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“PARA ESMAGAR A SERPENTE DO MAL”: AS REPRESENTAÇÕES DO GRUPO DE PENITENTES PEREGRINOS PÚBLICOS – AVES DE JESUS – SOBRE JUAZEIRO DO NORTE E A MISSÃO ABREVIADA. Roberto Viana de Oliveira Filho * “O rapazinho tem muito que saber. A missão tá aqui. Tá aqui pra padre, pra estudante, pra todo o povo de nação”. Com essa fala, o senhor João José Aves de Jesus, tateando sua longa barba, que confere a ele certa imagem de autoridade e idade avançada, inicia sua fala repleta de imagens bíblicas, referências à história da cidade de Juazeiro do Norte, do padre Cícero, penitência, medo, morte, castigo e fé. Integrante do grupo de Penitentes Peregrinos Públicos, ele recebe em sua casa todos aqueles que desejem saber mais sobre a “missão do senhor vivo”, que o penitente acredita ser o método mais eficaz para a obtenção dos prêmios divinos e de uma vida digna. Nesse trabalho, propomos um estudo sobre o grupo supracitado acerca das representações e apropriações que os mesmos fazem da “Missão Abreviada”, livro escrito no ano de 1859 em Portugal pelo padre Manoel José Gonçalves Couto, e da cidade de Juazeiro do Norte como local sagrado, responsável pela preservação do culto a “Missão”. Preocupamo-nos também em * Graduando em História pela Universidade Regional do Cariri, membro do LABIHM (Laboratório de Imagem, História e Memória) da mesma instituição. Link diretório de grupos de pesquisa http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/detalheest.jsp?est=5746682686852335 . E- mail: [email protected]

Para Esmagar a Serpente Do Mal

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Artigo do historiador Roberto Viana sobre as apropriações que um grupo de penitentes fazem acerca da Missão Abreviada para a construção do espaço sagrado em Juazeiro do Norte

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PARA ESMAGAR A SERPENTE DO MAL: AS REPRESENTAES DO GRUPO DE PENITENTES PEREGRINOS PBLICOS AVES DE JESUS SOBRE JUAZEIRO DO NORTE E A MISSO ABREVIADA.

Roberto Viana de Oliveira Filho[footnoteRef:1]* [1: * Graduando em Histria pela Universidade Regional do Cariri, membro do LABIHM (Laboratrio de Imagem, Histria e Memria) da mesma instituio. Link diretrio de grupos de pesquisa http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/detalheest.jsp?est=5746682686852335. E-mail: [email protected] ]

O rapazinho tem muito que saber. A misso t aqui. T aqui pra padre, pra estudante, pra todo o povo de nao.

Com essa fala, o senhor Joo Jos Aves de Jesus, tateando sua longa barba, que confere a ele certa imagem de autoridade e idade avanada, inicia sua fala repleta de imagens bblicas, referncias histria da cidade de Juazeiro do Norte, do padre Ccero, penitncia, medo, morte, castigo e f. Integrante do grupo de Penitentes Peregrinos Pblicos, ele recebe em sua casa todos aqueles que desejem saber mais sobre a misso do senhor vivo, que o penitente acredita ser o mtodo mais eficaz para a obteno dos prmios divinos e de uma vida digna. Nesse trabalho, propomos um estudo sobre o grupo supracitado acerca das representaes e apropriaes que os mesmos fazem da Misso Abreviada, livro escrito no ano de 1859 em Portugal pelo padre Manoel Jos Gonalves Couto, e da cidade de Juazeiro do Norte como local sagrado, responsvel pela preservao do culto a Misso. Preocupamo-nos tambm em explicitar a relao que o grupo estabelece entre a Misso Abreviada e o texto A machadinha de No, escrito pelo Padre Ccero Romo Batista no ano de 1931, na cidade de Juazeiro do Norte, Cear. Textos escritos h mais de um sculo ganham uma nova significao a partir da vivncia histrica do grupo de Penitentes Peregrinos Pblicos. A santa Misso que os Penitentes se orgulham tanto de sustentar, recebe novos contornos e novas aplicabilidades em um mundo onde as informaes circulam de forma mais rpida e o antigo corre o risco de perde-se para sempre nessa complexa teia histrica. A palavra sustentar tem uma importncia fundamental para os Penitentes Pblicos. Na capa da Misso encontramos os seguintes dizeres: Misso Abreviada: para despertar os descuidados, converter os pecadores e sustentar os fructos das misses. Juazeiro do norte seria ento para esse grupo o local sagrado, de uma fora mstica superior, responsvel por no deixar que as palavras da misso diluam-se nas tempestades do tempo. O acontecimento gerador dessa fora em Juazeiro , sem dvida, o milagre da Hstia protagonizado pela beata Maria de Arajo e conduzido pelo padre Ccero Romo. Discutiremos adiante com maior profundidade essas questes. importante que compreendamos agora como as representaes e apropriaes que os Penitentes Peregrinos Pblicos fazem sobre essa literatura e sobre o espao que os rodeia transformam no apenas as suas vidas, mas ajudam a construir novos captulos de uma Histria que parecia encerrada. Roger Chartier esclarece a importncia das apropriaes e representaes para a Histria:A problemtica do mundo como representao, moldado atravs das sries de discursos que o apreendem e o estruturam, conduz obrigatoriamente a uma reflexo sobre o modo como uma figurao desse tipo pode ser apropriada pelos leitores dos textos (ou das imagens) que do a ver e a pensar o real. Da [...], o interesse manifestado pelo processo por intermdio do qual historicamente produzido um sentido e diferenciadamente construda uma significao. Tal tarefa cruza-se, de maneira bastante evidente, com a da hermenutica quando se esfora por compreender como que um texto pode aplicar-se situao do leitor, por outras palavras, como que uma configurao, narrativa pode corresponder a uma refigurao da prpria existncia. No ponto de articulao entre o mundo do texto e o mundo do sujeito, coloca-se necessariamente uma teoria da leitura, capaz de compreender a apropriao dos discursos, isto , a maneira como estes afetam o leitor e o conduzem a uma nova forma de compreenso de si prprio e do mundo (CHARTIER:1985:24)

O veculo tradutor entre o mundo do texto e o mundo do sujeito o modo como esse sujeito torna pblica a sua cosmoviso atravs da linguagem e das suas aes pblicas. Encontramos nas discusses da Histria Oral, mecanismos que nos permitem compreender com mais clareza, e partindo das ideias dos prprios sujeitos sobre suas prticas, como os Penitentes Peregrinos Pblicos fazem essas apropriaes. As informaes debatidas aqui foram desenvolvidas a partir de entrevistas feitas nos anos de 2012 e 2013 com os integrantes do grupo tanto em suas residncias no Bairro Tiradentes na cidade de Juazeiro do Norte, como em atos pblicos.

1 - Para esmagar a serpente do mal: A Misso Abreviada em Juazeiro do Norte.

Os principais lderes de comunidades religiosas populares do Brasil (principalmente do Nordeste) usaram a Misso do padre Jos Couto como um guia para a conduo do seu rebanho. Nessa seleta estirpe podemos citar o padre Ccero (Juazeiro do Norte) e Antnio Conselheiro (Canudos, Bahia).Quando indagado sobre a importncia da Misso Abreviada, o penitente d um pequeno sorriso e diz: agora voc tocou numa coisa importante, rapaz e comea uma narrativa de sua experincia pessoal, o modo como conheceu a Misso e a surpresa que lhe ocorreu ao chegar a Juazeiro do Norte e no ver a santa Misso sendo usada nos rituais catlicos: Eu j tinha um conhecimentozinho dela pela educao dos meus pais, do meu av, da minha me, da minha av, que a primeira educao que ns tem. E eles foram de famlia muito Catlica, missionria. Eu j tinha uns conhecimento de parte da misso quando encontrei com ele[footnoteRef:2] pra aprofundar mais dentro da misso verdadeira, do conhecimento Catlico pra no ser to fcil de ser iludido por tantas igreja que tem hoje que a pessoa com quarenta, cinquenta, sessenta anos confessando, comungando, ainda passa pra outra religio, isso no Catlico. [...] Quando eu cheguei aqui em 1956 em Juazeiro, eu era muito criana, tinha uns sete, oito anos, morava num sitiozinho, quando cheguei meu pai me levou pra uma missa no Socorro e na Matriz e nos Franciscano, l com sete, oito anos e eu admirei a missa que foi celebrada. Meu pai mermo no deu sinal pra mim sobre a missa, fiquei l assistindo, rezando. Ai quando acabou no caminho de casa perguntei pro meu pai: pai, por que os padre hoje celebraram a missa to diferente? No assim no meu pai, a missa no assim no. Meu pai dizia: Meu filho o tempo marcado, o fim das Era. [...] ai eu: mas pai, t muito diferente. Ai ele disse: E num por causa disso que ns vai deixar de confessar, comungar, ir pra missa, casar e deixar de ser catlico no. [...] meu pai mas t muito diferente.[footnoteRef:3] [2: O penitente est se referindo a Jos Aves de Jesus (Mestre Jos), o lder do grupo de Penitentes Peregrinos Pblicos, que faleceu no dia 9 de Fevereiro de 2000. ] [3: Entrevista realizada com o Penitente no dia 11 de Junho de 2013, em sua residncia no bairro Tiradentes em Juazeiro do Norte, Cear. ]

O espanto do penitente frente divergente postura que ele aprendeu e a que ele via estampada nos ritos catlicos na cidade de Juazeiro do Norte fruto do impacto de um catolicismo ultramontano, romanizado e outro de carter popular, nascido a partir do convvio mais prximo da comunidade com os sacerdotes. O grupo de Penitentes Peregrinos Pblicos rene em suas aes uma mescla dessas duas prticas catlicas, que tambm observamos constituir uma caracterstica fundamental da cidade de Juazeiro do Norte. Ora encontramos em seus relatos elementos que constituem o pensamento ultramontano, ora argumentos que esto ligados s prticas catlicas menos ortodoxas. Um exemplo desse discurso dbio fica claro quando o penitente deixa transparecer quais so os grandes males do mundo para ele:

E aqui estamos e vamos seguir como filhos de Deus, a misso de padre Ccero, no tenha medo de representar esses voti, mas se for para pegar minha entrevista aqui e tocar pra dentro de bruxaria, de macumba, de espiritismo, de protestantismo, de maonaria, para criticar a misso de padre Ccero, da penitncia da me de deus, da santa cidade, se prepare que o castigo vai aumentar. Ento no leve minha presena viva com o pai, o filho e o esprito santo para colocar nessas imundias de espiritismo, protestantismo, maonaria, comunismo tudo o que no presta contra a Igreja Catlica Apostlica Romana; se for para fazer isso, eu peo a vocs pelo amor de Deus: vo ganhar dinheiro por outra coisa. Mas a custa dessa pregao no. Agora se for para dar testemunho, me ajudar, levar para o Brasil e para o estrangeiro ai pode representar e ganhar l o seu real, que o realzin serve a nis tambm[footnoteRef:4] [4: Entrevista realizada com o Penitente no dia 02 de Novembro de 2012, dia de finados, em uma ao pblica do grupo no cemitrio do Socorro em Juazeiro do Norte.]

Observamos nessa e em outras falas que a cosmoviso dos integrantes desse grupo de penitentes foi tambm influenciada pelo catolicismo ultramontano. Cabe aqui uma explicao sobre a prtica Ultramontana. A historiadora Maria Aparecida Junqueira Veiga Gaeta, comenta:A partir da segunda metade do sculo XIX, um novo modelo eclesial catlico comeou a ser implantado no Brasil: o ultramontanismo. De razes conservadoras, essa autocompreenso nasceu sob o impacto das revolues liberais europeias que agitaram o prprio trono pontifcio. Buscando uma consolidao doutrinria teolgica, estruturou-se em torno de alguns antemas: a rejeio cincia, filosofia e s artes modernas, a condenao do capitalismo e da ordem burguesa, a averso aos princpios liberais e democrticos, e sobretudo ao fantasma destruidor do socialismo. (GAETA:1997:2)

A influncia da prtica ultramontana na vida do Penitente no assim to surpreendente. Como vimos na primeira fala do senhor Jos Aves de Jesus, ele chegou muito jovem a cidade de Juazeiro e sua formao at o encontro com o Mestre Jos (e a do prprio Mestre) est ligada tambm aos ensinamentos ultramontanos da Igreja Catlica. O que nos impressiona exatamente o convvio, muitas vezes pacfico (mas nem sempre), das doutrinas dessa igreja ultramontanizada que exclui, por exemplo, o uso da Misso Abreviada nos rituais catlicos, e a fidelidade aos princpios propostos pelo Padre Couto em seu livro, que remete e influencia as prticas catlicas menos ortodoxas. Sentimentos antagnicos e influncias diversas formam a base ideolgica desse grupo. Analisaremos agora o que consideramos como os principais aspectos ideolgicos que compe a Misso do padre Couto e como essas ideologias influenciaram a cidade do Juazeiro e a vida dos Penitentes. Segundo Edianne Nobre e Jucieldo Alexandre:

A obra (Misso Abreviada) atingiu grande popularidade no Brasil oitocentista, especialmente no interior do pas, sendo, inclusive, utilizada por Antnio Conselheiro em sua misso no arraial de Canudos. Nesse sentido, pensamos que a narrativa do padre Manoel Couto se insere num discurso da mstica religiosa. Segundo Michel de Certeau (1982) h uma diferena entre a fala mstica e a fala teolgica como dois tipos distintos de apropriao do discurso religioso. A mstica aparece como uma fala que exprime as experincias marcadas por uma percepo intuitiva do divino, ao contrrio da teologia que seria uma percepo racionalizada. (NOBRE, ALEXANDRE:2011:99)

Entendemos que os objetivos da Misso Abreviada dividem-se em dois aspectos: o primeiro refere-se formao de agentes missionrios, capazes de sustentar e organizar o povo de Deus, dando a base espiritual necessria para a formao de uma comunidade coesa e ligada aos princpios do criador. O segundo aspecto refere-se forma como essas doutrinas ganham sustento nas comunidades. Assinalamos aqui a importncia dada ideia dos castigos divinos, como a principal teoria que serve de alicerce para que as prdicas da Misso fixem-se de forma eficaz na vida dessas populaes. Ana Christina de Carvalho em seu trabalho, Sob o signo da f e da mstica: estudo das irmandades de penitentes no Cariri cearense, explica que a Misso abreviada utilizada como uma espcie de Relquia pelos integrantes dos Penitentes Peregrinos Pblicos:

A mstica que envolve a Misso Abreviada pode ser aproximada de uma verdadeira devoo, pois envolve alm do culto ao livro enquanto representao do sagrado, atitudes e ritos de venerao. Esta inter-relao promove uma negociao com o sagrado que reverte o objeto em relquia, enquanto parte do sagrado. No imaginrio dos Penitentes Peregrinos, encarna o prprio Deus objetivado. O livro nos foi mostrado, no sem antes termos sido advertidos que no poderamos pegar ou tocar na Santa Misso Abreviada, s os devotos podem manusear o livro.

Em nossas pesquisas encontramos um dado novo e surpreendente. Enquanto o Mestre Jos, lder dos Penitentes Pblicos at o ano de 2000, estava vivo, a Misso Abreviada, encontrava-se em sua posse, velhinha e quase esquecida como disse um penitente quando indagado sobre a questo. Contudo (no sabemos ao certo a data desse acontecimento) o penitente Joo Jos (que ocupa a liderana aps a morte do mestre) resolveu fazer algo inovador: reciclar, reeditar, imprimir e distribuir a Misso Abreviada para qualquer pessoa que deseje adquirir o livro. Esse acontecimento criou no grupo uma nova rotina organizacional, permitindo que os mesmos estabelecessem uma relao com grficas, empresas, comunidades catlicas (pastorais) e que, de certa forma, o sentimento missionrio fosse renovado e recebedor de uma nova significao. O que estava escondido, velhinho e distante, ganhava novos espaos e possibilidades. Em seus discursos, os penitentes atribuem o relativo sucesso de sua empreitada missionria (e o rompimento dos obstculos) aos ensinamentos do padre Ccero e a construo de Juazeiro do Norte como esse espao propcio para o uso e propagao da Misso Abreviada, que para eles mais importante que a Bblia. Segundo Roberta Bivar Campos, o surgimento dos Penitentes Peregrinos Pblicos est diretamente ligado figura do padre Ccero. Para a autora importante analisarmos o grupo a partir dos causos[footnoteRef:5] que eles contam, pois elucidam de uma forma prpria algumas questes referentes a origem dos mesmos e a sua relao com o local onde vivem. Segue um relato da antroploga que torna evidente essas associaes: [5: Um causo um tipo de narrativa popular, muito encontrada no Nordeste brasileiro que lembra em sua forma um mito e repleto de elementos fantsticos que servem para elucidar algo do cotidiano daquelas pessoas.]

Mestre Jos, antigo lder da comunidade de penitentes Aves de Jesus[footnoteRef:6], contou-me que migrou para Juazeiro com sua costela, comadre Regina, acompanhado por Nosso Senhor Jesus Cristo , nos idos dos anos de 1970, quando padre Ccero colocou em seu corao o desejo de ir terra da Me de Deus. [6: Existem vrias nomenclaturas para o grupo de Penitentes que analisamos nesse trabalho. Escolhemos a nomenclatura: Penitentes Peregrinos Pblicos por que, em vrias entrevistas, os penitentes negam enfaticamente as outras nomenclaturas e mostram em suas roupas e bandeiras as iniciais P.P.P (Penitentes Peregrinos Pblicos). Alguns autores preferem o termo Aves de Jesus por conta do nome que os integrantes da comunidade acolhem quando entram no grupo: os homens so Jos Aves de Jesus e as mulheres Maria Aves de Jesus. Ainda encontramos nas falas de algumas pessoas da cidade os nomes borboletas azuis, azulzinhos, Irmandade do Rosrio, entre outras que os penitentes negam de forma rgida. (em anexo disponibilizamos uma imagem da bandeira com as iniciais P.P.P)]

Aps a morte do Mestre Jos, o grupo elabora uma nova relao com a cidade de Juazeiro do Norte, e um novo modus operante para a propagao da santa misso e a luta pela libertao das almas. O quartel general dessa destemido exrcito a Casa da Misso, que a casa do Penitente Joo Jos Aves de Jesus, o senhor que toma a frente dos projetos do grupo, e luta incessantemente pelo reconhecimento da misso e uma nova interpretao dos ensinamentos do Padre Ccero.

2 - A casa da Misso: a machadinha de No e o preocupante aviso de meu padim

Em 1931 padre Ccero escreve um contundente aviso aos seus amiguinhos (forma carinhosa que tratava os seus fiis) sobre o iminente fim do mundo A Machadinha de No - do qual s escapariam aqueles que estivessem em constante vigilncia e combate aos grandes males do mundo. Vigilncia e combate, prudncia e enfrentamento, observar e agir. Encontramos ressonncia desses elementos nos discursos do padre Ccero, da Misso abreviada e das falas e atos pblicos dos Penitentes Peregrinos Pblicos. importante que compreendamos agora como Juazeiro do Norte a partir da influncia do padre Ccero torna-se o local capaz de sustentar os ensinamentos da Misso Abreviada. Destacamos um trecho da Machadinha de No para que possamos estabelecer uma relao do contedo desse texto com os ensinamentos da Misso e como os penitentes transportam os seus contedos para as suas prticas.

MACHADINHA DE NOAviso do Padre Ccero Romo Batista sobre os principais acontecimentos do fim do Mundo(1931)Meus caros amiguinhos, chegado o ltimo momento de dar-vos o meu aviso a todos os habitantes da face da terra, como os sinais prediletos por Nosso Senhor Jesus Cristo, antes da sua sagrada morte paixo, convertei-vos e arrependei-vos dos vossos grandes pecados. Disse: Nosso Senhor Jesus Cristo, quando vires, pestilncias, fomes, guerras, revolues, nao contra a mesma nao, reino contra reino, que so as novas formas de governo, repblicas, ditaduras, belchevismo ou comunismo, como hoje est convertida a Rssia em um governo anti-cristo, forma de governo esta que brevemente se espalhar por toda face da Terra, terremotos, inundaes, coisas espantosas, diversos fenmenos, estas coisas so princpios de dores, e sinais do fim do mundo, ou destruio dos homens sobe toda a face da Terra, tudo isso devido ao pecado e a corrupo, cada dia os homens vo se afastando de Deus e de sua santa religio, o que amam os homens de hoje? A vaidade, a orgia, as riquezas e a toda sorte de corrupo, disse, Jesus Cristo, que nos ltimos tempos havia de multiplicar-se a iniquidade e o amor de muitos havida de esfriar; quer dizer que a santa religio crist ser abandonada, a Terra atualmente est cheia de falsas religies de falsos profetas, de falsos cristos as doutrinas anti-crists esto sendo propagadas em toda parte tal como a tal espiritismo ou fetichismo moderno levantado em todos os pases do mundo, tudo isso so os verdadeiros sinais do fim do mundo porm disse Jesus Cristo, que o evangelho do reino de Deus seria pregado em todo o mundo, que a religio crist, ento chegai o fim, olhe! Que estou os avisando! Convertei-vos e arrependei-vos hoje mesmo, que chegado o tempo do juzo final e do ajuste de contas, e quem no se arrepender mais tarde corar sem remdio, ai de vs pecadores, ai!

Escolhemos esse trecho da Machadinha de No por demonstrar de forma clara as diversas associaes que existem entre esse texto e as prdicas da Misso Abreviada. O discurso dos Penitentes Pblicos est atrelado a esses pensamentos de tal forma que em suas casas e em atos pblicos podemos perceber a simpatia pelas ideias antirrepublicanas, anticomunistas e monarquistas. No o foco do nosso trabalho discutir tais informaes, mas importante salientar que os penitentes guardam um carinho muito especial pelas figuras de Dom Pedro I e Dom Pedro II, inclusive na parede de suas residncias podemos observar fotos desses monarcas brasileiros. Essa atitude nos remete a prtica do Sebastianismo[footnoteRef:7], tanto pelas constantes queixas para a volta da monarquia como por entender que esses governos restaurariam o lugar devido da religio. [7: O sebastianismo uma crena milenarista no Quinto Imprio governado pelo Esprito Santo e pela Coroa Portuguesa, que tem origem na lendria histria de Dom Sebastio, rei de Portugal no sculo XVI, que governou o reino muito jovem e mesmo com pouca experincia tornou-se mrtir da sangrenta batalha de Alccer-Quibir, na frica, em 4 de agosto de 1578. O seu corpo nunca foi encontrado, o que deu margens para interpretaes de que esse rei voltaria e conclamaria um novo reinado.]

Por fim, discutiremos agora como Juazeiro do Norte torna-se local sagrado, e mais, responsvel pela conservao e sustentao das ideias da Misso Abreviada e refgio espiritual para aqueles que desejam alcanar a maior das graas divinas: o paraso. O evento fundador que constitui Juazeiro do Norte como esse local de uma mstica profunda o famoso Milagre da Hstia. Em 1889 na igreja de Nossa Senhora das Dores, a beata Maria Magdalena no Esprito Santo de Arajo recebe a comunho do padre Ccero e esta transforma-se em sangue na boca da beata que entra em xtase espiritual.Esse acontecimento faz com que Juazeiro receba grande quantidade de fiis que buscaram aproximar-se do poder divino, manifestado ali em sangue pelas mos do padre Ccero na boca da beata Maria de Arajo. vlido salientar que outras beatas tambm apresentaram as manifestaes extraordinrias que Maria de Arajo apresentou e outras: viagens espirituais, chagas no corpo, conversas com Jesus e at com o Papa[footnoteRef:8]. [8: Para compreender as questes referentes aos milagres da hstia e as representaes de Juazeiro como lugar de salvao a partir de narrativas femininas, indicamos a obra: O Teatro de Deus: as beatas do padre Ccero e o espao sagrado de Juazeiro. ]

Entendemos que esses acontecimentos, o culto ao precioso sangue e posteriormente ao padre Ccero so as sementes divinas formadoras do espao sagrado de Juazeiro do Norte, espao esse entendido pela historiadora Edianne Nobre como um espetculo onde os personagens vivem um verdadeiro Teatro Mstico:

Tentaremos perceber o espao em Juazeiro no como um mero cenrio, mas como um teatro, na acepo mais ampla do termo [...] O espao de Juazeiro se transmutar em espao de espetculo, pois, ser regido por outras noes de tempo e espao: as do tempo e espao sagrados. Entendemos ainda por um espetculo, a trama de tenses e conflitos que se estabelecem nas relaes de poder entre os personagens de um enredo[...] (NOBRE:2011:40)

Percebemos que o grupo de Penitentes Pblicos estabelece com o espao e histria do Juazeiro uma relao semelhante com a proposta pela historiadora. Em certos aspectos nos parece que os penitentes seriam os personagens de um segundo ato desse teatro mstico, uma vez que para eles, a sua funo est ligada com a manuteno e a luta pela correta assimilao dos ensinamentos do padre Ccero. O antagonista, a Igreja, estabelece ainda uma relao conflituosa com o grupo por no concordar com as ideias propostas pela misso abreviada e por ter estabelecido com a figura do padre Ccero outro tipo de relao. A historiadora supracitada percebeu nos discursos sobre os milagres em Juazeiro uma linguagem teatral que corrobora com o que citamos acima:

Acreditamos que os depoimentos que narram os milagres, bem como aqueles que querem detrata-lo so marcados por uma linguagem teatral que faz parte de uma tradio esttica e religiosa barroca. O teatro, no ento, mero palco onde as aes se desenrolam, um espao tramado, que vai sendo construdo e reconstrudo nas aes de seus personagens.

Essa luta simblica entre a Igreja e o grupo de Penitentes Pblicos trava-se em um mbito onde a Igreja tem fora e domnio muito mais visveis que o grupo. O que visvel, contudo, no parece ser mais forte e profundo. A igreja catlica luta cada dia mais pela garantia do seu espao e conquista de fiis para uma ritualstica moderna, aberta a diversas possibilidades, enquanto os Penitentes Pblicos conseguem ainda que pessoas vivam sob um rgido sistema scio/educativo onde a penitncia e mortificao corporal so usadas como mtodo para a obteno do perdo dos pecados. O que pretendemos aqui demonstrar como Juazeiro do Norte, o grupo de Penitentes Peregrinos Pblicos, A Misso Abreviada, Machadinha de No, penitncia, castigos divinos, Igreja catlica, romanizao, cu, inferno, sangue, enfim: cenrios e personagens de um teatro mstico so incorporados a vida das pessoas e transformam para sempre o cotidiano e a percepo no apenas desses indivduos, mas de sua comunidade, cidade, pesquisadores e todos aqueles que se encantam com um mundo novo, ora aparte ora to prximo de ns.

3 - FONTES E REFERNCIA BIBLIOGRFICA

3.1 Fontes (escritas e orais)JOO JOS AVES DE JESUS, penitente, membro e atual lder do grupo de Penitentes Peregrinos Pblicos, conhecidos tambm como Aves de Jesus. Entrevistamos o senhor Joo Jos durante vrios dias, nesse trabalho utilizamos basicamente as entrevistas dos dias: 02 de Novembro de 2012 e do dia 05 de Junho de 2013.COLTO, Manoel Jos Gonalves. Misso Abreviada: para despertar os descuidados converter os pecadores e sustentar o fructo das misses. 6.ed. Porto: Tipografia de Sebastio Jos Pereira, 1868.BATISTA, Ccero Romo. A machadinha de No. 1931

3.2 - BibliografiaCAMPOS, Roberta Bivar C; Contao de causos e negociao de verdade entre os Aves de Jesus, Juazeiro do Norte CE. Etnogrfica [Online], vol. 13 (1) | 2009.___________. Como Juazeiro do Norte se tornou a terra da me de Deus: penitncia, ethos de misericrdia e identidade de lugar. Religio e sociedade, Rio de Janeiro, 28(1):146-175, 2008.CARVALHO, Anna Chistina Farias de. Sob o signo da f e da e da mstica: um estudo das irmandades de penitentes no Cariri cearense. 1. Ed. Fortaleza: Editora IMEPH, 2011.DELUMEAU, Jean. A histria do Medo no Ocidente (1300 1800). So Paulo. Paz e Terra. 4 Edio: 1984GAETA, Maria Aparecida Junqueira Veiga. Cultura clerical e a folia popular. Revista brasileira de Histria. V.17, n 34, So Paulo, 1997.NOBRE, Edianne dos Santos. O Teatro de Deus: as beatas do Padre Ccero e o Espao sagrado de Juazeiro. 1. Ed. Fortaleza: Editora IMEPH, 2011.NOBRE, Edianne dos Santos; ALEXANDRE, Jucieldo Ferreira. A misso abreviada: prticas e lugares do bem-morrer na literatura espiritual portuguesa da segunda metade do sculo xix. Revista Brasileira de Histria das Religies. ANPUH, Ano IV, n. 10, Maio 2011 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Histria & Histria Cultural. Belo Horizonte: Autntica, 2008.SILVA, Lemurel Rodrigues da. O discurso religioso no processo migratrio para o caldeiro do Beato Jos Loureno. Tese (doutorado), Natal, RN, 2009.

4. Anexos:

Fotos: A casa da Misso, Bandeira com as iniciais P.P.P (Penitentes Peregrinos Pblicos) e o penitente Joo Jos Aves de Jesus segurando a Misso Abreviada.