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Para que se tornasse possível a transferência de imagem para o betão, é necessário salientar que o processo do qual falamos tem as suas origens no sgraffito, técnica enraizada em vários exemplos que datam do século XIV – concretamente, em Itália e na Alemanha – e até em vários monumentos religiosos portugueses. Na sua etimologia, o sgraffito significa ‘arranhar’, ‘esgravatar’ ou ‘esgrafiar’, consistindo em remover a camada superficial da argamassa presente nas paredes, de forma a gravar na parede palavras ou outros ornamentos que decoravam o interior ou o exterior dos edifícios. Esta técnica atinge o seu expoente máximo na decoração das fachadas de palácios italianos do Renascimento, estando também presente nalgumas quintas em Grisons, nos Alpes Suíços. O processo de sgraffito é conseguido quando se sobrepõe a uma argamassa escurecida, uma camada de estuque que posteriormente é ‘raspada’ em função do desenho pretendido. No caso das igrejas portuguesas, existentes em Évora – Ermida de São Brás, Convento de S. Bento de Cástris, Igreja de Santa Clara, entre outras -, a presença do ornamento feito segundo este processo, é aplicado de modo pontual (decorando paramentos, frontões), não revestindo as superfícies construídas, na totalidade. Na consequência do movimento tecnológico da época, em 1860, Gottfried Semper (1803-1879), um dos mais importantes arquitectos alemães da sua época, debruçou-se sobre o sgraffito promovendo o revivalismo desta técnica. Graças ao aparecimento de novos materiais, relaciona a componente construtiva com a componente pictórica presente no revestimento da superfície do edificado. Assim constrói uma nova linguagem que varia conforme o lugar e o tempo em que a obra se insere, e abre caminho à maior interacção entre o observador e o construído. Com o início do movimento moderno e com a procura de destruir todos os vínculos relacionados com a história da arquitectura, o apelo ao não-ornamento era predominante, tendência assumida em 1908 por Adolf Loos, no seu ensaio ‘Ornamento e Crime’. A reabilitação do ornamento deu-se com o pós-modernismo. Herzog & de Meuron assumem um papel importante não só no desenvolvimento da transferência de imagem para o betão,

Para que se tornasse possível a transferência de imagem para o betão

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Para que se tornasse possível a transferência de imagem para o betão, é necessário salientar que o processo do qual falamos tem as suas origens no sgraffito, técnica enraizada em vários exemplos que datam do século XIV – concretamente, em Itália e na Alemanha – e até em vários monumentos religiosos portugueses. Na sua etimologia, o sgraffito significa ‘arranhar’, ‘esgravatar’ ou ‘esgrafiar’, consistindo em remover a camada superficial da argamassa presente nas paredes, de forma a gravar na parede palavras ou outros ornamentos que decoravam o interior ou o exterior dos edifícios. Esta técnica atinge o seu expoente máximo na decoração das fachadas de palácios italianos do Renascimento, estando também presente nalgumas quintas em Grisons, nos Alpes Suíços. O processo de sgraffito é conseguido quando se sobrepõe a uma argamassa escurecida, uma camada de estuque que posteriormente é ‘raspada’ em função do desenho pretendido. No caso das igrejas portuguesas, existentes em Évora – Ermida de São Brás, Convento de S. Bento de Cástris, Igreja de Santa Clara, entre outras -, a presença do ornamento feito segundo este processo, é aplicado de modo pontual (decorando paramentos, frontões), não revestindo as superfícies construídas, na totalidade. Na consequência do movimento tecnológico da época, em 1860, Gottfried Semper (1803-1879), um dos mais importantes arquitectos alemães da sua época, debruçou-se sobre o sgraffito promovendo o revivalismo desta técnica. Graças ao aparecimento de novos materiais, relaciona a componente construtiva com a componente pictórica presente no revestimento da superfície do edificado. Assim constrói uma nova linguagem que varia conforme o lugar e o tempo em que a obra se insere, e abre caminho à maior interacção entre o observador e o construído.Com o início do movimento moderno e com a procura de destruir todos os vínculos relacionados com a história da arquitectura, o apelo ao não-ornamento era predominante, tendência assumida em 1908 por Adolf Loos, no seu ensaio ‘Ornamento e Crime’. A reabilitação do ornamento deu-se com o pós-modernismo. Herzog & de Meuron assumem um papel importante não só no desenvolvimento da transferência de imagem para o betão, mas em primeiro lugar, na discussão da utilização do ornamento em arquitectura. Desde cedo que os arquitectos manifestaram interesse nesta problemática, e é através da sua abordagem que o ornamento, estigmatizado por Loos, é reabilitado. Mas muitas foram as experiências levadas a cabo por Herzog & de Meuron na exploração de materiais e revestimentos de fachadas: Blue House (1979, Oberwill, Suíça); no trabalho em pedra natural desenvolvido para a Stone House (1982, Tavola, Itália); nos estudos de cor feitos para a Pilotengrasse Housing (1987/92, Viena, Áustria); nas considerações sobre a técnica sgraffito em vidro, betão e pedra por meio da serigrafia, na fachada do Edifício SUVA (1988/1993, Basileia, Suíça); nos primeiros desenhos previsto para a placagem de betão do Pfaffenholz Sports Centre (1989/93, Sant-Louis, França); na fachada de painéis translúcidos impressos existentes na fachada do Ricola Storage Building (1992/93, Burnstatt, França). A analogia entre o sgraffito e arte da tatuagem evidencia-se, e este processo ancestral é recuperado e interpretado como uma nova ferramenta que estabelece dicotomias entre relação espaço interior/exterior e superfície/volume. Herzog & de Meuron formulam uma série de soluções para este problema, antes de chegar à técnica de impressão no betão, e portanto, ao

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resultado demonstrado na Biblioteca de Eberswalde. As primeiras tentativas por parte dos arquitectos estão presentes no projecto proposto a concurso para o Sils-Cuncas (1991, Engadin, Suíça) em que a sua intenção era inscrever frases na fachada; porém, o projecto foi rejeitado pela população local. Também não foi aceite o projecto previsto para a Igreja Ortodoxa Grega (1989, Zurique, Suíça), onde se propunha revestir o interior da obra com painéis de mármore translúcido impressos com imagens icónicas, produzindo tipos de iluminação diferente consoante a hora do dia. Importa referir que, efectivamente, o debate sobre o uso do ornamento é aprofundado por estes arquitectos, mas o tema que nos importa desenvolver no presente trabalho, é o da desactivação do betão, daí o especial enfoque na obra da Biblioteca de Eberswalde e no Pfaffenholz Sports Centre – exemplos onde a fachada de betão sofreu a transferência de imagem.