Ofício do Mestre de Capoeira

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INVENTÁRIO PARA REGISTRO E SALVAGUARDA DA CAPOEIRA COMO PATRIMÔNIO CULTURAL DO BRASIL

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DOSSI

INVENTRIO PARA REGISTRO E SALVAGUARDA DA CAPOEIRA COMO PATRIMNIO CULTURAL DO BRASIL

BRASLIA - 2007

Presidente da Repblica: Luiz Incio Lula da Silva Ministro da Cultura: Gilberto Gil Moreira Presidente do IPHAN: Luiz Fernando de Almeida Diretora de Patrimnio Imaterial: Mrcia SantAnna Diretora do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular: Claudia Mrcia Ferreira Superintendente Regional do IPHAN da Bahia: Leonardo Falangola Superintendente Regional do IPHAN de Pernambuco: Frederico Almeida Superintendente Regional do IPHAN do Rio de Janeiro: Carlos Fernando Andrade Acompanhamento tcnico - Superintendncia Regional do IPHAN de Pernambuco: Elaine Muller Acompanhamento tcnico - Superintendncia Regional do IPHAN da Bahia: Maria Paula Adinolfi

EQUIPE TCNICA: Coordenao: Wallace de Deus Barbosa Assistente de coordenao: Maurcio Barros de Castro Consultores: Frederico Jos de Abreu Matthias Rohrig Assuno

Pesquisa histrico-documental e de campo:

Rio de Janeiro Pesquisadores: Carlo Alexandre Teixeira Cristiana Nastari Villela David Nascimento Bassous Hugo de Lemos Bellucco Johnny Alvarez Menezes Estagirios: Barbara Tinoco Bernardo Guimares Filipe Gonalves

Salvador Pesquisadores: Adriana Albert Dias Amlia Conrado Ricardo Biriba Estagirios: Lucylane Oliveira Nilo Ricardo Lobo

Recife Pesquisadores: Izabel Cordeiro Marco Aurlio Lauriano de Oliveira Maria Jaidene Pires Vnia Fialho Estagirios: Annelise Lins Meneses Graciane Costa Gomes dos Santos Joice Poliana da Paixo Sales Karina Lira da Silva Paula Natanny Rocha Bezerra Silvia Carla Lafaiete

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Fotografia e pesquisa iconogrfica: Eduardo Monteiro

Webdesigner: Guttemberg Coutinho

VDEO: Roteiro: Wallace de Deus Barbosa Maurcio Barros de Castro Montagem: Andr Sampaio Locuo: Luiz Motta Finalizao de udio: Luiz Eduardo do Carmo Imagens do Rio de Janeiro: Luiz Arajo Imagens de Recife: Antnio Luiz Carrilho Hamilton Costa Filho Imagens de Salvador: Tenille Bezerra Bruno Saphira Wallace de Deus Barbosa Imagens adicionais: Gabriela Gusmo Wallace de Deus Barbosa

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SUMRIO

Introduo, 8

1. As referncias histricas, 11Origens e mitos fundadores, 11 As cidades da capoeira, 14 1930-1940: nasce uma nova tradio da capoeira, 37 1950-1970: o processo de folclorizao e esportizao, 41 A globalizao da capoeira, 49

2. O aprendizado e as escolas de capoeira, 51Da rua para a academia: o nascimento das primeiras escolas de capoeira, 56 Algumas trajetrias da capoeira nos dias atuais, 65

3. Descrio das rodas de capoeira, 68Etnografia e performance, 68 Os movimentos e golpes, 72 O canto, os toques e a dinmica das rodas, 74

4. Os instrumentos, 79Berimbau, 81 Atabaque, 84 Pandeiro, 85 Agog e reco-reco, 85 6

5. Os mestres e as rodas: patrimnio vivo, 86 6. Recomendaes de Salvaguarda para a prtica e difuso da capoeira no Brasil, 91 Bibliografia, 97

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Introduo

O universo de quem se aventura a pesquisar a capoeira vasto. A arte apresenta registros iconogrficos e documentais desde o sculo XVIII, possui diversas vertentes ensinadas por mestres, contra-mestres, professores e instrutores, e cobre um amplo territrio geogrfico que mapeia os cinco continentes, uma vez que as rodas de capoeira esto difundidas em mais de 150 pases. O desafio do Inventrio para Registro e Salvaguarda da Capoeira como Patrimnio Cultural do Brasil, realizado entre 2006 e 2007, era construir um dilogo entre o tempo histrico passado e o tempo presente. Como patrimnio vivo, a capoeira se mantinha no cenrio atual atravs dos mestres que representavam o saber. Ao mesmo tempo, acumulava produo documental que atravessava os ltimos trs sculos. Havia a necessidade de reconstituir brevemente a histria da capoeira e realizar um registro instantneo de seu momento presente. Diante destes requisitos, a pesquisa se concentrou em trs eixos principais: 1) pesquisa historiogrfica; 2) trabalho de campo; 3) abordagem de temas relacionados capoeira, como a reflexo sobre o aprendizado e a descrio das rodas. A constituio deste dossi, que pretende justificar a importncia da capoeira como bem cultural do Brasil, deuse amparada nestas trs linhas de carter metodolgico distinto. Por isso, buscou-se a formao de uma equipe multidisciplinar que pudesse dar conta dos diversos vetores do projeto. Tambm era importante definir o recorte territorial da pesquisa. Um reforado imaginrio produzido por livros, filmes e telenovelas relacionou a capoeira escravido rural, a sua pratica nas senzalas sob o olhar desconfiado do senhor de engenho, mas a capoeiragem fincou razes nas reas urbanas1. A perspectiva que parecia mais coerente remetia para o desenvolvimento da arte nas principais cidades porturias brasileiras, tendo

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Ainda assim, preciso levar em conta que os centros urbanos da poca possuam vasto entorno rural, de modo que havia engenhos e at mesmo quilombos nos bairros afastados do centro do Rio de Janeiro e outras cidades coloniais. Como exemplo, ver SILVA, Eduardo. As camlias do Leblon e a abolio da escravatura: uma investigao de histria cultural. So Paulo: Companhia das Letras, 2003.

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surgido como prtica urbana de resistncia de escravos ao ganho, na maioria das vezes reunidos nos agrupamentos conhecidos como maltas. Cidades como Salvador, Rio de Janeiro e Recife receberam um grande contingente de africanos escravizados e se tornaram verdadeiros santurios da capoeira antiga. Principalmente as cidades do Rio de Janeiro e Salvador possuam bastante documentao sobre a capoeiragem. Diante da amplitude da capoeira como campo, espalhada pelos territrios nacional e internacional, optou-se pela pesquisa nos lugares histricos como ponto de partida para a reconstituio de sua trajetria. Nestes locais, os mestres seriam ouvidos, suas escolas e rodas visitadas e registradas. De incio, as capitais da Bahia e Rio de Janeiro foram delimitadas como campo de pesquisa por serem consideradas os locais histricos mais importantes da capoeira. O que no significava a realizao de um registro historiogrfico restrito s duas cidades. Estas eram territrio possvel de ser coberto, uma vez reconhecida a impossibilidade de se alcanar toda a extenso territorial da capoeira. No Plano de Ao que baseou a formulao da Proposta de Trabalho havia uma meno a Pernambuco como um estado que possua um passado histrico importante referente capoeira que deveria ser de algum modo citado em ocasio oportuna. No entanto, mais do que citar, percebemos a importncia de incluir Recife no processo do registro. A ocasio das comemoraes pelo centenrio do frevo coincidiu com a percepo da influncia da capoeira na criao do passo da dana, principal expresso do carnaval pernambucano. Uma descoberta que revelava a presena da capoeiragem na cultura local de Recife e indicava a necessidade de uma investigao mais demorada sobre a histria dos bravos e valentes, como eram conhecidos os capoeiras de Pernambuco. Delimitado o territrio, foram constitudas as equipes, de perfil multidisciplinar, na Bahia, Rio de Janeiro e Pernambuco. Um grupo de profissionais que contemplava as reas da antropologia, histria, psicologia, educao fsica e artes cnicas. A maioria deles tambm atuava como capoeirista, incluindo um mestre de capoeira, Carlo Alexandre Teixeira, conhecido como Mestre Carlo. Alm da formao das equipes locais, foram realizados, nos trs estados, os encontros Capoeira como Patrimnio Imaterial do Brasil. O objetivo destes encontros era reunir os mestres, alunos e pesquisadores para apresentar o projeto do Inventrio, discutir sua importncia, definir as possibilidades de

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registro e fazer um levantamento de pautas que seriam utilizadas como referncias para a elaborao das Recomendaes do Plano de Salvaguarda da Capoeira. A perspectiva que se coloca de que a cultura dinmica, e no cristalizada, portanto, o registro no suficiente para salvaguardar as manifestaes, mas uma etapa necessria para traar um plano que elabore e encaminhe polticas pblicas para seus atores. Os principais pontos levantados nestes encontros foram: 1) a necessidade de aposentadoria especial para os velhos mestres de capoeira; 2) A importncia dos mestres de capoeira como divulgadores da cultura brasileira no cenrio internacional, o que torna necessrio pensar alternativas para facilitar seu trnsito por outros pases; 3) a necessidade de criar mecanismos que facilitariam o ensino da capoeira em espaos pblicos; 4) o reconhecimento do ofcio e do saber do mestre de capoeira, para que ele possa ensinar em escolas e universidades; 5) a criao de um Centro de Referncias da Capoeira que centralizasse toda a produo acadmica sobre a capoeira, realizada por estudiosos espalhados em diversas disciplinas; 6) um plano de manejo da biriba, madeira usada para confeccionar o berimbau e que pode ser extinta no correr dos anos. Trata-se de um conjunto de encaminhamentos que baseou as Recomendaes do Plano de Salvaguarda da Capoeira. Alm disso, norteou a indicao de que seria necessrio reconhecer como Patrimnio Cultural do Brasil o saber do mestre de capoeira, como ofcio, e a roda de capoeira, como forma de expresso. Em termos institucionais, o processo do Inventrio foi alocado no Laboratrio de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento (LACED) do Museu Nacional-UFRJ, por meio da Fundao Universitria Jos Bonifcio (FUJB-UFRJ). A coordenao do projeto tambm contou com a superviso da Diretoria de Patrimnio Imaterial do IPHAN, das Superintendncias Regionais do IPHAN da Bahia e de Pernambuco e do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (CNFCP). O texto desenvolvido neste dossi busca reconstituir brevemente a histria da capoeira e descrever sua prtica, cultura material e rituais. Um arranjo que pretende justificar sua importncia como bem cultural, a partir da documentao escrita e dos relatos dos mestres que continuam em atividade.

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1. As referncias histricas

Origens e mitos fundadores

A

capoeira

uma

manifestao

cultural

que

se

caracteriza

por

sua

multidimensionalidade ao mesmo tempo dana, luta e jogo. Dessa forma, mantm ligaes com prticas de sociedades tradicionais, nas quais no havia a separao das habilidades nas suas celebraes, caracterstica inerente sociedade moderna. Ainda que alguns praticantes priorizem ora sua face cultural, seus aspectos musicais e rituais, ora sua face esportiva, a luta e a ginstica corporal, a dimenso mltipla no deixada de lado. Em todas as prticas atuais de capoeira, permanecem coexistindo a orquestrao musical, a dana, os golpes, o jogo, embora o enfoque dado se diferencie de acordo com a singularidade de cada vertente, mestre ou grupo. As origens da capoeira remetem a basicamente trs mitos fundadores:

1- A capoeira nasceu na frica Central e foi trazida intacta por africanos escravizados. 2- A capoeira criao de escravos quilombolas no Brasil. 3- A capoeira criao dos ndios, da a origem do vocbulo que nomeia o jogo.

As trs hipteses geram questes ainda no resolvidas. Embora estudos recentes tenham comprovado a existncia de danas guerreiras similares capoeira, no apenas na frica Central, mas em outros pases que fizeram parte da dispora negra (a ladja da Martinica uma delas), no se pode negar que as culturas so construdas a partir das influncias que as cercam, o que gera tanto rupturas quanto continuidades. Portanto, alm da comprovao da raiz africana, preciso reconhecer as mudanas e contribuies que ocorreram em solo brasileiro. Da mesma forma, afirmar que no existia prtica corporal semelhante capoeira na frica, restringido seu surgimento ao contexto dos escravos que a teriam criado nos quilombos como forma de resistncia escrava, esbarra em pressupostos histricos. Alm da comprovada ligao com prticas ancestrais africanas, a capoeira foi desenvolvida nos

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centros urbanos em formao, principalmente em cidades porturias, como Rio de Janeiro, Salvador e Recife, aonde chegaram grandes levas de escravos. Por fim, a patente indgena na criao da capoeira uma hiptese de difcil sustentao. No h documentao ou mesmo relatos de ndios que reivindiquem essa paternidade. O termo capoeira faz parte da lngua tupi e significa mato ralo, o que remete a uma das explicaes sobre sua origem. Diz respeito ao mito do escravo fugitivo que surpreenderia seus algozes na capoeira, local da cilada. Alm de ter uma lgica de difcil assimilao, a do perseguido que inverte a situao e submete o perseguidor, as razes etimolgicas tambm so controversas e apontam para outra possvel origem da arte. Valdeloir Rego, em seu livro clssico, expe hipteses de Henrique de Beaurepaire Rohan e Brasil Gerson:

Tendo como base capo, do qual Adolfo Coelho tirou o timo de capoeira para o portugus, Beaurepaire Rohan faz o mesmo para o vocbulo capoeira na acepo brasileira, apresentando em defesa de sua opinio a seguinte explicao: - Como o exerccio da capoeira, entre dois indivduos que se batem por mero divertimento, se parece um tanto com a briga de galos, no duvido que este vocbulo tenha sua origem em Capo, do mesmo modo que damos em portugus o nome da capoeira a qualquer espcie de cesto em que se metem galinhas. Brasil Gerson, o historiador das ruas do Rio de Janeiro, fazendo a histria da Rua da Praia de D. Manoel, informa que l ficava o nosso grande mercado de aves e que nele nasceu o jogo da capoeira, em virtude das brincadeiras dos escravos que povoavam toda a rua, transportando nas cabeas as suas capoeiras cheias de galinhas2.

A dificuldade em estabelecer as origens da capoeira nos aspectos geogrficos, culturais e etimolgicos pode ser explicada devido a sua diversidade. Manifestao intimamente ligada s culturas locais, ganhou contornos especficos de acordo com os contextos em que se desenvolveu. A capoeira, dessa forma, reconhecida como fenmeno cultural urbano, cuja histria permeia o passado e o presente.

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REGO, Valdeloir. Capoeira Angola ensaio scio-etnogrfico. Salvador: Editora Itapu, 1968. p. 33.

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O mais antigo registro referente capoeira foi encontrado pelo jornalista Nireu Cavalcanti3. O documento data de 1789 e se refere libertao de um escravo chamado Ado, preso nas ruas do Rio de Janeiro devido prtica da capoeiragem, o que mostra que a represso acontecia antes mesmo da criminalizao da capoeira, em 1890, durante o governo provisrio do Marechal Deodoro da Fonseca.

As cidades da capoeira

Nos anos 1990, a historiografia se voltou para os estudos da capoeira no Rio de Janeiro do sculo XIX. Os dois principais pesquisadores a explorar este recorte foram Carlos Eugnio Lbano Soares e Lus Srgio Dias. O primeiro percorreu, em dois livros, o perodo que cobre os anos de 1808 a 1890, uma trajetria que se inicia com a chegada da corte portuguesa ao Brasil, alcana o fim da Monarquia, a instaurao da Repblica e termina no ano em que a capoeira foi criminalizada e a maioria dos seus praticantes na capital desterrada para a ilha de Fernando de Noronha. Entre 1808 e 1850, ano em que foi proibido o trfico de escravos, existiu o que Soares definiu como capoeira escrava, a qual, segundo o pesquisador, no se restringe a uma prtica cultural excludente de negros libertos ou livres, mas a uma tradio rebelde que tinha fortes razes escravas... e seduzia aqueles de outra condio social e jurdica, por sua maneabilidade e resistncia4. O termo, portanto, no se aplica apenas aos negros escravos, mas ao contexto da escravido. Difundida na capital por africanos, a capoeira se tornou motivo para troca de relaes culturais e sociais mais amplas. Tanto que no segundo momento estudado por Soares, 1850-1890, possvel encontrar entre os seus praticantes nomes de letrados, aristocratas e militares. O que marca este volume, no entanto, a histria das maltas, como eram chamados os grupos de capoeiras que disputavam a geografia da cidade. Segundo Soares, a visibilidade dos negros e homens pobres de todas as origens revela a

Ver CAVALCANTI, Nireu Oliveira. Crnicas histricas do Rio Colonial. Rio de Janeiro: Editora Civilizao Brasileira/FAPERJ, 2004. 4 SOARES, Carlos Eugnio Lbano. A capoeira escrava e outras tradies rebeldes no Rio de Janeiro (18081850). Campinas: Unicamp, 2001. p. 25.

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mobilidade que os capoeiras alcanaram no contexto de segregao social sofrida pelas identidades africanas e afro-descendentes que se espalhavam pela cidade. Conforme o autor, referindo-se ao sculo XIX, a capoeira foi um fenmeno que marcou fortemente a vida social do Rio de Janeiro no sculo passado 5. Enquanto Soares prioriza a formao e distribuio destes grupos de capoeiras, Lus Srgio Dias focaliza o temor que eles representavam para a sociedade carioca de meados do sculo XIX6. A marginalizao e criminalizao sofridas por seus praticantes fizeram com que as principais fontes destes dois historiadores se encontrassem nos arquivos policiais. No Rio de Janeiro, a capoeira foi duramente perseguida, seus praticantes eram conhecidos por desafiarem a ordem policial, hostilizarem a populao, provocarem brigas e correrias, marcadas por cabeadas, rasteiras e navalhadas. Muitos dos confrontos aconteciam entre as temidas maltas, as quais demarcavam seus territrios atravs das freguesias como eram conhecidos os bairros delimitados pela localizao das igrejas catlicas. As relaes entre os capoeiras se davam atravs do cotidiano da escravido urbana, dividida entre a casa do senhor e a rua, espaos onde o escravo cuidava dos afazeres domsticos e trabalhava no comrcio local, sendo este muitas vezes o motivo das disputas territoriais. Alm disso, causavam arruaas e brigas nos desfiles das bandas militares. Conforme escreveu Luiz Edmundo: Em 1888, um ano antes da proclamao da Repblica, cafajestes armados at os dentes ainda saem frente das nossas bandas militares, atravessam as ruas principais, as mais policiadas da urbe, em pleno exerccio da capoeiragem7. Antes da proclamao da Repblica, em 1889, os escravos capoeiras ganharam prestgio devido a sua participao na Guerra do Paraguai, que ocorreu entre 1864 e 1870. Tambm ficaram famosos por sua atuao durante as eleies, quando pressionavam eleitores para votarem nos candidatos dos partidos que defendiam, fossem conservadores

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SOARES, Carlos Eugnio Lbano. A Negregada Instituio: os capoeiras na Corte Imperial (1850-1890). Rio de Janeiro: Access Editora, 1999. p. 3. 6 Ver DIAS, Luis Srgio. Quem tem medo da capoeira? Rio de Janeiro: Secretaria Municipal das Culturas, Departamento Geral de Documentao e Informao cultural, Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro: Diviso de Pesquisa, 2001. 7 EDMUNDO, Luiz. O Rio de Janeiro do Meu Tempo. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1938. p. 842.

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ou liberais. Alm disso, criaram uma milcia conhecida como Guarda Negra8, que era a favor da Monarquia e atacava republicanos, fundaram o Partido Capoeira e, antes de serem definitivamente perseguidos, dividiram a cidade em territrios de duas grandes maltas: Nagoas e Guaiamuns9. As maltas Nagoas e Guaiamuns representavam os dois partidos polticos da poca, respectivamente, liberais e conservadores. Motivo esse que garantiu a perene permanncia das maltas contra as investidas freqentes da ao policial10. A capoeira alcanou diversas classes sociais na poca colonial, tendo sido praticada no apenas por escravos, mas tambm por homens livres pobres e ricos, alm dos europeus que viviam na capital do Imprio. O poeta portugus Plcido de Abreu, que morreu na Revolta da Armada, praticava capoeira, freqentou o universo das maltas e descreveu suas caractersticas num romance que escreveu sobre o tema11. Na introduo da obra, Plcido de Abreu apresenta as principais caractersticas daqueles dois bandos que ficaram conhecidos como os dois grandes celeiros da capoeiragem carioca no Rio antigo. Desde as cores pelas quais se distinguiam branco e vermelho at as localidades a que pertenciam e onde ocorriam seus treinos:

Guayam o capoeira que pertence aos seguintes partidos: S. Francisco (grande centro, do qual foi chefe o clebre Leandro Bonaparte), Santa Rita, Ouro Preto, Marinha, S. Domingos de Gusmo, alm de outros pequenos bandos agregados a estes. A denominao que tem estes grupos casa ou provncia, e a cor por que so conhecidos a vermelha. Naga o capoeira que pertence aos seguintes partidos: Santa Luzia (Centro do qual foi chefe Manduca da Praia), S. Jos, Lapa, SantAnna, Moura, Bolinha de Prata, alm de outros grupos menores, filiados queles. A cor por que so conhecidos a branca...

Ver GOMES, Flavio dos Santos. No meio das guas turvas (racismo e cidadania no alvorecer da Repblica: Guarda Negra na Corte - 1888-1889. Estudos Afro-Asiticos, Rio de Janeiro, n. 21,1991. 9 CASTRO, Maurcio Barros de. Na roda do mundo: Mestre Joo Grande entre a Bahia e Nova York. So Paulo: tese de doutorado, Departamento de Histria Social (FFLCH-USP), 2007. p. 139. 10 SOARES, Carlos Eugnio Lbano. Op. Cit. p. 41. 11 ABREU, Plcido de. Os capoeiras. Rio de Janeiro: Tipografia da Escola Seraphim Alves de Brito, 1886.

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H pouco tempo ainda o bando guayam costumava ensaiar os novios no morro do Livramento, lugar denominado Mangueira. Os ensaios faziam-se regularmente nos domingos de manh e constavam dos exerccios de cabea, p e golpes de navalha e de faca. Os capoeiras de mais fama serviam de instrutores queles que comeavam. A princpio, os golpes eram ensaiados, fazendo-se uso da mo limpa. Quando o discpulo aprendia as lies, comeava a ser ensaiado com armas de madeira e por fim serviam-se dos prprios ferros, acontecendo muitas vezes ficar ensangentado o lugar dos exerccios. Os nagas faziam os mesmos ensaios, com a diferena de que o lugar escolhido por eles era a praia do Russel, para os partidos de S. Jos e Lapa, Morro do Pinto, para o de SantAnna .12

O submundo da capoeira era freqentado por intelectuais, profissionais liberais e at figuras prestigiosas no plano poltico como o Baro do Rio Branco, quando jovem, e Floriano Peixoto, entre outros, foram apontados como praticantes da arte da capoeiragem13. Ainda assim, mesmo os que faziam parte da elite foram perseguidos por Sampaio Ferraz, chefe de polcia que comandou a campanha que desterrou os capoeiras para Fernando de Noronha durante o governo de Deodoro da Fonseca14. A primeira codificao penal brasileira, intitulada de Cdigo Criminal do Imprio do Brasil, datada de 1830, no possua uma referncia explcita aos praticantes da capoeira, mas os chefes de polcia os enquadravam no captulo que tratava dos vadios e mendigos. Com o fim da escravido e o incio da Repblica, a capoeira inserida, com todas as letras, no Cdigo Penal Brasileiro atravs do decreto de 11 de outubro de 1890, que assim dizia:Art. 402. Fazer nas ruas e praas pblicas exerccios de agilidade e destreza corporal, conhecidos pela denominao capoeiragem; andar em correrias, com armas ou instrumentos capazes de produzir uma leso corporal, provocando tumulto ou desordens, ameaando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor ou algum mal:

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ABREU, Plcido de. Op. Cit. p. 3. DIAS, Luis Srgio. Op. Cit. p. 97. 14 CASTRO, Maurcio Barros de. Op. Cit. p. 140.

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Pena: de priso cellular de dois meses a seis meses15.

Munida, nesse momento, de um instrumento jurdico especfico de incriminao da capoeira, a polcia reprimiu com extrema violncia os praticantes desta tradio. Desse modo, o sculo XIX marcado, principalmente nos arredores das cidades do Rio de Janeiro e de Recife, por histrias de combates e conflitos entre as maltas dos capoeiras e os policiais. De acordo com Soares, as maltas eram formadas por trs, vinte e at mesmo cem indivduos e constituam a forma associativa de resistncia mais comum entre escravos e homens livres pobres do Rio de Janeiro da segunda metade do sculo XIX. Embora colocados como criminosos, os capoeiras tiveram uma recuperao social promovida pela vertente nacionalista da belle poque, que buscava defender a capoeira como ginstica brasileira. Nesse sentido, Coelho Neto representou o ponto alto da verso que defendia a transformao da capoeira em esporte nacional. Conforme Soares: Coelho Neto no apenas reala as qualidades ginsticas da capoeira. Ele a celebra como a verdadeira educao fsica do Brasil, que deve ser ensinada nas escolas, quartis, lares, em quaisquer lugares onde a instruo seja importante 16. Soares lembra ainda que Coelho Neto apresentara junto a Luiz Murat um projeto instituindo a obrigatoriedade do ensino da capoeira em escolas e quartis. Tal inteno acompanha a viso nacionalista que se construiu a partir daquela poca, investindo na capoeira como representao autntica da brasilidade, como podemos perceber nesse trecho da crnica intitulada, sugestivamente, O Nosso Jogo:Em 1910, Germano Harlocher, Luiz Murat e quem escreve estas linhas pensavam em mandar um projeto Cmara dos Deputados tornando obrigatrio o ensino da capoeiragem nos institutos oficiais e nos quartis. Desistiram, porm, da idia, porque houve quem a achasse ridcula, simplesmente porque tal jogo era...brasileiro. Enfim, vamos aprender a dar murros esporte elegante, porque a gente o pratica de luvas, rende dlares e chama-se box, nome ingls.1715

BARBIEIRI, Cesar. Um jeito brasileiro de aprender a ser. DEFER/GDF. Centro de Informao e Documentao Sobre a Capoeira (CIDOCA/DF): Braslia, 1993. p. 117. 16 SOARES, Carlos Eugnio Lbano. Op. Cit. pp. 40 e 12. 17 NETO, Coelho O Nosso Jogo. Bazar. Porto: Livraria Chardron, 1928. p.140.

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A incluso da capoeira no projeto nacionalista se estenderia ao longo das dcadas seguintes. A idia de nao que passava a ser construda por intelectuais da belle poque, na qual se avaliava o lugar da capoeira na cultura brasileira, teria continuidade nos escritos de Mello Moraes Filho, que retomaria essa imagem j na dcada de 1920, afirmando: A capoeira, como arte, como instrumento de defesa, a luta prpria do Brasil18. Apesar do desaparecimento da capoeira no Rio de Janeiro do final do sculo XIX e incio do XX, um mestre de capoeira paulista, conhecido como Sinhozinho, apelido de Agenor Moreira Sampaio, manteve uma academia em Ipanema, entre os anos de 1920 e 1960. Nela, eliminou o canto e os instrumentos musicais, preocupando-se apenas com as questes fsica e marcial. maneira de Mestre Bimba, sem que nunca o tivesse conhecido, misturou a capoeira que aprendeu nas ruas luta greco-romana e ao boxe. Conforme explicou Muniz Sodr: que, no Rio da dcada de 1920, como j se encontrava praticamente extinta a perigosa tcnica de luta das maltas, restava o aproveitamento ginstico ou pugilstico (regrado, controlado por academia) da velha capoeiragem por jovens bem-nutridos da alta classe mdia. Confirmando essa tendncia, surgiu, em 1928, no Rio de Janeiro, um Manual de gymnastica national (capoeiragem) methodizada e regrada, escrito por Annibal Burlamaqui, o Zuma nas rodas de capoeira19. Essa nova viso da capoeira nos quadros da sociedade urbana da capital revela que, junto com a ampliao dos espaos onde a capoeira pde ser praticada, ocorreu um processo de socializao altamente marcado pela verso mais atltica e esportiva que, nas dcadas de 1920 e 1930, autores como Coelho Neto e Mello Moraes Filho afirmavam como projeto. Na Bahia, o perodo mais estudado e documentado, de maneira ordenada, o da Repblica Velha, mais precisamente entre os anos de 1890 e 1930.20 At pouco tempo, as nicas fontes histricas sobre a capoeira baiana no sculo XIX eram as crnicas escritas por18

MORAES FILHO, Mello. Capoeiragem e Capoeiras Clebres. In: Festas e Tradies Populares no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia/So Paulo: EDUSP, 1979. p. 263. 19 SODR, Muniz. Mestre Bimba: corpo de mandinga. Rio de Janeiro: Manati, 2002. p.62. 20 Ver PIRES, Antnio Liberac C. S. Bimba, Pastinha e Besouro de Mangang. Trs personagens da capoeira baiana. Tocantins/Goinia: NEAB/Grafset, 2002 e A capoeira na Bahia de Todos os Santos. Um estudo sobre cultura e classes trabalhadoras (1890-1937). Tocantins/Goinia: NEAB/Grafset, 2004. DIAS, Adriana Albert. Mandinga, Manha & Malcia - uma histria sobre os capoeiras na cidade da Bahia (1910/1925). Salvador: Edufba, 2006. e Os fiis da navalha: Pedro Mineiro, capoeiras, marinheiros e policiais em Salvador na Repblica Velha. Revista Afro-sia, Salvador: CEAO, n.32, 2005. OLIVEIRA, Josivaldo Pires de. No tempo dos valentes: os capoeiras na cidade da Bahia. Salvador: Quarteto, 2005.

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Manuel Querino e Antnio Vianna, relatos de viajantes estrangeiros, algumas poucas notcias de jornal, a tradio oral e a gravura San Salvador, de Rugendas. Ao contrrio da capoeira do Rio de Janeiro, que possui uma grande documentao referente a este perodo e que j foi bastante estudada, o universo da capoeiragem da Bahia no sculo XIX permeado de mitos, fantasias, muitas suposies e alguns documentos. Mesmo assim, aos poucos, o mosaico de peas que compe a capoeira baiana do tempo dos escravos vai sendo montado. Manuel Querino, negro, baiano, nascido em meados do sculo XIX, deixou muitas pistas aos estudiosos sobre o assunto. Pode ser considerado o precursor dos estudos sobre o tema21. Registra cantigas, golpes, instrumento musical, grias, indumentrias, costumes, cismas, rixas, ritos, ocasies e lugares dos conflitos, alm de apontar as diferentes finalidades que eram atribudas capoeira, como esporte, luta e folguedo. Atravs dele, sabe-se que, desde aquele perodo, o jogo era praticado por diferentes grupos sociais. Querino relata tambm o envolvimento dos capoeiras com a capangagem eleitoral e a participao dos mesmos na Guerra do Paraguai. A capoeira relatada e interpretada por ele aparece com diferentes significados, conflito e brincadeira, dana e luta, presente no mundo da festa, da poltica e das ruas. Quanto origem da luta, ele a atribui ao Angola, typo completo e acabado do capadcio, introdutor da capoeiragem na Bahia22. Antnio Vianna, a outra fonte primordial sobre este tema, que vivenciou desde menino aspectos da capoeira baiana, registra em suas crnicas ricas e importantes descries sobre a cultura da capoeiragem, indumentrias, instrumentos, cantigas, golpes, ampliando o volume de informaes anteriormente apontadas por Querino. Antnio Vianna mostra a influncia da luta greco-romana sobre a capoeira. Narra ainda aspectos do cotidiano dos capoeiras: valores, armas usadas, lugares por eles freqentados, hbitos alimentares, cismas, brigas entre capoeiras, e os conflitos entre estes e a polcia. Ao citar a figura de Lamite, capoeirista tido como um valento, o autor coloca emVer QUERINO, Manuel. Bahia de outrora. Salvador: Progresso, 1955 e Costumes africanos no Brasil. Recife: Fundao Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 1988.22 21

QUERINO, Manuel. Costumes africanos no Brasil. Recife: Fundao Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 1988. p.73.

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evidncia algumas tticas dos capoeiras usadas para conquistar autonomia territorial e armar redutos para a prtica da sua arte 23. Em Vianna, tambm se encontra uma das raras descries de batuque (luta), em que aparece a sua interface com a capoeira. Seus registros recaem, mais freqentemente, nos ambientes de festa, trabalho e conflito que aconteciam na regio porturia, em especial no Cais Dourado, por ele destacado como uma das principais zonas da capoeiragem entre o final do sculo XIX e incio do XX. Alm disso, ele j revela o preconceito social em relao ao capoeira. Seguindo as pistas deixadas por Querino e Vianna, Antnio Liberac foi o primeiro a estudar sistematicamente a capoeira baiana do sculo XIX. No incio de sua pesquisa, Liberac, que j havia estudado a capoeira no Rio de Janeiro, vasculhou centenas de registros de entrada de presos na Casa de Deteno da cidade de Salvador, mas, ao contrrio das fontes jurdico-policiais por ele encontradas na sua investigao sobre o Rio de Janeiro, em Salvador, no localizou na documentao sequer uma meno aos capoeiras24. Por esse motivo, para identificar seus sujeitos, o autor rastreou, na imprensa da poca e nos processos-crimes consultados, os termos capadcio, valentes, bambas, navalhistas, cabeada, rasteira, ponta-p, vadiao, rabo de arraia, berimbau, entre outros que, segundo ele, faziam parte da cultura da capoeiragem, uma vez que a palavra capoeira aparecia muito raramente nesta documentao e nem sempre como sinnimo de jogo/luta propriamente dito. O objetivo do autor era fazer uma anlise comparativa entre as capoeiras carioca e baiana de 1890 a 1950. Uma das suas concluses a de que a capoeira da Bahia, embora no tenha tido a mesma visibilidade histrica que a do Rio de Janeiro, certamente fez parte do universo cultural da sociedade soteropolitana do sculo XIX. Pela nova documentao apresentada por Liberac, possvel visualizar a presena da capoeira baiana na cultura de rua de Salvador, onde se destaca como uma arma eficiente23

Ver VIANNA, Antnio. Casos e coisas da Bahia. Salvador: Fundao Cultural do Estado da Bahia, 1984 e Quintal de Nag e outras crnicas. Salvador. Centro de Estudos Baianos, UFBA, 1979.

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Ver PIRES, Antnio Liberac C.S. Movimentos da Cultura Afro-Brasileira: a formao histrica da capoeira contempornea (1890-1950). Campinas/SP: tese de doutorado, Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Estadual de Campinas, 2001 e Capoeira no jogo das cores: criminalidade, cultura

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nos conflitos corpo a corpo com os agentes policiais. Constatou, atravs de queixas e reclamaes dos jornais, a vigncia do preconceito social e racial em relao capoeira, assim como acontecia com outras manifestaes afro-descendentes. Observou que, na imprensa baiana, o candombl, a capoeira e o samba muitas vezes eram encontrados estreitamente interligados no universo de um mesmo indivduo. E, embora confirme que a capoeira fazia parte principalmente do universo popular masculino, mostra que, j neste perodo, existiam pessoas da elite e tambm mulheres pobres que dominavam os cdigos da capoeiragem. Recentemente, Frede Abreu, dando continuidade ao estudo realizado por Liberac, escreveu um livro no qual amplia o volume de documentao sobre o tema, incluindo novas notcias de jornais, processos crimes, relatos de viajantes estrangeiros, memrias e algumas imagens de poca25. O autor dialoga com diferentes estudiosos da escravido na Bahia (e no Rio de Janeiro), buscando as pistas por eles deixadas sobre a capoeiragem baiana. Tambm relativiza a capoeira enquanto fenmeno exclusivamente urbano, uma vez que fotografias e gravuras da capital da Bahia do sculo XIX mostram que, embora Salvador fosse um ncleo urbano desenvolvido, possua amplas reas de mata. No entanto, grande parte da documentao apresentada no livro se restringe zona urbana, na qual ele destacou, em especial, a interface da capoeira com o mundo do trabalhador de rua, principalmente dos carregadores, ocupao exclusiva de negros neste perodo. Percebeu que o rito dos trabalhadores na Bahia de carregar peso, descrito por alguns viajantes estrangeiros, tinha vrias semelhanas com o ritual da capoeira. Em ambos h uma combinao de trs elementos bsicos: msica, dana e esforo fsico, indispensveis para a realizao das duas atividades. Dessa forma, Frede suspeita que a cadncia dos passos dos carregadores da Bahia tenha se figurado nos passos da capoeira, da mesma maneira que, anteriormente, diferentes autores suspeitaram que a marcha rancho do carnaval carioca tenha sido prefigurada na cadncia dos passos dos carregadores de caf

e racismo na cidade do Rio de Janeiro (1890-1937). Campinas/SP: dissertao de mestrado, Departamento de Histria da Unicamp, 1996. 25 Ver ABREU, Frederico Jos de. Capoeiras Bahia, sculo XIX: imaginrio e documentao, vol I, Salvador: Instituto Jair Moura, 2005. importante ressaltar que, segundo o autor, h em seu acervo mais documentos referentes capoeira baiana deste perodo que no foram inseridos neste livro.

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no Rio de Janeiro26. Ainda sobre a imbricao da capoeira no universo das ruas, o autor revelou que o cancioneiro da capoeira se enriqueceu dos cantos de trabalho e que o trabalhador de rua, em momentos ldicos e de conflitos, tambm se utilizava dos golpes e movimentos da capoeira. No seu livro, Abreu torna conhecidos alguns nomes de capoeiras do sculo XIX, dentre eles, Joo Pernambucano, Marcus Rabeca, Celestino Estivador, Domingos, Alexandre Evaristo e Manuel dos Passos Ramos. Mostra que muitos locais e ocasies de prtica de desordem divulgados pelos jornais eram tambm espaos de capoeiragem. Neste perodo, fato conhecido que homens do povo (maioria negra), fossem eles desordeiros ou no, eram recrutados fora pelas autoridades policiais para servir Marinha de Guerra Brasileira e ao Exrcito, como forma de punio. Alguns escravos tambm se alistavam voluntariamente nestas instituies militares, como meio de conseguir a liberdade. Atravs da localizao de alguns processos livres e coercitivos de recrutamento de capoeiras para as foras armadas e para a Guerra do Paraguai, observou-se ainda que os capoeiras baianos no escaparam dessa prtica corrente, o que confirma o relato de Manuel Querino. Nesta poca, a capoeiragem j se constitua uma atividade popular muito apreciada por parte da populao baiana e fazia parte do cotidiano das ruas da cidade de Salvador, atraindo tambm a ateno da juventude, o que era motivo de preocupao para as autoridades. A Repblica Velha foi a poca privilegiada pelos estudos histricos sobre a capoeira baiana na cidade de Salvador. Os caminhos de pesquisa trilhados por seus primeiros estudiosos foram diferentes dos passos de investigao dados pelos principais historiadores da capoeira carioca. que no Rio de Janeiro, a criminalizao da capoeira pelo famoso artigo 402, no ano de 1890, produziu uma srie de documentos que at hoje no foram localizados na Bahia. Assim, Antnio Liberac, com a experincia adquirida na sua pesquisa sobre a capoeira carioca, buscou localizar os capoeiras nos processos-crimes referentes ao artigo 303, que tratava dos crimes por leso corporal, e conseguiu reunir 92 processoscrimes, entre os anos de 1890 e 1930, encontrados atravs dos nomes mencionados pela tradio oral e dos elementos que, de acordo com o autor, faziam parte da cultura da capoeiragem.26

ABREU, Frederico Jos de. Op. Cit. p.95.

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Os demais historiadores deste tema, Adriana Albert e Josivaldo Oliveira, dando continuidade aos estudos sobre o assunto, privilegiaram a imprensa baiana como fonte de pesquisa, especificamente a coluna policial, onde estavam localizadas as notcias de desordens. Em algumas delas, era explcita a referncia ao capoeira em funo do uso da prpria palavra capoeira ou de termos diretamente relacionados a ela. Na maioria das notcias levantadas, os capoeiras no eram diferenciados dos demais indivduos. Pois todos eram chamados de forma generalizada de desordeiros, capadcios, valentes, etc27. O desafio para penetrar no universo da capoeira baiana era, portanto, grande. Mas, graas aos manuscritos do Mestre Noronha e ao livro do Mestre Pastinha, foi possvel seguir os passos desses capoeiras pelas ruas de Salvador. Suas memrias foram pontos de partida desses novos estudos, na medida em que esses mestres registraram nomes e apelidos dos capoeiras referentes ao perodo enfocado e alguns fatos de suas vidas que permitiram identificar nos jornais da poca mais de 115 notcias envolvendo capoeiras. Alm disso, nessas duas fontes, aparecem ocupaes, manias, cismas, costumes, locais e ocasies de capoeira, e uma srie de outras informaes. Por isso, devem ser consideradas essenciais para a construo da histria da capoeira baiana na poca28. Os estudos revelam que os capoeiras no eram um bando de vadios e vagabundos, como escreviam os jornalistas da poca, sendo grande parte deles trabalhadores. Contudo, assim como a maioria da populao soteropolitana29, os capoeiras eram trabalhadores de rua, viviam de ocupaes espordicas e intermitentes. Ou seja, tinham um ritmo de trabalho bastante irregular, o que lhes proporcionava perodos de ociosidade, entremeados por momentos de diverso. Mesmo sendo trabalhadores, os capoeiras tambm podiam ser desordeiros, uma vez que muitos deles simplesmente viviam no mundo das ruas, batiam tambor, jogavam capoeira e algumas vezes at matavam. Em sntese, transgrediam os padres e as regras da ordem pblica.Capadcio o indivduo que se d ares de importncia nos modos e nas falas para enganar os outros; espertalho, finrio, velhaco. Ver: SILVA, Antonio de Moraes. Dicionrio da Lngua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Empresa Literria Fluminense de A. A. da Silva Lobo, 1890. p. 403. 28 Ver COUTINHO, Daniel (Noronha). O ABC da Capoeira Angola: os manuscritos de Mestre Noronha. Braslia: DEFER/CIDOCA, 1993. PASTINHA, Mestre. A Herana de Mestre Pastinha: manuscritos e desenhos. Estatutos do Centro Esportivo de Capoeira Angola Coleo So Salomo 2, s/d e Capoeira Angola. Salvador: Fundao Cultural do Estado da Bahia,, 1988.27

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A maioria dos capoeiras dessa poca trabalhava como carregador e estivador, atividades muito ligadas regio porturia. Outros eram carroceiros, peixeiros, martimos, engraxates, pedreiros, marceneiros, chapeleiros, donos de botecos e casas de jogo, vendedores ambulantes, lees de chcara e tambm policiais. Alm do padro ocupacional apresentado, esse volume de documentao permitiu a construo do perfil dos capoeiras desta poca. A maioria deles possua apelido, nasceu entre as ltimas dcadas do sculo XIX e os primeiros anos do sculo XX, quase todos no estado da Bahia, com maior incidncia em Salvador e no Recncavo Baiano. Com relao ao grau de instruo, a maior parte dos capoeiras era analfabeta e quanto ocupao, como j foi dito, muitos realizavam trabalho braal, principalmente na regio porturia. Constatou-se tambm que grande parte dos capoeiras em Salvador era de cor negra, embora, desde o sculo XIX, alguns cdigos culturais da capoeiragem j tivessem se expandido para o universo de diversos segmentos sociais, inclusive da elite e da juventude baiana. Durante a Repblica Velha, a capoeiragem baiana era uma manifestao de rua, afro-descendente, e muitos dos seus praticantes tinham ligaes com candombl, samba e batuque. O vnculo entre os capoeiras e essas prticas podia se originar na prpria famlia, no ambiente de trabalho, ou tambm nas festas populares. No contexto da Repblica Velha, as elites baianas sonhavam em transformar a capital da Bahia numa metrpole moderna e civilizada, aos moldes da sociedade europia. Para isso, acreditavam ser necessrio reformar a arquitetura da cidade, e mais do que isso, o que se pretendia era desafricanizar as ruas30, ou seja, erradicar de Salvador todos os hbitos e costumes do povo que lembrassem a frica. Grande parte da populao soteropolitana era composta por negros e mestios, e o cotidiano da cidade era marcado por diversas manifestaes da cultura negra. Com o movimento pretendido de reforma e higienizao do espao urbano, multiplicaram-se as reclamaes moralistas da imprensa e se acirrou a represso policial contra tais prticas culturais. Portanto, no de se surpreender que, nesta poca, uma boa parte das camadas populares soteropolitanas, fosse29

CASTELLUCCI, Aldrin A. Silva. Salvador dos Operrios: uma histria da Greve Geral de 1919 na Bahia. Salvador: Dissertao de Mestrado, UFBA, 2001, p.18. 30 A expresso de FILHO, Alberto Herclito Ferreira. Desafricanizar as ruas: elites letradas, mulheres pobres e cultura popular em Salvador (1890-1937). Revista Afro-sia. Salvador: CEAO, n. 21-22, 1998/9.

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ela desordeira de fato ou no, tivesse sua vida marcada por recorrentes confrontos com a lei. Com os capoeiras no podia ser diferente. Uma caracterstica que marcava fortemente o cotidiano dos capoeiras eram os freqentes conflitos com a polcia. Todavia, o que os demais estudos histricos j citados mostram que esses indivduos no s entravam em conflito com a polcia, como tambm brigavam com outros capoeiras, trabalhadores, desordeiros e s vezes agrediam mulheres, inclusive suas prprias companheiras. Muitas dessas brigas envolvendo capoeiras foram registradas na imprensa baiana. Algumas delas viraram caso de justia, e os capoeiras responderam processo por desordem ou por leso corporal. Estas notcias, alguns processos-crimes e o seu cruzamento com as crnicas e a tradio oral - que registraram os principais pontos da cidade e ocasies de capoeira possibilitaram que os estudiosos da capoeiragem baiana do comeo do sculo XX traassem a geografia da capoeira na cidade de Salvador. Das vinte freguesias que compunham a cidade de Salvador, trs se destacaram como reas de maior concentrao de capoeiras, a seguir apresentadas em ordem decrescente: o Pilar, que ficava na Cidade Baixa, e a S e a Rua do Pao, que ficavam na Cidade Alta. Estas freguesias eram relativamente prximas e possuam algumas caractersticas em comum que explicam porque os capoeiras se encontravam nelas. Eram reas de trabalho por estarem prximas ao porto e ao bairro comercial, local de moradia de muitas famlias pobres e ambiente de diverso para as camadas populares em funo das casas de jogo, botequins, vendas e zonas de prostituio nelas localizadas. Essa proximidade do ambiente de trabalho e de vadiagem, onde a ordem e a desordem se misturavam, fazia com que essas freguesias fossem consideradas como zonas perigosas, principalmente noite, quando o comrcio fechava suas portas e as ruas eram ocupadas por indivduos chamados de vadios e vagabundos, conforme o conceito policial e de imprensa da poca31.31

Vale lembrar que desde o final do sculo XIX, o termo vadio era usado tanto para se referir queles que no tinham trabalho, como para designar todos os que viviam de ocupaes espordicas. A palavra vadiao

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Dentro dessas trs freguesias ficavam a ladeira do Tabuo, a Baixinha, a Baixa dos Sapateiros, o Terreiro de Jesus, o Cruzeiro de So Francisco, a rua do Saldanha, a praa Castro Alves e o Cais Dourado, conhecidos como tradicionais pontos de capoeiragem desde o sculo XIX32. Nestes locais, formou-se uma importante gerao de capoeiras que, posteriormente, tornaram-se clebres: Ona Preta, Noronha, Pastinha, Bimba, Cobrinha Verde, Mar e Livino Diogo. importante destacar que em todos os locais acima citados a capoeira se manifestava de diversas formas e no apenas como arma de conflito, como em geral era descrita nos jornais. Nesta poca, a capoeira era tambm um tipo de divertimento popular, uma brincadeira, e tinha muitos significados. Luta em diferentes situaes, brincadeira de rua realizada nas folgas do servio, nas festas de largo e at mesmo durante o trabalho 33, o que aponta certa continuidade entre a capoeiragem oitocentista e a capoeira republicana em Salvador. As festas populares da Bahia ficaram tradicionalmente conhecidas como ocasies em que os capoeiras se reuniam para fazer sua brincadeira. Tudo indica que foi especialmente no ambiente da festa que a capoeira foi conquistando seu espao na sociedade soteropolitana. Muitas delas so lembradas por Mestre Noronha em seus manuscritos, porque ele e outros mestres tinham por costume realizar, nessas ocasies, uma grande roda de capoeira34. Todavia, mesmo quando praticada como forma de brincadeira, nas festas populares ou durante o trabalho, a capoeira era vista com maus olhos pela imprensa baiana. E apesar de processos por crime de capoeiragem no terem sido encontrados nos arquivos de Salvador, os capoeiras podiam ser presos simplesmente por estarem realizando o jogo.

tambm qualificava as brincadeiras, jogos e divertimentos de rua cultivados pelo povo e repudiados pelos que sonhavam com uma populao que vivesse disciplinadamente pelos supostos padres europeus. 32 Cais Dourado designava toda a regio onde estava situada a Praa do Ouro, com vrios botequins e o Mercado do Ouro - importante espao do comrcio ambulante e de venda de produtos em atacado, especialmente farinha de mandioca e acar. 33 DIAS, Adriana Albert. A malandragem da mandinga: o cotidiano dos capoeiras em Salvador na Repblica Velha (1910-1925). Salvador, Dissertao de Mestrado, UFBA, 2004. p.44. 34 COUTINHO. Op. Cit. pp.19 e 21.

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Pode-se afirmar que a Repblica Velha foi o momento de maior turbulncia da capoeira baiana e tambm de maior represso policial, que atingiu no s a capoeira como os terreiros de candombl e o samba. Neste processo, os historiadores da capoeira baiana destacaram duas autoridades policias: o chefe de polcia lvaro Cova e o famoso delegado Pedro Gordilho, popularmente conhecido por Pedrito, ambos perseguidores dessas manifestaes. Por outro lado, nem sempre capoeiras e policiais estavam em posies opostas. Uma caracterstica forte da capoeiragem baiana na Repblica Velha, como acontecia no Rio de Janeiro da poca do Imprio, a sua relao com a capangagem poltica, o que fica bastante em evidncia em todos os estudos realizados sobre ela e que tambm ficou registrado na tradio oral. Na Bahia, os capoeiras Inocncio Sete Mortes, Estevinho, Duquinha, Samuel da Calada, Sebastio de Souza e Pedro Mineiro, entre outros, atuaram como capangas. Em troca dos favores prestados, recebiam proteo policial e, por isso, suas prticas de desordem eram toleradas. Recife tambm teve capoeiristas valentes que se tornaram lendrios, como Nascimento Grande, Adama, Chico Cndido, Antonio Florentino e muitos outros. Como no Rio de Janeiro, a capoeira pernambucana sofreu forte represso, defrontando-se com o estigma do crime e da marginalidade. Por outro lado, os capoeiras recifenses tambm estiveram envolvidos na capangagem eleitoral e na proteo de figuras polticas, bem como na constituio da Guarda Negra e na campanha do Paraguai. No que se refere ao carnaval, h ainda mais um paralelo com a histria da capoeira no Rio de Janeiro: se a ginga dos capoeiristas influenciou o carnaval carioca, atravs da dana do mestre-sala e portabandeira, no carnaval de Pernambuco, sua presena ainda mais ostensiva, j que os capoeiras foram os criadores do passo do frevo no carnaval35. Apesar de sua importncia histrica, poucos so os estudos e pequeno o levantamento bibliogrfico e documental existente sobre a capoeira em Recife. Mesmo assim, o reconhecimento da influncia da capoeira na cultura urbana da capital de Pernambuco um fato. Mas uma trajetria ainda pouco conhecida, se compararmos ao que j tem sido levantado h algum tempo por pesquisas em torno do Rio de Janeiro e de35

Ver OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo, capoeira e passo. Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 1985.

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Salvador. Enquanto estas cidades j possuem um acervo significativo de histrias e personagens, a crnica da capoeira no Recife permanece um campo relativamente restrito em referncias detalhadas sobre o cotidiano dos capoeiristas ao longo da histria e de sua presena viva nos espaos da cidade. As indicaes existentes na bibliografia consultada revelam, sobretudo, a relao dos antigos capoeiras com as rivalidades entre as bandas de msica nos primrdios do carnaval e com a origem do passo. A maioria das referncias sobre o passado dos capoeiras nessa cidade refere-se sua presena no carnaval de rua. A freqncia de libertos e escravos de ganho nos clubes pedestres, durante a segunda metade do sculo XIX, sugere que a experincia urbana da escravido no Imprio um trao inseparvel da histria da capoeira no Recife. Gilberto Freyre reproduz uma imagem tpica e muito divulgada da ao fatal dos capoeiras na cidade do Recife:s vezes havia negro navalhado; moleque com os intestinos de fora que uma rede branca vinha buscar (as redes vermelhas eram para os feridos; as brancas para os mortos). Porque as procisses com banda de msica tornaram-se o ponto de encontro dos capoeiras, curioso tipo de negro ou mulato da cidade, correspondendo ao dos capangas e cabras dos engenhos. O forte do capoeira era a navalha, ou a faca de ponta; sua gabolice, a do pixaim penteado em trunfa, a da sandlia na ponta do p quase de danarino e a do modo desengonado de andar. A capoeiragem inclua, alm disso, uma srie de passos difceis e de agilidades quase incrveis de corpo, nas quais o malandro de rua se iniciava como que maonicamente36.

Nessa descrio, Gilberto Freyre reproduz as principais linhas que, ainda hoje, configuram o perfil dos antigos bravos e valentes: sua atuao junto s bandas de msica nas procisses e festas de rua, seu carter urbano e sua ligao com a malandragem e o crime. Mas principalmente atravs da histria do carnaval que a memria da capoeira antiga do Recife se constri. A referncia s primeiras corporaes de ofcio, formadas por carregadores do porto, nas origens dos clubes de rua confirma essa caracterstica e36

FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos. So Paulo: Global Editora, 2006. pp. 150-151.

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aproxima a capoeira do Recife dos primeiros folguedos urbanos. Os desfiles das corporaes reuniam trabalhadores de diversos ramos que batizariam os primeiros clubes. Katarina Real37 nos d notcia de alguns desses clubes, intimamente associados aos laos de ofcio entre trabalhadores urbanos j no final do sculo XVIII: clube dos Ferreiros, dos Vasculhadores, dos Espanadores e outros, prosseguindo a prtica daquelas corporaes que empunhavam seus estandartes e marchavam pelas ruas no Corpus Christi e nas Festas de Reis, envolvendo a massa de trabalhadores pobres, entre os quais destacavam-se, justamente, os libertos e descendentes de escravos. A tradio dos dois grandes rivais, o clube das Ps e o Vassourinhas, tambm traz a marca dessa origem. Pereira da Costa38, em um estudo publicado na Revista do IHGB, refere-se presena das bandas militares naqueles desfiles do sculo XVIII e, neles, atuao dos capoeiras. O autor lembra de duas excelentes bandas de msica, que pelo ano de 1856, existiam entre ns: a do quarto batalho de artilharia e uma outra, pertencente a um corpo da Guarda Nacional, formando dois partidos de capoeiras que eram violentos rivais, o Quarto, que apoiava o 4 Batalho, e o Hespanha, que apoiava a banda da Guarda Nacional. Pereira da Costa lembra ainda que tal rivalidade encerra-se com a ida do Quarto para a Guerra do Paraguai, em 1865. Esses dois partidos reproduziam a rivalidade entre as bandas de msica, cujo encontro resultava em lutas e hostilidades entre os grupos de capoeiristas que as acompanhavam. Essa realidade, muito semelhante das maltas do Rio de Janeiro junto s bandas militares durante a segunda metade do sculo XIX, prolonga-se pelo Carnaval dos clubes pedestres do incio do sculo XX e, nesse percurso, mistura-se ao variado repertrio do Carnaval de Recife. Pereira da Costa registra, inclusive, os versos de hostilidade que bramavam entre si os bravos, enfrentando-se sada das bandas:

Viva o Quarto, Fora o Espanha! Cabea Seca que apanha!

37 38

REAL, Katarina. O Folclore no Carnaval de Recife. Rio de Janeiro: MEC, 1967. PEREIRA DA COSTA, Francisco Augusto. Folclore Pernambucano: Subsdios para a Histria da Poesia Popular em Pernambuco. Separata da Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, Tomo LXX. Rio de Janeiro, 1908.

30

Ou esses:

No venha, chapu de lenha! Partiu, Caiu, Morreu, Fedeu!

Mrio Sette tambm d testemunho da onipresena da capoeira nos folguedos urbanos de Recife:Sasse uma msica para uma parada ou uma festa e l estavam infalveis os capoeiras frente, gingando, piruetando, manobrando cacetes e exibindo navalhas39.

Dessa participao dos capoeiras na folia das ruas nasceria o passo caracterstico da coreografia que acompanha a msica do frevo. Essa conhecida relao da capoeira com o passo, remetendo s razes do frevo, nasce, ento, nos partidos de capoeira que acompanhavam as bandas militares durante os desfiles dos clubes pedestres. Katarina Real observa em seu estudo que essas origens do passo possuem uma histria em comum com o processo de aclimatao de manifestaes africanas observado tambm no Rio de Janeiro:As origens dos passos do frevo vm diretamente da capoeira de angola trazida ao Brasil pelos negros angolenses, dana guerreira na sua forma original que produziu no somente o passo como tambm a pernada carioca40.

Outro parentesco facilmente identificvel entre a histria da capoeira nas duas cidades se refere atuao dos capoeiristas na poltica partidria do sculo XIX. Mrio Sette menciona o prestgio que muitos bravos adquiriam atravs de suas relaes com figuras da poltica, para quem serviam de capangas eleitorais:39 SETTE, Mrio. Maxambombas e Maracatus. Recife: Fundao de Cultura da Cidade do Recife, 1981. p. 87. 40 REAL, Katarina. Op.Cit. p.27.

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Os capoeiras, em regra, pertenciam a este ou aquele figuro dos tempos. Nos dias de eleio retribuam com servios valiosos a proteo e a impunidade41.

Entre esses bravos da capoeiragem o memorialista cita Joo Sabetudo e o lendrio Nascimento Grande, lembrado por Gilberto Freyre42 como exemplo dos elementos ligados capoeira que, muitas vezes, contribuam ou negociavam com o sistema poltico. Nos dois registros, o personagem da capoeira pernambucana assume uma posio anloga que, na crnica da capoeira carioca, os membros das maltas desempenhavam no Rio de Janeiro. Tal semelhana no passou despercebida por Mario Sette, conforme demonstra a passagem abaixo:

Do comeo foram os capoeiras a modalidade mais gil e pblica dos valentes. A capoeiragem no Recife, como no Rio antigo, criou tais razes que se julgava um heri sobrenatural quem tivesse foras para acabar com ela43.

A progressiva criminalizao da capoeira, na cidade do Recife, acompanha as prticas de normatizao do espao e de perseguio aos bravos e valentes que tambm se observa nas outras grandes capitais da Primeira Repblica, a partir de 1890. Como afirma Evandro Rabello, os cdigos de postura decretados pela administrao municipal, naquele contexto, faziam proibir a aglomerao de ex-escravos e demais elementos ligados s prticas culturais afro-brasileiras em locais pblicos. Na capital federal, esse momento tem no chefe de polcia Sampaio Ferraz, nomeado por Deodoro da Fonseca, um smbolo extremo da poltica de perseguio e deportaes que se abateram sobre os capoeiristas nas cidades. Aps recordar antigos capoeiras recifenses de renome alm de Nascimento Grande, Chico Cndido, Amaro Preto, Sabe Tudo, Jos Siri e outros , Valdemar de Oliveira lembra que, em Pernambuco, a caada capoeira nos primeiros tempos da Repblica tambm teve seus representantes. Entre eles, destaca-se a figura de Santos41 42

SETTE, Mrio. Op.Cit. p. 87. FREYRE, Gilberto. Op.Cit. p. 650.

32

Moreira, principal responsvel pela srie de deportaes, desterros e extermnio de numerosos capoeiristas durante a Repblica Velha.Havia de chegar a vez de todos eles. O Chefe da Polcia do governo Sigismundo Gonalves, o desembargador Santos Moreira, segue o exemplo de Sampaio Ferraz: manda alguns para o cemitrio (por terem reagido priso), outros para a Deteno, os mais temveis para Fernando. Das ruas cada vez mais bem iluminadas do Recife (at isso teria concorrido para o progressivo extermnio dos desordeiros), foram desaparecendo, pouco a pouco, os brabos44.

Note-se que, durante a crise final do Imprio, vinha ocorrendo um aumento da visibilidade dos capoeiras aps a Guerra do Paraguai, com a formao da Guarda Negra e a presena difusa de libertos que participaram do conflito, pelas capitais, provocando uma transformao no estatuto daqueles homens de cor que, em parte, ficavam investidos de uma nova identidade social. Estabelecendo um paralelo com a reflexo de Carlos Eugnio Lbano Soares sobre a condio dos capoeiras no Rio de Janeiro oitocentista, Evandro Rabello45 sugere que os capoeiras-soldados do Recife estiveram frente das primeiras manifestaes pblicas envolvendo a prtica da capoeiragem, liderando as disputas entre os clubes e agremiaes carnavalescas como tambm os conflitos em que envolviam partidos e tendncias polticas rivais. A mobilidade social dos libertos que assumiam alguma posio no exrcito e na polcia correspondia a sua liderana nos partidos de capoeira que se enfrentavam em torno das bandas ou nas disputas eleitorais. Assim, a presena ambgua dos capoeiristas de Recife nas fileiras do exrcito fazia-os assumir um papel importante para a visibilidade da capoeira nas ruas. Evandro Rabello chama a ateno para esse aspecto, demonstrando que essa insero dos capoeiras nas foras oficiais poderia assumir um sentido inusitado e estratgico para garantir a continuidade daquela tradio:

Registros jornalsticos demonstram a presena ativa de soldados fardados exibindo-se publicamente nas rodas de capoeiragem. Esses43 44

SETTE, Mrio. Op.Cit. p. 86. OLIVEIRA, Valdemar de. Op. Cit. p. 89. 45 RABELLO, Evandro. Memrias da Folia: o carnaval do Recife pelos olhos da imprensa. Recife: Funcultura, 2004. pp. 30-31.

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capoeiras fardados sentiam-se mais protegidos das investidas repressoras da polcia, j que os prprios soldados do exrcito, quando envolvidos em desordens, recusavam-se a aceitar a autoridade da polcia provincial46.

Rabello faz uma compilao de matrias do Dirio de Pernambuco e do Jornal Pequeno em torno do carnaval. Em algumas dessas matrias, aparece a conhecida imagem do capoeira marginal e desordeiro, envolvido em assassinatos e brigas, como justificativas para medidas repressivas em nome da pacificao dos desfiles. Assim, em matria de 1923, o Jornal Pequeno noticiava o aparecimento de um bloco carnavalesco que, supostamente, fazia renascer a personagem do capoeira como vndalo. Aos olhos do autor annimo da matria, essa categoria de bravos parecia ter sumido com a introduo da cavalaria da polcia no acompanhamento dos cordes. Diz o jornal:

A essas exibies pblicas que, pela impropriedade nada tinham de carnaval, deu o nosso povo a denominao de frevo. Sempre que esses cordes saam rua, precedidos de numerosa orquestra ou fanfarra, arrastavam um grande acompanhamento, em que predominavam tipos afeitos a desordens, capoeiras profissionais, enfim, elementos da pior espcie. Por isso mesmo, registravam-se no mais aceso dos frevos, cacetadas, facadas, bofetadas e at mortes. Quando as desordens no eram provocadas por velhas rixas de folies, provocavam-nas os tipos de maus instintos. Da a providncia da polcia fazendo acompanhar os clubes nesses passeios por patrulhas de cavalaria. Ontem, noite, porm, surgiu na cidade inesperadamente uma troa, cordo ou bloco que tomou o nome pouco significativo de Brao brao. E depois de andar, acima e abaixo, azucrinando os ouvidos e interrompendo a normalidade da vida citadina, l pelos lados de S. Jos, valente-capoeira recordando os velhos tempos disparou para o ar a sua respeitvel pistola. Foi o bastante para fechar o tempo... Para que os desordeiros de ofcio no escapassem ao castigo, fez-se necessrio que a cavalaria entrasse em cena e mostrasse que a divisa de

46

Idem.

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tal clube no estava certa. Nem sempre brao brao. s vezes, brao... espada.47

A produo desse estigma em torno da figura do capoeirista, atribuindo-lhe a responsabilidade pela desordem, o tom geral dos artigos sobre o carnaval, que se referem capoeira, compilados no livro de Rabello. O dado da cavalaria, tema comum nas histrias de perseguio da polcia a capoeiristas, remete observao de Gilberto Freyre sobre a represso s manifestaes pblicas de ex-escravos e da faixa mais pobre da populao, que abrigava a maioria dos capoeiras: S brancos, soldados ou fidalgos feudalmente a cavalo faziam fugir moleques afoitos, capoeiras desembestados, capadcios atrevidos. Veio at quase nossos dias o prestgio do simples grito l vem a cavalaria!, isto , a tropa a galope, fazer dispersarem-se desordeiros ou insurretos a p48. A existncia desse mecanismo repressivo, defendido pelo artigo do jornal e confirmado por outros comentaristas em relao capoeira, em geral, bem como nas histrias contadas pela prpria comunidade de capoeiristas em torno da origem do toque de berimbau, denominado Cavalaria, revela mais uma vez que a histria da capoeira do Recife possui traos muito semelhantes ao que j foi observado por diversos cronistas e pesquisadores nas outras duas cidades onde a capoeira constituiu as suas mais slidas tradies: Rio de Janeiro e Salvador. possvel, nesse sentido, imaginar a existncia de registros mais detalhados, correspondentes aos que j existem sobre as outras duas capitais. As semelhanas apontadas com o percurso da capoeira no Rio de Janeiro sugerem que, em Recife, a memria sobre a capoeira se relaciona com a prpria histria de deportaes e limpeza ocorridas nas cidades onde a presena negra se imps, antes e depois da abolio. No Recife, a estudiosa e capoeirista Mnica Carolina Beltro registra, entre os lugares freqentados por grupos de capoeiras, as ruas do Imperador, do Rosrio, das Trincheiras e do Ptio do Carmo, bem como os bairros de Santo Antonio, So Jos, Afogados, Torre e Madalena. Em resumo, a nfase na presena da capoeira para a formao das tradies carnavalescas de Recife uma marca da bibliografia sobre o assunto. Mas no h ainda uma pesquisa de flego sobre o universo da capoeiragem, no se realizou um estudo47 48

Apud RABELLO, Evandro. Op. Cit. p. 184. FREYRE, Gilberto. Op. Cit. p. 651.

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sistemtico que se detenha sobre as trajetrias da capoeira para alm de sua presena inquestionvel na histria do frevo e do passo e de seu vnculo primordial com a ao de escravos e libertos nas antigas bandas de msica. Essa lacuna no passou despercebida a Mnica Beltro:Tendenciosamente, os capoeiras foram vinculados a tais agremiaes, at porque, aps a abolio da escravatura, os desfiles das bandas passaram a ser o principal atrativo cultural da cidade. No obstante, eternizaram a relao entre tais bandas e os valentes, submergindo o registro de outras manifestaes populares que contavam com a presena dos capoeiras, maiormente as que envolviam costumes afro-descendentes como o maracatu49.

Retornando ao conjunto de fontes jornalsticas apresentadas no livro de Rabello, confirma-se que a questo acima citada, levantada pela pesquisadora, importante para a ampliao do universo da capoeira em Pernambuco. Temos, por exemplo, um indcio da participao de capoeiras na brincadeira do bumba-meu-boi, conforme um relato de 1897 do Jornal de Pernambuco:Em um bumba meu boi, brinquedo alis selvagem que efetua-se todos os sbados e vsperas de dias santificados, houve ante-ontem pancadaria e a mocidade vadiou. Noves fora. Um pobre diabo com duas tremendas facadas. Quanto ao mais, tudo vai bem50.

Igualmente, nas rivalidades entre os maracatus Oriente Pequeno e Leo Coroado, Rabello anota a freqncia de brigas e hostilidades envolvendo grupos de valentes. Assim, para um levantamento da presena de capoeiristas em outras situaes da vida urbana de Recife, seria preciso ampliar a busca da relao das foras repressivas com as demais prticas reunindo escravos, libertos e seus descendentes. Alm disso, o carter de divertimento popular, da capoeira como mais um brinquedo ou um folguedo entre outros49

BELTRO, Mnica. A capoeiragem no Recife Antigo: os valentes de outrora. Recife: Editora Nossa Livraria, 2007.

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que aqui se desenvolveram a partir de matrizes africanas, ainda no foi devidamente ressaltado ou mapeado nas fontes de poca, cuja nfase na relao dos valentes com a desordem pblica nos blocos de msica ainda o principal, seno o nico, sinal da presena da capoeira na historiografia sobre a cidade. necessrio buscar, por exemplo, a presena negra nas referncias sobre as sedies e revoltas populares em Pernambuco durante o sculo XIX51, a participao de escravos e libertos no ciclo de levantes liberais e a trajetria dos soldados-capoeiras de Recife que retornaram da Guerra do Paraguai. Essas temticas, envolvendo estratgias de luta e modos de resistncia e negociao dos escravos e libertos, relacionam-se diretamente com a experincia dos capoeiras. Os arquivos da Justia e da polcia pernambucana, alm dos peridicos e crnicas, so espaos onde pode-se fazer esse levantamento imprescindvel, na busca de indcios dessa insero dos capoeiristas de Recife em seu ambiente scio-cultural.

1930-1940: nasce uma nova tradio da capoeira

O perodo denominado anos 30 foi eleito pela literatura sobre a capoeira baiana como divisor da sua histria. O destaque dado a essa dcada est associado inveno da capoeira regional por Mestre Bimba, a partir de 1928, e a sua consolidao nos anos 1930. O surgimento desta capoeira traz implcito outras questes relacionadas capoeira baiana como um todo, envolvendo desde a sua prtica at o seu modo de se relacionar com a sociedade. necessrio dizer que este fenmeno acontece num contexto histrico em que se d um processo de renovao institucional das manifestaes culturais negras em busca de legitimao, legalizao jurdica, construo de autonomia territorial, visibilidade na imprensa, aceitao social, afirmao cultural, e maior expanso da sua prtica para outras camadas sociais. De acordo com Vivaldo da Costa Lima, para a Bahia, era aquele um50 51

Apud RABELLO, Evandro. Op. Cit. p. 148. Para uma introduo a esse assunto, ver CARVALHO, Marcus. Rumores e Rebelies. Estratgias de resistncia escrava no Recife. Revista Tempo, Niteri Universidade Federal Fluminense, n. 6, vol. 3, Dezembro, 1998.

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tempo em que os impulsos amortecidos e reprimidos do negro ... comearam a se reorganizar atravs de diversos mecanismos e estratgias de resistncia cultural e afirmao poltica. Organizavam-se os movimentos sindicais e os candombls52. E pode-se acrescentar, organizavam-se tambm as academias de capoeira. Entre os anos de 1930 e 1940, cresce o interesse de intelectuais brasileiros e de alguns estrangeiros por essas manifestaes, que se tornam seus objetos de estudo e pesquisa. Entre eles estavam Gilberto Freyre, Edison Carneiro, Arthur Ramos, Jorge Amado, Donald Pearson, etc. Na realidade, esses intelectuais tiveram uma participao importante na construo de uma nova viso da sociedade sobre as manifestaes culturais afro-brasileiras. No caso da capoeira da Bahia, relevante o papel desempenhado por dison Carneiro, pioneiro ao publicar, no ano de 1936, um artigo de pgina inteira sobre capoeira na imprensa baiana, ressaltando seus aspectos culturais. Este texto foi posteriormente inserido no seu livro Negros Bantus53. Esta a primeira vez que a capoeira baiana recebe uma pequena descrio etnogrfica. Carneiro narra como era o ritual da roda, apresenta o berimbau como instrumento indispensvel realizao da brincadeira, cita e interpreta algumas cantigas, vinculando-as ao universo cultural africano. Para o autor, a capoeira uma herana dos negros bantus. Atento contemporaneidade da capoeira de seu tempo, seu estudo revela as disputas entre a capoeira regional e a capoeira dita de angola, as tenses da provenientes, e projeta um futuro no muito promissor para a capoeira por ele denominada folclrica ou legado de angola. Sendo vtima do progresso, esta manifestao (ou prtica) estaria, segundo ele, em vias de extino, embora reconhea a existncia de alguns pontos da cidade de grande vitalidade desta arte que, provavelmente, se tornaram verdadeiros redutos de capoeiragem nos anos posteriores. dison Carneiro foi um dos principais organizadores do II Congresso Afrobrasileiro, realizado em janeiro de 1937. Este Congresso, alm de promover a apresentao de pesquisas sobre os costumes africanos, tambm foi palco de reivindicaes e protestos

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LIMA, Vivaldo da Costa e OLIVEIRA, Valdir F. O Candombl da Bahia na dcada de 30. In: Cartas de dison Carneiro a Arthur Ramos De 4 de janeiro de 1936 a 6 de dezembro de 1938. SP: Ed. Corrupio, 1987, p. 39. 53 CARNEIRO, dison. Negros Bantos: notas de etnografia religiosa e de folclore. RJ: Civilizao Brasileira, 1936.

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em favor do povo negro e das suas manifestaes culturais. De acordo com Assuno e Vieira, estudiosos da capoeira, ele contribuiu para a maior aceitao do candombl e da capoeira pelas elites e para o conseqente abrandamento da represso policial54. Estava previsto para este Congresso a criao da Unio dos Capoeiras Baianos, o que no ocorreu. No entanto, a capoeira marcou sua presena com uma apresentao da capoeira de angola, liderada pelo conhecido capoeira Samuel Querido de Deus juntamente com Aberr, Bugaia, Eutychio, Barbosa, Mar, Edgar, entre outros nomes de famosos da capoeira de angola, no estando presente nenhum capoeirista da regional. Este evento, de natureza cultural, foi muito importante para a capoeira baiana nos anos de 1930. Um outro evento, tambm fundamental para compreender a capoeiragem baiana nesta poca, foram as lutas no ringue do parque Odeon, nas quais participaram diversos capoeiristas baianos, e que consagraram Mestre Bimba como campeo baiano de capoeira. Este evento foi alvo de estudo de Frederico Jos de Abreu55. Neste trabalho, o autor analisa e disponibiliza ao grande pblico cerca de 80 notcias de jornal publicadas entre 29/08/1935 e 20/01/1937, levantadas em cinco peridicos baianos (A Tarde, Dirio da Bahia, O Estado da Bahia, Dirio de Notcias e O Imparcial). A quantidade de dados encontrados traz tona a grande visibilidade que a capoeira ganha nesta poca na imprensa. Para o autor, as lutas no ringue representam, simbolicamente, a diviso entre a capoeira angola e a regional. Apesar de ser um evento pugilstico, Frede Abreu observa que atravs das smulas das lutas e dos debates a seu respeito publicados na imprensa, tornam-se visveis muitos aspectos scio-culturais da capoeira nesta poca. Dentre eles, so revelados no apenas as diferentes formas de jogar capoeira, como tambm o novo mtodo de ensino do Mestre Bimba, as vises que os capoeiras tinham da sua prpria arte, e os diferentes modos dos capoeiras se relacionar com a sociedade e o poder pblico. O autor ainda destaca, neste livro, episdios que possibilitam acompanhar o processo histrico de legitimao e legalizao do ensino da capoeira atribudo a Mestre Bimba. De certa forma, Abreu refora a contribuio pessoal do mestre para os destinos da54

VIEIRA, Luiz Renato e ASSUNO, Matthias R. "Mitos, controvrsias e fatos: construindo a histria da capoeira. Estudos Afro-Asiticos (34): 81-121. Dez/1998, p.84. 55 Ver ABREU, Frederico Jos de. Bimba Bamba: a capoeira no ringue. Salvador, Instituto Jair Moura, 1999.

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capoeira moderna. Ele ressalta suas iniciativas no sentido da oficializao jurdica da capoeira, do seu ajustamento a um novo espao - a academia -, da sua maior expanso para outros segmentos sociais e da sua penetrao em outras instituies (quartis, palcios, escolas, clubes esportivos, etc). Assim, atravs da insero desses novos elementos, a capoeira passava a ser exercida como ofcio. A importncia de Mestre Bimba para este momento to frtil para a capoeira baiana apontada por diversos outros estudos produzidos sobre a sua figura, sendo alguns dos autores, alunos do mestre. Em 1928, Mestre Bimba afirmou ter criado sua capoeira regional. Para Muniz Sodr, as idias de Zuma influenciaram na criao da nova modalidade: Contato houve, certo, entre os discpulos de Bimba e o manual de Annibal Burlamaqui56. De qualquer maneira, o contexto histrico posterior tambm privilegiou a proposta da capoeira regional, principalmente no Estado Novo, implementado em 1937, mesmo ano em que se consagrou o incio do processo de descriminalizao da capoeira, quando Bimba recebeu autorizao para manter seu Centro de Cultura Fsica e Capoeira Regional. Mais tarde, em 1954, se apresentaria para Getlio Vargas, em Salvador, e para o governador do estado, Juracy Magalhes. Na ocasio, o presidente teria se referido capoeira como o nico esporte genuinamente nacional. A desmarginalizao da capoeira se deu num mesmo movimento em que o estado brasileiro resolveu nacionalizar a capoeira, motivo que levou o governo do estado da Bahia, em plena Era Vargas, a permitir o funcionamento da escola de Mestre Bimba. Este, por outro lado, defende a capoeira como luta criada no Brasil. A idia da capoeira como arte marcial brasileira norteou as primeiras iniciativas pblicas que tiveram impacto no cotidiano do capoeirista, uma perspectiva polmica que permanece defendida por uns e criticada por outros, principalmente pelos mestres de capoeira angola, que afirmam sua ancestralidade africana. O mais importante deles foi Mestre Pastinha, articulador do CECA Centro Esportivo de Capoeira Angola. Essa instituio foi inicialmente organizada de forma associativa - juntamente com os que freqentavam a Gengibirra, ponto de visibilidade de capoeira nos anos 1930, Amorzinho, Noronha, Totonho de Mar, Livino Diogo, Ona

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SODR, Muniz. Op. Cit. p. 64.

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Preta, Olimpio, Zeir, Victor H.U. e Alemo, filho de Mar e, na dcada de 1940, foi individualizada como academia de Mestre Pastinha. A importncia de Mestre Pastinha frente da capoeira angola foi fundamental para que esta se tornasse visvel e ocupasse espaos em que, at ento, no havia penetrado. O valor da Academia de Mestre Pastinha para a capoeira to grande que se tornou o modelo dominante e hegemnico de jogar capoeira angola, suplantando outros importantes mestres desta modalidade. Tanto Bimba quanto Pastinha foram os principais responsveis pela expanso inicial, para outros estados do Brasil, da maneira tradicional baiana de jogar capoeira. Dessa forma, ambos ganham o respeito da sociedade e passam a se relacionar com intelectuais, artistas e polticos da poca que vo legitim-los, no s como mestres de capoeira, mas tambm como porta-vozes da cultura popular. Na primeira metade do sculo XX, esses dois mestres se transformam nas principais referncias da capoeira da Bahia e estabelecem a base de sustentao da modernizao da prtica da capoeira. A capoeira passa a ser conhecida nacionalmente, no sculo XX, a partir da Bahia. No apenas Mestre Bimba, mas tambm a escola de Mestre Pastinha, no Pelourinho, ganha destaque, tornando-se ponto da velha guarda da capoeira angola, de intelectuais e turistas que iam apreciar as rodas. Como resultado, ocorrem as primeiras viagens de grupos de capoeira pelo territrio brasileiro. A partir dos anos 1950, uma farta documentao baseada em notcias de jornais comea a ser produzida.

1950-1970: o processo de folclorizao e esportizao

Apesar dos anos 1950 terem sido bastante efervescentes para a capoeira baiana e do aumento do interesse de famosos intelectuais de diversas reas pela arte da vadiao, existe uma lacuna muito grande no campo da pesquisa sobre esta poca, inviabilizando uma anlise mais profunda da prtica da capoeira e do cotidiano dos capoeiras no perodo. At hoje no foi feito um levantamento sistemtico das notcias e reportagens publicadas sobre o assunto nos jornais e revistas da poca. No entanto, em funo de depoimentos orais e de algum material j coletado na imprensa baiana, pode-se supor que neste perodo a capoeira

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estava bastante difundida, com um nmero significativo de praticantes, espalhada por diversas camadas sociais, foco de ateno do noticirio nacional, e fonte alimentadora de diversas linguagens artsticas (msica, dana contempornea, teatro, artes plsticas, etc). Seus principais mestres Bimba e Pastinha j eram conhecidos nacionalmente e, atravs de viagens para outros estados do Brasil, difundiam a capoeira baiana, que a cada dia ia se afirmando no cenrio nacional como "o jogo da capoeira". Neste perodo, quando se faz referncia capoeira, esta imediatamente associada Bahia, que passa a ser considerada o seu bero. Alm disso, neste momento, esta manifestao no mais vista como marca do atraso e da barbrie, mas sim como smbolo da cultura baiana e brasileira. a partir dos anos 1950 que o berimbau passa a ser usado como um smbolo de identidade da cultura baiana, em especial o berimbau pintado, obra do Mestre Waldemar. Neste novo cenrio da capoeiragem baiana, dois mestres ganham destaque: Waldemar da Paixo/da Liberdade e Cobrinha Verde. Suas academias de capoeira angola do final dos anos 40 e durante toda a dcada de 50 desempenharam um papel relevante na histria da capoeira da Bahia. Suas rodas domingueiras, localizadas respectivamente na Liberdade e no Chame Chame, alm de reunir famosos capoeiristas da poca, como Bimba, Trara, Naj, Ona Preta, Cabelo Bom, Brulio, Bugalho e muitos outros, tambm atuaram na formao de uma nova gerao de capoeiristas, que teve um papel importante nos anos de 1960 e 1970. As academias destes mestres se estabeleceram nos bairros perifricos de Salvador e, dessa maneira, serviram como agncias culturais capazes de agregar em torno desse meio de diverso tanto os habitantes do local como pessoas de fora, e at estrangeiros, atrados pela fama desses grandes mestres. preciso acrescentar que a academia de Waldemar, localizada no bairro da Liberdade, foi considerada um dos principais pontos de capoeira nos anos 1950 e serviu de local de observao para estudiosos de diversas reas, como a musicloga Eunice Catunda, o fotgrafo Pierre Verger, o artista plstico Carib, o romancista Jorge Amado, o escultor Mario Cravo, o cineasta Alexandre Robato diretor do filme Vadiao (1954) , atrados pela excelncia da capoeira ali jogada. Parte da histria da academia deste mestre encontra-se no livro de Frede Abreu, chamado Barraco do Waldemar, nome pelo qual ficou conhecido este espao57.

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ABREU, Frederico. O Barraco do Mestre Waldemar. Salvador: Organizao Zarabatana, 2003.

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Da mesma forma que os anos 1950, a capoeiragem baiana dos anos de 1960 e 1970 tambm no foi alvo de investigao, embora se saiba de antemo que existe uma grande documentao sobre estas duas dcadas, como provou Raimundo Alves de Almeida, o Mestre Itapoan, ao reunir material basicamente composto de notcias de jornais e revistas, livros, artigos, anais de congressos publicados na Bahia e no Brasil, tendo este perodo da capoeira baiana como referncia58. Entre as notcias, deve-se destacar um importante evento: o Festival de Artes Negras, realizado no ano de 1966, em Dakar, capital do Senegal. Mestre Pastinha liderou o grupo de capoeira angola neste festival, que ficou registrado na memria da capoeira como um episdio emblemtico, principalmente por ligar a capoeira frica. Na dcada de 1960, a fama de Pastinha e Bimba continua em ascenso, suas academias funcionam com grande vitalidade, contudo, as academias dos mestres Waldemar e Cobrinha Verde, e tantas outras localizadas na periferia de Salvador, esto em decadncia. Entre os anos de 1960 e 1970, dois momentos devem ser mencionados exatamente porque influenciaram profundamente os rumos da capoeira baiana. O primeiro foi o incio do processo de esportizao da capoeira, homologado em 1972 pelo CND - Conselho Nacional de Desportos, que submeteu a prtica da capoeira s regras do pugilismo. Datam da a realizao dos campeonatos nacionais, as tentativas de unificao da capoeira, no sentido de eliminar as distines entre as capoeiras angola e regional, os treinamentos voltados para fazer do capoeirista um atleta e a simplificao dos ritos que no se adequavam s prticas esportivas. Esta tendncia esportiva fomenta a vigncia de sistema de graduao e tentativas de criao de uma nomenclatura tambm unificada. Enquanto algumas academias, principalmente de regional e algumas de angola, ajustaram-se s exigncias de uma prtica esportiva, outras mais tradicionais, tanto angola quanto regional, no se adaptaram e ficaram margem deste processo. O segundo est relacionado ao processo de folclorizao da cultura negra na Bahia, associado ao crescimento da indstria turstica em Salvador que, nos anos de 1960 e 1970, introduz no repertrio de atraes para a sua clientela, alm das belezas naturais dos monumentos e do barroco das igrejas, as manifestaes da cultura negra, principalmente o candombl, a capoeira e o samba. As demandas provenientes deste novo contexto tiveram58

Ver ALMEIDA, Raimundo Alves de. Bibliografia Crtica da Capoeira. Braslia: DEFER, Centro de

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um forte impacto nas academias de capoeira, e muitos dos seus membros passaram a compor grupos folclricos que surgiram liderados por empresrios, pesquisadores e capoeiristas que, embora ainda no fossem mestres, tinham capacidade de gerir seu prprio grupo. Nas dcadas de 1960 e 1970, dois mestres de capoeira - Canjiquinha e Caiara surgem como figuras importantes no universo da capoeira baiana, ambos mostrando capacidade de se ajustar diretamente s novas exigncias do folclore, estilizando as manifestaes e, no caso da capoeira, transformando o jogo/ritual em show. A atuao desses mestres, no sentido da espetacularizao do jogo, vai romper com a bipolarizao da capoeira da Bahia em torno dos mestres Pastinha e Bimba. As principais lideranas da capoeira na poca se voltam de forma preferencial para atender s demandas do mercado turstico, em funo de sua rentabilidade. Ainda que pouco significativo do ponto de vista financeiro, os ganhos com as apresentaes folclricas no deixavam de superar aqueles que podiam conseguir com o ensino da capoeira. Este fato comprometeu o funcionamento de muitas academias, principalmente em relao formao de novos capoeiristas, na medida em que as atividades das academias eram mais voltadas ao treinamento/ensaio dos shows folclricos do que s aulas propriamente ditas. Apesar dos problemas trazidos pela folclorizao da cultura negra, no se pode deixar de reconhecer que esse fenmeno contribuiu significativamente para a expanso da capoeira baiana pelo Brasil. Alm disso, com a migrao de baianos para o sudeste brasileiro, em busca de melhores oportunidades de vida, uma leva de mestres capoeiristas chegou ao Rio de Janeiro nos anos 1950. O mais importante deles foi Arthur Emdio, que vinha de Itabuna, regio do cacau na Bahia. Mestre Arthur Emdio trouxe uma capoeira que no tinha ligao com a capoeira angola de Pastinha nem com a regional de Bimba. Possua uma movimentao veloz e eficaz marcialmente, tanto que chegou a competir nos ringues com lutadores de outras artes marciais. No entanto, foi derrotado por um aluno de Mestre Sinhozinho, chamado Ismanir. Ainda que tivesse nfase na marcialidade, Arthur Emdio, ao contrrio de Sinhozinho, mantinha a orquestrao musical e fazia apresentaes folclricas. Instalou suaInformao e Documentao sobre a Capoeira (CIDOCA/DF), 1993.

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academia na zona norte do Rio de Janeiro e se tornou um dos capoeiristas mais famosos da cidade. Mestres cariocas importantes como Leopoldina, Celso do Engenho da Rainha, Paulo Gomes, Djalma Bandeira e Vilmar foram seus alunos, o que d uma dimenso de sua influncia na capoeira praticada na zona norte carioca nos anos 1950. Conforme relatou Mestre Vilmar:

Eu aprendi com o mestre Djalma Bandeira, que dava aula em Olaria a mando do mestre Artur Emdio, que na poca, para difundir a capoeira, foi lutar com os Gracies nos ringues, porque, antigamente, o Brasil parava para ver essas lutas na TV Continental. Ento, de um lado o Artur Emdio, que foi o propulsor da capoeira no Rio de Janeiro, e do outro o Djalma Bandeira dava aula de capoeira. E eles se juntavam nos fins de semana para fazer a exibio em locais considerados de elite, como a Universidade Rural, a ACM na Lapa e a Sociedade Pestalozzi do Brasil. Foi quando eu fui indicado para dar aula, pois os garotos gostavam de mim porque eu tocava berimbau e gingava e eles achavam aquilo incrvel59.

Enquanto Mestre Arthur Emdio ensinava capoeira na Zona Norte do Rio de Janeiro, um outro movimento de capoeiristas surgiu na Zona Sul carioca. Em 1964, os irmos Rafael e Paulo Flores retornaram de uma viagem Bahia, onde treinaram capoeira durante alguns meses com Mestre Bimba. Resolveram continuar com os treinos no terrao do prdio em que moravam em Laranjeiras. Outros jovens chegaram, como Gato e Gil Velho, que tinham tido experincia de capoeira com alunos de Mestre Sinhozinho. Em 1966, Mestre Bimba esteve no Rio para realizar o show folclrico Vem Camar e visitou os jovens, que haviam se auto-intitulado Grupo Senzala. No ano seguinte, 1967, o Senzala ganhou a competio de msica e jogo chamada Berimbau de Ouro, que tinha Mestre Arthur Emdio como juiz. O grupo da Zona Sul carioca tambm venceu nos dois anos seguintes e alcanou enorme sucesso entre a juventude da cidade. Ainda assim, a percepo de que estavam distantes dos fundamentos da capoeira baiana fez com que os principais capoeiristas do Senzala retornassem a59

Texto extrado da entrevista realizada por Maurcio Barros de Castro e Matthias Rohrig Assuno com Mestre Vilmar (Vilmar da Cruz Brito) em agosto de 2007, para o Inventrio para Registro e Salvaguarda da Capoeira como Patrimnio Cultural do Brasil -IPHAN, no Rio de Janeiro (RJ).

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Salvador, visitando e treinando em diferentes academias, inclusive participando das mais tradicionais rodas de capoeira angola60. Devido a estas experincias entre os dois estilos, o Senzala no se definiu por nenhum deles. Manteve os ensinamentos de Bimba junto aos movimentos e instrumentos da capoeira angola. Tambm foram muito influenciados pelas artes marciais japonesas, principalmente o carat. No entanto, no foram os nicos alunos de Mestre Bimba que criaram um novo estilo a partir de seus ensinamentos, visando uma nfase na esportizao em contraste com a folclorizao a que era associada capoeira baiana. O principal exemplo foi Carlos Sena. De acordo com Matthias Rohrig Assuno:Nascido em Salvador, ele comeou a treinar com Bimba, em 1949. Ele se tornou um dos melhores alunos do mestre, e diretor de sua academia em 1954. Ainda em 1955, ele decidiu abrir sua prpria escola, chamada Senavox, e a ensinar uma capoeira diferente, mais estilizada. O que distinguia Sena era sua crtica estagnao do folclorismo cultural das exibies de capoeira e seu esforo para esportizar a capoeira. Ele criou um elaborado sistema de regulamentaes formais que

supostamente regrariam treinos e rodas... Sena, entre outros, proclamou ter inventado o sistema de cordas e sistematicamente utilizava uma saudao para capoeira: Salve. As regras inventadas por ele agradaram as foras armadas e simpatizantes do regime militar... Ele tambm contribuiu para a