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Amor e Poder: as relações afetivas entre homens e mulheres ativistas negros/as Paulo Santos Dantas 1 Resumo No Brasil, as pesquisas sobre relações raciais foram específicas ao tratar das populações historicamente subalternizadas. No que se refere às populações negras, nas últimas décadas os estudos revelaram que a maioria dos negros/as brasileiros/as ocupa as posições inferiores no "mundo" do trabalho e na hierarquia social brasileira (Hasembalg, 1979; Bairros, 1988). E na medida em que outras pesquisas (cf. Fernandes, 1972; Pierson, 1971; Azevedo, 1955) sobre os negros em posição de ascensão social se limitavam a anunciar o processo de embranquecimento por eles vivenciados, tal perspectiva tenderia a ser vista como uma "traição", isto é, uma forma de negar a cultura negra e o passado de pobreza (cf. Figueiredo, 2002). Para além do mercado de trabalho, as populações negras têm dado, todavia, novas respostas às desigualdades sócio-raciais no nosso país. Uma delas foram os casamentos inter- raciais, os quais reforçaram em boa medida a idéia de que experimentávamos uma democracia racial brasileira. O novo contraponto (afetivo) a essas alianças parece começar a tomar forma: trata-se das relações afetivo-amorosas intra-raciais entre negros, as quais têm se produzido em contextos de atuação política ativista. Este artigo pretende, pois, analisar algumas das razões que possibilitaram a constituição de tais relações endogâmicas, sobretudo a partir das experiências de ativistas negros/as sergipanos e baianos/as. Pretende-se demonstrar ainda que tais vínculos resultam em posição de poder. 1 Graduado em ciências sociais pela UFS, mestre em ciências sociais (antropologia) pela UFBA, professor Assistente de Antropologia da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) e doutorando em antropologia pela USP.

Paulo Santos Dantas

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  • Amor e Poder: as relaes afetivas entre homens e mulheres ativistas negros/as

    Paulo Santos Dantas1

    Resumo

    No Brasil, as pesquisas sobre relaes raciais foram especficas ao tratar das populaes historicamente subalternizadas. No que se refere s populaes negras, nas ltimas dcadas os estudos revelaram que a maioria dos negros/as brasileiros/as ocupa as posies inferiores no "mundo" do trabalho e na hierarquia social brasileira (Hasembalg, 1979; Bairros, 1988). E na medida em que outras pesquisas (cf. Fernandes, 1972; Pierson, 1971; Azevedo, 1955) sobre os negros em posio de ascenso social se limitavam a anunciar o processo de embranquecimento por eles vivenciados, tal perspectiva tenderia a ser vista como uma "traio", isto , uma forma de negar a cultura negra e o passado de pobreza (cf. Figueiredo, 2002). Para alm do mercado de trabalho, as populaes negras tm dado, todavia, novas respostas s desigualdades scio-raciais no nosso pas. Uma delas foram os casamentos inter-raciais, os quais reforaram em boa medida a idia de que experimentvamos uma democracia racial brasileira. O novo contraponto (afetivo) a essas alianas parece comear a tomar forma: trata-se das relaes afetivo-amorosas intra-raciais entre negros, as quais tm se produzido em contextos de atuao poltica ativista. Este artigo pretende, pois, analisar algumas das razes que possibilitaram a constituio de tais relaes endogmicas, sobretudo a partir das experincias de ativistas negros/as sergipanos e baianos/as. Pretende-se demonstrar ainda que tais vnculos resultam em posio de poder.

    1 Graduado em cincias sociais pela UFS, mestre em cincias sociais (antropologia) pela UFBA,

    professor Assistente de Antropologia da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) e doutorando em antropologia pela USP.

  • 2

    Introduo

    Embora este artigo no trilhe a linha de uma contestao dos artifcios de

    pesquisa ou do modo como os dados so coletados e analisados, ele parte do

    suposto que a eleio (obviamente legtima) de certos elementos em detrimento de

    outros, junto com os espaos visitados e percorridos pelo antroplogo ou antroploga

    na inteno de explicar o fenmeno das relaes raciais no Brasil elucida certas

    questes de nossa histria, mas permite no cobre todas as possibilidades. Parece

    bvio, todavia, que normalmente a generalizao no pretendida. Se isto correto, e

    os dados dispostos nos discursos e nas representaes simblicas dos indivduos

    envolvidos nas relaes inter-raciais ou intra-raciais podem ser recuperados como

    matria prima de novas anlises, os dados que mensuraram as disposies das

    relaes matrimoniais e mesmo algumas das razes para que os distanciamentos e as

    aproximaes sociais, econmicas e educacionais podem ser tomados para o dilogo

    com novos agrupamentos de fatores. Ou seja, lado a lado com as razes encontradas

    ou produzidas pelos indivduos envolvidos, por exemplo, em relaes endogmicas

    entre homem preto e mulher preta, que consideraes elas possibilitaro? Para

    responder a esta questo mais uma vez a questo da interpretao, que tem valor

    simblico caro antropologia moderna, deve ser retomada. Este o momento

    propcio para eu descrever alguns percursos do meu estudo, o qual cruzou, em certos

    momentos, com atividades de trabalho, relaes polticas e afetivas.

    E embora metodologicamente fosse mais prtico discutir este ou aquele espao

    de mobilizao poltica, as discusses que pretendo descrever e analisar retoma os

    contextos das atuaes dessas duas entidades negras e explicitam relaes no

    somente polticas e pessoais, mas tambm amorosas, as quais tm sado dos domnios

    dos bastidores das descries interpessoais para ganhar uma dimenso densa,

    conflituosa e pblica no mbito das entidades negras. O contexto das tenses, que iro

    desembocar nas relaes amorosas intra-raciais - pois as primeiras que resultam as

    segundas e no o inverso -, o ponto que me interessa discutir aqui.

  • 3

    No entanto, no que se refere relao do seu governo e sua relao com

    segmentos que representam os movimentos sociais de negros e negras, a constituio

    da Secretria de Polticas de Promoo da Igualdade Racial (Sepir), ainda que guarde

    certas divergncias com alguns grupos daqueles movimentos sociais e esteja sendo

    observada por segmentos miditicos e por grupos que resistem eleio de polticas

    de governo diferenciadas, considero que tal situao demonstra um trato diferenciado

    com os segmentos que se apresentam como representantes da causa anti-racista.

    No que diz respeito aos militantes e organizaes negras sergipanas, possvel

    perceber a participao de alguns de seus membros neste cenrio. Frente ao valor

    simblico de sua representao e considerando a representatividade que o estado de

    Sergipe tem no parlamento nacional, deve-se considerar que a posio privilegiada no

    poder, mas do que o nmero absoluto de membros, produz um valor e abre novas

    perspectivas para organizaes e militantes negros sergipanos. Quem so os membros

    sergipanos que integram a Sepir no importante por ora. Importa conhecer, isto sim,

    os contextos que possibilitaram a mudana de atuao para o mbito federal, ou

    questionar se a sua presena nesses novos espaos representa as mudanas de

    orientao poltica de ordem geral nesses segmentos.2 No que diz respeito aos

    chamados movimentos negros sergipano, considero que sim, mas tais mudanas no

    aparecem como o resultado de uniforme de maturidade poltica interna. Diferente

    disto, este texto sugere que as tenses polticas, mas que um projeto poltico

    uniforme, marcam mais as mudanas pelas quais passam os movimentos negros

    brasileiros contemporaneamente.

    No estado de Sergipe, a organizao dos movimentos sociais negros seguiu o

    curso histrico da reformatao ou da efervescncia dados movimentos sociais desde

    a redemocratizao da sociedade brasileira a partir dos finais dos anos 1970 e 80. A

    sua atuao poltica, at o final da dcada de 1980, orientou-se precisamente pela

    denncia da presena de preconceito e discriminao racial. O desenvolvimento das 2 Importa tambm, no entanto, considerar que para aquela secretaria for admitido um casal de

    militantes negros. Longe de legitimar as coincidncias, h, contudo, uma coerncia poltica, a saber: os membros que seriam convidados a participar da referida secretaria deveriam estar sintonizados com as orientaes polticas que ali se processariam.

  • 4

    aes dos movimentos negros em Sergipe nos anos oitenta tem basicamente trs

    caractersticas: a primeira, marcada pela criao da Casa da Cultura Afro-Sergipana no

    final da dcada de 1960, a continuaria a desenvolver as suas atividades at a dcada

    de 1990. Considera-se que a atuao daqueles movimentos negros tem especialmente

    a marca cultural3, razo pela qual deve-se supor a dicotomia com a ao poltica dos

    demais movimentos sociais emergentes no mesmo perodo.

    Interessa-me neste texto analisar os contextos no interior dos quais so

    produzidos os discursos e as tenses em prol da constituio de relaes intra-raciais

    entre ativistas negros/as sergipanos, as quais, desde a ltima metade da dcada de

    1990, se fortaleceram, sobretudo, em duas entidades negras: a Sociedade Afro-

    Sergipana de Estudos e Cidadania (Saci) e a Associao Aba de Arte-Educao e

    Cultura Negra. Utilizaremos como recurso metodolgico para tal anlise a noo de

    indivduo em ..., as representaes individuais e coletivas de mile Durkheim... Estas

    reflexes dialogaro dinamicamente com os dados da pesquisa de campo, de modo

    que nos propomos a chegar a consideraes valiosas acerca dos significados das

    relaes afetivas e da noo de poder no mbito dos movimentos negros sergipanos

    na dcada de 1990.4

    3 Este aspecto mais visualizado atravs da literatura sergipana sobre movimentos sociais.

    4 Participei, como bolsista de iniciao cientfica, entre 1998 e 99, do projeto Raa, identidade e

    territorialidade: a construo de uma identidade negra em Sergipe, o qual foi coordenado pelo professor Paulo Srgio da C. Neves Departamento de Cincias Sociais da Universidade Federal de Sergipe. Na ocasio, participamos de reunies, atividades e eventos de entidades negras ligadas ao Frum Estadual de Entidades Negras de Sergipe (FENS), o qual foi criado em meados dos anos 1990.

  • 5

    III - Os meandros das tenses polticas entre entidades negras sergipanas

    A dcada de 1990 crucial para entendermos o contexto das mudanas pelas

    quais passaram as entidades, os homens e as mulheres negras ativistas, enfim, os

    movimentos negros5 organizados no estado de Sergipe como um todo. Este perodo

    crucial para entendermos o contexto da mobilizao poltica daqueles segmentos,

    dado que ali foi gerada uma nova orientao, isto , de uma postura poltico-discursiva

    predominantemente denunciatria e contestatria da presena de preconceito e

    discriminao racial, passou-se a desenvolver aes com a designao eleita pelas as

    Organizao No Governamentais - Ongs (negras) - como propositivas6.

    certo que algumas organizaes e militantes negros continuariam com as

    denncias, pois, conforme os seus argumentos, os quais foram confrontados com

    observaes por mim realizadas, alguns problemas cujas desigualdades baseadas nos

    grupos raciais continuam presentes. Estas atuaes, todavia, perderam prestgio e

    visibilidade na sociedade sergipana como um todo, ocupando um lugar comum da

    atuao militante. Esse lugar comum tanto foi produzido pelas instituies

    hegemnicas e seus representantes, como pelas instituies negras, as quais se

    apropriaram da forma e dos discursos do movimento das Ongs7, na medida em que se

    propuseram a pensar polticas que pudessem minimizar as desigualdades raciais.8

    5 O termo movimentos negros, no plural, e no movimento negro, no singular, sinaliza uma mudana de

    percepo que mais significativa para aqueles que estudam tal universo poltico, que para os ativistas que ali atuam. 6 Dizer o que significa.

    7 Qdo se d tal movimento e qual a sua repercusso

    8 Anti-racistas, essas medidas dizem respeito a projetos de lei municipais que buscavam deslegitimar

    propagandas que privilegiavam, explicitamente, o grupo branco, como nas propagandas que exigiam boa aparncia para ocupao de empregos no mercado de trabalho. O domnio da educao formal e dos espaos pblicos se constituiu, contudo, como a base das novas mobilizaes, pois esteve no centro do debate de instituies e grupos os mais diferenciados. A mobilizao de segmentos negros no campo da sade pblica tambm se incorporou a estas novas propostas de atuao. Ela, todavia, parece ter sido mais objeto de profissionais especialistas, os quais trouxeram para o domnio poltico as especificidades dos problemas enfrentados pela populao negra. Bibliografia

  • 6

    Dadas as especificidades de aes e a despeito do reconhecimento de algumas

    demandas polticas em comum, conforme pude discuti durante o meu trabalho de

    mestrado,

    (...) o movimento negro brasileiro no uma entidade que construiu estratgias, valores e perspectivas em torno de um projeto poltico. Antes, a idia de movimento aqui analisada como um processo de organizao poltica e/ou cultural de construo de projetos e orientao ideolgica, que descreve uma forma elstica de atuao. (cf. Dantas, 2003: 89).

    Opto, deste modo, pela acepo segundo a qual tal segmento entendido e

    descrito no plural. Isso implica em dizer que, normalmente, a utilizao da categoria no

    singular ou no plural no implica, para os membros que a atuam, em diferenciaes

    de atividades, discursos e aes distintas na histria de cada atuao, na forma, nos

    recursos utilizados e na dimenso simblica que produz a referncia identitria das

    organizaes negras reconhecidas como integrantes dos movimentos negros.

    Para entender os efeitos destas distines, os movimentos negros sergipanos

    devem ser entendidos9, neste texto, a partir de uma srie de organizaes polticas

    que se colocando ora como autnomas no que se refere sua definio, ora como

    distintas no que diz respeito ao seu contedo temtico10, mobilizaram diversos

    indivduos em torno de orientaes polticas dinamicamente definidas. Este texto no

    pretende, contudo, descrever as atuaes de entidades negras diversas. O meu

    9 O incio da dcada de 1990 marca diferenas importantes para os movimentos negros. Em 1991

    criada a CONEN Coordenao Nacional de Entidades Negras -, organizao que postulava construir um projeto poltico que pode ser visualizado em duas direes: na primeira, reconhecer-se-ia as demandas polticas diferenciadas de entidade para entidade (e mesmo de regio para regio), situaes que impossibilitaria um programa centralizado de aes pensadas por uma cpula que distribuiria as atividades pelas entidades que se multiplicariam como clulas; a segunda direo tomada pela Conen liga a primeira caracterstica com a perspectiva de construir uma proposta ou estratgia ampla e sintonizada de participao ou conquista do poder poltico estatal. Tais investimentos implicaram numa ciso com O Movimento Negro Unificado (MNU), que foi criado em So Paulo, em 1978, e alcanou o seu auge na dcada de 1980. A forma como o MNU buscava ampliar a sua atuao era atravs da promoo de encontro com militantes e mesmo pequenas entidades negras. Os Encontros de Negros organizados por esta ltima entidade, os quais eram focados em discusses amplas e abertas acerca das questes raciais, funcionavam como uma das plataformas de filiao de novos integrantes mesma. Cf. Dantas, 2003, cap. 2 e 3; Ver tambm Silva, 2001. 10

    A atuao, financiada por organizaes nacionais e internacionais, junto comunidades negras, assessoria jurdica ou a outras entidades negras na sua organizao, descreve um modo de atuar. A organizao de blocos afros, da capoeira angola e de outras atividades similares do mundo cultural sinaliza para outro(s) modo(s) de atuao poltica militante.

  • 7

    objetivo apontar algumas dessas diferenciaes, as quais produzem elementos

    orientaes normativas e discursos, os quais se apresentam de forma importante para

    explicar as tenses experimentadas por homens e mulheres ativistas do ponto de vista

    de suas relaes amorosas endogmicas.

    O surgimento de um grande nmero de entidades negras na segunda metade

    dos anos 1980 e incio dos 90 possibilitou a insero de um nmero tambm

    expressivo de mulheres negras nesses espaos. Em certos contextos, como o caso de

    instituies negras sergipanas, as mulheres negras teriam a oportunidade de no

    somente discutir a temtica de suas trajetrias e os significados que elas deveriam

    ter, como tambm tais grupos puderam se multiplicar nas estruturas da gesto ou do

    poder destas instituies. Essa insero deu-se primeiramente pelo seu envolvimento

    e habilidade para discutir a problemtica da populao negra, depois pela nova

    configurao da poltica e dos movimentos sociais modernos, os quais revelaram uma

    srie de identidades at ento esvaziadas de demandas polticas. A presena, a

    importncia e o protagonismo da mulher negra no mundo contemporneo dividiram o

    espao do poder com o homem negros nesses domnios, alterando a sua imagem e das

    instituies que participavam, como tambm os seus projetos amorosos.

    As orientaes polticas sobre as quais estou me debruando tendem a mobilizar

    indivduos em instituies entidades negras formalmente constitudas, medida que

    estas ganham visibilidade e prestgio neste espao de atuao. Nesses termos, essas

    orientaes podem ser tambm entendidas como efeito de um processo de

    construo de identidades e referncias dinamicamente constitudas, cuja dimenso

    poltica tem, de fato, homens e mulheres ativistas como protagonistas de aes

    reconhecidas no interior dos movimentos negros. Por este motivo a insero de

    indivduos em organizaes negras institucionalmente constitudas aqui entendida

    como uma atuao orgnica, enquanto a atuao individualizada, isto , no

    articulada com filiao a organizaes negras, entendida como no-orgnica.

    Essas atuaes orgnicas e no orgnicas ganharam legitimidade e

    importncia simblica diferenciadas no interior desses segmentos, de modo que, para

  • 8

    o indivduo a inserido, entender-se e ser reconhecido como ativista significa agregar

    valor s suas potencialidades individuais. Isso implica em dizer, tambm, que tanto a

    identidade negra, que mobilizada como instrumento poltico, quanto as

    potencialidades discursivas e de articulaes de ativistas nesses meios, so

    normalmente acionadas com vistas a produzirem um status no interior do prprio

    campo. Esse status, percebido na referncia que ativistas fazem de outros ativistas,

    potencializa habilidades individuais que so reconfiguradas e acionadas no mbito do

    jogo realizado no seu espao de atuao.

    De todo modo importante observar que a militncia no orgnica, cuja atuao

    dispe de lgica e instrumentos prprios, sobretudo discurso, mas tambm silncios,

    ausncias e boicotes, tambm continuou produzindo as suas aes, de forma que em

    alguns momentos de sua atuao o capital discursivo e simblico desses ltimos

    ganhou visibilidade social notria. Ou seja, mais que a atuao em instituies negras,

    a habilidade com que militantes orgnicos e no-orgnicos utiliza os instrumentos de

    que dispem que o projeta dentro dos movimentos negros e fora deles.

    A idia ativista orgnico nos movimentos negros provm da noo de intelectual

    orgnico descrita por Gramsci (ano). Para este autor, o mundo capitalista trouxe

    consigo uma srie de mudanas, assim como fez emergir novos sujeitos, os quais

    desempenhariam papis distintos. Na medida em que a chamada classe burguesa, ao

    desenvolver-se no Regime Feudal, trouxe consigo o empresrio capitalista, com ele

    tambm vieram o economista, o tcnico da indstria, o advogado, o administrador,

    enfim, o organizador das mais distintas esferas do Estado. Esses novos sujeitos so

    descritos por Gramsci como os intelectuais ou os funcionrios da superestrutura,

    aqueles responsveis pelas novas formas assumidas pelo Estado e pela sociedade. De

    outro lado, opondo-se quele grupo, haveria a classe operria, que, segundo Gramsci,

    teria os seus prprios intelectuais, os quais comandariam as mudanas sociais,

    pensadas desde Marx. 11 O que os mov. Negros tem a ver com isso?

    11

    A realidade do mundo capitalista se transformou de forma extraordinria desde os seus primeiros desdobramentos no sculo XVIII. O perodo que me interessa analisar (a dcada de 1990), do mesmo

  • 9

    No que se refere ao reconhecimento poltico, ou produo de capital simblico

    (Bourdieu, ano) nos movimentos negros sergipanos, este implica na mobilizao de

    algumas situaes concretas. Deve-se destacar que, comumente, ativistas que

    integram entidades anti-racistas cuja atuao reconhecida dentro e fora do

    meio, institucionalizaram as suas aes polticas e, junto a elas, criaram o seu prprio

    espao fsico12, tiveram maiores chances de serem reconhecidos. Tal

    reconhecimento, por eles produzido primeiramente dentro do seu domnio de

    atuao, tender a ser posto prova em outros domnios.

    Os movimentos sociais e os partidos polticos so os principais domnios que no

    exatamente se opem a atuao dos movimentos negros, mas que possibilitaram a

    construo de uma identidade poltico-cultural contrastiva. Junto constituio de

    entidades negras, a formao do Frum Estadual de Entidades Negras de Sergipe (em

    1991)13 e a sua consolidao na segunda metade daquela dcada, formam as duas

    situaes concretas que, a meu ver, potencializaram o prestigio das entidades negras

    como um segmento diferenciado dos demais movimentos sociais, projetando alguns

    dos seus ativistas, mas do que outros. Todavia, no que tange s disputas e s tenses

    internas quele coletivo e s demais entidades negras no frum de entidades ou

    fora dele, a Saci foi a organizao que com mais habilidade, processou o prestgio e a

    modo que os segmentos que me motivam a pensar a sua mobilizao, isto , homens e mulheres militantes dos movimentos negros, mobilizam percepes e interaes do mundo social contemporneo profundamente diferenciadas do mundo experimentado pelo operariado clssico analisados pela teoria marxista durante ps Karl Marx. A referncia noo de hegemonia em Gramsci aqui se deve percepo de que certas trajetria polticas foram, de fato, marcadas por essas influncias, as quais tiveram a sua importncia. No que se refere ao perodo contemporneo, deve-se observar, entretanto, que essas marcas ou influncias clssicas deixaram de ser dominantes no interior dos movimentos negros brasileiros. A dcada de 1990, junto com uma srie de desdobramentos das tenses entre o mundo capitalista e o comunista, apresentam-se como um smbolo, o qual representa o fortalecimento da dinmica do primeiro sistema scio-econmico, mas tambm o dinamismo identidades culturais que reivindicaro o seu lugar no mundo globalizado (citar autores). 12

    Isto , a sua prpria sede. 13

    A criao Frum de Entidades Negras de Sergipe foi inicialmente pensada e articulada pelos dirigentes da Sociedade Afro-Sergipana de Estudos e Cidadania, entidade que havia participado da criao da Coordenao Nacional de Entidades Negras (Conen) no mesmo perodo, e por conta disso tinha objetivos definidos frente direo daquele a aos seus projetos para aquele frum.

  • 10

    visibilidade simblica, os quais trouxeram consigo o que no pretendiam: as acusaes

    de ter defendido os seus interesses em meio aos demais (Dantas, 2003, pp. 97-98).14

    importante desde j destacar que este reconhecimento simblico, que

    marcado por tenses, mas tambm por habilidades retricas e por um tratamento

    estrategicamente polido com as relaes internas, projetou, sobretudo, os homens

    negros. Frente s mulheres negras, tradicionalmente esses ativistas puderam

    promover as suas mobilidades scio-econmicas com menos dificuldades. Ao mesmo

    tempo eles estiveram mais prximos e interessados (organicamente) pela poltica

    estatal.15 Essas potencialidades e interesses podem ser mensuradas a partir das

    filiaes de homens militantes a partidos polticos desde a dcada de 1980.

    Na segunda metade da dcada de 90 os partidos polticos, sobretudo no campo

    da esquerda, tornaram-se o espao privilegiado das disputas por poder empreitadas

    por aqueles segmentos. Antes disso, tinha-se uma circulao um tanto amadora e

    mesmo marginal por esses meios. Este desdobramento, imprescindvel para entender

    a entrada formalizada de uma nova gerao de homens e mulheres militantes

    sergipanos nos partidos de esquerda a partir de sua filiao, marca os seus novos

    investimentos num campo cujas regras do jogo e as relaes a postas apresentam

    uma histria e um formato diferenciado da que estavam acostumados a conviver.

    Poder e regras do jogo, segundo Bourdieu.

    Do ponto de vista do interesse em participar dos espaos do poder e mesmo de

    conquist-lo, o movimento em direo ao campo dos partidos de esquerda reflete a

    motivao por conhecer e dominar as regras do jogo mencionadas por Pierre

    Bourdieu (ano).

    14

    Em algumas reunies daquele frum, cujo centro das discusses girava em torno de alguma ao frente aos grupos que se opuseram ao FENS, militantes e entidades negras que atuavam fora dele, podia-se perceber maior concordncia poltica entre os grupos hegemnicos e no-hegemnicos no coletivo. 15

    Esta percepo est longe de deduzir que as mulheres negras s recente tomaram conhecimento da importncia da vida poltica partidria nas suas vidas. O que se deve ponderar que, perversamente, a emergncia das mulheres no campo da militncia partidria reflete o ocultamento deste segmento como protagonista de seus prprios interesses, demandas e conquistas.

  • 11

    A dcada de 1990 e os anos subseqentes marcaram, portanto, esta idealizao

    para sinalizar a legitimao dos movimentos sociais negros, mas no apenas como um

    segmento autnomo, com percepes e demandas prprias. Este perodo d um novo

    salto, ou, em outras palavras, rev relaes de parceria, buscando formaliz-las.

    neste perodo que h uma profissionalizao e provocao das instituies negras

    frente aos indivduos a mobilizados a pensar a sua trajetria com vistas a uma

    capacitao de tal modo diferenciada das dcadas de 1980 e, sobretudo da de 70, que

    os resultados podem ser visibilizados em trs frentes: aquela que apresenta os

    movimentos negros mais modernos e seus ativistas como os porta-vozes de um

    projeto amplo que inclui polticas especficas no campo da educao, da sade e do

    mercado de trabalho; a participao no poder estatal; e outra que se amplia mais para

    dentro de suas atuaes e vai implicar no questionamento de interesses e vontades

    individuais, produzindo, inclusive, uma moralizao dessas vontades: a situao que

    mais percebo como uma problemtica interna (mas que se estende sobre universos

    exteriores) so as relaes endogmicas, ou seja, o binmio homem negro - mulher

    negra.

    A moralizao dessas vontades individuais, as quais devem ser melhor

    entendidas como vontades frutos de processos histricos e sociolgicos e sociolgicos

    para alm do indivduo, esto fundadas no questionamento e na rejeio tcita de

    relaes inter-raciais, isto , negros com brancos.

    Essas tenses tornaram-se presentes nos movimentos negros como um tudo.

    Mas do que a sua presena, talvez as tenses sejam um dos recursos mais bem

    sucedidos de militantes e entidades negras para promoverem a sua visibilidade e

    produzirem a sua legitimao poltica ou seu capital simblico. Embora esse

    instrumento simblico seja utilizado de forma dinmica, pois assume contedos

    distintos na medida em que as relaes entre as entidades negras (mais de ordem

    institucional) e aquelas entre militantes (ora informais, ora formais), deve-se

    considerar que as tenses no constituam exatamente uma situao normativa, mas

    com ela alguns temas nunca tratados ganharam uma importncia capital.

  • 12

    Pude perceber, por meio de trabalho de campo, como tais situaes so

    construdas nas relaes dos movimentos negros com o campo da esquerda, de

    entidade para entidade ou entre militantes. O captulo a seguir discute o contexto das

    tenses entre homens e mulheres negras ativistas dos movimentos. Essas tenses,

    descritas a partir de duas organizaes negras sergipanas (a Saci e a Associao Aba),

    tiram ou resgataram (Foucault) as relaes amorosas endogmicas entre negros do

    mbito privado e desconhecido dos bastidores dos movimentos negros ou de suas

    entidades para se tornarem pblicas, problemticas, recorrentes e um smbolo de

    atitude politicamente correta e recurso de poder.

    II - Como o trabalho de campo foi aqui utilizado e qual a importncia

    O trabalho de Wagner Gonalves (2006), nos auxilia, de forma dinmica, para a

    discusso no que tange reflexo sobre a observao participante16, pois esta se

    coloca na posio contrria qual refutaria a antropologia de gabinete, refutando-a.

    Para ele, mais que a construo de um novo instrumento de pesquisa, a observao

    participante permitiu uma relao de tal modo diferenciada entre pesquisador e

    pesquisado17, que o antroplogo se tornava ele prprio o instrumento de pesquisa. Em

    seus termos, o antroplogo propiciaria antropologia a perspectiva intersticial (o

    olhar desde dentro) que sua ferramenta bsica, sua marca registrada, desde ento

    (Gonalves, 2006:13).

    16

    definida por Bronislaw Malinowski como a convivncia ntima e prolongado do pesquisador com os seus sujeitos de pesquisa, ou, como entre os mais tradicionais, os seus informantes nativos (Cf. Gonalves, 2006: 13). 17

    No mundo ps-colonial esta relao entre pesquisador e pesquisado, comumente entendida como de mo nica, possvel de ser invertida. Esta discusso retomaria a problemtica sobre a impossibilidade tanto da manuteno do laboratrio quanto do objeto antropolgico, entendidos ao modo das cincias naturais. Colocar num mesmo texto o incio e o trmino desta discusso significaria ter que modificar toda a perspectiva deste texto e pleitear a metade de uma dcada para novos e profcuos estudos. O prprio Gonalves (op. cit., 13) destaca que a partir do contexto de descolonizao, nos anos 1960, dos povos tradicionalmente estudados pela antropologia e das mudanas das relaes polticas e econmicas entre as sociedades destes dois sujeitos, o tema, o limite e os objetivos do do trabalho de campo como texto etnogrfico ressurgiu de forma poderosa. A este respeito ver Histria da antropologia, de Paul Mercier (ano).

  • 13

    Da dcada de 1960 para c a antropologia passou por uma srie de mudanas,

    ou ao menos aqueles dentro deste domnio buscou tornar as convices clssicas

    objeto da teoria antropolgica. A antropologia interpretativista de Clifford Geertz, nos

    anos 70, ergue-se, conforme Gonalves, sobre a desconfiana com relao

    capacidade explicativa das representaes culturais holsticas e fechadas do outro.

    Nos anos 1980, a antropologia norte-americana passa a ver a prpria produo

    etnogrfica como objeto de interpretao, isto , como uma espcie de contraponto a

    um primeiro tempo das interpretaes e do texto gerado acerca das culturas. Este

    segundo momento dos meta-etngrafos e de suas meta-narrativas, cujas

    preocupaes, segundo Gonalves, recaam sobre questes relativas ao prprio

    processo de produo das representaes antropolgicas (Cf. Gonalves, 2006:13-

    21). Fazer consideraes acerca do que eles diz.

    A primeira perspectiva de coleta de dados e reflexo terica admite essas

    complicaes modernas, as mesmo tempo em que a circulao facilitada pelos

    domnios dos movimentos negros e das relaes mais individuais ali produzidas ali

    produzidas permitem, mais facilmente, a apreenso dos discursos para sinalizar ursos

    ou das razes que aqueles militantes teriam para no-falar. Poder marcar uma

    entrevista/conversa com um militante, na praia, ou com um casal, na sua casa ou

    apartamento, ou ser convidado para almoar/jantar em suas residncias com suas

    famlias, constitui, de fato, uma dimenso privilegiada do antroplogo que esta

    possibilidade. Tambm certo que as complicaes com os interesses dos indivduos

    entrevistados/as pode sinalizar as suas pautas polticas e no reflexo antropolgica.

    Admitir tais possibilidades, descrev-las e enfrent-la constitui, tambm, do meu

    ponto de vista, a tarefa corajosa e disciplinada do profissional em antropologia.

    Para discutir as possibilidades e dimenses das relaes amorosas/afetivas entre

    negros, inclusive se eles e elas se perceberem como militantes, preciso sinalizar ao

    mesmo tempo as possibilidades e os valores que produziram o seu oposto: as

    relaes amorosas/afetivas inter-raciais. Essas relaes que, num esquema

    quantitativo/qualitativo, representam, no nosso imaginrio, um quadro de

  • 14

    representaes opostas, tm mobilizado os segmentos inter-raciais envolvidos,

    ativistas e acadmicos a pensarem tanto os seus impedimentos quanto as suas

    possibilidades de consolidao scio-culturais. O que tenho notado que as

    discusses, os nmeros apresentados pelas estatsticas, as perspectivas polticas de

    lado a lado e os dados da pesquisa scio-antropolgica, formam um conjunto de

    elementos capazes de revelar uma interpretao das experincias amorosas e

    democrtica brasileira. Esta interpretao no d conta, nem deve ser sua

    pretenso, de relaes no mencionadas.

    Isto me faz considerar, preliminarmente, que as relaes amorosas dentro ou

    fora do grupo e ou os dados de pesquisa rigorosamente organizadas com vistas a

    produzir reflexes e consideraes que nos permitam conhecer as razes e os

    significados razoveis dessas experincias, permitem, todavia, novas reflexes e

    investigaes, pois elas prprias se constituem, tambm, representaes e

    ressignificaes da experincia humana objeto de seus estudos.

    Alguns dados sobre cor e casamentos na literatura

    Em Razo, cor e desejo18, Laura Moutinho destaca que as anlises sobre a

    dinmica dos relacionamentos afetivo-sexuais inter-raciais estavam abandonadas

    desde os trabalhos de Thales de Azevedo, em 1975. Segundo ela, foram as pesquisas

    quantitativas que possibilitaram a revitalizao desses estudos, provocando, inclusive,

    o desenvolvimento de novas pesquisas e a organizao de componentes aos

    fenmenos e tendncias por elas demonstradas. Conforme os seus estudos, h um

    relativo consenso, independente do vis interpretativo, nos novos estudos acerca

    dos dois tipos de motivaes para a constituio de casamentos inter-raciais: a

    perspectiva assimilacionista e a motivao de natureza mais demogrfica (cf.

    Moutinho, 2004: 34).

    18

    Moutinho, Laura. Razo, cor e desejo: uma anlise comparativa sobre relacionamentos afetivo-

    sexuais inter-raciais no Brasil e na frica do Sul. So Paulo: Unesp, 2004, captulo 1.

  • 15

    A sinalizao de Nelson do Valle Silva (1987: 54), para quem o casamento entre

    grupos minoritrios e majoritrios teria sido constantemente utilizado como

    indicador do grau de assimilao das minorias, transforma este modelo de explicao

    paradigmtico, segundo Moutinho (2004: 34), num locus privilegiado das mais

    variadas interpretaes sobre a miscigenao e preconceito racial. O segundo ponto,

    isto , a motivao de natureza mais demogrfica, subdividida por Silva em quatro

    fatores, os quais sero considerados neste tipo de anlise, a saber: a) o tamanho dos

    grupos de cor; b) a razo da masculinidade; c) o conceito de distncia social; d)

    um padro de concesso de status como elemento de explicao para o encontro

    afetivo-sexual entre o homem escuro e a mulher clara (Apud Moutinho, 2004, pp.

    34-35). Destes quatro fatores, interessa-me, sobretudo, as discusses sobre o tamanho

    dos grupos e a chamada razo da masculinidade, por considerar que, juntos, me

    ajudam a pensar outras razes para as relaes que eu chamo de amorosas entre

    homem negro e mulher negra ativistas.19

    Para Silva, o que determina as relaes dentro dos grupos raciais o seu

    tamanho. Ou seja, quanto maior o grupo, maior a proporo de pessoas se casando

    dentro do grupo (Silva, 1987: 56). Moutinho considera, contudo, que a partir do

    Censo demogrfico de 1980 pode-se perceber que as propores de grupos brancos

    e de pretos vm diminuindo numa relao inversamente proporcional ao grupo de

    pardos, que vem aumentando. Estes dados a fazem considerar que, a manuteno

    de alguns fatores, em condies de igualdades, produziriam maiores condies para

    casamentos endogmicos entre brancos do que entre outros grupos, na medida em

    que este se constitui o grupo maior, em termos absolutos. Este seria o primeiro

    elemento do dilogo com as explicaes de Valle (cf. 2004: 35).

    19

    As categorias negro, branco e mulato, assim como a de raa e inter-racial so utilizadas entre aspas primeiramente porque, no dilogo com a literatura especializada, formamos um acordo de compreenso quanto ao problema da naturalizao das mesmas. Isto , para os efeitos das discusses tericas no campo da antropologia contempornea tais categorias devem ser entendidas como construes scio-culturais ou polticas, as quais devem ser entendidas em seu contexto de produo simblica. Em outros termos, admite-se que dentro da categoria negro, por exemplo, existam grupos que, tomando critrios diferenciados de classificao, poderiam ser reconhecidos como no-negros mulatos em alguns casos e at brancos em outros.

  • 16

    No que diz respeito aos nmeros relativos ao quantitativo de homens e

    mulheres, registra-se mais mulheres que homens. O mesmo dado se distingue,

    todavia, entre os chamados grupos de cor. Conforme Moutinho, no grupo branco

    h um dficit maior de homens, enquanto que nos grupos pardos, pretos e

    amarelos ocorre justamente o oposto. Os grupos pardos e pretos se

    assemelhariam nos itens renda e taxa de fecundidade, diferenciando-se do grupo

    branco, o qual teria maior renda e menor taxa de fecundidade. Elza Berqu (1998)

    foi quem trouxe mais dados sobre a populao brasileira no que diz respeito

    categoria cor, focalizando, sobretudo, a freqncia com que a populao auto-

    declarada preta crescia. Esses dados tratam de mortalidade e nupcialidade.

    Tomando os seus dados e as suas consideraes a partir do que nos diz Moutinho, em

    termos relativos, podemos perceber, nas ltimas quatro dcadas, um aumento do

    grupo pardo e uma diminuio das populaes brancas e pretas. Segundo as

    pesquisas de Berqu, tanto os homens pretos quanto mulheres pretas20 se casam

    mais tarde que os homens bancos ou pardos [grifos da autora] (apud Moutinho,

    2004, pp. 40-41)21.

    Esses casamentos fora do grupo seriam explicados, no Brasil, como um

    fenmeno intra-classe e no como endogamia racial, j que aqui tendemos a

    perceber a cor e a posio scio-econmica como estando diretamente relacionadas

    (Moutinho, 36). A pirmide etria por cor, no Brasil, conforme a autora, evidencia

    diferenas gerais na quantidade de homens e mulheres entre grupos distintos e idade

    dos indivduos. A estes fatores de ordem demogrfica Nelson do Valle chamou de

    razo de masculinidade ou razo dos sexos. Os dados mostraram que, quando o

    indicador a educao, para todas as combinaes de cor dos cnjuges, o nvel

    20

    Chama a ateno o nmero de mulheres solteiras com 50 anos. As mulheres pretas representam um universo de 13,4%, enquanto as pardas correspondem a 8,0% e as brancas 7,7%. Fonte: Berqu (1998). 21

    O primeiro casamento, dir a autora, ocorre entre 15 e 35 anos. Mas a o grupo de homens brancos estar minoritariamente, enquanto observar-se- a maior freqncia de mulheres brancas e homens no-brancos.

  • 17

    educacional predominantemente equilibrado22, embora seja maior a ocorrncia de

    homens mais educados que as esposas.23

    IV - Algumas das dimenses das relaes amorosas na Saci e na

    Associao Aba

    A estas consideraes e aos dados que elas representam quero trazer, para o

    dilogo, algumas prticas e discursos de homens e mulheres que se entendem como

    negros, mas tambm com ativistas. Os seus discursos inundados pro tenses e

    cumplicidades, representam o jogo dentro do qual esto envolvidas as relaes entre

    tais sujeitos no mercado das relaes amorosas. As categorias cor, raa, negro

    e negra, do mesmo modo que o mundo de representaes significativas dos

    movimentos negros, so aqui entendidas como atravessadas por contextos polticos

    internos queles segmentos no que se refere legitimao de certos debates e

    demandas polticas. O que norteiam estas categorias e as posicionam num lugar

    privilegiado de tenses frente ao poder pblico estatal e as instituies que o

    representam a perspectiva de poder que homens e mulheres ativistas postulam

    desenvolver no mbito de suas relaes com esses outros segmentos. O ponto nodal

    desta discusso apresentado a seguir a partir dos contextos que tornaram possveis

    relaes intra-raciais entre homens negros e mulheres negras militantes dos

    movimentos negros sergipanos.

    Em fins de 1996 e incio de 97, quando ainda fazia a graduao, tive a

    oportunidade de conhecer duas entidades negras: A Associao Aba de Arte

    Educao e Cultura Negra, antigo Grupo Aba de Capoeira Angola, e a Sociedade Afro-

    Sergipana de Estudos e Cidadania (Saci). Na primeira instituio, que atuava sobretudo

    com a capoeira angola e buscava desenvolver aes voltadas para crianas e

    22

    Por fim, em trabalho mais recente, nos diz Moutinho, Silva (1991) abordaria a estabilidade temporal e as diferenas regionais na seletividade matrimonial [grifos meus], confirmando a hiptese de autores anteriores conforme os quais o desenvolvimento econmico reduz as distncias entre os grupos raciais. Esses autores foram, sobretudo, Gilberto Freyre, Florestan Fernandes e Carlos Hasembalg (Cf. Moutinho, 2004: 39). 23

    Este dado se difere somente quando o casamento do homem pardo com a mulher preta.

  • 18

    adolescentes, pude me envolver em suas atividades, semanais, durante trs anos, isto

    , at o incio do ano 2001, quanto migrei para a cidade de Salvador/Bahia para

    realizar o mestrado em Cincias Sociais. Com a Saci, cujas atividades eram

    diversificadas na medida em que assessorava tanto comunidades rurais negras, quanto

    outras instituies negras (de menor porte), a minha insero foi um pouco mais breve

    dois anos apenas. Tendo sido primeiramente criada, segue a descrio da Saci.

    Antiga Unio dos Negros de Aracaju (Una), a qual foi criada em 1986 com vistas a

    dar visibilidade poltica ativista e confrontar a presena de preconceito e discriminao

    racial contra a populao negra nos estado de Sergipe, a Saci (Sociedade Afro

    Sergipana de Estudos e Cidadania) alcanou o seu auge de organizao e de

    empreendimentos de polticas durante a dcada de 1990. Enquanto Una, esta

    entidade foi formada por homens e mulheres negras (e mestias/os)24, os quais se

    propuseram, junto s denncias de preconceito e discriminao racial, tambm

    construo de uma identidade negra positiva frente populao de ascendncia

    africana no-militante. Nesta direo, ao passo que se mobilizavam para produzir uma

    perspectiva poltica e cultural de identidade negra, tais homens e mulheres ativistas

    dinamizavam a sua prpria identidade cultural coletiva, a qual ir repercutir sobre as

    individualidades no campo dos movimentos negros naquele estado.

    Mesmo no que tange identidade de militantes, ou apesar de sua construo

    simblica, o lugar da identidade negra nesses meios no se apresenta to rgido

    quanto possvel supor dados os discursos, ou a possibilidade de uma representao

    nesses moldes s pode ser percebida elencando valores e prticas do ponto de vista

    que se percebe negro e manipula outras referncias sem que esta perca o seu capital

    simblico no mbito de suas praticas discursivas. Por conta disto, pode-se perceber

    que entre indivduos reconhecidos como mestios, isto , sem a marca singular da

    melanina e dos padres de classificao por ela provocados na sociedade sergipana,

    possvel que passem a ser entendidos com negros, se a esta nova classificao

    pretendida foram incorporados uma sria de prtica corporais e comportamentais

    24

  • 19

    que acusem, nesses meios, a presena de uma nova forma de se perceberem no

    mundo social. Estas prticas dizem respeito forma como reutilizaro os seus cabelos,

    as suas roupas, mas tambm nos meios e nas relaes que nascero dessas novas

    formas de percepo. Os movimentos negros, as instituies negras que deles fazem

    parte, os espaos de circulao por eles produzidos e etnizados, assim como os seus

    membros que a partir deles fazem a manuteno do que so e do que postulam

    quem os (novos) que por a circulam devem ser, provocam, como pude ver, que

    indivduos normalmente reconhecidos como negros, mestios e mesmo

    brancos repensem as suas representaes identitrias. Todos esses elementos e

    sujeitos produzem uma dimenso coletiva que se ope negao da identidade negra

    ou silencia frente s normatizaes sociais ou aos privilgios que algusn grupos teriam

    diante da populao negra.

    Esta dimenso coletiva da identidade cultural foi poderosamente acionada por

    mulheres negras ativistas, as quais, enquanto ativistas, tiveram mais visibilidade em

    entidades negras orgnicas. Sobretudo essas mulheres e esses discursos ganharam

    propores maiores na Saci e na Associao Aba, as quais mantiveram relaes

    institucionais de parceria.

    A etnografia que fiz na Associao Aba e na Saci s pode ser assim entendida se

    considerarmos duas posies: a partir da utilizao que fiz daquelas experincias para

    projetos de iniciao cientfica25, pois elas guardaram dados que foram coletados a

    partir de procedimentos que buscaram legitimar os lugares tanto das entidades e

    dos militantes quanto de pesquisadores e estudantes iniciados; a segunda posio

    diz respeito memria guardada, resgatada e ressignificada daquelas reunies, haja

    vista que dados aqui discutidos e outros possveis de serem produzidos foram de

    algum modo colocados nas reunies e entrevistas realizadas.

    Isto , at o final da dcada de 1990 e a primeira metade da dcada deste novo

    sculo, a atuao orgnica em algumas entidades negras no resultava

    necessariamente em mobilidade econmica, mas significa algum prestgio, na medida

    25

    Raa, identidade......

  • 20

    em que a insero a algumas daquelas organizaes era condicionada a um convite

    feito por um membro de prestgio ao interessado. Em meio ao interesse de alguns

    grupos de indivduos em inserirem-se em entidades orgnicas, havia de fato aqueles

    que no atendiam ao perfil de ativista ou de scio

    Do ponto de vista da organizao e do desenvolvimento das aes dos movimentos negos na dcada de 1990, algumas das entidades negras, especialmente aquelas articuladas aos grupos no-hegemnicos, buscavam apresentar desdobramentos de suas aes no Frum de Entidades Negras, na medida em que pretendiam ter sua sede prpria, desenvolver projetos de forma sistematizada e obter recursos financeiros.

    Neste sentido, os movimentos negros ganharam uma nova dinmica, posto que as entidades que integravam o frum de entidades comeavam a pensar em melhorar sua estrutura fsica e de aes internas. A maior parte daquelas entidades postulou uma estrutura de Ong, mas dificuldades como formao profissional dos seus integrantes, a necessidade desses indivduos se inserirem no mercado de trabalho, juntamente com a pouca habilidade para adquirir mais informaes acerca das fontes de recursos e aos meios para faz-lo junto s agncias financiadoras, foram as causas materiais do seu fracasso.

    A relaes amorosas no campo da militncia sergipana ainda no foi objeto de estudo, seja nas cincias sociais, seja em reas afins como a psicologia em Sergipe. No h quaisquer referncias a este tema nos poucos estudos anteriores que trataram das relaes raciais contemporneas no estado de Sergipe. No meu trabalho, essas relaes amorosas ganharam maior importncia, na medida em que as discusses acerca das estratgias de poder nos movimentos negros locais resultavam em novos desdobramentos, os quais revelaram a presena desse mecanismo afetivo entre a militncia negra sergipana. Note-se que a percepo de discursos e posturas politicamente corretas de mulheres e homens negros ativistas me chamaram a ateno desde o incio da minha circulao por esses meios. Tais posturas eram de tal modo sedutoras, que s a observao de sua articulao no me bastou, e logo constitu uma daquelas relaes endogmicas. Devo destacar que tal tema sempre

  • 21

    esteve na ordem dos meus interesses, motivo pelo qual realizo uma satisfao pessoal antiga.26

    Consideraes Finais

    Os dados estatsticos que apresentam as mulheres pretas como o grupo mais

    problemtico e cujas representaes no que tange aos nmeros de casamentos e

    separaes descrevem um contexto de solido afetiva que comea a ser explorada

    pela antropologia contempornea (cf. Pacheco, ano), esbarra no ativismo dos

    movimentos negros contemporneos. Esta assertiva, todavia, como pudemos ver, s

    pode ser levada em conta num contexto contemporneo, isto , da ltima dcada de

    1990 para c. ali que a problemtica dos casamentos dos casamentos entre homens

    militantes com mulheres socialmente brancas questionada e, mais do que isto,

    comea a representar um incmodo ou a pedra no sapato desses ativistas e do salto

    alto das mulheres com que casaram.

    E na medida em que as aes polticas militantes no dialogavam e no

    mantinham qualquer relao com os projetos matrimoniais masculinos negros, as

    crticas de mulheres ativistas nunca conseguiram ganhar visibilidade ou se legitimar no

    conjunto das demandas produzidas por esses segmentos. A sua possibilidade se deve

    emergncia e produo de novas identidades culturais do mundo moderno, as quais,

    baseadas na diferena, potencializam a sua presena em espaos de poder e

    legitimao, os quais normalmente produziram uma invisibilidade sintomtica,

    esvaziados as suas identidades. A idia de fazer poltica ou de atuar em cenrios

    no-hegemnicos resulta em efeitos que, a despeito da imagem de subalternos,

    produz tenses e saberes cujas fronteiras entre os de dentro e os de fora desses

    lugares tendem a se complexificar na medida em que esto sendo refeitas luz de

    verses relacionais, porm distintas nos seus contedos.

    26

    O ponto alto das possibilidades de analisar esses contextos amorosos deu-se durante as entrevistas para a seleo do Concurso Internacional de Bolsas de Ps-Graduao da Fundao Ford em 2002. No contexto da apresentao do meu projeto, os meus pareceristas concordaram que essa discusso era pertinente dentro da minha proposta de pesquisa, fato que influenciou positivamente o meu propsito.

  • 22

    No domnio dos movimentos negros modernos qual a posio no poder e que

    imagens o homem e da mulher negra esto produzindo contemporaneamente?

    Possivelmente o protagonismo que esses sujeitos esto assumindo e pretendem

    redimension-lo na sociedade brasileira ir alterar os dados de quatro dcadas atrs,

    quando o nmero relativo de pardos crescia, enquanto os grupos negros e

    brancos diminuam. Esta alterao no necessariamente dar em termos absolutos,

    mas simblicos. Um dado importante das mudanas pelas quais passam a populao

    negra e os movimentos que se apresentam como seus representantes que todas as

    novidades (tambm relativas) apresentadas pelas cincias sociais acerca da

    experincia contempornea ganham, muito rpido, o domnio popular.

    Isto implica em dizer que as orientaes que produziram tenses polticas que

    tm implicado em mudanas na ordenao dos pares matrimoniais, passando, em

    certos contextos, dos inter-raciais (sobretudo homem negro mulher branca) para

    intra-raciais (homem negro mulher negra), tm conhecimento de dos dados e das

    consideraes do campo cientfico que lhe interessam. Assim, embora autnomo no

    que tange sua filosofia, o campo cientfico produz um conhecimento que tende a ser

    utilizado com um instrumento poltico para novas significaes da experincia social. O

    movimento de troca de saberes e percepes entre pesquisador e pesquisado, ou

    entre a cincia e o mundo da experincia, rearticula, em novos termos, as suas

    relaes de troca. Ao que parece, cada um dos lados continua fazendo o que acha que

    deve ou pode fazer com aquilo que o outro constri.

    Os casamentos endogmicos no interior dos movimentos negros no

    representam, de fato, as trocas matrimoniais articuladas por antepassados. Esses

    casamentos (ou namoros) tambm no devem ser pensados como a representao de

    orientaes essencialistas, baseadas na noo esvaziada de raa, cor ou etnia. Os

    contextos pesquisados contemporaneamente revelam que as identidades ou as

    classificaes raciais so fruto de construes discursivas e de posicionamentos que

    dizem respeito ao modo como os sujeitos da ao do significados sua percepo

    cultural, poltica ou simblica de si mesmo e do mundo que fazem parte. Esses

  • 23

    sujeitos, conforme pudemos perceber, no dispem dos elementos histricos e sociais

    para produzirem os efeitos raciais que tanto apavoram os defensores de um mundo

    onde as vontades individuais sejam asseguradas. O que parece ser menos foroso

    pensar que as vontades individuais so atravessadas por orientaes contextuais que

    aceitam as normais mais gerais da vida contempornea: a tenso baseada na

    diferena.

  • 24

    Referncias bibliogrficas

    SILVA, Francisco C. Cardoso da. (2001) Construo e (Des)Construo de Identidade

    Racial em Salvador: MNU e Il Aiy no combate ao racismo, Campina Grande/Paraba

    Dissertao de Mestrado