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OS CAMPOS DE MIRANDA NO OITOCENTOS: OCUPAÇÃO E LEGALIZAÇÃO
DAS TERRAS.
ELAINE APARECIDA CANCIAN DE ALMEIDA
Introdução
Na segunda metade do século 19, ocorreu a ocupação da região de Miranda, localizada
na província de Mato Grosso. Famílias oriundas de São Paulo, Minas Gerais e de Cuiabá, na
busca por glebas propícias à criação de animais, deslocaram-se em direção ao sul da província
de Mato Grosso, espalhando-se pelo território em questão. Com o passar dos tempos, os
grupos familiares ocuparam terras, formaram propriedades e legaram aos seus descendentes
extensas fazendas, cujas dimensões eram desconhecidas pelos administradores locais. Em
1850, a Lei nº 601 de 18 de setembro, seguida do Decreto nº 1318 de 30 de janeiro de 1854
impuseram aos proprietários rurais a execução da declaração de suas posses. Na época, houve
então o conhecido registro paroquial, quando os terratenentes do Brasil Império foram
obrigados a declarar as terras ocupadas, para registro e posterior medição e demarcação das
mesmas.
Para atender a legislação, um quantitativo de 64 posseiros registraram posses em
Miranda, porém a regularização de grande parte dessas propriedades ocorreu somente após o
estabelecimento da Lei estadual nº 20 de 9 de novembro de 1892. Desde então, os antigos
posseiros e ou seus herdeiros se empenharam na abertura de processos para legalização dos
campos ocupados. Nesse momento, estratégias foram praticadas, com o objetivo de garantir a
permanência do poder sobre as terras apossadas. Assim, o trabalho em questão discutirá
alguns resultados da investigação sobre a ruralidade do território de Miranda no Oitocentos,
executada no curso de doutorado em História da Universidade Federal da Grande Dourados.
Palavras-chave: Miranda; Ruralidade; Legalização de terras.
Rumo ao “paraíso”
No século 19, aproximadamente nos anos 1830, migraram para o território de
Miranda, localizada na província de Mato Grosso, algumas famílias oriundas de outras partes
do Brasil. A primeira corrente de migrantes a deslocar-se em direção à região em questão
Professora Doutora do Curso de História do Campus do Pantanal da Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul-CPAN/UFMS. E-mail: [email protected]
2
procedeu de Cuiabá, capital da província mato-grossense. Conforme a historiografia regional,
em 1833, certas famílias assentaram-se nos campos banhados pelos rios Aquidauana,
Miranda, Negro, e Taquari localizados no extenso distrito de Miranda1. Em 1833, alguns
ocupantes de terras como Caetano da Silva Albuquerque, João Canuto Cordeiro de Faria, João
de Faria Velho, João Mamede Cordeiro de Faria, Luiz Generoso de Albuquerque, Maria
Domingas de Faria e Salvador Luiz dos Santos encontravam-se na região. No ano seguinte,
1834, Braz Pereira Mendes e o major João José Gomes também mantinham posses nos
campos da região. Comumente, nessa época, esteve estabelecido Salvador Luiz dos Santos.
Com o passar dos anos, demais famílias cuiabanas procuraram terras para se assentar. Entre
os anos 1838 e 1848 ocuparam posses Agostinho Joaquim Coelho, Antônio de Arruda Fialho,
José Alves Ribeiro, Valério de Arruda Botelho, entre outros. (ALMEIDA, 1951, p. 227-233).
Para o advogado e jornalista Mario Monteiro de Almeida, autor de Episódios
Históricos da Formação Geográfica do Brasil. Fixação das raias com o Uruguai e o
Paraguai, 1951, os migrantes de Cuiabá, “e adjacências buscaram fixar-se de preferência ao
sul do Taquari e ao norte do Miranda”. (ALMEIDA, 1951, p. 229).
Relativo à segunda corrente migratória, procedeu das províncias de Minas Gerais e
São Paulo. As famílias geralistas e paulistas ao penetrarem em terras mato-grossenses
fundaram o povoado de Santana de Paranaíba e no decorrer dos tempos expandiram-se em
direção ao distrito de Miranda e, à medida que ocuparam terras, formaram propriedades
rurais. Entre os posseiros espalhados é possível citar Francelino Rodrigues Soares, Hipólito
José Machado, Jacinto José Ferreira, João José Pereira, Joaquim Felizardo Corrêa e Manoel
Francisco Machado. (ALMEIDA, 1951, p. 230).
As duas correntes migratórias ao expandirem-se por meio da execução dos
apossamentos de terras e formação de extensas propriedades rurais, encontraram-se no distrito
de Miranda. Aproximadamente no anos de 1844, houve o contato dos migrantes de diferentes
origens. De acordo com Mario Monteiro, a aproximação ocorreu “no vale do Miranda e dos
1 O Distrito de Miranda, no Oitocentos, foi o sétimo distrito da província de Mato Grosso. Criado através da Lei
provincial nº 11 de 26 de agosto de 1835, esteve subordinado à Primeira Comarca de Cuiabá. Apresentava-se em
extenso território que compreendeu a extensão geográfica do rio Paraguai ao Paraná. Era banhado por muitos
rios e algumas localidades como: Acampamento de Bela Vista, Coimbra, Colônias de Miranda e Dourados,
freguesia de Miranda, Olimpo, povoados de Albuquerque e Nioaque, e também, muitas fazendas antigas.
(CARTA, 1864).
3
tributários de sua margem direita, a sudeste do presídio”. (ALMEIDA, 1951, p. 230). Vale
explicar que a proximidade dos grupos migrantes, pontuada pelo referido autor, ocorreu
devido à facilidade de “fazer posses”, na época, um costume comum no Brasil desde o
período colonial. A posse livre de terra esteve presente em todo o território brasileiro e
concomitante à forma de apropriação territorial oficial, estabelecido pela Coroa portuguesa e
regulamentado por legislação e decretos específicos. No entanto, desde que D. Pedro
estabeleceu a provisão de 14 de março de 1822, a qual permitiu a permanência dos posseiros
nas terras em processo de cultivo e a resolução de 17 de julho do mesmo ano, que
interrompeu a ocupação de terras por meio do sistema sesmarial, ocorreu, então, a
intensificação do apossamento livre.2
Nas glebas ocupadas pelos migrantes, por meio do apossamento livre, imensas
fazendas foram formadas, cujas extensões apesar de desconhecidas numericamente pelos
ocupantes, tinham suas divisas respeitadas pelos confrontantes. A partir da ocupação original,
da expansão das glebas por espaços considerados devolutos e da dispersão dos membros
familiares dos primeiros ocupantes “não nativos”, houve então, no distrito de Miranda, o
“encontro” dos migrantes.
As terras do distrito de Miranda concebidas como devolutas, por parte dos “não
nativos”, apresentavam natureza propícia aos estabelecimentos agropastoris, um verdadeiro
“paraíso” dotado de água, barreiros e gramíneas favoráveis à criação e manutenção dos
animais. Além de extensas terras com pastagens nativas, existia na região grande quantidade
de vacuns e cavalares selvagens.
Para o historiador sul-mato-grossense Paulo Marcos Esselin, no texto A pecuária
bovina e o processo de ocupação do Pantanal Sul-mato-grossense, 2009, o gado em estado
selvático foi elemento primordial na atração dos criadores rurais, porque “[...] com esses
animais foi possível organizar as primeiras propriedades: o gado foi sendo amansado, o couro
2 Uma discussão mais aprofundada relativa ao sistema sesmarial e o apossamento livre de terras pode ser
verificada em: MOTTA, Márcia Maria Menendes. Sesmarias e o mito da primeira ocupação. Revista Justiça &
História, Rio Grande do Sul, v. 4, n.7, p. 01-17, 2004. Disponível em:
http://www.tjrs.jus.br/site/poder_judiciario/historia/memorial_do_poder_judiciario/memorial_judiciario_gaucho/
revista_justica_e_historia/. Acesso em: fevereiro de 2013; ORTIZ, Helen. S., A apropriação da terra no Brasil:
da lei de sesmarias à lei de terras (1532-1850). In: MAESTRI, M.; LIMA, Solimar O., Peões, vaqueiros &
cativos campeiros. Estudos sobre a economia pastoril no Brasil, 2010; SILVA, Ligia Osorio. Terras devolutas e
latifúndio. 2. ed. Campinas-SP: EdUnicamp, 2008.
4
era a principal mercadoria de troca e a carne seca também oferecia alguns recursos para os
pioneiros”. (ESSELIN, 2009, p. 317-318). E ainda que determinadas áreas ocupadas
alagassem anualmente, os posseiros não desistiram das atividades criatórias. Na verdade,
adequaram-se às novas condições naturais. Assim, na época do alagamento das posses, os
proprietários rurais deslocavam o gado para áreas não alagáveis e, terminado o período das
chuvas, conduziam os animais de volta aos campos, cujos pastos reapareciam viçosos.
(CORRÊA FILHO, 2002. p. 338)
“Senhores” das terras
A ocupação dos campos e a fundação de propriedades rurais no distrito de Miranda
durante o Oitocentos ocorreu, predominantemente, através do procedimento de apossamento
livre com a escolha e marcação espacial das glebas “a olho”. Os migrantes adentravam os
sertões, acompanhando o percurso dos rios. Observavam os terrenos, escolhiam as áreas e
aproveitando as peculiaridades naturais marcavam as extensões desejadas. Morros, rios e
estacas de madeiras serviam à rústica demarcação. Livres de qualquer lei, decreto ou aviso
extensas propriedades foram fundadas. Logo, a demarcação “a olho” esteve condicionada à
disposição dos entrantes em percorrerem no lombo de um cavalo, ambientes inóspitos com
matas fechadas, ou na proa de uma canoa por caminhos fluviais navegáveis “observando a
qualidade do solo e do capim, a existência de salinas, água ou até mesmo a proximidade de
gado alçado e, sobretudo, os acidentes geográficos, importantíssimos para o reconhecimento
posterior das extensões escolhidas”. (ALMEIDA, 2014, p. 218). As terras eram ocupadas de
modo imediato, através da elevação de moradias e plantação de roças, ou deixadas para
servirem de negociação ou presente para amigos, compadres, conhecidos ou familiares.
A exemplo, a família de Maria Domingas de Faria ao entrar no distrito de Miranda, na
primeira metade do Oitocentos, escolheu terras às margens do rio homônimo espalhando-se
pela região. Assim, o filho de Maria Domingas, Caetano da Silva Albuquerque e seus
sobrinhos João Canuto Cordeiro de Faria, João Mamede Cordeiro de Faria e Luiz Generoso
de Albuquerque formaram posses. Igualmente, a referida mulher, depois do falecimento do
esposo, fundou “fazendas à margem do Aquidauana, onde estabeleceu pôrto fluvial”.
(ALMEIDA, 1951, p. 228). É preciso ressaltar que em nossas investigações sobre o processo
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de ocupação, formação e legalização das terras de Miranda no século 19, encontramos outras
famílias de origem diversa, as quais estabelecidas no território ocuparam terras e fundaram
vastas propriedades rurais. Todavia, no presente ensaio, abordaremos somente alguns
posseiros da região.
No caso de Caetano da Silva Albuquerque, em 1833, já se encontrava estabelecido em
Miranda. Do enlace matrimonial com Anna Joaquina Gaudie da Silva Albuquerque nasceram
os filhos Anna de Albuquerque, Caetano da Silva Albuquerque Junior e Maria Augusta de
Albuquerque. Além de posseiro, carregou a patente de tenente de coronel e comandante da
guarda nacional no distrito de Miranda. Desempenhou também a função de subdelegado da
região, em um momento importante para a reorganização das posses no Brasil Império.
No decorrer dos tempos, ocupou terras e formou algumas propriedades rurais. Em
1854, após instituída Lei de Terras de 1850 e o decreto número 1.318 de 30 de janeiro de
1854, obrigando os posseiros a efetuarem declaração e registro para posterior medição e
demarcação das terras ocupadas, Caetano da Silva declarou possuir terra: “além do rio
Miranda, no lugar denominado Córrego” e concedida pelo presidente da província Resende
em 01-01-1840; “no lugar denominado Bananal”, cedida pelo finado major João José Gomes
em 02-05-1848; “no lugar denominado Córrego, além do rio Miranda” concedida pelo
presidente da província Resende em 1º de janeiro de 1840, finalmente, “no lugar denominado
Bananal” também cedida pelo finado major João José Gomes em 2 de maio de 1841.3
Interessante observar que as posses foram declaradas como concedidas. A considerar os
estudos de Mario Monteiro, vários familiares do referido e, inclusive ele, ocuparam,
livremente, terras na região. A própria mãe de Caetano da Silva, Maria Domingas de Faria, já
referida, teria fundado algumas fazendas. Todavia, na documentação que trata sobre os
terrenos sujeitos à revalidação e legitimação de Miranda, 1854, não constam informações de
que as posses foram ocupadas, tampouco a extensão e a localização exata das mesmas.
(INFORMAÇÃO, 1854).
Caetano da Silva faleceu em 22 de abril de 1898, sem testamento. Na ocasião, o genro
João Batista Ribeiro, casado com Anna de Albuquerque Ribeiro, procedeu à abertura do
3 Informação sobre o Regulamento da Lei nº 601 de 18 de setembro de 1850 dos terrenos devolutos que se
acham sujeitos à revalidação; Informação das posses que estão sujeitas à legitimação. Miranda 05-12-1854.
Arquivo Estadual de Mato Grosso-Cuiabá-MT. Caixa 13, n. 750.
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processo de inventário dos bens. Através do documento em questão, é possível observar que
na época a família desfrutava de somente uma posse de terras chamada Pulador, localizada na
margem esquerda do ribeirão Betione, avaliada em 5:000$000 réis. Além da propriedade,
cujas dimensões não foram registradas, foi legada uma casa na vila de Miranda e uma
pequena quantidade de cabeças de gado. Oitenta e sete bovinos e dois cavalares foram
arrolados. Em bens móveis deixou diminuta mobília; uma mesa de jacarandá com gaveta e
uma mesa pequena de cedro, alguns instrumentos usados no campo; quatro cangas, quatro
arreios campeiros, três tachos, duas alavancas, um alambique de cobre e um forno de cobre e
objetos como, cinco garrafões sem capa, um par de castiçal de prata e um relógio.
(INVENTÁRIO, 1898).
A propriedade Pulador, não foi a única posse de domínio de Caetano da Silva. Além
das glebas declaradas em 1854, o terratenente em questão possuiu a fazenda Lauiad, depois
vendida em 5 de agosto de 1869, para Mamede João Cordeiro de Faria, pelo valor de
1:000$000 réis. Tratava-se de “[...] um pasto de criar sita no lugar denominado Lauyá (sic)
com extensão o dito pasto de três léguas mais ou menos de fundo, e duas e meia de largo mais
ou menos” [32.67 hectares]. (INVENTÁRIO, 1898).
Vale explicar que as terras da fazenda Lauiad foram escolhidas e demarcadas “a olho”
por Antônio Gonçalves Barbosa, mas depois doadas a Miguel Antônio da Silva que as ocupou
efetivamente em 1820, para o plantio de roças de cereais e a criação de animais vacuns e
cavalares. Tempos depois esteve sob o domínio de Caetano da Silva, o qual, por sua vez,
negociou-a com Mamede João, como referido. Em 1905, a propriedade foi medida e
demarcada com extensão de 25.384 hectares. Porém o título definitivo só foi concedido em 24
de março de 1919. (AUTOS, 1905).
Caetano da Silva também foi proprietário da antiga fazenda Aquidauana, “[...] uma
posse de terras pastais, de uma légua de frente e três de fundo mais ou menos, com cultura
efetiva e morada habitual”, e localizada à margem direita do rio Aquidauana e esquerda do rio
Negro, na época, pertencente ao município de Miranda. A propriedade possuiu dois retiros,
um chamado “ ‘retiro do Pantanal’, com rancho e curral para o trabalho com o gado existente
nos campos dela” e o outro denominado Trincheira, com ranchos e currais para a lida com o
gado. Suas terras eram aproveitadas para criação de gado vacum e cavalar e plantação de cana
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de açúcar, feijão e milho. As construções eram rústicas, cobertas com capim. (AUTOS, 1895,
p. 3).
Relativo ao proprietário de terras Mamede João Cordeiro de Faria, referenciado,
possuiu além da fazenda Lauiad, “uma parte de terras na fazenda Alinane”. Além disso, uma
casa edificada na vila de Miranda e outra em Nioaque. No inventário do casal, executado em
1894, constam em bens móveis dois tachos, um alambique pequeno, uma carreta, um engenho
de madeira e dois tachos. A considerar tais objetos, é possível considerar que na propriedade
Lauiad houvesse produção de açúcar, aguardente e rapadura para o próprio consumo da
família. (INVENTÁRIO, 1894).
No processo registraram 957 cabeças de gado, ou seja, 828 bovinos e 130 cavalares,
com o valor de 12:510$000 réis. Vale ressaltar o baixo valor das terras no período. A fazenda
Lauiad foi avaliada em 5:000$000 réis e a “parte de terras” da Alinane, 500$000. O valor das
terras somado aos bens móveis e demais, de raiz, não superaram os semoventes.
(INVENTÁRIO, 1894).
Entre outros posseiros da região, destacamos João Gonçalves Barbosa, devido à
quantidade de terras ocupadas. Por meio da análise documental referente aos anos de 1870,
verificamos que o proprietário em questão ocupou a maior quantidade de posses na região.
Em 1877, sob seu poder, encontramos quatro propriedades: uma sesmaria de criar e cultura
chamada Desbarrancado, uma sesmaria de criar denominada Jardim, um campo de criar no
lugar Santa Rita da Estiva e um terreno situado na serra Boa Vista. Conforme registros do
inventário, a primeira posse referida tinha “seis léguas mais ou menos de largura e três de
comprimento” [78.408 hectares aproximadamente] e estava localizada “ao Norte com a
fazenda de José Felizardo Corrêa, ao Sul, com a fazenda de Antônio Candido de Oliveira, ao
Poente, com a fazenda denominada Santa Rita e ao Nascente, com Nicoláo Tolentino dos
Santos”. (INVENTÁRIO, 1877).
A sesmaria Jardim estava localizada no segundo distrito de Nioaque. A mesma possuía
extensão de “quatro léguas mais ou menos de largura e três mais ou menos de comprimento”,
[52.272 hectares aproximadamente]. Limitava-se “pela parte do norte com José Felisardo
Corrêa, ao Sul com o Ribeirão Prata, ao Poente pelo veio do rio Miranda, ao Nascente com
Santa Rita da Estiva”. Foi avaliada em vinte e quatro mil réis [24$000 réis]. (INVENTÁRIO,
8
1877).
O campo de criar, denominado Santa Rita da Estiva, possuía uma área de “três léguas
mais ou menos de largura, com fundos correspondentes [39.204 hectares aproximadamente],
limitando ao Norte com José Felizardo Corrêa, ao Sul com Antônio Candido de Oliveira, ao
Poente com a fazenda Jardim e ao Nascente com a fazenda Desbarrancado. Existia, neste,
monjolo e rego d’água. O valor da posse foi descrito em 130$000 réis. Relativo ao terreno
“em cima da serra denominado Boa Vista com quatro léguas mais ou menos de largura e seis
de comprimento” [104.544 hectares aproximadamente] estava localizado “ao Nascente com
terras devolutas, ao Norte pelo veio da Vacaria, ao Poente com a fazenda de Ignácio
Gonçalves Barbosa e ao Sul pelo veio do rio Brilhante”. Neste, a família mantinha o cultivo
de alimentos. O mesmo foi avaliado em 130$000 réis. (INVENTÁRIO, 1877).
As confrontações apresentadas, ainda que imprecisas, mostram que as propriedades
eram contíguas. Assim, a sesmaria Desbarrancado como visto, confinava ao Nascente e
Poente com Santa Rita da Estiva. E a posse Jardim estava localizada ao Nascente com Santa
Rita da Estiva. E, apesar das áreas declaradas resultarem na extensão aproximada de 274.428
hectares, é bem provável que, na realidade, alcançassem dimensões maiores. Nelas, eram
criados animais vacuns e cavalares.
Em 1877, quantidade diminuta de gado vacum e cavalar era mantida por João
Gonçalves. Eram trinta e oito animais: 25 reses de corte, avaliadas a 500$000 réis, quatro
vacas com cria, vinte e oito mil réis [28$000], três poldros de dois anos, a 60$000 réis, duas
éguas com crias, 80$000 réis; dois bois de corte, 73$000 réis; um cavalo de serviço, setenta
mil réis 70$000 réis e, finalmente, um cavalo pastor, 90$000 réis.
Dividir para legalizar
Em 1892, no governo de Manoel José Murtinho, foi estabelecida a primeira lei de
terras do estado de Mato Grosso. A Lei nº 20 de 9 de novembro proibiu, desde então, a
ocupação de terras e determinou a revalidação e legitimação das posses. Para a execução da
legislação em questão, o governo instituiu o Decreto nº 38 de 15 de fevereiro de 1893 para
regulamentar: a responsabilidade da Repartição das Terras Públicas, a execução das medições
das terras públicas; as posses dispensadas e as sujeitas à legitimação e revalidação; a venda
das terras devolutas, a reserva de terras e, finalmente, o processo de registro das propriedades.
9
Conforme Gislaene Moreno, em Terra e Poder em Mato Grosso, 2007, o decreto seguiu: “os
princípios norteadores da Lei imperial de terras nº 601 50 de 1850 e de seu regulamento nº
1318/54, no que se refere às questões de regularização da propriedade territorial e da política
de mão de obra, [...]”. (MORENO, 2007, p. 67). Assim, os legisladores mato-grossenses,
semelhantes aos demais membros das câmaras legislativas de outros estados brasileiros, não
se desvencilharam das obrigatoriedades previstas na antiga legislação imperial, ainda que no
passado os posseiros tivessem resistido ao processo de legalização das terras ocupadas.
Depois de promulgada a lei estadual nº 20 de 9 de novembro de 1892, os ocupantes de
terras mato-grossenses atuaram no processo de legalização das terras, fazendo uso de
determinadas estratégias, com o objetivo de garantirem a permanência do poder sobre as
mesmas. Desde então, interpretações individuais da lei, desrespeito às normatizações e a
invenção de documentos foram postos em marcha.
Ao analisarmos os processos de medição e demarcação de algumas propriedades do
município de Miranda, percebemos que a legalização das terras locais esteve entremeada por
práticas ilícitas, muitas delas repetidas em vários autos, cujo sentido não era outro senão
manobrar o processo de legalização das terras ocupadas. Nesse espaço, registraremos somente
o processo de legalização da propriedade denominada Aquidauana.
A posse Aquidauana
Em 1º de junho de 1895, o intendente geral interino de Miranda, Antônio Canale,
registrou: “[...] uma posse de terras pastais, de uma légua de frente e três de fundo mais ou
menos, com cultura efetiva e morada habitual”, localizada à margem direita do rio
Aquidauana e esquerda do rio Negro, no município de Miranda. Tratava-se, então, de uma
parte da fazenda Aquidauana, da qual se chegava, por meio de caminho aberto à fazenda Rio
Negro, propriedade de Cyriaco da Costa Rondon. (AUTOS, 1896, p. 3).
A posse Aquidauana constituía-se em uma das duas partes pertencentes à antiga
fazenda Aquidauana, já referenciado, de propriedade do capitão Caetano da Silva
Albuquerque, o qual a negociou com Cyriaco da Costa. No Quadro 1, expomos as
características das duas partes constituintes da fazenda Aquidauana, separadas no momento
do registro.
Quadro 1 - Fazenda Aquidauana de Cyriaco da Costa Rondon
10
Posse Data do
Registro Aquisição
Extensão
declarada
Localização Benfeitorias
Cuidada e
habitada
Atividade
ou cultura
Aq
uid
au
an
a
1-06-1895 Comprada
do capitão
Caetano da
Silva
Albuquerque
Uma légua
de frente e
três de
fundo mais
ou menos
Margem
direita do rio
Aquidauana
e esquerda
do rio Negro
Morada habitual
Retiro
“Pantanal”
Curral
Ranchos
Casa coberta de
capim
Preposto José
Marcelino de
Albuquerque e
camaradas
Criação de
gado vacum e
cavalar
Plantação de
cana, feijão e
milho
Ca
ran
dá
de
Ga
lho
1-06-1895 Comprada
do capitão
Caetano da
Silva
Albuquerque
Uma légua
de frente e
três de
fundo mais
ou menos
Margem
direita do rio
Aquidauana
e esquerda
do rio Negro
Retiro
“Trincheiras”
Ranchos
Currais
Não
informado
Criação de
gado vacum e
cavalar
Fonte: Autos de medição e demarcação da fazenda Aquidauana. Documento nº 57. Terceiro Distrito de Medição.
Município de Miranda. AGRAER-Campo Grande –MS.
Na posse Aquidauana havia o retiro do Pantanal, que possuía rancho e curral para o
trabalho com o gado vacum e cavalar, calculado em “mil e tantas cabeças”. (AUTOS, 1896, p.
07 verso). Também, casa coberta de capim. Suas confrontações eram: “ao norte com o rio
Negro; ao sul com o rio Aquidauana; ao nascente com a posse Carandá de Galho pertencente
ao requerente e ao poente com terras alagadiças inservíveis”. (AUTOS, 1896, p. 3 verso). A
posse em questão não confrontava com outras propriedades, a não ser do próprio Cyriaco da
Costa. Nesse caso, limitava-se com a Carandá de Galho, que se constituiu na outra parte da
antiga fazenda, também conhecida pelo nome de Aquidauana.
Em outra parte da propriedade, registrada com a denominação de Carandá de Galho,
havia um retiro chamado Trincheira, além de ranchos e currais para a lida com os animais.
Habitavam nas posses o “preposto Marcellino de Alcântara, além de alguns agregados”.
(AUTOS, 1896, p. 07 verso).
Os registros do processo de legalização evidenciam as estratégias de burla, mediante a
lei estadual de 1892, sob a conivência das autoridades locais. As posses Aquidauana e
Carandá de Galho, registradas separadamente, foram medidas e demarcadas juntas, sob a
denominação de fazenda Aquidauana e não poderia ser diferente, pois, na realidade, eram
uma só propriedade.
A propriedade Aquidauana possuía matas com madeiras de lei, como aroeira, cedro,
jatobá, entre outras. O proprietário habitava no local em casa coberta de capim, localizada a
150 metros do rio Negro. No local eram cultivadas roças de cana-de-açúcar, feijão e milho.
Existiam galpões e ranchos para a permanência dos camaradas e currais para a lida com o
11
gado. Havia também engenho de madeira para o beneficiamento da cana-de-açúcar. (AUTOS,
1896, p. 28 verso). Os camaradas viviam na propriedade e realizavam as atividades
cotidianas. Esses trabalhadores plantavam, colhiam, cuidavam do gado vacum e cavalar e
faziam o engenho rústico funcionar.
Vale explicar, sobretudo, que a maioria dos proprietários rurais da região de Miranda
mantinha, em suas propriedades, parentes e agregados ou ainda administradores, neste caso,
indivíduos de confiança, que habitavam e cuidavam das terras. Comumente, os prepostos,
pessoas nomeadas para dirigirem as atividades rurais.
Na planta da fazenda, concluída em 1897, observam-se dois caminhos, um direcionado
à fazenda Rio Negro, medida em 1896, e outro à fazenda Rebojo. Os dois caminhos se
interceptavam formando um só, cuja direção fluía ao retiro próximo às margens do rio
Aquidauana. A medição resultou em uma área de 40.383 hectares, cujos limites eram “ao N,
o rio Negro; ao S, o rio Aquidauana; a E a fazenda do Rebojo e a O, terras devolutas”.
(AUTOS, 1896, p. 26).
A análise da legislação do período indica que a posse Aquidauana estava enquadrada
no Artigo 5º parágrafo 2° da lei estadual nº 20 de 9 de novembro de 1892, pois tratava-se de
terras possuídas por “ocupação primária”, registrada conforme o decreto de número 1.318 de
30 de janeiro de 1854, depois negociada e que apresentava cultura efetiva (criação de animais,
engenho, plantações) e morada habitual (casas e ranchos para uso da família do proprietário e
dos trabalhadores). Sendo assim, e ainda conforme as normas vigentes, a posse nessa
condição não poderia exceder certo limite. No Artigo 8º parágrafo 2°, determinava que a
extensão “total das posses havidas por ocupação primária em virtude desta lei não poderá
exceder [...]; em campos de criação, 3.600 hectares;”. (LEI, 1892). Assim, Cyriaco da Costa
Rondon dividiu a extensa propriedade, para registro, em duas posses com a área de “uma
légua de frente e três de fundo mais ou menos” [13.068 hectares aproximadamente]. Mesmo
assim, as posses ultrapassavam os limites permitidos. No momento da medição, as posses
foram reunidas e demarcadas sob uma só denominação. Apesar das visíveis manobras e
desrespeito à legislação presentes nos autos de medição e demarcação, o processo foi
aprovado pela Diretoria de Terras do estado em 15 de julho de 1898.
Considerações finais
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Os apossamentos de terras realizados na região de Miranda, a partir do século 19,
permaneceram em sua maioria até a promulgação da lei estadual, com as fronteiras internas
imprecisas. Quando necessário, no caso da abertura de inventários post-mortem, os limites das
propriedades eram reconhecidos a partir dos proprietários de terras confrontantes, das
denominações de outras posses ou dos nomes de rios, morros e demais marcos geográficos.
As posses mesmo destituídas do necessário processo de medição e demarcação de
limites, exigido a partir da Lei de Terras de 1850, eram partilhadas aos herdeiros, ainda que
suas dimensões reais fossem desconhecidas. Como mostrado, as extensões quando registradas
eram acompanhadas da expressão ‘mais ou menos’, o que indica a ausência de conhecimento
preciso das dimensões das propriedades. Sendo assim, perpetuou no território em questão o
costume da ocupação livre de terras, marcação dos seus limites “a olho”, a partir de marcos
naturais e o registro da extensão das propriedades por dedução.
Finalmente, os “senhores” das terras depois de obrigados à execução dos processos de
medição e demarcação das posses ocupadas em atendimento a lei estadual nº 20 de 9 de
novembro de 1892, já no período da República, colocaram em prática novas estratégias para
permanecerem com o domínio sob as extensas propriedades, ainda que a legislação limitasse
as extensões de terras por proprietário rural. E assim, como já exposto, foi comum a divisão
das extensas propriedades em posses menores. Quanto mais extensa a fazenda, maior a
quantidade de posses gerada em diferentes documentos de registro, executados na Intendência
Municipal de Miranda, ou processos de medição e demarcação separados.
Fontes
Autos de medição e demarcação da posse Lauiad, 1905. Documento nº 179. Agência de
Desenvolvimento Agrário e Extensão Rural. Campo Grande-MS.
Autos de medição e demarcação das posses Aquidauana e Carandá de Galho, 1896.
Documento n° 57. Agência de Desenvolvimento Agrário e Extensão Rural. Campo Grande-
MS.
Carta Chorographica do Districto de Miranda na Provincia de Mato Grosso. Organizada pelo
Chefe de Esquadra Graduado Reformado Augusto Leverger, copiado pelo Cap. Antônio
Vilella de Castro Tavares, em 1871, colorido, nanquim, tinta colorida, aquarela, papel canson,
telado, bom estado, medindo 45 cm x 42 cm. Observações: 09.05.2053. Arquivo Histórico do
Exército (AHEx-Rio de Janeiro).
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Decreto nº 1318 de 30 de janeiro de 1854. Coleção das Leis do Império do Brasil de 1854.
Tomo VII, parte II. Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1855. Disponível em:
http://www2.camara.leg.br/atividadelegislativa/legislacao/publicacoes/doimperio/colecao5.ht
ml. Acesso em: 28-12-2011.
Decreto nº 38 de 15 de fevereiro de 1893. Livro 3. Decretos e Regulamentos-1892-1893.
Arquivo Público Estadual de Mato Grosso-Cuiabá-MT.
Informação sobre o Regulamento da Lei nº 601 de 18 de setembro de 1850 dos terrenos
devolutos que se acham sujeitos à revalidação; Informação das posses que estão sujeitas à
legitimação. Miranda 05-12-1854. Arquivo Público Estadual de Mato Grosso-Cuiabá-MT.
Caixa 13, n. 750.
Inventário: Caetano da Silva Albuquerque, 1898. Caixa 164/02. Arquivo e Memorial do
Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul. Campo Grande-MS.
Inventário: João Gonçalves Barbosa, 1877. Caixa 156/09. Arquivo e Memorial do Tribunal de
Justiça de Mato Grosso do Sul. Campo Grande-MS.
Inventário: Mamede João Cordeiro de Faria e Catharina Alves de Faria, 1894. Caixa 162/06.
Arquivo e Memorial do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul.
Lei nº 20 de 9 de novembro de 1892. Gazeta Official do Estado do Estado de Mato Grosso.
Anno 3º n. 3501. Sábado 12 de novembro de 1892. Arquivo Público Estadual de Mato
Grosso-Cuiabá-MT.
Lei nº 601 de 18 de setembro de 1850. Coleção das Leis do Império do Brasil de 1850. Tomo
XI, parte I. Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1850. Disponível em:
http://www2.camara.leg.br/atividadelegislativa/legislacao/publicacoes/doimperio/colecao5.ht
ml. Acesso em: 28-12-2011.
Referências
ALMEIDA, Elaine Aparecida Cancian de. Nos confins do sertão de Miranda: Ocupação da
terra, desenvolvimento econômico e relações de trabalho (1830-1892), 2014. Tese (Doutorado
em História). UFGD.
ALMEIDA, Mário Monteiro de. Episódios Históricos da Formação Geográfica do Brasil.
Fixação das Raias com o Uruguai e o Paraguai. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti, 1951.
ESSELIN, Paulo Marcos. A pecuária bovina e o processo de ocupação do Pantanal Sul-mato-
grossense. In: MAESTRI, Mário; BRAZIL, Maria do Carmo, (Orgs.). Peões, vaqueiros &
cativos campeiros. Estudos sobre a economia pastoril no Brasil. Passo Fundo: EdUPF, 2009.
MORENO, Gislaene. Terra e Poder em Mato Grosso. Política e mecanismos de burla -
1892-1992. Cuiabá-MT, Entrelinhas-EdUFMT, 2007.
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