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OS GENÊROS DISCURSIVOS NO CURSO DE ENGENHARIA MECÂNICA
CARDOSO, Maria Angélica – SOCIESC/IST/SC [email protected]
Área Temática: Formação de Professores.
Agência Financiadora: Não contou com financiamento.
Resumo Este artigo trata da retomada ao estudo aplicado por mim em 2005. Revisito a dinâmica das atividades realizadas e descritas na pesquisa de minha dissertação, titulada “Letramento e Gêneros Textuais: Intervenção Pedagógica com o Suporte Embalagem de Produtos Alimentícios”, realizada com alunos da 3ª série do ensino fundamental e, a partir do aprofundamento na concepção dialógica da linguagem de Bakhtin, com ênfase nas noções de gêneros do discurso, enunciado e texto, analiso uma aplicação didática, com alunos de ensino superior, mais especificamente, da Engenharia Mecânica. Defendo a hipótese de que deve haver a inserção e o estudo de gêneros não-escolares nas aulas de língua e de linguagem porque são recursos pedagógicos, discursivos e tecnológicos que, se usados por professores em suas aulas, propiciarão maior interação e dialogicidade, conseqüentemente, maior interesse e participação dos alunos, além de desenvolver competência discursiva ou capacidade de interação verbal (destes alunos) em sala de aula. Nesse trabalho, analiso uma proposta de ensino-aprendizagem de leitura, a partir de gêneros do discurso usados nas atividades discursivas realizadas pelos Engenheiros Mecânicos. A pesquisa se justifica pela busca de respostas para problemas que envolvem a minha prática de professora de Comunicação e Expressão, no Ensino Superior. A aplicação envolveu oito aulas, de 48 minutos, durante o mês de maio de 2008. Foram elaboradas atividades de leitura de gêneros discursivos e, a partir deles, atividades de escrita de textos acadêmicos, a fim de promover práticas de uso social da língua, numa perspectiva de letramento. Chego a conclusão (não terminada) de que é possível mudar a prática pedagógica pelo estudo, aprofundamento e reflexão da aplicação didática de gêneros não-escolares, na formação de professores. Palavras-chave: Gêneros discursivos; Discursividade; Textos; Enunciados.
Introdução
Nas aulas de diferentes disciplinas, no processo de alfabetização e letramento escolar,
os professores do ensino fundamental e, também, do ensino superior, devem considerar a
relação existente entre as atividades de língua e linguagem que são produzidas na escola e o
uso social de uma grande diversidade delas, materializadas em textos - enunciados, que
circulam nas comunidades em que se inserem os aprendizes.
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Para BAKHTIN (1999, p. 90), “todas as esferas da atividade humana, utilizam a
língua para elaborar seus enunciados de acordo com as suas necessidades”. Assim, enunciado
diz respeito à “unidade real da comunicação verbal”. Ele concebe a língua como um produto
sócio-histórico, como forma de interação social realizada por meio de enunciações. Desta
forma, o princípio é o de que a linguagem é ação e não um mero instrumento de comunicação.
Na alfabetização e no letramento a partir do uso de gêneros discursivos não-escolares,
pedagogos da linguagem e professores de língua podem vislumbrar a possibilidade de
reorganizarem o trabalho escolar com base no uso de diversificados textos/ enunciados. Eles
são encontrados em diversificados suportes, produzidos no contexto de uso comunicativo e
enunciativo. A partir desse entendimento, surgem novas perspectivas de um trabalho docente
mais coerente e significativo que, se realizado de forma interdisciplinar, leva os aprendizes a
compreenderem melhor os aspectos enunciativos da linguagem e sua função social.
Neste trabalho, pretendo evidenciar a importância dos estudos do Círculo de Bakhtim
para o estudo e a inserção de gêneros discursivos não-escolares1 que circulam na esfera do
cotidiano dos aprendizes como proposta central para a atividade pedagógica de linguagem
que, a partir do estudo realizado nas séries iniciais do ensino fundamental, proporcionou base
para uma proposta didática aplicada ao Ensino Superior. A tarefa para este estudo é a de
buscar novas maneiras e novos modos de ver as atividades textuais - enunciativas dando
ênfase e sentido sócio-histórico ao trabalho do professor, não apenas do Ensino Fundamental,
mas também da Educação Superior.
Assim, o objetivo desse trabalho é a elaboração de uma proposta de ensino-
aprendizagem de leitura, a partir de textos de gêneros usados nas atividades discursivas dos
Engenheiros Mecânicos, pela retomada do estudo aplicado com estudantes do ensino
fundamental, revendo-a numa perspectiva bakhtiniana e aplicando-a com acadêmicos do
ensino superior.
Penso que o uso de gêneros não-escolares (que estão no contexto dos aprendizes),
proporciona maior motivação, a criatividade e criticidade dos aprendizes. Quero mostrar que
o trabalho com textos/ enunciados na escola, associado à concepção de gêneros discursivos,
numa análise bakhtiniana, pode contribuir para que professores, não apenas do ensino
fundamental mas, também, da educação superior, possam desenvolver nos aprendizes a
1 Textos não-escolares aqui se referem aos textos e enunciados que, mesmo que circulem no ambiente sócio-cultural dos alunos e professores.
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competência discursiva ou capacidade de interação verbal. Além disso, pretendo levar ao
entendimento de que conceitos como os de língua e linguagem podem e devem ser
trabalhados estreitamente ligados a conceitos como os de sociedade, de esferas de atividades
discursivas, de instituições sociais e de cidadania.
Destaco, neste estudo, pressupostos bakhtinianos, usados na Proposta Curricular de
Santa Catarina (1998, 2005), além de trabalhos do autor e do Círculo de Leningrado, vistos
sob a perspectiva do Letramento.
Ensinar e aprender com gêneros textuais/ discursivos
Ao chegarem à escola, os aprendizes têm construído saberes os quais devem ser
valorizados como parte do processo de alfabetização e letramento porque, crianças, jovens e
adultos em situação de escolarização lêem a partir do seu contato com textos/ enunciados
encontrados diariamente em revistas, propagandas, outdoors, correspondências e outros. Tais
textos/ enunciados fazem parte de atividades da vida humana e são capazes de orientar quanto
a atitudes, escolhas e preferências, adquirindo valor no espaço social, influenciando na
educação formal e impondo a necessidade de atualização constante dos professores rumo a
uma sociedade tecnológica e globalizada. Para BAKHTIN /VOLOCHINOV, (1981, p. 9) “o
enunciado concreto (e não a abstração lingüística) nasce, vive e morre no processo da
interação social entre os participantes da enunciação. Sua forma e significado são
determinados basicamente pela forma e caráter desta interação.”
A leitura em diversificados gêneros discursivos é realizada no dia-a-dia dos
aprendizes, uma vez que, de diferentes classes sociais, eles têm acesso a uma infinidade de
textos/ enunciados orais e escritos, vêem televisão, lêem e escrevem textos em computadores,
lêem frase nos ônibus, camisetas e outdoors, recebem folhetos, encartes e outras formas de
propagandas em sua própria casa. Isto auxilia no acesso ao código e ajuda-o a
compreenderem-no melhor, sendo esta uma função inicialmente desempenhada pela escola.
Então, cabe ao professor, além de alfabetizar, realizar o letramento de seus alunos, isto é,
habilitá-los à descoberta, ao uso e à aprendizagem, exercendo amplamente a condição que
decorre do fato de terem se apropriado da leitura e da escrita existentes em diversos ambientes
sociais. Para SOARES (2003, p. 15) “letramento é imersão das crianças na cultura escrita,
participação em experiências variadas com a leitura e a escrita, conhecimento e interação com
diferentes tipos e gêneros de material escrito – e [...].”
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Ao abordar o uso social da leitura e da escrita, o professor possibilitará refletir sobre
situações em que todos atribuam sentidos ao conhecimento do sistema da língua escrita.
É papel da escola, propiciar que os aprendizes/ acadêmicos se apropriem dos
diferentes enunciados e que desenvolvam diferentes capacidades de leitura e escrita em
práticas de letramento das variadas esferas ideológicas.
A linguagem está sempre atrelada ao caráter ideológico do signo que permite-lhe uma
materialidade objetiva, “seja como som, como massa física, como cor, como movimento do
corpo ou como outra coisa qualquer” (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1999, p. 33). Segundo
Bakhtin, “tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si
mesmo. Em outros termos, tudo que é ideológico é um signo. Sem signos não existe
ideologia” (BAKHTIN/ VOLOCHINOV, 1999, p. 31). O signo é parte do domínio do
ideológico uma vez que reflete a realidade. Ao refleti-la, entretanto, o signo vai também
assumir diferenças ligadas aos aspectos ideológicos, uma vez que os signos serão avaliados
(horizonte axiológico) nas instâncias sociais em que estiverem inseridos.
A linguagem é, essencialmente, interação entre indivíduos, com todas as implicações
sociais atreladas a ela. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido
ideológico ou vivencial (BAKHTIN/ VOLOCHINOV, 1999, p. 95). Para os autores (1999,
p.123), “a interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua”.
É importante que, na formação de professores, as atividades de linguagem estejam
inseridas nas atividades diárias. Compreender, analisar e produzir textos/ enunciados é uma
competência que pode ser desenvolvida na escola, desde que seja proporcionada uma
crescente oferta e situações de aprendizagem da língua, com os gêneros contidos no cotidiano
dos aprendizes, sejam eles verbais ou não-verbais. O papel do professor, não é apenas expor
os alunos ao contato com uma diversidade textual, mas a fazê-los entender e experienciar as
suas formas de organização e uso, bem como seus propósitos, de modo a permitir,
gradativamente, o domínio de suas diferentes formas de utilização, em diferentes esferas
ideológicas e atividades. Essa prática pedagógica, além de enriquecer os conhecimentos,
oportuniza uma interação dialógica, possibilitando o desenvolvimento de uma competência
discursiva (critica e criativa), de ampliar a capacidade de produzir ou de interpretar textos/
enunciados. No mundo da leitura e escrita, não se pode determinar critérios que limite o aluno
apenas em codificar ou decodificar signos, o uso de gêneros discursivos vem abrir espaços
10012
para que os sujeitos, além de poderem se relacionar com diferentes autores e formas
comunicativas, percebam suas manifestações.
Penso que esta abordagem poderá dar conta do aspecto metalingüístico que se vê nos
gêneros discursivos não-escolares, ou seja, nos textos/ enunciados porque eles dizem respeito
a uma composição e estilo muito diferenciado do tradicionalmente usado na escola. É preciso
olhá-los como uma atividade social que é elaborada por seus respectivos segmentos sociais
bem organizados e, que são produzidos por comunidades discursivas específicas que
dominam o discurso de sua esfera e produzem textos/ enunciados necessários aos propósitos a
que se destinam. E, dessa forma, olhá-los na visão de BAKHTIN e VOLOCHINOV:
“qualquer enunciado considerado isoladamente e, claro, individual, mas cada esfera de
utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo assim que
denominamos gêneros de discurso” (1999, p. 279).
Usar gêneros discursivos não-escolares é, a meu ver, trabalhar nesta proposta com
textos/ enunciados que encontram-se no cotidiano de letramento dos acadêmicos. Assim, a
forma de trabalhar com a língua passa a ser uma atividade social e crítica, exercendo uma
atividade de linguagem cidadã. A linguagem é orientada socialmente, buscando adaptar-se ao
contexto imediato do ato da fala, articulando a língua com o social propiciando que os alunos
se apropriem dos diferentes gêneros do discurso e desenvolvam capacidades de leitura e
escrita em práticas de letramentos das mais variadas esferas sociais. Para desenvolver tal
metodologia, nesta perspectiva, a Proposta Curricular de Santa Catarina (1998, p. 38) propõe
ser preciso
propiciar um ambiente alfabetizador rico de materiais escritos que deverão ser manuseados constantemente pela criança, trabalhar uma série de atividades contextualizadas e significativas. Através destas atividades num processo de diferenciação das funções da escrita, no contexto em que cada texto foi escrito, nos seus significados, na estrutura textual, nos diversos formatos, tamanhos e cores das letras que compõem o texto, a criança irá se apropriando e elaborando as convenções da língua padrão (Grifo meu).
Desta forma, ela preocupa-se e chama atenção para as formas de textos/ enunciados
usados na sociedade, abrindo possibilidades para o seu estudo, discussão e produção de
variedades deles que se usam, a partir de necessidades sociais. Referindo-se a essas
variedades textuais, Furlanetto (2002, p. 96) diz que:
10013
[...] lá encontramos desde rezas, passando por embalagens, etiquetas, rótulos, até romances, biografias, novelas. Aliás, a escola pode trabalhar proveitosamente com textos curtos como embalagens e etiquetas, até mesmo para mostrar sua evolução. Por trás desses pequenos textos há redatores especializados que pesquisam em nome da empresa a que servem. Os alunos podem perfeitamente estudá-los em vários níveis (deslocando-se para áreas diversas, dependendo do produto), criá-los e recriá-los, numa atividade que será tanto mais positiva quanto mais encaixada em projetos com sentido para a comunidade (escolar ou mais ampla).
No estudo do gênero, tais textos/ enunciados podem ser trabalhados na discussão de
questões gramaticais e ortográficas, mas, acima de tudo, propõe trabalhar, segundo Furlanetto
(2002), “momentos de discursividade”, em que os aprendizes poderão vivenciar papéis de
quem, no momento da atividade, pode pensar sobre o que dizer, para quem dizer, por que
dizer, em que situação se diz.
Revisitando a atividade pedagógica com embalagens de produtos alimentícios
Foram 11 (onze) questões de um questionário que fez parte de uma transposição
didática, aplicada aos alunos de 3ª série do ensino fundamental, desenvolvidas em forma de
duas aulas expositivas e dialogadas, no 2º semestre de 2005, com o uso das “embalagens de
produtos alimentícios” trazidas pelos alunos.
Desse trabalho, faço nesse momento, uma síntese dos resultados:
a) A primeira leitura realizada por esses alunos, conforme as respostas dadas à
pesquisa refletem o primeiro olhar sobre a atividade humana, ou seja, a utilidade do objeto de
consumo, pelo consumidor. Aqui os suportes embalagens, são vistos como portadores de
produtos alimentícios. Neste momento, a leitura não é critica, mas consumista. O papel social
do produtor prevalece. É uma leitura perceptual, sobretudo semiótica, em que busca construir
meios e modos de educação leitora, ao mesmo tempo gerar estratégias de leituras, com vistas
à exploração de faculdades, como: sentir, perceber e avaliar, enfim, de interpretar o mundo
que nos cerca, logo, podendo atuar politicamente.
b) O nome da “marca” do produto, os nomes das empresas ou do produto se destacam
pelos elementos enunciativos: cores, tamanho das letras e imagem visual e psicológica. Eles
evocam a linguagem técnica das marcas e produtos alimentícios e dá origem à discussões
sobre os sujeitos que estão por detrás das embalagens e faz lembrar as relações dialógicas em
BAKHTIN (1999). O autor diz que
10014
as relações dialógicas são extralingüísticas, situam-se no campo do discurso, o que não exclui a língua enquanto fenômeno integral concreto. No entanto, são irredutíveis às relações lógicas ou às concreto-semânticas, que para se tornarem dialógicas devem /.../ tornar-se discurso, o que significa converter-se em posições de diferentes sujeitos e ganhar autor, criador de dado enunciado cuja posição ele expressa (p.203).
Os endereços (localização) das empresas que fabricam os produtos, suas histórias, seu
contexto, os produtos vendidos, os significados e sentidos que existem nos enunciados e
textos das embalagens proporcionam leituras que levam os aprendizes a pensarem
criticamente sobre seus papéis sociais e dos elementos envolvidos no processo de linguagem.
São leituras de enunciados: ícones, desenhos, cores e outros elementos.
c) Na visão bakhtiniana, o texto – como enunciado - só existe em situações de
interação entre sujeitos e, através delas, promoverão a individualidade de cada texto.
Algumas respostas dadas a pesquisa evidenciam que os textos: “precisam ter palavras, coisas
escritas”, porém, ao trabalhar com textos não-escolares, a maioria dos aprendizes percebe,
nesse caso das embalagens, mais do que apenas um suporte de alimentos, mas um suporte de
textos/ enunciados, e que estes enunciados concretos trazem diferentes discursos, com
sentidos e significados diversos. As embalagens contêm enunciados bem elaborados e com
elementos extraverbais que influenciam nas decisões e avaliações dos consumidores na hora
da compra.
Os elementos icônicos/ imagéticos das embalagens parecem provocar uma dupla
orientação dialógica determinada tanto pelo gênero como pelos enunciados a ele pertinentes.
A riqueza e a variedade dos gêneros do discurso são infinitas, pois a variedade virtual da atividade humana é inesgotável, e cada esfera dessa atividade comporta um repertório de gêneros do discurso que vai diferenciando-se e ampliando-se à medida que a própria esfera se desenvolve e fica mais complexa. Cumpre salientar de um modo especial a heterogeneidade dos gêneros do discurso (orais e escritos) (BAKHTIN, 1999, p. 279).
Por trás de cada texto está o sistema da linguagem. E, cada texto (como enunciado) é
algo individual, único e singular, e nisso reside todo o seu sentido, significado e intenção em
prol da qual ele foi criado, (BAKHTIN, 1999). Por isso, o lugar social dos sujeitos determina
o tipo de leitura que eles realizam e, que são transmitidas pelos textos/ enunciados das
embalagens. A escola não faz uso de gêneros discursivos não-escolares, assim, neles os
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textos/ enunciados não são reconhecidos. Não se reconhecem suas formas, seus estilos e seus
discursos.
A atividade com gêneros não-escolares aplicada ao Ensino Superior
Ao trabalhar com a disciplina de Comunicação e Expressão, no 1º semestre letivo do
ano de 2008, do Curso de Engenharia Mecânica, do Instituto Superior Tupy, de Joinville/ SC,
elaborei uma proposta de ensino-aprendizagem de leitura, a partir de textos do gênero do
discurso usado nas atividades discursivas realizadas pelos Engenheiros Mecânicos. A
pesquisa, com caráter de pesquisa-ação e se justifica pela busca de respostas para problemas
que envolvem a minha prática de professora de Comunicação e Expressão, do Ensino
Superior. A aplicação envolveu oito aulas de 48 minutos durante o mês de maio, onde foram
elaboradas atividades de leitura de gêneros discursivos não-escolares usados pelos
Engenheiros Mecânicos.
Petitjean (1998, p. 21) aponta o caminho da “elaboração didática”, por julgar que,
mais do que fazer a transposição do conhecimento científico para o conhecimento escolar, é
necessário “convocar um pluralidade de conhecimentos de referência que precisa ser
selecionada, integrada, operacionalizada e solidarizada”. Esse conceito se aproxima dos
fundamentos teóricos bakhtinianos e, por esse motivo, nessa proposta, a análise terá esse
enfoque.
A partir dessa atividade, desenvolvi atividades de escrita de textos acadêmicos, a fim
de promover práticas de uso social da língua, numa perspectiva de letramento. A dinâmica,
realizada em equipes de alunos acadêmicos do 3º período, tem a seguinte seqüência didática:
a) Responder as questões abaixo e colocá-las num “quadro”, para análise:
• quais os gêneros discursivos mais usados na sua área do conhecimento?
• quais os objetivos ou propósitos desses gêneros?
• quem os escreveu/ elaborou e para quem foram escritos/ elaborados?
b) Descrever e analisar os dados do “quadro” relacionando-os à teoria dos gêneros
discursivos.
c) Apresentar, em power point, um dos gêneros do discurso posto no quadro, usado na
Engenharia Mecânica.
Os gêneros discursivos usados pelos Engenheiros Mecânicos
10016
De acordo com Bakhtin, as atividades humanas, por mais variadas que sejam, estão
sempre relacionadas com o uso da língua.
A riqueza e a variedade dos gêneros do discurso são infinitas, pois a variedade virtual da atividade humana é inesgotável, e cada esfera dessa atividade comporta um repertório de gêneros do discurso que vai diferenciando-se e ampliando-se à medida que a própria esfera se desenvolve e fica mais complexa. Cumpre salientar de um modo especial a heterogeneidade dos gêneros do discurso (orais e escritos) (BAKHTIN, 1999, p. 279).
A língua concretiza nossos enunciados, sejam eles orais ou escritos, concretos e
únicos, que emanam dos integrantes de uma ou outra esfera da atividade humana.
TEXTOS/ENUNCIADOS
USADOS NA ÁREA OBJETIVOS DESTINATÁRIOS/EMISSORES
Manual de programação e operação de máquina CNC
Define etapas de preparação de máquina estabelecendo as funções especificas de programação.
Destinatários: funcionários do departamento de processo. Emissores: técnicos da empresa fabricante da máquina.
Processo de fabricação do produto
Padronizar os processos de fabricação de cada peça. De define a máquina a ser utilizada, bem como, ferramentas e dispositivos necessários para confecção do produto.
Destinatários: todos os funcionários da produção. Emissores: funcionários do departamento de processo.
Desenho mecânicos de padronização (manual de projetos)
Padronizar as formas de dimensionar, colocar tolerâncias, simbologias de solda, dobras de chapa e acabamentos superficiais de um desenho.
Destinatários : todos os projetistas da empresa; Emissores : Comitê da diretoria da empresa.
Software de Sistema integrado de gestão empresarial
Integrar os setores da empresa, para levantamento de dados como quantidade de peças a serem fabricadas, estoque, custos, finanças entre outros.
Destinatários : todos os funcionários que possuem acesso aos computadores da empresa; Emissores : todos os funcionários são responsáveis pelo levantamento de dados de seu setor.
E.T. - Especificação Técnica Definir parâmetros de funcionamento dos sistemas e equipamentos das embarcações a serem comprados
Destinatários: Departamento de suprimentos, PCP ( Planejamento e Controle de Produção) e Controle de Qualidade. Emissores: Departamento de Engenharia.
L.M. - Lista de Materiais Especifica materiais e elementos de maquinas a serem comprados.
Destinatários: Departamento de suprimentos, PCP ( Planejamento e Controle de Produção) e Controle de Qualidade. Emissores: Departamento de Engenharia.
Ilustração 1 – Exemplo de quadro com gêneros discursivos usados por Engenheiros Mecânicos.
Fonte: Acadêmicos de Engenharia Mecânica/ 2008
O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada esfera, não só
pelo conteúdo temático e estilo verbal, mas também, pela construção composicional.
O discursivo do outro nos textos – enunciado
Na atividade se relaciona ao texto discursivo que propus. O objetivo é trazer o
“discurso do outro” para a escrita do texto acadêmico. Nela os acadêmicos devem associar a
10017
sua fala com a fala dos autores, usando a teoria dos gêneros do discurso. É para Bakhtin
(1988, 1999) a noção de dialogismo como princípio fundador da linguagem. Para ele, toda
linguagem é dialógica, ou seja, todo enunciado é sempre um enunciado de alguém para
alguém. Assim, o que falamos é apenas o conteúdo do discurso, o tema de nossas palavras. O
discurso de outrem é mais do que o tema do discurso, ele pode entrar no discurso e na sua
constituição sintática como uma unidade integral da construção. A dialogicidade é expressa
não apenas pela presença de marcas alheias em toda a estrutura do discurso, mas também pelo
fato de o enunciador do discurso visar a um interlocutor, seja em diálogos ou em monólogos.
Para Bakhtin (1999, p. 144), “[...] o discurso no discurso, a enunciação na enunciação,
mas [...] ao mesmo tempo, um discurso sobre o discurso, uma enunciação sobre a
enunciação”. A ilustração 2 é exemplo de dialogicidade, elaborado por uma das equipes que
realizou a atividade:
Os gêneros usados por Engenheiros Mecânicos
Através do levantamento pode-se perceber o quanto são comuns os gêneros textuais, já que eles pertencem a uma sociedade (coletivo) em que “contribuem pára ordenar e estabilizar as atividades comunicativas no dia-a-dia”. Os exemplos citados nas tabelas se encaixam perfeitamente na idéia de textos - enunciados. Todos têm finalidade de: definir, padronizar, listar ou integrar determinados itens que estão ligados, mas ao mesmo tempo dispersos numa grande gama de informações. Têm-se também alguns casos de suportes, que por definição:“é um lócus físico ou virtual com formato específico que serve de base ou ambiente de fixação do gênero materializado como texto”,um bom exemplo é o Software de Sistema Integrado de Gestão Empresarial. Ele é um suporte virtual convencional e com várias informações (gêneros em forma de textos) e, que através dele, as informações, se tornam fáceis e acessíveis. Ou, ainda, podemos ter suportes físicos convencionais e os melhores exemplos seriam os manuais, que trazem diversos tipos de gêneros como desenhos, tabelas, textos e símbolos que padronizam um determinado setor facilitando a comunicação entre os formadores do mesmo.
Referencia bibliográficaSILVA, M. R. V. da. A Relevância do Ensino De Gêneros Textuais para a Formação doProfissional de Psicologia. Disponível em: www.alb.com.br/anais16/sem12pdf/sm12ss07_06.pdf. Acesso em: 03/ 05/ 2008.
Acadêmicos: Joacir Martins, Rodrigo Carlos Melo, Raf ael LimasDisciplina: Comunicação e Expressão
EGM - 313
Ilustração 2 – Exemplo de texto discursivo Fonte: Acadêmicos de Engenharia Mecânica/ 2008
Bakhtin define o plurilingüismo como “o discurso de outrem na linguagem de outrem,
que serve para refratar a expressão das intenções do autor”. Para ele, “a palavra desse discurso
é uma palavra bivocal especial. Ela serve simultaneamente a dois locutores e exprime ao
mesmo tempo duas intenções diferentes [...] dois sentidos, duas expressões. [...] O discurso
bivocal é sempre internamente dialogizado” (1999, p. 127). Os sujeitos podem ser passivos
10018
aos propósitos dos “outros” e da comunidade discursiva que os produziram; eles não fazem
leituras tentando desvelar os sentidos sociais e políticos dos enunciados.
O plurilingüismo nos gêneros usados por Engenheiros Mecânicos
Para Bakhtin, não é somente pelo estilo, ou seja, pela “seleção operada nos recursos da
língua - recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais” (Bakhtin, 1988, p. 280), que se verifica
a flexibilidade, as formas criativas e a refração dos sentidos dos enunciados do gênero, mas
pelas formas do plurilingüismo nos enunciados. Assim, a forma composicional ( estabilidade)
do gênero e as formas arquitetônicas (formas estéticas), determinam também a escolha das
formas de uso do plurilingüismo (Bakhtin, 1988). A hibridização, não somente de vozes,
entonações e estilos, mas também de gêneros e o fenômeno dos gêneros intercalados ou
enquadrados. A construção híbrida, hibridização ou hibridismo é definida pelo autor como
o enunciado que, segundo índices gramaticais (sintáticos) e composicionais, pertence a um único falante, mas onde, na realidade, estão confundidos dois enunciados, dois modos de falar, dois estilos, duas ‘linguagens’, duas perspectivas semânticas e axiológicas. Repetimos que entre esses enunciados, estilos, linguagens, perspectivas, não há nenhuma fronteira formal, composicional e sintática: a divisão das vozes e das linguagens ocorre nos limites de um único conjunto sintático9, freqüentemente nos limites de uma proposição simples, freqüentemente também um mesmo discurso pertence simultaneamente às duas línguas, às duas perspectivas que se cruzam numa construção híbrida, e, por conseguinte, têm dois sentidos divergentes, dois tons (BAKHTIN, 1988, p. 110).
A mensagem segundo a natureza dos enunciados e as marcas expressivas (ícones e
imagens), manifesta-se numa combinação de signos verbais e não-verbais necessários aos
propósitos comunicativos e eles representam a comunidade discursiva interessada, que tomam
o enunciado verbal e não-verbal como signo de linguagem visual, para orientar, convencer,
persuadir. Diversas vozes e perspectivas axiológicas se dão na intercalação ou
enquadramento de gêneros (por exemplo, embalagem, informações de uso, ícones de marca)
em outros (por exemplo, o romance), qualificado por Bakhtin (1988, p. 124) como “uma das
formas mais importantes e substanciais de introdução e organização do plurilingüismo no
romance”.
A aula dialogada, vista como um gênero discursivo intercala outros gêneros, que
hibridiza vozes e linguagens sociais. Como nos trabalhos realizados pelos acadêmicos do
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Curso de Engenharia Mecânica que apresentaram seus gêneros em power point (ilustração 3).
Embalagens
Pedro Rocha
Thiago Westrup
EGM313
História
� Grandes Navegações– Jarros de Barro, Caixotes e Barris
� Napoleão, François Appert– Processamento de alimentos
� Dupont – Celofane, era dos plásticos
� Crash Nova York – Michael Kullen, supermercado
O produto
Ênfase em Logística
�Agrupar produtos
�Manuseio eficiente
�Proteção Contra Avaria
�Rastreamento
Ênfase em Marketing
� Embalagem com ênfase no Marketing.
� Design de embalagem.
� Embalagem no Brasil
� Considerações na criação das embalagens.
Ilustração 3 – Apresentação em power point, de gêneros discursivos usados na Engenharia Mecânica
Fonte: Acadêmicos de Engenharia Mecânica.
Os alunos escolheram um dos gêneros apresentados no quadro que elaboraram
anteriormente. Neles observam-se marcas de diferentes discursos e gêneros (intercalados)
usados na linguagem específica desta comunidade, enfatizando a atividade humana produzida
por eles; caracterizando o plurilingüísmo.
Trabalhar com acadêmicos do Ensino Superior, mais especificamente, do Curso de
Engenharia Mecânica significa estabelecer uma interação verbal e ela tem seu caráter
dialógico.
Disso resulta uma abordagem histórica e viva da língua e o tratamento social das
enunciações. A língua, desta forma vista, é como um fenômeno social, histórico e ideológico,
por conseqüência, “a comunicação verbal não poderá jamais ser compreendida e explicada
fora desse vínculo com a situação concreta” (BAKHTIN, 1988, 124).
Os indivíduos não recebem a língua pronta para ser usada; eles penetram na corrente da comunicação verbal, ou melhor, somente quando mergulham nessa corrente é que sua consciência desperta e começa a operar. É apenas no processo de aquisição de uma língua estrangeira que a consciência já constituída – graças à língua materna – se confronta com uma língua toda pronta, que só lhe resta assimilar. Os sujeitos não “adquirem” sua língua materna, é nela e por meio dela que ocorre o primeiro despertar da consciência (BAKHTIN,1988, 108).
10020
Há um processo semiótico, especificamente nas embalagens usadas no exemplo dado.
Os diversos enunciados nelas existentes produzem efeitos de sentido que correspondem ao
seu nível de realidade, ao seu valor, ou seja, depende do horizonte axiológico do sujeito que
produz o texto e do sujeito que realiza leituras, conforme o horizonte que nasce em uma
determinada esfera social, que é determinante. Não se trata apenas do sentido que se pode
atribuir às palavras, mas o que, de fato, elas encerram: o posicionamento deste ou daquele
sujeito em um evento, em um determinado momento histórico e social. Nessa mesma
perspectiva de análise, a imagem é entendida como uma obra, no sentido que Bakhtin atribui ao
termo:
A obra, assim como a réplica do diálogo, visa a resposta do outro (dos outros), uma compreensão responsiva ativa. As obras de construção complexa e as obras especializadas pertencentes aos vários gêneros das ciências e das artes, apesar de tudo o que as distingue da réplica do diálogo, são, por sua natureza, unidades de comunicação verbal: são identicamente delimitadas pela alternância dos sujeitos falantes (BAKHTIN, 1993, p. 298).
A imagem pressupõe enunciados, ou seja, elementos textuais de interação discursiva.
Ela é, então, construída num processo de interação mais ou menos explicitado, que pode
apresentar maiores ou menores graus de intervenção direta na materialidade da produção
textual.
Considerações finais
Este trabalho focalizou a descrição e análise da operacionalização de uma atividade
pedagógica desenvolvida na disciplina de Comunicação e Expressão, com de gêneros não-
escolares usados por Engenheiros Mecânicos.
Os resultados evidenciam que seu uso didático e pedagógico proporciona melhoria de
qualidade na prática docente. O planejamento dessa atividade pretende que os alunos
desenvolvam suas capacidades de ação, discursivas, lingüístico-discursivas em linguagem
entendido, não só para comunicação, mas acima de tudo, como interação social, isto é, que os
alunos se apropriam do gênero, desenvolvendo as capacidades implicadas na leitura de textos/
enunciados.
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Os gêneros discursivos encontrados são verbais e não-verbais, que se dirigem a
usuários que possuem propósitos definidos e claros. Por este motivo eles centram seus
recursos na interação centrada na “imagem”. Esta, por sua vez, cria mensagens na mente, que
interpreta o estímulo do texto que quanto mais icônicos ou coloridos sejam os elementos com
que são elaborados os textos, mais haverá intercalação ou enquadramento de gêneros -
processo de produção de significados.
Tais gêneros, usados como recursos pedagógicos discursivos na academia e na sua
função de desenvolver capacidades discursivas, podem ajudar no letramento dos aprendizes.
Ao estudar também, o discurso bivocal, dos seus propósitos enunciativos, os sentidos e
significados dos textos, ícones, figuras, metáforas e outras linguagens, a escola estará
desvendando perspectivas semânticas e axiológicas, contribuindo com seu papel social.
Concluo que este recurso comunicativo não se traduz em prática de linguagem de sala
de aula e também como recurso pedagógico. Contêm enunciados - textos, que precisam ser
estudados e entendidos pelos professores, com os seus diferentes sentidos e significados, antes
de serem trabalhados com os aprendizes. A escola pode utilizar-se deste recurso comunicativo
e pedagógico para contribuir com a formação do cidadão.
REFERÊNCIAS
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Bakhtin, M./Volochínov, V. N. (1929). Marxismo e Filosofia da Linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. SP: Hucitec, 1981.
FURLANETTO, Maria Marta. Produzindo textos: gêneros ou tipos? Perspectiva, Florianópolis, v.20, n.01, p. 77-104, jan./jun. 2002.
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SOARES, Magda. Letramento e alfabetização: as muitas facetas. Trabalho apresentado no GT Alfabetização, Leitura e Escrita, durante a 26ª. Reunião Anual da ANPEd, realizada em Poços de Caldas, de 5 a 8 de outubro de 2003.