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Como sociedade, dese- jamos não somente sobrevi- ver, mas viver com qualidade de vida, e porque não, com felicidade. E isto implica elen- carmos de forma ordenada os resultados mínimos a serem atingidos, com os processos decisórios correspondentes. Os Mandamentos abaixo elen- cados têm um denominador comum: todos já foram experi- mentados e estão sendo apli- cados em diversas regiões do mundo, setores ou instâncias de atividade. São iniciativas que deram certo, e cuja gene- ralização, com as devidas a- daptações e flexibilidade em função da diversidade planetá- ria, é hoje viável. Não temos a ilusão relativamente à distância entre a realidade política de hoje e as medidas sistematiza- das abaixo. Mas pareceu-nos essencial, de toda forma, elen- car de forma organizada as medidas necessárias, pois ter um norte mais claro ajuda na construção de uma outra go- vernança planetária. Não estão ordenadas por ordem de im- portância, pois a maioria tem implicações simultâneas e di- mensões interativas. Mas todos os mandamentos deverão ser EDIÇÃO ESPECIAL Abril de 2010 ÓRGÃO INFORMATIVO DA COORDENAÇÃO DE ECONOMIA DA FACULDADE DE EDUCAÇÃO SANTA TEREZINHA—FEST OS DEZ MANDAMENTOS O ECONOMISTA EDITORIAL NESTA EDIÇÃO O economista Ladislau Dow- bor expõe, em um artigo, intitulado “Dez mandamen- tos”, explicitando um a um, interpelando as ações das instituições econômicas e apontando para a necessida- de uma economia que leve em conta o ser humano. O mesmo postula que esta ci- ência só tem sentido se esti- ver a serviço da melhoria da qualidade de vida onde ele vive. Editor: Francisco Lima Soares Diagramação : Luciléia Lima Freire Equipe de apoio: Alberto Sérgio Maia da Silva, Kleber Alberto Lopes de Sousa * Por Ladislau Dowbor CONSELHO EDITORIAL MsC. Roza Maria Soares da Silva MsC. Francisco Lima Soares Esp. Kleber Alberto L. de Sousa Caro leitor, esta é uma edição especial de economia por ocasião de um artigo de grande relevância de um dos maiores economistas naturalizado brasi- leiro Ladislau Dowbor. Em sua sensibilidade econômica, utili- zando uma conjetura dos “dez mandamentos”, procura suscitar elementos éticos, enquanto pro- cedimento e conduta, sobre a possibilidade do indivíduo conci- liar a economia, em sua livre a- ção e, ao mesmo tempo propor- cionar maior satisfação ao mes- mo. Foto: José Bispo

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Como sociedade, dese-jamos não somente sobrevi-ver, mas viver com qualidade de vida, e porque não, com felicidade. E isto implica elen-carmos de forma ordenada os resultados mínimos a serem atingidos, com os processos decisórios correspondentes. Os Mandamentos abaixo elen-cados têm um denominador comum: todos já foram experi-mentados e estão sendo apli-cados em diversas regiões do mundo, setores ou instâncias de atividade. São iniciativas que deram certo, e cuja gene-ralização, com as devidas a-

daptações e flexibilidade em função da diversidade planetá-ria, é hoje viável. Não temos a ilusão relativamente à distância entre a realidade política de hoje e as medidas sistematiza-das abaixo. Mas pareceu-nos essencial, de toda forma, elen-car de forma organizada as medidas necessárias, pois ter um norte mais claro ajuda na construção de uma outra go-vernança planetária. Não estão ordenadas por ordem de im-portância, pois a maioria tem implicações simultâneas e di-mensões interativas. Mas todos os mandamentos deverão ser

EDIÇÃO ESPECIAL

Abril de 2010

ÓRGÃO INFORMATIVO DA COORDENAÇÃO DE ECONOMIA DA FACULDADE DE EDUCAÇÃO SANTA TEREZINHA—FEST

OS DEZ MANDAMENTOS

O ECONOMISTA

EDITORIAL

NESTA EDIÇÃO

O economista Ladislau Dow-bor expõe, em um artigo, intitulado “Dez mandamen-tos”, explicitando um a um, interpelando as ações das instituições econômicas e apontando para a necessida-de uma economia que leve em conta o ser humano. O mesmo postula que esta ci-ência só tem sentido se esti-ver a serviço da melhoria da qualidade de vida onde ele vive.

Editor: Francisco Lima Soares

Diagramação : Luciléia Lima Freire

Equipe de apoio: Alberto Sérgio Maia da Silva, Kleber Alberto Lopes

de Sousa

* Por Ladislau Dowbor

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CONSELHO EDITORIAL

MsC. Roza Maria Soares da Silva

MsC. Francisco Lima Soares

Esp. Kleber Alberto L. de Sousa

Caro leitor, esta é uma edição especial de economia por ocasião de um artigo de grande relevância de um dos maiores economistas naturalizado brasi-leiro Ladislau Dowbor. Em sua sensibilidade econômica, utili-zando uma conjetura dos “dez mandamentos”, procura suscitar elementos éticos, enquanto pro-cedimento e conduta, sobre a possibilidade do indivíduo conci-liar a economia, em sua livre a-ção e, ao mesmo tempo propor-cionar maior satisfação ao mes-mo.

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obedecidos, pois a ira dos ele-mentos nos atingirá a todos, sem precisar esperar a outra vida.

Considerando que a o-bediência à versão original dos Dez Mandamentos foi apenas aleatória, desta vez o Autor teve a prudência de acrescen-tar a cada Mandamento uma nota de explicação, destinada em particular aos impeniten-tes.

I – Não comprarás os Repre-sentantes do Povo

Resgatar a dimensão pública do Estado: Como po-demos ter mecanismos regula-dores que funcionem se é o dinheiro das corporações a regular que elege os regulado-res? Se as agências que avali-am risco são pagas por quem cria o risco? Se é aceitável que os responsáveis de um banco central venham das em-presas que precisam ser regu-ladas, e voltem para nelas en-contrar emprego?

Uma das propostas mais evidentes da última crise finan-ceira, e que encontramos men-cionada em quase todo o es-

pectro político, é a necessidade de se reduzir a capacida-de das corpora-ções privadas dita-rem as regras do jogo. A quantidade de leis aprovadas no sentido de redu-zir impostos sobre

transações financeiras, de re-duzir a regulação de banco central, de autorizar os bancos a fazerem toda e qualquer ope-ração, somado com o poder dos lobbies financeiros tornam evidente a necessidade de se resgatar o poder regulador do estado, e para isto os políticos devem ser eleitos por pessoas de verdade, e não por pessoas jurídicas, que constituem fic-ções em termos de direitos hu-manos. Enquanto não tivermos financiamento público das cam-panhas, políticas que represen-tem os interesses dos cida-dãos, prevalecerão os interes-ses econômicos de curto pra-zo, os desastres ambientais e a corrupção.

II – Não Farás Contas erradas As contas têm de refletir

os objetivos que visamos. O PIB indica a intensidade do uso do aparelho produtivo, mas não nos indica a utilidade do que se produz, para quem, e com que custos para o estoque de bens naturais de que o planeta dis-põe. Conta como aumento do PIB um desastre ambiental, o aumento de doenças, o cercea-mento de acesso a bens livres.

O IDH já foi um imenso avanço, mas temos de evoluir para uma contabilidade integra-da dos resultados efetivos dos nossos esforços, e particular-mente da alocação de recursos financeiros, em função de um desenvolvimento que não seja apenas economicamente viá-vel, mas também socialmente justo e ambientalmente susten-tável. As metodologias existem, aplicadas parcialmente em di-versos países, setores ou pes-quisas.

A ampliação dos indica-dores internacionais como o IDH, a generalização de indica-dores nacionais como os Cal-vert-Henderson Quality of Life Indicators nos Estados Unidos, as propostas da Comissão Sti-glitz/Sen/Fitoussi, o movimento FIB – Felicidade Interna Bruta – todos apontam para uma re-formulação das contas. A ado-ção em todas as cidades de indicadores locais de qualidade de vida – veja-se os Jackson-ville Quality of Life Progress Indicators – tornou-se hoje in-dispensável para que seja me-dido o que efetivamente inte-ressa: o desenvolvimento sus-tentável, o resultado em termos de qualidade de vida da popu-lação. Muito mais do que o pro-duto (output), trata-se de medir o resultado (outcome).

III – Não Reduzirás o Próximo à Miséria

Algumas coisas não podem faltar a ninguém. A pobreza crítica é o drama mai-

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a manutenção urbana, a poli-cultura alimentar. As famílias passam a poder viver decente-mente, e a sociedade passa a ser melhor estruturada e me-nos tensionada. Os gastos com seguro-desemprego se redu-zem. No caso indiano, cada vila ou cidade é obrigada a ter um cadastro de iniciativas in-tensivas em mão de obra. Di-nheiro emprestado ou criado desta forma representa investi-mento, melhoria de qualidade de vida, e dá excelente retorno. E argumento fundamental: as-segura que todos tenham o seu lugar para participar na cons-trução de um desenvolvimento sustentável.

Na organização econômi-ca, além do resultado produti-vo, é essencial pensar no pro-cesso estruturador ou deses-truturador gerado. A pesca o-ceânica industrial pode ser mais produtiva em volume de peixe, mas o processo é de-sastroso, tanto para a vida no mar como para centenas de milhões de pessoas que viviam da pesca tradicional.

A dimensão de geração de emprego de todas as inicia-tivas econômicas tem de se

or, tanto pelo sofrimento que causa em si, como pela articu-lação com os dramas ambien-tais, o não acesso ao conheci-mento, a deformação do perfil de produção que se desinteres-sa das necessidades dos que não têm capacidade aquisitiva.

A ONU calcula que cus-taria 300 bilhões de dólares (no valor do ano 2000) tirar da mi-séria um bilhão de pessoas que vivem com menos de um dólar por dia. São custos ridículos quando se considera os trilhões transferidos para grupos eco-nômicos financeiros no quadro da última crise financeira. O benefício ético é imenso, pois é inaceitável morrerem de cau-sas ridículas 10 milhões de cri-anças por ano.

O benefício de curto e médio prazo é grande, na me-dida em que os recursos dire-cionados à base da pirâmide dinamizam imediatamente a micro e pequena produção, agindo como processo anticícli-co, como se tem constatado nas políticas sociais de muitos países. No mais longo prazo, será uma geração de crianças que terão sido alimentadas de-centemente, o que se transfor-ma em melhor aproveitamento escolar e maior produtividade na vida adulta.

Em termos de estabilida-de política e de segurança ge-ral, os impactos são óbvios. Trata-se do dinheiro mais bem investido que se possa imagi-nar, e as experiências brasilei-

ra, mexicana e de outros paí-ses já nos forneceram todo o know-how correspondente.

A teoria tão popular de que o pobre se acomoda se receber ajuda, é simplesmente desmentida pelos fatos: sair da miséria estimula, e o dinheiro é simplesmente mais útil onde é mais necessário.

IV – Não Privarás Ninguém do Direito de Ganhar o seu Pão

Universalizar a garantia do emprego é viável. Toda pessoa que queira ganhar o pão da sua família deve poder ter acesso ao trabalho. Num planeta onde há um mundo de coisas a fazer, inclusive para resgatar o meio ambiente, é absurdo o número de pessoas sem acesso a formas organiza-das de produzir e gerar renda.

Temos os recursos e os conhecimentos técnicos e or-ganizacionais para assegurar, em cada vila ou cidade, acesso a um trabalho decente e social-mente útil. As experiências de Maharashtra na Índia demons-traram a sua viabilidade, como o mostram as nu-merosas experi-ências brasileiras, sem falar no New Deal da crise dos anos 1930. São opções onde to-dos ganham: o município melhora o saneamento básico, a moradia, Fo

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tornar central. Assegurar a contribuição produtiva de to-dos, ao mesmo tempo que se aumenta gradualmente o salá-rio mínimo e se reduz a jorna-da, leva simplesmente a uma prosperidade mais democráti-ca.

V – Não Trabalharás Mais de Quarenta Horas

Podemos trabalhar me-nos, e trabalharemos todos, com tempo para fazermos mais coisas interessantes na vida. A sub-utilização da força de trabalho é um problema pla-netário, ainda que desigual na sua gravidade. No Brasil, con-forme vimos, com 100 milhões de pessoas na PEA, temos 31 milhões formalmente emprega-das no setor privado, e 9 mi-lhões de empregados públicos. A conta não fecha.

O setor informal situa-se na ordem de 50% da PEA. Uma imensa parte da nação “se vira” para sobreviver. No lado dos empregos de ponta, as pessoas não vivem por ex-cesso de carga de trabalho. Não se trata aqui de uma exi-gência de luxo: são incontáveis os suicídios nas empresas on-de a corrida pela eficiência se tornou simplesmente desuma-na. O stress profissional está se tornando uma doença pla-netária, e a questão da quali-dade de vida no trabalho passa a ocupar um espaço central.

A redistribuição social da carga de trabalho torna-se hoje uma necessidade. As resistên-cias são compreensíveis, mas

a realidade é que com os avanços da tecnologia os processos produti-vos tornam-se cada vez menos intensivos em mão de obra, e reduzir a jornada é uma questão de tempo.

Não podemos continuar a basear o nosso desenvolvi-mento em ilhas tecnológicas ultramodernas enquanto se gera uma massa de excluídos, inclusive porque se trata de equilibrar a remuneração e, consequentemente, a deman-da. A redução da jornada não reduzirá o bem estar ou a ri-queza da população, e sim a deslocará para novos setores mais centrados no uso do tem-po livre, com mais atividades de cultura e lazer. Não precisa-mos necessariamente de mais carros e de mais bonecas Bar-bie, precisamos sim de mais qualidade de vida.

VI – Não Viverás para o Di-nheiro

A mudança de compor-tamento, de estilo de vida, não constitui um sacrifício, e sim um resgate do bom sen-so. Neste planeta de 7 bilhões de habitantes, com um aumen-to anual da ordem de 75 mi-lhões, toda política envolve também uma mudança de comportamento individual e da cultura do consumo. O respeito às normas ambientais, a mode-ração do consumo, o cuidado

no endividamento, o uso inteli-gente dos meios de transpor-tes, a generalização da recicla-gem, a redução do desperdício – há um conjunto de formas de organização do nosso cotidiano que passa por uma mudança de valores e de atitudes frente aos desafios econômicos, soci-ais e ambientais.

No apagão energético do final dos anos 90 no Brasil, constatou-se como uma boa campanha informativa, o papel colaborativo da mídia, e a puni-ção sistemática dos excessos permitiu uma racionalização generalizada do uso doméstico da energia. Esta dimensão da solução dos problemas é es-sencial, e envolve tanto uma legislação adequada, como sobretudo uma participação ativa da mídia.

Hoje 95% dos domicílios no Brasil têm televisão, e o uso informativo inteligente deste e de outros meios de comunica-ção tornou-se fundamental. Frente aos esforços necessá-rios para reequilibrar o planeta, não basta reduzir o martela-mento publicitário que apela para o consumismo desenfrea-do, é preciso generalizar as dimensões informativas dos

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çam no transporte. Trata-se aqui, evidentemente, de finan-ciamento público, pois os ban-cos comerciais não teriam esta preocupação, nem esta visão sistêmica. (UNEP,Global Green New Deal, 2009). Em última instância, os recursos devem ser tornados mais acessíveis. Segundo, que os objetivos do seu uso sejam mais produtivos em termos sistêmicos, visando um desenvolvimento mais in-clusivo e mais sustentável. A intermediação financeira é um meio, não é um fim.

Particular atenção preci-sa ser dada aos intermediários que ganham apenas nos fluxos entre outros intermediários – com papéis que representam direitos sobre outros papéis – e que têm tudo a ganhar com a maximização dos fluxos, pois são remunerados por comis-sões sobre o volume e ganhos, e geram portanto volatilidade e pro-ciclicidade, com os monu-mentais volumes que nos leva-ram por exemplo a valores em derivativos da ordem de 863 trilhões de dólares em junho de 2008, 15 vezes o PIB mundial.

A intermediação especu-lativa – diferentemente das in-

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meios de comunicação. A mí-dia científica praticamente de-sapareceu, os noticiários nave-gam no atrativo da criminalida-de, quando precisamos vital-mente de uma população infor-mada sobre os desafios reais que enfrentamos. A pergunta a se fazer a cada ato de consu-mo, não é só se “é bom para mim”, mas se é bem para o planeta e o bem comum, e bus-car um equilíbrio razoável. A opção individual é essencial, mas não suficiente. Grande parte da mudança do compor-tamento individual depende de ações públicas: as pessoas não deixarão o carro em casa (ou deixarão de tê-lo) se não houver transporte público, não farão reciclagem se não houver sistemas adequados de coleta. Precisamos de uma política pública de mudança do com-portamento individual.

VII – Não Ganharás Dinheiro com o Dinheiro dos Outros

Racionalizar os siste-mas de intermediação finan-ceira é viável. A alocação final dos recursos financeiros deixou de ser organizada em função dos usos finais de estímulo e orientação de atividades eco-nômicas e sociais, para obede-cer às finalidades dos próprios intermediários financeiros. A atividade de crédito é sempre uma atividade pública, seja no quadro das instituições públi-cas, seja no quadro dos ban-cos privados que trabalham com dinheiro do público, e que para tanto precisam de uma

carta-patente que os autorize a ganhar dinheiro com dinheiro dos outros. A recente crise fi-nanceira de 2008 demonstrou com clareza o caos que gera a ausência de mecanismos confi-áveis de regulação no setor.

Nas últimas duas déca-das, temos saltado de bolha em bolha, de crise em crise, sem que a relação de forças permita a reformulação do sistema de regulação em função da produ-tividade sistêmica dos recursos. Enquanto não se gera uma rela-ção de forças mais favorável, precisamos batalhar os siste-mas nacionais de regulação financeira. O dinheiro não é mais produtivo onde rende mais para o intermediário: devemos buscar a produtividade sistêmi-ca de um recurso que é público.

A Coréia do Sul abriu re-centemente um financiamento de 36 bilhões de dólares para financiar transporte coletivo e alternativas energéticas, geran-do com isto 960 mil empregos. O impacto positivo é ambiental pela redução de emissões, é anti-cíclico pela dinamização da demanda, é social pela redução do desemprego e pela renda gerada, é tecnológico pelas ino-vações que gera nos processos produtivos mais limpos. Tem in-clusive um im-pacto raramente c o n s i d e r a d o , que é a redução do tempo de vida que as pes-soas desperdi-

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é hoje essencial para reduzir o poder político das dinastias eco-nômicas (10% das famílias do planeta é dono de 90% do patri-mônio familiar acumulado no planeta). O imposto sobre a he-rança é fundamental para dar

chances a parti-lhas mais equili-bradas para as sucessivas gera-ções. O imposto sobre a renda de-ve adquirir mais peso relativamen-te aos impostos indiretos, com alí-quotas que permi-

tam efetivamente redistribuir a renda. É importante lembrar que as grandes fortunas do planeta em geral estão vinculadas não a um acréscimo de capacidades produtivas do planeta, e sim à aquisição maior de empresas por um só grupo, gerando uma pirâmide cada vez mais instável e menos governável de proprie-dades cruzadas, impérios onde a grande luta é pelo controle do poder financeiro, político e midi-ático, e a apropriação de recur-sos naturais.

O sistema tributário tem de ser reformulado no sentido anti-cíclico, privilegiando ativida-des produtivas e penalizando as especulativas; no sentido do maior equilíbrio social ao ser fortemente progressivo; e no sentido de proteção ambiental ao taxar emissões tóxicas ou geradoras de mudança climáti-ca, bem como o uso de recursos

termediação de compras e ven-das entre produtores e utilizado-res finais – apenas gera uma pirâmide especulativa e insegu-rança, além de desorganizar os mercados e as políticas econô-micas.

VIII – Não Tributarás Boas Ini-ciativas

A filosofia do imposto, de quem se cobra, e a quem se aloca, precisa ser revista. Uma política tributária equilibra-da na cobrança, e reorientada na aplicação dos recursos, constitui um dos instrumentos fundamentais de que dispomos, sobretudo porque pode ser pro-movida por mecanismos demo-cráticos. O eixo central não está na redução dos impostos, e sim na cobrança socialmente mais justa e na alocação mais produ-tiva em termos sociais e ambi-entais.

A taxação das transações especulativas (nacionais ou in-ternacionais) deverá gerar fun-dos para financiar uma série de políticas essenciais para o ree-quilíbrio social e ambiental. O imposto sobre grandes fortunas

naturais não renováveis. O poder redistributivo do

Estado é grande, tanto pelas políticas que executa – por e-xemplo as políticas de saúde, lazer, saneamento e outras infra-estruturas sociais que melho-ram o nível de consumo coletivo – como pelas que pode fomen-tar, como opções energéticas, inclusão digital e assim por dian-te. Fundamental também é a política redistributiva que envol-ve política salarial, de previdên-cia, de crédito, de preços, de emprego. A forte presença das corporações junto ao poder polí-tico constitui um dos entraves principais ao equilíbrio na aloca-ção de recursos.

O essencial é assegurar que todas as propostas de alo-cação de recursos sejam anali-sadas pelo triplo enfoque econô-mico, social e ambiental. No ca-so brasileiro, constatou-se com as recentes políticas sociais (“Bolsa-Família”, políticas de previdência etc.) que volumes relativamente limitados de recur-sos, quando chegam à “base da pirâmide”, são incomparavel-mente mais produtivos, tanto em termos de redução de situações críticas e consequente aumento de qualidade de vida, como pela dinamização de atividades eco-nômicas induzidas pela deman-da local.

A democratização aqui é fundamental. A apropriação dos mecanismos decisórios sobre a alocação de recursos públicos está no centro dos processos de

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corrupção, envolvendo as gran-des bancadas corporativas, por sua vez ancoradas no financia-mento privado das campanhas.

IX – Não Privarás o Próximo do Direito ao Conhecimento

Travar o acesso ao co-nhecimento e às tecnologias sustentáveis não faz o mínimo sentido. A participação efetiva das populações nos processos de desenvolvimento sustentável envolve um denso sistema de acesso público e gratuito à infor-mação necessária. A conectivi-dade planetária que as novas tecnologias permitem constitui uma ampla via de acesso direto.

O custo-benefício da inclu-são digital generalizada é sim-plesmente imbatível, pois é um programa que desonera as ins-tâncias administrativas superio-res, na medida em que as co-munidades com acesso à infor-mação se tornam sujeitos do seu próprio desenvolvimento. A rapidez da apropriação deste tipo de tecnologia até nas regi-ões mais pobres se constata na propagação do celular, das lan houses mais modestas. O im-pacto produtivo é imenso para os pequenos produtores que passam a ter acesso direto a diversos mercados tanto de in-sumos como de venda, esca-pando aos diversos sistemas de atravessadores comerciais e financeiros. A inclusão digital generalizada é um destravador potente do conjunto do processo de mudança que hoje se torna indispensável. O mundo fre-quentemente esquece que 2

sas crianças passam horas sub-metidas à publicidade ostensiva ou disfarçada. A indústria da comunicação, com sua fantásti-ca concentração internacional e nacional - e a sua crescente interação entre os dois níveis - gerou uma máquina de fabricar estilos de vida, um consumismo obsessivo que reforça o elitis-mo, as desigualdades, o desper-dício de recursos como símbolo de sucesso.

O sistema circular permite que os custos sejam embutidos nos preços dos produtos que nos incitam a comprar, e fica-mos envoltos em um cacarejo permanente de mensagens idio-tas pagas do nosso bolso. Mais recentemente, a corporação uti-liza este caminho para falar bem de si, para se apresentar como sustentável e, de forma mais ampla, como boa pessoa. O es-pectro eletromagnético em que estas mensagens navegam é público, e o acesso a uma infor-mação inteligente e gratuita pa-ra todo o planeta, é simples-mente viável.

Expandindo gradualmente as inúmeras formas alternativas de mídia que surgem por toda parte, há como introduzir uma

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bilhões de pessoas ainda cozi-nham com lenha, área em que há inovações significativas no aproveitamento calórico por meio de fogões melhorados. Tecnologias como o sistema de cisternas do Nordeste, de apro-veitamento da biomassa, de sis-temas menos agressivos de pro-teção dos cultivos etc., constitu-em um vetor de mudança da cultura dos processos produti-vos.

A criação de redes de nú-cleos de fomento tecnológico online, com ampla capilaridade, pode se inspirar da experiência da Índia, onde foram criados núcleos em praticamente todas as vilas do país. O World Eco-nomic and Social Survey 2009 é particularmente eloquente ao defender a flexibilização de pa-tentes no sentido de assegurar ao conjunto da população mun-dial o acesso às informações indispensáveis para as mudan-ças tecnológicas exigidas por um desenvolvimento sustentá-vel.

X – Não Controlarás a Palavra do Próximo

Democratizar a comuni-cação tornou-se essencial. A co-municação é uma das áreas que mais explodiu em termos de peso relativo nas trans-formações da so-ciedade. Estamos em permanência cercados de men-sagens. As nos- Fo

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cultura nova, outras visões de mundo, cultura diversificada e não pasteurizada, pluralismo em vez de fundamentalismos religi-osos ou comerciais.

O fato que mais inspira esperança é a multiplicação im-pressionante de iniciativas nos planos da tecnologia, dos siste-mas de gestão local, do uso da internet para democratizar o co-nhecimento, da descoberta de novas formas de produção me-nos agressivas, de formas mais equilibradas de acesso aos re-cursos. O Brasil neste plano tem mostrado que começar a cons-

considerar outros Mandamen-tos. Sendo o Secretariado do Altíssimo hoje bem equipado, os que por acaso tenham suges-tões ou necessitem consultar documentos mais completos, poderão se instruir com outros Assessores, em linha direta sob www.criseoportunidade.wordpress.com Críticas, naturalmente, deverão ser endereçadas a Ins-tâncias Superiores. Apreciações positivas e sugestões de outros Mandamentos poderão ser envi-adas ao blog acima citado, ou no e-mail [email protected]

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*Formado em economia política pela Universidade de Lausanne, Suiça e Doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, Polônia (1976). Atualmente é professor titular no departamento de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, nas áreas de economia e administração. Continua com o trabalho de consultoria para diversas agências das Nações Unidas, governos e municípios, bem como do Senac. Atua como Conselheiro na Fundação Abrinq, Instituto Polis e outras institui-ções.

Blog: www.criseoportunidade.wordpress.com e-mail: [email protected]

Ladislau Dowbor

truir uma vida mais digna para o “andar de baixo”, para os dois terços de excluídos, não gera tragédias para os ricos. Inclusi-ve, numa sociedade mais equili-brada, todos passarão a viver melhor. Tolerar um mundo onde um bilhão de pessoas passam fome, onde 10 milhões de crian-ças morrem anualmente de cau-sas ridículas, e onde se dilapi-dam os recursos naturais das próximas gerações, em proveito de fortunas irresponsáveis, já não é possível.

Nesta época interativa, o Altíssimo declarou-se disposto a

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