SOLNESS - Nada me parecia mais grandioso do que construir igrejas. E ouso dizer que todas essas pobres igrejas, eu

as construí com tanto zelo, fervor e piedade que... Que eu julgava realmente ter contentado àquele cuja glória elas

deviam celebrar.

HILDA - Ah! Muito bem! Mas como sabe que Ele não está satisfeito com o senhor?

SOLNESS - Ele, satisfeito comigo? Como pode crê-lo, Hilda? Ele, que desencadeou toda essa feitiçaria em cima de

mim! Ele, que mandou para me servirem, dia e noite... todos esses... todos esses...

HILDA - Todos esses demônios...

SOLNESS - Sim, esses demônios de toda espécie. Ah! Não! Eu senti perfeitamente que Ele não estava satisfeito

comigo. Foi por isso, sabe, que Ele fez com que a velha casa se incendiasse.

HILDA - Sim? Foi por isso?

SOLNESS - Não compreende? Era para me ajudar a me tornar um verdadeiro mestre... a fim de que as minhas igrejas

O honrassem mais. No começo eu não compreendia, mas de repente meus olhos se abriram.

HILDA - Em que época?

SOLNESS - Foi quando eu construía o campanário de Lysanger.

HILDA - Que fez o senhor?

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SOLNESS - Fiz o impossível. Exatamente como Ele.

HILDA - O impossível?

SOLNESS - Até então, eu nunca pudera atingir livremente as alturas. Nesse dia eu o fiz.

HILDA - Sim, o senhor o fez!

SOLNESS - E quando cheguei bem no alto, no momento de pendurar a coroa, eu disse:’’Ouve-me, Todo-Poderoso!

Daqui por diante quero ser senhor no meu domínio, como Tu o és no Teu. Nâo Te construirei mais igrejas: construirei

somente habitações para os homens.’’

HILDA - Foi esse o canto que ouvi nos ares.

SOLNESS - Mas tudo isso foi pregar no deserto.

HILDA - Que quer dizer com isso?

SOLNESS - Construir habirações para os homens, Hilda... não vale nada.

HILDA - O senhor acha?

SOLNESS - Sim. Porque hoje vejo que os homens pouco se interessam pelo seu lar. Eles não encontram a felicidade

ali. Não edifiquei nada de sólido, nem sacrifiquei nada para construir alguma coisa que pudesse durar. Nada, nada!

HILDA - E daqui por diante o senhor não construirá mais nada?

SOLNESS - Pelo contrário! Agora é que vou começar.

HILDA - Como? Diga-me como!

SOLNESS - Quero construir um edifício para nele instalar a felicidade humana... o único em que ela pode morar.

HILDA - Mestre Solness... o senhor está pensando no nosso castelo no ar...

SOLNESS - Sim, estou pensando no nosso castelo no ar...

HILDA - Receio que tenha uma vertigem, antes de alcançarmos a metade do caminho.

SOLNESS - Não, Hilda. Não haverá vertigens... se caminharmos de mãos dadas, você e eu.

HILDA - Mas então quero vê-lo escalar a torre, sem receio, até o alto.

SOLNESS - Não, Hilda, essas coisas não se repetem todos os dias.

HILDA - Mas eu quero! Eu quero! Ainda uma vez, uma só! Sim? Faça o impossível!

SOLNESS - Se conseguir fazê-lo, Hilda, me elevarei até Ele e Lhe falarei mais uma vez.

HILDA - E que Lhe dirá?

SOLNESS - Direi: ‘’ Ouve-me, Senhor Todo-Poderoso e julga-me como Te aprouver. Mas daqui por diante só construirei

uma coisa... a mais doce que há no mundo...’’

HILDA - Sim... sim... sim!...

SOLNESS - ‘’ E quero construí-la em companhia de uma princesa a quem amo... ’’

HILDA - Sim, sim, diga-Lhe isso!

SOLNESS - ‘’ Agora  eu a tomarei em meus braços e a cobrirei de beijos... ’’

HILDA - ... de mil beijos! Diga-Lhe isso!

SOLNESS - ... ’’ de mil e mil beijos!’’ Eu Lhe direi isso!

HILDA - E depois?

SOLNESS - E então, abanarei com o chapéu... descerei... e farei como disse a Ele.

HILDA - Ah! Foi assim que o senhor me apareceu quando ouvi um cântico nos ares.

SOLNESS - Como foi que você se tornou o que é hoje, Hilda?

HILDA - Como foi que o senhor me fez tal qual eu sou?

SOLNESS - A princesa terá o seu castelo.

HILDA - Oh! Mestre!... Meu lindo castelo!... Nosso castelo!...

Vê-se, por entre as árvores do jardim, a pequena multidão que chegou para presenciar a inauguração. Música de fanfarra. O Doutor, Aline e as visitas vêm para a varanda. Ragnar avisa que está tudo preparado.

RAGNAR - O contra-mestre manda dizer-lhe que está pronto para subir a fim de pendurar a coroa.

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SOLNESS - Está bem. Vou até lá.

ALINE - Que vais fazer lá, Halvard?

SOLNESS - Devo estar entre os meus homens.

ALINE - Sim, mas ficarás embaixo, não é?

SOLNESS - Não é esse o meu hábito?...

Aline e o Doutor juntam-se à multidão. Na varanda ficam apenas Hilda e Ragnar Brovik.

RAGNAR - Está vendo, senhorita, todos aqueles rapazes lá?

HILDA - Sim.

RAGNAR - São os camaradas que vieram para ver o Mestre.

HILDA - Por que querem vê-lo?

RAGNAR - Porque eles sabem que ele tem medo de subir na sua própria casa... e eles fazem questão de constatá-lo.

HILDA - Realmente? Queridos rapazes...

RAGNAR - Ele nos manteve tanto tempo embaixo... Hoje é a nossa vez de vê-lo embaixo.

HILDA - Não, não o verão!

RAGNAR - Ora essa! E que é que veremos então?

HILDA - Vocês o verão lá em cima, bem no alto!

ALINE - Olhem! Ali está o contramestre na escada. Está levando a coroa.

RAGNAR - Mas é...

HILDA - O construtor, ele mesmo!

ALINE - Sim, é Halvard! Deus Todo-Poderoso! Halvard! Halvard! Quero ir ter com ele! Quero que ele desça!

HILDA - Está subindo! Subindo! Cada vez mais alto. Sempre mais alto! Olhem! Olhem!

RAGNAR - É preciso que ele desça. Não deve continuar.

HILDA - Vai subindo! Vai subindo! Está quase no alto. Ei-lo de pé, sobre as últimas tábuas! Bem no alto! Enfim!...Enfim!

Torno a vê-lo livre e grande!

RAGNAR - Sim, mas...

HILDA - Durante dez anos eu o vi assim. Como ele está firme! Oh! Como é impressionante! Olhe-o! Pendurou a coroa!

RAGNAR - Parece-me impossível o que estou vendo!

HILDA - Sim, é o impossível! Não vê outra pessoa lá em cima?

RAGNAR - Não. Não vejo ninguém.

HILDA - Sim!... Ele está discutindo com alguém.

RAGNAR - A senhorita está enganada.

HILDA - Não ouve um cântico no ar?

RAGNAR - É o vento que sopra nas árvores.

HILDA - Ouço um cântico... um cântico poderoso. Veja! Veja! Tirou o chapéu! Está saudando cá para baixo. Porque a

obra está realizada. Viva Mestre Solness!

Hilda apanha o xale branco de Aline e agita-o. Todos agitam lenços e dão vivas a Mestre Solness. Subitamente o silêncio se instala e depois a multidão lança um grito de terror. Vislumbra-se em meio às árvores um corpo que cai entre as vigas e tábuas. Aline desmaia. Doutor Herdal corre com outros homens em direção aos andaimes. Ragnar está completamente paralisado, trêmulo, ao lado de Hilda que exclama com uma expressãode desvario e triunfo:

HILDA - Meu mestre!... meu mestre!

FIM DO TERCEIRO E ÚLTIMO ATO

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