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UNIVERSIDADE CATLICA DE GOI`S DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E TEOLOGIA MESTRADO EM CI˚NCIAS DA RELIGIˆO MEMRIAS DE MULHERES, CONFLITOS ADORMECIDOS MARISTELA TEZZA GOI´NIA 2006

OK - Texto 2 - Memória de Mulheres, Conflitos Adormecidos - Tereza Tezza

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  • UNIVERSIDADE CATLICA DE GOIS

    DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E TEOLOGIA

    MESTRADO EM CINCIAS DA RELIGIO

    MEMRIAS DE MULHERES, CONFLITOS ADORMECIDOS

    MARISTELA TEZZA

    GOINIA 2006

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  • 2

    UNIVERSIDADE CATLICA DE GOIS

    DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E TEOLOGIA

    MESTRADO EM CINCIAS DA RELIGIO

    MEMRIAS DE MULHERES, CONFLITOS ADORMECIDOS

    Maristela Tezza

    Dissertao apresentada ao curso de Mestrado em Cincias da Religio como requisito parcial

    para obteno do grau de Mestra.

    Orientadora: Profa. Dra. Ivoni Richter Reimer

    GOINIA 2006

  • 3

    T356m Tezza, Maristela. Memrias de mulheres, conflitos adormecidos / Maristela Tezza. 2006.

    130 f.

    Dissertao (mestrado) Universidade Catlica de Gois, Mestrado em Cincias da Religio, 2006.

    Orientao Profa. Dra. Ivone Richter Reimer.

    1. Religio. 2. Exegese bblica. 3. Evangelho de So Marcos 7,24-30. 4. Etnia conflito. 5. Gnero conflito. 6. Mulher aspecto religioso. I. Ttulo.

    CDU: 2:396(043) 396(043)

  • 4

    DISSERTAO DO MESTRADO EM CINCIAS DA RELIGIO DEFENDIDA EM 29 DE AGOSTO DE 2006

    E APROVADA COM A NOTA 10,0 (DEZ INTEIROS) PELA BANCA EXAMINADORA

    1) Dra. Ivoni Richter Reimer / UCG (Presidente) ________________________

    2) Dr. Joel Antnio Ferreira / UCG (Membro) __________________________

    3) Dr. Shigeyuki Nakanose / Centro Bblico Verbo (Membro) _______________

  • 5

    Agradeo de modo especial toda a equipe do Centro Bblico que durante

    estes anos me apoio e incentivou. Sendo tambm a grande motivadora a meu

    estudo, mas especialmente a Ceclia que me ajudou muito nas correes,

    observaes e crticas a minha dissertao. Meu muito obrigada!

    Meu agradecimento de modo especial a Dom Manuel que me incentivou e

    apoiou e a toda equipe do ITELS (Instituto de Teologia da Regio S).

    Meu muito obrigada a meus pais e irmos que embora distantes sempre me

    apoiaram e acompanharam nestes anos de estudo.

    E no podia deixar de lembrar de Francisco e Pedrinho que foram meus

    companheiros em Goinia, foram realmente irmos de caminhada.

    Agradeo a minha orientadora Ivoni, pela pacincia, pelas correes e

    ajuda que foi me dando no decorrer da minha dissertao. Agradeo enfim a todas as pessoas que direta e indiretamente estiveram

    presentes nestes anos de estudo e que me serviram de inspirao.

  • 6

    RESUMO

    TEZZA, Maristela. Memrias de mulheres, conflitos adormecidos. Dissertao (Programa de Ps-graduao em Cincias da Religio) - Universidade Catlica de Gois, 2006.

    O objetivo deste trabalho demonstrar que, na narrativa da siro-fencia (Mc 7,24-30), por trs do conflito de etnia, encontra-se a memria de um conflito anterior, o de gnero. O conflito de gnero seria a memria fundante que ilumina e serve de parmetro para resolver o problema atual das comunidades de Marcos durante os anos 70 do primeiro sculo, sobretudo no que diz respeito incluso dos gentios mesa. Possivelmente, foram s mulheres da regio de Tiro que levantaram a discusso de gnero em suas prprias comunidades. A credibilidade destas mulheres, a fora de sua liderana e a conscincia de seus argumentos ficaram guardadas na memria histrica. Marcos, ao propor a incluso dos gentios no movimento cristo, retoma a memria de gnero e lhe d um novo significado a partir de sua prpria realidade.

    Palavras-chave: memria, conflito, etnia, gnero, filha, incluso, Tiro.

  • 7

    ABSTRACT

    Tezza,Maristela. Memory of women, dormant conflicts. Dissertation (Post-Graduation Program in the Religion Sciences) Catholic University of Gois, 2006.

    The objective of this work is to demonstrate that, in the Syro-Phoenician narrative (Mk 7, 24-30), behind the ethnic conflict, is found the memory of an earlier conflict, that of gender. The conflict of gender would be the founding memory that gives light and serves as a parameter to resolve the actual problem of the communities in Mark in the seventies, during the 70s of the first century, most especially that which refers to the inclusion of the gentiles to the meal. Possibly, they were the women of the Tyre region who raised the question of gender in their own communities. The credibility of these women, the force in their leadership and the consistency of their arguments, all these were kept in historical memory. Mark, upon proposing the inclusion of the gentiles in the Christian movement, takes up again this memory and based on his reality gives it a new meaning.

    Key words: memory, conflict, ethnic, gender, inclusion, children, Tyre.

  • 8

    SUMRIO

    RESUMO 5

    ABSTRACT 6

    1 INTRODUO 10

    2 CONTEXTO DO EVANGELHO DE MARCOS 14

    2.1 EVANGELHO: BIOGRAFIA OU MEMRIA ? 14

    2.2 AUTORIA 15

    2.3 LOCALIZAO DO EVANGELHO E SEUS/SUAS

    DESTINATRIOS/AS 16

    2.4 DATAO 18

    2.5 CONTEXTO HISTRICO DOS ANOS 70 DO SCULO I 19

    2.5.1 O Imprio Romano 19

    2.5.2 Dominao romana na Palestina 20

    2.5.3 Galilia 24

    2.6 NO CONTEXTO DA GALILIA SURGE O EVANGELHO

    DE MARCOS 28

    2.6.1 Os objetivos do Evangelho de Marcos 29 2.7 ESTRUTURA DO EVANGELHO DE MARCOS 32

    2.8 A NARRATIVA DA SIRO-FENCIA NO CAPTULO 7 35

    3 ANLISE LITERRIA DE MC 7,24-30 37

    3.1 TEXTO GREGO DE Mc 7,24-30 37

    3.2. CRTICA TEXTUAL DE Mc 7,24-30 38

  • 9

    3.2.1. O texto da narrativa... 38

    3.2.2. O texto nas diferentes tradues em portugus 42

    3.3. TRADUO LITERAL 44

    3.4. NARRATIVA DA SIRO-FENCIA: MC 7,24-30 45

    3.4.1. Delimitao 45

    3.4.2. Composio 46

    3.5. COESO DA NARRATIVA 48

    3.5.1. Coeso dentro dos versculos 49

    3.5.2. Coeso entre os versculos 59

    3.5.3. Coeso de toda a narrativa 62

    3.6. ESTRUTURA DA NARRATIVA 66

    3.6.1. Estrutura a partir da anlise de coeso 66

    3.6.2. Outras propostas de estrutura 67

    3.6.3. Nossa opo de estrutura 68

    3.7. CONHECENDO OS MOVIMENTOS DA NARRATIVA 68

    3.8 CONSTRUO DA NARRATIVA 70

    3.9 POR DENTRO DAS PALAVRAS QUESTES

    SEMNTICAS 73

    4 MEMRIAS DE MULHERES 102

    4.1. O USO DOS SUBSTANTIVOS THYGATRION, TEKNA

    E PAIDION 102

    4.2. AS CARACTERSTICAS DA PERSONAGEM

    FEMININA 104

  • 10

    4.3. O TEXTO-MEMRIA 105

    4.4. A INFLUNCIA DAS MULHERES DE TIRO NAS

    COMUNIDADES DE MARCOS 106

    4.5. A MEMRIA DE GNERO NA NARRATIVA

    BBLICA 109

    4.6 A MEMRIA DE GNERO NAS COMUNIDADES

    DE MARCOS 111

    4.6.1 Construo das memrias de gnero em Marcos 111

    4.6.2 Memria masculina, memria feminina 114

    4.7 UM OUTRO JEITO DE CONTAR A HISTRIA 116

    5 CONCLUSO 122

    REFERNCIAS 126

  • 11

    1 INTRODUO

    O tema central da narrativa da siro-fencia em Marcos 7,24-30 o conflito

    de etnia, especialmente no que diz respeito incluso dos gentios mesa (v. 27-

    28) nas comunidades crists dos anos 70 do primeiro sculo. Inicialmente parece que estamos diante de uma simples histria de exorcismo e cura, mas logo

    percebemos que a conversa entre Jesus e a mulher se transforma em dilogo

    sobre a saciedade: comer ou no comer com estrangeiros.

    Mas o que nos chama a ateno por que, para resolver este problema,

    Marcos utiliza como exemplo a histria de uma mulher? Por que a personagem

    estrangeira apresentada como exemplo (metfora) de incluso dos gentios no movimento cristo uma mulher? Foi uma escolha aleatria ou intencional?

    Nosso interesse demonstrar que, por trs do conflito de etnia,

    visivelmente expresso em nossa narrativa (v. 27 e 28), encontra-se a memria de um conflito anterior, o de gnero, que serve de parmetro para solucionar o

    problema atual da comunidade (ou seja, de etnia). Trata-se, pois, de um texto-memria.

    Sabemos que os textos bblicos so, essencialmente, uma coletnea de

    memrias coletivas selecionadas por um redator a partir da importncia social e da

    fora que tm para solucionar conflitos atuais da vida da comunidade

    (WOORTMANN, 1998, p.90). Assim, Marcos teria retomado a memria de um fato

  • 12

    antigo das comunidades, conhecido por todos/as, dando-lhe um novo significado a

    partir da realidade atual de suas comunidades.

    Neste sentido, o texto de Mc 7,24-30 estaria baseado possivelmente na

    memria de um grupo de mulheres da regio de Tiro que reagiu contra as

    relaes patriarcais dentro da casa: uma mulher (grega, siro-fencia de nascimento) que, com a fora de sua palavra, faz Jesus alargar os horizontes (...) (SOARES E CORREIA, 2000, p.285). A liderana das mulheres na regio de Tiro pode ter sido um fator importante que fez com que a memria da siro-fencia

    desse credibilidade ao argumento favorvel incluso de gentios na comunidade

    marcana.

    O principal objetivo da narrativa de Marcos (7,24-30) no retratar o conflito com as mulheres, mas podemos perceber, por trs das palavras, a

    memria anterior de um conflito de gnero. Ou seja, o conflito de gnero seria a memria fundante que ajuda as comunidades de Marcos a enfrentarem os problemas referentes incluso de estrangeiros. Tal recurso possvel uma vez

    que os dois conflitos, de gnero e etnia, so conflitos de relaes dentro das

    comunidade e esto relacionados estrutura da casa patriarcal, e no questo de

    f. Afinal, por sua capacidade de argumentao que a mulher convence Jesus a

    expulsar o demnio de sua filha.

    Para averiguar nossas suspeitas, apresentamos, no primeiro captulo, desta

    dissertao, o contexto histrico das comunidades de Marcos e algumas

    caractersticas de sua obra, tais como os objetivos e uma possvel estrutura do evangelho.

  • 13

    No segundo captulo, analisamos literariamente o texto de Mc 7,24-30:

    crtica textual, traduo, coeso e semntica.

    No terceiro captulo, a partir da hermenutica de gnero e da antropologia,

    analisamos a narrativa da siro-fencia como um texto-memria.

  • 14

    2 CONTEXTO DO EVANGELHO DE MARCOS

    A memria um ponto de vista (ou de cegueira) e como tal depende do

    lugar de onde se olha... (WOORTMANN, 1993, p.106).

    Neste captulo, inicialmente, esclareceremos alguns pontos da nossa

    pesquisa sobre o Jesus Histrico, a autoria, a localizao, os/as destinatrios/as e

    a datao do evangelho de Marcos.

    Em seguida, apresentaremos o contexto das comunidades de Marcos, seus

    objetivos e uma possvel estrutura do evangelho. Assim, buscamos conhecer mais sobre o lugar de onde a comunidade fala, para melhor compreendermos o seu

    ponto de vista.

    2.1 EVANGELHO: BIOGRAFIA OU MEMRIA?

    No estudo do evangelho de Marcos trabalhamos na perspectiva das

    comunidades que o escreveram, e no do Jesus Histrico.

    Mais do que uma aproximao da realidade concreta da vida de Jesus, ou

    dos seus provveis ditos e aes biogrficas, interessa-nos, nesta pesquisa, a

    compreenso do contexto das comunidades que, partindo de sua prpria

    realidade, organizaram suas memrias a respeito de Jesus: Cada um dos

  • 15

    evangelhos apresenta Jesus a partir de uma determinada realidade. (...) Cada evangelho apresenta Jesus partindo da vida e dos desafios de uma certa

    comunidade (VASCONCELOS, p.09, 1998).

    Neste sentido, detemo-nos no evangelho de Marcos enquanto expresso

    de comunidades que, no perodo dos anos 64 at os anos 70 do sculo I, sentem

    a necessidade de registrarem por escrito as memrias de Jesus (MYERS, 1995, p. 68).

    2.2 AUTORIA

    difcil dizer com preciso quem o autor, ou quem so os autores do

    evangelho de Marcos (GNILKA, 1986, p.39), ou os seus redatores. Neste trabalho, referimo-nos a Marcos como o autor, pois acreditamos que ele foi um membro

    importante na memria dessas comunidades. Marcos no escreve sua obra como

    observador distanciado do processo da comunidade, mas como participante

    imerso em suas contradies e conflitos (...) (VAAGE, 1998, p.12).

    2.3 LOCALIZAO DO EVANGELHO E SEUS/SUAS DESTINATRIOS/AS

    Existem muitas teorias a respeito do local onde teria sido escrito o

    evangelho de Marcos e seus principais destinatrios: de onde e para quem

    Marcos fala? Vejamos as trs teorias mais significativas.

  • 16

    A primeira teoria levantada por Ppias de Hierpolis (120 d.C.). Ele

    atribui o evangelho a Pedro, e a redao a seu discpulo Marcos. Marcos

    aprendera de Pedro tudo que sabe sobre Jesus (GNILKA, 1986, p.39; BROWN, 2004, p.206.249). Aps a morte de Pedro em Roma, segundo a tradio, ele teria redigido o que ouvira.

    Esta teoria diz que o evangelho de Marcos foi escrito em Roma,

    justificando-se, assim, os erros de localizao geogrfica cometidos pelo narrador ao descrever as viagens de Jesus e tambm o uso de vrios termos aramaicos no

    texto (MYERS, 1995, p. 68). A segunda teoria, defendida por Myers (1995, p.68), entre outros, afirma

    que a comunidade de Marcos se encontrava na Galilia. Seu principal argumento

    baseia-se nas vrias citaes da Galilia que aparecem no evangelho (1,9.14.28;

    3,7-8;14,28; 16,6-7; 15,41), assim como na intensa atividade de Jesus nesta regio (HORSLEY, 2004, p.117).

    A terceira teoria sustentada de modo especial por Vaage (1998) e localiza a redao do evangelho de Marcos na regio siro-palestina. O evangelho estaria

    direcionado a comunidades formadas por um grande nmero de gentios (GNILKA,

    1986, p.41), e tambm por judeus que se retiraram de Jerusalm por no compactuarem com a estrutura do templo.

    Segundo esta teoria, as comunidades s quais Marcos se dirige teriam forte

    influncia de Paulo: Ao fazer com que o evangelho de Jesus Cristo, o filho de

    Deus (1,1), aponte desde o comeo para a morte do protagonista, a imagem de

  • 17

    Jesus que o evangelho de Marcos oferece torna-se uma viso extremamente

    paulina, mais paulina que a do prprio Paulo (VAAGE, 1998, p.25).

    Analisando as diferentes teorias, optamos pela localizao do evangelho de

    Marcos na regio da Galilia, mas acreditamos tambm que a Galilia seria

    provavelmente muito mais o lugar onde o evangelho foi escrito do que o lugar para

    o qual foi escrito. Parece-nos que as comunidades s quais se dirige o evangelho

    de Marcos estavam espalhadas pela regio da Sria, de Tiro e da Decpole. Neste

    sentido, observemos alguns aspectos do evangelho de Marcos.

    Como vimos, h paralelos entre a Carta de Paulo aos Romanos e o

    evangelho de Marcos, por exemplo, no que diz respeito aos alimentos

    considerados puros (Mc 7,19 e Rm 14,14).

    Alm disso, por um lado, encontramos na redao do evangelho muitas

    palavras derivadas do latim, linguagem comum em todo o Imprio Romano, e, por

    outro, notamos a preocupao de traduzir os termos aramaicos e de explicar as

    prticas e os rituais judaicos (7,3-4) (BROWN, 2004, p.249), dando a impresso de que o pblico no os conhecia bem (Mc 3,17; 7,34; 10,46; 15,22.34). Ora, isto seria necessrio somente para um pblico de fora da Galilia, ou de regies de

    tradio no judaica.

    Vale ainda notar o texto de Mc 5,1-20, segundo o qual Jesus cura um

    endemoninhado em Gerasa, envia-o para junto dos seus e pede que anuncie. Para Vaage (1998, p.15), O ex-endemoninhado torna-se o primeiro missionrio no evangelho de Marcos, explicitamente autorizado por Jesus, e o nico cujo trabalho ter trajetria.

  • 18

    Assim, podemos dizer que as comunidades de Marcos eram de lngua

    grega, e na sua grande maioria formadas no por judeus, mas por gentios, que

    sabiam ou conheciam um pouco dos costumes judaicos, e j haviam recebido uma formao sobre Jesus (BROWN, 2004, p.250).

    2.4 DATAO

    O evangelho de Marcos foi redigido provavelmente entre os anos 64-70

    d.C., no perodo em que ocorre a Guerra Judaica em Jerusalm. Em Mc 13,2, por

    exemplo, encontramos referncia guerra quando se fala da destruio do

    templo; e em Mc 13,14, quando se menciona a instalao da abominao da

    desolao, aluso colocao da esttua do imperador Calgula no templo.

    2.5 CONTEXTO HISTRICO DOS ANOS 70 DO SCULO I

    2.5.1 O Imprio Romano

    J nos primeiros captulos do evangelho de Marcos podemos conhecer um

    pouco da realidade social em que vivia a maioria do povo: doenas, fome, pobreza

    e explorao caracterizavam cerca de 95% da Palestina do sculo I (MYERS,

    1995, p.66).

  • 19

    A populao da Palestina vivia sob a dominao romana desde 63 a.C.,

    quando Pompeu conquistara a regio. conquista de Pompeu seguiu um perodo

    de quase uma gerao de distrbios, em que faces asmonias e exrcitos

    romanos rivais disputavam o controle da rea (HORSLEY E HANSON, 1995,

    p.44).

    Os romanos controlavam politicamente os povos conquistados atravs da

    nomeao de legados ou procnsules, ou a partir dos procuradores. O rei no

    tinha lugar no sistema romano, mas vale lembrar que na Palestina se imps uma

    monarquia, comandada por Herodes Magno e, aps sua morte, pelos seus filhos

    (SCHIAVO e SILVA, 2000, p.21).

    Os principais instrumentos de coero eram a violncia do exrcito, uma

    forte propaganda ideolgica e a cobrana de tributos.

    A guerra era o meio pelo qual o imprio crescia: A guerra que leva vitria

    forma o pressuposto do tempo feliz da paz no qual o imperador triunfa, e este

    tempo feliz continua a ser assegurado pelas legies. Esta paz que Roma traz

    paz-devitria para os romanos; para os vencidos, paz de submisso (WENGST,

    1991, p. 23).

    A ideologia da Paz Romana, por sua vez, criava e sustentava o sistema da

    escravatura, e a escravatura como sistema, escravatura elevada potncia como

    acontecimento natural este cinismo dos dominadores torna claro que a liberdade

    da paz romana , em primeira linha, liberdade romana (WENGST, 1991, p.40).

  • 20

    O sistema de produo da Palestina do sculo I era mantido pelas aldeias,

    que desenvolviam relaes de afinidade entre seus membros, garantindo, assim,

    uma economia familiar de subsistncia, e pelo estado classista, que se apropriava

    dos bens produzidos atravs da cobrana do tributo e do controle do comrcio

    (MYERS, 1995, p.76).

    A economia baseada principalmente no latifndio gerava endividamento,

    perda da terra e escravido. Os escravos eram recrutados como pagamento de

    dvidas e hipotecas ou eram prisioneiros de guerras (REIMER, 2006, p.87-89).

    Senadores, cavaleiros e decuries constituam os grupos de maior poder

    social. Aceitos pela populao, exerciam poder sobre ela e sobre os principais

    meios de produo. A estrutura socioeconmica da sociedade romana pode, por

    fim, ser descrita como uma estrutura de categorias que no todo tinha carter de

    classe (REIMER, 2006, p.91).

    Vejamos de que maneira a poltica do Imprio Romano se aplicava Palestina.

    2.5.2 Dominao romana na Palestina

    A partir dos anos 40 a.C. at o ano 4 d.C., Herodes alia-se a Roma e

    nomeado rei dos judeus, subjugando-os com a ajuda das legies. A forma de governo exercida por Herodes no era diferente do tipo de dominao exercida

    pelo imperador, pois os governadores tm, na verdade, poder de domnio, mas

  • 21

    so, simultaneamente, dominados (WENGST, 1991, p.70). So eles que mostram

    ao povo como devem se submeter.

    Herodes era grande admirador e incentivador da cultura helnica. Em sua

    administrao constri muitas cidades nos moldes gregos e templos dedicados a

    diversas divindades, inclusive ao culto ao imperador. Suas obras implicam

    aumento dos gastos e, conseqentemente, elevada cobrana de tributos dos

    camponeses para compensar as despesas (HORSLEY e HANSON, 1995, p.45; MYERS, 1995, p.79).

    As famlias camponesas tinham de produzir cada vez mais excedente para

    poder pagar os tributos e taxas exigidas pelo imprio e pelo rei local. Alm dessas

    cobranas, os judeus ainda deviam pagar os dzimos exigidos pela elite religiosa judaica para a manuteno do templo.

    Os tributos1 e as cotas para o imprio, para o rei local e para o templo

    geravam o empobrecimento da populao camponesa e o acmulo de dvidas.

    Um empregado de fazendeiro na Galilia podia ficar com a metade da colheita obtida como renda para si. Os pequenos arrendatrios estavam sujeitos ao imposto da terra ou tributo dos reis herodianos ou ao anoma dos romanos, cada um deles variando de um quarto a um tero da colheita. A no achavam includos os dzimos para as autoridades judaicas (...) (MYERS, 1995, p. 80).

    Com a propagao do Helenismo, os padres sociais da Palestina tambm

    so alterados. As burocracias administrativas helenistas e suas rgidas

    hierarquias eram muito difundidas; a introduo do imposto fazendrio criou

    1 Havia dois impostos a serem pagos por Israel aos romanos: o primeiro denomina-se tributum capitis e era

    arrecadado de todas as pessoas (...) at a idade aproximada de 65 anos. O segundo era o tributum soli/agri, imposto sobre bens produzidos na agricultura. Este era o tributo mais penoso a ser pago, pois podia representar, por vezes, 20%, 25% ou at 30% do total da produo (UWE, 2006, 119).

  • 22

    interesses colaborativos locais em regies colonizadas (MYERS, 1995, p.78), favorecendo o desenvolvimento do chamado clientelismo.

    Com a morte de Herodes no ano 4 d.C., a regio da Palestina entra em um

    perodo de grande instabilidade. Estouram rebelies populares nacionalistas por

    toda parte, na esperana de se libertarem da forte opresso dos tempos

    herodianos. Roma, ento, divide administrativamente a Palestina entre os filhos de

    Herodes: a regio da Galilia e da Peria fica sob o controle de Herodes Antipas

    (4 a.C. a 39 d.C.) e a da Judia e da Samaria passa a ser controlada por Herodes Arquelau (MGUEZ, 1995, p.24).

    Os reis usam de muita violncia e aumentam ainda mais a tributao sobre

    o povo, gerando mais uma vez grande instabilidade na regio. Roma depe

    Arquelau e transforma a Judia em provncia romana, governando-a por

    intermdio de procuradores (SCHIAVO e SILVA, 2000, p.116).

    O perodo da administrao direta do Imprio Romano sobre a Palestina

    acentuou o processo de concentrao das terras nas mos de uns poucos

    proprietrios, seja pela poltica de compensao a generais e altos funcionrios romanos, seja pela poltica tributria. A cobrana de altos tributos, impostos e de diversas taxas sobre a circulao de mercadorias e pessoas (pedgios e taxas

    alfandegrias) gerou uma grande massa de endividados. Camponeses livres

    perdem suas terras e passam a trabalhar como mo-de-obra escrava ou

    assalariada: isto produziu um aumento da pobreza no campo e uma concentrao

    da riqueza no mbito urbano (MGUEZ, 1995, p.25). A Galilia, por ser a regio

  • 23

    mais frtil da Palestina, possua o maior ndice de latifndios e,

    conseqentemente, de pobreza.

    Por sua vez, o empobrecimento das grandes massas camponesas aumenta

    os descontentamentos e as turbulncias na regio da Palestina. Alm do fator da

    pobreza, embora o imprio respeitasse aparentemente as prticas religiosas dos

    povos conquistados, sempre escapava uma provocao (HORSLEY e HANSON, 1995, p.47), como a de Calgula que, no ano 39 d.C., resolveu colocar a esttua do imperador no templo de Jerusalm (OROFINO e MESTERS, 1995, p.36).

    O agravamento da situao de opresso se d sobretudo a partir de 66 d.C,

    quando o procurador romano, Floro, roubou parte do dinheiro do templo. Alguns

    judeus ento saram s ruas de Jerusalm pedindo esmolas aos romanos. O procurador no gostou da atitude dos judeus e mandou soldados a Jerusalm, para saquearem a cidade e ofenderem o povo com gestos ostensivos (MOSCONI, 2001, P.20).

    No tardou e o povo judeu declara guerra ao imprio, expulsando os romanos de

    Jerusalm. Neste perodo, estoura a chamada Guerra Judaica.

    A Guerra Judaica durou 5 anos (de 67 d.C. a 73 d.C) e consistiu na tomada de Jerusalm por diferentes grupos do Judasmo, e, conseqentemente, na

    represlia romana. Na Pscoa de 70 d.C., Tito se aproxima com quatro legies e

    tropas auxiliares bem equipadas, cercando Jerusalm com seus habitantes e

    peregrinos (LOHSE, 2000, p. 44). Chega ao fim a resistncia dos rebelados.

  • 24

    Tito destri as muralhas de Jerusalm e incendeia o templo. Com isso, o

    Judasmo perde dois referenciais importantes: o Templo e a Cidade Santa. Com a

    queda do templo, findou-se o culto sacrificial. A adorao do Deus de Israel

    continuaria nas sinagogas (...) (LOHSE, 2000, p.45).

    A partir de 70 d.C., inicia-se uma nova fase do Judasmo. O mesmo

    acontece com o movimento cristo. A sinagoga tornar-se- o lugar de encontro e

    de referncia para ambos os grupos.

    2.5.3 A Galilia

    A Galilia, embora faa parte da grande regio da Palestina, apresenta

    caractersticas distintas de Jerusalm, em decorrncia de sua localizao

    geogrfica e da formao da populao local. Para compreendermos essas

    diferenas, e algumas caractersticas das comunidades de Marcos, por exemplo, o

    grande nmero de gentios, precisamos voltar na histria.

    Por volta dos anos 722-721 a.C., o Reino do Norte fora invadido pelo

    Imprio Assrio. A partir de ento, a Galilia tornara-se uma regio onde passaram

    a viver e a se desenvolver diferentes povos e culturas.

    Ao longo dos sculos, a regio da Galilia esteve marcada por uma histria de contnuo encontro (e indubitavelmente de desencontro tambm) de diferentes grupos sociais. De modo diferente, talvez, da cidade de Jerusalm e do territrio da Judia, a Galilia fora sempre a Galilia das naes (Is 8,23) (VAAGE, 1995, p.85).

    Com a hegemonia do Imprio Grego a partir de 333 a.C., nova influncia

    estrangeira incide sobre a Galilia: muitas cidades helensticas, como Hipos,

  • 25

    Gdara, Pla e Citpolis, alteram o cenrio da regio e o modo de vida da

    populao local.

    A infiltrao da cultura grega e o distanciamento de Jerusalm fazem com

    que a Galilia seja (...) encarada com desconfiana geral pela hierarquia de

    Jerusalm (MYERS, 1995, p.83). Assim, quando os asmoneus dominam a

    Palestina e levam adiante o propsito de expanso territorial e do chamado

    Judasmo, impem Galilia forte represso devido sobretudo mistura de povos

    e costumes naquela regio (LOHSE, 2000, p.25).

    Mais tarde, durante o perodo da dominao romana na Palestina a partir

    do ano 63 a.C., e principalmente na Galilia dos anos 66-70 d.C., conforme Vaage

    (1995, p.87), os fariseus eram intermedirios do templo de Jerusalm e sua principal atividade era cobrar os impostos que o templo esperava receber do povo

    crente judeu.

    A Galilia, alm de ser (...) encarada com desconfiana geral pela

    hierarquia de Jerusalm (MYERS, 1995, p.83), por causa da mistura de povos e

    costumes, torna-se centro da explorao econmica das autoridades religiosas

    judaicas de Jerusalm. Pois, embora os judeus devessem obedincia Roma, que mantinha firme controle da regio da Palestina por meio de legies alojadas

    em lugares estratgicos, a elite religiosa desfrutava de relativa autonomia em

    assuntos internos. Naturalmente, cresce o antagonismo dos galileus ao templo e

    elite religiosa judaica de Jerusalm. Ao mesmo tempo, como vimos, os herodianos encontraram na Galilia uma

    fonte de recursos para empreender e sustentar a poltica helenista, governando

  • 26

    com avidez e violncia. Deste modo, compreensvel que os galileus constituam o

    grupo de maior oposio tambm aos herodianos: Toda essa devastao,

    escravizao e tributao parecem ter provocado sentimentos de oposio aos

    romanos e a Herodes entre os galileus (HORSLEY, 2000, p.35).

    Outra caracterstica importante para compreendermos o contexto da

    Galilia nos anos 70 do primeiro sculo so as relaes comerciais com as

    cidades vizinhas. Grande quantidade de moedas de Tiro encontrada na regio

    da Alta Galilia. Embora no esteja provado que houvesse um comrcio intenso,

    sabemos que essas duas regies trocavam mercadorias (HORSLEY, 2000, p.67).

    A Galilia comercializava trigo, azeitonas, figos, mel, azeite, blsamo e, de

    modo especial, leo: Nos perodos romanos mais recentes, vrias fontes

    mencionam a exportao de leo de oliva para o Egito e provavelmente para Tiro

    (HORSLEY, 2000, p.71). A regio de Tiro, imprpria para a agricultura, era conhecida pelo comrcio

    de metais, suprimentos para o exrcito e bens suprfluos, tudo do tipo desejado

    pelos governantes (HORSLEY, 2000, p.81). Portanto, o comrcio com as regies

    frteis a seu redor era necessrio para a sua sobrevivncia, e, provavelmente, a

    Galilia era uma das cidades com as quais as relaes comerciais eram mais

    intensas (At 12,20). Alm disso, Tiro representa uma das regies estratgicas mais importantes

    para o abastecimento do Imprio Romano. Podemos supor que esse

    abastecimento, juntamente com as provises para o exrcito, teria sido uma das principais funes dos armazns imperiais de cereais nas aldeias da Alta

    Galilia (HORSLEY, 2000, p.82).

  • 27

    E para favorecer o comrcio e a troca de mercadorias em todo o territrio, o

    imprio dispunha de uma ampla rede de estradas, que facilitava inclusive a

    movimentao rpida e eficiente das legies. Em termos de infra-estrutura, Roma

    investiu ainda na construo de aquedutos que garantissem o abastecimento de

    gua na regio.

    Outro fator que favorecia as transaes comerciais era a lngua. Na regio

    de Tiro, por exemplo, chocavam-se trs culturas: fencia, judaica e helenista. Um

    siro-fencio falava o aramaico-palestinense e o siro-fencio. Assim, podia conversar

    bastante bem com um judeu. A lngua grega era mais usada nos ambientes da classe alta (THEISSEN, 1991, p.68).

    Toda essa multiplicidade de interesses e investimentos na economia da

    Galilia, voltados especialmente para o desenvolvimento do comrcio e a

    estruturao das cidades, incidiu diretamente sobre o modo de vida da populao

    camponesa local e sobre as suas relaes, e aumentou as desigualdades sociais

    na regio.

    Ao mesmo tempo, a proximidade e a influncia da cultura helnica e de

    outros povos tornam a populao mais aberta aos costumes estrangeiros,

    justificando-se, assim, a abertura das comunidades de Marcos aos gentios. Segundo Schiavo (1999, p. 120),

    parece que, na Galilia, a hostilidade dos habitantes locais contra as cidades helenizadas no se deva atribuir a fatores culturais, mas a particulares circunstncias: Sforis era hostilizada por sua posio pr-romana, Tiberades pela opulncia da corte de Herodes e por ter obrigado os judeus a morar na cidade, contra sua prpria vontade.

    Por isso, a hostilidade a outras culturas provavelmente no era caracterstica

    das comunidades de Marcos. Desde cedo, aprenderam a conviver com outros

  • 28

    povos, o que, mais uma vez, confirma, por um lado, a abertura destas

    comunidades aos gentios, e, por outro, suas crticas a Jerusalm.

    2.6 NO CONTEXTO DA GALILIA SURGE O EVANGELHO DE MARCOS

    Diante da realidade de violncia e opresso vivida pelas diferentes

    comunidades judaico-crists em todas as regies do Imprio Romano, e da complexidade das relaes scio-culturais, surge a necessidade de verbalizar a

    nova experincia para encontrar uma soluo para os novos problemas

    (OROFINO e MESTERS, 1995, p.41). As Escrituras judaicas no so mais suficientes para orientar os grupos cristos. Assim, surgem os primeiros escritos

    sobre Jesus.

    Marcos o primeiro a redigir uma narrativa sobre a vida de Jesus em

    ordem cronolgica: descreve a atividade de Jesus desde o batismo de Joo

    Batista at a ressurreio (GNILKA, 1986, p.21). Ele recolhe da tradio oral e dos

    provveis escritos informaes sobre a vida de Jesus (GNILKA, 1986, p.23) que j circulavam nas comunidades (BROWN, 2004, p.234).

    Antes do evangelho de Marcos, j existe a chamada fonte dos ditos de Jesus, a fonte Q. E, alm da fonte Q, provvel que Marcos tenha utilizado na

    composio de sua obra outros materiais, porm no fcil identific-los 2.

    2 Brown (2004, p.233) cita pelo menos duas possveis obras utilizadas por Marcos: o Evangelho Secreto de

    Marcos e uma verso abreviada do Evangelho de Pedro sobre a paixo. No existe, porm, comprovao deste dado, e as teorias esto envolvidas em muitas controvrsias.

  • 29

    Conforme Gnilka (1986, p.24), Marcos teve acesso a uma histria da paixo, a uma coleo de discusses da Galilia (cap. 2), a uma coleo de

    parbolas (cap. 4) e a um apocalipse (cap. 13), e os teria recompilado em funo dos problemas concretos de suas comunidades (cap. 10). A mesma teoria defendida por Kummel (1982, p.97) quando afirma que a obra de Marcos seria constituda de (...) pequenos grupos de unidades da tradio oral outrora juntas

    (...).

    Outra caracterstica de Marcos sua nfase nos relatos de milagres e

    exorcismos, diferentemente de Mateus e Lucas, que possuem muitos

    ensinamentos e instrues (GNILKA, 1986, p.25). Estes relatos esto ligados ao

    anncio e vida missionria da comunidade.

    2.6.1 Os objetivos do evangelho de Marcos

    No podemos precisar com exatido o objetivo de Marcos ao escrever o

    evangelho. O que podemos deduzir num primeiro momento que ele teve uma

    grande vontade de integrar, buscar, recolher e redigir diversas tradies sobre

    Jesus que circulavam nas comunidades (GNILKA, 1986, p.26). Contudo, a juno no foi aleatria.

    Marcos utiliza recursos da literatura para preencher o que constituiriam

    lacunas em sua obra. Ele usa expresses adverbiais para estabelecer uma

    seqncia temporal e fazer a ligao entre cenrios geogrficos diversos (3,22-30 em 3,21.31.35; 5,25-34 em 5,21.24.35-43 e outros). Prepara os/as leitores/as para

  • 30

    o que deve acontecer (3,9 antes de 4,1ss; 11,11 antes de 11,15ss, e outros). E insere resumos entre narraes distintas (1,32-34; 3,7-12; 6,53-56). A utilizao destes e de outros recursos demonstra uma certa viso de conjunto dos fatos e

    um propsito na construo de sua obra.

    Tambm podemos dizer que Marcos apresenta uma geografia especfica

    em seu evangelho, pois concentra as atividades de Jesus na Galilia (1,9; 1,14.39;

    1,16.28;3,7;9,30;14,28). Para Marcos, a Galilia seria (...) o lugar da revelao escatolgica de Jesus, assim tambm como o ponto de partida para a

    evangelizao dos gentios (KUMMEL, 1982, p. 107). A seguir, citaremos algumas teorias sobre o objetivo da obra de Marcos.

    Para Gnilka (1986, p.29), o evangelho de Marcos foi escrito com a finalidade de ser proclamado, apresentando uma estrutura que conduz a ateno

    do ouvinte para o momento final da narrativa: a cruz e a ressurreio de Jesus.

    Neste sentido, Marcos poderia ser definido como um historiador teolgico: (...) as

    tradies tomadas por Marcos foram manejadas e experimentadas na vida da

    comunidade. Contudo, dirigem-se a um pblico maior e menos condicionado pelo

    tempo (p.30).

    Para Camacho e Mateus (1998, p.8), o objetivo da obra de Marcos mostrar que, em Jesus, se realiza a plenitude humana (o Filho do Homem), e que

    o Homem pleno o Messias Filho de Deus, por oposio ao Messias Filho de

    Davi da expectativa judaica.

    Nesta perspectiva de que o Homem pleno o Messias Filho de Deus, a

    comunidade apresenta uma viso mais universal da proposta crist, aberta a

  • 31

    todas e todos, superando o sentido exclusivista da salvao reservada a Israel

    enquanto nico povo escolhido. Por um lado, Marcos conserva o sentido da

    primazia do convite feito a Israel enquanto povo da antiga aliana, mas, por outro,

    Israel agora, para pertencer nova aliana, deve aceitar a sua condio de

    igualdade com diferentes povos.

    Para Myers (1995, p.60), o evangelho formado por dois livros, cada um com um prlogo e um eplogo. Ambos, porm, possuem uma geografia especfica

    e comum ao concentrarem as atividades de Jesus na Galilia (1,9; 1,14.39;

    1,16.28;3,7;9,30;14,28).

    Para Vaage (1998, p.25), o evangelho de Marcos rene as diferentes memrias existentes sobre Jesus na regio siro-palestina e as reorganiza em

    funo das necessidades de suas comunidades: o evangelista no pode

    simplesmente descartar estas tradies. As distintas comunidades s quais

    correspondem ainda estavam presentes (...). Por isso o evangelista via-se obrigado a assumir seu discurso, incorporando-o, para assim p-las em seu lugar.

    Na tentativa de atualizar as memrias correntes a partir da realidade de

    suas comunidades, Marcos, segundo Vaage, concentra a oposio a Jesus em

    Jerusalm, e critica especialmente o grupo dos judeus fariseus. A todo tempo, ele descreve os gentios como aqueles que crem e acolhem a prtica de Jesus,

    enquanto os judeus so tratados como incrdulos. Isto nos faz supor que a comunidade de Marcos era formada em sua maioria por cristos vindos da

    gentilidade.

  • 32

    2.7 ESTRUTURA DO EVANGELHO DE MARCOS

    Quanto estrutura do evangelho de Marcos, quase consenso entre os/as

    estudiosos/as (MYERS, 1995; PIKASA, 1998; BROWN, 2004; VAAGE, 1998); KUMMEL,1982) dividi-lo em duas partes principais (1-8,26 e 8,27 at o fim) 3. Entretanto, h diferentes interpretaes, como no caso de Gnilka (1986, p.38), que prope uma estrutura baseada em 6 blocos, de acordo com os temas do

    evangelho 4.

    Outro consenso o fio condutor de todo o evangelho. Este seria o Segredo

    Messinico, polmica em torno da imagem de um Jesus milagreiro e exorcista. O

    Segredo Messinico entendido como o pedido de silncio feito por Jesus aps

    as curas e os milagres (1,34.44; 3,12; 5,43; 7,36; 8,26) (VAAGE, 1998, p.20).

    Nesta dissertao, ns nos concentraremos na anlise da primeira parte do

    evangelho (1,1-8,26), onde se encontra o objeto de nossa pesquisa.

    3 Para Myers (1995), o evangelho de Marcos apresenta duas partes: Primeiro prlogo (1,1-20); Primeiro livro (1,21-8,21);

    Segundo prlogo (8,22-9,30); Segundo livro (10-16,8). Pikasa (1998) segue a mesma proposta de Myers, porm organiza a obra em dois temas. Primeiro tema: Igreja Messinica e Mensagem do Reino - Incio: chamado ao Reino (1,1-3,6); Casa dos expulsos: seco da famlia (3,7-6,6a); Mesa comum: seco dos pes (6,6b-8,26). Segundo tema: Morte do Cristo, Igreja da Pscoa - Anncios de morte: caminho da Igreja (8,27-10,52); Jerusalm: casa do conflito (11,1-13,37); Morte solidria: o Messias crucificado (14,1-15,47); Igreja Pascal: ele os precede na Galilia (16,1-8). Brown (2004, p.206) divide o evangelho em duas partes com subtemas. Primeira parte: ministrio de cura e anncio na Galilia (1,1-8,26). Segunda parte: sofrimento predito, morte em Jerusalm, ressurreio (8,27-16,8). Vaage (1998, p.19) tambm divide o evangelho em duas partes. Primeira parte 1,16-8,26: Jesus um curador itinerante. Segunda parte 8,27-16,9: Jesus apresenta o caminho da cruz. Kummel divide o evangelho em cinco partes: Introduo: 1,1-13 (mensagem do Batista, batismo de Jesus e tentaes); Primeira parte: Jesus na Galilia 1,14-5,43; Segunda parte: atividade de Jesus dentro e fora da Galilia 6,1-9,50; Terceira parte: ltima subida para Jerusalm 10,1-52; Quarta parte: ministrio de Jesus em Jerusalm 11,1-13,37; Quinta parte: paixo e ressurreio de Jesus 14,1-16,8. 4 Comeo (1,1-15); 1. Atuao soberana de Jesus frente a todo povo judeu (1,16-3,12); 2. Doutrinas e milagres de Jesus

    (3,13-6,6a); 3. Deslocamentos de Jesus (6,6b-8,26); 4. Convite ao seguimento no caminho da Cruz (8,27-10,45); 5. Atuao de Jesus em Jerusalm (10,46-13,37); 6. Paixo e vitria (14,1-16,8).

  • 33

    A primeira parte do evangelho de Marcos contm a grande maioria das

    histrias de milagres e exorcismos realizados por Jesus e reunidos no chamado

    ciclo dos milagres, bem como das suas andanas.

    Observando o ciclo dos milagres, podemos perceber que a seleo das

    memrias no foi aleatria. Vejamos a proposta de estrutura apresentada por

    Vaage (1998, p.21):

    I. 4,35-41 Jesus acalma o vento e as ondas

    5,1-20 Jesus cura o endemoniado de Gerasa

    5,21-23.35-43 Jesus cura a filha de Jairo

    5,25-34 Jesus cura a mulher com fluxo de sangue

    6,34-44 Jesus d de comer a 5 mil homens

    II. 6,45-51 Jesus caminha sobre a gua

    8,22-26 Jesus cura o cego de Betsaida

    7,24b-30 Jesus cura a filha da siro-fencia

    7,32-37 Jesus cura um surdo-mudo

    8,1-10 Jesus d de comer a 4 mil pessoas

    O ciclo dos milagres estrutura-se em dois blocos coesos, apresentando,

    entretanto, dois textos que no so de milagres: 6,1-33 e 7,1-23, provavelmente

    inseres do prprio Marcos. Dentre os milagres, vale ressaltar que trs esto

    relacionados a mulheres (a filha de Jairo, a hemorrossa e a filha da srio-fencia). Vejamos a seguir a localizao da narrativa da cura da filha da siro-fencia segundo outras propostas de estrutura.

  • 34

    Gnilka (1985) localiza a narrativa da siro-fencia na terceira parte do evangelho, na qual Jesus se desloca de um lado para outro (6,6b-8,26). Myers (1995), na primeira seco, no ciclo dos milagres (4,36-8,9), abrindo o ciclo dos gentios. Pikasa (1998), na seco dos pes (6,6b-8,26), dentro do tema da mesa comum. Brown (2004, p.206), na primeira parte, dentro da seco da misso dos doze, da saciedade dos 5 mil homens, da caminhada sobre a gua, da

    controvrsia, da saciedade dos 4 mil e do mal entendido (6,7-8,26). Embora haja divergncias entre os estudiosos, podemos dizer que

    consenso entre todos a localizao da narrativa da siro-fencia na primeira parte

    do evangelho (1,1-8,10-21), no chamado ciclo dos milagres e, dentro deste, abrindo o ciclo dos gentios (7,24-8,9). Portanto, a temtica principal da percope seria a incluso dos gentios na comunidade crist (MYERS, 1995, p. 245-259).

    Alm disso, alguns estudiosos apontam uma especificidade da narrativa da

    siro-fencia: uma histria de cura distncia (RABUSKE, 2001, p.272), semelhante do servo do centurio de Cafarnaum em Mt 8,5-13, ambos gentios.

    Nos evangelhos, esta forma de cura aparece somente nestes dois textos (LIMA, 2001, p.56).

    Outro ponto em comum entre os/as pesquisadores/as seria o fato de que a

    narrativa no preenche os requisitos do gnero exorcismo; embora este tema

    aparea no incio e no fim, ocorre no meio o dilogo entre Jesus e a mulher

    suplicante (RABUSKE, 2001, p.272). Assim, podemos dizer que, embora a

    temtica principal seja a incluso dos gentios, no centro da narrativa est o

    dilogo entre Jesus e a mulher.

  • 35

    2.8 A NARRATIVA DA SIRO-FENCIA NO CAPTULO 7

    A narrativa da siro-fencia encontra-se no captulo 7 do evangelho de

    Marcos. Neste captulo, 23 versculos (7,1-23) so dedicados discusso sobre as leis de pureza e impureza no tocante s refeies mesa. Trata-se da tradio

    defendida pelas elites religiosas judaicas das cidades. Fariseus e escribas exigem do povo o cumprimento das leis prescritas por Moiss, especialmente a do puro e

    impuro, que atingia de modo excludente sobretudo os camponeses e pescadores

    da Galilia (Jo 7,38-52). Os agricultores quase no tinham acesso gua para sua limpeza diria, e os pescadores estavam em contato direto com peixes mortos

    e outros animais considerados impuros. Quem viajava de um lugar para o outro tambm tinha dificuldades em se manter dentro das regras e rituais de pureza.

    Para garantir sua sobrevivncia e se defender do legalismo farisaico, o

    campesinato rel as tradies do Antigo Testamento, adaptando-as prtica de

    Jesus, a fim de justificar as aes da prpria comunidade, como podemos verificar em Mc 7,6-7.14-15 (Is 29,13; Ex 20,12; Dt 5,16). Neste sentido, a discusso entre Jesus e os fariseus pode representar o conflito entre a comunidade de Marcos e

    os escribas de Jerusalm em torno das normas de pureza.

    Do mesmo modo, em todo o evangelho de Marcos, Jesus negligencia as

    normas de pureza. Ele aparece como um subversivo frente s regras judaicas:

    No observa o mapa dos tempos (3,1-6: sabbath), o mapa dos lugares (11,15-16), o mapa das pessoas (1,41; 5,25-34.41), o mapa das coisas (7,5), nem o mapa das comidas (2,15). uma clara rejeio ao sistema

  • 36

    estabelecido pelo templo sobre o sistema de pureza (MALINA e ROHRBAUGH, 1992, p.224). 5

    Possivelmente, questes prticas de purificao e outras exigncias

    farisaicas desencadearam um debate significativo na comunidade de Marcos a

    respeito da pertena Casa de Israel, especialmente entre aqueles que no

    faziam parte da elite judaica. Era, portanto, urgente reler as leis de pureza e impureza e redefinir os critrios para entrar no movimento de Jesus.

    Neste captulo, procuramos conhecer melhor o lugar de onde Marcos nos

    fala. Descrevemos algumas caractersticas das diferentes comunidades s quais

    ele se dirige. Levantamos algumas teorias sobre a autoria e a datao do seu

    evangelho. Assim, buscamos situar as suas memrias, e a narrativa da siro-

    fencia, como um ponto de vista, e no um ponto de cegueira, a respeito de Jesus.

    5 O dia-a-dia do povo israelita estava cercado por diferentes mapas. O mapa do tempo: especialmente o Sabbath, o Shema

    e a circunciso. O mapa dos lugares: delimitao do acesso aos espaos no interior do templo. O mapa das pessoas: quem podia ser esposa, quem podia pedir o divrcio, em quem se podia tocar, com quem se podia comer, quem podia entrar nos diferentes espaos do templo, quem podia exercer determinados ofcios e realizar determinadas aes. O mapa das coisas: o que era considerado puro e impuro, as ofertas e os sacrifcios, as coisas que podiam tocar no corpo. O mapa das comidas: o que se podia comer, como os alimentos deviam ser cultivados, preparados, servidos e ingeridos. Outros mapas incluam as demais coisas que pudessem poluir ou contaminar pelo contato (MALINA e ROHRBAUGH, 1992, p.223).

  • 37

    3 ANLISE LITERRIA DE Mc 7,24-30

    3.1 TEXTO GREGO DE Mc 7,24-306

    24 VEkei/qen de. avnasta.j avph/lqen eivj ta. o[ria Tu,rou Kai. eivselqw.n eivj oivki,an ouvde,na

    h;qelen gnw/nai( kai. ouvk hvdunh,qh laqei/n\

    25 avllV euvqu.j avkou,sasa gunh. peri. auvtou/( h-j ei=cen to. quga,trion auvth/j pneu/ma

    avka,qarton( evlqou/sa prose,pesen pro.j tou.j po,daj auvtou/\

    26 h` de. gunh. h=n ~Ellhni,j( Surofoini,kissa tw/| ge,nei\ kai. hvrw,ta auvto.n i[na to. daimo,nion

    evkba,lh| evk th/j qugatro.j auvth/j

    27kai. e;legen auvth/|\ a;fej prw/ton cortasqh/nai ta. te,kna( ouv ga,r evstin kalo.n labei/n to.n

    a;rton tw/n te,knwn kai. toi/j kunari,oij balei/n

    28 h` de. avpekri,qh kai. le,gei auvtw/|\ ku,rie\ kai. ta. kuna,ria u`poka,tw th/j trape,zhj

    evsqi,ousin avpo. tw/n yici,wn tw/n paidi,wn

    29 kai. ei=pen auvth/|\ dia. tou/ton to.n lo,gon u[page( evxelh,luqen evk th/j qugatro,j sou to.

    daimo,nion

    30 kai. avpelqou/sa eivj to.n oi=kon auvth/j eu-ren to. paidi,on beblhme,non evpi. th.n kli,nhn kai.

    to. daimo,nion evxelhluqo,j

    6 NESTLE-ALAND, Novum Testamentun Graece, 27. Edio.

  • 38

    3.2 CRTICA TEXTUAL DE MC 7,24-307

    3.2.1 O texto da narrativa

    O nosso objetivo ao analisar o aparato crtico da narrativa da siro-fencia verificar as variantes textuais dos diversos manuscritos para, assim, avaliar a

    probabilidade do texto mais original.

    A narrativa em seu conjunto (7,24-30) no apresenta muitas alteraes. Para a nossa anlise, selecionamos duas inseres que aparecem em alguns

    manuscritos e no texto paralelo de Mateus (Mt 15, 21-28). As inseres se encontram nos versculos 24 e 28.

    Versculo 24:

    O versculo 24 apresenta quatro variantes, das quais selecionamos a que

    consiste no acrscimo da expresso kai Sidonos aps a palavra Tyrou. Esta

    variante testemunhada pelos seguintes manuscritos: maiscula (sc. IV), A (sc. V), B (sc. IV); famlias de minsculas 1 e 13 (WEGNER, 2005, p.61); minscula 33 (sc. IX), 2427 (sc. XIV ?); texto majoritrio (sc. IV); traduo dos

    manuscritos latinos antigos e da Vulgata; traduo siraca Peschita e heraclerana

    (texto revisado por Toms de Heraclia); e por todos os manuscritos da verso copta.

    Nestle-Aland baseia sua escolha do texto grego nas maisculas D (sc. V),

    L (sc. IX), W (sc. V), (sc. IX), (sc. IX), nas minsculas 28 e 565 (sc. IX),

    7 Usaremos como referencial para nossa anlise da crtica textual o livro de WEGNER, p.39-83, 2005.

  • 39

    em todos ou na maioria dos manuscritos latinos antigos, na traduo siraca

    sinatica (sc. IV) e na traduo de Orgenes. Dentre os manuscritos que apiam a

    opo de Nestle-Aland, dois pertencem ao sculo V e os outros constam no texto

    Alexandrino (W, L, Orgenes). Estes manuscritos so mais antigos, mais breves

    e possuem maior representatividade geopoltica.

    Do ponto de vista externo, a proposta da variante pode resultar da

    influncia do texto paralelo (p) de Mateus 15,21-28 (WEGNER, 2005, p.49 e METZGER, 1975, p.95).

    Do ponto de vista das evidncias internas, um dos critrios de avaliao a

    preferncia pelo texto mais curto (WEGNER, 2005, p.77). Neste caso, provvel, ento, que a expresso kai Sidonos no constasse no manuscrito

    original.

    Alm disso, observando o conjunto do evangelho de Marcos, podemos

    perceber que, em outros versculos, ocorre referncia explcita a Tiro e a Sidom ou

    Sidnia como regies distintas, por exemplo, em 3,8 e 7,3. Isto nos leva a crer que

    o substantivo Tiro no remete automaticamente a Sidom ou Sidnia. Trata-se,

    pois, de duas regies distintas, nomeadas por substantivos prprios que, no caso

    de Mc 3,8, esto separados, inclusive, pelo artigo e e pela preposio de.

    Lembramos ainda que, nos textos do Antigo Testamento (AT), Tiro e Sidom tambm so consideradas regies distintas, embora mantenham freqentes

    relaes entre si (GUELICH, 1989, p.382).

  • 40

    Portanto, pela qualidade e quantidade das testemunhas apresentadas por

    Nestle-Aland, optamos por sua verso, omitindo a palavra Sidnia ou Sidom no

    versculo 24.

    Versculo 28:

    O versculo 28 apresenta trs variantes referentes incluso do advrbio

    nai - sim - antes do substantivo Kyrie, senhor.

    A variante nai, Kyrie - sim, Senhor - era admitida como texto original em

    edies anteriores a Nestle-Aland (, WEGNER, 2005, p.49). Sua incluso atestada pelas maisculas a (sc. IV), B (sc. IV ), (sc. IX), pelos minsculos 28 (s em Marcos), 33 (sc. IX), 597 (sc. XIII), 892 (sc. IX), 1241 (sc. XII) e 2427 (sc. XIV?). Esta variante testemunhada ainda por um pequeno nmero de outros manuscritos (pc), pelo texto majoritrio na verso siraca Peshita e por todos os manuscritos da verso copta (co), porm com algumas divergncias ou

    alteraes. Do mesmo modo, podemos encontr-la na citao de Baslio de

    Cesaria.

    A variante nai, Kyrie kai gar - sim, Senhor e pois testemunhada pelas

    maisculas A (sc. V), L (sc. IX), pela famlia dos minsculos 1 (f 1), pelos textos majoritrios e pela verso siraca heracleana (texto revisado por Toms de Heraclia).

    A variante Kyrie, all kai - Senhor, porm e atestada por um nmero

    menor de manuscritos. Esta variante se encontra nos unciais D (sc. V) e em todos ou na maioria dos manuscritos latinos antigos.

  • 41

    Nestle-Aland baseia sua escolha do texto grego nos Papiros 45 (sc. III), nos maisculos W (sc. V) e (sc.IX), na famlia dos minsculos 13 (f 13), nos minsculos 565 (sc. IX) e 700 (sc. XI) e na verso siraca sinatica (sc. IV).

    De acordo com as evidncias externas, o acrscimo do advrbio nai - sim

    - aparece apenas em manuscritos de sculos mais recentes e de pouca

    abrangncia geopoltica. No h testemunho em nenhum manuscrito majoritrio.

    O acrscimo do advrbio nai - sim - pode resultar da influncia do texto

    paralelo de Mateus 15,27. Este advrbio aparece oito vezes na redao de

    Mateus e quatro na redao de Lucas, porm, em Marcos, apenas neste

    versculo. Isto descarta a probabilidade de sua insero em Mc 7,28 (METZGER, 1975, p.95). Alm disso, a incluso deste advrbio na fala da siro-fencia apontaria para uma superioridade dos judeus sobre os gentios, tema atenuado pelo uso do termo prton - primeiro (7,27) - na resposta de Jesus (SOARES e CORREIA, 2000, p.284). O acrscimo do advrbio nai sim no corresponde, portanto, ao objetivo da narrativa de Mc 7,24-30.

    Quanto s evidncias internas, a ausncia do advrbio nai - sim -

    testemunhada pelos Papiros 45 (sc. III) e pelos maisculos W do sc. V, todos pertencentes aos textos alexandrinos. Sua ausncia tambm atestada pelos

    demais manuscritos do sculo IX que pertencem aos textos cesareenses: famlia

    13 (f 13), 565 e 700, e por algumas verses siracas. Os textos dos manuscritos cesareenses so muito comuns no evangelho de Marcos.

  • 42

    Portanto, pela quantidade e qualidade das testemunhas, optamos pela

    verso oferecida por Nestle-Aland, com a omisso do advrbio nai - sim-, ou de

    suas variantes, antes do substantivo Kyrie, Senhor.

    3.2.2 O texto nas diferentes tradues em lngua portuguesa

    Para analisar as tradues em Portugus do texto em estudo, selecionamos

    quatro verses: a Edio Pastoral (Pastoral), a Edio de Jerusalm (Jerusalm), a Traduo de Joo Ferreira de Almeida (Almeida) e a Traduo Ecumnica (TEB). H divergncias quanto ao acrscimo ou no das variantes apresentadas na crtica textual.

    No v. 24, o substantivo Sidnia ou Sidom aparece na traduo do Almeida

    entre colchetes, inserido no prprio texto. Na traduo de Jerusalm, segue-se o

    manuscrito de Marcos, com a ausncia do substantivo, remetendo-se para nota de

    rodap, onde se informa sobre o possvel acrscimo do termo, em referncia ao

    evangelho de Mateus. Na traduo da TEB, segue-se tambm o manuscrito de

    Marcos, sem o acrscimo do substantivo, e, em nota de rodap, faz-se um

    comentrio sobre a regio de Tiro, mas no se menciona o acrscimo do termo

    Sidom ou Sidnia em outros manuscritos. Na traduo da Pastoral, acrescenta-se

    o substantivo Sidnia no texto, mas no h qualquer comentrio em nota de

    rodap.

  • 43

    No v. 28, o advrbio nai - sim - aparece na traduo do Almeida sem

    qualquer justificativa em nota de rodap. Na traduo de Jerusalm e da Pastoral, no aparece o advrbio sim, porm, em substituio, usa-se o termo verdade.

    No h, contudo, nenhuma observao em nota de rodap comentando a incluso

    deste vocbulo no texto. Na traduo da TEB tambm aparece o termo verdade,

    mas, em nota de rodap, faz-se a ressalva de que tal palavra no consta em

    certos manuscritos.

    Comparando as tradues, podemos concluir que a escolha dos termos

    influencia no significado da mensagem. interessante notar que o acrscimo do

    advrbio aparece no manuscrito de Mateus (15,21-28), mas no no de Marcos. Ao acrescentarem o advrbio sim ou verdade no texto de Marcos, a resposta da

    mulher, primeira impresso, confirmaria a superioridade dos judeus sobre os gentios, em consonncia com a fala anterior de Jesus, segundo a qual os

    primeiros (isto , os judeus) teriam primazia sobre os demais. Porm, a seguir,

    percebe-se que a mulher no discute sobre a primazia de uns sobre outros, mas

    sim sobre a incluso simultnea de ambos, embora em espaos diferentes: uns

    sobre a mesa e outros debaixo.

    Neste sentido, parece-nos que o acrscimo do termo sim ou verdade

    est mais de acordo com a proposta da comunidade de Mateus, formada em sua

    grande maioria por judeus-cristos (BROW, 2005, p.311-315). Na comunidade de Marcos, ao contrrio, percebemos o esforo de aceitao dos gentios no

    movimento cristo (VAAGE, 1998, p.14-5).

  • 44

    3.3 TRADUO LITERAL

    A partir da anlise do aparato crtico (WEGNER, 2005, p.39-86; METZGER, 1975, p.95; SOARES E CORREIA, 2000, p.284; GUELICH, 1989, p.382) e das diferentes verses em Portugus, apresentamos uma traduo literal de Mc 7,24-

    30:

    7,24 De l ento tendo sado foi para dentro das fronteiras de Tiro. E tendo

    entrado para dentro da casa, no queria ser reconhecido por ningum, e no pde

    passar despercebido.

    7,25 Mas imediatamente, tendo sabido acerca dele, uma mulher que tinha filhinha

    com esprito impuro, tendo chegado se prostrou aos ps dele.

    7,26 A ento mulher era grega, siro-fencia por nascimento. E rogava-lhe para que

    expulsasse o demnio de dentro de sua filha.

    7,27 E dizia a ela: deixa primeiro serem saciadas os filhos (as crianas). Porque no bom tomar o po dos filhos (as crianas) e para os cachorrinhos jogar.

    7,28 Ela ento respondeu e diz: Senhor, mas os cachorrinhos debaixo da mesa

    comem das migalhas das crianas.

    7,29 E disse a ela: por causa desta palavra vai, o demnio j saiu de dentro de

    sua filha.

    7,30 E tendo partido para sua casa, encontrou a criana tendo sido lanada sobre

    a cama e o demnio tendo sado dela.

  • 45

    3.4 A NARRATIVA DA SIRO-FENCIA

    3.4.1 Delimitao

    A narrativa de Mc 7,24-30, segundo Myers 8 (1995, p.232), encontra-se na primeira parte do evangelho de Marcos, dentro do ciclo dos milagres (4,35-8,26).

    Alm de fazer parte do ciclo dos milagres, nossa percope abre o ciclo dos

    gentios (7,24-8,13). Segundo Myers (1995, p.254-59), Marcos, tanto na cura da siro-fencia quanto na do surdo-gago (7,31-37), apresenta a temtica da incluso tnica.

    A histria da siro-fencia, segundo alguns pesquisadores (LIMA, 2001, p.56; RABUSKE, 2001, p.272), representa uma cura distncia, semelhante do servo do centurio de Cafarnaum em Mt 8,5-13, ambos gentios. Nos evangelhos, esta

    forma de cura aparece somente nestes dois textos.

    Para entendermos melhor a narrativa da siro-fencia, vamos analis-la a

    partir do bloco maior do captulo 7, cujo foco so as tradies farisaicas. Neste

    captulo, as aes de Jesus acontecem em dois territrios: gentio e judeu.

    No bloco do captulo 7, Jesus a personagem principal que interage tanto

    com fariseus e escribas sobre as leis do puro e impuro, quanto com a mulher siro-

    fencia e o surdo-gago.

    8 Optamos pela estrutura do evangelho de Marcos apresentada por Myers (1995); outros/as autores/as

    apresentam propostas diferentes: Correia e Soares, Lima, Pikasa, Gnilka.

  • 46

    Nos v. 1-23, o enfoque principal o cumprimento das leis judaicas, de modo especial das leis referentes alimentao. Nesta primeira parte, Jesus se

    encontra em territrio judeu.

    Nos v. 24-37, so apresentadas duas histrias de cura. Jesus j no se

    encontra em territrio judeu, e sim gentio. Parece-nos que as histrias destes

    versculos servem como exemplos do tema tratado na primeira parte do captulo,

    ou seja, as exigncias das leis judaicas. Vejamos a composio da nossa narrativa.

    3.4.2 Composio

    O texto de Mc 7,1-23 predominantemente discursivo. Quase todos os

    versculos so ensinamentos de Jesus aos fariseus, multido e aos discpulos.

    As nicas personagens que interagem com Jesus so os fariseus (7,5b). A cena

    se passa em Genesar.

    Mas, em Mc 7,24-30, ocorrem vrias mudanas em relao aos versculos

    anteriores. Gramaticalmente, a narrativa da siro-fencia inicia-se com o advrbio

    de lugar ekeithen (de l), sinalizando um deslocamento espacial: Jesus sai da regio judaica (6,53) e entra em Tiro, territrio considerado gentio (v. 24).

    Tal advrbio seguido pelo verbo anistemi, na forma anastas (particpio aoristo ativo: tendo sado), e pelo verbo aperchomai, na forma apelthen (indicativo aoristo ativo: foi). Estes verbos, ao constatarem a sada de Jesus do territrio judeu e seu deslocamento em direo a Tiro, introduzem a nova histria. Do

  • 47

    mesmo modo, no v. 31, o verbo ekserchomai, na forma ekselthon (particpio aoristo ativo: tendo sado), e o verbo erchomai, na forma elthen (indicativo aoristo ativo: foi), marcam o incio da narrativa seguinte, a do surdo-gago (LIMA, 2001, p. 36). Assim, podemos dizer que a narrativa da siro-fencia se apresenta como (...) um todo coeso e orgnico, de forma que seu incio e fim so identificveis

    (WEGNER, 2005, p.85). Notamos tambm que este o nico texto em que Jesus aparece sozinho,

    sem a companhia de discpulos, escribas, fariseus ou multido (7,1.5.14.17). Isto

    se confirma no v. 24 atravs do uso da terceira pessoa do singular do indicativo

    aoristo ativo do verbo aperchomai, e da informao de que Jesus entra em uma

    casa e no quer ser reconhecido por ningum.

    Outra mudana a introduo de uma nova personagem: a mulher. Ela no

    estava presente na narrativa anterior (7,1-23), nem permanecer na narrativa seguinte (7,31-37). Em todo o bloco do captulo 7, somente nestes versculos (v. 24-30) temos uma personagem feminina.

    Do ponto de vista temtico, por meio desta personagem que ocorre uma

    ampliao da mensagem das comunidades crists: Marcos prope, por meio da

    narrativa da siro-fencia, a abertura crist a grupos distintos do Judasmo. E trata-

    se de uma proposta de abertura no s geogrfica e cultural como tambm de

    gnero:

    da Galilia para as fronteiras de Tiro;

    dos judeus para os gentios;

    dos homens para as mulheres.

  • 48

    Parece-nos que um dos enfoques da histria da siro-fencia, alm do

    conflito tnico com os judeus a propsito da cura da filha de uma mulher

    estrangeira, sobretudo a partir do tema da saciedade (7,27-28), o dilogo que se desenvolve entre Jesus e a mulher.

    Neste sentido, levantamos a hiptese de que a siro-fencia no uma

    personagem meramente casual na narrativa, mas parte integrante e indispensvel

    ao trazer a memria de um conflito anterior (a saber, o de gnero), que serve de

    referncia para iluminar a problemtica atual da comunidade de Marcos (tnica). No queremos dizer, com isso, que o conflito de gnero seja to forte

    quanto o de etnia, mas com a personagem de uma mulher que se d a

    reviravolta na narrativa quanto incluso ou no dos gentios na comunidade

    crist.

    Para averiguar de que maneira esses elementos se articulam no interior da

    narrativa, procederemos anlise da coeso interna de cada versculo e de suas

    subdivises. Em seguida, examinaremos a coeso entre os versculos e as

    diferentes unidades. Por fim, proporemos uma subdiviso da narrativa e uma

    possvel coeso entre as partes e o todo.

    3.5 COESO DA NARRATIVA

  • 49

    3.5.1 Coeso dentro dos versculos

    a) O versculo 24: De l ento ele tendo sado foi para dentro das fronteiras Tiro. E tendo entrado para dentro da casa, no queria ser reconhecido por

    ningum, mas no pode passar despercebido.

    O v. 24 serve de introduo histria. Situa Jesus em uma regio

    determinada e apresenta o seu desejo de permanecer oculto dentro de casa.

    A primeira parte do versculo (24a: De l ento ele tendo sado foi para

    dentro das fronteiras Tiro) inicia com o advrbio de lugar ekeithen (de l), juntamente com a conjuno de (ento/porm). O advrbio ekeithen aparece em Marcos relacionado com o partir ou o sair de casa, como em 6,1: Saindo dali, foi

    para a sua ptria e os seus discpulos o seguiram (5,38-43); 6,10-11: e dizia-lhes: onde quer que entreis numa casa (...); 9,30: tendo partido dali, caminhava atravs da Galilia (...) (cf. 9,28-29); 10,1: Partindo dali, ele foi para o territrio da Judia e alm do Jordo (...) (cf. 9,33-50); e 7,24: Saindo dali, foi para o territrio de Tiro (GUELICH, 1989, p.384).

    De acordo com as citaes acima, percebemos que Marcos utiliza o

    advrbio ekeithen quando quer apresentar Jesus em movimento, apontando uma

    mudana de cenrio ou de personagens, e a conjuno de para fazer a ligao com a narrativa anterior, pois, se Jesus estava em Genesar (6,53), a seguir, ele

    entrar em outra regio.

  • 50

    Mantendo a coeso interna do versculo 24a, o substantivo Tiro remete para

    o lugar de chegada de Jesus, uma regio gentia, completando-se o movimento

    anterior de sada do territrio judeu: eis ta oria Tyro.

    O substantivo Tiro tambm faz o elo de ligao com o versculo seguinte,

    pois a nova personagem, introduzida no v. 25, desta regio (GUELICH, 1989, p.384).

    Outro elemento de coeso no v. 24a a forma verbal apelthen (indicativo aoristo ativo: foi) no singular. Isto significa que Jesus partiu da regio de Genesar sozinho, sem discpulos, sem multido, sem fariseus e sem escribas. Este verbo

    liga-se ao desejo de Jesus expresso na segunda parte do v. 24, o de ficar s, de passar despercebido.

    Acompanhando apelphen (foi), temos o verbo anistemi, na forma anastas, particpio aoristo ativo (tendo sado). Os dois verbos confirmam a sada de Jesus

    do territrio judeu: ele tendo sado foi.

    Na segunda parte do v. 24, define-se o espao onde Jesus se encontra

    dentro da regio de Tiro: uma casa. O substantivo oikia (casa) j apareceu em Mc 7,17; 3,20a; 2,1.15; 9,28a, e representa na maioria das vezes um lugar de refgio

    de Jesus quando quer se afastar da multido (7,24). Assim, podemos dizer que o substantivo casa mantm a coeso do v. 24b, em consonncia com o seu desejo de permanecer oculto.

    Ainda no v. 24b, aparecem cinco formas verbais: eiselthon (tendo entrado), no particpio aoristo ativo; ethelen (queria), no indicativo imperfeito ativo; gnomai

  • 51

    (ser reconhecido), no infinitivo aoristo ativo; edunethe (pde), no indicativo aoristo passivo depoente; e lathein (passar despercebido), no infinitivo aoristo ativo. um perodo, portanto, onde h uma concentrao de aes ou intenes do sujeito.

    Porm, o pronome indefinido oudena (ningum), a conjuno kai e o advrbio de negao ouk (no) estabelecem a adversidade e a tenso: apesar de Jesus querer ficar oculto, seu desejo no se realiza. Quem entrar na casa, contrariando o desejo de Jesus? O v. 24 seria uma insero redacional de Marcos para desenvolver a histria nos versculos seguintes, costurando toda a narrativa

    (GUELICH, 1989, p.384).

    b) O versculo 25: Mas, imediatamente, tendo sabido acerca dele, uma mulher que tinha filhinha com esprito impuro, tendo chegado se prostrou aos ps dele.

    O v. 25 introduz uma nova personagem na histria: uma mulher, que pede a

    cura de sua filha possuda por um esprito impuro. Parece, a princpio, mais uma

    simples histria de cura. Para percebermos a coeso interna do v. 25, vamos

    dividi-lo tambm em duas partes.

    Vejamos o v. 25a: Mas imediatamente, tendo sabido a cerca dele, uma mulher que tinha filhinha com esprito impuro. Esta primeira parte do versculo

    inicia com a conjuno adversativa all' (mas/porm), indicando que Jesus no vai passar despercebidamente. O advrbio temporal euthus (imediatamente/logo) sugere a urgncia do encontro da mulher com Jesus. Assim, ao mesmo tempo em

    que se d uma ruptura com o versculo anterior, no sentido de que o desejo de

    Jesus de permanecer sozinho no se concretiza, existe uma continuidade entre

  • 52

    ambos na medida em que se revela quem romper o isolamento de Jesus: a

    mulher.

    Akousasa (tendo sabido), tal como as formas verbais anastas (tendo sado) e eiselthon (tendo entrado) no v. 24, est no particpio aoristo ativo, e indica que a fama de Jesus e sua chegada j eram conhecidas.

    A filha da siro-fencia tem um pneuma akatharto (esprito impuro). Segundo Guelich (1989, p.385), ao dizer que a enfermidade da criana era gerada por um esprito impuro, Marcos reporta-se forma judaica de descrever o mal, o que pode ser uma maneira de reforar a coeso do captulo 7 em torno das prticas rituais

    de pureza. Akatharton (impuro) o adjetivo que caracteriza o tipo de esprito que est na menina.

    No v. 25b tendo chegado se prostrou aos ps dele, a forma verbal

    elthousa (tendo chegado), no particpio aoristo ativo, e prosepesen (prostrou-se), no indicativo aoristo ativo, descrevem as aes da mulher: tendo chegado,

    prostrou-se.

    O substantivo pous, na forma podas, indica o local da prostrao: aos ps

    de Jesus. Esta mesma ao se repete nas cenas de Jairo 5,22 e da mulher

    hemorrossa 5,33 (GUELICH, 1989, p. 385).

    c) Versculo 26: A mulher era grega, siro-fencia por nascimento. E rogava-lhe para que expulsasse o demnio de dentro de sua filha.

  • 53

    O v. 26 d continuidade ao v. 25. Ele pode ser visto como um versculo

    enftico em relao ao anterior ao continuar descrevendo as caractersticas da

    mulher e o pedido da cura de sua filha possuda por um esprito impuro.

    No v. 25, fora dito que a mulher era de Tiro. No v. 26, acrescenta-se que ela

    era grega, siro-fencia de nascimento, dissipando-se qualquer dvida quanto sua

    origem. A mulher que se dirige a Jesus, alm de viver em territrio gentio,

    realmente uma mulher que (...) fala e educada a partir da cultura grega

    (GUELICH, 1989, p.385), embora isto no a impea de ser adepta e praticante da f judaica.

    No v. 26, o substantivo daimonion corresponde expresso pneuma

    akatharton, que caracterizava, no v. 25, o mal que afligia a criana. Mantm-se,

    portanto, a coeso.

    O v. 26 coeso em si mesmo e suas amarras so feitas pelas conjunes kai (e) e hina (a fim de) na medida em que introduzem e explicitam o motivo da prostrao da mulher aos ps de Jesus.

    d) Versculo 27: E dizia a ela: deixa primeiro serem saciadas os filhos. Porque no bom tomar o po dos filhos e para os cachorrinhos jogar.

    Este versculo apresenta mudanas significativas: do discurso indireto

    passamos ao direto (dilogo); o sujeito, que era a mulher, agora Jesus; (v.25.26); e o tema do pedido de cura substitudo pelo tema da saciedade mesa.

  • 54

    O v. 27 inicia com a conjuno kai (e, mas), que indica mudana de personagem e uma possvel contra-argumentao fala anterior da mulher.

    Vejamos como se estabelece esta tenso. Elegen (dizia) est no indicativo imperfeito ativo e tem como sujeito Jesus.

    Esta forma verbal indica uma ao contnua no passado: ele dizia ou estava

    dizendo.

    A forma estin () est no indicativo presente ativo do verbo eimi, denotando tambm uma ao contnua, porm no presente. O sentido de ao em

    andamento em ambos os verbos confere movimento cena e atualiza o conflito

    em discusso na comunidade de Marcos, no caso, o direito ao po.

    Aphes (deixa), imperativo aoristo ativo do verbo aphiemi, traduz o sentido de obrigatoriedade da sentena seguinte, ou seja: o direito ao po caberia, indiscutivelmente, primeiro aos filhos, e no aos cachorrinhos.

    Chortasthenai (serem saciadas), no infinitivo aoristo passivo, labein (tomar) e balein (jogar), ambos no infinitivo aoristo ativo, asseguram a coeso interna do versculo ao se reportarem ao conflito em torno do po.

    Tekna/teknon (filho), arton (po) e kynariois (cachorrinhos) so complementos verbais e mantm entre si a mesma idia de oposio expressa

    pelos verbos acima citados, ou seja: filho e po esto para saciedade (serem saciadas), assim como cachorrinhos, subentendemos, est para no-saciedade (tomar e jogar).

    Tambm os adjetivos prton e kalon (primeiro e bom) reforam a hierarquia no direito ao po: aos filhos assegurada a primazia, enquanto aos cachorrinhos

    caberia um segundo lugar.

  • 55

    A conjuno kai (e/mas) aparece duas vezes no v. 27. Na primeira, faz a ligao com o versculo anterior ao introduzir a resposta de Jesus ao pedido da

    mulher; na segunda, estabelece a oposio entre os substantivos teknon e

    kynariois. Teknon (filhos) aparece na primeira parte do versculo e aparecer novamente na segunda.

    O substantivo teknon utilizado neste versculo para falar de filhos ou

    crianas. Nos v. 25 e 26 fora usado o termo thygatrion. Trata-se de dois

    substantivos distintos que, embora se refiram genericamente ao conceito de

    criana ou filho/a, apresentam nuances prprias.

    e) O versculo 28: Ela ento respondeu e diz: Senhor, mas os cachorrinhos debaixo da mesa comem das migalhas das crianas.

    O v. 28 d continuidade ao v. 27, e os dois apresentam o tema central da

    narrativa: a incluso dos gentios na comunidade, a partir do dilogo entre Jesus e

    a mulher.

    O v. 28 inicia com o artigo feminino singular he (a) e a conjuno de (ento, porm), de forma semelhante ao v. 26. E apresenta uma sintaxe semelhante ao v.

    27: a conjuno kai (ento, porm), o verbo lego na terceira pessoa do singular (embora em tempos diferentes) e o pronome pessoal de terceira pessoa (aute e auto). A mulher retoma a palavra, mostrando-se que a resposta de Jesus no encerrou o dilogo.

    A coeso do versculo garantida, de modo especial, pela relao entre os

    substantivos e as preposies. Diramos que as preposies estabelecem

    diferenas quanto posio mesa (trapeza). A preposio hypokato (debaixo)

  • 56

    relaciona-se com kynariois e psichion na medida em que cachorrinhos e migalhas

    esto debaixo da mesa, enquanto a preposio apo (da parte de, de) relaciona-se com paidion visto que as crianas esto mesa.

    A conjuno kai (e/mas) aparece duas vezes: no incio da frase, estabelecendo a ligao entre apekrithe (respondeu) e legei (diz), e no incio da argumentao da mulher, marcando a oposio de suas idias.

    Apekrithe (respondeu), no indicativo aoristo passivo depoente, indica uma ao no passado com sentido ativo, e legei (diz), no indicativo presente ativo, atualiza a memria do passado para o presente -, enfatizando a resposta da

    mulher. A redundncia na afirmativa ela respondeu e diz traz o propsito da

    discusso para o presente. Trata-se de discutir no um problema do passado, mas

    algo que atinge a comunidade concreta dos anos 70 d.C. Neste sentido, esthiousin

    (comem) tambm est no indicativo presente ativo.

    f) O versculo 29: E disse a ela: por causa desta palavra vai. O demnio j saiu de dentro de sua filha.

    O dilogo entre Jesus e a mulher chega ao fim, e Jesus se d por vencido

    aps a consistente argumentao da siro-fencia.

    A conjuno kai (e/mas) e o verbo lego (na forma eipen, indicativo aoristo ativo) fazem a ligao com o versculo anterior.

    Num primeiro momento, temos a sensao de que o dilogo continuar

    com uma nova resposta de Jesus mulher, mas a forma verbal hypage,

    imperativo presente ativo do verbo hypago, determina o fim da discusso em tom

  • 57

    sentencial: vai. uma ordem, um veredicto. Portanto, a deciso tomada deve ser

    levada em conta no presente da comunidade, como se dissssemos: assim fica

    decidido.

    O modo imperativo aparece somente mais duas vezes em Marcos: em 2,11:

    levanta-te, toma o teu leito e vai para tua casa; e em 5,19: Vai para tua casa e

    para os teus.... Nas trs ocasies em que aparece, ocorre aps episdios de

    cura, na primeira parte do evangelho de Marcos (1,1-8,26).

    A preposio ek (de dentro de, de) liga thygatros a daimonion: o demnio saiu de dentro da filha. E a preposio dia (por causa de, a favor de, pelo amor de) liga-se ao substantivo logos (logon: palavra): ela obtm a cura da filha por causa da sua palavra.

    O v. 29 conclui a conversa entre Jesus e a mulher, retomando de uma s

    vez os dois temas da narrativa. Funciona, portanto, como um versculo-

    dobradia: fecha o tema dos v. 27 e 28 sobre a saciedade mesa, ou seja, a

    incluso dos gentios; e volta ao tema dos v. 25 e 26 sobre a cura. Caminhamos

    para o fim da narrativa.

    f) O versculo 30: E tendo partido para sua casa, encontrou a criana tendo sido lanada sobre a cama e o demnio tendo sado dela.

    O v. 30 conclui a narrativa com o movimento de sada da siro-fencia em

    direo sua casa.

    A conjuno kai (e/mas) faz a ligao com os versculos anteriores e indica o incio de uma nova ao.

  • 58

    A preposio eis (para dentro de) indica a direo tomada pela mulher: ela foi para a sua oikos (casa).

    A preposio epi (sobre) liga-se ao verbo ballo (na forma beblemenon: tendo sido lanada) e ao substantivo kline (na forma klinen: cama): a siro-fencia encontra a filha lanada sobre a cama. Ao mesmo tempo, podemos dizer que epi

    ope-se, de certa forma, preposio ek (de dentro para fora), que aparece como prefixo na composio do verbo eks-erchomai, pois a filha lanada sobre a cama

    est dentro de casa, enquanto o demnio foi posto para fora da menina, e,

    conseqentemente, da casa.

    Apelthousa (tendo partido) est no particpio aoristo ativo e ekselelythos (tendo sado) no particpio perfeito ativo: a mulher sai em direo sua casa, o demnio sai de sua filha.

    Paidion (criana) corresponde a teknon/tekna e thygatrion/thygatros, formas utilizadas nos v. 25.26.27. Este substantivo apareceu pela primeira vez na

    narrativa no v. 28, na boca da mulher.

    O v. 30 encerra a narrativa da siro-fencia. Jesus permanece dentro da

    casa. No v. 31, ele novamente se pe a caminhar em territrio gentio e realiza a

    cura de um surdo-gago (7,31-36).

  • 59

    3.5.2 Coeso entre os versculos

    De acordo com a anlise dos versculos, percebemos que alguns

    apresentam subdivises internas e outros formam um bloco coeso. A seguir,

    veremos como se d a coeso dos versculos entre si e a unidade do texto como

    um todo.

    O v. 24 introduz uma nova histria, mantendo, porm, a ligao com o bloco

    anterior (6,53). Jesus sai de uma casa (7,17), ultrapassa as fronteiras de Tiro e volta a entrar em uma casa (7,24). O movimento de dentro para fora e de fora para dentro. Jesus est em movimento. Depois, ele entra numa casa. O

    movimento pra. Na casa, Jesus quer ficar sozinho, permanecendo oculto (7,24): pois ele no queria ser reconhecido por ningum.

    O v. 24 liga-se ao v. 25 por meio da conjuno all' (mas, logo) e do advrbio euthys (imediatamente). A conjuno estabelece a ligao com o versculo anterior por oposio: Jesus no queria que ningum soubesse, mas chega uma

    mulher. O advrbio, por sua vez, tem a funo de mostrar a conexo (temporal)

    entre unidades narrativas (POHLMANN, 1996, p.1662). Este mesmo advrbio foi

    usado por Marcos em 14,72.

    No v. 25, apresenta-se, ento, a nova personagem, a mulher, que ir

    interagir com Jesus, a princpio, pedindo-lhe a cura da sua filha.

    O v. 26 inicia com o artigo he (a) e a conjuno de (ento, contudo, porm), dando seqncia ao v. 25 ao especificar os atributos da mulher e confirmar que

  • 60

    ela realmente uma gentia, grega, siro-fencia de nascimento. Na segunda parte

    do v. 26, temos o pedido da mulher em favor de sua filha.

    A coeso entre os v. 25 e 26 garantida tambm, por um lado, pela

    repetio dos substantivos gyne (mulher) e thygater em ambos os versculos. O substantivo thygatrion (no diminutivo: filhinha) aparece no v. 25, e thygater (na forma thygatros) nos v. 26 e 29. E, por outro, pela correspondncia entre a expresso pneuma akatharton (esprito impuro) no v. 25, e o substantivo daimonion (demnio) no v. 26, ambos caracterizando o mal pelo qual a filha atormentada.

    Akousasa (tendo sabido), elthousa (tendo chegado), e prosepesen (prostrou-se), no v. 25, e erota (rogava-lhe), no v. 26, possuem o mesmo sujeito: a mulher. A ligao entre os v. 26b e v. 27 se d pelo uso da conjuno kai (e).

    O v. 27 contm duas sentenas. A primeira : E dizia a ela: deixa primeiro

    serem saciadas os filhos. E a segunda: Porque no bom ser tomado o po dos

    filhos para os cachorrinhos ser jogado. A coeso entre ambas sinalizada no texto pelo uso da conjuno gar (porque/pois) e do advrbio de negao ou (no). Portanto, a segunda sentena contm o argumento da primeira, justificando-a.

    O v. 28 apresenta a resposta da mulher afirmao de Jesus no v. 27. O

    artigo feminino he (a), em oposio ao sujeito ele no v. 27, a conjuno de (ento, contudo/porm), a conjuno kai (e), o verbo lego (no v. 27: elegen; no v. 28: legei) e o pronome pessoal de terceira pessoa (no v. 27: aute; no v. 28: auto) fazem a ligao entre os v. 27 e 28.

  • 61

    At agora o texto nos falava do pedido da cura para a filha da siro-fencia.

    No entanto, no v. 27, aparecer o tema da saciedade mesa. H, de certa forma,

    uma ruptura na temtica da narrativa. A alterao do tema se d especialmente

    pelo uso dos substantivos artos (po), trapeza (mesa), psichion (migalha) e kynarion (cachorrinho). Tais substantivos s aparecem nos v. 27 e 28.

    O substantivo tekna (filho), no v. 27, s aparece na boca de Jesus; no v. 28, na boca da mulher, temos um substantivo correlato, paidion (criana), embora com sentido prprio.

    Os verbos e as preposies utilizadas tambm conferem harmonia e

    coeso ao dilogo: e dizia a ela (v. 27) e ela ento respondeu e diz (v. 28). Elegen (dizia), apekrithe (respondeu) e legei (diz) introduzem o dilogo entre Jesus e a siro-fencia, enquanto chortasthenai (serem saciadas), esthiousin (comem), labein (tomar), balein (jogar) acompanham o movimento do po, que pode saciar tanto os que esto mesa quanto os que esto debaixo dela.

    O adjetivo prton (primeiro) s aparece no v. 27, na fala de Jesus. A conjuno kai, com valor adversativo, marca a objeo da mulher (mas os cachorrinhos comem das migalhas).

    Os v. 27 e 28 formam uma unidade coesa e constituem o centro da

    narrativa.

    O v. 29 encerra o dilogo entre Jesus e a mulher. A ligao com o versculo

    anterior se faz pelo uso da conjuno kai (e), sugerindo que Jesus ter um novo argumento em resposta mulher: e disse a ela.

  • 62

    Alm da conjuno, o substantivo logos (palavra) no v. 29 reporta-nos s palavras da mulher no versculo anterior: Senhor, mas os cachorrinhos comem

    debaixo da mesa das migalhas das crianas. Hypage (partir, retirar-se), no imperativo presente ativo, finaliza ento o dilogo de forma sentencial: vai, o

    demnio j saiu de dentro de sua filha.

    O v. 30 conclui a narrativa com a volta da mulher para sua casa, onde

    encontra sua filha curada.

    A conjuno Kai (e, mas) estabelece a ligao com o v. 29: aps a ordem de Jesus, a mulher retorna sua casa. Apelthousa (tendo partido), no particpio aoristo ativo, e a preposio eis (para, em direo) reforam a idia de sair e a direo tomada pela mulher: ela partiu em direo sua casa.

    3.5.3 Coeso de toda narrativa

    Observando a dinmica do texto, podemos dizer que a narrativa da siro-

    fencia possuiu uma estrutura coesa, formada por duas unidades principais, com

    introduo e concluso.

    Apresenta dois temas a cura da criana e a saciedade mesa