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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-graduação em Letras Alex Mourão Terzi A CONSTRUÇÃO ENUNCIATIVA DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL EM DIREITO AMBIENTAL: o caso da Usina Hidrelétrica de Irapé Belo Horizonte 2014

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-graduação em Letras

Alex Mourão Terzi

A CONSTRUÇÃO ENUNCIATIVA DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL EM

DIREITO AMBIENTAL: o caso da Usina Hidrelétrica de Irapé

Belo Horizonte

2014

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Alex Mourão Terzi

A CONSTRUÇÃO ENUNCIATIVA DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL EM

DIREITO AMBIENTAL: o caso da Usina Hidrelétrica de Irapé

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Linguística e Língua Portuguesa.

Orientador: Prof. Dr. Paulo Henrique Aguiar Mendes

Belo Horizonte

2014

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FICHA CATALOGRÁFICA

Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Terzi, Alex Mourão

T332c A construção enunciativa do desenvolvimento sustentável em direito

ambiental: o caso da Usina Hidrelétrica de Irapé / Alex Mourão Terzi. Belo

Horizonte, 2014.

217f.: il.

Orientador: Paulo Henrique Aguiar Mendes

Tese (Doutorado)- Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa

de Pós-Graduação em Letras.

1. Enunciação (Línguistica). 2. Direito ambiental. 3. Análise do discurso. 4.

Desenvolvimento sustentável. 5. Subjetividade. I. Mendes, Paulo Henrique Aguiar.

II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação

em Letras. III. Título.

CDU: 800.85

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Alex Mourão Terzi

A CONSTRUÇÃO ENUNCIATIVA DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL EM DIREITO AMBIENTAL: o caso da Usina Hidrelétrica de Irapé

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Linguística e Língua Portuguesa.

_________________________________________ Paulo Henrique Aguiar Mendes (Orientador) – UFOP

_________________________________________ Dylia Lysardo-Dias – UFSJ

_________________________________________ Guilherme Jorge de Rezende – UFSJ

_________________________________________ Maria Ângela Paulino Teixeira Lopes – PUC Minas

_________________________________________ Wander Emediato – UFMG

Belo Horizonte, 04 de agosto de 2014.

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Dedico este trabalho a Viviane, porque ela representa a mais linda expressão do amor.

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AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Dr. Paulo Henrique Aguiar Mendes, porque muito mais que

orientador, foi, é e será sempre um amigo. Analista do Discurso exemplar, presente

em todos os momentos.

Aos Profs. Drs. Heberth Paulo de Souza, Guilherme Jorge de Rezende, Dylia

Lysardo-Dias, Maria Ângela Paulino Teixeira Lopes e Hugo Mari, mestres detentores

de todo o meu respeito e admiração.

Aos colaboradores da Secretaria da Pós-graduação da PUC, pela presteza na

consecução dos serviços.

A todos os meus amigos, pela necessária e recorrente presença.

A Viviane, Ísis e Estela, esposa e filhas, meus amores maiores, pelo apoio

incondicional e pela paciência em todos os momentos em que não estivemos juntos

em razão da tese...

A minha mãe, Zélia, a meu irmão, Eric e à Dinha, esteios de toda uma vida.

Ao Diego, meu cunhado, que fraternalmente compartilhou sua casa na capital

mineira.

À CAPES, pelos recursos que subsidiaram esta pesquisa.

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RESUMO Ancorando-se no quadro teórico da Análise do Discurso, este trabalho assumiu uma

concepção de discurso em que se toma a linguagem como uma prática social e,

como tal, em sua relação com o meio em que está inserida. O objetivo geral da

pesquisa foi discutir o processo de construção enunciativa do desenvolvimento

sustentável em Direito Ambiental, tomando por base a questão administrativo-

jurídica da instalação da Usina Hidrelétrica de Irapé. No que concerne ao material de

análise da pesquisa, foram selecionados dois textos escritos, configurados como

gêneros que tomaram lugar no discurso jurídico: 1) uma petição inicial dos autos do

processo de uma ação civil pública, proposta pelo Ministério Público Federal, cujo

pedido consistia basicamente em impedir a concessão de licença ambiental de

instalação da Usina de Irapé, por considerá-la inviável e não sustentável e 2) uma

matéria jornalística utilizada pela Cemig como prova do cumprimento de obrigações

estipuladas num Termo de Ajustamento de Conduta assinado junto ao Ministério

Público Federal, demonstrando a viabilidade socioeconômica e a sustentabilidade do

empreendimento em questão. Como procedimento metodológico, descrevemos os

gêneros selecionados em termos de suas formas e de suas funcionalidades sociais.

Analisamos como se deu a constituição dos sujeitos participantes dos atos

linguageiros que tomaram lugar nos gêneros discutidos, tanto no espaço da

organização do dizer, como no espaço situacional. No que tange ao modo de

organização argumentativo, identificamos as propostas, as proposições e os atos de

persuasão dos sujeitos imbricados nos gêneros, empreendendo a análise dos

procedimentos semânticos, discursivos e de composição. Buscando avaliar o

sistema de valores compartilhados pela comunidade de falantes, pudemos elencar

os imaginários sociodiscursivos que fundamentam os dizeres acerca da

sustentabilidade, bem como verificar a emergência dos diferentes ethé dos sujeitos

participantes desses atos. Valores, imaginários sociodiscursivos e ethé são inter-

relacionados discursivamente. Percebemos como, na enunciação, são constituídas

diferentes nuances a respeito do imaginário sociodiscursivo do desenvolvimento

sustentável: tanto o Ministério Público quanto a Cemig estruturaram suas propostas

argumentativas tomando por base a sustentabilidade: o órgão ministerial defendia na

petição inicial que a construção da Usina de Irapé não era sustentável

ambientalmente porque feria valores culturais, dentre os quais a memória e a

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identidade dos indivíduos das comunidades locais e a Cemig apontava a viabilidade

e a sustentabilidade da obra em razão dos benefícios trazidos pelo desenvolvimento

econômico. Tivemos, ainda, o intuito de discutir como o discurso institucionalizado

do direito e suas implicações se inscrevem na historicidade de seu tempo, motivo

pelo qual fizemos incursões acerca do cenário jurídico brasileiro contemporâneo.

Palavras-chave: Enunciação. Desenvolvimento sustentável. Direito Ambiental.

Gênero discursivo. Subjetividade. Modo de organização argumentativo.

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ABSTRACT

Based on Discourse Analysis theoretical framework, this paper assumed a discourse

conception where on has the language as a social practice, regarding the

environment where it is. The aim of this research has been to discuss about the

enunciative construction of the sustainable development inside the Environmental

Law, having as the basis for it the administrative and legal issue of Irapé

Hydroelectric Plant installation. Concerning the materials to be analyzed, two pieces

of written text were selected. Those texts are considered as part of genres inserted in

the legal discourse: 1) a statement of claim from the case file of a public civil suit

proposed by the Federal Public Ministry. The request was to hinder the concession of

an environmental license for the installation of Irapé Plant, because it was not

feasible and sustainable, and 2) a newspaper article used by Cemig as a proof of

having met requirements set in a Conduct Adjustment Declaration signed along with

the Federal Public Ministry. The Declaration showed the socioeconomic feasibility

and the sustainability of the enterprise. As the methodological procedure, one

describes the chosen genres according to their form and social functionality. One

analyses how the subjects were compounded. Those subjects are participants of the

language acts that were placed in the genres, both in the organization space of

saying and in the situational space. Regarding the mood of argumentative

organization, one identifies the proposals, the propositions and the persuasion acts

of the interwoven subjects in the genres by analyzing the semantic, discursive and

compositional procedures. Pursuing the evaluation of the system of values shared by

the community of speakers, one could number the socio-discursive imagery that

underpins the sayings about sustainability. One could also verify the emergence of

different ethé of the participants. Values, socio-discursive imagery and ethé are

discursively interconnected. One realizes how different nuances are constituted

about the sustainable development socio-discursive imagery: both Federal Public

Ministry and Cemig make their proposals based on sustainability. The ministerial

body claimed that building Irapé Hydroelectric Plant was not sustainable because it

went against cultural values, including the memory and the identity of the people who

lived in local comunities. Cemig pointed out the feasibility and the sustainability of

building Irapé Plant, because of the economic development benefits. One intended to

discuss how the institutionalized discourse of the law and its implications are inserted

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in its historicity. That is the reason why one does incursions into the scenario of

Brazilian contemporary legal system.

Keywords: Enunciation. Sustainable development. Environmental Law. Genre.

Subjectivity. Mood of argumentative organization

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LISTA DE QUADROS

QUADRO 1: Quadro de contrato comunicacional de Patrick Charaudeau (2009a) ................ 64

QUADRO 2: Quadro de contrato comunicacional das petições iniciais em geral ................... 98

QUADRO 3: Quadro de contrato comunicacional da petição inicial da Ação Civil Pública da

Usina Hidrelétrica de Irapé ..................................................................................................... 100

QUADRO 4: Quadro de contrato comunicacional da matéria jornalística de “O Tempo”

veiculada na instância midiática ............................................................................................. 158

QUADRO 5: Quadro de contrato comunicacional da matéria jornalística de “O Tempo”

veiculada na instância judiciária ............................................................................................. 159

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LISTA DE SIGLAS

AD – Análise do Discurso

ANEEL – Agência Nacional de Energia Elétrica

Cemig – Companhia Energética de Minas Gerais

CF/88 – Constituição da República Federativa do Brasil de 1988

CONAMA – Conselho Nacional do Meio Ambiente

COPAM – Conselho Estadual de Política Ambiental

CPC – Código de Processo Civil

ECO-92 – Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e

Desenvolvimento (Rio de Janeiro, 1992)

EIA/RIMA – Estudo de Impacto Ambiental / Relatório de Impacto sobre o Meio

Ambiente

EUc – Sujeito comunicante

EUe – Sujeito enunciador

FEAM – Fundação Estadual do Meio Ambiente

MPF – Ministério Público Federal

PAC – Procedimento Administrativo Cível

PEC – Proposta de Emenda Constitucional

STF – Supremo Tribunal Federal

TAC – Termo de Ajustamento de Conduta

TUd – Sujeito destinatário

TUi – Sujeito interpretante

UHE – Usina Hidrelétrica de Irapé

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 23 2 CONCEITOS FUNDANTES, MATERIAL DE ANÁLISE E ABORDAGEM METODOLÓGICA ..................................................................................................... 28 2.1 Algumas considerações sobre Enunciação e Discurso ................................ 28 2.2 Fundamentação técnico-jurídica ..................................................................... 35 2.2.1 Conceito de meio ambiente ........................................................................... 35 2.2.2 Direito Ambiental como direito fundamental ............................................... 36

2.2.3 Licenciamento Ambiental .............................................................................. 38 2.2.4 Breves considerações sobre o Ministério Público e a ação civil pública . 40 2.3 Material de análise e sua abordagem metodológica ...................................... 42

2.3.1 O Corpus selecionado ................................................................................... 42 2.3.2 Objetivos ......................................................................................................... 45 2.3.2.1 Objetivo geral: .............................................................................................................. 45 2.3.2.2 Objetivos específicos: ................................................................................................... 45

3 REFERENCIAIS TEÓRICOS ................................................................................. 46 3.1 Sobre os gêneros do discurso ......................................................................... 46 3.2 Voltando o olhar à subjetividade em Patrick Charaudeau ............................. 59

3.3 Do modo de organização argumentativo ........................................................ 74 4 DA ANÁLISE DO MATERIAL SELECIONADO DO CORPUS .............................. 94 4.1 Da petição Inicial ............................................................................................... 95 4.2 Da matéria do Jornal “O Tempo” ................................................................... 151

5 CONCLUSÃO ...................................................................................................... 192

REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 197

ANEXO A – MATÉRIA JORNALÍSTICA DE “O TEMPO” JUNTADA AO PAC .... 203

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1 INTRODUÇÃO

Este trabalho, inserido na linha de pesquisa “Enunciação e Processos

Discursivos”, assume uma concepção de discurso em que se toma a linguagem

como uma prática social e, como tal, em sua relação com o meio em que está

inserida. Considerando isso, voltamos nossos olhares para o domínio discursivo

jurídico, em especial para uma demanda relacionada ao Direito Ambiental.

Essa área do Direito, tendo alcançando o status de garantia fundamental na

ordem constitucional brasileira, passa a regular, de forma privilegiada, todas as

relações sociais que têm sua órbita em torno da questão do meio ambiente. Os

conflitos dessa natureza são apresentados ao Estado que tem por definição legal a

obrigação de dar uma resposta às partes envolvidas e também à coletividade, por

meio da atuação dos membros do Poder Judiciário. Os sujeitos instituídos nas

instâncias de enunciação jurídica se valem de recursos argumentativos uma vez que

o objetivo nessas práticas é justamente a ação sobre o outro, buscando a sua

adesão ao que é proposto. Nessa medida, acreditamos que se torna relevante a

discussão do Direito na sua interface com os estudos linguísticos, sendo essa uma

justificativa para a consecução desta tese.

O objeto da pesquisa refere-se à discussão acerca da construção enunciativa

do desenvolvimento sustentável em Direito Ambiental, tomando por base a questão

administrativo-jurídica da instalação da Usina Hidrelétrica de Irapé. Conceitualmente,

desenvolvimento sustentável é a tentativa de se conciliar a proteção do meio

ambiente ecologicamente equilibrado, o incremento do desenvolvimento

socioeconômico e a melhoria da qualidade de vida do ser humano e, na atualidade,

apresenta um caráter norteador para a tutela ambiental no Estado Democrático de

Direito.

Para empreender nossos objetivos, o trabalho é estruturado em três partes: a

primeira se ateve a concepções relativas tanto aos postulados da Análise do

Discurso quanto à área jurídica. A segunda tratou dos referenciais teóricos ao qual

nos filiamos na pesquisa. Já a terceira voltou-se especificamente à análise do

material selecionado do corpus.

“Conceitos fundantes, material de análise e abordagem metodológica” foi o

título reservado à primeira parte. Nele, inicialmente, tecemos considerações sobre a

enunciação e o discurso, tomando por base, sobretudo, as proposições teóricas de

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Mikhail Bakhtin1, delineadas na obra “Marxismo e Filosofia da Linguagem” (1995). O

autor russo propõe uma relevante discussão na qual critica duas linhas teóricas do

pensamento filosófico-linguístico predominantes em sua época, o subjetivismo

idealista e o objetivismo abstrato. Dentre seus postulados, acreditamos ser

produtivas as ideias de que a língua evolui historicamente e, sobretudo, que a

enunciação é o produto da interação verbal entre falantes socialmente constituídos,

concepção essa que traduz nossa filiação.

Levando em conta que nosso leitor não se insere, necessariamente, nos

estudos relativos à ciência do Direito, procuramos trazer à tona os principais

conceitos que seriam utilizados ao longo da tese num subcapítulo denominado

“Fundamentação técnico-jurídica”, no qual explicitamos o conceito de meio

ambiente, o Direito Ambiental como direito fundamental, o Licenciamento Ambiental,

breves considerações sobre o Ministério Público e a Ação Civil Pública.

Ainda nesse primeiro capítulo de cunho teórico, expusemos o “Material de

análise e sua abordagem metodológica”, descrevendo o corpus e os objetivos da

pesquisa.

No que concerne ao material de análise, foram selecionados dois textos

escritos, configurados como gêneros que tomaram lugar no discurso jurídico: 1) uma

petição inicial dos autos do processo de uma ação civil pública, proposta pelo

Ministério Público Federal, cujo pedido consistia basicamente em impedir a

concessão de licença ambiental de instalação da Usina de Irapé, por considerá-la

inviável e não sustentável e 2) uma matéria jornalística utilizada pela Cemig como

prova do cumprimento de obrigações estipuladas num Termo de Ajustamento de

Conduta assinado junto ao Ministério Público Federal, demonstrando a viabilidade

socioeconômica e a sustentabilidade do empreendimento em questão.

Como procedimento metodológico, pretendemos discutir o processo

enunciativo da sustentabilidade no caso da Usina de Irapé: i) descrevendo a

instituição dos gêneros acima mencionados; ii) enfocando como os sujeitos se

constituíram; e iii) problematizando um determinado modo de organização

argumentativo arquitetado por esses sujeitos.

O objetivo geral do trabalho é o de discutir a construção enunciativa do

1 A produção desta obra é, especialmente, atribuída também a Volochínov, havendo uma discussão

acadêmica sobre a originalidade da autoria de Mikhail Bakhtin, à qual não iremos nos ater, por não figurar como objetivo desta pesquisa.

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desenvolvimento sustentável em Direito Ambiental, tomando por base a questão

administrativo-jurídica da Usina Hidrelétrica de Irapé.

Já os objetivos específicos podem ser arrolados da seguinte forma: propor

como pode ser concebida a constituição dos gêneros petição inicial e matéria

jornalística; enquanto recursos para ações sócio-historicamente condicionadas no

âmbito do discurso jurídico; analisar como se dá a instituição dos sujeitos nos atos

linguageiros de determinados gêneros discursivos, considerando o projeto de fala

por eles empreendido; descrever a operacionalização de um dado modo de

organização argumentativo, a fim de definir e explicitar a Proposta, a Proposição e a

Persuasão dos sujeitos, bem como discorrer sobre possíveis estratégias para a

configuração de procedimentos semânticos, discursivos e de composição; ainda na

abordagem sobre esse modo argumentativo, discutir como se constrói a noção de

ethos dos sujeitos participantes dos atos linguageiros em questão; propor uma

caracterização de possíveis imaginários sociodiscursivos referentes ao Direito e

também à ideia de sustentabilidade, notadamente no que concerne à situação de

comunicação própria de cada projeto de fala.

Continuando a empreitada de delimitar o arcabouço ao qual iríamos nos filiar,

procuramos apontar nosso enquadramento no capítulo intitulado “Referenciais

teóricos”. No que concerne aos gêneros do discurso, intentamos descrevê-los em

termos de suas formas, de suas funcionalidades sociais e de suas demais

propriedades e para esse fim foram consideradas as noções apresentadas por

Mikhail Bakhtin, Dominique Maingueneau, Charles Bazerman e Patrick Charaudeau.

Quanto à discussão acerca da subjetividade, lançamos mão dos pressupostos

teóricos Patrick Charaudeau, com sua definição do quadro de contrato

comunicacional, a qual possibilitou a descrição dos sujeitos, que são construídos no

e pelo discurso, e dos projetos de fala por eles empreendidos. Analisamos como se

deu a constituição dos sujeitos participantes dos atos linguageiros que tomaram

lugar nos gêneros discutidos, tanto no espaço da organização do dizer, como no

espaço situacional.

No que tange ao modo de organização argumentativo, não menos relevantes

foram as considerações de Charaudeau, que subsidiaram as avaliações das

investidas do Ministério Público Federal e da Cemig visando à adesão de seus

interlocutores. Tivemos o intuito de identificar suas propostas, suas proposições e os

seus atos de persuasão, empreendendo, ainda, a análise dos procedimentos

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semânticos, discursivos e de composição. Buscando avaliar o sistema de valores

compartilhados pela comunidade de falantes, pretendemos elencar os imaginários

sociodiscursivos que fundamentaram os dizeres acerca da sustentabilidade, bem

como verificar a emergência dos diferentes ethé dos sujeitos participantes desses

atos linguageiros.

A terceira parte do texto consistiu especificamente na análise do material

selecionado do corpus, em que buscamos aplicar todas as categorias modeladas no

quadro teórico, tal como expusemos acima.

Vinculando esse trabalho a uma abordagem que tem como base o exame das

relações entre as práticas discursivas e o meio social do qual se originam, na

“Conclusão”, objetivamos registrar os principais resultados do processo analítico

desenvolvido, apontando, ainda, perspectivas de contribuição da tese para futuras

pesquisas.

Consideramos, ainda, ser válido, nesta Introdução, apontar algumas

reminiscências relacionadas à formação profissional do autor desta tese, momento

em que nos permitiremos marcar a subjetividade em primeira pessoa do singular.

Essa breve trajetória tem o condão de apresentar ao leitor mais um porquê que

balizou a escolha do objeto da pesquisa.

O Direito e os estudos da linguagem invariavelmente perpassaram meu

desenvolvimento intelectual. Graduei-me em Direito em 1998 e a partir do ano

seguinte, passei a exercer profissionalmente a advocacia – militando ao todo por 10

anos. Apesar de atuar no campo jurídico, já engendrava impulsos de ingressar na

docência. Isso culminou na minha entrada como aluno no curso de Letras

(Português / Inglês), no ano de 2001, coincidindo também com o início de minha

prática como professor em escolas de ensino de Língua Inglesa.

Ainda em 2003, iniciei o curso de pós-graduação, nível especialização, em

Língua Portuguesa, na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, finalizando-

o em 2004, ano em que fui aprovado no Mestrado em Letras da Universidade

Federal de São João del-Rei, com conclusão em 2006.

A partir de 2005, passei a ministrar disciplinas nos cursos superiores de

Direito e de Letras, respectivamente, “Português Jurídico”, “Laboratório de Leitura e

Produção de Textos” (I e II). Outras experiências nas áreas de linguagem tomaram

lugar com as cadeiras de “Português” e “Português Instrumental” (Administração),

“Língua Portuguesa” e “Metodologia da Língua Portuguesa” (Normal Superior) e

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“Comunicação e Expressão” (Sistemas de Informação).

Já em 2010, ingressei, em regime de dedicação exclusiva, no quadro docente

do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia – Câmpus São João del-Rei,

onde tenho atuado até então. Esse trânsito nas duas áreas de conhecimento se

mostra marcado no exercício de minha prática como professor, já que, com a criação

do Curso de Letras nesse Câmpus, tenho ministrado as disciplinas de “Língua

Portuguesa IV”, “Leitura e Produção de Texto em Língua Portuguesa” (I e II), bem

como “Legislação e Licenciamento Ambiental”, no Curso de Controle Ambiental.

Fato é que as áreas de Direito e de Letras, e seus mais multifacetados

imaginários, invariavelmente, estiveram imbricados em minha formação profissional,

o que notadamente influenciou a escolha do objeto deste trabalho.

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2 CONCEITOS FUNDANTES, MATERIAL DE ANÁLISE E ABORDAGEM

METODOLÓGICA

Neste capítulo buscaremos delimitar alguns conceitos que orientam a

pesquisa, em especial no que concerne às questões da enunciação e do discurso.

Descreveremos o material de análise extraído do corpus, bem como

apresentaremos a arquitetura de nossa abordagem metodológica.

2.1 Algumas considerações sobre Enunciação e Discurso

No que tange à noção acerca de enunciação e de discurso a qual

pretendemos nos filiar, entendemos que a obra de Mikhail Bakhtin apresentou – e

continua apresentando – contribuições fecundas capazes de organizar e orientar os

fundamentos de pesquisas em Análise do Discurso, na medida em que pode

oferecer “um quadro de referências ainda bastante produtivo; um conjunto de

projetos ainda por realizar” (FARACO, 1999, p. 197).

A retomada do pensamento bakhtineano neste trabalho vai ao encontro disso,

por entendermos que, contemporaneamente, é necessário encetar uma análise

discursiva levando-se em conta: i) que a língua evolui historicamente e ii) que a

enunciação é o produto da interação verbal entre falantes socialmente constituídos.

Muito embora não tenhamos o objetivo de esmiuçar o vasto rol de

concepções linguísticas que emergiram da obra desse autor – itinerário que já foi

feito de modo bastante apropriado e satisfatório por outros analistas –, certamente

nos valeremos de algumas de suas orientações.

Consideramos especialmente válidas suas incursões em Marxismo e Filosofia

da Linguagem (1995), por trazerem à tona a ideia de que a linguagem configura um

processo de interação verbal.

Bakhtin (1995, p. 69) indaga em que consiste o objeto da filosofia da

linguagem. Questiona o que é a palavra e a própria linguagem. A partir daí inicia

uma severa crítica à predominância da linguística vigente na época no sentido de

estudar a face sonora do signo linguístico, desconsiderando-se a natureza real da

linguagem enquanto código ideológico.

Não há como observar o fenômeno da linguagem sem situar os sujeitos (à

época chamados por ele de emissor e receptor do som) e o próprio som no meio

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social. Bakhtin afirma que a “unicidade do meio social e a do contexto social

imediato são condições absolutamente indispensáveis para que o complexo físico-

químico-fisiológico” dos sujeitos possa tornar-se um ato de fala.

Duas linhas teóricas do pensamento filosófico-linguístico também foram

objeto de crítica de Bakhtin (1995, 71-89): o subjetivismo idealista e o objetivismo

abstrato.

O subjetivismo idealista entendia que a língua é uma atividade, um processo

criativo ininterrupto de construção, que se materializaria sob a forma de atos

individuais de fala. As leis de criação linguística seriam as próprias leis de psicologia

individual. Seria, pois, errônea a concepção de língua enquanto produto acabado;

sistema estável (léxico, gramática, fonética).

Já no objetivismo abstrato, o centro organizador de todos os fatos da língua, o

que a definiria como um objeto de ciência, seria justamente o sistema linguístico, ou

seja, o sistema de formas fonéticas, gramaticais e lexicais. Bakhtin (1995, p. 78)

enfatiza que, nesse sentido proposto pelo objetivismo abstrato a “língua opõe-se ao

indivíduo enquanto norma indestrutível, peremptória, que o indivíduo só pode aceitar

como tal”. Aqui, as leis da língua são leis objetivas, sem nenhuma ligação com a

consciência subjetiva, nem tampouco com os valores ideológicos. Portanto, não

haveria vínculo entre o sistema da língua e sua história.

As críticas tecidas por Bakhtin tanto ao subjetivismo idealista quanto ao

objetivismo abstrato nos interessam, na medida em que nos conduziram a pensar a

respeito da formatação do nosso quadro teórico. Sem o compromisso sistemático de

enumerar todas essas críticas, iremos nos debruçar sobre aquelas que

consideramos mais correlatas com o nosso arcabouço.

Com relação ao objetivismo abstrato, Bakhtin (1995, p. 92, 93) aponta que o

locutor serve-se da língua para suas necessidades enunciativas concretas,

utilizando as formas normativas num determinado contexto concreto. Da mesma

forma o receptor considera a forma linguística que usa “como um signo variável e

flexível e não como um sinal imutável e sempre idêntico a si mesmo”.

Diante dessa perspectiva, vale citar que

(...) na prática viva da língua, a consciência linguística do locutor e do receptor nada tem a ver com um sistema abstrato de formas normativas, mas apenas com a linguagem no sentido de conjunto de contextos possíveis de uso de cada forma particular (BAKHTIN, 1995, p. 95)

Compreendemos as palavras e reagimos em face delas quando despertam

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em nós “ressonâncias ideológicas”. Em virtude disso, Bakhtin entende que “a

palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou

vivencial”2. Aqui se encerra uma das críticas mais vorazes do autor em se tratando

do objetivismo abstrato: é um erro grosseiro se pretender separar a língua de seu

conteúdo ideológico.

Para Bakhtin (1995, p. 32), o signo linguístico remete sempre a uma

realidade, refletindo-a e refratando-a:

Um signo não existe apenas como parte de uma realidade, ele também reflete e refrata uma outra. Ele pode distorcer essa realidade, ser-lhe fiel, ou apreendê-la de um ponto de vista específico, etc. Todo signo está sujeito aos critérios de avaliação ideológica (isto é: se é verdadeiro, falso, correto, justificado, bom, etc.)

Assim, ele postula que “toda palavra é ideológica e toda utilização da língua

está ligada à evolução ideológica.” O signo linguístico seria, portanto, ideológico,

dinâmico, vivo, evoluindo dentro de um contexto histórico e, por isso, eminentemente

social (1995, p. 122).

O objetivismo abstrato, sistema abstrato, desconsidera uma reflexão histórica

e viva da língua, uma vez que se desenvolveu no campo das línguas mortas,

adotando em relação às línguas vivas uma postura conservadora e acadêmica.

A linguística formal-sistemática ainda peca por substituir a dinâmica da fala

pela análise do elemento abstratamente isolado. Nela, a enunciação como um todo

não existe. A história da língua torna-se a história das formas linguísticas separadas

(fonética, morfologia etc.).

Bakhtin (1995, p. 108) conclui suas críticas ao objetivismo abstrato

mencionando que a língua, enquanto sistema de formas, que remete a uma norma,

“não passa de uma abstração, que só pode ser demonstrada no plano teórico e

prático do ponto de vista de uma língua morta e do seu ensino”. Os fatos

linguísticos, ao contrário, são vivos e em constante evolução. A língua tem uma

função social e é um fenômeno eminentemente histórico.

Em se tratando do subjetivismo individualista, Bakhtin aponta que essa

orientação do pensamento filosófico-linguístico leva em conta a fala, considerando o

ato de fala como sendo individual, buscando explicá-lo a partir das condições da

vida psíquica do falante. Dessa forma, a enunciação guardaria um caráter

2 Não é objetivo deste trabalho traçar as relações específicas entre ideologia e linguagem. Nossa

filiação se volta para a concepção de “imaginários sociodiscursivos”, no que concerne à discussão das representações sociais, o que será tratado mais detidamente em subcapítulo próprio sobre o modo de organização argumentativo.

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monológico.

Essa enunciação monológica configuraria a “expressão da consciência

individual, de seus desejos, suas intenções, seus impulsos criadores, seus gostos

etc.” (BAKHTIN, 1995, p. 112,113). Contudo, a enunciação é o produto da interação

de dois indivíduos socialmente organizados. A palavra é dirigida a um interlocutor,

variando caso se trate de uma pessoa do mesmo grupo social ou não. Vemos aqui

uma embrionária relação teórica com o que Charaudeau chamará de “projeto de

fala”, sistematizando a constituição dos sujeitos imbricados nas interações de

linguagem. Isso será objeto de nossa discussão mais à frente.

A orientação da palavra levará em conta necessariamente o interlocutor.

Bakhtin (1995, p. 113) postula que toda palavra comporta, pois, duas faces: ela

procede de alguém e se dirige para alguém, constituindo o “produto da interação do

locutor e do ouvinte”. Em um dado momento, o locutor é o único proprietário da

palavra, instante do ato fisiológico de materialização da palavra. Ocorre que a

materialização da palavra como signo é determinada notoriamente pelas relações

sociais. O autor (op. cit.) indica que “a situação social mais imediata e o meio social

mais amplo determinam completamente e, por assim dizer, a partir de seu próprio

interior, a estrutura da enunciação”.

A enunciação é, portanto, orientada socialmente e determinada pelos

participantes do ato de fala, em uma situação demarcada. Tanto esses participantes,

tal como a situação, darão forma à enunciação. Notadamente é o contexto social

que determina como a atividade mental do locutor se organizará, quais serão os

possíveis ouvintes.

De acordo com Bakhtin (1995, p. 121), equivoca-se o subjetivismo

individualista ao propor uma teoria da expressão organizada a partir do interior, uma

vez que o “centro organizador de toda enunciação, de toda expressão, não é interior,

mas exterior: está situado no meio social que envolve o indivíduo".

Concluindo suas críticas em torno do objetivismo abstrato e do subjetivismo

individualista, Bakhtin reitera que

A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas linguísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua.

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Não é possível compreender a língua como um fenômeno inerte, resumido à

análise de um sistema de formas; nem tampouco procurar descrevê-la tomando-se

por base exclusivamente o psiquismo individual dos falantes. A língua se insere num

processo de evolução e de historicidade, inexoravelmente dependente da interação

verbal dos sujeitos falantes, os quais são socialmente organizados.

Uma ponderação se faz necessária: ao discutirmos os referidos marcos

teóricos de Bakhtin não pretendemos com isso defender a exclusão de um enfoque

linguístico que considere o sistema, no que concerne a análises morfológicas,

fonéticas, sintáticas, semânticas etc. O próprio Bakhtin (1995, p. 124) não sugeriu

isso. Ao contrário, na sua proposta de uma ordem metodológica para o estudo da

língua deveria se levar em conta: a) as formas e os tipos de interação verbal em

ligação com as condições concretas em que se realiza; b) as formas das distintas

enunciações, dos atos de fala na vida e na criação ideológica que se prestam a uma

determinação pela interação verbal e c) a partir daí, o exame das formas da língua

na sua interpretação linguística propriamente dita, isto é, enquanto sistema. Na

nossa perspectiva, tivemos a pretensão de, na esteira de Bakhtin, inserir a

enunciação nos estudos relacionados à linguística, tratando de associar esta à

situação social das falas, como se verá adiante.

Quando nos deparamos diante desse tecido de considerações, afirmamos

que Bakhtin certamente foi um precursor dos domínios teóricos da Análise do

Discurso contemporânea. Não se pode atribuir a Bakhtin as colorações sociológicas

inarredavelmente presentes nas teorias atuais que determinam que o meio social é a

arena de instituição do discurso? Também não estaria embebida do pensamento

bakhtineano a ideia de que o processo enunciativo depende da constituição dos

sujeitos no e pelo discurso, a exemplo do que é preconizado no quadro de contrato

comunicacional de Charaudeau? As orientações bakhtineanas no sentido de que a

interação verbal está ligada às condições concretas em que ela se realiza não estão

associadas ao que se costuma chamar de condições de produção do discurso?

Instintivamente somos levados a responder de modo afirmativo a cada um desses

questionamentos. Cabe a nós uma análise mais apurada quando discorrermos sobre

a as concepções de Patrick Charaudeau, as quais embasarão nosso arcabouço

teórico, como será visto adiante.

Dominique Maingueneau, por sua vez, aborda questões importantes no que

tange à Análise do Discurso na atualidade e que certamente também tocam este

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trabalho.

De acordo com Maingueneau (1997, p. 11), nos dias de hoje, a análise do

discurso é capaz de designar qualquer coisa, uma vez que “toda produção de

linguagem pode ser considerada discurso.” Em termos resumidos, ele aponta que o

campo da linguística acaba se dividindo em duas regiões distintas: a) a primeira,

concebida por alguns como um núcleo “rígido”, ocupar-se-ia do estudo da língua, do

sistema de propriedades formais; b) a segunda se voltaria a interseções com outras

disciplinas – sociologia, psicologia, história etc. – e teria como foco o estudo da

linguagem, considerando-se os sujeitos inscritos nos atos enunciativos, ou como

Maingueneau (1997, p. 11, 12) designa, em suas “estratégias de interlocução, em

posições sociais ou em conjunturas históricas”.

Entretanto, Maingueneau tece uma crítica ao maniqueísmo da definição da

Análise do Discurso enquanto estudo linguístico das condições de produção de um

enunciado. É necessário ter em mente outras questões, uma vez que a Análise do

Discurso e, mais propriamente, a “escola francesa de análise do discurso” –

convencionalmente chamada de AD – está associada a textos produzidos

- no quadro de instituições que restrigem fortemente a enunciação; - nos quais se cristalizam conflitos históricos, sociais, etc.; - que delimitam um espaço próprio no exterior de um interdiscurso limitado.3

Aqui vale dizer que nos interessam especificamente tais assertivas, já que na

análise do corpus iremos discutir de que modo e em que medida o discurso

institucionalizado do Direito constrange a enunciação, determinando a configuração

dos gêneros desse discurso e como se dão discursivamente os embates sociais em

torno da temática ambiental, nisso que se convencionou chamar de “Princípio do

Desenvolvimento Sustentável”.

Muito embora Maingueneau projete que a AD se insere no campo da

linguística, propõe que se deve questionar o modo como a relação entre ambas se

dá. Isso porque a discursividade abarca uma ordem específica, mas que se realiza

na língua. Entendemos convenientes as palavras de Eliseo Veron, citadas por

Maingueneau (1997, p. 18):

Os funcionamentos discursivos socialmente pertinentes atravessam a matéria linguística, sem preocupar-se com suas fronteiras que, para outros fins, puderam ser traçadas entre sintaxe, semântica e pragmática (...). A dimensão ideológica do funcionamento dos discursos diz respeito a operações que podem se situar em níveis muito diferentes da organização da matéria linguística.

3 O interdiscurso será enfocado sob a perspectiva da noção de “imaginários sociodiscursivos”.

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Isso não pressupõe que o analista do discurso deva negligenciar o

conhecimento linguístico. Ao contrário, atualmente não se deve contentar com

“empréstimos aproximativos”.

Mas diante disso, não há que se falar em uma suposta harmonia inerente

quanto aos objetos estudados pela AD e aos recursos próprios da linguística. Não

há essa uniformidade. Pode o analista se debruçar sobre quaisquer diferentes

categorias linguísticas dependendo do que se apresenta no seu corpus, por

exemplo. Maingueneau adverte que, para não se correr o risco de o pesquisador

alcançar um resultado insignificante, deve apontar da forma mais apurada possível

as suas escolhas. Para tanto, importante se considerar “a singularidade do objeto, a

complexidade dos fatos discursivos e a incidência dos métodos de análise”

(MAINGUENEAU, 1997, p. 19), expondo, ademais, os conceitos linguísticos que

darão suporte ao trabalho.

No caso específico desta tese – considerando-se a perspectiva teórica de

Patrick Charaudeau – a análise da constituição dos sujeitos instituídos no discurso

(fundamentando-se na estrutura do quadro de comunicação proposta na Teoria

Semiolinguística) e a discussão da dimensão argumentativa que foi construída nos

gêneros discursivos selecionados, darão conta da abordagem de caráter linguístico.

Nessa perspectiva, apresentando o porquê da concepção semiolinguística,

Charaudeau (2009a, p. 21) elucida que

(...) diremos que uma análise semiolinguística do discurso é Semiótica pelo fato de que se interessa por um objeto que só se constitui em uma intertextualidade. Esta última depende dos sujeitos da linguagem, que procuram extrair delas possíveis significantes. Diremos também que uma análise semiolinguística do discurso é Linguística pelo fato de que o instrumento que utiliza para interrogar esse objeto é construído ao fim de um trabalho de conceituação estrutural dos fatos linguageiros.

Uma descrição mais apurada das considerações teóricas de Charaudeau

tomará lugar em subcapítulos a esse fim destinados.

Ancorando-nos em todas essas proposições teóricas, em se tratando do

discurso propriamente dito, nosso trabalho tomará por base as contribuições da

Análise do Discurso de linha francesa, considerados, primordialmente, os

fundamentos de Patrick Charaudeau. Esse autor terá um papel central na

abordagem analítica que tomará lugar nesta tese, razão pela qual foram

selecionadas categorias por ele propostas, conforme se verificará adiante.

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2.2 Fundamentação técnico-jurídica

Muito embora esta pesquisa se insira na área de concentração de Linguística

e Língua Portuguesa, ela estabelecerá um constante diálogo com o Direito,

enquanto ciência. Isso porque o material de análise trata de peças extraídas de dois

procedimentos jurídicos: uma Ação Civil Pública e um Procedimento Administrativo

Cível, como se verá adiante.

Levando em conta esse caráter de interdisciplinaridade e também o fato de

que os leitores desta tese não necessariamente são familiarizados com a área

jurídica, entendemos ser conveniente neste capítulo descrever determinados

conceitos e procedimentos adotados no Direito.

Nesse sentido, pretendemos aclarar o conceito de meio ambiente; qual o

status jurídico do Direito Ambiental na atual ordem constitucional; bem como abordar

de que modo deve operar o Ministério Público e também caracterizar basicamente

os aspectos do Licenciamento Ambiental e da Ação Civil Pública.

2.2.1 Conceito de meio ambiente

A terminologia meio ambiente é criticada pelos autores da área jurídica.

Segundo Luís Paulo Sirvinskas (2009, p. 39), “meio é aquilo que está no centro de

alguma coisa. Ambiente indica o lugar ou a área onde habitam seres vivos.” Dessa

forma, no vocábulo ambiente já estaria contido o conceito de meio. Corroborando

essa idéia, Celso Antonio Pacheco Fiorillo (2008, p. 19) aponta que o termo meio

ambiente é pleonástico, redundante.

Todavia, Sirvinskas (2009, p. 39) menciona que “a expressão meio ambiente

já está consagrada na legislação, na doutrina, na jurisprudência e na consciência da

população” e, por esse motivo, iremos empregá-la neste Projeto.

O meio ambiente tem sua definição disposta na Lei nº 6.938/81, que instituiu a

Política Nacional do Meio Ambiente, especificamente no art. 3º:

Art. 3º. Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por: I – meio ambiente, o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas.

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Aludido conceito mostra-se, ainda, inapropriado, pois faz referência tão

somente ao meio ambiente natural. José Afonso da Silva (1998, p. 2)4 traz uma

conceituação mais ampla e adequada de meio ambiente como sendo “a interação do

conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o

desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas.”

Fiorillo (2008, p. 20) assevera que não se pode perder de vista que o direito

ambiental tem como “objeto maior tutelar a vida saudável, de modo que a

classificação apenas identifica o aspecto do meio ambiente em que valores maiores

foram aviltados” e, nesse sentido, podem ser apontados quatro aspectos

significativos para o meio ambiente: a) natural, que compreende, por exemplo, água,

ar, solo, subsolo, flora e fauna; b) artificial, que consiste no espaço urbano

construído (edificações) e nos equipamentos públicos ou espaço urbano aberto; c)

cultural, que abarca o patrimônio histórico, artístico, arqueológico, paisagístico,

turístico, científico, dentre outros, e que constituem o patrimônio cultural previsto no

art. 216 da Constituição de 1988; e, por fim, d) laboral ou do trabalho: que trata do

local onde as pessoas desempenham suas funções laborativas que devem estar

indissociavelmente ligadas a equilibradas condições de saúde, amparadas

expressamente no art. 200, VIII da Carta Política de 1988, que dispõe que ao

sistema único de saúde compete “colaborar na proteção do meio ambiente, nele

compreendido o do trabalho.”

2.2.2 Direito Ambiental como direito fundamental

Toda a discussão acerca das normas ambientais deve, necessariamente,

gravitar em torno da compreensão de que elas estão inseridas na Constituição

Federal de 1988, sendo, por isso, o meio ambiente considerado bem jurídico

constitucional.

A análise do direito à sadia qualidade de vida e proteção ao ambiente

ecologicamente equilibrado passa pela compreensão de postulados constitucionais

sobre o meio ambiente, de modo especial do Capítulo VI, título VIII, que trata da

Ordem Social – art. 225 e seus incisos.

4 (Apud SIRVINSKAS, 2009, p. 40).

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Justifica-se essa abordagem já que no Direito contemporâneo a Constituição

passa para o centro do sistema jurídico, garantindo-lhe não somente uma

supremacia formal, como material e axiológica.

Luís Roberto Barroso (2009, p. 86) faz referência à chamada

constitucionalização do Direito, em que a Constituição é compreendida como “uma

ordem objetiva de valores e como um sistema aberto de princípios e regras5”,

transformando-se no “filtro através do qual se deve ler todo o direito

infraconstitucional.”

Por esse motivo, não raro lançaremos mão de incursões nos ditames

constitucionais relacionados ao meio ambiente.

Conforme Édis Milaré (2004, p. 136), aos direitos individuais e coletivos

elencados no art. 5º da Constituição Federal acrescentou o legislador constituinte,

“no caput do art. 225, um novo direito fundamental da pessoa humana, direcionado

ao desfrute de adequadas condições de vida em um ambiente saudável” ou

“ecologicamente equilibrado”, como expressamente disposto no referido artigo,

senão vejamos:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações6.

Os direitos fundamentais são classificados em gerações7, considerando seu

surgimento social e reconhecimento nos ordenamentos constitucionais.

Os direitos humanos de primeira geração dizem respeito às liberdades

públicas e aos direitos políticos, traduzindo o valor de liberdade. Representam meios

de defesa das liberdades individuais contra a “ingerência abusiva dos Poderes

Públicos na esfera privada do indivíduo” (PAULO; ALEXANDRINO, 2007, p. 96)

Com relação aos direitos de segunda geração, temos aqueles que configuram

liberdades positivas, no sentido de o Estado implementar políticas e serviços

públicos. Tratam-se dos “direitos sociais, econômicos e culturais” (MORAES, 2007,

p. 26), correspondendo às prerrogativas de igualdade.

5 Segundo o autor citado, “a ideia de abertura abriga dois conceitos: incompletude – a Constituição

não tem a pretensão de disciplinar todos os temas e, mesmo em relação aos que disciplina, somente o faz instituindo os grandes princípios – e certa indeterminação de sentido, que permite a integração de suas normas pela atuação do legislador e do intérprete. 6 No caput desse artigo constitucional, encontra-se igualmente uma definição do chamado

“desenvolvimento sustentável”, cuja discussão será ampliada no processo de análise (sobretudo nos capítulos 3 e 4 desta tese). 7 Vários autores adotam aludida classificação. Dentre eles, Alexandre de Moraes (2007, p. 26), Pedro

Lenza (2006, p. 694), Norberto Bobbio (1992, p. 11).

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Interessa-nos especificamente os direitos de terceira geração, os quais

“materializam poderes de titularidade coletiva e constituem um passo importante no

processo de desenvolvimento sustentável” (EUSTÁQUIO, 2008, p. 1,2), chamados,

ainda, direitos de fraternidade. Pedro Lenza (2006, p. 695) aduz que “o ser humano

é inserido em uma coletividade e passa a ter direitos de solidariedade” e, nessa

perspectiva, aponta o “preservacionismo ambiental”.

Verifica-se, dessa forma, que o direito ambiental se insere na terceira geração

de direitos.

Não somente a doutrina, mas igualmente a jurisprudência, assim o

reconhece. A Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, pelo voto do Ministro

José Delgado, Relator no RESP nº 588.022/SC, aludiu a que

O Direito Ambiental integra a terceira geração de direitos fundamentais, ao lado do direito à paz, à autodeterminação dos povos, ao desenvolvimento, à conservação e utilização do patrimônio histórico e cultural e do direito à comunicação (grifo nosso).

No mesmo sentido posicionou-se o Supremo Tribunal Federal, no Mandado

de Segurança nº 22264-0, de 13/03/1996, em que o Relator, Ministro Celso de Mello

aduz que:

Os preceitos inscritos no art. 225 da Carta Política traduzem a consagração constitucional, em nosso sistema de direito positivo, de uma das mais expressivas prerrogativas asseguradas às formações sociais contemporâneas. Essa prerrogativa consiste no reconhecimento de que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Trata-se, consoante já proclamou o Supremo Tribunal Federal (RE 134.297-SP, Rel. Min. Celso Mello), de um típico direito de terceira geração que assiste, de modo subjetivamente indeterminado, a todo gênero humano, circunstância essa que justifica a especial obrigação – que incumbe ao Estado e à própria coletividade – de defendê-lo e preservá-lo em benefício das presentes e futuras gerações (grifo nosso).

Portanto, o direito ambiental ganha status de direito fundamental na ordem

constitucional brasileira, sendo relevante compreender sua interface com os estudos

linguísticos, uma vez que os sujeitos construídos nas instâncias de enunciação

jurídica só o são no e pelo discurso.

2.2.3 Licenciamento Ambiental

O licenciamento ambiental está previsto no art. 9º, inc. IV, Lei nº 6.938/81 –

Política Nacional do Meio Ambiente e sua principal regulamentação toma lugar na

Resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) nº 237/97.

Consoante a previsão normativa, o Licenciamento Ambiental é o

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procedimento administrativo pelo qual o órgão ambiental competente licencia a

localização, instalação, ampliação e a operação de empreendimentos e atividades

utilizadoras de recursos ambientais, consideradas efetiva ou potencialmente

poluidoras ou daquelas que, sob qualquer forma, possam causar degradação

ambiental, considerando as disposições legais e regulamentares e as normas

técnicas aplicáveis ao caso.

Isso quer dizer que o licenciamento ambiental consiste no procedimento

administrativo por meio do qual o aludido órgão competente concede a licença

ambiental. Esta, por sua vez, é o ato administrativo pelo qual o órgão ambiental

competente estabelece as condições, restrições e medidas de controle ambiental,

que deverão ser obedecidas pelo empreendedor, pessoa física ou jurídica, para

localizar, instalar, ampliar e operar empreendimentos ou atividades utilizadoras dos

recursos ambientais consideradas efetiva ou potencialmente poluidoras ou aquelas

que, sob qualquer forma, possam causar degradação ambiental.

É útil explicitar que o art. 8º da Resolução CONAMA nº 237/97 classifica três

tipos de licenças, as quais podem ser expedidas isolada ou sucessivamente, de

acordo com a natureza do empreendimento, senão vejamos:

a) Licença Prévia: ocorre na fase preliminar, aprovando a localização do

empreendimento, bem como atestando a viabilidade ambiental;

b) Licença de Instalação: autoriza a instalação do empreendimento, de acordo com

as especificações dos planos e projetos aprovados e

c) Licença de Operação: autoriza a operação da atividade, depois de verificado o

efetivo cumprimento das exigências que constavam nas licenças anteriores.

O órgão ambiental competente, mediante decisão motivada, isto é, apontando

a fundamentação técnica que justifique a medida, pode modificar, suspender ou

cancelar uma licença expedida, quando, por exemplo, ocorrer violação ou

inadequação de quaisquer condicionantes ou normas legais; omissão ou falsa

descrição de informações relevantes que subsidiaram a expedição da licença;

superveniência de graves riscos ambientais e de saúde.

O objetivo primordial do Licenciamento não é impedir a exploração

econômica, mas compatibilizá-la com a proteção do meio ambiente.

E é notoriamente nessa seara que se inserem nesta pesquisa os embates

discursivos sobre o desenvolvimento sustentável. E aqui algumas questões se

fazem pertinentes: como mensurar o grau de importância da proteção ambiental sem

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coibir o avanço da economia? De que maneira pode se operar um juízo de

ponderação a fim de se verificar qual dos dois valores deve se sobrepor ao outro?

Em outras palavras: tanto o crescimento econômico quanto a preservação

dos bens ambientais são resguardados pela Constituição Federal, lei máxima à qual

todas as demais devem obediência. Como as autoridades – administrativa e

judicialmente – portar-se-ão em termos enunciativos diante de empreendimentos

capazes de trazer benefícios aos indivíduos, na medida em que promoverão o

aquecimento econômico e um possível bem-estar social, mas que podem

efetivamente degradar o meio ambiente?

Referidas reflexões nortearão nossa pesquisa, justamente porque o Ministério

Público Federal, ao ajuizar a ação civil pública, cuja petição inicial compõe o material

de análise, tinha como um de seus objetivos principais, questionar a legalidade do

licenciamento ambiental e das suas consequentes licenças, tendo como

empreendedora a Cemig.

2.2.4 Breves considerações sobre o Ministério Público e a ação civil pública

De acordo com a Constituição da República (art. 127), o Ministério Público é

uma instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-

lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e

individuais indisponíveis.

Segundo o regramento constitucional, o Ministério Público não está

subordinado a qualquer dos três Poderes da República (Executivo8, Legislativo e

Judiciário), visto que é um órgão de caráter autônomo. Sendo assim, não pode

haver ingerência dos Poderes constituídos. A justificativa para essa autonomia se

inscreve na necessidade de os membros do Ministério Público terem uma postura de

imparcialidade na sua atuação.

É nesse sentido que se aponta o Princípio da independência funcional do

Ministério Público, estando ele subordinado tão somente à Constituição e às demais

leis. Paulo e Alexandrino (2007, p. 664) afirmam que

(...) seus membros não devem obediência a instruções vinculantes de nenhuma autoridade pública. Nem mesmo seus superiores hierárquicos (Procurador-Geral, por exemplo) podem impor-lhes ordens no sentido de agir desta ou daquela maneira em um determinado

8 Para José Afonso da Silva (apud PAULO; ALEXANDRINO, 2007, p. 663) há uma vinculação do

Ministério Público com o Poder Executivo, mas ressalva a independência daquele quanto a este.

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processo, haja vista que a relação de subordinação existente entre eles é meramente administrativa, e não funcional.

Na lição de Sirvinskas (2009, p. 703), a “tutela processual está intimamente

ligada ao acesso à Justiça. Todos os conflitos devem ser dirimidos pelo Poder

Judiciário, especialmente se não houver acordo” em sede administrativa.

Cabe enfatizar que o meio ambiente encontra-se na seara dos chamados

direitos difusos, já que abarca o interesse indivisível de pessoas indeterminadas (ou

indetermináveis).

Para Leandro Eustáquio (2008, p. 85), o dano ambiental tem como

características: “a ampla dispersão de vítimas”, pois como um bem difuso atingirá

um grande número de pessoas, e “a difícil reparação”, pois “qualquer valor atribuído

a um bem ambiental lesionado será sempre simbólico, se comparado ao valor

intrínseco da biodiversidade perdida (...)”

A responsabilidade civil é objetiva, ou seja, o causador do dano responderá

por ele independentemente de ter agido com culpa ou dolo, pois o que se leva em

consideração é a ocorrência do resultado prejudicial ao meio ambiente.

Havendo o dano, deve-se buscar o restabelecimento do “bem jurídico

protegido, assim como existia antes da lesão” (EUSTÁQUIO, 2008, p. 92).

Percebemos que essa determinação se encontra expressa na Lei 6.938/81 (art. 4º,

VII), porquanto o poluidor ou predador terá a obrigação de “recuperar” o dano. É o

que Édis Milaré (2004, p. 671) chama de “reparação natural ou in specie”,

processando-se a reconstituição ou recuperação do meio ambiente agredido.

Não sendo possível a reconstituição, admite-se a indenização em dinheiro

(conforme o mesmo art. 4ª, VII da PNMA). A reparação econômica vem a ser, por

conseguinte, uma “forma indireta de sanar a lesão” (MILARÉ, 2004, p. 671).

Diante disso, a Lei nº 7.347/85 possibilita a defesa do meio ambiente pelo

ajuizamento da ação civil pública. Pode-se pretender o pedido de responsabilidade

por danos morais e patrimoniais causados em razão do dano ambiental (art. 1º, I).

Podem figurar no pólo ativo dessa ação, isto é, podem propô-la: o Ministério

Público (federal ou estadual); a Defensoria Pública (com a redação dada pela Lei nº

11.448/07); a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal; a autarquia,

empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista; a associação que,

concomitantemente esteja instituída há pelo menos um ano e inclua entre as suas

finalidades a proteção ao meio ambiente (bem como ao consumidor, à ordem

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econômica, à livre concorrência e ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico

e paisagístico).

A legitimidade passiva na ação civil pública é ampla, podendo ser processada

judicialmente toda pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado que tenha

causado dano ao meio ambiente.

Vale ainda destacar que, além da possibilidade de ingressar em juízo com a

ação civil pública, é função do Ministério Público a promoção do inquérito civil (por

força do art. 129, III, da Constituição de 1988 e do art. 8º, § 1º, da Lei nº 7.347/85),

concernente a um procedimento administrativo cível, com o intuito de investigar a

desobediência quanto às determinações da legislação ambiental.

Após a efetivação desse procedimento investigatório, é assegurado ao

Ministério Público tomar compromisso de ajustamento de conduta, também

chamado de Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), para que aqueles que

degradaram o ambiente possam se comprometer a executar ações mitigadoras ou

reparadoras.

Por conseguinte, são estabelecidos compromissos que devem ser cumpridos

pelos poluidores9, sob pena de serem forçados a fazê-lo judicialmente, porquanto o

TAC tem eficácia de título executivo extrajudicial, podendo, por essa razão, ser

“cobrado” por meio de um processo de execução no âmbito do Judiciário. Tais

questões serão retomadas adiante.

2.3 Material de análise e sua abordagem metodológica

2.3.1 O Corpus selecionado

Antes de apontarmos o corpus selecionado para esta pesquisa, discutiremos

aspectos da questão administrativo-jurídica em torno da instalação do

empreendimento denominado Usina Hidrelétrica Juscelino Kubitschek ou Usina

Hidrelétrica de Irapé, que teve como proponente / empreendedor a Companhia

Energética de Minas Gerais – Cemig10.

9 O conceito jurídico de “poluidor” será discutido mais amiúde no subcapítulo 3.1 deste texto.

10 Por uma questão ética, na escrita da tese foi feita menção expressa somente aos nomes das

pessoas jurídicas que figuraram no polo passivo nos autos do processo judicial e que foram partes no Procedimento Administrativo Cível (PAC). Serão omitidos os nomes das pessoas físicas, indicando-se, quando necessário, somente as iniciais dos prenomes e nomes, a fim de contribuir para uma melhor observância dos dados da análise encetada. Nos anexos da pesquisa consta tão somente a

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Aludida Usina se localiza junto à área do Rio Jequitinhonha, na região

Nordeste do Estado de Minas Gerais.

A bacia atingiu as terras de seis municípios: Berilo, Botumirim, Cristália, Grão

Mogol, Minas Novas e Turmalina.

O empreendimento estava incluído no Programa de Expansão de Geração

1992/2002 e no Plano 2010 elaborado pelas Centrais Elétricas Brasileiras –

ELETROBRÁS, cuja finalidade era a expansão do sistema de geração e distribuição

de energia elétrica.

No que concerne especificamente ao material de análise da pesquisa, foram

selecionados dois textos escritos: a) uma petição inicial e b) uma matéria jornalística.

A petição inicial foi extraída dos autos do processo de uma ação civil pública,

em que atuou como autor o Ministério Público Federal (MPF), tendo como réus a

Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), o Estado de Minas Gerais, a

Fundação Estadual do Meio Ambiente (FEAM) e a Companhia Energética de Minas

Gerais (Cemig). O pedido da ação consistia basicamente em impedir a instalação da

Usina de Irapé, considerando os negativos impactos socioambientais do

empreendimento, bem como requerer a reparação dos danos causados a bens e

valores ambientais da coletividade local.

Nesta ação civil pública houve um acordo homologado por meio de uma

sentença judicial entre o MPF e os réus, tendo sido, então, celebrado um Termo de

Ajustamento de Conduta (TAC), no sentido de que a Cemig teria de promover

medidas mitigadoras para que as obras da usina fossem finalizadas e ela pudesse

ser de fato instalada.

Para averiguar se referidas medidas ajustadas no referido Termo de

Ajustamento de Conduta estavam sendo implementadas pela Cemig, foi instaurado

um Procedimento Administrativo Cível (PAC), relativo a uma Investigação

Administrativa Preliminar, nos moldes do inquérito civil público, tendo como

requerente o MPF.

Um dos documentos anexados pela Cemig a este PAC foi a matéria

jornalística, que será o segundo gênero a ser analisado neste trabalho. O objetivo

era de que ela servisse como prova da viabilidade socioeconômica do

empreendimento em questão.

matéria jornalística juntada ao PAC, pelo fato de esta ter tido circulação social massiva quando veiculada por “O Tempo”.

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O discurso na seara do Direito é eminentemente argumentativo. Em se

tratando do embate jurídico instaurado em razão da instalação da Usina de Irapé,

tanto o MPF quanto a Cemig buscaram fundamentar seus pontos de vista tomando

por base o princípio do desenvolvimento sustentável.

Ocorre que as estratégias argumentativas são erigidas sob diferentes

perspectivas: o MPF postulava que a instalação da Usina de Irapé era inviável

porque havia uma série de irregularidades na concessão do licenciamento

ambiental, desobedecendo, assim, às normas ambientais e às orientações de

sustentabilidade.

Já a Cemig advogava que o empreendimento era viável, pois atendia ao que

era preconizado no referido princípio, uma vez que estavam sendo tomadas

medidas capazes de mitigar os efeitos socioambientais negativos advindos da

instalação dessa usina e, ainda, porque a população local experimentaria muitos

benefícios socioeconômicos.

A escolha do material de análise não é, portanto, aleatória. Foram

selecionados textos, os quais constituem gêneros que retomam a discursivização

das duas perspectivas acima explicitadas. Por um lado, o MPF defendendo o porquê

da inviabilidade do projeto e, por outro, a Cemig justificando a plausibilidade técnica

e social da instalação.

Desses dois gêneros selecionados, há um número muito extenso de

enunciados. Para citarmos um exemplo, na petição inicial proposta pelo Ministério

Público, foram narrados e problematizados vários fatos imputados aos réus contra

quem a ação foi ajuizada. Nosso foco se voltará àqueles que de alguma forma

toquem nas pretensões argumentativas do MPF no sentido de impedir a implantação

da hidrelétrica, pelo fato de, segundo seu ponto de vista, existirem impactos

socioambientais negativos, apontando ser o projeto não sustentável. Essa também é

uma escolha metodológica, a qual consideramos relevante mencionar.

Debruçando-nos sobre esse material de análise, pretenderemos discutir o

processo enunciativo da sustentabilidade no caso da Usina de Irapé: i) descrevendo

a instituição dos gêneros acima mencionados; ii) enfocando como os sujeitos se

constituíram; e iii) problematizando um determinado modo de organização

argumentativo arquitetado por esses sujeitos.

Situado no quadro teórico da Análise do Discurso, o presente trabalho

assume uma concepção de discurso em que se toma a linguagem como uma prática

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social e, como tal, em sua relação dialética com o meio em que está inserida. Nessa

condição, entender o desenvolvimento sustentável configurado no Direito Ambiental

pelo viés do mencionado quadro é perceber como o discurso jurídico e suas

implicações se inscrevem na historicidade de seu tempo.

Outro aspecto que, sob nosso olhar, justifica a proposta de análise a ser

encetada nesta tese, é que acreditamos não ter sido explorada exaustivamente a

interface entre Direito – e mais especificamente, Direito Ambiental – e Análise do

Discurso, sendo este um importante foco das discussões que pretendemos

empreender.

2.3.2 Objetivos

2.3.2.1 Objetivo geral:

Discutir a construção enunciativa do desenvolvimento sustentável em Direito

Ambiental, tomando por base a questão administrativo-jurídica da Usina Hidrelétrica

de Irapé.

2.3.2.2 Objetivos específicos:

a) propor como pode ser concebida a constituição dos gêneros petição inicial e

matéria jornalística; enquanto recursos para ações sócio-historicamente

condicionadas no âmbito do discurso jurídico;

b) analisar como se dá a instituição dos sujeitos nos atos linguageiros de

determinados gêneros discursivos, considerando o projeto de fala por eles

empreendido;

c) descrever a operacionalização de um dado modo de organização argumentativo,

a fim de definir e explicitar a Proposta, a Proposição e a Persuasão dos sujeitos,

bem como discorrer sobre possíveis estratégias para a configuração de

procedimentos semânticos, discursivos e de composição;

d) ainda na abordagem sobre esse modo argumentativo, discutir como se constrói a

noção de ethos dos sujeitos participantes dos atos linguageiros em questão;

e) propor uma caracterização de possíveis imaginários sociodiscursivos referentes

ao Direito e também à ideia de sustentabilidade, notadamente no que concerne à

situação de comunicação própria de cada projeto de fala.

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3 REFERENCIAIS TEÓRICOS

A intenção neste capítulo é nos aproximar das bases mais relevantes da

construção teórica que pretendemos erigir, buscando, sobretudo, indicar nossas

filiações; o que, fatalmente, influirá na escolha das categorias de análise das quais

lançaremos mão.

3.1 Sobre os gêneros do discurso

Voltemos a Bakhtin. Em Estética da Criação Verbal (1997, p. 280), ele afirma

que o locutor utiliza a língua em determinadas esferas da atividade humana sob a

forma de “enunciados (orais e escritos) concretos e únicos” que refletem as

condições específicas e as finalidades de cada uma delas.

Os enunciados, marcados por uma esfera de comunicação, reuniriam três

elementos importantes, a saber: conteúdo temático; estilo verbal (seleção operada

nos recursos da língua — recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais) e

construção composicional.

Ainda para Bakhtin (op. cit., p. 280), qualquer enunciado considerado

isoladamente é individual, “mas cada esfera de utilização da língua elabora seus

tipos relativamente estáveis de enunciados”, sendo isso que ele denomina gêneros

do discurso (ou, para outros autores, gêneros textuais11).

Apesar de não nos debruçarmos de forma sistemática em todas as categorias

propostas por Bakhtin, vemos em Estética da Criação Verbal um texto fundador da

questão genérica. Nesse sentido, pensamos que a visão bakhtineana inspirou outros

autores, sobre cujas teorias também lançamos olhares.

Bazerman (2009, p. 15) afirma que desde o advento da escrita, “poderosas

funções da sociedade (incluindo o direito, o governo e a economia) têm sido de

modo crescente mediadas através de textos escritos.” A partir disso, tomaram lugar

inúmeras formas escritas e situações que requerem a escrita, encaixando-se em

complexos “sistemas de atividades”.

11

Marcuschi (2002; 2005), Charaudeau (2009), Bazerman (2009) e Lopes (2004) utilizam a acepção “gêneros textuais”. Já Maingueneau (1997, 2004, 2008) e Mari (2004) falam em “gêneros do discurso” e “gêneros discursivos”. Não podemos, tomando por base esses autores, pelo menos em princípio, verificar diferenças conceituais consideráveis entre esses termos, e que pudessem ensejar uma maior discussão. Por essa razão, adotamos a proposta de Mendes (2004, p. 119), que usa a expressão “gêneros discursivos e/ou textuais”.

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Nesse contexto, criam-se condições para se concluir que os textos acabam

“executando tarefas” de forma regular e nota-se “como certas profissões, situações e

organizações sociais podem estar associadas a um número limitado de tipos de

textos” (BAZERMAN, 2009, p. 19). Talvez não concordemos que o número tenha de

ser “limitado”, uma vez que subgêneros podem, eventualmente, nascer; ser

“hibridizados”; redefinidos. O surgimento de gêneros está associado às demandas

sociais, as quais não cessam, mas, ao contrário, complexificam-se cada vez mais,

originando novos textos tipificados.

Como esses textos são produzidos, circulados e de que forma são usados

explicam a própria emergência da atuação e organização de grupos sociais.

As atividades e as interações no ramo jurídico permitem que vários fatos

sociais sejam produzidos. Ao ingressar em juízo, por meio do direito de ação, o autor

de uma demanda movimenta o Poder Judiciário que obrigatoriamente tem de lhe

prestar a jurisdição. Desde que o Estado tomou para si a prerrogativa de “dizer o

direito”, proibindo que a sociedade resolvesse seus conflitos pela autotutela12, teve

por obrigação o encargo de distribuir a justiça para todos os que dela dependessem.

E o direito de ação, conferido a todo indivíduo com capacidade civil, é exercido

justamente por intermédio de um texto, que é a petição inicial. Esse fato (direito de

ação) somente nasce pela emergência de um texto (petição inicial), implicando uma

série de outros atos por parte do Judiciário.

Percebemos, então, que os textos criam fatos sociais e, segundo Bazerman

(2009, p. 22), surgem “formas textuais padronizadas, típicas e, portanto, inteligíveis,

ou gêneros, que estão relacionados a outros textos e gêneros que ocorrem em

circunstâncias relacionadas.” Nesta tese, ao analisarmos gêneros que tomam lugar

no discurso jurídico necessariamente buscaremos compreender, de algum modo, a

interação entre os sujeitos, as suas atividades e as suas ações e, por conseguinte,

como no interior dessas atividades, dá-se o fenômeno ‘gêneros discursivos’.

Ainda no que tange à busca de definição de gêneros discursivos e/ou

textuais, Mendes (2004, p. 119) aponta que

(...) a sociedade se organiza em “setores (esferas) de atividades” que só se realizam sob a forma de práticas discursivas institucionalizadas correspondentes àquilo que intuitivamente é chamado de “discurso filosófico”, “religioso”, “científico”, “jurídico”, “literário”, “político”, “midiático”, etc. Esses grandes domínios de práticas de linguagem muito gerais e muito

12

Nos dizeres de Fredie Didier (2008, v. 1, p. 74), autotutela é a “solução do conflito de interesses

que se dá pela imposição da vontade de um deles, com o sacrifício do interesse do outro. Solução egoísta e parcial do litígio. O “juiz da causa” é uma das partes”.

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difusos representam uma espécie de “memória interdiscursiva” e se materializam textualmente sob a forma de um conjunto de gêneros diversos associados a diferentes situações de comunicação, portanto a diferentes condições sócio-cognitivas de produção, recepção e circulação, e ainda, a diferentes convenções linguístico-enunciativas de ordem formal.

Mendes (2004, p. 120) ainda elucida que os gêneros são “famílias de textos”,

relacionadas a práticas discursivas historicamente determinadas, dando como

exemplo textos “cognitiva e socialmente interpretados e/ou reconhecidos como

representativos de um ‘editorial de jornal’, de uma ‘propaganda eleitoral’, de uma

‘carta’, de uma ‘entrevista’”, entre outros.

De acordo com Marcuschi (2002, p. 22), a expressão “gênero textual” trata de

a uma noção propositalmente vaga para se referir a textos materializados “que

encontramos em nossa vida diária e que apresentam características sócio-

comunicativas definidas por conteúdos, propriedades funcionais, estilo e composição

características”, citando vários exemplos, tais como telefonema, sermão, carta

comercial, carta pessoal, notícia jornalística, bula de remédio, lista de compras,

cardápio de restaurante, resenha, edital de concurso, piada, conversação

espontânea etc.

O autor menciona também o ‘inquérito policial’ como sendo um gênero. Em se

tratando da tese, lançaremos olhares sobre um procedimento em Direito

denominado “Investigação Administrativa Preliminar”, configurada por intermédio do

Procedimento Administrativo Cível13, já indicado anteriormente quando tratamos

acerca do corpus do trabalho.

Podemos considerar esse procedimento de ordem administrativo-jurídica,

como um gênero discursivo. Ao se prestar à função social de promover o chamado

‘inquérito civil’, uma série de textos toma lugar para dar-lhe vida, instituindo, por sua

vez, uma gama de ações sociais. Em outras palavras, podemos afirmar que os

documentos inseridos na Investigação Administrativa Preliminar criarão fatos sociais,

culminando no nascimento de deveres e de obrigações para os atores envolvidos

nessas atividades. Nesse contexto é que promoveremos a análise da matéria

jornalística, enquanto gênero que foi anexada no procedimento pela Cemig para

servir como prova.

13

Vale lembrar que, em vista de nosso recorte metodológico, trataremos de apenas um gênero que

fez parte desse Procedimento Administrativo Cível, qual seja, a matéria sobre o empreendimento publicada no jornal “O Tempo” e juntada pela CEMIG.

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Pensando nessa questão, aludimos a alguns conceitos propostos por

Bazerman (2009, p. 32). Ele nomeia: i) conjunto de gêneros a coleção de tipos de

textos que uma pessoa tende a produzir num determinado papel profissional; ii)

sistemas de gêneros os diversos conjuntos de gêneros utilizados por pessoas que

trabalham juntas de uma forma organizada e também as relações padronizadas que

se estabelecem na produção, circulação e uso de documentos; iii) sistemas de

atividades, funcionando como um frame que organiza o trabalho, a atenção e as

realizações das pessoas.

Numa proposta um pouco diferente, acreditamos ser possível pensar a

Investigação Administrativa Preliminar como um macrogênero, que obrigatoriamente

dá origem a uma série de documentos – enquanto práticas discursivas –, também

considerados gêneros.

Numa tentativa de melhor explicação: o Ministério Público Federal, tendo a

competência14 institucionalizada de promover o inquérito civil, isto é, sendo o órgão

investido do poder para apurar os fatos envolvidos em torno de uma questão

ambiental, na hipótese de pretender averiguar a existência de alguma irregularidade

ou ofensa a preceito legal, determina a realização de vários atos – sociais – que se

configuram por intermédio de documentos, os quais se materializam por meio de

textos. É o que se dá com: a) os ofícios em que o MPF requisita informações; b) as

respostas dos sujeitos, os quais, caso não respondam, poderão subsidiar o órgão

ministerial para o ingresso de alguma ação judicial contra eles; c) os pareceres

técnicos, por exemplo, de análise de impactos socioambientais; d) os relatórios para

apresentação de atendimentos às determinações do MPF; e) outros textos que

funcionam como provas capazes de corroborar o que se alega etc. Vemos a

identificação de um sistema de gêneros para se concretizar a instituição de um

gênero maior.

A sistematização de gêneros no Direito é um requisito para a existência dos

fenômenos jurídicos mais complexos, como é o caso de um processo judicial.

Quando alguém se considera interessado numa demanda, ingressa em juízo através

de uma petição inicial, provocando o magistrado que tem de lhe dar uma resposta15.

Isso se deve à determinação prevista na Constituição Federal, no inciso XXXV do

14

“Competência” nesse caso específico deve ser entendida como a atribuição determinada em lei para promoção dos atos relativos ao procedimento do inquérito civil. 15

Já expusemos brevemente a respeito da jurisdição, que é o poder-dever do Estado de dizer o

Direito, ou seja, de solucionar os conflitos que lhe são apresentados.

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art. 5º, que textualmente estabelece: “a lei não excluirá da apreciação do Poder

Judiciário lesão ou ameaça de lesão a direito”, também conhecida como o direito

fundamental à inafastabilidade da apreciação pelo Poder Judiciário. A partir desta

provocação, uma série de atos formais se desenrolará para que o processo se

movimente: o juiz ordenará a citação do requerido, isto é, o ato pelo qual ele toma

conhecimento do processo, com o intuito de ele apresentar sua resposta, o que

geralmente é feito por meio da contestação. Nesse momento inicial do processo,

apenas para que se dê aquilo que em Direito se chama a “formação da relação

processual” – a triangulação “autor / juiz / requerido” –, pode-se ver a presença de

três gêneros: “petição inicial”, “citação” e “contestação”, apresentadas,

respectivamente, por cada um desses sujeitos.

Em alguns momentos nesta pesquisa, temos utilizado a noção “gêneros do

discurso jurídico”. Marcuschi (2002, p. 23) propôs a ideia de “domínio discursivo”,

para “designar uma esfera ou instância de produção discursiva ou de atividade

humana.” Esses domínios não seriam em si textos ou discursos, mas propiciariam o

surgimento de discursos bastante específicos, podendo se falar, segundo o próprio

Marcuschi, em “discurso jurídico”, não abrangendo um gênero em particular, mas

dando origem a vários deles.

Dito de outro modo e sob o nosso ponto de vista, a partir do domínio

discursivo jurídico emergiram gêneros macro, como a ação civil pública e o

Procedimento Administrativo Cível, já explicitados acima, dos quais surgiram outros

gêneros, como por exemplo, a petição inicial e a matéria jornalística juntada pela

Cemig.

Em termos de uma possível caracterização dos gêneros, Marcuschi (2002, p.

24) aponta a predominância de critérios de “ação prática, circulação sócio-histórica,

funcionalidade, conteúdo temático, estilo e composicionalidade”, bebendo, a nosso

ver, na fonte bakhtineana.

Lopes (2004, p. 211), nessa mesma seara, descreve dados obtidos a partir de

uma experiência de leitura feita com alunos do Curso de Letras, na qual foram

apresentadas como categorias mais recorrentes para se apontar as características

dos gêneros: a representação do gênero, do suporte, do autor, do leitor, do tema,

das finalidades, do contexto sócio-histórico-cultural. A autora salienta como traço

importante o fato de essas categorias não se mostrarem isoladas, mas, ao contrário,

serem apresentadas em conjunto, o que nos leva a conceber a ideia de gêneros

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discursivos como instâncias que refletem fatos sociais complexos, não estanques ou

delimitados apenas por sua aparição formal. Iremos nos ater a isso um pouco à

frente.

Ainda no que toca às possíveis características dos gêneros, citamos o que

Mendes (2004, p. 123) trata como “conteúdo temático”, constituindo as

“representações semânticas e/ou as redes conceituais dizíveis a partir de um

determinado gênero inserido em um dado domínio discursivo.” O autor dá como

exemplo o domínio político que encerraria, pelo menos em princípio, os enunciados

que dessem conta de tematizar os interesses do “espaço público”, tratando das

condições de vida da população ou do funcionamento das instituições.

É possível perceber os temas afeitos ao Direito como um conjunto de

interesses apresentados ao Estado para a solução dos conflitos – no caso da

jurisdição contenciosa –, ou apenas para o Poder Público fiscalizar determinados

atos da vida civil, como se dá na jurisdição voluntária. Isso numa primeira

delimitação.

Entretanto, numa análise um pouco mais detalhada, percebemos que os

conteúdos temáticos abarcados nos gêneros do domínio discursivo jurídico são de

natureza multifacetada. A pertinência temática é extremamente complexa, uma vez

que a delimitação dos interesses a serem tratados dependerá, num primeiro

momento, do ramo do Direito e, posteriormente, do objeto da ação, ou seja, do “caso

concreto”. Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direito Tributário, Direito

Penal, Direito Processual são ramos do Direito Público; enquanto Direito Civil, Direito

Empresarial e Direito do Trabalho16 são classificados como ramos do Direito

Privado.

Chequemos o que pode ocorrer em termos da petição inicial. Seu escopo

temático é delimitado de acordo com os ramos do Direito: na seara civil, serão

abordados temas acerca das relações entre pessoas e entre estas e os seus bens.

Numa petição inicial cível, podem tomar lugar discussões sobre o divórcio de um

casal, no qual as razões do rompimento conjugal, a guarda dos filhos, o valor da

pensão alimentícia, a partilha dos bens são assuntos relevantes. Entretanto, é difícil

pormenorizar todas as possibilidades de temas que podem emergir nesse gênero,

visto que os motivos ensejadores do fim do casamento podem passar pela simples

16

Adotamos a classificação de Sérgio Pinto Martins (2006).

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“incompatibilidade de gênios”, mas também dizer respeito a casos extraconjugais

narrados com requintes de detalhes: cartas, e-mails, encontros românticos entre os

amantes, narrativa de brigas homéricas, às vezes até culminando em violência

física...

Em termos de uma petição inicial sobre Direito Ambiental, a amplitude de

conteúdos temáticos não é menor. Pode-se buscar a tutela jurisdicional do Estado

quando há prejuízo para a saúde, a segurança e o bem-estar da população, ou

quando o poluidor (agente causador do dano ambiental) criar condições contrárias

às atividades sociais e econômicas ou ainda quando comete um ato que possa ser

considerado crime ambiental.

Acreditamos que, por um lado, a legislação possa constituir a base das

restrições de temas nos gêneros do domínio discursivo jurídico; por outro, mesmo

com a limitação legal, os sujeitos participantes dos atos linguageiros alçarão voos

temáticos de acordo com suas necessidades e interesses e aqui não se pode tentar

impor um número exaustivo de temas na órbita judicial.

O espaço jurídico implica a arquitetura de redes conceituais diversificadas,

porquanto o Direito está associado ao indivíduo desde que este nasce (às vezes até

antes mesmo disso, como na garantia de direitos do nascituro) até o alcance dos

efeitos post-mortem, configurados pelo direito de herança, por exemplo. Assim,

pensamos que o conteúdo temático não abarca tão somente os assuntos tratados

no direito, mas as relações imbricadas na convivência em sociedade.

Quanto à construção composicional, intuímos que os chamados “modos de

organização do discurso” apresentados por Charaudeau dão conta de, em certa

medida, sistematizar a proposta de Bakhtin. Especificamente nos voltaremos para o

modo de organização argumentativo, o que será levado a cabo em capítulo próprio.

Bakhtin também alude ao “estilo” como característica dos gêneros, referindo-

se à “configuração formal dos recursos expressivos que o materializam sob a forma

de um texto reconhecido como exemplar de um determinado gênero” (MENDES,

2004, p. 124). Estilo associar-se-ia, pois, ao enunciado e à forma típica de

determinados enunciados. Como o enunciado é individual, o estilo, da mesma forma,

seria também individual. Ocorre que o próprio Bakhtin ressalva que nem todos os

gêneros poderiam apontar para um estilo individual. Sob o nosso ponto de vista, o

autor, ao fazer menção ao estilo linguístico, pretendia defender a proposta de que

enunciados específicos teriam o condão de se associar a determinados tipos de

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gêneros, configurando, dessa maneira, uma dada “forma” para os gêneros. É claro

que há uma regularidade formal na caracterização de gêneros. Todavia, advogamos

a tese de que isso não se reveste de um caráter absoluto, visto que sob a forma de

um poema pode-se funcionalmente lançar mão de um gênero diverso, tal como uma

sentença judicial.17

Pensamos ser importante ressaltar algumas considerações teóricas

levantadas por Marcuschi (2005, p. 17), que buscou compreender a conceituação de

gêneros em Bakhtin (2000) enquanto enunciados de natureza histórica,

sociointeracional, ideológica e linguística “relativamente estáveis”. Para Marcuschi,

há certa incongruência ao se tratar do assunto, uma vez que, segundo ele, “parece

que para Bakhtin era mais importante frisar o ‘relativamente’ do que o ‘estável’”. Sua

crítica é voltada para aqueles que, na caracterização de gêneros, enfatizam ser mais

relevante a estabilidade, entendida como a primazia da “forma”, em detrimento de

uma configuração genérica que leve em conta seu caráter histórico-social.

Partindo desse embate, perguntamos: é possível estabelecer uma

classificação de gêneros por meio tão somente da análise de suas formas? Para

Marcuschi (2005, p. 18), não. Ele defende que as teorias de gênero que privilegiam

a “forma” ou a “estrutura” estão hoje em crise, porquanto os gêneros são

essencialmente flexíveis e variáveis, “tal como o seu componente crucial, a

linguagem. Pois assim como a linguagem varia, também os gêneros variam,

adaptam-se, renovam-se e multiplicam-se.” Marcuschi (2002, p. 29) ainda repisa

essa noção quando afirma que:

(...) os gêneros textuais não se caracterizam como formas estruturais estáticas e definidas de uma vez por todas. (...) Eles são eventos linguísticos, mas não se definem por características linguísticas: caracterizam-se, como já dissemos, enquanto atividades sócio-discursivas. Sendo os gêneros fenômenos sócio-históricos e culturalmente sensíveis, não há como fazer uma lista fechada de todos os gêneros. (...) Quando dominamos um gênero textual, não dominamos uma forma linguística e sim uma forma de realizar linguisticamente objetivos específicos em situações sociais particulares.

Diferentes não são as ponderações de Lopes (2004, p. 216). A autora postula

que “o gênero não pode ser considerado somente com base em sua composição

formal, mas precisa ser considerado a partir de sua funcionalidade e de seu campo

de atuação.” E conclui que “não se podem construir modelos fechados de categorias

17

Como no caso do juiz gaúcho que proferiu uma sentença judicial sob a forma de um poema.

Disponível em: http://www.achetudoeregiao.com.br/noticias/cotidiano306.htm

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para inscrever um texto em um determinado gênero.”

Não se pode negar que o caráter funcional de um determinado gênero supera

seu elemento meramente formal. Marcuschi (2005, p. 30) cita o exemplo de uma

publicidade, que tanto pode ter o formato de um poema como pode apresentar uma

lista de produtos em oferta. Percebemos que o que efetivamente valida a

publicidade é sua dupla função de: i) expor, divulgar o produto e ii) de seduzir o

eventual consumidor a adquirir o que é ofertado.

A atividade prática ministrada por Lopes (2004) aponta para essa mesma

direção: foi submetido à leitura dos alunos de um Curso de Letras o texto “Receita

de Pauta”, de Carlos Heitor Cony, publicado na Folha de São Paulo, em 24 de

março de 2001. Muito embora o texto assumisse um formato de “receita culinária” –

com expressões típicas desse gênero, tais como “Pegue” (...); “junte tudo num

caldeirão” (...); “mexa tudo” (...); “deixe esfriar” (...); “Tudo pronto, é servir” (...) –,

nenhum dos alunos o classificou como sendo a materialização de um gênero

“receita”. Os discentes direcionaram suas respostas para os gêneros “crônica” ou

“artigo de opinião”; e mesmo aqueles que não apontaram para um gênero

especificamente, caracterizaram-no como gênero/texto jornalístico e ainda como

texto “argumentativo”.

Referidos exemplos balizam a ideia de que os gêneros não podem ser

classificados exclusivamente pelas “formas” como se apresentam, devendo ser

observada sua “funcionalidade”.

Mas, levando isso em conta, seria-nos permitido afirmar que os “formatos”

dos gêneros devem ser desconsiderados ou relegados a um patamar de

desinteresse por parte dos estudiosos da linguagem? Ou, ao contrário, pode-se

dizer que existem coerções aos usuários da língua que os impelem a produzir textos

necessariamente configurados num determinado tipo de gênero? Ainda: em que

medida as coerções que determinam a forma de gêneros dados cede espaço à

liberdade dos sujeitos que deles fazem uso? É possível transgredir a formatação

“imposta” pelos gêneros? E mais especificamente naquilo que temos chamado de

gêneros do discursivo jurídico, poder-se-ia falar em subversão de seus formatos?

Na tentativa de responder essas perguntas e mais uma vez remetendo à

noção bakhtineana de gêneros como constructos linguísticos “relativamente

estáveis”, sentimos ser importante refletir sobre a seguinte dicotomia: a questão de

uma eventual limitação à criatividade enunciativa imposta pelos gêneros (ou seja,

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pelas formas como devem ser circunscritos) versus a possibilidade de transgressão

dessa limitação. Isso é importante na medida em que podemos pensar que nem

todos os gêneros são igualmente abertos à interferência da criatividade individual.

Nessa perspectiva, Maingueneau (2008a, p. 155) classifica os gêneros em

cinco graus, de acordo com a maior ou menor possibilidade de interferência dos

falantes em sua construção. Antes de ingressar nessa classificação propriamente

dita, cabe dizer que Maingueneau (op. cit., p. 154) faz uma divisão dos gêneros em

dois regimes distintos: a) gêneros conversacionais, isto é, aqueles da conversação

“ordinária”, não associados a lugares institucionais, a papéis ou a rotinas estáveis,

como, por exemplo, uma conversa entre colegas de trabalho na hora do intervalo ou

entre marido e mulher durante o almoço. No desenvolvimento da interação

linguageira, os interlocutores alteram a organização textual e os conteúdos, de modo

mais ou menos aleatório; b) gêneros instituídos, englobando, por um lado, os

gêneros “rotineiros” (em que os papéis dos parceiros do ato de linguagem são

institucionalizados, dados, pois, a priori, como no caso de entrevistas, debates,

reportagem jornalística etc.) e por outro, os gêneros “autorais” (determinados pelo

autor e comumente indicados por uma referência paratextual: resenha, ensaio,

meditação etc.).

Ao que parece, é possível aproximar essa demarcação de Maingueneau

acerca dos regimes de gêneros conversacionais e instituídos àquilo que Faraco

(2003, p. 62)18 chama, respectivamente, de gêneros “primários, os da ideologia do

cotidiano; e de gêneros “secundários”, os dos sistemas ideológicos constituídos.

Retomando a classificação de Maingueneau (2008a, p. 155) no que tange à

abordagem dos graus dos gêneros, apontamos que sua preocupação se atinha aos

gêneros instituídos. Vejamos:

Ao primeiro grau corresponderiam os gêneros que não se submetem á

variação, ou seja, que a interferência dos interlocutores não ocorre ou se dá de

forma mínima. Há “fórmulas e esquemas rigorosamente preestabelecidos: listas

telefônicas, certidões de nascimento”. O autor questiona até mesmo o fato de poder

se falar em autor.

Nos gêneros de segundo grau, os falantes, ao passo que produzem

enunciados singulares, ainda se atêm a um roteiro muito rígido, podendo se citar as

18

Apud Marcuschi (2005, p. 22).

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correspondências de negócios ou notícias televisivas.

Quanto aos gêneros de terceiro grau, variações são permitidas, podendo os

enunciadores ter certa liberdade e, em certa maneira, ser originais. O autor cita o

exemplo de um guia de viagens sendo apresentado sob a forma de uma conversa

entre amigos ou de um romance.

Os gêneros de quarto grau “requerem a invenção de cenários de fala”

(MAINGUENEAU, 2008a, p. 156), como é o caso de um anúncio publicitário, no

qual, apesar de ter que se prestar ao papel de anunciar um produto, possibilita uma

gama bastante variada de maneiras para fazê-lo.

Já os gêneros de quinto grau inserem-se os gêneros propriamente autorais,

tomados por uma “incompletude constitutiva” (MAINGUENEAU, 2004, p. 5119).

Pode-se citar o exemplo de um “autor ‘individualizado’ (ou seja, que está relatando

sua biografia ou uma experiência singular do mundo)”.

Os gêneros do domínio discursivo jurídico, nosso objeto de maior interesse,

numa primeira hipótese, corresponderiam ao que o autor classifica como gêneros de

segundo grau, ou seja, aqueles em que os falantes precisam produzir enunciados

singulares obedecendo, todavia, a um ritual ou a um roteiro bastante rígidos.

Por conseguinte, os gêneros desse domínio discursivo deveriam respeitar um

ritual estabelecido pela própria prática jurídica. Os sujeitos participantes da atividade

de linguagem teriam, portanto, de instituir-se e instituir, igualmente, o seu dizer,

atendendo às limitações impostas por essas coerções. Em tese, aí se inseriria a

petição inicial, por exemplo. O que predetermina as “formas” como esses gêneros

deverão se apresentar e de que modo os interlocutores constituirão suas falas é a

própria configuração da lei. Todo o cabedal de ações no Direito (mediadas

obviamente pelos discursos) segue a ritualística preconizada na legislação em vigor.

Via de regra, não é permitida a quebra do cerimonial nos gêneros do discurso

jurídico pelo fato de que essa conduta ensejaria, em última instância, uma

ilegalidade, ou seja, um ato a ser rechaçado e, por consequência, retirado da esfera

social.

Diante disso, sabemos da dificuldade de promover o estabelecimento de

critérios rígidos capazes de sistematizar os gêneros do domínio discursivo jurídico

19

Apesar de neste texto de 2004, Maingueneau classificar esse tipo de gênero com sendo do quarto

grau, tomamos sua classificação para apontar o gênero de quinto grau, conforme o autor propôs no texto de 2008, ora discutido.

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tomando por base exclusivamente suas formas. Por outro lado, não nos parece

acertado descartar a ideia de que, sim, esses gêneros são determinados por

limitações de ordem formal aos falantes e que isso se opera por intermédio da

obrigatoriedade de se obedecer à própria lei. E nesse escopo, rechaçamos a

afirmativa – pelo menos no que toca ao domínio discursivo jurídico – de que a

análise das formas genéricas está em desuso.

Ratificamos o ponto de vista de Mendes (2004, p. 124) para quem

A recorrência de características formais é um ponto fulcral da caracterização dos gêneros, pois coloca em questão a dupla dimensão de regularidade e semelhança e de variação e diferença inerente aos textos/enunciados.

O autor entende que a atividade sociocomunicativa condiciona o surgimento

de gêneros “ao mesmo tempo em que se estrutura através deles, estabelecendo

certas ‘maneiras de dizer’ mais ou menos rotineiras.” Muito embora Mendes esteja

se referindo aos gêneros de modo geral, trazemos sua fala para reiterar que na

estrutura discursivo-jurídica as formas não são totalmente irrelevantes.

Corroborando essa ideia, Mari e Silveira (2004, p. 72) apostam que

justamente “alguma coisa deve estar moldada e plenamente disponível para os

usuários”, pois é isso que torna os gêneros fascinantes “em termos de economia no

processamento de informação.” Acreditamos que há, no Direito, uma necessidade

de uniformizar os procedimentos – leia-se: dar um parâmetro formal para os gêneros

a serem utilizados na sua seara – uma vez que isso tende a promover: i) a

organização da estrutura de modo que as regras sejam claras para todos os

usuários; e ii) a garantia de controle, justamente no sentido de que é a instituição

que é a detentora do poder de dizer quais são as aludidas regras. Garante-se, pois,

a imparcialidade e, ao mesmo tempo, consolida-se o poder.

Então, a partir das questões apresentadas pelos autores com os quais

estamos dialogando ao longo deste constructo teórico, propomos a via de que os

gêneros do discurso jurídico são indissociáveis de uma dupla configuração: por um

lado, a de sua dimensão formal, que, apesar de não ser o foco principal de

abordagem neste trabalho, não deve ser preterida totalmente, mas, sim, colocada

em termos das suas restrições e dos aspectos de estabilidade estrutural; e, por

outro, a de sua natureza funcional, consubstanciada na tessitura de um processo

sócio-histórico e interacional, no qual os gêneros devem ser entendidos como

instrumentos de ações sociais, cognitivas, influenciadas pelas relações de poder,

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garantindo, dessa forma, que se replique o discurso institucionalizado.

Considerando o caráter interdisciplinar desta pesquisa, que traz uma interface

Linguística-Direito e sabendo do necessário diálogo com leitores que não se inserem

nos estudos relacionados à área jurídica, entendemos ser conveniente trazer de

forma geral a apresentação dos dois gêneros selecionados como material de análise

do trabalho a ser executado.

A tutela jurisdicional somente pode ser prestada quando a parte ou o

interessando a requerer ao juiz, conforme art. 2º do Código de Processo Civil. Isso

vem a ser a chamada demanda, ou o ato pelo qual alguém pede a prestação

jurisdicional ao Estado, exercendo seu direito de ação. O veículo de manifestação

formal da demanda é a petição inicial (THEODORO JÚNIOR, 2004, p. 325).

Em se tratando do material de análise selecionado do corpus, a petição inicial

a ser pesquisada como gênero foi proposta pelo Ministério Público. As funções

institucionais do órgão ministerial estão previstas no art. 129 da Constituição Federal

de 1988, conforme já exposto anteriormente. Dentre elas, cabe destacar a de

promover a propositura de uma ação civil pública (expediente jurídico já explanado

neste trabalho), a fim de garantir a proteção do patrimônio público e social e do meio

ambiente, como no caso da Usina de Irapé.

A petição inicial, como gênero, deve seguir um certo protocolo, tendo seus

requisitos dispostos no art. 282 do Código de Processo Civil. Intrínseca é, pois, a

relação do texto normativo, isto é, da lei vigente, com essa peça processual. A

legislação constitucional e processualista indicam, respectivamente, as restrições

relativas às condições de produção e aos aspectos formais do gênero “petição

inicial”.

Temos a proposta também de analisar a matéria jornalística intitulada

“Hidrelétrica de Irapé – Uma luz no Jequitinhonha”, veiculada em “O Tempo”. Mello e

Emediato apontam a importância da informação na sociedade contemporânea.

Segundo os autores (2013, p. 243), “a informação como prática social pode

colaborar para o engajamento do sujeito no mundo”, muito embora também possa

suscitar o “conformismo social”.

Mello e Emediato (2013, p. 244) explicitam que o discurso da mídia

jornalística está “atravessado pelo ideal de objetividade da informação”, tendo que

se mostrar crível. Entretanto, como os próprios autores mencionam a transmissão

neutra e transparente torna-se bastante questionável, uma vez que “não há

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informação sem enunciação”, ou seja, há um posicionamento da instância

jornalística, que será perpassado por um ponto de vista, uma opinião. Não caberá a

nós, neste momento, pôr em discussão em que medida se dá essa não-neutralidade

do discurso jornalístico, percurso que pretenderemos delinear no momento da

análise.

O que queremos expor agora é que essa matéria do Jornal “O Tempo” foi

juntada pela Cemig ao Procedimento Administrativo Cível. Foram colocados em jogo

vários recursos argumentativos a fim de fazer acreditar que a Usina de Irapé é

fundamental para o desenvolvimento da região onde está sendo implantada. E, a

partir do momento em que passa a fazer parte do Procedimento no qual o MPF está

averiguando se a instalação da hidrelétrica é ou não sustentável, a matéria

jornalística ganha o status de “voz” da Cemig.

Isso é corroborado pelo fato de que, ao ser anexada ao Procedimento, passa

a ser considerada “prova”, a ser examinada pelo órgão ministerial. Sob o nosso

ponto de vista, a juntada de provas é um ato fundamental – senão o mais importante

– no discurso jurídico. Isso se dá em razão de dois motivos igualmente

valorosos na prática judiciária: (i) os interlocutores de um processo judicial (e

também administrativo) devem, obrigatoriamente, provar tudo aquilo que alegam e

(ii) o magistrado somente pode julgar de acordo com as provas que são acostadas

aos autos. Retomaremos essa questão na análise.

3.2 Voltando o olhar à subjetividade em Patrick Charaudeau

Antes de ingressarmos na análise da subjetividade em Patrick Charaudeau, é

bastante conveniente apontarmos sobre qual base encetaremos esse objetivo.

Nossa proposta é estudar os sujeitos conforme os fundamentos da Teoria

Semiolinguística e, em razão disso, faremos algumas incursões a respeito dela20.

Sendo a linguagem o que faz o homem pensar e agir, não poderíamos pensar

em interação humana desprovida da linguagem. É por meio de um ato de linguagem

que reconhecemos o outro e, fatalmente, só reconhecemos a nós mesmos pelo

outro.

Ainda nos voltando a Bakhtin (1995, p. 112), “a enunciação é o produto da

20

Esta pesquisa não pretende discutir todos os postulados da Teoria Semiolinguística. Serão tratadas

categorias que contribuam para a análise da subjetividade.

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interação de dois indivíduos socialmente organizados”. Vemos, pois, que

(...) toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da palavra defino-me em relação ao outro (BAKHTIN, 1995, p. 113).

A intersubjetividade é inerente à linguagem: o sujeito só é capaz de se

reconhecer através do outro, não havendo outra saída senão a de validar a noção

de alteridade. Talvez esse possa ser um princípio agregador do pensamento

bakhtineano. Sem o outro, não há autorreconhecimento.

O ser só significa em relação com o outro. O despertar da minha consciência

se opera na interação com a consciência do outro.

Podemos aqui, também, localizar a fase em que muitos trabalhos da AD

francesa se encontram: a de se considerar, conforme postula Faraco (1999, p. 195),

“a existência da multivocalidade como marca característica dos discursos, no sentido

de que os enunciados de cada discurso têm um percurso que faz com que

carreguem a memória de outros discursos.”

Charaudeau (2009a, p. 07) diz ainda que a linguagem é “um poder, talvez o

primeiro poder do homem”, poder esse construído pelo homem por meio de trocas.

Corroborando a visão de que a linguagem não se resume meramente a

regras de gramática e a palavras de dicionário, Charaudeau a sistematiza de uma

forma que acreditamos ser apropriada, ao afirmar que é um fenômeno complexo,

que envolve inúmeros componentes, cada qual devendo considerar uma

determinada competência. O autor (op. cit.) aponta basicamente três

“competências”: i) situacional; ii) semiolinguística e iii) semântica.

No que tange à competência situacional, vê-se que não pode existir um ato de

linguagem construído fora de uma situação de comunicação. Nesse sentido,

obrigamo-nos a levar em conta a finalidade de cada situação e a identidade dos

participantes nela imbricados, como se verá adiante.

A competência semiolinguística21, por sua vez, entende-se como a habilidade

de organizar a “encenação do ato de linguagem de acordo com determinadas

visadas22” (CHARAUDEAU, 2009a, p. 07).

Já a semântica trata do conhecimento acerca da construção do sentido,

21

O significado do termo ‘semiolinguística’ já foi apontado acima, mais precisamente no subcapítulo 2.1. 22

Consideramos oportuno apontar que Charaudeau, em outros textos, utiliza o vocábulo “visada” em

diferentes dimensões teóricas. Discutiremos adiante qual a definição por nós adotada.

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61

utilizando-se os elementos gramaticais ou lexicais, a partir dos “saberes de

conhecimento e de crença que circulam na sociedade”, considerando-se as duas

primeiras competências acima explicitadas. A análise dos aspectos semânticos terá

grande importância nesta pesquisa, uma vez que é por meio dela que poderemos

perceber a construção de certos efeitos de discurso (CHARAUDEAU, 2009a, p. 50)

ou, dito de outro modo, efeitos de sentido, nos enunciados.

De acordo com Charaudeau (2009a, p. 08), a reunião das competências

situacional, semiolinguística e semântica constituiria o que se chama de

competência discursiva.”

Aos nos voltar para o material de análise coletado do corpus, ou seja, as

peças da Ação Civil Pública e do Procedimento Administrativo Cível, poderemos

verificar como emergem as competências acima referidas dos sujeitos implicados

nos atos de linguagem que lá tomaram lugar.

Para essa discussão, acreditamos que a adoção dos pressupostos teóricos

da Semiolinguística de Patrick Charaudeau torna-se funcional e apropriada para a

pesquisa a ser executada.

Seguindo na construção das noções que orientarão este trabalho, tomamos

como nossos os questionamentos de Charaudeau (2001, p.23) a respeito da análise

do discurso:

Como compreender um objeto de linguagem que se apresenta desprovido de sua dimensão psicossocial? (...) Como captar o fenômeno da significação em uma análise da linguagem que não se interessa pelas condições de produção?

Para responder a essas questões, partimos do pressuposto de que a

dimensão social e as condições em que cada enunciado é produzido estão

intrinsecamente ligadas. E por essa razão, as definições dos sujeitos do ato de

linguagem são fundamentais, como se explicitará a seguir.

Para Charaudeau (2001, p. 24), o discurso não deve estar associado apenas

à expressão verbal da linguagem, visto que ele pode ultrapassar “os códigos de

manifestação linguageira na medida em que é o lugar da encenação da

significação”, podendo lançar mão, de acordo com suas próprias finalidades, de

mais de um código semiológico.

Importante sinalizar que, segundo o autor (2001, p. 25), o discurso tampouco

deve ser confundido com o texto, o qual representa a materialização ou o resultado

da encenação do ato de linguagem.

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Conforme Charaudeau (2009a, p. 52), o ato de linguagem não deve ser

tratado tão somente como um ato de comunicação, e nem como o resultado de um

duplo processo simétrico entre emissor (como se este tivesse uma única intenção) e

receptor. Na atualidade, soa bastante ingênuo considerar o ato de linguagem

apenas como a produção de uma mensagem enviada de um emissor para um

receptor.

Charaudeau propõe que, em realidade, dois processos são fundados: 1) de

produção, “criado por um EU e dirigido a um TU-destinatário” (2009a, p. 44) e 2) de

interpretação, “criado por um TU’-interpretante”, que tem a tarefa de recuperar a

imagem do TUd que EU apresentou, podendo aceitá-la ou recusá-la (2009a, p. 46).

O ato linguageiro pressupõe um jogo entre implícito e explícito e por essa

razão:

(i) vai nascer de circunstâncias de discurso específicas; (ii) vai se realizar no ponto de encontro dos processos de produção e de interpretação; (iii) será encenado por duas entidades, desdobradas em sujeito de fala e sujeito agente.

Dessa forma, esquematicamente, o discurso como fenômeno de encenação

do ato de linguagem compreenderá dois circuitos (CHARAUDEAU, 2009a, p. 53):

1) O circuito da fala configurada (espaço interno), em que se apresentam os

seres de fala (também chamados de “protagonistas”), constituídos pelo sujeito

enunciador (EUe) e pelo sujeito destinatário (TUd), que são originados de um saber

relacionado às representações linguageiras das práticas sociais, ou seja, o lugar de

organização do “dizer” (nível comunicacional);

2) O circuito externo à fala configurada (espaço externo), no qual estão inseridos

os seres agentes (tratados como “parceiros”), configurados pelo sujeito comunicante

(EUc) e pelo sujeito interpretante (TUi), que se instituem de acordo com um saber

ligado ao conhecimento da organização do “real”, representando o fazer psicossocial

(nível situacional).

Assim, vemos que as trocas linguageiras se configuram por meio do sujeito

comunicante (EUc), o qual se desdobra em sujeito enunciador (EUe), que tem o

objetivo de se comunicar com um sujeito interpretante (TUi), por intermédio de um

outro desdobramento, que é o sujeito destinatário (TUd).

Nesse sentido, Charaudeau (2009a, p. 53) menciona a necessidade de

considerarmos uma dupla representação do mundo dos sujeitos: se levarmos em

conta o circuito da fala (espaço interno), pensaremos numa “representação

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discursiva”; por outro lado, quando observarmos o circuito externo, teremos o

domínio de uma “representação da situação de comunicação”.

De acordo com a proposta de Charaudeau (2001, p. 30), o sujeito não é nem

um indivíduo determinado, nem um ser coletivo preciso, “trata-se de uma abstração,

sede da produção / interpretação da significação”, que depende, necessariamente,

do lugar que esse sujeito ocupa na encenação linguageira.

No que toca às características emergentes do circuito da fala configurada,

devem ser levados em conta os papéis enunciativos dos protagonistas do ato

discursivo. Nessa seara, enxergamos proximidade com a noção de posicionamento

tratada por Charaudeau e Maingueneau (2008, p. 392), já que são analisadas a

instauração e a conservação de uma “identidade enunciativa”. Na nossa perspectiva,

para a estruturação de formações identitárias, vale lançarmos luzes também sobre a

influência dos imaginários sociodiscursivos, configurados a partir das

representações sociais23 presentes nesse processo. Entendemos que esses

imaginários emergem do circuito interno, mas são ancorados no espaço externo à

fala. Em realidade, enunciamos de acordo com e em razão dos valores construídos

nos grupos sociais e que fatalmente nos perpassam, quando enunciamos.

Não podemos nos descuidar, igualmente, da já mencionada situação de

comunicação, ou seja, da análise da troca que se instaura entre locutor e interlocutor

no âmbito do circuito externo da fala configurada, no qual se analisam

características físicas e identitárias dos parceiros, características contratuais, rituais

de abordagem, que serão tratados adiante de modo mais abrangente.

Opera-se, pois, uma prática de interação linguística na qual o sujeito é um

sujeito de comunicação que se define por suas próprias intenções para com o outro.

O ato de linguagem e os quatro sujeitos podem ser representados pelo

seguinte esquema proposto por Charaudeau (2009a, p. 52):

23

Teceremos maiores comentários a respeito das “representações sociais” quando discutirmos o

modo de organização argumentativo.

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Quadro 1: Quadro de contrato comunicacional de Patrick Charaudeau (2009a)

O EUe – ser de fala – é uma imagem construída pelo sujeito produtor da fala

(EUc), é o seu porta-voz. Já o TUd, na interação, é o destinatário idealizado por

EUc. Por sua vez, TUi é o ser social parceiro de EUc. Charaudeau (2001, p. 30) diz

que esses parceiros são implicados “no jogo que lhes é proposto por uma relação

contratual”, a qual depende do “desafio” construído no e pelo ato de linguagem.

Isso quer dizer que os parceiros só existem na medida em que se

reconheçam uns nos outros “com os estatutos que eles imaginam”. No que tange ao

Direito, referidos estatutos invariavelmente são determinados pelas regras

processuais.

Em outras palavras, os parceiros se concebem tomando por norte o que a lei

determina: quem é quem; o que cada um deve imaginar do outro – talvez sem muito

espaço para subversões, já que essas poderiam causar uma nulidade no processo –

quando cada um deverá ter a sua fala validada, ou seja, em que momento

processual lhe será concedida a ordem do discurso; e de que modo os parceiros

terão de atuar nos atos processuais. Obviamente veremos isso de modo mais

pormenorizado na análise de cada gênero que será discutido.

Ampliando um pouco a discussão acerca dos sujeitos da linguagem,

Charaudeau (2009a, p. 45), o TUd é um interlocutor pensado por EU como um

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destinatário idealizado, que estaria em conformidade com seu ato de enunciar. EU

imagina que sua fala será totalmente adequada para TUd, o qual estará sempre

presente no ato de linguagem, podendo ser marcado de forma explícita ou implícita.

Já o TUi atua fora do ato de enunciação (mas não fora do ato de linguagem,

enfatize-se). Ele se enquadra no ato de interpretação, fugindo, assim, ao controle do

EU, diferente do ocorre com TUd. Isso porque o TUi pode se identificar com a

imagem do TUd apresentada pelo EU; ou pode ser que o TUi subverta a orientação

presente na enunciação de EU, não se conformando com o que foi dito. Na primeira

hipótese temos uma identificação e na segunda, uma não-identificação.

Podemos adiantar que muitas vezes o autor da ação judicial imagina que sua

narrativa será totalmente assimilada pelo TUd-magistrado, para o qual o enunciado

é dirigido, de acordo com a lei processual. Ocorre que o TUi-magistrado que julga a

demanda, ser social, poderá ser totalmente contrário ao objetivo do autor, isto é,

pode declarar pela sentença a improcedência do pedido inicial, a não existência do

direito pretendido. No caso desse exemplo, TUi não se identificou com o estatuto do

TUd fabricado por EU.

Para corroborar o que dissemos acima, valemo-nos de Charaudeau (2009a,

p. 47), para o qual:

- O TUd (sujeito destinatário é um sujeito de fala, que depende do EU, já que é instituído por este último. Pertence, portanto, ao ato de produção produzido pelo EU. - O TUi (sujeito interpretante) é um sujeito que age independentemente do EU, que institui a si próprio como responsável pelo ato de interpretação que produz (grifos nossos).

Os TUi farão suas interpretações levando em conta suas experiências

pessoais.

Já no que diz respeito ao EU, retomamos a concepção de que o EUe (sujeito

enunciador) se difere do EUc (sujeito comunicante). O EUe é uma “imagem de

enunciador construída pelo sujeito produtor da fala (EUc) e representa seu traço de

intencionalidade nesse ato de produção” (CHARAUDEAU, 2009a, p. 48). É preciso

mencionar que intencionalidade guarda equivalência com o que Charaudeau chama

de projeto de fala ou projeto de palavra, categoria a ser vista a posteriori.

O EUe, tal como o TUd, existem em função de um estatuto que é

exclusivamente discursivo.

EUc, da mesma forma que TUi, são instituídos em razão das circunstâncias

do discurso e se ligam ao real. Para buscar se evitar mal-entendidos, o termo real,

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tal como o concebemos, diz respeito à realidade que é sócio-historicamente

construída, mas que está associada inevitavelmente ao discurso, como tem se

buscado demonstrar nos capítulos precedentes. Dito de outro modo, seria como se

essa realidade existisse de fato, tal como imaginada pelo homem, de acordo com

Charaudeau (2009a, p. 51), mas no discurso é que temos sua emergência.

Válida ainda é a metáfora usada por Charaudeau (2009a, p. 49) quando

afirma que “EUe é apenas uma máscara do discurso usada por EUc.” EUc tanto

pode acenar uma relativa transparência com EUe, como pode pretender se ocultar

por intermédio de EUe.

Outra questão bem relevante trazida por Charaudeau (2009a, p. 50) é a que

trata da dificuldade em se interpretar um texto fora de suas circunstâncias de

produção. A interpretação alijada dessas circunstâncias será realizada de acordo

com as referências sociolinguageiras de cada indivíduo. Isso não quer dizer que

tenhamos sempre de ter acesso a EUc para criar uma concepção sobre EUe, pois é

“EUe e não EUc que produz o que se pode chamar de efeito de discurso.”

EUc se encontra no lugar e no espaço do real. O discurso ambientalista hoje

é ouvido. Está na esteira daquilo que pode e dever ser dito. Os sujeitos que

correspondem às partes da Ação Civil Pública e do Procedimento Administrativo

Cível para cumprimento do Termo de Ajustamento de Conduta somente atuaram em

decorrência de uma demanda que se tornou legal por razões sociopolíticas. Houve

uma série de fatos sociais que ensejaram uma mudança na legislação ambiental,

acarretando uma mobilização do Ministério Público Federal e da sociedade em geral

para garantir um meio ambiente ecologicamente equilibrado e uma sadia qualidade

de vida. Esses discursos eram vazios no passado. Não se pensava em controle de

emissão de gases, nem na produção exagerada de lixo. Tampouco se imaginava

uma proteção aos direitos dos animais, que eram guardados em cativeiro sem a

menor preocupação da verificação de sua origem. Esses são apenas parcos

exemplos de como a interpretação dos enunciados acaba dependendo do momento

e das condições de sua produção, remetendo-nos não só aos EUe, como também

aos próprios EUc.

Como método de análise, o circuito externo corresponde à compreensão das

condições de produção do discurso, ou seja, à inserção do discurso em seu

desenrolar sócio-histórico de produção e à análise de como essa situação delimita

as escolhas operadas pelos sujeitos da atividade linguageira quando da emergência

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de seus dizeres.

Considerando a relação do discurso com sua exterioridade, há que se aclarar

que ele pressupõe um conjunto de “saberes partilhados”, o qual é constituído, não

raro, de maneira inconsciente, pelos indivíduos que formam um grupo social.

E aqui o que Charaudeau (2009a, p. 69-71) chama de “Situação de

Comunicação” deve ser bem compreendido. “Situação” diz respeito ao “ambiente

físico e social do ato de comunicação”, ou seja, ela é externa ao ato de linguagem,

conquanto constitua as condições de produção desse ato. Merece ser dito, ainda,

que aqui se determina a “identidade social e psicológica das pessoas que se

comunicam” (CHARAUDEAU, 2009a, p. 76).

Existem alguns componentes da situação de comunicação, que influenciarão

a forma como os parceiros irão se definir, valendo a pena enumerá-los:

a) características físicas:

i) dos parceiros: eles estão presentes fisicamente uns aos outros ou não; se são

únicos ou múltiplos; se próximos ou afastados uns dos outros etc.

ii) do canal de transmissão: oral ou gráfico; direto ou indireto; usado outro código

semiológico (imagem, grafismos, sinais, gestos etc.)

b) características identitárias dos parceiros:

i) sociais: idade, sexo, raça, classe etc.

ii) socioprofissionais: médico, professor, e, no caso específico da tese, Procurador

da República (representante do Ministério Público Federal), magistrado,

representantes da Cemig etc.

iii) psicológicas: inquieto, nervoso, sereno, frio, ingênuo etc.

iv) relacionais: “os parceiros entram em contato pela primeira vez ou não; eles se

conhecem ou não; têm uma relação de familiaridade, ou não”.

c) características contratuais24:

i) “troca / não troca”. Charaudeau (2009a, p. 70) diferencia a troca dialogal ou

interlocutiva do contrato que não admite troca, como, por exemplo, no momento de

exposição de uma conferência (situação monologal ou monolocutiva). Em princípio,

tendemos a dizer que todos os enunciados proferidos no discurso jurídico são

24

A noção de “contrato” para Charaudeau será retomada à frente, com contornos mais precisos.

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organizados em torno do que se denomina contraditório e ampla defesa, grosso

modo, entendidos como a prerrogativa que é dada a uma parte do processo de

responder sempre que a outra se manifesta e também como a possibilidade de

apresentar tudo aquilo que entenda ser útil para a comprovação de seu direito.

ii) rituais de abordagem: restrições, obrigações ou condições de estabelecimento de

contato com o interlocutor. Em termos da troca dialogal, são as saudações,

manifestações de polidez etc. No discurso jurídico há toda uma cerimônia nos

tratamentos dispensados aos participantes da relação jurídica, sejam as partes, os

juízes, os promotores de justiça, os peritos, as testemunhas, configurando um ritual

de profunda formalidade. Somente a título de exemplo da formalidade exacerbada

que o cerimonial jurídico demanda, podemos citar trecho do julgamento da Ação

Penal 470 (AP-470), que ficou conhecida como “Processo do Mensalão”, no qual

dois ministros do Supremo Tribunal Federal entram em embate sem, no entanto,

perder a formalidade nos tratamentos exigidos pelo Judiciário: Ricardo

Lewandowski, relator do referido processo, surpreso com a inversão da ordem de

uma das votações diz ao Ministro Joaquim Barbosa: “A qualquer momento Vossa

Excelência surpreende a corte, surpreende o revisor. Eu vim de São Paulo nesse

instante, saí de uma banca de mestrado, se eu soubesse...” Joaquim Barbosa o

corta, dizendo: “Não nos interessa de onde Vossa Excelência veio.” “A surpresa,

ministro, é a lentidão ao proferir os votos. Esse joguinho, ministro.” (ESCOSTEGUY,

2012, p. 43).

iii) papéis comunicativos: são os papéis investidos pelos parceiros, considerando-se

o contrato que os liga. Em se tratando do discurso jurídico, mais especificamente

nas trocas de linguagem entre os parceiros, espera-se que o autor da ação narre os

fatos, aponte quais as bases que fundamentam o seu direito, produza provas; que o

réu responda, indicando por que o autor não pode pretender o direito a que pensa

fazer jus, que também produza suas provas; espera-se, ainda, do magistrado o

julgamento imparcial da demanda, de acordo com seu convencimento motivado.

Aqui citamos a tríade que tem de ser formar obrigatoriamente para formar a relação

processual. Outros sujeitos farão parte dos procedimentos jurídicos sobre os quais

iremos nos debruçar.

Já o circuito interno está ligado à investigação da estrutura linguística do

discurso de acordo com o material que o corpus oferece ao analista. Muitas das

vezes, o discurso jurídico pode parecer guardar um certo hermetismo em suas

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significações, o que se deve em parte pelo estilo como são proferidos seus

enunciados, sendo quase ininteligíveis para aqueles que não são da área do Direito.

Isso é demarcado pelo formalismo e o tecnicismo muitas vezes exigido (e muitas,

exagerado) com que o contrato de fala nessa seara se instaura.

No caso deste trabalho, serão analisados os gêneros prescritos no processo

judicial (a ação civil pública) e no Procedimento Administrativo Cível,

consubstanciados nas manifestações enunciativas dos atores participantes dos atos

de linguagem.

Há, conforme a perspectiva de Charaudeau, a instituição de um “projeto de

palavra”, no qual o EUc (sujeito comunicante) tem a iniciativa do processo de

produção do ato de linguagem. Dessa forma, ele inicia a encenação do dizer, em

função desse projeto de palavra / intenção (“o que dizer?”) e de um como falar

(“como dizer?”) que está associado a um conjunto de estratégias discursivas de

manipulação (“Como dizer o que vou dizer de modo a convencer o meu

parceiro?”25).

De acordo com o dissemos acima, o projeto de palavra está associado à

intencionalidade do ato de linguagem. Charaudeau (2004, p. 23) chama de “visada”

a intencionalidade piscossociodiscursiva que determina a expectativa da troca

linguageira. Os tipos de visada são definidos por um duplo critério:

a intenção pragmática do eu em relação com a posição que ele ocupa como enunciador na relação de força que o liga ao tu; a posição que da mesma forma tu deve ocupar26.

A título exemplificativo, Charaudeau enumera seis tipos principais de visadas:

a) a visada de “prescrição”: em que eu quer “mandar fazer”, e ele tem autoridade de

poder sancionar; tu se encontra, então, em posição de “dever fazer”. No tocante ao

nosso corpus, vale antecipar que, após exaurida a análise da matéria discutida nas

instâncias judiciais, isto é, no momento em que não cabe mais recurso das decisões

proferidas, somente cabe à parte sucumbente o dever de executar a determinação

do Judiciário. Aqui, a visada de prescrição tem um caráter mandamental, investido

do poder dizer o que deve, obrigatoriamente, ser feito, sob pena de se sofrer as

penalidades cabíveis;

25

Pela importância do tópico referente a esse conjunto de estratégias discursivas, proporemos em capítulo próprio a abordagem de uma dimensão argumentativa. 26

“Deve” aqui não tem valor de um imperativo moral, mas sim, conforme Charaudeau, de um horizonte de expectativa, o lugar (posição e ação) que é atribuído de antemão ao tu se ele quer entrar na parceria do ato comunicativo.

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b) a visada de “solicitação”: eu quer “saber”, estando, pois, em posição de

inferioridade de saber diante de tu, mas legitimado em sua demanda; tu está em

posição de “dever responder” à solicitação. Ainda de modo instintivo, percebemos

que, quando é solicitada a produção de um parecer técnico de um perito – como na

situação do licenciamento ambiental, objeto da discussão do corpus – o magistrado

enuncia tendo o objetivo de obter um conhecimento técnico que extrapola sua área

de formação. A fim de aclarar uma situação fática para subsidiar seu convencimento,

o juiz determina ao perito que desenvolva um documento que traga esclarecimentos

suficientes para que possa efetivar chegar à decisão que julgue mais adequada.

Dissemos que esta análise é ainda instintiva porque no processo judicial tudo é

direcionado à figura do juiz de direito, para o qual são destinadas as provas, as

manifestações das partes, por meio das petições, a produção dos pareceres

técnicos dos peritos etc, o que nos leva a inferir que todos os atos do juiz acabam

por encerrar uma visada prescritiva;

c) a visada de “incitação”: eu quer “mandar fazer”, sem, no entanto, estar em

posição de autoridade, como ocorre na prescrição. Para isso, ele deverá “fazer

acreditar”, seja por persuasão ou por sedução, ao tu que ele será o beneficiário de

seu próprio ato;

d) a visada de “informação”: eu quer “fazer saber”, estando legitimado em sua

posição de saber; já tu está na posição de “dever saber” alguma coisa sobre a

existência dos fatos. Possível é a relação que se estabelece entre a visada de

informação e o papel enunciativo das testemunhas no processo judicial. Estas

encontram-se numa posição de trazer a “verdade” para o esclarecimento dos fatos,

devendo ser fiel ao que “realmente” aconteceu;

e) a visada de “instrução”; eu quer “fazer saber-fazer”, encontrando-se em posição

de autoridade de saber fazer e de legitimação para transmitir o saber fazer; tu está

na posição de “dever saber-fazer”, de acordo com o que demonstrado por eu.

f) a visada de “demonstração”: eu quer “estabelecer a verdade e mostrar as provas”,

de acordo com certa posição de autoridade, como no caso de um cientista,

especialista, expert. Quando da sua manifestação, o perito judicial acaba instituindo

essa visada de demonstração, pela expectativa de trazer aos autos seu

conhecimento técnico, validado por sua formação intelectual e profissional.

Consideramos válido apontar que no discurso jurídico muitas vezes se

instaura uma visada de “esgotamento de todos os recursos judiciais” (poderia se

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falar em visada “protelatória”?), em que os advogados das partes litigantes

interpõem o maior número de recursos possível, o que acaba postergando muito a

decisão final do Judiciário, acarretando muitas vezes a prescrição do ato punitivo.

Nesse sentido, eu deseja “postergar ao máximo os trâmites dos processos judiciais”.

Talvez a maior vedete dos noticiários midiáticos nos últimos tempos, o já

mencionado caso do “mensalão” (AP-470) ilustra como essa visada pode ser

conveniente nas demandas jurídicas. Isso porque ingressando com todos os

recursos possíveis (muitas vezes com uma questionável aplicabilidade...), os réus

pretendiam atrasar a prolação definitiva de suas sentenças, propiciando-se uma

eventual prescrição dos atos objeto do processo. No caso que ficou conhecido como

o “mensalão mineiro”, o tesoureiro da campanha à reeleição (em 1998) do então

governador de Minas Gerais, Eduardo Azeredo, completou 70 anos em 11 de abril

deste ano e por essa razão se valeu de artigo do Código Penal que prevê a redução

pela metade do prazo de prescrição dos crimes pelos quais é acusado: peculato e

lavagem de dinheiro, podendo, assim, requerê-la e não ser julgado em definitivo27.

Charaudeau (2004, p. 25) adverte que numa mesma situação de

comunicação podem ser evocadas várias visadas e uma mesma visada pode ser

orientada em distintas situações. Na realidade, a visada é um dos elementos que

compõe a situação de comunicação, que se somam aos demais já explicados acima.

Desconfiamos, ainda, da possibilidade de se estabelecer um rol taxativo de

visadas, já que de acordo com as circunstâncias de produção do discurso, na sua

complexidade interenunciativa, podem emergir inúmeras e diferentes visadas. Neste

trabalho, debruçaremo-nos sobre a análise das que interessam aos objetivos da

pesquisa, não nos sentindo na obrigação de verificar todas aquelas indicadas por

Charaudeau.

No momento em que os parceiros se investem na atividade linguageira, já

trazem consigo as determinações do contrato de comunicação, estabelecidas por

um conhecimento imaginário que possuem uns sobre os outros e da situação de

comunicação, lançando mão de saberes comuns, como já afirmado acima. Nessa

perspectiva, a noção de contrato

pressupõe que os indivíduos pertencentes a um mesmo corpo de práticas sociais estejam suscetíveis de chegar a um acordo sobre as representações linguageiras dessas práticas

27

Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,mensalao-mineiro-ex-tesoureiro-de-

azeredo-faz-70-anos-e-se-livra-de-punicoes,1152633,0.htm

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sociais (...) o ato de linguagem torna-se uma proposição que o EU faz ao TU e da qual ele espera uma contrapartida de conivência (CHARAUDEAU, 2009a, p. 56).

Dentro do escopo de suas competências é que EUc iniciará o ato de

linguagem, lançando mão de contratos e de estratégias. A possibilidade de sucesso

dessa empreitada estará na ocorrência de uma coincidência de interpretações entre

TUi (sujeito interpretante) e TUd (sujeito destinatário), isto é, se TUi se identificará

com aquilo que foi idealizado para TUd. Em outras palavras, se haverá a

assimilação de TUi à imagem de TUd.

Por essa razão é que Charaudeau (2009a, p. 56) aponta que o ato de

linguagem, quanto à sua produção, “pode ser considerado como uma expedição e

uma aventura.”

“Expedição” no sentido das intenções de EUc, uma vez que ele “concebe,

organiza e encena” suas intenções com o intuito de instituir efeitos sobre o TUi,

justamente para este se identificar com o TUd, idealizado por EUc. Essas

estratégias intencionais passam tanto pela persuasão quanto pela sedução.

Ocorre que TUi interpretará os contratos e estratégias propostos por EUc de

acordo com suas próprias competências. É aqui que o ato de linguagem pode ser

visto como uma “aventura”. Não há qualquer certeza se TUi se conformará com TUd

– somente sobre o sujeito destinatário é que EUc tem controle.

Vale considerar a ocorrência de outros desvios não previstos por EUc: seu

inconsciente delineia traços não pensados para o ato de linguagem em si,

orientando TUi a recepcionar o contrato de modo diverso do pretendido por EUc.

Ainda, pode haver a possibilidade de TUi não ter suficiente consciência do contexto

sócio-histórico em que o enunciado é produzido, carecendo, pois, de elementos para

interpretá-lo como EUc esperava.

No Direito, nem sempre as estratégias de convencimento desenhadas pelos

advogados em seus projetos de fala são eficazes no que toca ao sujeito

interpretante magistrado. Prova disso é que muitas vezes somente um dos polos

litigantes obtém sucesso na concessão de seu pedido. Nesse caso, TUi se identifica

com apenas um dos TUd idealizados por sujeitos comunicantes distintos (advogado

que representa o autor e advogado que postula pelo réu). Em outras situações, o

juiz propõe um acordo entre as partes e este é aceito. Aqui TUi se identifica em

parte com TUd imaginado pelo advogado do requerente e em parte com o advogado

do requerido.

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EUc tem a prerrogativa de fabricar para si mesmo várias imagens de sujeito

enunciador (EUe). Sob o nosso ponto de vista, isso será discutido de forma mais

produtiva quando tratarmos do chamado ethos, no subcapítulo acerca do modo de

organização argumentativo, destinado para esse fim. Mas acreditamos ser

importante dizer, por ora, e segundo Charaudeau (2009a, p. 58, 59), que “se EUc

sabe que está legitimado no circuito externo (EUc – TUi), poderá permitir-se a

construção de qualquer imagem de EUe”. Mas o próprio autor sabe que isso não

ocorre de forma absoluta, visto que a legitimação da fala não advém tão somente da

“vontade do sujeito comunicante” (op. cit., p. 59) pois ele não é capaz de prever

todas as possíveis reações do sujeito interpretante. Exemplificativamente, no espaço

da prática discursiva de uma audiência, o advogado (EUc), ao inquirir uma

testemunha, pode utilizar o expediente de um linguajar jocoso e irônico, para tentar

criar um ambiente em que o depoente se contradiga ou se confunda e, então, possa

dele extrair um relato que seja interessante à fundamentação de sua tese.

Entretanto, não é apenas a testemunha que está na dimensão de TUi, mas também

o juiz e o advogado da parte adversária, o qual pode considerar desrespeitosa a

imagem do “advogado-irônico” (sujeito enunciador) e pretender repreendê-lo.

O contrato, para Charaudeau, estaria diretamente ligado à ideia de gênero

discursivo, o que notadamente nos interessa, pelo objetivo da pesquisa de analisar

alguns gêneros que circularam no discurso jurídico, sem perder de vista a

configuração dos sujeitos de cada encenação linguageira. Isso é corroborado por

Maingueneau (1997, p. 34) quando menciona que os enunciados da Análise do

Discurso se apresentam como “amostras de um certo gênero de discurso”,

reencontrando-se, pois, a noção de contrato, sendo que “cada ‘gênero’ presume um

contrato específico pelo ritual que define.”

Se a análise do circuito externo relaciona-se à inserção do discurso em sua

situação de produção, a análise do circuito interno deve levar em conta escolhas

feitas pelo analista de acordo com os objetivos de seu trabalho e com o material a

ser estudado.

Ratificamos Charaudeau (2009a, p. 63), para quem analisar um texto não é

nem pretender se debruçar exclusivamente sobre questões que tocam ao sujeito

comunicante, nem ser obrigado a só poder abordar o que delineia o sujeito

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interpretante. O que objetivaremos é, sim, dar conta dos “possíveis interpretativos”28

que surgem no ponto de encontro dos dois processos de produção e de

interpretação discutidos acima.

3.3 Do modo de organização argumentativo

Como dito anteriormente, ao tratarmos sobre a enunciação, voltaremos nosso

foco para três abordagens, que embora sejam distintas, são inter-relacionadas –

subjetividade, gêneros do discurso e o modo de organização argumentativo. As duas

primeiras já foram apresentadas de acordo com as nossas filiações teóricas.

Passaremos, neste momento, a discutir o que estamos denominando modo de

organização argumentativo.

Já afirmamos antes que os atos linguageiros do discurso jurídico são

predominantemente argumentativos. Mesmo na hipótese de não haver a presença

de polos que litigam em busca da obtenção de uma sentença favorável – como no

caso de ações de jurisdição voluntária, já conceituada neste trabalho – existe a

necessidade de que o indivíduo que ingressa em juízo exponha seus argumentos ao

magistrado, a fim de convencê-lo de que estão reunidos todos os requisitos para ter

reconhecido o seu direito.

Esta tese, por sua vez, traz como questão central a análise de um embate no

qual dois polos buscam litigiosamente demonstrar seus pontos de vista a respeito do

que compreendem ser sustentável. O Ministério Público Federal investe toda a sua

argumentação para garantir a cassação da licença ambiental e a consequente

interrupção da construção da Usina de Irapé, pretendendo apontar possíveis

impactos socioambientais negativos. A Cemig – proponente do empreendimento de

instalação da hidrelétrica – objetiva discursivamente provar que a obra, ao contrário,

justifica-se pelo fato de atender ao princípio do desenvolvimento sustentável.

Considerando esse panorama enunciativo, reconhecemos que a análise de

uma dimensão argumentativa faz-se não só apropriada, como também pode

contribuir para a ampliação da discussão a respeito dos sujeitos participantes dos

atos de linguagem desse processo e igualmente dos gêneros discursivos dos quais

esses sujeitos lançaram mão.

28

“Possíveis interpretativos” constituem as representações linguageiras das experiências dos indivíduos que pertencem aos grupos que compartilham práticas sociais.

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75

A própria escolha dos enunciados a serem analisados deverá levar em conta

o desenrolar deste embate argumentativo. Interessa-nos, nesse sentido, descrever

como o MPF e a Cemig se instituem discursivamente e quais as estratégias

argumentativas são utilizadas para tanto.

Vale a pena, nesse momento, repetir o conceito mais usual de

“desenvolvimento sustentável”: uma conciliação entre a preservação ecológica e o

crescimento econômico com vistas ao bem-estar do ser humano. Necessariamente,

segundo o nosso ponto de vista, valores conflitantes irão surgir. A energia

hidrelétrica em Irapé tem o condão de propiciar o crescimento socioeconômico, com

desdobramentos possíveis de ser elencados: maior potencialização de energia

elétrica, alavancando a produção industrial; aumento a oferta de empregos, a

geração de capital, suscitando um crescente potencial aquisitivo dos moradores da

região. Por outro lado, para instalação da barragem, famílias são retiradas de suas

localidades, pondo-se em risco valores sociais de pertencimento à comunidade;

espécies animais e vegetais são degradadas, ocasionando múltiplos e negativos

impactos socioambientais. Como se mensurar o que vale mais: o desenvolvimento

econômico ou a preservação ambiental? Quais valores devem ser garantidos e

quais devem ser relativizados? Antecipamos uma hipótese: talvez não haja, de fato,

uma verdade a ser defendida e alcançada, mas muito mais um embate que se

constrói argumentativamente.

A exemplo do que fizemos em outros subcapítulos, teremos o intuito de

delinear o arcabouço teórico que julgamos conveniente para se tratar disso que

estamos chamando de “modo de organização argumentativo”. Também como em

outros pontos da tese, mantemos a ressalva de que muitos outros autores poderiam

ter seus referenciais retomados, mas por uma questão de opção metodológica,

nossa filiação à proposta de Patrick Charaudeau propicia uma discussão fecunda,

como se verá adiante.

Para Lysardo-Dias (2002, p. 318), há uma vigorosa retomada dos estudos

sobre a argumentação e na contemporaneidade analistas do discurso, “partindo de

uma tradição comum herdada da retórica antiga”, sinalizam as “diversas

possibilidades de conceber o ato de argumentar.” Ocorre que o enfoque muitas

vezes é dado às operações argumentativas tão somente na superfície textual, ou

seja, analisando apenas a materialidade linguística.

Todavia, buscando uma aproximação com o questionamento levantado por

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Lysardo-Dias (2002, p. 319), vale nos orientar para uma dimensão argumentativa

concebida enquanto “atividade discursiva.” Não é o caso de desmerecermos a

materialidade linguística, mas muito mais de pensarmos na sua interdependência

com as condições de produção dos discursos, ou seja, com a situacionalidade dos

atos de linguagem. Lembramos que essa é nossa proposta também ancorada nos

estudos de Bakhtin, já delineados nesta tese.

Corroborando a perspectiva de Lysardo-Dias (2002, p. 320),

(...) os textos são argumentativos em função da relação que estabelecem (i) com a situação de comunicação na qual foram produzidos e (ii) com os sujeitos envolvidos nessa situação. Se há diferentes “maneiras de dizer”, ou seja, se dispomos de diferentes categorias, é porque há diferentes situações de comunicação, com diferentes possibilidades de ação / influência sobre o outro.

Considerando o material de análise da pesquisa, entendemos que a

argumentação deve ser pensada em termos da interação entre sujeitos sócio-

historicamente constituídos, numa específica situação de comunicação.

Lysardo-Dias (2002, 321) aponta que para Charaudeau “a argumentação é

uma totalidade porque é o quadro situacional que define os procedimentos e os

dispositivos do sujeito argumentante” e da mesma forma a composição do seu

discurso. Portanto, podemos dizer, analisar cada quadro do contrato comunicacional

relativo aos gêneros selecionados do corpus significa também pesquisar

expedientes argumentativos utilizados pelos sujeitos instituídos nesses atos

linguageiros. Essa perspectiva será importante na condução de nosso percurso

analítico.

Assim, de acordo com essa abordagem, Charaudeau propõe a argumentação

– e essa é a dimensão argumentativa à qual nos filiaremos – como um modo de

organização do discurso, o qual permite “organizar as relações de causalidade”

(CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2008, p. 338), que se instauram entre as ações

dos seres no mundo.

Para se falar em argumentação, Charaudeau (2009a, p. 205) aponta que

temos de considerar:

a) uma proposta sobre o mundo que provoque um questionamento, em alguém,

quanto à sua legitimidade (um questionamento quanto à legitimidade da proposta).

b) um sujeito argumentante que se engaje em relação a esse questionamento, numa

postura de convicção; e desenvolva um raciocínio para tentar estabelecer uma

verdade – sendo-lhe própria ou considerada universal, ou ainda que abarque uma

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aceitabilidade ou legitimidade – quanto àquela proposta.

c) um outro sujeito que, guardando relação com essa proposta, questionamento ou

verdade, constitua-se no alvo da argumentação. Aquele quem o argumentante

pretende que compartilhe a mesma verdade (persuasão), podendo aceitar (ficar a

favor) ou refutar (ficar contra).

Conforme Charaudeau (2009a, p. 221), uma asserção somente será

argumentativa se inscrever-se num dispositivo argumentativo. Este será composto

por três quadros: proposta, proposição e persuasão.

Tratando da proposta, vemos que ela é a combinação de uma asserção com

um encadeamento de outras asserções.

Não basta dizer: “A usina hidrelétrica não é sustentável”. Isso seria uma

simples asserção. Para haver um processo organicamente argumentativo,

deveríamos ter pelo menos:

(Se) “A usina hidrelétrica não é sustentável”

porque

“traz impactos socioambientais negativos.”

(Então) “devendo ter sua licença ambiental cassada, para evitar a ocorrência de

maiores danos.”

Charaudeau (2009a, p. 222) menciona que a proposta é o que costuma se

chamar de tese em outras abordagens sobre argumentação.

O segundo quadro que compõe o dispositivo argumentativo é a proposição. A

proposição põe em causa a proposta. Aqui, o sujeito argumentante investe seu

engajamento numa tomada de posição de veracidade quanto à proposta (a qual

tenha sido enunciada por ele ou por outrem), afirmando o porquê de estar ou não de

acordo com ela, buscando, por um ato de persuasão, provar essa proposta.

Pode, ainda, o sujeito não tomar uma posição, não se mostrando a priori a

favor ou contra a proposta, colocando-a em questão. Charaudeau (2009a, p. 223)

fala que “esse processo de questionamento é frequentemente apresentado no início

de um texto cuja seqüência desenvolve uma argumentação.”

Por exemplo, um sujeito argumentante pode iniciar sua enunciação com a

questão: “O Judiciário brasileiro está em crise?”, para posteriormente construir sua

postura 1) apontando várias mazelas em torno do Poder Judiciário, citando a

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extrema morosidade no julgamento de ações, que demoram anos para ter suas

decisões, somando-se a casos comprovados de corrupção de juízes, “vendendo”

sentenças e, por outro lado, 2) citando o número insuficiente de magistrados nas

comarcas brasileiras e apontando que a corrupção é exceção e não regra em se

tratando dos membros da magistratura.

Nessa não tomada de posição, que pode ser efetiva ou meramente

estratégica, o argumentante assume um papel de ponderação, apontando prós e

contras.

O terceiro quadro do dispositivo argumentativo diz respeito à persuasão em

si, em torno da qual se desenvolvem a refutação, a justificativa ou a ponderação.

Aqui o sujeito recorrerá a “diversos procedimentos – semânticos, discursivos e de

composição – a fim de estabelecer a prova da posição adotada na Proposição”

(CHARAUDEAU, 2009a, p. 225). Adiante, iremos descrever mais detidamente

aludidos procedimentos.

Notadamente no campo jurídico, a utilização de estruturas argumentativas

tem um lugar privilegiado, pelo notório fato de que as partes envolvidas num

processo, a partir de uma proposta dada, envolvem-se numa proposição, lançando

mão de recursos de persuasão, para convencer seu sujeito alvo – o juiz ou tribunal

investidos de competência para julgar – de que têm o direito por eles perseguido: o

autor buscando o reconhecimento do que alega e o réu, por sua vez, pretendendo

refutar o que é demonstrado pelo autor.

Válido mencionar que, para Charaudeau (2009a, p. 206), argumentar é “uma

atividade discursiva que, do ponto de vista do sujeito argumentante, participa de

uma dupla busca”.

Num primeiro momento, de racionalidade, tendendo a um ideal de verdade

quanto à explicação de fenômenos do universo. Essa busca do verdadeiro volta-se

para a perseguição do mais verdadeiro – ou dito de outro modo, do verossímil –, que

dependerá das “representações socioculturais compartilhadas pelos membros de um

determinado grupo, em nome da experiência ou do conhecimento”

Somada a isso, há uma busca de influência, tendendo a um ideal de

persuasão, consistindo em compartilhar com o interlocutor um certo universo de

discurso, até que ele seja levado a compactuar das mesmas propostas, alcançando-

se, assim, uma “coenunciação”.

Nessa perspectiva, Charaudeau (2009b, p. 281) busca distinguir o contexto

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comunicacional de demonstração do de persuasão. Para ele, a situação de

demonstração “pone al sujeto en una posición en la que debe establecer una

verdad y aportar la prueba más irrefutable posible de esa verdad”, seja porque essa

verdade ainda não foi estabelecida ou porque a que existe é falsa, devendo ser

substituída por outra mais acertada ou, ainda, esta verdade existe, mas foi provada

de uma maneira débil, necessitando fortalecê-la com novas provas.

Emediato (2010, p. 166) aponta que a “argumentação demonstrativa se apoia

em fatos e em verdades já aceitas e que funcionam como provas para a validade de

outras teses e de outras verdades”. O autor exemplifica que em um tribunal, o juiz ou

o promotor devem ater-se mais aos fatos e às verdades já conhecidas sobre um

crime do que com elementos atenuantes de ordem moral ou social.

Quanto ao contexto de persuasão, Charaudeau (2009b, p. 281) diz que se

escapa à questão da verdade, visto que “el sujeto no debe establecer una verdad,

sino más tener razón y hacer que el outro comparta esta razón”. O que está em jogo

é a “veracidade” e, portanto, a razão subjetiva e a influência, na qual um sujeito tem

a intenção de modificar a opinião e as crenças de outro.

Vemos uma aproximação desse contexto de persuasão proposto por

Charaudeau com o que Emediato (2010, p. 167) chama de “argumentação retórica”,

em que o objetivo é “trazer o outro para o seu universo de discurso”, buscando

persuadir o interlocutor através de estratégias de sedução e de persuasão que podem ser construídas por meio do apelo aos valores e às crenças das pessoas.

Nesse tipo de argumentação, o conceito de verdade, segundo o autor, não é

tão relevante, sendo mais cabível a ideia de adesão. As opiniões tão somente

ganham status de verossímeis, sendo, pois, flutuantes e até mesmo contraditórias

em alguns momentos. Diante disso, “se a argumentação demonstrativa se apoia em

fatos e verdades, a argumentação retórica se apoia melhor em valores, crenças e

lugares comuns” (EMEDIATO, 2010, p. 168).

A situação em torno da obra da Usina de Irapé trata de conflito jurídico que

envolve discussões relacionadas ao Direito Ambiental e em especial ao Princípio do

desenvolvimento sustentável. Toda a construção argumentativa erigida pelo

Ministério Público Federal (as propostas e o engajamento nas proposições

relacionadas) orienta-se no sentido de corroborar sua alegação de que a instalação

da hidrelétrica não é sustentável, porque traz consigo efeitos danosos.

Até que ponto a incursão argumentativa do MPF é demonstrativa? Existiria

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uma prova documental cabal capaz de justificar a interrupção da obra? Ou o

constructo argumentativo do órgão ministerial é tão somente persuasivo (ou

retórico), considerando que ele tem razões – e não necessariamente verdades –

para crer que o funcionamento da Usina fere a sustentabilidade pretendida pelo

Direito ambientalista, pretendendo, portanto, a adesão do Judiciário à proposta?

O caso de Irapé não se trata de um ilícito penal, um homicídio, por exemplo,

que pode ser confirmado por meio de uma prova pericial ou uma filmagem do crime.

A arquitetura argumentativa é bem mais complexa, pois coloca em voga valores

relevantes no contexto histórico do debate ambiental. Valores que se polarizam em

diferentes sentidos, ficando dependentes da filiação a crenças que são muitas vezes

contraditórias. O juiz tanto pode julgar favoravelmente à Cemig, entendendo que a

usina é sustentável, quanto ao Ministério Público, no sentido de que ela não atende

à sustentabilidade.

Acima fizemos referência aos procedimentos utilizados pelo sujeito

argumentante para instaurar seu quadro de raciocínio persuasivo. Charaudeau

(2009a, p. 231) também os designa “procedimentos da encenação argumentativa”.

Iremos descrevê-los, uma vez que se tornarão funcionais no processo de análise29.

O autor explica que eles

têm por função essencial validar uma argumentação, isto é, mostrar que o quadro de questionamento (Proposição) é justificado. E para isso, é necessário produzir a prova (marcações dele).

Vejamos cada um deles separadamente:

1) Procedimentos semânticos

Os procedimentos semânticos se baseiam no valor dos argumentos. Nesse

sentido, um argumento se fundamenta num consenso social uma vez que os

indivíduos de um determinado grupo sociocultural dividem certos valores, em

determinados domínios de avaliação (CHARAUDEAU, 2009a, p. 232).

São cinco os domínios de avaliação:

a) o domínio da Verdade: há uma definição de seres em sua originalidade,

autenticidade ou unicidade; ou de um saber como princípio único de explicação,

29

Charaudeau (2009, p. 231-248) propõe uma lista bastante extensa de categorias referentes aos procedimentos da encenação argumentativa. Nosso foco se voltará àquelas que guardem relação com os objetivos da pesquisa. Assim, faremos um recorte metodológico que dê conta de nos auxiliar no processo de análise dos gêneros textuais escolhidos.

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considerando-se o que é verdadeiro ou falso. Sob o nosso ponto de vista, a lei se

encontra no domínio da Verdade. Ela tem o condão de orientar, de forma coercitiva,

a ação dos indivíduos em sociedade. Caso não seja obedecida, impõe penalidades

àqueles que a infringem. O mandamento legal é um só, inclusive com um caráter de

universalidade. Ocorre que muitas vezes é interpretada de modo diverso, suscitando

decisões judiciais distintas. Embora façamos menção à hermenêutica jurídica, não

teremos o intuito de nos aprofundar na questão da interpretação da lei, o que

demandaria uma abordagem técnica não condizente com os objetivos deste

trabalho.

b) o domínio do Estético: definem-se os objetos em termos de belo ou feio, no

âmbito dos seres da natureza ou de sua representação artística ou ainda de objetos

fabricados.

c) o domínio do Ético: os comportamentos humanos são definidos como bons ou

maus, levando-se em conta uma moral externa e aqui Charaudeau (2009a, p. 231)

faz referência às regras de comportamento impostas pela lei ou pelo consenso

social; ou uma moral interna, que é proposta pelo próprio indivíduo. Esse é o

domínio do dever e da obrigação. No discurso jurídico em geral e no material de

análise desta pesquisa iremos nos deparar certamente com enunciados que

remetem a esse domínio. De certa forma, essa é em si a razão de ser do Direito,

aplicar leis e regras para a solução de conflitos. Pelo menos em tese, isso deveria

funcionar assim... Em se tratando do caso da Usina de Irapé, podemos antecipar

que o Ministério Público Federal e os atingidos pela barragem se filiam ao domínio

do ético, no sentido de arquitetar sua argumentação postulando que a hidrelétrica

traz inúmeros efeitos danosos.

d) o domínio do Hedônico: que define em termos de agradável ou de desagradável

as ações humanas. Nesse domínio há a busca do prazer pelos sentidos.

e) o domínio do Pragmático: nesse caso, põe-se em confronto aquilo que é útil ou

inútil, dependendo de um cálculo, que deve “medir os projetos e os resultados as

ações humanas em função das necessidades racionais dos sujeitos agentes que os

realizam” (CHARAUDEAU, 2009a, p. 232), ainda que tenham de passar por etapas

indesejadas. O âmbito é o do interesse. Podemos também nos adiantar para afirmar

que a Cemig, como empreendedora do projeto da Usina de Irapé, engaja-se no

domínio do pragmático, ao fundamentar sua proposta nos benefícios – leia-se

utilidade – que a hidrelétrica pode trazer à comunidade local e à região como um

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todo.

Para fundamentar cada um dos domínios de avaliação, são erigidos valores,

sendo eles normas de representação social.

Ao nos voltarmos para a questão das representações sociais, não podemos

deixar de mencionar o trabalho empreendido por Serge Moscovici (2003). Muito

embora suas pesquisas tenham se voltado para a Psicologia Social, acreditamos

que suas concepções orientaram as discussões dos teóricos do discurso a respeito

do que hoje se denomina representação social. Façamos uma breve incursão sobre

sua proposta.

Moscovici (2003, p. 33) questionava de que modo o pensamento pode ser

concebido como um ambiente, enquanto atmosfera social e cultural. Ele afirmava

que todos estaríamos cercados, individual ou coletivamente, por palavras, ideias e

imagens e isso se dá independentemente de nossa vontade.

Nesse sentido, as representações tomariam lugar junto às nossas atividades

cognitivas. Para o autor, referidas representações têm duas funções essenciais.

Num primeiro plano, elas convencionalizariam os objetos, pessoas ou

acontecimentos que encontram, elas lhes dão forma definitiva, localizando-as “em

uma determinada categoria e gradualmente as colocam como um modelo de

determinado tipo, distinto e partilhado por um grupo de pessoas” (MOSCOVICI,

2003, p. 34). Esse modelo teria a força de sintetizar todos os novos elementos que a

ele se juntassem.

A segunda função das representações fundar-se-ia em seu caráter prescritivo,

ou seja, de acordo com suas concepções (2003, p. 36), elas se imporiam sobre nós

“com uma força irresistível.” Dessa forma, as representações, ao serem partilhadas

pelos indivíduos, seriam por eles replicadas, invariavelmente de forma inconsciente.

Para Moscovici (2003, p. 62, 63), os fenômenos de avaliação, classificação e

categorização são vitais para se falar em representação. Somente quando

avaliamos um ser, um objeto ou um acontecimento é que podemos falar sobre ele.

Da mesma maneira, classificar é fundamental para representar algo. Isso

significa que confinamos esse algo “a um conjunto de comportamentos e regras que

estipulam o que é, ou não é, permitido, em relação a todos os indivíduos

pertencentes a essa classe.” Esse confinamento se relaciona a um conjunto de

“limites linguísticos, espaciais e comportamentais e a certos hábitos” (MOSCOVICI,

2003, p. 63).

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Já quando categorizamos alguém ou alguma coisa, escolhemos “um dos

paradigmas estocados em nossa memória” e estabelecemos uma referência

negativa ou positiva (MOSCOVICI, 2003, p. 63).

Retomando a perspectiva de Charaudeau sobre os domínios de avaliação, o

autor explicita inúmeros valores relacionados aos domínios da Verdade, do Estético,

do Ético, do Hedônico e do Pragmático (CHARAUDEAU, 2009a, p. 233-236).

Caberá a nós, no momento específico de análise dos gêneros e tomando por base a

materialidade dos enunciados, verificar quais valores emergem dos sujeitos

participantes dos atos linguageiros que originaram o embate argumentativo

associado à questão da Usina de Irapé. E mais, que imaginários sociodiscursivos

são sustentados por esses valores. Há, de algum modo, uma hierarquia entre eles,

que dependa da enunciação de cada um dos sujeitos instituídos? Essas questões

nos interessam.

2) Procedimentos discursivos

Os chamados procedimentos discursivos, por sua vez, usam categorias

linguísticas ou outros modos de organização do discurso, a fim de produzir certos

efeitos de persuasão. Charaudeau (2009a, p. 236) destaca, sobretudo: a definição, a

comparação, a citação, a descrição narrativa, a reiteração e o questionamento.

Quando nos defrontarmos especificamente com o material de análise, teremos uma

dimensão precisa sobre quais desses procedimentos foram utilizados.

A definição está relacionada ao modo de organização descritivo, na qual se

busca descrever aspectos semânticos que caracterizam uma dada palavra numa

situação comunicativa.

Podemos defini-la como uma estratégia argumentativa. O intuito é que se

produza um efeito de evidência e de saber com relação ao que enuncia o sujeito

argumentante.

Pode-se pensar na definição de um ser (pessoa, objeto, palavra, noção

abstrata etc.) ou de um comportamento específico.

A comparação tanto pode servir para a qualificação, quando se pretende

descrever propriedades a fim de apontar semelhanças ou dessemelhanças; quanto

para a quantificação, na medida em que o objetivo é graduar as propriedades.

Em se tratando da argumentação, a comparação visa a

reforçar a prova de uma conclusão ou de um julgamento, produzindo um efeito pedagógico

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(comparar para ilustrar e fazer compreender melhor) quando a comparação é objetiva; ou um efeito de ofuscamento (desviar a atenção do interlocutor para um outro fato analógico que, por ser semelhante ao outro, impede que se examine a validade da prova) quando a comparação é subjetiva (CHARAUDEAU, 2009a, p. 237, com marcações dele).

A categoria da descrição narrativa tem semelhança com a comparação, no

sentido de é descrito um fato, para validar ou produzir uma prova da proposta

argumentativa.

No discurso jurídico, a narração dos fatos faz parte de toda a dinâmica de

enunciar. Seja em qualquer dos ramos do Direito, narrar os acontecimentos em

torno do que se pleiteia é uma conditio sine qua non.

Charaudeau (2008, p. 338) adverte que os gêneros do discurso não se

confundem com os seus modos de organização. Exemplificativamente, ele aponta

que um texto publicitário pode combinar vários modos de organização. Investindo no

nosso material de análise, perceber-se-á que isso, de fato, pode ser confirmado. A

petição inicial, como gênero do discurso jurídico, encerra o funcionamento de mais

de um modo de organização, porque o sujeito argumentante, com a finalidade de

convencer o magistrado da veracidade dos fatos e, consequentemente, alcançar a

tutela do direito do autor, ora utiliza a descrição, para identificar um ser de forma

particular, seja objetiva ou subjetivamente; ora se vale da narrativa, para explicitar a

sucessão de acontecimentos no tempo.

Nesse sentido, na busca do ideal de persuasão, o sujeito que enuncia pode

apresentar estratégias de sedução valendo-se de outros modos de discurso, tais

como o descritivo e o narrativo (CHARAUDEAU, 2009a, p. 206).

Outra categoria utilizada como procedimento discursivo é a citação. Conforme

Charaudeau (2009a, p. 240), a citação consiste em referir-se, com o máximo de

fidelidade possível, “(ou pelo menos dando uma noção de exatidão) às emissões

escritas ou orais de um outro locutor, diferente daquele que cita, para produzir na

argumentação um efeito de autenticidade.”

Com o objetivo de se tornar uma fonte de veracidade, a citação pode tratar de

um dizer, de um saber ou de uma experiência.

É muito comum no discurso jurídico lançar uma citação de um doutrinador, ou

seja, de um autor renomado em algum ramo do Direito, para validar ou corroborar

uma assertiva do sujeito argumentante.

No Direito Ambiental não é diferente. Celso Antonio Pacheco Fiorillo (2008, p.

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22), autor na seara ambientalista, recorre a tal categoria:

Ressalta o i. Prof. José Afonso da Silva que o meio ambiente cultural “é integrado pelo patrimônio histórico, artístico, arqueológico, paisagístico, turístico, que embora artificial, em regra, como obra do homem, difere do anterior (que também é cultural) pelo sentido de valor especial.”

Fazendo alusão a José Afonso da Silva, professor constitucionalista

respeitado, Fiorillo garante maior credibilidade de seu próprio dizer científico.

Emediato (2010, p. 174) propõe que a categoria argumentativa da citação

como sendo um argumento de autoridade. Para ele, há duas classificações para

esse tipo de argumento: a) no primeiro, busca-se a defesa de uma ideia

relacionando-a a um autor, “digno de fé e com autoridade reconhecida no assunto” e

b) aquele em que o sujeito argumentante usa sua própria autoridade como força de

argumentação. O autor menciona que os gregos denominavam ethos essa “força

que decorre do próprio caráter do orador, sua legitimidade, credibilidade, enfim, sua

imagem positiva diante do auditório que ele visa persuadir” (op. cit, p. 175).

Interessa-nos o ethos, enquanto categoria argumentativa, motivo pelo qual nos

debruçaremos sobre ele com mais detalhes posteriormente.

A legislação é a fonte balizadora do discurso jurídico. Conceitualmente, a “lei”,

no seu sentido amplo, refere-se a normas jurídicas escritas, que entraram em vigor

por decisão das autoridades estatais competentes e que objetivam regular a

organização social, apresentando um certo grau de generalidade (DIMOULIS, 2007,

p. 204). Eduardo Bittar (2010, p. 288) menciona que o discurso normativo – aí

inserida a lei – é pressuposto do estudo de todos os demais discursos jurídicos.

A todo momento, há citações de textos legais em vários gêneros: petição

inicial, decisões judiciais, ofícios, artigos científicos etc., sendo isso um forte recurso

argumentativo, pois a lei deve ser obedecida por todos e a sua referência, por si só,

já garante fundamentação ao sujeito argumentante.

Outra categoria pertencente ao quadro dos procedimentos discursivos é a da

acumulação. Com ela, o sujeito põe em curso vários argumentos para confirmar a

validade de uma mesma prova. Isso pode ser feito, por exemplo, por meio de uma

simples acumulação (ex: “O réu perpetrou a dizimação de inúmeras espécies da

fauna, destruiu 150 hectares de mata virgem e polui o rio local com óleo”) ou através

de uma gradação (ex: “O réu não só causou danos à flora e à fauna, como também

provocou a morte de 23 ribeirinhos, afrontando o bem imaterial mais precioso: a

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vida”)30.

A última categoria referente ao procedimento discursivo trata do Charaudeau

(2009a, p. 242) chama de questionamento, que objetiva “colocar em questão uma

Proposta cuja realização dependa da resposta (real ou suposta) do interlocutor.”

Utiliza-se o questionamento como estratégia para validar a proposição do

argumentante, colocando seu sujeito alvo numa posição inferior ou desfavorável

com a eventual resposta que pretenda dar. Por exemplo, numa audiência, pode o

membro do Ministério Público se dirigir a um suposto poluidor, perguntando: “o

senhor sabia que os atos perpetrados por sua empresa acarretaram a morte por

intoxicação de uma família inteira?” Esse questionamento provocativo obriga o réu a

se justificar, o que pode ajudar ou prejudicar sua defesa, dependendo de seus

argumentos.

3) Procedimentos de composição

Já os procedimentos de composição organizam, dependendo da situação de

comunicação, o conjunto do processo argumentativo. Nessa abordagem,

Charaudeau (2009a, p. 244) inscreve duas categorias básicas: a composição linear

e a composição classificatória.

Na composição linear, são articulados argumentos de acordo com: i) uma

determinada cronologia (etapas da argumentação); ii) um jogo de vai-e-vem entre os

momentos do desenvolvimento argumentativo e iii) uma marcação de tempos fortes

sobre aquilo que se argumenta.

No que tange às etapas da argumentação, estas podem coincidir com o texto

todo – quando for exclusivamente argumentativo –, ou apenas com parte dele. Três

são as etapas: começo (em que se expõe a proposta e a proposição diretamente ou

por meio de marcadores: “Inicialmente, devemos considerar...”; “Pretendemos nos

ater aqui a...”); transição (passando-se de um momento argumentativo a outro: “A

partir de agora, vejamos a questão...”, “O segundo ponto a ser tratado...”) e fim (que

aponta o último momento do desenvolvimento argumentativo: “Podemos concluir...”;

“Agora é possível saber que...”).

O vai-e-vem trata de utilizar retomadas (“Conforme dissemos...”) ou anúncios

(“Voltaremos a esse ponto mais adiante..”.). De acordo com Charaudeau (2009a, p.

30

Os exemplos utilizados para descrever a categoria da acumulação não dizem respeito a enunciados extraídos do material de análise selecionado do corpus desta pesquisa.

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245), a linguagem jurídica utiliza várias marcas de referência: “em seguida, abaixo,

acima; acima designado, acima enunciado, supracitado” etc.

Os tempos fortes, como o próprio nome indica, consubstanciam uma

hierarquia dos argumentos, dada a sua relevância. Também busca-se trazer ritmo à

argumentação, chamando-se a atenção do interlocutor. São exemplos: “Não é

demais apontar que...”; “Observemos a importância desse fato...”; “Convêm

lembrar...”

Por fim, há o procedimento da composição classificatória, no qual são

retomados argumentos, dados ou resultados, apontando-os resumidamente. Isso se

dá por meio de listas, quadros ou outras representações figuradas (diagramas,

histogramas, esquemas, cartazes etc.), utilizando-se, pois, um modo de organização

descritivo.

Ainda no que tange à abordagem da dimensão argumentativa, conforme

afirmado acima, iremos também nos ater à análise de como os ethé dos sujeitos se

constituem nos atos de linguagem próprios de cada um dos gêneros objeto de nossa

discussão.

Segundo Charaudeau (2006a, p. 113), a questão do ethos se originou na

Antiguidade. O logos, o pathos e o ethos eram as três categorias de meios

discursivos utilizados para influenciar o auditório, de acordo com a concepção de

Aristóteles.

Para Maingueneau (2008 (b), p.14), o Triângulo da Retórica aristotélica se

constituía: a) pela instrução pelos argumentos, o que corresponderia ao logos; b)

pela comoção por meio das paixões, como sendo o pathos e c) por uma insinuação

pelas condutas ou ethos. Aristóteles pretendia examinar o que era persuasivo não

para um indivíduo determinado, mas para um tipo de indivíduos. O sucesso da

construção do ethos consistiria em “causar boa impressão pela forma como se

constrói o discurso, a dar uma imagem de si capaz de convencer o auditório,

ganhando sua confiança” (MAINGUENEAU, 2008, (b), p. 13).

Segundo Maingueneau (1997, p. 45), na antiguidade, entendia-se por ethé “as

propriedades que os oradores se conferiam implicitamente, através de sua maneira

de dizer”. Isso não se daria pelo que era dito sobre eles mesmos, mas pelo que era

revelado por meio do modo como diziam. Na retórica aristotélica, o ethos também

estava relacionado à eloquência, à oralidade. Tal perspectiva não será abordada

nesta pesquisa, por não se inserir no rol dos objetivos a serem encetados. Esse

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autor explicita, ainda, que o ethos se inscreve numa dimensão que abrange todos os

tipos de textos, tanto orais como escritos, já que estes últimos também carregariam

em si uma pluralidade de “tons”.

Maingueneau (2008 (b), p. 17) enfatiza que sua noção de ethos se inscreve

no quadro da Análise do Discurso e que ela vai além do domínio da argumentação,

da persuasão pelos argumentos (tal como preconizada na visão aristotélica),

instaurando-se num “processo mais geral de adesão dos sujeitos a um certo

discurso.” Em sua abordagem, o ethos possui um laço crucial com a reflexividade

enunciativa, devendo haver uma articulação necessária entre corpo e discurso, que

transcende a oposição entre oral e escrito.

E é por essa “incorporação” que o intérprete, seja a audiência ou o leitor, se

apropria do ethos. No que se relaciona a essa incorporação, três registros devem

ser considerados: i) a enunciação confere corporalidade à figura do chamado fiador

(que não se confunde com o corpo do autor efetivo) – representando, assim, o

enunciador; ii) o destinatário incorpora um conjunto de esquemas que correspondem

a uma maneira específica de se remeter ao mundo habitando seu próprio corpo –

aparecendo a figura do coenunciador e iii) essas duas incorporações permitem a

constituição de um corpo da comunidade imaginária dos que aderem ao mesmo

discurso.

Vale ressaltar que a concepção de ethos pode abarcar diversos contornos.

Kerbrat-Orecchioni (apud MAINGUENEAU, 2008 (b), p. 16, 17) assim trata do ethos

coletivo:

É muito razoável supor que os diferentes comportamentos de uma mesma comunidade obedecem a uma certa coerência profunda e, então, esperar que sua descrição sistemática permita distinguir o “perfil comunicativo”, ou ethos, dessa comunidade (ou seja, a sua maneira de se comportar e de se apresentar nas interações – mais ou menos caloroso ou frio, próximo ou distante, modesto ou imodesto, “sem constrangimentos ou respeitoso do território alheio, suscetível ou indiferente à ofensa etc.

Para Charaudeau (2006a, p. 113), o ethos, enquanto categoria voltada para o

orador, permite que este possa parecer “digno de fé”, ao se mostrar ponderado

(phronésis), portador de uma simplicidade sincera (arétê), ou apresentar um caráter

de amabilidade (eunóia). As discussões sobre ethos aparecem na arena da Análise

do Discurso, principalmente nos estudos relacionados à argumentação, o que nos

interessa para a consecução da pesquisa.

Duas questões são apresentadas por Charaudeau (2006a, p. 114) para

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apontar sua filiação a respeito da noção de ethos: “(i) enquanto construção da

imagem de si, o ethos liga-se à pessoa real que fala (o locutor) ou à pessoa como

ser que fala (o enunciador)?” e, ainda, “(ii) a questão da imagem de si concerne

apenas ao indivíduo ou pode dizer respeito a um grupo de indivíduos?”

Com relação ao primeiro questionamento, Charaudeau (2006a, p. 115) expõe

sua posição – que também será a nossa – no sentido de que para a construção do

ethos deve ser levado em conta o sujeito linguageiro, ou seja, o sujeito como ser

social empírico e também o sujeito que enuncia.

Para compreendermos sua postulação, temos de retomar as noções sobre os

sujeitos da Teoria Semiolinguística discutidas anteriormente neste trabalho.

EUc (sujeito comunicante) tem relação com a identidade social de locutor, a

qual lhe confere “direito à palavra e que funda sua legitimidade de ser comunicante

em função do estatuto e do papel que lhe são atribuídos pela situação de

comunicação” (CHARAUDEAU, 2006a, p. 115).

Já EUe (sujeito enunciador) “constrói para si uma figura daquele que enuncia,

uma identidade discursiva de enunciador que se atém aos papéis que ele se atribui

em seu ato de enunciação” (CHARAUDEAU, 2006a, p. 115). De acordo com o

nosso ponto de vista, é necessário apontar que a questão da identidade do sujeito é

perpassada por representações sociais, por estereótipos que são constituídos no

seio das práticas discursivas. Com relação a EUe, somos levados a conceber a não

existência de uma identidade, estanque, única, homogênea. Muito mais acertado é

pensar em identidades instituídas a partir de saberes partilhados, dos quais se lança

mão para os propósitos e as expectativas de EUc. Para o autor, “o sentido veiculado

por nossas palavras depende ao mesmo tempo daquilo que somos e daquilo que

dizemos.” E nesse sentido é sua assertiva segundo a qual as “identidades discursiva

e social fusionam-se no ethos” (CHARAUDEAU, 2006a, p. 116).

Na organização das encenações jurídicas, é fundamental não perdermos de

vista a presença de EUc, ser empírico, porquanto essa identidade social influencia

notadamente o sujeito enunciador, por força do que institucionalmente o sujeito

comunicante representa para a coletividade. Muitas vezes quem fala é a instituição.

Dentro dessa perspectiva, Charaudeau (2006a, p. 117) trata de questão que

para nós terá relevância quando pensarmos como se configuram os diferentes ethé

dos sujeitos imbricados nos gêneros tratados na seara jurídica. Ele explicita que o

“ethos está relacionado à percepção das representações sociais que tendem a

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essencializar essa visão”, podendo, então, dizer respeito “tanto a indivíduos quanto

a grupos”, já que os grupos julgam os outros grupos com base em um traço de sua

identidade. Tal expediente tem o condão de engendrar estereótipos, cujas formas

são originadas nos imaginários sociais, como os que dizem que “os mineiros são

desconfiados” ou “os cariocas expansivos e alegres”. Isso poderia explicar a

circulação de expressões como “ecochatos” ou os “ambientalistas votam em Marina

Silva”.

Verifica-se, portanto, que a identidade do sujeito passa por representações

sociais, as quais são configuradas como “imaginários sociodiscursivos” conforme

afirmado por Charaudeau (2006a, p. 117). Retomaremos logo à frente a discussão

no tocante a esses imaginários, em virtude da relevância que essa categoria terá no

escopo analítico.

Ainda em Charaudeau (2006a, p. 118) lemos que

O ethos é bem o resultado de uma encenação sociolinguageira que depende dos julgamentos cruzados que os indivíduos de um grupo social fazem uns dos outros ao agirem e falarem. “As ideias são construídas por maneiras de dizer que passam por maneiras de ser”, afirma Maingueneau. É preciso acrescentar a recíproca, que diz que as maneiras de ser comandam as maneiras de dizer, portanto, as ideias.

O ethos mais transparece do que aparece. Não há marcas específicas para a

sua configuração, visto que os tipos de comportamento dos indivíduos – como o tom

da voz, os gestos – e o conteúdo das propostas influenciam a forma de sua aparição

(CHARAUDEAU, 2006a, p. 118). Também, os ethé e as ideias são indissociáveis

“pois a maneira de apresentá-las tem o poder de construir imagens” e, nessa mesma

direção, segundo nosso ponto de vista, os valores pelos quais o sujeito se baliza

influenciarão diretamente a constituição de seu ethos. Enfatizaremos essa noção um

pouco adiante.

Ao mesmo tempo em que o ethos é voltado para si ele também volta-se para

o outro, por ser uma “construção de si para que o outro adira, siga, identifique-se a

este ser que supostamente é representado por um outro si-mesmo idealizado”

(CHARAUDEAU, 2006a, p. 153).

Como recurso argumentativo, os ethé são capazes tanto de erigir uma

imagem positiva do orador, como de apresentar um aspecto considerado negativo

de seu adversário (CHARAUDEAU, 2006a, p. 167), para provocar a adesão de seu

interlocutor. O Ministério Público Federal, em alguns momentos da petição inicial,

busca desqualificar a credibilidade da Cemig quanto à obediência das etapas

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obrigatórias do licenciamento ambiental. Quanto mais fragilizada a imagem do

empreendedor, visto como um réu negligente quanto ao respeito das normas

ambientalistas, maior a probabilidade de o magistrado entender que, de fato, pode

ter havido alguma irregularidade no licenciamento, contribuindo, assim, para a

decisão de sua cassação.

Tomando por base a materialidade dos gêneros selecionados para análise,

buscaremos evidenciar com se dá a emergência de alguns possíveis ethé, em

especial do(s) representante(s) do Ministério Público e do(s) Juiz(es) de Direito,

enquanto atores da dinâmica jurisdicional e dos representantes da Cemig,

envolvidos no processo que tratou da implantação da Usina de Irapé.

Acima mencionamos a importância de tratarmos neste trabalho dos

chamados imaginários sociodiscursivos. Passemos a discorrer um pouco mais sobre

isso.

Charaudeau (2006a, p. 187) reflete que quando falamos ou escrevemos com

o propósito de estabelecer uma relação entre nós e os outros, buscando persuadi-

los, nós o fazemos tendo “por objeto certa visão que trazemos do mundo, isto é, o

conhecimento que se tem da realidade e os julgamentos que dela se fazem.” Tais

julgamentos são inúmeros e variam de acordo com cada sociedade, cujos indivíduos

classificam os objetos de conhecimento, atribuindo-lhes valores. A linguagem

permeia todo esse processo.

Em diversos momentos da explanação / construção de nosso referencial

teórico-metodológico, afirmamos que os discursos dependerão necessariamente de

determinada situação de comunicação, havendo, pois, restrições impostas por ela.

Um propósito básico do discurso jurídico é o de, por meio da aplicação das

normas ditadas pelo Estado, solucionar os conflitos de interesses apresentados

pelos indivíduos. Não entendemos que é reducionista dizer que a finalidade do

Direito é promover o ideal de “justiça”. A definição desse ideal, todavia, nunca foi é

nunca será única, pois o que foi “justo” ontem pode não o ser hoje. E o que é

considerado justo atualmente pode deixar de sê-lo amanhã. Isso se dá devido

justamente à historicidade própria do Direito. As normas são editadas – em

situações de comunicação específicas – em razão das demandas humanas, que

tomam lugar numa dada sociedade, e não por um Ser Universal que diz o que deve

ou não ser tido como justo.

Queremos também dizer que todos os objetos de conhecimento do universo

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jurídico são perpassados pelo discurso. Só é possível representar o Direito, o justo,

por meio da linguagem. Essa questão encontra-se na ordem das representações

sociais, configuradas como imaginários sociodiscursivos. E talvez uma contribuição

importante desta pesquisa seja situar e descrever alguns imaginários que

fundamentam o discurso que toma lugar na seara jurídica.

Charaudeau (2006a, p. 203) propõe que a análise do discurso pode contribuir

para a discussão dos sistemas de pensamento, procurando lançar luzes sobre a

organização dos saberes em que é realizada a demarcação das ideias e dos valores

colocados como epígrafe. E então explicita sua noção de “imaginários

sociodiscursivos”:

À medida que esses saberes, enquanto representações sociais, constroem o real como universo de significação, segundo o princípio de coerência, falaremos de “imaginários”. E tendo em vista que estes são identificados por enunciados linguageiros produzidos de diferentes formas, mas semanticamente reagrupáveis, nós os chamaremos de “imaginários discursivos”. Enfim, considerando que circulam no interior de um grupo social, instituindo-se em normas de referência por seus membros, falaremos de “imaginários sociodiscursivos (CHARAUDEAU, op. cit.).

Uma questão relevante que se coloca é que os imaginários, como universos

de significação, não expressam “a” verdade, porquanto eles refletem uma “visão que

o homem tem do mundo social”, sendo, pois, da ordem do verossímil, ou seja, do

que é possível de ser verdadeiro. Por outro lado, “todo imaginário é um imaginário

de verdade que essencializa a percepção do mundo em um saber (provisoriamente)

absoluto” (CHARAUDEAU, 2006a, p. 204 e 205).

Charaudeau (2006a, p. 205) diz que alguns imaginários podem ser

“racionalizados por discursos-textos que circulam nas instituições (escolas,

constituições de Estados, religiões, justiça etc.)” E isso nos toca diretamente. De fato

haverá certos imaginários com os quais nos depararemos que poderão ser

resgatados racionalmente em textos jurídicos – considerando-se aqui leis, princípios,

doutrinas etc. Mas será que imaginários do discurso jurídico somente podem

encontrar eco em textos próprios do universo do Direito? Antecipamos uma resposta

negativa. Isso porque o Direito está relacionado com a nossa vida. As relações

humanas (e seus conflitos) são a razão mesma de existência da ciência jurídica.

Segundo essa perspectiva, justifica-se mais uma vez a seleção da matéria

jornalística como material de análise do trabalho (ao lado da petição inicial). Esse

gênero, muito embora não seja especificamente um texto jurídico, ganha uma

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dimensão bastante fecunda na discussão acerca do empreendimento da Usina de

Irapé, já que fora juntada como prova no Procedimento Administrativo Cível. Essa

investida metodológica também vai ao encontro da proposta de Charaudeau (2006a,

p. 206), quando ele afirma que os imaginários, fragmentados e instáveis, e ao

mesmo tempo essencializados, têm necessidade de ser materializados, ocorrendo

isso de diversas maneiras. Para o autor, os grupos sociais produzem discursos

distintos que dão sentido às materializações dos imaginários. Alguns discursos “se

fixam em textos escritos”, outros circulam de modos distintos nas comunidades.

Entendemos, por conseguinte, que os gêneros, enquanto práticas sociais, tendem a

materializar imaginários.

A matéria jornalística traz consigo a voz da Cemig, ensejando a configuração

de uma série de imaginários relacionados ao Direito, mesmo não estando

estruturados organicamente em textos jurídicos.

Charaudeau (2006a, p. 207) menciona também que os imaginários

sociodiscursivos circulam “em um espaço de interdiscursividade”, uma vez que

podem dar “testemunho de identidades coletivas, da percepção que os indivíduos e

os grupos têm dos acontecimentos, dos julgamentos que fazem de suas atividades

sociais”. Acrescente-se a isso a possibilidade de analisar como certos imaginários

contribuem para a construção do ethos.

Dito de outro modo, sob a égide de uma dimensão argumentativa,

percebemos que nos gêneros que compõem o material de análise da pesquisa, há

toda uma construção discursiva baseada em valores, os quais sustentam

imaginários sociais, engendrando a configuração de diversos ethé. De acordo com

nosso ponto de vista e metodologicamente falando, não há como dissociar a análise

de (i) valores; (ii) imaginários sociodiscursivos e (iii) ethos. Ainda que para atender a

uma certa lógica didática busquemos separá-los, não podemos perder a noção de

que as três abordagens guardam uma ressonância recíproca.

Dessa forma, tomando por base todo o arcabouço teórico sobre o qual nos

debruçamos, acreditamos ser possível promover uma leitura da construção do

processo enunciativo do desenvolvimento sustentável em Direito Ambiental,

tomando por base o caso da Usina Hidrelétrica de Irapé.

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4 DA ANÁLISE DO MATERIAL SELECIONADO DO CORPUS

Neste momento da pesquisa, buscaremos nos debruçar especificamente

sobre a análise do material selecionado do corpus. Tal empreitada – como ocorre

em qualquer trabalho acadêmico – exige uma tomada de posição quanto às

escolhas a serem feitas. Com isso, queremos dizer que a sistematização, a

discussão, a categorização e seus consequentes percursos analíticos são fruto de

um exercício de escolha.

Muitas outras vias poderiam ser levadas em conta e inúmeros olhares

diferentes poderiam ser lançados sobre o objeto de análise. Uma certa sensação de

incompletude e até mesmo um grau de tensão de que algo mais poderia ser dito

e/ou que deveria ser compreendido se fazem presentes. Vemos isso com bons

olhos. Não temos nenhuma pretensão de esgotar os temas em si mesmos. Ao

contrário, pensamos a ciência justamente na dimensão do inacabamento, da

diversidade de visões, do necessário mergulho de se vislumbrar outras

possibilidades... E, para nós, a Análise do Discurso, tendo a linguagem como seu

campo de estudo e sua própria razão de existência, não pode se pretender fechada

ao olhar do ‘outro’, mas, ao contrário, tem sempre de se autoavaliar, na inteireza de

sua dinamicidade.

Tomando por base toda a construção do arcabouço teórico desenvolvido nos

capítulos anteriores, três grandes frentes se destacarão no processo analítico: i) de

que maneira os dois textos selecionados do corpus são instituídos em “gêneros” que

fizeram parte de um embate jurídico, qual seja, o que se instaurou quando da

implantação da Usina Hidrelétrica de Irapé, no Vale do Jequitinhonha; ii) como pode

ser concebida e sistematizada a questão da subjetividade nos gêneros

selecionados, isto é, como se constituem os sujeitos nos atos linguageiros que

comporão a análise, quando situados num dado quadro de contrato comunicacional;

e iii) como pode ser descrito o modo de organização argumentativo no que tange

aos gêneros em epígrafe, naquilo que se relaciona aos seus procedimentos

semânticos, discursivos e de composição e, ainda, de que modo se dá a emergência

de diferentes ethé dos sujeitos, balizados em valores partilhados por grupos sociais,

os quais engendram determinados imaginários sociodiscursivos.

Dito de outro modo, nossa concepção de enunciação se baseará nessas três

abordagens: gêneros, subjetividade e modo de organização argumentativo, as quais

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muito embora em alguns momentos sejam tratadas metodologicamente de forma

separada, acabam se relacionando em todo o procedimento de análise. Com isso

queremos dizer que quando descrevermos o gênero, manteremos o diálogo com os

aspectos pertencentes ao quadro comunicacional e da mesma forma traremos à

discussão os procedimentos próprios do modo de organização argumentativo tendo

por substância excertos de enunciados.

Não perderemos de vista que esse quadro teórico e as categorias das quais

lançaremos mão, buscarão, primordialmente, discutir o processo enunciativo do

desenvolvimento sustentável no Direito Ambiental, que organicamente se estruturou

em torno da referida usina.

4.1 Da petição Inicial

O primeiro gênero sobre o qual discutiremos é a petição inicial. Tal escolha se

dá em razão de que, no procedimento judiciário, antes do protocolo desse texto

escrito não se pode falar em demanda e, como decorrência lógica, o sistema

gêneros que se apresenta após a propositura da ação somente tem sua emergência

com o advento desse projeto de fala.

Uma breve, porém útil digressão: fizemos referência à adjetivação “judiciária”

em contraposição à “jurídica”. Em termos etimológicos, a primeira diz respeito aos

saberes e dizeres no bojo do Poder Judiciário e a segunda se baliza àquilo que é

próprio do Direito31. Achamos por bem distinguir os termos, porque, por um lado,

trataremos de vários aspectos que tomam lugar na dimensão judiciária, ou seja, no

âmbito do processo com trâmite na justiça propriamente dito e, por outro, daquilo

que tem seu espectro na ciência jurídica e nos discursos sobre Direito. Um exemplo

pode esclarecer o que está sendo dito: a petição inicial, primeiro gênero a ser

analisado, abarca um ato linguageiro que tem sua arena num processo judicial. Já a

lei, utilizada em diversos momentos tanto como procedimento semântico, quanto

como procedimento discursivo, é relacionada ao Direito, mas pode,

interdiscursivamente, aparecer em vários outros panoramas linguísticos, como

formulários, requerimentos escolares, projetos pedagógicos, propagandas

governamentais, matérias jornalísticas, programas de entrevistas etc.

Conforme expusemos acima, por uma questão metodológica, numa primeira

31

Conforme Houaiss (2001, p. 1689, 1694).

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abordagem, o foco de análise se inclinará para questões relativas aos gêneros.

Inicialmente, compreender os gêneros que se operacionalizam no domínio

discursivo jurídico pressupõe conhecer as determinações institucionais que orientam

o nascimento desses gêneros e de que modo suas formas devem ser obedecidas e,

por isso, replicadas, mantendo assim seu caráter de estabilidade.

Quanto à petição inicial, há toda uma sistemática legal que impõe a sua

forma, inclusive dedicando-lhe um capítulo inteiro no Código de Processo Civil32

(CPC). O artigo 282 desse regramento trata textualmente “dos requisitos da petição

inicial” (nome dado à Seção I, que precede o artigo), os quais são apontados a

seguir:

Art. 282. A petição inicial indicará: I – o juiz ou tribunal, a que é dirigida; II – os nomes, prenomes, estado civil, profissão, domicílio e residência do autor e do réu; III – o fato e os fundamentos jurídicos do pedido; IV – o pedido, com as suas especificações; V – o valor da causa; VI – as provas com que o autor pretende demonstrar a verdade dos fatos alegados; VII – o requerimento para a citação do réu

Acima, questionamos se existe uma coerção para os usuários da língua no

sentido de se submeterem a uma imposição quanto à forma a ser utilizada em

determinados gêneros e em que medida isso se daria. Procuramos tentar antecipar

algumas hipóteses afirmando que no domínio discursivo jurídico tal fenômeno

poderia ocorrer em virtude da necessidade de se obedecer ao que é determinado

pela lei.

No caso do gênero petição inicial, podemos perceber que existe, sim, uma

primeira coerção que é de caráter estrutural. O sujeito comunicante, ator social,

discursivamente, tem de seguir o constructo exigido pela lei, que inclusive enumera

taxativamente quais e em que ordem os elementos da petição inicial devem ser

dispostos.

Ele não tem a opção de suprimir qualquer item. Caso isso ocorra, terá o

encargo de completar, ou, como usado na técnica jurídica, “emendar” a peça

vestibular33. Tal omissão acarretaria mais morosidade ao já tão lento trâmite de uma

ação judicial. Há modernamente toda uma construção de valores no âmbito do

32

Capítulo I – DA PETIÇÃO INICIAL, artigos 282 a 296 do Código de Processo Civil. 33

“Peça vestibular”, “exordial”, “peça introdutória” ou simplesmente “inicial” são vocábulos usados no

meio jurídico como sinônimos de petição inicial.

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Poder Judiciário do ideal de que só se faz justiça se esta for célere34, ou seja,

concedida de modo ágil. Por esse motivo, acaba sendo considerado um demérito

para o advogado – que é quem geralmente é o sujeito enunciador da petição, por

delegação de seu cliente – o fato de o processo sob sua responsabilidade estar

correndo lentamente ou, ainda, de sofrer a “penalidade” de ter que emendar a inicial.

E se, linguisticamente, não completar esse texto, o magistrado indeferirá a petição

inicial, pondo fim ao processo, por meio de uma sentença judicial, sendo necessário

um novo ajuizamento da ação.

A petição inicial, entretanto, não é um formulário a ser preenchido. Apesar da

rigidez quanto à sua produção, no sentido de se atender aos requisitos legais

referidos, existe uma margem de liberdade que emerge do estilo de quem a produz.

A competência discursiva do sujeito que toma lugar neste gênero pode se fazer

valer, proporcionando maior clareza e coerência ao texto. Se não fosse assim,

poderiam ser usados formulários para cada tipo de ação e esse não é o caso.

Diante disso, é possível corroborar a hipótese de que o que define e delimita

a forma do gênero petição inicial é a legislação a ela relacionada. Se, por exemplo, a

lei processual civil for alterada e trouxer um novo requisito a ser seguido, todos os

usuários do gênero terão de se submeter a essa mudança legislativa e terão de

passar a incorporar nos seus atos linguageiros o mandamento normativo.

Coletivamente, a ação social de utilizar esse gênero é modelada por uma

institucionalização ritualizada e isso se verifica de acordo com os contornos legais.

Apesar de não ser o nosso principal foco analítico, tocar na questão do

aspecto formal da petição inicial contribui operacionalmente para a descrição desse

gênero.

Na esteira de Maingueneau (1997, p. 30 e 34), percebemos que os gêneros

estão diretamente relacionados com o conceito de contrato proposto por

Charaudeau, visto que “cada ‘gênero’ presume um contrato específico pelo ritual que

define.” Por essa razão, torna-se relevante, na nossa perspectiva, descrever o

contrato instaurado por intermédio da petição inicial.

E para a verificação das características desse contrato investiremos na

análise da subjetividade, considerada o modo pelo qual se constituem os sujeitos

34

A Emenda Constitucional 45, muitas vezes chamada de Reforma do Judiciário, incluiu no art. 5º da Constituição Federal de 1988 o inciso LXXVIII, determinando que “a todos, no âmbito judicial ou administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.

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nos atos de linguagem. Para tanto, iremos nos voltar para os aspectos que

constituem o quadro do contrato de comunicação, um dos fundamentos sobre o qual

erguemos nosso arcabouço teórico.

Nessa direção, esquematicamente vemos que é possível pensar o gênero /

contrato petição inicial com a seguinte configuração:

Quadro 2: Quadro de contrato comunicacional das petições iniciais em geral Fonte: Elaborado pelo autor a partir Charaudeau (2009a)

O sujeito comunicante (EUc) é constituído pelo advogado do autor da ação.

Não é o autor – polo ativo da demanda – que produz o texto da petição inicial, nem

tampouco faz emergir esse gênero enquanto ação social. Outra questão: o

advogado, pessoa física, ser social, assina a petição ao final, indicando inclusive seu

número de registro junto ao órgão de classe.

E isso se dá em razão do fato de que é o advogado que tem a chamada

capacidade postulatória, a qual abrange tanto a capacidade de pedir (quando se

trata do advogado do autor), quanto de responder (no caso do advogado do réu).

Em outras palavras, os interlocutores do processo judicial devem estar

representados pelos advogados35.

Vale mencionar que os advogados regularmente inscritos na Ordem do

Advogados do Brasil – OAB – são os que têm capacidade postulatória.

Outro fato que justifica que o advogado situacionalmente é EUc é que na

seara jurídica ele pode ser responsabilizado, pessoalmente, pelas expressões

35

Salvo poucas exceções em que pessoas podem se manifestar nos autos sem a representação do advogado, como no exemplo de causas trabalhistas e do habeas corpus.

Circuito externo / dimensão psicossocial

EUc: TUi

Advogado do

Autor da demanda

Juiz, réu,

serventuários da

Justiça,

interessados no

processo.

Circuito interno / dimensão enunciativa

EUe: Autor da

ação;

Advogado

(representante

do autor)

TUd: Juiz;

réu

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ofensivas que utilizar, com a possibilidade de ser acionado judicialmente em virtude

da ocorrência dessa prática.

EUc, então, toma a iniciativa do processo de produção do DIZER. Para esse

fim, desdobra-se um sujeito enunciador (EUe), que, no circuito interno, assume

papéis discursivos distintos. Nesse sentido, Charaudeau (2009a, p. 63) propõe que

se pergunte: “quem o texto faz falar?”; “quais os sujeitos o texto faz falar?” No caso

da petição inicial, vemos que é corporificado o autor da demanda, aquele que

pleiteia o direito em si, ocorrendo aquilo que Charaudeau (2009a, p. 51) categoriza

como “delegação da fala”, isto é, o advogado fala em nome daquele. Percebemos

isso porque normalmente as petições iniciais são escritas em 3ª pessoa, narrando os

fatos ocorridos, tendo como personagem o autor.

Seu advogado, entretanto, também é sujeito enunciador. Podemos evidenciar

isso porque muitas vezes são utilizadas expressões tais como: “o autor procurou

este que subscreve a petição” ou “nós não podemos nos calar diante de tamanha

injustiça!” O advogado enuncia inclusive como estratégia de argumentação,

colocando-se como ator participante da encenação linguageira.

É instituído por EUc o seu sujeito destinatário (TUd), sendo, então, um

interlocutor idealizado, que deve supostamente estar em consonância com o ato de

enunciar. Aposta-se que a fala de EUe estará plenamente adequada para Tud. No

que tange à petição inicial, há dois sujeitos destinatários: o magistrado e o réu.

Todos os atos enunciativos estão destinados ao juiz. EUe está a todo

momento buscando a adesão do magistrado ao seu discurso, procurando

convencer-lhe de que seu cliente – autor da demanda – tem plena razão em pleitear

seu direito e, por essa razão, deve o juiz julgar procedente o pedido.

Mas também o réu é destinatário de EUe. Tanto é verdade que tudo o que é

enunciado torna-se passível de ser contraditado, o que se verifica pela abertura de

prazos para que, caso queira, possa se manifestar.

O direito à ampla defesa e ao contraditório é expressamente previsto na

Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso LV:

LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.

Referido direito decorre do princípio constitucional do devido processo legal,

segundo o qual “ninguém será privado de liberdade ou de seus bens sem o devido

processo legal”.

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Esses regramentos fazem parte dos saberes partilhados que regem o

contrato entre os sujeitos participantes do gênero petição inicial. Conhecedor disso,

o sujeito enunciador buscará fortalecer suas estratégias de argumentação, pelo fato

de saber que tudo o que disser poderá ser respondido pelo réu, enquanto sujeito

destinatário.

O sujeito interpretante (TUi) representa os sujeitos históricos da comunicação,

são os seres sociais, aqui relacionados ao próprio juiz, ao réu, mas igualmente aos

serventuários da justiça e aos interessados no processo.

O sujeito comunicante fabrica o TUd, lançando mão de todas as suas forças,

de todos os seus recursos argumentativos para que TUi se identifique com esse

sujeito destinatário ideal.

Em se tratando do caso específico da Ação Civil Pública relacionada à Usina

de Irapé, o quadro do contrato comunicacional que se instaura por intermédio do

gênero petição inicial mostra-se um pouco diferente no que tange à construção de

EUc e EUe, uma vez que o Ministério Público também tem a capacidade

postulatória. Vejamos:

Quadro 3: Quadro de contrato comunicacional da petição inicial da Ação Civil Pública da Usina Hidrelétrica de Irapé Fonte: Elaborado pelo autor a partir Charaudeau (2009a)

O sujeito comunicante é representado por J.A.L.S e A.R.S.C.36,

EUc, os seres sociais, são configurados pelos Procuradores da República em

Minas Gerais, J.A.L.S e A.R.S.C, representantes do Ministério Público Federal,

36

Reiteramos que os nomes das pessoas físicas estão sendo preservados, apontando-se tão

somente as letras iniciais, por uma questão ética.

Circuito externo / dimensão psicossocial

EUc: TUi: Juiz, réu,

J.A.L.S / serventuários

A.R.S.C da Justiça,

Procuradores da interessados no

República (MPF) processo etc.

Autores da Ação

Circuito interno / dimensão enunciativa

EUe:

Representantes dos

cidadãos e da

(sociedade)

TUd: juiz,

réu

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autores da ação civil pública.

Já os EUe, “porta-vozes” do sujeito comunicante, instituem-se como os

representantes dos cidadãos e da sociedade.

Toda a construção enunciativa dessa petição inicial gira em torno do princípio

do desenvolvimento sustentável. Como já discutido, são objeto de defesa da ação

civil pública os interesses relativos à proteção do meio ambiente, sobretudo no seu

aspecto socioambiental. Nessa perspectiva, o MPF enuncia enquanto “o protetor do

meio ambiente”, haja vista que deve garantir a tutela ambiental que, por sua

abrangência, atinge toda a sociedade. O discurso institucionalizado aponta, sem

margens para erro, o que pode e será dito.

Essa petição inicial foi composta por 59 páginas. É um texto relativamente

longo, que atendeu tecnicamente aos ditames processuais elencados no art. 282 do

Código de Processo Civil, o qual, vale lembrar, determina os requisitos essenciais do

gênero em questão.

Existe algo relevante no que tange à organização do gênero petição inicial.

Após a indicação do juízo competente para o qual a peça é destinada, a

apresentação da qualificação das partes (do autor e do réu) e do nome da ação

pretendida, uma estrutura bastante usual utilizada no meio jurídico é aquela que

divide a petição inicial em três partes básicas: 1) narrativa dos fatos (precedida do

subtítulo “Dos fatos”); 2) indicação dos fundamentos jurídicos (geralmente com o

subtítulo “Do direito”) e 3) a formulação dos pedidos, intitulada “Do pedido”37. Há

também um desfecho no qual se apontam: as provas com as quais se pretende

provar o alegado; o valor da causa; local, data e assinatura do postulante. Essa

estrutura foi seguida pelo MPF no gênero selecionado para este trabalho.

Metodologicamente, considerando nossos objetivos de promover a análise

das três abordagens concernentes ao gênero, à subjetividade e ao modo de

organização argumentativo, percebemos que o foco principal para o qual devemos

lançar nossos olhares deve se voltar para a descrição da narrativa dos fatos,

momento enunciativo principal em que: i) são apresentadas as propostas, as

proposições e as relações causais capazes de suscitar a adesão de TUi; ii) podem

ser descritas possíveis visadas de EUc tomando por base a forma como são

37

Foi apenas acrescentado um quarto item na petição inicial que compõe o material de análise desta pesquisa, intitulado “Da Medida Cautelar In Limine Litis”, já que houve incidentalmente um pedido liminar junto ao pedido principal.

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expostos referidos fatos e iii) justamente pelo estabelecimento da construção fática é

que é suscitada a formulação dos pedidos.

Com relação ao material de análise propriamente dito, selecionamos o

seguinte excerto da página 01 da petição inicial:

Este é um enunciado meramente formal, que compõe a chamada

“qualificação do autor” nas petições iniciais38. O que o torna relevante é que por

meio desse procedimento discursivo configurado pela citação dos textos legais,

podemos retomar a configuração de um importante ethos do Ministério Público, o de

“representante do povo”.

O art. 129, inciso III da Constituição Federal de 1988 aponta que o órgão

ministerial tem como uma das suas funções institucionais a promoção do inquérito

civil e da ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio

ambiente e de outros interesses difusos e coletivos.

Essa representação popular é conferida pela própria legislação federal ao

Ministério Público, porquanto ele pode, por força do art. 5º Lei nº 7.347/85, que

regula especificamente a ação civil pública, ser autor desse tipo de ação.

A legitimação do discurso institucionalizado é marcada expressamente: o

MPF age (e tem de agir) pautado pela outorga estatal. A lei máxima do ordenamento

jurídico brasileiro autoriza e, ao mesmo tempo, impele o MPF a enunciar. E não só a

Constituição o faz, mas também a Lei nº 7.347/85, a qual determina que o Ministério

Público pode (ou deve?), como autor, ajuizar a ação civil pública. Essa legitimação

permite a construção de um ethos de “autoridade”, de manutenção da ordem e do

poder do Estado. Aqui ratificamos Maingueneau (1997, p. 13), ao propor que a

Análise do Discurso relaciona-se com textos produzidos “nos quadros de instituições

que restringem fortemente a enunciação.”

Ocorre também uma delegação de fala: em nome do cidadão, o Ministério

Público tem a competência para, por meio do inquérito civil, averiguar a possível

ocorrência do dano ambiental. A partir do momento que chegue ao conhecimento

dos representantes do MPF uma demanda referente a suposto dano ambiental, uma

38

Queremos dizer com isso que essa citação do texto legal ainda não encerra um recurso

necessariamente argumentativo, no sentido de persuadir o sujeito alvo desse contrato.

O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, com fundamento no art. 129, III, da Constituição da República, art. 6º, VII, b e c, e XIV da Lei Complementar n.º 75/93, e art. 1º I e IV da Lei n.º 7.347/85, vem, perante V. Exa., (...)

.

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série de atos (e gêneros discursivos) tomam lugar: ofícios solicitando informações

dos envolvidos, ofícios requisitando medidas; ofícios solicitando a realização de

visitas técnicas e produção de relatórios etc. Se durante o processo de investigação

se perceba que efetivamente o dano não ocorreu, procede-se o seu arquivamento,

mas já foram mobilizadas várias ações, vários atos constituídos discursivamente.

Caso verifique a existência de elementos suficientes para a configuração do dano,

deve por obrigação legal ingressar com a mencionada ação, a fim de se apurarem

os fatos no âmbito do Judiciário.

Os direitos difusos, por definição, são aqueles pertencentes à titularidade

coletiva, sendo o meio ambiente um típico direito difuso, já que é conferido a todos.

O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado alçou o patamar de garantia

constitucional, devendo ser tutelado para todas as pessoas indistintamente.

Entendemos que a noção de ethos depende fundamentalmente das

representações sociais. Nesse sentido, a força do texto legal – considerada

enquanto uma coercitiva representação do que se deve conceber como sendo da

titularidade do Ministério Público – tem o condão de construir essa figura de

representante do povo.

Da mesma forma, existe um imaginário sociodiscursivo no que toca a essa

questão (do Ministério Público enquanto representante do povo). As pessoas têm

procurado o Judiciário com muito mais frequência, o que é ratificado pelo número

crescente do ajuizamento de novos processos (aumento de 31% de 2009 a 2012),

conforme o Relatório “Justiça em números”, publicado pelo Conselho Nacional de

Justiça, em 201339. Ainda que não se chegue a ajuizar especificamente uma ação,

qualquer cidadão tem ciência de que pode procurar o Ministério Público, mesmo

sem muitas vezes saber quais são de fato suas funções. O que é enunciado – e

anunciado – é que o Ministério Público é o “fiscal da lei”40.

39

“O total de processos em tramitação no Poder Judiciário aumenta gradativamente desde o ano de

2009, quando era de 83,4 milhões de processos, até atingir a tramitação de 92,2 milhões de processos em 2012, sendo que, destes, 28,2 milhões (31%) são casos novos e 64 milhões (69%) estavam pendentes de anos anteriores.” Disponível em: http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas-judiciarias/Publicacoes/relatorio_jn2013.pdf 40

Assim o Ministério Público do Estado de Minas Gerais se apresenta em sua página oficial na internet: “Como defensor da ordem jurídica, o Ministério Público é o fiscal da lei, ou seja, trabalha para que ela seja fielmente cumprida” (negrito nosso). Disponível em: https://www.mpmg.mp.br/conheca-o-mpmg/o-que-e/

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Essa percepção que a sociedade tem a respeito do Ministério Público acaba

por fazer circular esse imaginário, no sentido de que o órgão tem legitimada a

função de representar o cidadão, garantindo que a lei seja obedecida.

Como dissemos acima, a análise do gênero, a constituição da subjetividade e

a descrição dos procedimentos utilizados no modo de organização argumentativo

dialogarão entre si nesta pesquisa.

Retomando a petição inicial, em seguida EUe começa a atuar na narrativa

dos fatos, os quais, segundo seu ponto de vista, aclararão ao magistrado, seu TUd

imediato, o porquê de a Usina de Irapé não ser sustentável ambientalmente.

Na página 02, o MPF explicita que a Cemig celebrou com a União, por meio

da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) um contrato de uso de bem

público, para geração de energia elétrica, a partir do potencial de energia hidráulica

advindo do Rio Jequitinhonha. Explica ainda que a Cemig apresentou ao Conselho

Estadual de Política Ambiental (COPAM) o chamado Plano de Controle Ambiental –

PCA – da Usina Hidrelétrica de Irapé (UHE de Irapé). O protocolo desse documento

representava o cumprimento por parte da Cemig do último requisito formal para a

obtenção da licença ambiental de instalação do empreendimento, ou seja, para que

fosse dado início de fato às obras de construção da hidrelétrica.

Logo após, discursivamente, deparamo-nos com a proposta que permeia toda

a construção enunciativa do MPF. Vejamos o enunciado extraído ainda da página

02:

EUe passa a problematizar toda a sua estrutura argumentativa no intuito de

que o TUi perceba – e se convença a posteriori – que a Usina de Irapé não é

sustentável, conformando-se, assim, ao sujeito destinatário idealizado. Essa ação do

MPF acaba encerrando uma visada de fazer-saber, isto é, de levar ao conhecimento

do magistrado que a usina não é viável ambientalmente.

Entretanto, para o sujeito argumentante não basta apresentar sua proposta,

deve ele se engajar numa determinada proposição, ou seja, deve elucidar ao seu

sujeito alvo quais as causas e quais os porquês são capazes de explicar a

plausibilidade de sua proposta. Esse engajamento perpassa uma visada voltada

Como se demonstrará, entretanto, tais obras não se apresentam viáveis sob o ponto de vista sócio-ambiental, razão por que a implantação da UHE Irapé provocará significativos danos ao meio ambiente.

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para fazer-compreender. O MPF menciona que instaurou dois inquéritos civis:

a) um motivado por uma representação formulada pela Comissão dos Atingidos pela

barragem de Irapé, a fim de “averiguar a eventual existência de irregularidades no

licenciamento ambiental do empreendimento em consideração” (página 02 da

petição inicial) e

b) o outro baseado na informação técnica da Antropóloga A. F. M. S., Analista

Pericial do Ministério Público Federal, para “verificar se a comunidade de Porto

Coris, formada por remanescentes de quilombo e localizada na área a ser

diretamente afetada pelo empreendimento” (página 02 da petição inicial), foi de fato

considerada no procedimento do Estudo Prévio de Impacto Ambiental e respectivo

Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) da hidrelétrica.

Na página 04 da inicial temos discursivamente explicitada uma das

proposições elaboradas por EUe, o qual, tomando por base a análise dos inquéritos

civis, conclui que:

Já na página 05, o MPF expõe que, ao se deparar essa suposta

“contradição”, requisitou da Cemig a cópia do EIA/RIMA. À continuação, é possível

percebermos a configuração de outra proposição do sujeito enunciador:

Saltando para a página 11 nos deparamos com a estruturação de uma

terceira proposição:

Tais diretrizes não foram, nem de perto, atendidas na elaboração, apreciação e aprovação do EIA/RIMA da UHE Irapé.

(...) Ao elaborar seu parecer técnico sobre o EIA/RIMA em questão (...) a FEAM, após observar que os impactos do empreendimento, sobre a região do Vale do Jequitinhonha, seriam significativos, conclui sua análise dos estudos apresentados pelo empreendedor de forma absolutamente contraditória, ao mesmo tempo admitindo a viabilidade sócio-ambiental da UHE Irapé e advertindo para o fato de que o EIA postergava para a próxima fase do licenciamento ambiental, “alguns estudos próprios da fase de viabilidade”.

Para sua surpresa (do próprio MPF), dentre os estudos encaminhados pelo empreendedor, encontrava-se o documento intitulado “Diagnóstico Histórico-Social sobre a Comunidade e Porto dos Cori (...), apresentado pela CEMIG aos órgãos ambientais, com o propósito de negar à comunidade negra de Porto Coris sua condição de remanescente de Quilombo.

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Esquematicamente, podemos didatizar a análise da proposta e das

proposições levadas a termo pelo sujeito enunciador da seguinte forma:

- Proposta: a construção da Usina de Irapé não é sustentável do ponto de vista

socioambiental, causando danos ao meio ambiente.

- Proposições:

1) porque foram averiguadas irregularidades na aprovação do EIA/RIMA;

2) porque não foi considerada a comunidade de Porto Coris, formada por

remanescentes de quilombos e que se localizava na área afetada pela barragem;

3) porque não foram consideradas as específicas estratégias de reprodução

social das comunidades locais.

Ocorre que ainda que estejam presentes a proposta e as proposições, a

argumentação não seria validada caso o EUe não pudesse eficientemente confirmar

o valor daquilo que enuncia. Aqui estamos diante da visada do fazer-crer, isto é, do

provar, legitimando, pois, o ato da Persuasão.

O discurso jurídico tem no embate argumentativo a sua essência. Já

dissemos neste trabalho que há sempre um propósito argumentativo quando se

ingressa com uma ação judicial.

Nesse sentido, consideramos válida a distinção feita por Ruth Amossy (2011,

p. 131) entre intenção e dimensão argumentativa. Ela explica que o discurso, por

sua natureza dialógica, comporta a “capacidade de agir de agir sobre o outro, de

influenciá-lo.” Isso diria respeito à dimensão argumentativa. Entretanto, quando há

uma “estratégia de persuasão programada” estamos diante de uma intenção

Por outro lado, não foi, apenas, a identidade específica da Comunidade Remanescente de Quilombo de Porto Coris que foi negada no procedimento de EIA/RIMA da UHE Irapé. Nem, tampouco, foi esta sequer a maior das irregularidades identificadas na análise técnica promovida pela Antropóloga A. F. M. S. Com efeito, no procedimento destinado à formação do juízo de viabilidade sócio-ambiental da hidrelétrica em tela, também não se reconheceram, tanto à mencionada comunidade negra, quanto a diversas outras comunidades localizadas na área diretamente afetada pelo empreendimento, as frágeis e específicas estratégias de reprodução social, baseadas em um intricado sistema de posse comunal da terra, próprio do Alto Jequitinhonha e conhecido pela peculiar denominação de “terra no bolo”.

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argumentativa. Sob o nosso ponto de vista, podemos dizer que se instaura uma

“visada argumentativa”. Essa é uma qualidade intrínseca ao discurso jurídico.

Nesses enunciados que se reportam às proposições de EUe na petição

inicial, constitui-se um ethos de moralidade por parte do MPF, representante do

cidadão. O modo de apresentar um ponto de vista contribui para construção do

ethos.

Quando se menciona que normativas ambientais (no caso as diretrizes para a

elaboração do Estudo de Impacto Ambiental – EIA) não foram “nem de perto

atendidas”, obviamente está se erigindo uma imagem de que a Cemig e os órgãos

ambientais estariam supostamente agindo de forma ilegal e, consequentemente,

imoral. Legalidade e moralidade, no que tange aos atos de administração pública,

são noções correlatas.

Segundo Garcia e Alves (2006, p. 75), no Estado de Direito

os atos dos agentes públicos auferem seu fundamento de validade na norma. O fim destes atos, em razão da própria natureza do Estado, haverá de ser sempre a consecução do bem comum. Em razão disto, é possível dizer que legalidade e moralidade integram-se e complementam-se, sendo cogente sua observância pelos agentes públicos (grifo nosso).

Por conseguinte, quando EUe aponta o eventual ato de imoralidade dos

agentes envolvidos na produção do EIA/RIMA, traz para si o valor da moralidade.

Igualmente percebemos a presença enunciativa do ethos de moralidade no

momento em que se atribui à FEAM uma postura “absolutamente contraditória” pela

aprovação do EIA/RIMA apresentado pela Cemig, documentação essa que apontava

a ocorrência de impactos significativos na região do empreendimento. O EUe faz

referência à desobediência por parte do órgão ambiental de, na elaboração do

Estudo de Impacto Ambiental, “identificar e avaliar sistematicamente os impactos

ambientais gerados nas fases de implantação e operação da atividade”, indo de

encontro ao que determina o art. 5º, inciso II, da Resolução nº 01/86 do Conselho

Nacional do Meio Ambiente – CONAMA.

A contradição, semanticamente, implica, pelo menos, o descuido de uma

análise de coerência. No Direito, a contradição na análise de documentos que são

regidos por normatização própria pressupõe a ausência de uma apuração cuidadosa

dos fatos. O descuido de um agente público pode inclusive ensejar a apuração da

infração de desídia, enquanto o descumprimento de uma obrigação e um prejuízo

em decorrência disso. Os órgãos ambientais têm a obrigação legal de averiguar

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todas as questões que envolvem a concessão de um licenciamento ambiental. Se

não o fizerem com zelo e acuidade, podem seus agentes ter de responder por

desídia.

Também nos chamou a atenção a expressão utilizada por EUe quando

explicita que “para sua surpresa” foi encontrado o documento relacionado à

comunidade de Porto Coris. O ethos de moralidade mais uma vez emerge. Será que

a Cemig tinha o interesse de negar a condição de remanescente de quilombo à

referida comunidade com o objetivo de ter seu EIA aprovado pelos órgãos

ambientais? Será que a totalidade das informações em torno disso deveria ser

“escondida”? A ideia de “surpresa” acaba denotando algo que estava sendo omitido

e para o qual não deveria ser dada tanta notoriedade. Obviamente tal conduta seria

tratada como imoral.

Esse ethos é sustentado por um imaginário sociodiscursivo de moralidade.

Pressupõe-se (e deseja-se) socialmente que os atos de agentes públicos não sejam

eivados de vícios quanto à moralidade. Espera-se do Judiciário a distribuição de

justiça e o papel imputado a seus membros é o da representação de honestidade.

Os enunciados concernentes ao valor de moralidade encontram-se no

domínio de avaliação do ético, definindo discursivamente o que é bom ou mau.

Retomando Charaudeau (2009a, p. 232), trata-se do domínio do dever e da

obrigação, esperando-se que os sujeitos imbricados no contrato ajam de uma

determinada maneira.

Um dos principais recursos utilizados na argumentação jurídica para fins de

persuasão é a citação de dispositivos normativos. Esse expediente é um dos

procedimentos discursivos utilizados por EUc com o intuito de convencer seu

interlocutor.

No discurso jurídico, quando se faz referência expressa às regras, o que se

pretende é conformar o texto normativo exatamente ao argumento do sujeito

enunciador, como se a lei e os outros atos regulamentares se enquadrassem de

modo perfeito às falas daquele que enuncia. Ocorre que esse “encaixamento”

perfeito pode não ocorrer. É fundamental ter em mente que essa empreitada passa

por um processo de interpretação. E nessa seara, tudo dependerá da identificação

do sujeito interpretante com aquilo que foi idealizado por EUc ao constituir o sujeito

destinatário. E, como já afirmamos, não há nenhuma garantia de que TUi se

conformará com TUd.

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O MPF, em inúmeros momentos da petição inicial, promove a citação de

excertos de lei e demais normas relativas ao meio ambiente, enquanto procedimento

discursivo. Isso se dá na direção de fundamentar o seu quadro argumentativo para

convencer o magistrado de que os pedidos da petição estão em consonância com o

que a legislação vigente determina. Ao invocar aplicação da lei, EUc pretende

garantir uma univocidade do conteúdo do texto legal, como se fosse passível de

uma única interpretação. Entretanto, o que se vê é que pode haver interpretações

distintas daquilo que a norma preconiza.

No Direito Ambiental a letra da lei também não é transparente, com um

sentido de via única. O papel comunicativo por excelência a ser desempenhado pelo

magistrado é o julgamento da ação judicial, ou seja, da demanda que lhe é

apresentada pelas partes do processo, a fim de que “diga o direito”, exarando uma

sentença41.

Ocorre que tal juízo é feito subjetivamente, de acordo com o chamado “livre

convencimento motivado” do juiz. Isso tem seu fundamento num princípio de ordem

constitucional encontrado na Carta Política de 1988, em seu art. 93, inciso IX, onde

lemos:

IX – todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade (...) (grifo nosso)

Referida regra significa que os magistrados terão liberdade “para eleger, no

caso concreto, a prova que, na sua visão, se apresenta com a mais aconselhável

para fundamentar a solução do feito” (WAGNER JÚNIOR, 2007, p. 35). Há, nesse

sentido, uma limitação à decisão do juiz que obviamente tem de se ater às provas

que foram juntadas nos autos. Mas, de qualquer forma, há todo um exercício de

interpretação que é subjetivo, valorando quais provas terão maior força para apoiar a

definição do caso. Um magistrado que fundamenta sua decisão numa determinada

prova, pode ter sua sentença reformada quando o processo é revisto num tribunal

superior. Isso demonstra claramente que a questão é discursiva e passa pelas

variadas formas como os diferentes TUi irão se conformar com os TUd construídos

pelos EUc, numa dada situação jurídica. Caso não fosse assim, as sentenças seriam

41

Há toda uma construção teórico-jurídica em torno das questões atinentes à sentença, como um ato dos juízes. Neste momento da tese estamos fazendo referência à chamada sentença de mérito (conforme art. 269 do Código de Processo Civil). Há, entretanto, sentenças que extinguem o processo sem adentrar no mérito (de acordo com art. 269 do mesmo diploma legal), casos aos quais não nos ateremos.

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uniformes, idênticas, não sendo nem mesmo necessária a apreciação do juiz... Essa

não univocidade de interpretação dos textos normativos poderá ser rediscutida mais

à frente quando tocaremos na decisão judicial que julgou o pedido cautelar do MPF

na ação civil pública da UHE Irapé.

O que se dá, de fato, é que toda citação de texto legal traz consigo uma

vinculação a um determinado domínio de avaliação, ou seja, carrega organicamente

certos valores, os quais, por sua vez, sustentam imaginários sociodiscursivos

distintos. As normas se encontram no domínio da “verdade”. E é justamente por

isso, que os sujeitos do ato linguageiro jurídico tendem a imaginar que seus

argumentos são necessariamente “verdadeiros”. A lei (e todo ato normativo) traz em

seu bojo um desejo de verdade, já que ela determina o que pode e deve ser feito e

impõe coercitivamente sua eficácia e aplicação.

Conceitualmente, A “lei” deve ser entendida, no seu sentido amplo, como as

normas jurídicas escritas, que entraram em vigor por decisão das autoridades

estatais competentes e que objetivam regular a organização social, apresentando

um certo grau de generalidade (DIMOULIS, 2007, p. 204). E já que “todos são iguais

perante a lei”, conforme o art. 5º, caput, da Constituição, paira a idéia de que, por

seu caráter de generalidade e universalidade, ela também é atemporal.

Entretanto, como toda prática enunciativa obedece à lógica daquilo que é

sócio-historicamente constituído, os atos normativos são filhos de seu tempo, sendo

discursivamente apenas verossímeis de acordo com sua manifestação em um

determinado período. Mudam-se os valores, mudam-se os dispositivos legais,

inexoravelmente.

Voltando-nos novamente aos enunciados da petição inicial, na página 03

vemos a citação do art. 225, § 1º, IV da Constituição, que aponta para a exigência

de estudo prévio de impacto ambiental, quando da instalação de obra ou atividade

potencialmente causadora de significativa degradação ao meio ambiente. Em

seguida, EUe menciona que esse instrumento (EIA) é:

Procedimento fundamental pelo qual a sociedade pode ter acesso às variáveis de uma obra ou atividade causadora de significativos impactos ambientais e intervir na formulação de sua concepção, de modo que esta interfira o menos possível no patrimônio ambiental da coletividade. De outra parte, é por intermédio do EIA/RIMA que se definem as medidas de prevenção, mitigação e compensação dos efeitos adversos das atividades ou obras modificadoras do meio ambiente (grifos nossos).

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Neste excerto é possível a descrição de dois imaginários sociodiscursivos que

habitam a noção de sustentabilidade: i) o imaginário de participação popular, no

sentido de que o EIA/RIMA permite que a sociedade possa ter acesso à discussão

da implantação de empreendimentos potencialmente prejudiciais ao meio ambiente

e ii) o imaginário de prevenção que deve permear as ações garantidoras de um meio

ambiente equilibrado.

Os imaginários sociodiscursivos são materializados de diversas formas. Os

discursos produzidos pelos grupos sociais que debatem sobre a questão ambiental

encontram uma configuração bastante consolidada nos chamados princípios do

Direito Ambiental.

Semanticamente, princípio, vem do latim, principium, principii, é começo,

causa, ponto de onde algo tem sua origem. Sérgio Pinto Martins (2006, p. 29), ao

tratar do conceito de princípio para o Direito, cita José Cretella Jr., o qual afirma que

“princípios de uma ciência são as proposições básicas, fundamentais, típicas que

condicionam todas as estruturações subsequentes. Princípios, neste sentido, são os

alicerces da ciência.” Para Ronald Dworkin (1987, p. 22), princípios são standards

jurídicos.

Conforme Celso Antonio Pacheco Fiorillo (2008, p. 26), o Direito Ambiental é

uma ciência autônoma, cuja independência é garantida pelo fato de possuir “seus

próprios princípios diretores, presentes no art. 225 da Constituição Federal.”

Os princípios do Direito Ambiental foram adotados internacionalmente em

decorrência da busca de equilíbrio entre as demandas sociais e econômicas e a

preservação ecológica. Essa é justamente a concepção mundial do que se

convencionou chamar de sustentabilidade. Todos os princípios tiveram sua

emergência a partir de discussões políticas que, por sua vez, engendraram

imaginários sociodiscursivos. Em outras palavras, a partir de demandas sociais,

determinados valores passaram a ser eleitos e, como consequência, imaginários

tomaram lugar e foram, num percurso histórico, sedimentando-se. Descrever os

referidos princípios, de acordo com nossa perspectiva, pode contribuir para a análise

da materialização de imaginários sociodiscursivos relativos ao meio ambiente e, de

modo especial, à questão da sustentabilidade.

Há toda uma principiologia global da temática ambiental, formulada

inicialmente na Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano,

realizada em Estocolmo, no ano de 1972.

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No Rio de Janeiro, no ano de 1992, ocorreu a Conferência das Nações

Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, também conhecida como ECO-

92, que ampliou a discussão acerca dos princípios globais atinentes à questão

ambiental.

A participação como princípio do direito ambiental foi consagrada igualmente

no caput do art. 225 da Carta Magna, que determinou a presença conjunta do

Estado e da coletividade na proteção e preservação do meio ambiente. Extrai-se,

então, que devem buscar esse fim as organizações ambientais, os sindicatos, a

indústria, o comércio e os demais organismos sociais.

O Princípio 10 declarado na ECO-92 dispôs que “a melhor maneira de tratar

questões ambientais é assegurar a participação, no nível apropriado, de todos os

cidadãos interessados (...)”

Dada a natureza difusa do direito ambiental, cabe a todos, pessoas físicas ou

jurídicas, a defesa do meio ambiente, não sendo tal desiderato uma mera

prerrogativa, mas um dever constitucional.

Assim, de acordo com esse imaginário sociodiscursivo, o cidadão teria de

participar ativamente por meio da iniciativa popular, com propostas de lei ambientais

e, ainda, pela manifestação em plebiscitos e referendos ambientais, consoante

preconiza o art. 14 do Diploma Constitucional.

Édis Milaré (2004, p. 141) menciona que o “direito à participação pressupõe o

direito de informação e está a ele intimamente ligado.” Diferente não é o

entendimento de Fiorillo (2008, p. 52), para o qual a informação e a educação

ambiental são mecanismos para se efetivar a ação conjunta do Poder Público e da

coletividade.

A educação ambiental, conforme o inciso VI do §1º do art. 225 da

Constituição, deve ser promovida em todos os níveis de ensino. Ademais, caberá ao

Estado garantir a conscientização pública para a preservação do meio ambiente.

Para Fiorillo (2008, p. 53) educar ambientalmente significa reduzir custos

ambientais; efetivar os princípios da prevenção e da participação; fixar a ideia de

consciência ecológica e incentivar o chamado princípio da solidariedade entre as

pessoas, no sentido de se perceber “que o meio ambiente é único, indivisível e de

titulares indetermináveis, devendo ser justa e distributivamente acessível a todos.”

Paulo Affonso Leme Machado (2006, p. 92) diz que as decisões

administrativas ambientais passaram das mãos de um só funcionário para

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conselhos, em que a sociedade civil passou a ter “voz e voto”.

Ninguém mais interessado em participar das discussões sobre os possíveis

impactos ambientais ocasionados pela instalação da Usina de Irapé do que os

indivíduos pertencentes às comunidades locais. Eles são os diretamente afetados

pelas ações dos empreendedores, muito embora possa se entender que o interesse

público deve prevalecer ao particular em casos como o de geração de energia,

postura essa que pode fundamentar imaginários sociodiscursivos da Cemig,

conforme discutiremos adiante.

Talvez aqui nos deparemos com a maior dificuldade em equacionar as três

dimensões do desenvolvimento sustentável: como conciliar o crescimento

econômico que advirá da implantação de uma usina hidrelétrica com a qualidade de

vida, o bem-estar social dos moradores do entorno da barragem e, ainda, a

preservação ecológica? Quais os bens jurídicos são mais importantes? Poder-se-ia

perguntar ainda: mas a produção de mais energia elétrica não traz necessariamente

maior promoção social às pessoas? Sim, se pensarmos na coletividade e, não, se

considerarmos os nativos que são afetados pelas obras necessárias à construção do

empreendimento.

Sirvinskas (2009, p. 58) chama de ‘princípio democrático’ a possibilidade

assegurada ao cidadão de participar das políticas públicas ambientais. No que

concerne à garantia desse princípio, a Resolução nº 9/1987, do Conselho Nacional

do Meio Ambiente (CONAMA) trata da necessidade de realização de audiência

pública para a concessão de licenciamento ambiental quando o empreendimento for

considerado de grande impacto.

Com referência ao MPF, na sua condição de representante do cidadão e

como enunciador na petição inicial, o imaginário de participação popular fundamenta

os enunciados que abordam a audiência pública realizada junto à comunidade a ser

afetada pela barragem (página 05 da petição inicial):

Saliente-se que o referido “diagnóstico” (Diagnóstico histórico-social sobre a comunidade de Porto Coris realizado pela CEMIG) foi elaborado em dezembro de 1997, às vésperas da concessão da licença prévia referida supra e, portanto, após a realização, em 22 de junho de 1997, de Audiência Pública sobre o EIA/RIMA da UHE Irapé, na localidade de Acauã, Município de Leme do Prado, na qual, conforme veio a admitir posteriormente o próprio empreendedor, a comunidade de Porto Coris já reivindicava que seu status de grupo étnico diferenciado fosse devidamente levado em consideração no procedimento de análise da viabilidade sócio-ambiental da hidrelétrica em questão.

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A audiência pública, mesmo tendo natureza apenas consultiva, traz voz aos

membros das comunidades locais.

Já no que toca ao imaginário de prevenção, é possível retomá-lo na descrição

do princípio ambientalista da prevenção. Consoante Fiorillo (2008, p. 48), referido

princípio é “um dos mais importantes que norteiam o direito ambiental”, visto que em

muitas ocasiões os danos ambientais podem ser irreversíveis. Mencionado autor

(2008, p. 49) aponta que basta pensar: “como recuperar uma espécie extinta? Como

erradicar os efeitos de Chernobyl?” A prevenção em termos de direito ambiental

concerne na “prioridade que deve ser dada às medidas que evitem o nascimento de

atentados ao ambiente” (MILARÉ, 2004, p. 144).

Nesse sentido, a ECO-92 declarou em seu Princípio 15 que

Para proteger o meio ambiente medidas de precaução devem ser largamente aplicadas pelos Estados segundo suas capacidades. Em caso de risco de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não deve servir de pretexto para procrastinar a adoção de medidas efetivas visando a prevenir a degradação do meio ambiente (grifo nosso).

Alguns autores, como por exemplo Paulo Affonso Leme Machado (2006, p.

61), nomeiam o princípio mencionado como Princípio da precaução. Já Leandro

Eustáquio (2008, p. 9) distingue ambos, afirmando que “havendo perigo concreto,

trata-se do princípio da prevenção e, havendo perigo abstrato (incerteza científica

absoluta), trata-se do princípio da precaução”.

A Constituição de 1988 adotou a prevenção de modo expresso no caput do

art. 225, ao dispor que é dever do Poder Público e da coletividade proteger e

preservar o meio ambiente para as presentes e para as futuras gerações.

A questão da negativa, por parte da Cemig, de reconhecer a comunidade de

Porto Coris como sendo remanescente de quilombos, segundo afirmamos acima, foi

uma das proposições elaboradas pelo sujeito argumentante, que posteriormente

busca provar a inviabilidade da construção da usina em virtude desse não

reconhecimento. Nas páginas 05, 06 da petição inicial, EUe menciona que o

Diagnóstico histórico-social apresentando pela Cemig foi:

realizado após a Fundação Cultural Palmares, órgão federal que tem a competência para promover estudos de identificação étnico-cultural e reconhecimento territorial das áreas ocupadas pelas comunidades remanescentes de quilombos, ter notificado a FEAM que estava elaborando relatório específico de identificação da mencionada comunidade negra

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Vejamos também o excerto que segue:

Reitera-se o ethos de moralidade do MPF. É colocada em xeque a

credibilidade e a idoneidade da Fundação Estadual do Meio Ambiente – FEAM –,

órgão ambiental que tem o dever de oferecer subsídios ao COPAM frente aos

empreendimentos. A expressão “é de se questionar”, semanticamente, suscita um

efeito de sentido da desconfiança, da suspeita que deve incidir sobre os réus (no

caso a Cemig, FEAM, COPAM), devendo-se, portanto, desqualificar, desacreditar e,

por isso, repudiar seus atos. A suspeição da FEAM se dá na medida em que ela não

considera o relatório da Fundação Cultural Palmares, órgão competente para

reconhecer a condição de quilombos, preferindo levar em conta o Diagnóstico

histórico-social, produzido pela própria Cemig, diretamente interessada na

aprovação da licença prévia da usina.

Em outro enunciado, mais uma vez EUe utiliza o procedimento discursivo da

citação de texto de lei, para fundamentar seu argumento:

O enunciado tem sua base no domínio de avaliação da verdade. Elencam-se

dois dispositivos extraídos da Constituição Federal, “Lei Maior” como apontado pelo

sujeito enunciador, que trazem a orientação de tratamento a ser conferido aos

grupos étnicos denominados quilombolas (remanescente de quilombo).

Tomando por base o enunciado acima, o imaginário sociodiscursivo com o

qual nos deparamos é o da “preservação do meio ambiente cultural”.

Neste contexto, é de se questionar o porquê de a FEAM ter solicitado ao empreendedor, cujo interesse empresarial repousa no desenvolvimento do projeto apresentado para licenciamento, a elaboração de laudo para atestar se a Comunidade de Porto Coris constitui ou não comunidade remanescente de quilombo. Com a mesma intensidade deve ser questionado o porquê de não ter sido suspensa a análise do EIA/RIMA da UHE Irapé, até que o órgão competente pudesse se pronunciar sobre a questão (grifos dele).

A única resposta possível para tais questionamentos reside no fato de que, tendo em vista a especial proteção dispensada pela Constituição da República às comunidades quilombolas, em particular o tombamento de que trata o art. 216, § 5º da Lei Maior, e o direito fundamental à reprodução social nas terras tradicionalmente ocupadas a que alude o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, o reconhecimento da existência de uma comunidade remanescente de quilombos na área a ser inundada pelo reservatório da UHE Irapé importaria, por via de conseqüência , no reconhecimento também da existência de um fator indicativo da inviabilidade sócio-ambiental do empreendimento.

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De modo equivocado, quando se fala em preservação ambiental, tem-se a

tendência a pensar que ela é atinente apenas à conservação do meio ambiente

natural (de quem fazem parte água, ar, solo, subsolo, flora e fauna). Isso poderia

ocorrer pela interpretação restritiva que se faz do já citado art. 3º da Lei nº 6.938/81,

que traz o conceito legal de meio ambiente.

Ocorre que a garantia do meio ambiente cultural foi expressamente

recepcionada pela Constituição Federal, segundo a qual incumbe ao Poder Público

e à coletividade proteger o patrimônio cultural, constituído pelos bens de natureza

material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, que se relacionem à

identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade

brasileira42.

Os bens relacionados à nossa cultura integram a categoria de bens

ambientais e, por isso, bens difusos, sem a destinação para um titular específico.

Fiorillo (2008) explica que o meio ambiente carrega uma conotação multifacetária,

“porquanto o objeto de proteção verifica-se em pelo menos quatro aspectos distintos

(meio ambiente natural, artificial, cultural e do trabalho).”

E uma das maneiras de efetivar essa garantia é por meio do tombamento. O

conceito desse instituto jurídico ajuda a entender o porquê do argumento de EUe ao

enfatizar que, se a comunidade Porto Coris for considerada remanescente de

quilombos, a construção da UHE de Irapé não é sustentável. Tombamento

ambiental, de acordo com Sirvinskas (2009, p. 564), “é o instrumento administrativo

utilizado para proteger bens imóveis dotados de valor cultural ou natural.”

Recorrendo ainda à doutrina de direito administrativo, Di Pietro (2008, p. 129) aponta

que

o tombamento é uma forma de intervenção do Estado na propriedade privada, que tem por objetivo a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, assim considerado pela legislação ordinária, “o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico” (art. 1º do Decreto-lei nº 25, de 30-11-37, que organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional).

Dessa maneira, caso a área ocupada pelos membros da referida comunidade

fosse efetivamente de quilombolas (descendentes de quilombos), deveria, por lei,

ser tombada, não podendo a Cemig promover a implantação das obras necessárias

42

Cf. art. 215 e 216, § 1º da Constituição Federal.

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para a construção da usina. Isso se daria em razão do § 5º do art. 216 da

Constituição de 1988, por EUe para corroborar suas afirmações e cujo conteúdo

expõe que: “ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de

reminiscências históricas dos antigos quilombos.”

Com referência à outra citação legal do enunciado, reforça-se, ainda, o valor

argumentativo com o uso de outro recurso do procedimento discursivo, a definição,

sendo que esta abarca o modo de organização descritivo: “o direito à reprodução

social nas terras tradicionalmente ocupadas a que alude o art. 68 do Ato das

Disposições Constitucionais Transitórias”.

Na realidade, esta definição amplia e explica o que é disposto no texto legal,

uma vez que o art. 68 em questão expressamente diz que: “Aos remanescentes das

comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a

propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.

Encerra-se a configuração do imaginário sociodiscursivo da função social da

propriedade, o qual fundamenta e dirige a enunciação jurídica na

contemporaneidade.

A função social da propriedade remonta a discursos não necessariamente

jurídicos. Considerando o panorama mundial, ela pode ser resgatada, por exemplo,

no discurso da Igreja Católica que buscava reconhecer uma índole social da

propriedade privada. Gama (2007, p. 05) lembra a doutrina cristã de São Tomás de

Aquino, na Suma Teológica, segundo a qual “os bens disponíveis na terra

pertencem a todos, sendo destinados apenas provisoriamente à apreensão

individual.”

Posteriormente, o Código Civil Francês de 1804, motivado pelos ideais da

Revolução Francesa e buscando concretizar a noção de liberdade social e política,

passa a considerar a propriedade individual de modo absoluto, irrestrito e

incondicional.

Essa visão da burguesia quanto à propriedade é contestada pelo marxismo e

pelo texto de duas constituições: a alemã de Weimar (1919) e do México (1917), os

quais defendem que a propriedade não pode ser exercida em detrimento do

interesse social43.

Esses dois textos constitucionais influenciaram o direito brasileiro,

43

Cf. Gama, 2007, p. 07 e 13.

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primeiramente no tocante à Constituição de 1934, na qual aparece pela primeira vez

menção expressa à orientação de que: “é garantido o direito de propriedade, que

não poderá ser exercido contra o interesse social ou colletivo, na forma que a lei

determinar.44”

Mas é a Constituição de 1988 o grande divisor de águas na questão atinente

à chamada função social da propriedade, que passa a fazer parte dos direitos e

garantias fundamentais. Nesse texto podemos verificar a materialização do

imaginário da função social da propriedade embasando a estrutura do discurso

jurídico atual: “é garantido o direito de propriedade” e “a propriedade atenderá a sua

função social” (CF/88, art. 5º, incisos XXII e XXIII, respectivamente).

O enunciado que analisaremos a seguir, ainda na página 06 da exordial,

pragmaticamente estampa a proposição do sujeito argumentante com relação à

comunidade de Porto Coris:

É erigido outro sistema de valores próprio da garantia do meio ambiente

cultural: o que sustenta o imaginário de proteção à identidade. A atividade discursiva

jurídica não só replica esse imaginário em textos legais e doutrinários específicos do

Direito Ambiental, mas tem-no instaurado em outras enunciações. Nesse sentido,

precisamos realizar uma incursão no Direito Civil e Direito Constitucional.

Francisco Amaral (2006, p. 247) explica que os denominados “direitos da

personalidade são direitos subjetivos que têm por objeto os bens e valores

essenciais à pessoa, no seu aspecto físico, moral e intelectual.” Enquanto direitos

subjetivos, propiciam aos seus titulares, ou seja, qualquer indivíduo, o poder de agir

em defesa deles.

O aludido autor (op. cit., p. 248) divide os direitos da personalidade, de acordo

com os aspectos acima apontados. Quanto ao aspecto físico, são exemplos o

direito à vida e ao corpo; com relação ao aspecto intelectual, pode-se elencar o

direito à liberdade de pensamento e o direito de autor e de inventor e no aspecto

moral, arrolam-se, exemplificativamente, os direitos à liberdade, à honra, à imagem e

44

O texto se refere ao art. 113, nº 17, da Constituição Brasileira de 1937, cuja redação original foi

mantida.

Dessa maneira, preferiu-se negar a existência da identidade própria da referida comunidade, subestimando-se, em decorrência, os impactos negativos da hidrelétrica, para se justificar, mesmo que de forma completamente irregular, sua viabilidade em termos sócio-ambientais!

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também à identidade.

A discussão teórica e legislativa relacionada aos direitos da personalidade é

relativamente recente. Segundo Fiuza e Gama (2007), tais direitos foram

especificamente inseridos no ordenamento jurídico brasileiro na parte geral do

Código Civil publicado em 200245.

A despeito de o instituto dos direitos da personalidade ser novo, os valores

que mobilizam esse imaginário já permitiram uma importante construção de

possíveis características desses direitos46. Seriam eles genéricos, isto é, concedidos

a todos; absolutos, pela prerrogativa de serem exigíveis da coletividade;

extrapatrimoniais, por não terem natureza econômica; imprescritíveis, não havendo

prazo para o seu exercício; inalienáveis ou indisponíveis (salvo alguns, como os

autorais, o direito à imagem que podem ser transferidos a terceiros); irrenunciáveis,

pois não pode-se abdicar deles; necessários, porque todos os detém, em razão da

lei; essenciais e preeminentes, visto que têm mais valor que os demais direitos.

Lemos em Amaral (2006, p. 251) que

Esse conjunto ou esse complexo unitário de natureza física, psíquica e moral, vem a justificar um direito geral de personalidade que se constrói a partir do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana.

Dessa forma, verificamos que o embasamento do imaginário sociodiscursivo

de proteção à identidade enquanto direito da personalidade encontra eco no

princípio constitucional da dignidade humana. E o texto constitucional de 1988 o

trata como um dos fundamentos da República, senão vejamos:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) III – a dignidade da pessoa humana.

Diante dessa perspectiva do enunciado constitucional, é preciso enfatizar que

todas as relações jurídicas devem obediência ao princípio da dignidade da pessoa

humana, razão por que EUe lança mão dessa vigorosa estrutura argumentativa de

45

Carlos Roberto Gonçalves (2010, p. 183), no entanto, explica que desde a Antiguidade já havia a discussão dos chamados direitos humanos, com o incremento do Cristianismo. Menciona, ainda, que os direitos da personalidade são reflexos da Declaração dos Direitos do Homem, de 1789 e de 1948, das Nações Unidas, bem como da Convenção Europeia de 1950. 46

Buscamos referências teóricas em Amaral (2006, p. 249-252) e em Fiuza e Gama (2007, p. 16, 17)

para a descrição das características dos direitos da personalidade.

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atrelar a situação dos indivíduos da comunidade de Porto Coris ao direito à

identidade e, por consequência lógico-jurídica, à dignidade humana.

Na página 07 da petição inicial, EUe ampara sua persuasão num importante

recurso relacionado ao procedimento discursivo de citação. Ele começa a colacionar

literalmente trechos do relatório da Fundação Cultural Palmares. Ao citar esses

excertos, o sujeito enunciador lança mão de um argumento de autoridade, visto que

a Fundação é a voz digna de fé para atestar a condição de quilombola à

comunidade de Porto Coris.

Nessa perspectiva, consideramos relevante mais uma utilização da definição,

no momento em que no relatório descreve-se a figura do escravo Germano Alves

Coelho relacionado sua vida à comunidade local:

O Modo Descritivo define outra forma de organização do discurso. Descrever

consiste em ver o mundo com um “olhar parado” (CHARAUDEAU, 2009a, p. 111)

que faz existir os seres ao, de modo particular, nomeá-los e atribuir-lhes qualidades.

Nesse caso, a descrição do ex-escravo busca localizá-lo e situá-lo, no sentido

de determinar o lugar que ele ocupa no espaço e no tempo, tendo por finalidade a

atribuição de uma característica a esse ser. A pessoa de Germano Alves Coelho

confunde-se com a mesma comunidade de Porto Coris, cujos habitantes descendem

desse escravo e estabelecem não só laços de parentesco, mas de pertencimento,

de afinidade, de solidariedade, partilhando não só bens materiais como o fruto do

trabalho e a água, mas a própria vida. Esse é o fio condutor da argumentação de

EUe.

Vale destacar novamente que a forma como expomos nossas ideias também

contribuem para a fabricação (conscientemente ou não) do nosso ethos. Ao se

pretender garantir a proteção dos povos que descendem de escravos, o Ministério

Público Federal estrutura um ethos de justiça social, como se a sociedade devesse

uma retribuição da dignidade que fora tirada historicamente desses indivíduos.

O imaginário que sustenta esse ethos não deriva apenas da Constituição da

“Toda a comunidade de Porto Coris identifica-se e é identificada através de laços de parentesco que estabelecem entre si, como descendentes do ex-escravo Germano Alves Coelho. Este ancestral comum que fora casado três vezes, constitui o núcleo fundamental pelo qual os descendentes das três mulheres de Germano orientam-se, identificam-se, estabelecem relações de parentesco e afinidade, laços de solidariedade no trabalho comunitário dos mutirões e na partilha dos bens comuns, como o reservatório de água (...)”

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República. Lenza (2008, p. 765) aponta o discurso da 6ª Câmara de Coordenação e

Revisão do Ministério Público Federal, órgão setorial de coordenação, de integração

e de revisão do exercício funcional dos Procuradores da República, que ao discorrer

sobre a proteção das chamadas “minorias étnicas”, dentre elas os quilombolas,

expõe que:

Todos esses grupos têm em comum um modo de vida tradicional distinto da sociedade nacional de grande formato. De modo que o grande desafio para a 6ª CCR, e para os Procuradores que militam em sua área temática, é assegurar a pluralidade do Estado brasileiro na perspectiva étnica e cultural, tal como constitucionalmente determinada.

Segundo nosso ponto de vista, o imaginário sociodiscursivo de justiça social

também remonta à questão da proteção das minorias, a qual embasa o discurso das

chamadas ações afirmativas, cuja agenda tem uma visibilidade cada vez maior no

cenário histórico do Brasil.

Referido tema é tratado como política de governo. O Decreto nº 4.228, de 13

de maio de 2002, institui o Programa Nacional de Ações Afirmativas, no âmbito da

Administração Pública Federal, buscando desenvolver estratégias de promoção

social para mulheres, afrodescendentes e pessoas portadoras de necessidades

específicas. Ainda visa a garantir a promoção dos direitos humanos e eliminar as

desigualdades de gênero e de raça.

Joaquim Barbosa Gomes (2001, p. 40), Ministro do Supremo Tribunal

Federal, expõe que

Atualmente, as ações afirmativas podem ser definidas como um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero e de origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego.

Em tempos de discursos inflamados – tanto favoráveis, quanto contrários –

acerca dos direitos de gays (reconhecimento judicial da união de pessoas do mesmo

sexo; adoção por pares homoafetivos etc.), das cotas em universidades para negros

e indígenas, do aumento das mulheres no mercado de trabalho, o imaginário das

ações afirmativas está na pauta das discussões políticas.

Da página 08 a 28 da petição inicial, o sujeito enunciador prossegue com o

processo de persuasão voltado ao convencimento e adesão do sujeito alvo de sua

argumentação, retomando o parecer da Analista em Antropologia vinculada ao

Ministério Público Federal. Mais uma vez, é utilizado, por conseguinte, o argumento

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de autoridade, da “expert” (como é chamada na página 08), trazendo à petição inicial

extensas citações literais do parecer. Inúmeros recursos referentes aos

procedimentos semânticos e discursivos são utilizados, bem como alguns

procedimentos de composição, sobre os quais passaremos a discutir.

Antes disso, todavia, vale uma breve digressão a respeito da configuração do

gênero petição inicial. O inciso VI, do artigo 28247 do Código de Processo Civil,

determina que nela deve-se indicar “as provas com o que o autor pretende

demonstrar a verdade dos fatos alegados.”

Este parecer da Analista do Ministério Público não é uma prova pericial em si.

Seria se o juiz tivesse nomeado um perito para confeccionar um laudo a ser juntado

no processo48, com a finalidade de que ele fornecesse informações técnicas

necessárias ao convencimento do juízo.

O parecer utilizado como argumento de autoridade pelo sujeito enunciador da

petição inicial analisada é um documento do perito de sua confiança, razão pela qual

funciona como prova documental, no sentido de fundamentar suas alegações.

Dito de outro modo, a prova pericial pode ser requerida pelas partes, mas tem

de ser determinada pelo magistrado, que nomeará profissional de sua própria

confiança. Já o parecer juntado ao processo por autor ou réu serve como recurso

argumentativo.

Ao trazer o conhecimento técnico de sua perita, o MPF suscita uma visada de

demonstração, procurando estabelecer uma verdade capaz de ratificar, provar os

fatos por ele defendidos. O domínio de avaliação é o da verdade do discurso

científico, tendo por origem a postura de um especialista. Isso garante força à

enunciação.

A analista, na página 08, 09 da petição, enfatiza que

A partir dessa conclusão da perita, EUe lança mão de um recurso do

procedimento discursivo, promovendo uma acumulação, quando expõe que deve ser

47

Conforme já explicitado nesta pesquisa, o artigo 282 do Diploma Processual Civil trata dos requisitos da petição inicial. 48

De acordo com o artigo 421 do Código de Processo Civil.

a concessão da Licença Prévia ao empreendimento de Irapé ocorreu sem que fossem avaliados os efeitos legais da presença, entre a população atingida, de uma comunidade remanescente de quilombo, como tal oficialmente reconhecida pelo Estado.

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invalidado o procedimento de elaboração, análise e aprovação do EIA/RIMA da UHE

Irapé, por uma dúplice razão (página 09 da petição inicial):

1) “a negar a especificidade própria da Comunidade Negra de Porto Coris, a Cemig

e os órgãos ambientais desqualificaram-na como um interlocutor que apresenta

identidade étnico-cultural própria (...)” e

2) “a subestimação dos impactos negativos sobre as tradições e valores do grupo,

que se atrelam umbilicalmente ao próprio reconhecimento da comunidade como

remanescente de quilombo, acabou por impor distorções significativas na formação

do juízo de viabilidade sócio-ambiental do empreendimento.”

Ainda na página 09, o sujeito enunciador aponta que os réus poderiam alegar

que – após a aprovação do EIA/RIMA e concessão da licença prévia referente à

Usina de Irapé –, a negativa de identidade própria da comunidade referida poderia

ter sido sanada em virtude da estipulação, por parte da ANEEL, da obrigatoriedade

de a Cemig “atender recomendações específicas da Fundação Cultural Palmares,

quanto à mitigação dos impactos negativos do empreendimento sobre a comunidade

negra em consideração.” Entretanto, esse não é o entendimento de EUe, que

enfaticamente expõe:

Notamos da mesma forma nesse enunciado uma aferição de julgamento

daquilo que deveria ser da ordem do ético. A construção instaura o procedimento

semântico tomando por pressuposto o domínio de avaliação de uma conduta imoral

que deve ser rechaçada pelo sujeito destinatário juiz.

A cláusula do contrato firmado entre a Cemig e a ANEEL, a qual posterga

para depois da aprovação do EIA/RIMA a aplicação de medidas mitigadoras dos

impactos socioambientais sobre os indivíduos de Porto Coris é tida como absurda

pelo sujeito enunciador. Neste trabalho já dissemos que a constituição da petição

inicial se coaduna plenamente com uma visada argumentativa. A todo instante, o

MPF, mediante sua configuração de “representante do povo” busca construir sua

enunciação exclusivamente para convencer o magistrado de que a construção da

Usina de Irapé não é viável ambientalmente.

Na perseguição desse desiderato, EUe utiliza certos recursos expressivos na

No entretanto, a existência dessa cláusula somente amplifica as distorções e irregularidades do procedimento de licenciamento ambiental da UHE Irapé, além de transformar a agência reguladora do setor elétrico em outro agente no processo de mascaramento dos impactos sócio-ambientais do empreendimento.

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sua enunciação escrita. Há todo um tom imperativo, daquele que se impõe, que fala

com autoridade. Emerge, assim, um ethos de indignação com o status quo dos fatos

narrados na petição (nós retomaremos a discussão desse tipo de ethos mais à

frente).

As distorções e irregularidades perpetradas pela empreendedora são

“amplificadas” pela ANEEL, que deveria ser o órgão federal para fiscalizar

justamente a regularidade dos atos e contratos atinentes à execução do serviço de

energia elétrica no país. O verbo “amplificar” se enquadra na dimensão do aumento,

daquilo que é, ou pelo menos, tem de ser “ouvido” por todos.

Ainda, em decorrência de os parceiros do ato linguageiro não estarem

presentes fisicamente, outro recurso expressivo é usado: a sentença é grifada e

sublinhada denotando a relevância do que é enunciado.

Ao se apontar a inclusão da ANEEL num “processo de mascaramento”, é

gerado um efeito de sentido da seara da falsidade, da mentira, do engodo, do

escamoteado. Como se os sujeitos envolvidos nos trâmites do licenciamento

ambiental não tivessem agido com a devida transparência, imprescindível para um

ato administrativo desse porte.

Vemos na página 10 que o sujeito argumentante recorre novamente ao

procedimento discursivo da citação, textualmente mencionando a fala da

antropóloga do MPF:

A construção do procedimento semântico por meio da instituição do

imaginário de proteção do meio ambiente cultural aqui é revista em outra gradiência:

a que se direciona para o valor da memória. A referência a esse valor é

discursivamente recuperada no art. 216 da Constituição Federal, especificando que

o patrimônio cultural se configura em bens referentes à memória dos diferentes

grupos formadores da sociedade brasileira, dentre eles os quilombolas.

Sob o nosso ponto de vista, outro texto constitucional deve ser retomado no

sentido de descrever esse imaginário: o caput do art. 225 expõe que todos terão o

“(...) se o EIA/RIMA não levantou exaustivamente os impactos que decorreriam, para Porto Coris, do empreendimento de Irapé – não considerou, por exemplo, a existência de um território comum portador de referências à memória e identidade de grupo – tampouco o terá feito a equipe encarregada da elaboração do diagnóstico acima citado [estudo encomendado pelo empreendedor para negar a identidade da comunidade negra em questão].

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direito ao meio ambiente equilibrado, cabendo “ao Poder Público e à coletividade o

dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.” Essa

obrigatoriedade de preservação ambiental tanto na atualidade quanto no futuro se

confunde com o próprio valor de sustentabilidade. E a memória de um povo,

considerando esse imaginário, acaba inserindo-se nessa proteção legal.

A antropóloga, na condição de quem atesta sua experiência profissional, dá

credibilidade e um efeito de autenticidade para a argumentação de EUe, pois a

própria perita do MPF faz o julgamento imperativo de que o Diagnóstico sócio-

histórico da Cemig foi produzido deliberada e notadamente para negar a condição

de remanescente de quilombola à comunidade em comento. Não é o sujeito

argumentante quem está falando, é um expert que hipoteca a veracidade das

afirmações. O intuito é que o enunciado tenha valor demonstrativo, na perspectiva

de que os fatos – tidos como verdadeiros – não deem margem a questionamentos.

Retomemos o enunciado que faz menção à terceira proposição do dispositivo

argumentativo, configurado na página 11:

EUe estrutura outras estratégias persuasivas, para corroborar essa

proposição: à comunidade de Porto Coris, cujo objeto de debate vem sendo

longamente desenvolvido, somam-se agora as demais comunidades localizadas no

entorno da área da barragem de Irapé. Isso se mostra útil em termos de

argumentação, já que serão disponibilizados novos elementos que podem contribuir

para o convencimento do TUd magistrado. Ganha força a proposta inicial de EUe de

que a usina não é viável e que por essa razão fere o imaginário de desenvolvimento

sustentável.

A fim de estruturar sua tessitura persuasiva, continua o sujeito enunciador

lançando mão do recurso de citação do trabalho da antropóloga pertencente ao

quadro de servidores do MPF.

Por outro lado, não foi, apenas, a identidade específica da Comunidade Remanescente de Quilombo de Porto Coris que foi negada no procedimento de EIA/RIMA da UHE Irapé. Nem, tampouco, foi esta sequer a maior das irregularidades identificadas na análise técnica promovida pela Antropóloga A. F. M. S. Com efeito, no procedimento destinado à formação do juízo de viabilidade sócio-ambiental da hidrelétrica em tela, também não se reconheceram, tanto à mencionada comunidade negra, quanto a diversas outras comunidades localizadas na área diretamente afetada pelo empreendimento, as frágeis e específicas estratégias de reprodução social, baseadas em um intricado sistema de posse comunal da terra, próprio do Alto Jequitinhonha e conhecido pela peculiar denominação de “terra no bolo”.

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Toma lugar o procedimento discursivo com a explicitação de um extenso rol

de definições – especificamente das páginas 12 a 20 da petição inicial –, com o

intuito de fundamentar a referida proposta do sujeito enunciador da não viabilidade

ambiental do empreendimento, em razão das comunidades locais e de sua forma de

reprodução social. Selecionamos cinco definições, materializadas nos seguintes

excertos:

a) “aquisição da terra” (página 12), em que a antropóloga recorre a um saber de

outra cientista, Galizoni (um argumento de autoridade dialogando com outro

argumento de autoridade):

É evocada a questão do desenvolvimento sustentável no seu escopo de

garantia dos bens ambientais para as futuras gerações. Esse imaginário é valorizado

pela autoridade científica que enfatiza uma relação de continuidade semântica entre

“dono da terra” e “herdeiro” e igualmente entre “terra” e “patrimônio familiar”. Não só

se pensa em proteger o aspecto cultural, mas o material, da aquisição da

propriedade em sim mesma, no caso por hereditariedade. Tal enfoque não se

distancia da sustentabilidade porquanto esta abarca também um caráter de

crescimento econômico e a talvez a única forma de subsistência da população do

Jequitinhonha seja a do cultivo da pequena agricultura familiar.

b) “família” (página 13), mais uma vez trazendo o dizer de Galizoni:

De acordo com a definição utilizada como procedimento discursivo, a família

não é pensada apenas como núcleo de reprodução, composta por pais e filhos. O

sentido é extrapolado para a família enquanto um grande grupo unitário, na qual a

comunidade de liga pelo fato de possuir um ancestral comum.

Galizoni constata que, na região, o acesso à terra está pautado pelas relações de parentesco, constituindo a herança a principal via de acesso a esse recurso básico: “A principal forma de se adquirir terra nessa região é através da herança, própria ou do cônjuge (...). Assim, o dono da terra é antes de tudo um herdeiro, e a terrra é principalmente um patrimônio formado pela família.”

Se as relações familiares são determinantes para a compreensão do regime agrário local, torna-se necessário esclarecer qual o significado que o termo ‘família’ adquire regionalmente. Ressalta Galizoni que, no Alto Jequitinhonha, este termo articula dois sentidos: representa, por um lado, uma unidade de reprodução – a família nuclear ou conjugal, formada pelo casal e seus filhos (...). Mas significa também rede de parentesco – uma família extensa ou ampliada, derivada de um ancestral comum (...) – o fundador do grupo –, o primeiro ocupante ou posseador da terra. (...) Os laços de consangüinidade com o dono original são fundamentais no acesso efetivo a uma terra específica, constituindo a memória e a genealogia, saberes cultivados em todas as comunidades.

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Em termos semânticos, o valor da memória da comunidade se atrela à própria

terra, fisicamente considerada. A troca de relações de afetividade se dá num espaço

físico determinado, onde são partilhados certos saberes.

Pensamos que o efeito de sentido desse enunciado pode se voltar para a

seguinte direção: nós somente nos instituímos como sujeitos no e pelo discurso. Os

projetos de fala apenas se concretizam se houver um repertório de saberes

partilhados entre os falantes. A enunciação em si mesma é o produto da interação

verbal entre falantes sócio-historicamente constituídos. Referidos saberes é que

propiciam que os indivíduos signifiquem no mundo. Se o locus dos membros das

comunidades é retirado, muitos dos saberes partilhados podem se perder, correndo-

se o risco de lhes ser tolhida a fala e, com ela, a significação de quem são.

Em seguida, são elencadas três definições na perspectiva de se descrever o

sistema produtivo da região: “terra no bolo”, “complexo grota-chapada” e “posse”.

Vamos colacionar os três seguidamente para a ulterior análise:

c) “terra no bolo” (“embolada”), na página 14 da petição:

d) “complexo grota-chapada”, definição essa explicada no laudo da antropóloga do

MPF (página 15):

A “terra indivisa no interior de uma família” (...) ganha, localmente, o nome de terra no bolo ou na embolada, situação definida da seguinte forma por uma informante citada por Galizoni: “É um terreno só e todo mundo mora nele. Só tem divisão das mangas, das roças, das casas, cada um tem seu arame. A terra é tudo junto, o resto é separado.” Este regime dificulta a venda de terras; as negociações ocorrem em torno dos direitos de herança, e preferencialmente entre parentes. Tais negociações, ressalva a autora, não são concebidas como venda de terra: esta não se vende, patrimônio que é de todo o grupo: o que se vende é o direito de trabalhar a terra.

O Estudo de Impacto Ambiental descreve a Área Diretamente Afetada como composta por vales e encostas – grotas, na acepção local, áreas úmidas próximas a córregos e nascentes –, em que residem e trabalham as famílias dos pequenos produtores (...). As chapadas – “grandes extensões de terras planas e elevadas, (...) pouco férteis, com escassas fontes de água” – se contrapõem às grotas, sendo normalmente utilizadas para a extração de recursos naturais ou pastagem comunitária. Constituem espaços complementares às grotas: as “gradações do relevo”, informa Galizoni, compõem um complexo que compreende uma totalidade – o complexo grota-chapada.

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e) “posse”, em que o desenvolvimento da definição se dá pela citação de Galizoni,

na páginas 19 e 20 da petição inicial:

Chamou-nos a atenção que ao descrever a denominada “terra no bolo”, a

antropóloga, cujo discurso representa o argumento de autoridade do assunto, traz

novamente a fala de outra especialista, Galizoni, que por sua vez se vale de outro

discurso: o do depoimento de quem ela chama de “informante”. Este recurso de

citação é interessante na medida em que não se reporta a um argumento de outra

autoridade, mas sim de uma testemunha (possivelmente que reside na região ou

que tem o conhecimento necessário para informar o que sabe). O argumento que

fundamenta a fala de Galizoni – o qual sustenta o dizer da antropóloga do MPF – é

de alguém que tem a vivência para poder enunciar. Apesar de anônima (trata-se de

“uma” informante), é conhecedora do assunto “pisando” na terra local, talvez

“sofrendo” as mesmas angústias do povo da comunidade. A menção ao seu nome

não é tão importante, pois o que interessa é a sua experiência.

Aponta-se que devido à forma de ocupação indivisa da terra, torna-se difícil

sua venda. Este argumento do MPF é instaurado para justificar a impossibilidade de

a Cemig ressarcir as famílias locais quando do “reassentamento” das famílias. O que

acontece em casos como esse é que a empreendedora, por utilizar as terras da

região para as obras necessárias à construção da usina, tem de garantir a

realocação dos atingidos, o que se dá por meio de várias iniciativas como o repasse

de novas terras, a estrutura básica para a primeira colheita, com entrega de

sementes aos lavradores etc. Mais uma vez, sob o nosso ponto de vista, é evocado

o imaginário de preservação do meio ambiente cultural, visto que a terra é um

legado deixado por herança e a retirada das famílias dos locais específicos onde

vivem desde a formação identitária da comunidade pode, em tese, ensejar a perda

de valores culturais importantes para os indivíduos da localidade.

Outra nuance importante é que nessa enunciação se considera a dificuldade

“Um grupo familiar combina, geralmente, glebas de terras de uso comum e outras de apropriação individual. Entretanto, isto não exclui esta última de obrigações comunitárias: a existência da posse individual é restringida e subordinada aos direitos comunitários. Estes são os direitos de exploração dos recursos da natureza. As famílias são donas, plenamente, apenas dos frutos de seu trabalho, as culturas, podem ser objeto de apropriação individual. Mas os recursos da natureza – as dádivas – são disponibilizadas a todos os membros da comunidade, mas só para eles” (grifos deles).

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da venda das terras em razão de as negociações girarem em torno de direitos de

herança, “preferencialmente entre parentes”. Discursivamente, há a retomada do

imaginário do desenvolvimento sustentável no âmbito de preservação do ambiente

para as futuras gerações, a exemplo do que determina a lei maior brasileira, no art.

225. José Adércio Leite Sampaio (2003, p. 53) nomeia a isso o ‘Princípio da

eqüidade intergeracional’. O emprego do termo ‘intergeracional’ semanticamente se

justifica, pois traz a ideia de que a preservação do ambiente deve se concretizar

entre os representantes da geração presente e os da futura, no sentido de que o

benefício ambiental obrigatoriamente deve ser garantido, independentemente do

lapso temporal que separe os indivíduos. Diante da perspectiva proposta pelo EUe,

o que interessa aos indivíduos da região é a preservação especificamente da terra

em que habitam, pelos laços familiares, culturais e produtivos oferecidos por ela.

Ao se descrever o “complexo grota-chapada” e também a forma de “posse”,

próprios do sistema produtivo da região, não só emerge o imaginário sociodiscursivo

da proteção do patrimônio cultural, como também o da necessidade de se evitar

impactos socioambientais negativos.

No que concerne à definição desse complexo, a antropóloga utiliza o próprio

Estudo de Impacto Ambiental apresentado pela Cemig (em 1993) para descrever o

referido complexo.

O sujeito enunciador, por inúmeras vezes na petição inicial, projeta seus atos

persuasivos objetivando colocar em xeque a credibilidade deste EIA/RIMA. Neste

momento, novamente faz menção a ele, igualmente como estratégia para

desconstruir sua validade. Entendemos que se configura um efeito de sentido de

que, se o próprio documento elaborado pela Cemig define elementos do sistema

produtivo dos moradores dos municípios vizinhos do local onde será erigida a usina

e, em seguida, não leva em conta os impactos que a construção gerará, está

minimizando todos os efeitos negativos que serão impingidos às pessoas.

Perguntamo-nos se não seria mais lógico se a produção do EIA/RIMA fosse

de responsabilidade de um órgão ambiental público, o qual, em tese, atuaria com

mais imparcialidade e isenção na análise dos mencionados impactos.

Verificamos que isso não ocorre. À época em que o EIA/RIMA da UHE de

Irapé foi produzido vigorava a Resolução CONAMA nº 01/86, a qual previa em seu

art. 7º que a realização do estudo prévio de impacto ambiental deveria ser realizada

por uma equipe multidisciplinar habilitada, não dependente direta ou indiretamente

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do proponente do projeto49.

A elaboração desse documento é bastante valorizada quando se trata

discursivamente do imaginário de desenvolvimento sustentável. Ratificando a

importância do princípio da prevenção, o § 1º, inciso IV do art. 225 da Constituição

Federal expõe que o estudo prévio de impacto ambiental será exigido para a

instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa

degradação do meio ambiente. No que tange à Irapé, o EIA/RIMA tomou lugar por

se tratar de projetos de usinas hidrelétricas com potência acima de 10 megawatts50.

Com referência à definição de posse, evoca-se novamente o imaginário da

função social da propriedade (a despeito de posse e propriedade serem institutos

jurídicos distintos, em cuja análise dos conceitos não nos deteremos). Isso porque a

apropriação individual, segundo enunciado, tem de se adequar às “obrigações

comunitárias” e aos “direitos comunitários”. Em termos enunciativos, essa

adequação não é da ordem do jurídico, mas do moral. Há, nesse sentido, a

retomada do imaginário do bem comum e da sujeição do interesse individual ao

interesse da coletividade. Essas regras são construídas pelo próprio povo,

sustentadas por valores partilhados ao longo do tempo. A retirada desses modos de

significar a própria realidade ensejaria, por conseguinte, uma desagregação, um

conflito de identidade e do reconhecimento de como a terra deve ser trabalhada.

Semanticamente, há uma associação explícita entre a expressão “os recursos

da natureza” e o vocábulo “dádivas”. Isso ganha relevância na medida em que

dádiva muitas vezes é relacionada à própria providência divina.

O dicionário Houaiss (2001, p. 903) aponta que o verbo “dadivar” diz respeito

a “presentear, mimosear” e traz como exemplo a oração: “Deus é quem mais pode

dadivar o homem”.

O discurso religioso não raro emerge quando se trata do imaginário de

proteção ao meio ambiente.

No artigo intitulado “Tutela Constitucional do Meio Ambiente”, Moumdjian

49

Consoante Fiorillo (2008, p. 99), o art. 11 da Resolução CONAMA 237/97 revogou o disposto na

antiga Resolução, passando a vigorar que: “Os estudos necessários ao processo de licenciamento deverão ser realizados por profissionais legalmente habilitados, às expensas do empreendedor. Parágrafo único. O empreendedor e os profissionais que subscrevem os estudos previstos no caput deste artigo serão responsáveis pelas informações apresentadas, sujeitando-se às sanções administrativas, civis e penais.” 50

De acordo com a Resolução CONAMA nº 01/86.

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(2008, p. 54) diz que “Deus nos deu o mundo e o universo, uma das maiores

dádivas da natureza; doutrinas jurídicas e as normas codificadas nada valerão, se,

no futuro não houver planeta ao qual aplicá-las.”

Leonardo Boff apresenta uma obra inteira dedicada à questão ambiental, cujo

nome já relaciona os valores religiosos com o imaginário de preservação: “Ecologia,

mundialização, espiritualidade”. Nela, o autor eleva o meio ambiente a um patamar

de bem espiritual:

A ecologia constitui um jogo complexo e completo de relações. Tudo inclui, nada negligencia, tudo valoriza, tudo concatena. A partir disso, resgata-se a intuição mais original do cristianismo – sua concepção de Deus. (...) Deus aponta em cada ser, acena em cada relação, irrompe em cada ecossistema (2008, p. 63, 64).

A Igreja Católica, na Campanha da Fraternidade de 2011, trouxe o tema

central “Fraternidade e a vida no planeta”, buscando discutir a questão ambiental.

No folheto oficial da campanha, menciona-se que o objetivo é “conscientizar a todos

sobre a importância de uma vida sustentável capaz de manter as conquistas do

mundo contemporâneo sem perder de vista soluções que tornem a preservação de

todas as formas de vida na terra”, numa clara alusão ao conceito de

desenvolvimento sustentável: conciliação do crescimento econômico, configurado

nas referidas “conquistas do mundo contemporâneo”, com a proteção de “todas as

formas de vida na terra”.

O que chama atenção é que esse foi um discurso oficial do clero católico e

não uma manifestação isolada de sacerdotes ou um movimento apartado da fala

institucionalizada da Igreja. A circulação e o alcance desse discurso atingiram um

sem número de indivíduos, fazendo emergir uma popularização do imaginário de

sustentabilidade. Sob o nosso ponto de vista, tal fenômeno pode ensejar, ainda que

indiretamente, um maior conhecimento por parte da população dos direitos

concernentes à tutela ambiental: fala-se mais sobre o meio ambiente nas conversas

informais que tomam lugar após as missas, cenário no qual as pessoas refletem

sobre seu papel social, o que o discurso religioso / doutrinário é capaz de suscitar.

Mas não é apenas na enunciação católica que o imaginário de preservação

associado ao discurso religioso emerge no Brasil. Tenzin Gyatso, mais conhecido

como o décimo quarto Dalai Lama, é líder religioso do budismo tibetano. Suas obras

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se popularizaram bastante no Brasil nos últimos anos. Segundo seu site oficial,

foram publicados mais de 50 títulos em português51. No livro “Uma ética para o novo

milênio”, numa visão até certo ponto laica, o autor expõe que:

Se existe uma área em que tanto a educação quanto a mídia têm especial responsabilidade, esta é, segundo creio, nosso meio ambiente. Outra vez essa responsabilidade tem menos a ver com certo e errado do que com a questão da sobrevivência. O mundo natural é nosso lar. Não é necessariamente sagrado ou santo, é simplesmente o lugar onde vivemos. Sendo assim, é do nosso interesse cuidar dele. Trata-se apenas de bom senso (2000, p. 203, 204).

Por conseguinte, entendemos que o discurso religioso, na sua interface com o

imaginário de preservação ambiental, acaba também por fundamentar os

imaginários relacionados ao desenvolvimento sustentável.

Na continuação de seu processo argumentativo, EUe lança mão mais uma

vez do procedimento semântico de valorar aquilo que é do domínio do ético,

considerando negativa a construção da Usina de Irapé. Ele aponta na página 20 da

petição inicial que a existência dos sistemas das “terras de bolo” associados ao

“complexo grota-chapada” demonstra que não só a Comunidade Remanescente de

Quilombo de Porto Coris, mas outros grupos “com estratégias de reprodução social

e manifestações étnico-culturais diferenciadas” seriam afetados, compondo uma

“população estimada de três mil pessoas, mas cujo contingente eleva-se para

cinco mil, caso se contabilizem aqueles que pertencem às comunidades, mas se

encontram temporariamente afastados, por efeito de migrações” (grifo e negrito

deles).

Vale lançar luzes sobre um efeito de sentido possível para o enunciado

acima: quando se trata de desenvolvimento sustentável, leva-se em conta a vida das

pessoas e, em se tratando da enunciação instaurada, do sistema produtivo e das

manifestações culturais dos indivíduos. Assinala-se o valor à vida, mas

extrapolando-se seu sentido meramente biológico. Outro imaginário sociodiscursivo

se faz observar: o da sadia qualidade de vida.

Há inúmeros discursos que retomam aludido imaginário no Direito Ambiental.

A Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente (Estocolmo, 1972),

declarou em seu Princípio 1 que o homem tem direito fundamental a “adequadas

condições de vida, em um meio ambiente de qualidade”. Diferente não foi o proposta

da ECO-92 (Rio de Janeiro), que declarou no Princípio 1 que os seres humanos

51

Cf. http://www.dalailama.org.br/ensinamentos/livros.php

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“têm direito a uma vida saudável.”

Paulo Affonso Leme Machado (2006, p. 54) enfatiza que não é suficiente viver

ou conservar a vida. Para ele, “é justo buscar e conseguir a ‘qualidade de vida’.”

Citando Fernando López Ramón52, Machado aponta que a qualidade de vida deve

ser um “elemento finalista do Poder Público”, em que a felicidade do indivíduo se

uniria ao bem comum. Nesse sentido, ter saúde não significaria em última instância

não ter doenças diagnosticadas, mas ter garantido que os elementos naturais, como

a água, o solo, o ar, a flora e a fauna estejam em condições salubres para o uso do

ser humano.

O art. 225 da Carta Política de 1988 igualmente fundamenta discursivamente

o referido imaginário ao dispor que todos têm direito ao meio ambiente

ecologicamente equilibrado essencial à sadia qualidade de vida. Segundo Fiorillo

(2008, p. 13), a concepção “‘essencial à sadia qualidade de vida’ reporta-nos aos

destinatários da norma constitucional, que somos todos nós.”

Édis Milaré (2004, p. 136, 137) aduz que o reconhecimento a um meio

ambiente sadio configura-se como extensão do próprio direito à vida, não só sob o

enfoque da existência física e a saúde das pessoas, mas quanto à dignidade dessa

existência, fazendo “com que valha a pena viver.”

Da página 20 a 25 da petição inicial, o sujeito enunciador faz uso, mais uma

vez, do procedimento discursivo de citação, tomando novamente a fala da perita do

Ministério Público Federal. Trata-se, de certa forma, de uma extensão citação (5

páginas, como mencionado acima), na qual são retomados os pontos principais que

solidificam os argumentos de EUe: as características socioambientais da região

onde a usina será implantada não foram consideradas na elaboração do EIA/RIMA

proposto pela Cemig.

Já nas páginas 26 a 28 da peça introdutória, o MPF, atuando na sua

dimensão de sujeito enunciador, traz a fala de outro expert, isto é, utiliza mais uma

emissão escrita de outro locutor, por intermédio de um laudo técnico juntado aos

procedimentos investigatórios instaurados pelo órgão ministerial. Trata-se do

“Economista e Historiador A. E. M. R., pesquisador da Universidade Federal de L.53”

52

RAMÓN, Fernando López. “El Derecho Ambiental como Derecho de la función pública de protección de los recursos naturales”, Cuadernos de Derecho Judicial XXVIII/125-147, 1994. 53

O nome do autor do laudo e o da universidade à qual ele é vinculado também serão omitidos, para

preservar sua identidade. Optamos por isso, devido ao fato de que este documento foi solicitado pelo Ministério Público Federal especificamente a este profissional específico, tal como procedemos com a

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O perito critica o EIA/RIMA da seguinte forma:

Algumas questões merecem ser destacadas: ao citar um pesquisador de uma

universidade federal, o enunciador baseia seu argumento no discurso acadêmico, o

qual emana do locus do conhecimento por excelência. Há todo um poder dizer

institucionalizado por parte do pesquisador universitário, pressupondo-se que suas

informações gozam de credibilidade científica. Seu discurso é socialmente

valorizado, na medida em que é desenvolvido por meio de um exercício de reflexão

intelectual, devendo, portanto, ser aceito como verdadeiro. Considerando-se os

procedimentos semânticos, tal estratégia lança mão do domínio da verdade, aquilo

que pode ser tratado como algo digno da confiança de todos.

No enunciado, percebemos um certo efeito de ironia no momento em que são

usadas as expressões “ficou mais fácil” e “aquilo que se desconhecia, permanece

desconhecido”. Nesse sentido, há uma visada de desqualificar o EIA/RIMA da

Cemig, como se o documento não tivesse sido criterioso o suficiente – ou até

mesmo tenha sido formulado negligentemente – ao se descrever as relações

socioambientais dos atingidos pela usina.

Notadamente é evocado o imaginário sociodiscursivo do desenvolvimento

sustentável, na sua dimensão do desenvolvimento econômico. Entretanto,

entendemos fundamental refletir acerca do que vem a ser “desenvolvimento

econômico”. Segundo o nosso ponto de vista, deparamo-nos com uma construção

que se dá no e pelo discurso. Explicamos: o que pode ser considerado

antropóloga do MPF. Caso tivesse sido feita referência a uma pesquisa sua que tivesse circulação pública (como foi o caso de Galizoni, nomeada nesta tese), citaríamos seu nome expressamente.

Mas a trama da lavoura de coivara e suas implicações sócio-econômicas-ambientais (sic.) revelou-se complexa demais para o RIMA da projetada UHE Irapé, pois ela articula terra, lavoura, cultura, sustento e meio ambiente. Ficou mais fácil chamar de lavoura de subsistência de baixa produtividade, aplicar uma norma geral desqualificadora sobre aquilo que se desconhecia, permanece desconhecido, mas no entanto se quer atingir, alterar, destruir. Propor desmontar a relação travada dos lavradores com o meio é o mesmo que propor destruir sua cultura, que é, afinal, sua vida. A integração entre aquela população e ambiente, a cultura que formou e desenvolveu, suas técnicas de recursagem, são muito mais complexas do que revela este RIMA. Ao desconsiderar estes laços e propor retirar esta população da terra a CEMIG cria mais alguns milhares de candidatos a beneficiários das campanhas contra a fome e a miséria, pois o risco óbvio é desagregar estes laços e promover um brutal desequilíbrio na sua vida, desenraizá-lo sem saber o que coloca no lugar (grifo dele).

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“desenvolvimento” para a região segundo a Cemig – com o reordenamento da

economia, gerando maior produção de energia, aquecimento do comércio e novos

empregos – pode não ser o desenvolvimento pretendido por determinados

moradores da região.

O EUe defende o que seria, segundo a sua convicção, o interesse da

população: a manutenção do sistema produtivo baseado no cultivo da terra,

culturalmente arraigado ao longo da história local. E para tanto, traz a citação de um

especialista em Economia e História – áreas de conhecimento que foram

devidamente informadas ao TUd-juiz. O desenvolvimento econômico, tal como

entendido pelo Ministério Público Federal, não coincide com a noção de

desenvolvimento proposta pela Cemig54, a qual aponta no EIA/RIMA um status quo

baseado no cultivo de uma “lavoura de subsistência de baixa produtividade”,

podendo, todavia, o arranjo econômico local ser incrementado com a construção da

usina. Ocorre que não se trata daquele que detém a verdade; o embate é

discursivo...

Percebemos igualmente um tom até certo ponto apocalíptico no excerto com

a fala do perito: sua análise descreve um cenário no qual a usina acabará por

extinguir a vida dos atingidos. Em dois momentos ele utiliza o verbo “destruir” (“mas

no entanto se quer atingir, alterar, destruir” e “é o mesmo que propor destruir sua

cultura, que é, afinal, sua vida.”) Mais abaixo, ele indica a promoção de “um brutal

desequilíbrio” na vida das pessoas envolvidas, caso tenham que ser realocadas em

decorrência da construção da barragem.

Ao dizer que a retirada da população “cria mais alguns milhares de candidatos

a beneficiários das campanhas contra a fome e a miséria”, o perito, na enunciação,

subverte totalmente a ótica de desenvolvimento propagada pela Cemig. Em vez da

prosperidade e da riqueza que a usina poderia ensejar, a população experimentaria

a pobreza extrema, passando por toda sorte de necessidades.

Na página 28 da petição inicial, no último parágrafo relativo à narrativa dos

fatos, o sujeito enunciador, a fim de retomar e ratificar os argumentos que tomaram

lugar nos seus atos de persuasão, usa o recurso de um procedimento de

composição classificatória: são elencados e subdivididos por letras os principais

pontos sobre os quais EUe se baseou. Vejamos:

54

Esta noção de desenvolvimento será discutida com mais pormenores quando discutirmos a matéria

jornalística de “O Tempo”, segundo gênero a ser analisado nesta pesquisa.

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Em termos discursivos, faz-se um resumo dos referidos argumentos, o que

suscita: i) um efeito de organização daquilo que foi discutido e ii) a reafirmação e

confirmação da “veracidade” dos “fatos”. Isso demonstra cuidado para com o TUd-

magistrado, o qual, pelo menos em princípio, visualizaria melhor o panorama

instaurado, podendo contribuir para o efetivo convencimento de TUi.

Mencionamos acima que o foco analítico da petição inicial voltar-se-ia mais

detidamente à narrativa dos fatos, já que por meio de sua discussão seria possível a

descrição dos procedimentos próprios do modo de organização argumentativo.

Entretanto, vale tecermos algumas considerações acerca dos fundamentos jurídicos

que tomaram lugar na petição inicial.

Foi feita alusão a vários preceitos da ordem jurídica, dentre eles normas de

caráter processual, legislações relativas ao meio ambiente e princípios do Direito

Ambiental (alguns dos quais já discutidos por nós, enquanto discursos fundantes de

imaginários sociodiscursivos): “da legitimação passiva dos requeridos” (páginas 29 e

30); “da necessidade de o procedimento de EIA/RIMA da UHE de Irapé contemplar

todos os impactos ambientais do empreendimento”, momento no qual é citado o

Princípio da Precaução / Prevenção e as normatizações sobre Licenciamento

Ambiental (Lei nº 6.938/81 – Política Nacional do Meio Ambiente – e Resoluções do

Conselho Nacional do Meio Ambiente – CONAMA, em que toma lugar uma extensa

descrição das regras relacionadas ao Estudo de Impacto Ambiental e o respectivo

Relatório de Impacto Ambiental – EIA/RIMA), das páginas 30 a 47.

Muito embora tenhamos consciência da importância desses dispositivos

jurídicos enquanto base legal capaz de subsidiar os argumentos do sujeito

enunciador, acreditamos ter realizado uma análise bastante considerável das

normatizações no seu diálogo e consequente fundamentação para a emergência de

a) A Comunidade Remanescente de Quilombo de Porto Coris teve sua identidade específica negada no procedimento de EIA/RIMA da UHE Irapé; b) Tanto a Comunidade Remanescente de Quilombo de Porto Coris, quanto as demais comunidades tradicionais (...) não tiveram seus modos de reprodução social e manifestações sócio-culturais específicas reconhecidos no procedimento de EIA/RIMA do empreendimento; c) No curso do processo de licenciamento ambiental da UHE Irapé, não restou demonstrada sua viabilidade sócio-ambiental, ao contrário, flagrantes irregularidades e imperfeições no procedimento de elaboração, apreciação e aprovação do EIA/RIMA do empreendimento tornam forçosa a conclusão de que impactos negativos sensíveis de sua implantação e operação não mereceram a devida atenção (...), razão por que a obra que se encontra prestes a ter início provocará significativos danos sócio-ambientais.

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imaginários sociodiscursivos. Falando de outra maneira, quando, nesta pesquisa,

fizemos referência às legislações e princípios do Direito Ambiental, nossa

abordagem era no sentido de avaliá-los e descrevê-los como discursos estruturantes

dos imaginários. Buscamos em toda análise empreendida até aqui não perder esse

foco de natureza linguística.

Todavia, no intervalo das páginas 48 a 51, EUe traz uma questão, a nosso ver

importante, e que ainda não havia sido explicitamente discutida, por ele

denominada: “Da indenizabilidade dos danos extrapatrimoniais já causados às

comunidades tradicionais do Alto Jequitinhonha”. Num primeiro momento são

apontadas algumas legislações que regulam a matéria, tais como as que definem o

direito de livre participação na vida cultural da comunidade, citando-se o art. 215 da

Constituição de 1988, a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) e a

Carta da organização dos Estados Americanos (1948). Logo em seguida o sujeito

enunciador recontextualiza a situação da comunidade da região onde seria

implantada a Usina de Irapé, no sentido de que os réus não consideram as

peculiaridades da população quando do processo de elaboração, análise e

aprovação do EIA/RIMA, argumento recorrente na petição inicial.

Dois enunciados em especial nos chamam a atenção, respectivamente das

páginas 49 e 50:

Um novo imaginário sociodiscursivo é retomado, aquele que trata da

“reparação do dano ambiental”. Há um fecundo diálogo entre discursos que

sustentam esse ideal de recompor o prejuízo causado ao meio ambiente.

Na ECO-92 houve previsão expressa quanto ao chamado princípio do

poluidor-pagador, senão vejamos o Princípio 16:

As autoridades nacionais devem procurar promover a internacionalização dos custos ambientais e o uso de instrumentos econômicos, tendo em vista a abordagem segundo a

Que dano maior, de índole extrapatrimonial, pode haver para essas comunidades culturalmente diferenciadas do que a negativa de sua identidade cultural? Que dano poderia suplantar a negativa de sua própria existência e, por via de consequência, de seus modos de vida social peculiares?

Nesse contexto, só com muito esforço se pode mensurar a enorme dor coletiva a que se encontram submetidas todas essas comunidades: Ameaçadas de completa dissolução, não podem, sequer, ser ouvidas, não podem, nem mesmo, dizer: “olhem, nós temos valores específicos que devem ser preservados”, pois, para os Réus, elas simplesmente não existem!

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qual o poluidor deve, em princípio, arcar com o custo da poluição, com a devida atenção ao interesse público e sem provocar distorções no comércio e nos investimentos internacionais (grifo nosso).

De modo equivocado, poder-se-ia pensar que mencionado princípio confere

ao causador do dano a permissão para poluir desde que pague para isso.

Entretanto, discursivamente o que se pretende é bastante diverso. Segundo Fiorillo

(2008, p. 37), identificam-se duas órbitas de alcance: “a) busca evitar a ocorrência

de danos ambientais (caráter preventivo); e b) ocorrido o dano, visa sua recuperação

(caráter repressivo)”.

A Lei nº 6.938/81, no art. 4º, inciso VII, determina como um dos objetivos da

Política Nacional do Meio Ambiente a “imposição, ao poluidor e ao predador, da

obrigação de recuperar e/ou indenizar os danos causados (...)” Na mesma seara, o

Texto Constitucional dispõe, no § 3º do art. 225, que:

§ 3º: As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.

Vale a pena apontarmos de maneira mais precisa o que se entende como a

figura do poluidor. O conceito é tratado no art. 3º, IV, da supracitada Lei nº 6.938/81,

em que se lê:

Art. 3º(...) IV – poluidor, a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental.

Ainda segundo a lei vigente, existirá a degradação da qualidade ambiental

quando ocorrer qualquer alteração adversa das características do meio ambiente,

que venha a55:

a) prejudicar a saúde, a segurança e o bem-estar da população;

b) criar condições contrárias às atividades sociais e econômicas (restando esse

tipo de dano o foco principal mirado pelo MPF ao sustentar seus argumentos na

petição da ação civil pública relativa ao caso da Usina de Irapé);

c) afetar desfavoravelmente a biota (conjunto de seres vivos de um

ecossistema, incluindo flora, fauna e outros grupos de organismos);

d) afetar as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente;

e) lançar matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais

55

A relação é disposta nas alíneas do inciso III do art. 3º da Lei 6.938/81.

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estabelecidos.

Dano deve ser entendido como lesão a um bem jurídico, devendo,

necessariamente existir um ato ilícito por parte do poluidor. Assim, ocorrendo a lesão

a um bem ambiental, configurar-se-á, pois, o dano, passível de indenização.

Conforme apontado pelo próprio EUe na petição inicial (página 50), em se

tratando da ação civil pública, pode-se perseguir em juízo a reparação pelo dano

patrimonial ou moral (extrapatrimonial). Entretanto, à época da propositura da ação

de Irapé pairava uma dúvida no meio jurídico: quando não houvesse a comprovação

de ocorrência do dano material poderia ser cobrado exclusivamente o dano moral

coletivo em razão de afronta ao meio ambiente?56 Esse é efetivamente o caso que

se instaurou na demanda relativa à UHE Irapé. Em todo o desenvolvimento de sua

argumentação, o sujeito enunciador defende que as peculiaridades socioculturais

das comunidades da região onde seria instalada a usina não foram consideradas

pelo EIA/RIMA apresentado pela Cemig e por essa razão o empreendimento se

tornara inviável ambientalmente. Porém, não se mencionava um dano patrimonial

em si, aquele que pode ser auferido, mensurado objetivamente em termos de valor

monetário.

O que se perseguia era a reparação do dano moral. Vale dizer que o dano

moral é, segundo Yussef Cahali (2005, p. 21), “o sofrimento psíquico ou moral, as

dores, as angústias e as frustrações infligidas ao ofendido”. E citando Roberto

Brebbia, Cahali (op. cit., p. 58) acrescenta que

A) Daños morales originados por la violación de los derechos inherentes à la personalidad que protegen los bienes que integram el aspecto objetivo o social del patrimonio moral: a) honor; b) nombre; c) honestidad; d) liberdad de acción; e) autoridad paterna; f) fidelidad conyugal; g) estado civil. B)Daños morales originados por la violación de derechos inherentes à la personalidad que integran el aspecto subjetivo del patrimônio moral: a) afflecciones legítimas; b) seguridad personal e integridad física; c) intimidad; d) derecho moral Del autor sobre su obra; e) valor de afección de ciertos bienes patrimoniales (grifo nosso).

O dano moral muitas vezes é relacionado à “dor da alma”. Nos enunciados

em epígrafe, o ethos de representante do povo de EUe emerge em consonância

com outro ethos, o de “solidariedade”. Discursivamente, sofre-se a mesma dor dos

atingidos pela obra da usina. Se a voz deles não pode ser ouvida, a do sujeito

56

Recentemente, a 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que é possível a sentença

condenando o infrator ambiental ao pagamento de quantia em dinheiro para compensação de dano moral coletivo (REsp 1.328.753-MG, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 28/5/2013).

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enunciador pode, ele é o representante da dor coletiva, dos que são privados de

fala. Ele se torna responsável pelas necessidades dos outros, unindo-se ao grupo

diante do iminente prejuízo a ser causado pela instalação da hidrelétrica.

A enunciação do MPF, por meio de seu porta-voz EUe, ora se revela ligada a

recursos racionais, apontando as normas ambientais, os laudos periciais, numa

tentativa de persuasão demonstrativa, na qual sua fala se basearia em “verdades”;

ora apela a recursos que implicam a adesão pelo afeto e pela identificação de TUi

com o sujeito destinatário, para que este adira aos argumentos, como se vê nos

excertos acima, percorrendo um caminho calcado na persuasão retórica. Inclusive,

simula-se uma fala imperativa dos atingidos (“olhem, nós temos valores específicos

que devem ser preservados!”, como se a voz dos atingidos eclodisse num grito

angustiante, exclamativo.

E existe todo um aspecto de exclamação no discurso de EUe, apontando o

grande esforço em se “mensurar a enorme dor coletiva a que se encontram

submetidas todas essas comunidades” em decorrência quase de um desprezo dos

réus para os quais “elas simplesmente não existem!” Essa forma negativa de

construir a imagem dos adversários processuais acaba por engendrar um ethos de

“indignação” contrário à injustiça que está sendo perpetrada em face dos indivíduos

da região.

É possível notar o referido ethos de indignação em toda a trajetória discursiva

do sujeito enunciador. Há um procedimento de composição linear comum utilizado

nas petições iniciais: os “tempos fortes”. Com seu uso, gera-se no texto o efeito de

uma fala enérgica, imperativa, convicta daquilo que é enunciado. Quando se busca

garantir esse efeito no discurso oralizado são dadas diferentes entonações. Mas,

como a petição inicial se trata de um gênero escrito57, é usual lançar mão dos

tempos fortes, que de certa forma dão a ênfase necessária ao que é dito.

Pela reiterada utilização desse procedimento de composição, julgamos

oportuno enumerar os que tiveram ocorrência na petição inicial58:

a) “Não é despiciendo lembrar que, além de constituir exigência constitucional (...)

57

Há exceções que permitem que a petição inicial seja produzida oralmente, como por exemplo, no pedido de habeas corpus ou no de pensão alimentícia. Entretanto, mesmo nessas exceções, as palavras do requerente são “reduzidas a termo”, ou seja, são registradas por escrito e, posteriormente, autuadas no processo. 58

Os “tempos fortes” estão marcados em itálico e em negrito. Explicitamos outros trechos do

enunciado, a fim de apontar ao leitor, ainda que de modo resumido, a situação comunicativa em que os procedimentos foram usados.

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o EIA/RIMA conforma, por assim dizer, o procedimento fundamental pelo qual a

sociedade pode ter acesso às variáveis de uma obra ou atividade causadora de

significativos impactos ambientais” (página 3);

b) “Saliente-se que o referido “diagnóstico” foi elaborado em dezembro de 1997, às

vésperas da concessão da licença prévia (...) (página 5);

c) “(...) salta primeiramente aos olhos a acachapante conclusão do expert quanto

ao tratamento conferido à Comunidade de Porto Coris” (...) (página 8);

d) “À toda evidência, a conclusão indicada supra, por si só, invalida todo o

procedimento de elaboração, análise e aprovação do EIA/RIMA da UHE Irapé (...)

(página 9);

e) “Ora, somente pela realização de um adequado diagnóstico sócio-ambiental da

região de implantação do empreendimento, no bojo de seu EIA/RIMA, é que se

pode, por via de consequência, estabelecer uma escorreita análise global de seus

impactos negativos (...) (página 10);

f) “Deve-se ressaltar que a apropriação comunitária dos recursos naturais não

estabelece um uso sem regras (...) (página 20);

g) “Ora, o estudo elaborado pela técnica do Parquet59 Federal conclui que este frágil

e intricado sistema de adaptação das comunidades (...) foi completamente

desprezado no processo de elaboração, análise e aprovação do EIA/RIMA da UHE

Irapé (...) (página 20);

h) “Obviamente, essa completa distorção, promovida pela Cemig e pelos órgãos

ambientais, no diagnóstico da realidade sócio-ambiental da área a ser direta ou

indiretamente afetada pela UHE Irapé (...) (página 25);

i) “Dessa maneira, os fatos apurados nos PACs nº (...) demonstram

inequivocamente que (...) A Comunidade Remanescente de Quilombo de Porto

Coris teve sua identidade específica negada no procedimento de EIA/RIMA (...)

(página 28);

j) “Nesse sentido, forçoso se faz concluir que o procedimento em questão orienta-

se pela idéia de estabelecer as bases seguras para se concluir pela viabilidade

sócio-ambiental (...) (página 34);

k) “Saliente-se que o referido parecer deve esclarecer de maneira circunstanciada

59

“Parquet – palavra francesa, foi, por extensão, aplicada ao grupo de magistrados que, na França,

exercia as funções de Ministério Público” (PINHEIRO, 2008, p. 142). Atualmente é comum utilizar a expressão “Parquet” para designar o Ministério Público.

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se os trabalhos desenvolvidos pela equipe multidisciplinar alcançaram efetivamente

os objetivos gerais prescritos pelo art. 5º da Resolução CONAMA 001/86 (...) (página

43);

l) “É de se ressaltar, entretanto, que, tratando-se a UHE Irapé de empreendimento

destinado a realizar o aproveitamento hidráulico, sua concepção deve ser também

aprovada pela ANEEL (...) (página 46);

m) “Dessa maneira, de todo o enredo fático e jurídico narrado na presente petição

inicial decorre, de forma inafastável que, para que seja resguardado, no curso da

presente ação, a integridade do patrimônio sócio-ambiental da coletividade, torna-se

imprescindível a concessão da medida cautelar destinada a suspender o

licenciamento ambiental da UHE Irapé (...) (página 56).

O modo enfático, veemente de enunciar contribui para a construção do ethos

de indignação. Na atualidade, o papel social do Ministério Público garante-lhe o

poder para se valer desse tom imperativo. O texto constitucional de 1967 tratava o

MP como órgão pertencente ao Poder Executivo. A Constituição de 1988, por sua

vez, traz nova definição do órgão ministerial, deslocando-o da esfera de atuação dos

Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, incumbindo-lhe, conforme o art. 127, da

defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e

individuais indisponíveis. É-lhe dada uma independência funcional muito maior.

Hoje o Ministério Público goza de poder. Exemplo contundente disso foi a

vitória de seus membros quando da votação da Proposta de Emenda Constitucional

(PEC) nº 37/2011. O texto, de autoria do deputado Lourival Mendes (PT do B - MA),

tratava da inclusão de um novo parágrafo ao art. 144 da Constituição Federal (no

Capítulo acerca da Segurança Pública), com o seguinte teor: "A apuração das

infrações penais de que tratam os §§ 1º e 4º deste artigo, incumbem privativamente

às polícias federal e civis dos Estados e do Distrito Federal, respectivamente".

No contexto das manifestações populares que tomaram lugar no Brasil em

meados de 2013, os membros do Ministério Público foram às ruas defendendo que a

proposta tirava de promotores de justiça e procuradores da República o poder de

investigação em casos criminais, o que seria, segundo eles, uma afronta à

legalidade, intitulando-a, inclusive, de a “PEC da impunidade”. Por outro lado, outros

setores da sociedade, como a Ordem dos Advogados do Brasil e a classe policial,

militavam pela sua aprovação, alegando que a ordem constitucional – em especial o

art. 129 da CF/88 – não permite o poder investigatório ao MP e que na prática isso

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vinha acontecendo, criando uma aberração jurídica, uma vez que o órgão ministerial

produzia a prova na fase de investigação e a destinava para si mesmo, no momento

de promover a ação penal pública.

Fato é que, em 25/06/13, a proposta foi rejeitada pelo plenário da Câmara dos

Deputados, quase por unanimidade (430 votos contrários, 9 favoráreis e duas

abstenções). A questão girava em torno do poder do Ministério Público, que foi, sim,

corroborado com o resultado desta votação.

Roberto Gurgel, à época procurador-geral da República e presidente do

Conselho Nacional do Ministério Público manifestou-se, em várias ocasiões,

veementemente contrário à aprovação da PEC 37. Na cerimônia de posse do

Ministro Joaquim Barbosa como presidente do Supremo Tribunal Federal, Gurgel

afirmou que a restrição dos poderes do MP era “um dos maiores atentados que se

pode conceber ao estado democrático de direito.” E questionou: “Apenas três países

do mundo vedam a investigação do MP. Convém que nos unamos a esse

restritíssimo grupo?”60

Em outro momento, no plenário do Conselho Nacional do Ministério Público,

disse que:

“A impunidade é grande, é imensa, mas eu diria que pioraria, sim, com o advento da PEC 37. O que é fundamental na PEC 37 é que vai na contramão de qualquer bom senso, de qualquer coisa que se pode chamar de razoável. Num país em que a impunidade é imensa, a corrupção grassa por todos os lados, querer concentrar o poder investigatório em uma instituição (a polícia). Não há outra palavra, é uma loucura, uma insanidade"61

Ainda mencionou que a proposta surgia exatamente “em razão das virtudes

do Ministério Público” e que decorria “exclusivamente do cumprimento adequado,

pelo Ministério Público, de sua missão constitucional”62. A valorização de qualidades

tidas como positivas é uma das estratégias mais eficazes para a construção de um

ethos de credibilidade. Gurgel, como representante máximo do Ministério Público,

detinha o poder de falar para a sociedade em nome de toda a instituição. Por

conseguinte, seu discurso carregava a força capaz de engendrar imaginários.

De acordo com o nosso ponto de vista, historicamente se constituiu um ethos

coletivo do Ministério Público, baseado nas representações sociais e na forma como

60

Disponível em: http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/em-posse-de-barbosa-procurador-critica-proposta-que-tira-poder-de-investigacao-do-mp 61

Disponível em: http://www.jb.com.br/pais/noticias/2013/04/24/roberto-gurgel-tirar-poderes-do-ministerio-publico-e-loucura/ 62

Idem.

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esse grupo de servidores públicos se apresenta nas interações enunciativas. Pode-

se dizer que foi erigido ao longo do tempo um ethos de “superpoderes”. Na

realidade, do poder que seus membros querem que seja conferido à instituição.

No site do Ministério Público da União (MPU), encontra-se publicada citação

de um texto de Haroldo Valladão, professor da Pontifícia Universidade Católica do

Rio de Janeiro, o qual, ao tomar posse como procurador-geral da República, em

1967, menciona excerto de autoria de seu pai, Alfredo Valladão:

"As funções do Ministério Público, subiram, pois ainda mais, de autoridade em nossos dias. Ele se apresenta com a figura de um verdadeiro poder de Estado. Se Montesquieu tivesse escrito hoje o 'Espírito das Leis', por certo não seria tríplice, mas quádrupla, a divisão dos poderes."63

No próprio site64 há um comentário no sentido de que “os doutrinários

divergem quanto ao posicionamento do Ministério Público na tripartição dos

poderes”, mencionando posteriormente que “a tese dominante não é configurar a

instituição como um quarto poder e sim como um órgão do Estado, independente e

autônomo, com orçamento, carreira e administração próprios.” Discursivamente,

temos um efeito de sentido interessante: faz-se uma citação na qual o Ministério

Público figura com o status de quarto poder, seguida de uma explicação de que essa

não é a tese “dominante”. Pode não ser dominante, mas pelo menos é uma tese

defendida, cabível, segundo o olhar do MPU.

Outra questão a respeito do Ministério Público que merece comentário é que

o ingresso na carreira se tornou bastante elitizado. A aprovação nos concursos

públicos para promotor de justiça é alvo do desejo de muitos bacharéis em Direito.

Para se ter uma ideia, encontra-se em tramitação o concurso para o MP mineiro.

Foram inscritos 3281 candidatos para 50 vagas. No Edital aponta-se o subsídio

inicial para o cargo de promotor de justiça no montante de R$ 22.797,3365. A

aprovação em concursos como esse exige uma intensa dedicação nos estudos e o

status social de quem a alcança é bastante valorizado na atualidade. No meio

jurídico acaba se estabelecendo um imaginário social de que aquele que é aprovado

traz consigo uma ampla gama de conhecimento técnico, gerando assim um valor de

63

VALLADÃO, Alfredo. Op. cit., In: MARQUES, J. B. de Azevedo.Direito e Democracia - O Papel do

Ministério Púlbico. São Paulo: Cortez, 1984. p.10-11. 64

http://www.mpu.mp.br/navegacao/institucional/duvidas

65

Informações extraídas do site do Ministério Público de Minas Gerais no endereço:

https://www.mpmg.mp.br/acesso-a-informacao/concursos/membros/liv-concurso-de-promotor-de-justica-substituto/apresentacao.htm

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credibilidade na sua atuação. Isso também acaba por reforçar socialmente esse

ethos de superpoderes.

Entretanto, parece que às vezes emerge uma certa “rixa” entre os membros

do Ministério Público e os do Poder Judiciário. É óbvio que isso não se dá nos

discursos institucionais oficiais, mas os efeitos de sentido de nossas palavras não

são controláveis... Quando da votação que inocentou Fernando Collor das

acusações de peculato, corrupção passiva e falsidade ideológica, que tomou lugar

no Supremo Tribunal Federal em 24/04/14, a relatora da ação, ministra Cármen

Lúcia, afirmando que não ficou provado que o ex-presidente tinha conhecimento de

desvios e que o MP tinha que ter conseguido provar isso, fez uma irônica crítica ao

órgão ministerial, dizendo que “Não se cuida de uma denúncia que pode ser tratada

como primor de peça"66, fazendo alusão à peça acusatória.

Esse ethos de superpoderes é, portanto, estruturado a partir das ideias que

se criaram a respeito do poder do MP, por meio das percepções que a coletividade

tem dos acontecimentos históricos e dos discursos (e atos sociais) de seus

membros.

Retomando a análise da petição inicial, da página 51 a 56, são apontadas as

características da “Medida Cautelar In limine Litis”, ou seja, da medida cautelar

solicitada pelo MPF ao juiz, a fim de fosse evitado o dano ambiental. Em suma são

explicados na página 52 os requisitos para a concessão da medida cautelar: a) o

fumus boni juris, isto é, a “fumaça do bom direito”, a plausibilidade do direito

invocado, segundo EUe, em razão de ter sido demonstrado o descumprimento das

normas relacionadas ao licenciamento ambiental, em especial, ao EIA/RIMA e do

princípio da precaução; e b) o “periculum in mora”, ou o fundado perigo na demora

do provimento jurisdicional, consubstanciado, conforme o sujeito enunciador, no fato

de que a Cemig poderia receber, a qualquer momento, a licença de instalação do

empreendimento67.

Os pedidos da petição inicial da ação civil pública da Usina de Irapé

guardaram estrita equivalência com relação aos fatos narrados. Da página 56 ao

final da peça (página 59) foram elencados pedidos que giraram em torno de:

a) liminarmente, concessão da medida cautelar (página 56);

66

Disponível em: http://g1.globo.com/politica/noticia/2014/04/supremo-livra-collor-de-acusacoes-de-peculato-e-corrupcao.html 67

Entendemos que seria relevante trazer essas definições sobre a medida cautelar pretendida, uma

vez que logo adiante faremos referência à decisão judicial a ela relacionada.

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b) citação dos réus, ou seja, a notícia que se dá de que foi interposta contra eles

uma ação judicial, para que querendo, possam responder (página 56 e 57);

c) invalidação do ato de aprovação no EIA/RIMA da licença prévia do licenciamento

ambiental da UHE Irapé (página 57);

d) invalidação do ato de aprovação, pela ANEEL, do “aproveitamento ótimo” para a

UHE Irapé (página 57);

e) condenação da Cemig na obrigação de não fazer, consistente em se abster de

implantar a usina até outorga de novo EIA/RIMA, que contemplasse novo

diagnóstico, elaborado de modo participativo, de todas as comunidades tradicionais

e com a análise de todos os impactos socioambientais negativos do

empreendimento, indicando detalhadamente as medidas adequadas para sua

prevenção, mitigação e compensação (página 57);

f) condenação da ANEEL na obrigação de fazer, consistente em adequar o

“aproveitamento ótimo”, de acordo com os parâmetros do novo EIA/RIMA (página

58);

g) condenação dos réus na obrigação de: reparar os danos causados às

comunidades tradicionais e indenizar seus membros (página 58 e 59);

h) procedência do pedido na sua totalidade.

Aqui encerramos a análise propriamente dita da petição inicial. Acreditamos

ter nos voltado aos aspectos principais concernentes às três abordagens sobre as

quais nos propusemos a discutir: gênero, subjetividade e modo de organização

argumentativo.

Apesar de não ser objetivo específico da pesquisa descrever todos os

desdobramentos judiciais da ação civil pública proposta pelo Ministério Público

Federal, entendemos ser apropriado apontar elementos relacionadas à decisão que

indeferiu o pedido cautelar (ou liminar) acima explicitado. Essa tarefa se dá no

sentido de ampliar a discussão acerca de valores que orientam o discurso jurídico e,

mais precisamente, que nortearam a postura decisória do sujeito interpretante

magistrado.

Já de antemão dizemos que, mesmo diante de todos os esforços

argumentativos empreendidos pelo sujeito comunicante, não houve de fato a

identificação de TUi com o sujeito destinatário idealizado. Isso porque a decisão

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quanto ao pedido cautelar foi negativa68.

Tratou-se de uma decisão denominada interlocutória. Cabe ressaltar que, na

explicação do art. 162 do Código de Processo Civil, a decisão interlocutória é o ato

pelo qual o juiz, no curso do processo, resolve questão incidente. Isso diz respeito a

qualquer decisão do magistrado proferida enquanto o processo está tramitando,

sem, contudo, extingui-lo.

Dois excertos da decisão referente ao caso de Irapé merecem destaque,

respectivamente das folhas 2341 e 2340 dos autos:

O sujeito interpretante expõe a fundamentação que estruturou seu ato

decisório apontando para a escassez de provas quanto à efetiva ocorrência de

danos ambientais em desfavor das comunidades da região onde a usina seria

implantada. Faz alusão a danos tão somente de “caráter genérico”. Para nós, é

instituído um efeito de sentido de que o imaginário sociodiscursivo de prevenção não

é tão importante. Esse imaginário sustenta o princípio da prevenção em Direito

Ambiental, já discutido anteriormente. A falta de certeza absoluta da concretização

do dano não deve servir de obstáculo para que sejam tomadas todas as medidas

preventivas para impedir efeitos ambientais negativos.

Poderíamos nos questionar: o sujeito interpretante juiz considera

desimportante esse imaginário, concretizado em tantos discursos-textos com

68

Decisão juntada aos autos da ação civil pública, folhas 2331 a 2342, exarada em 22/01/2002.

O Ministério Público Federal, conquanto refira-se em vários pontos da inicial a danos ‘sócio-ambientais’, em momento algum demonstra a existência de danos, ou riscos de danos anormais ou excessivos, ao meio ambiente local, como consequência da implantação da UHE-Irapé. As referências que se encontram na inicial a tais danos são de caráter genérico, não havendo demonstração concreta, clara, específica sequer dos riscos de danos ao meio ambiente, em proporção tal que justifique a paralisação do processo de licenciamento do empreendimento.

(...) a manifesta escassez de recursos naturais, humanos e industriais na região afetada pelo empreendimento – fato de conhecimento público e notório – configura indício contrário às afirmações da existência de danos às comunidades locais, que, tudo indica, serão bastante beneficiadas com os ‘remanejamentos’ a serem procedidos, pois as condicionantes constantes na Licença Ambiental Prévia demonstram que os locais de reassentamentos serão devidamente estruturados, dotados de condições iguais ou melhores que aquelas em que vivem atualmente as comunidades.

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circulação no meio jurídico? Sob o nosso ponto de vista, ocorre, na realidade, um

sopesamento de valores por parte de TUi, que é quem detém o poder decisório no

âmbito desse contrato de fala. Todas as investidas argumentativas do sujeito

comunicante, por intermédio de seu sujeito enunciador, voltam-se ao magistrado – o

qual se constitui como o sujeito destinatário por excelência no circuito da fala

configurada. E o juiz, baseando-se em seu convencimento motivado, acaba por

estabelecer uma hierarquia de valores.

No caso específico da decisão do pedido cautelar interposto para impedir a

concessão da licença ambiental de instalação da UHE de Irapé, optou o sujeito

interpretante por valorizar a presunção de veracidade e legitimidade dos atos

administrativos realizados pelos réus quando aprovaram o Estudo de Impacto

Ambiental e produziram o Relatório de Impacto Ambiental – EIA/RIMA, o qual fora

apresentado pela Cemig. Isso se deu em detrimento dos valores que sustentam o

imaginário sociodiscursivo da prevenção. A decisão interlocutória em questão

poderia ter sido prolatada no sentido oposto, ou seja, privilegiando a ideia de

prevenir eventuais danos, deferindo, como corolário, a medida liminar pretendida

pela MPF e determinando o impedimento da concessão da licença ambiental de

instalação da usina.

Discursivamente percebemos que a postura enunciativa do juiz do caso vai ao

encontro do imaginário sociodiscursivo do “desenvolvimento econômico”. O

remanejamento das famílias, com a sua retirada do local onde Irapé funcionaria,

seria, segundo o excerto acima, uma forma de beneficiar as comunidades locais,

visto que os reassentamentos teriam estrutura com “condições iguais ou melhores

que aquelas em que vivem atualmente as comunidades”. Valores extrapatrimoniais,

como os bens culturais e históricos próprios dos indivíduos da região, guardariam

menos relevância que o avanço econômico. Esse é um efeito discursivo possível de

ser extraído da decisão judicial.

Todas as decisões – e todas as falas – no contexto do Poder Judiciário são

baseadas em valores partilhados pela sociedade num determinado momento

histórico. Mas esses valores não são uníssonos. Ao contrário, são inconstantes,

mutáveis (apesar de uma constante “vontade de verdade” do discurso

institucionalizado): a lei, se não fosse constantemente questionada por movimentos

sociais e políticos, jamais seria alterada; os autores dos livros acadêmicos guardam

posturas diversas, antagônicas; os juízes proferem sentenças distintas umas das

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outras, em casos que são aparentemente semelhantes. Em razão disso, para nós

resta bastante claro que em todo ato decisório há um exercício interpretativo que se

baseia numa hierarquia de valores.

E muitas vezes o quadro enunciativo que se instaura no discurso jurídico

acaba se misturando com a seara política. Já mencionamos o caso do “Mensalão”

em outros momentos da tese, mas nos valeremos de mais uma de suas cenas

linguageiras.

Na decisão do Supremo Tribunal Federal que absolveu os oito réus da Ação

Penal 470 no crime de formação de quadrilha, o presidente da Corte, Ministro

Joaquim Barbosa, declarou aos quatro ventos:

“Sinto-me autorizado a alertar a nação brasileira de que este é apenas o primeiro passo. Esta maioria de circunstância tem todo tempo a seu favor para continuar nessa sua sanha reformadora." (...) "Essa maioria de circunstância formada sob medida para lançar por terra todo um trabalho primoroso, levado a cabo por esta corte no segundo semestre de 2012."69

Ele fazia referência aos então recém-chegados ministros Luís Roberto

Barroso e Teori Zavascki, que votaram favoravelmente à absolvição dos réus. Os

novatos haviam sido indicados por Dilma para os lugares de Ayres Britto e Cezar

Peluso, os quais por sua vez votaram em 2012 pela condenação.

Joaquim Barbosa enuncia do lugar mais poderoso do cenário jurídico

nacional. Como presidente do Tribunal Maior do Estado brasileiro, suas falas têm

grande repercussão política. Em matéria da revista Época70, sob a égide do aposto

“herói do mensalão”, retomou-se assunto recorrente na atualidade: a possibilidade

de o ministro se candidatar à presidência da República. Talvez a notoriedade do

jurista tenha se consolidado em razão da ampla divulgação midiática em torno do

julgamento da Ação Penal 470, considerado para muitos um marco na história por

ter condenado políticos do alto escalão do governo.

Entretanto, discursivamente, há um outro “lado da moeda”. O jornalista Paulo

Moreira Leite, que inclusive tinha uma coluna em Época, lançou em 2013 o livro "A

Outra História do Mensalão – As Contradições de um Julgamento Político", no qual

ele aponta que houve “penas muito pesadas para provas muito fracas.” Ele

menciona que o processo foi baseado na acusação de desvio de dinheiro público.

69

Disponível em: http://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2014/02/27/aviso-o-brasil-que-e-so-

o-comeco-diz-barbosa-apos-derrota-no-stf.htm 70

Disponível em: http://epoca.globo.com/tempo/noticia/2014/03/joaquim-barbosa-bnao-serei-

candidatob-presidente.html

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Mas questiona que não tenha havido “nenhuma auditoria do Tribunal de Contas da

União, do Banco do Brasil, da Visanet ou quem quer que seja apontando o desvio de

dinheiro público.” Ainda segundo seu ponto de vista, não se pode “condenar as

pessoas por peculato (desvio de dinheiro público) sem ao menos conseguir provar

onde estaria o dinheiro desviado.”71

Há quem vá mais longe e acuse o Presidente do Supremo de ser arbitrário

em suas decisões. O ministro negou o direito ao trabalho externo a vários

condenados nesse processo, dentre eles: os ex-deputados Valdemar Costa Neto

(PR-SP), Bispo Rodrigues (PR-RJ) e Pedro Corrêa (PP-PE), o ex-tesoureiro do PR

Jacinto Lamas e o ex-ministro José Dirceu e, também, revogou o benefício

concedido a Romeu Queiroz, Rogério Tolentino e Delúbio Soares72. Conforme

Joaquim Barbosa, eles não poderiam ter recebido o benefício porque ainda não

haviam cumprido o mínimo de um sexto das penas, conforme estabelece o Código

Penal. Ocorre que há entendimento jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça

(STJ), que permite o trabalho externo a presos no regime semiaberto. O ministro

argumenta que o STF não tem de se submeter ao que é preconizado na

jurisprudência de outros tribunais.

Qualquer representante do Poder Judiciário (juízes, desembargadores e

ministros dos tribunais), ao prolatar uma decisão judicial, basear-se-á em

determinados valores. No exercício da função de julgadores, terão de se ater às leis,

aos princípios do Direito, às jurisprudências e, sobretudo, às provas que forem

juntadas aos autos de um processo. Ocorre que todo esse exercício pressupõe um

ato de interpretação dessas fontes jurídicas. Não há julgamento neutro. Não

estamos aqui defendendo uma ideia de que os magistrados são sempre

marcadamente parciais quando desempenham seu papel decisório. Estamos

discutindo a questão da instância de interpretação; e que ao se falar sobre esse

processo, necessariamente, partimos de uma atividade na qual as circunstâncias

que o determinam dependem dos valores que os sujeitos interpretantes irão se filiar.

Não haverá, por conseguinte, tão somente uma interpretação das fontes do Direito –

cujos textos não são transparentes –, mas várias, dependendo do sistema de

71

Disponível em: http://www.brasil247.com/pt/247/midiatech/95899/Supremo-politizou-o-julgamento-do-mensal%C3%A3o-Supremo-politizou-julgamento-mensal%C3%A3o.htm 72

Conforme noticiado pelo site de “O Globo”. Disponível em: http://oglobo.globo.com/pais/joaquim-

barbosa-revoga-trabalho-externo-de-mais-quatro-mensaleiros-12572566

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valores (pessoais, jurídicos, políticos etc.) que sustentarão os dizeres dos

julgadores.

No primeiro capítulo da tese, quando descrevemos o corpus da pesquisa,

apresentamos o cenário jurídico estabelecido em torno do caso da Usina de Irapé.

Mencionamos que, no tramitar da ação civil pública, foi celebrado um Termo

de Ajustamento de Conduta (TAC) entre o MPF e os réus, documento que fora então

homologado judicialmente. Determinara-se, pois, que a Cemig, enquanto

empreendedora, teria de realizar medidas capazes de mitigar os efeitos ambientais

nocivos advindos da instalação da usina.

Com o intuito de se verificar o cumprimento das medidas ajustadas para a

melhoria da qualidade do meio ambiente e a reconstituição dos direitos das

populações atingidas pela barragem, o MPF instaurou um Procedimento

Administrativo Cível (PAC), relativo a uma Investigação Administrativa Preliminar, a

qual configura um inquérito civil público.

A Cemig, buscando comprovar as vantagens socioeconômicas do

empreendimento, juntou a este inquérito civil a já referida matéria jornalística.

Passemos, então, à discussão do segundo gênero objeto de análise desta pesquisa.

4.2 Da matéria do Jornal “O Tempo”

A matéria jornalística que passaremos a analisar, conforme indicamos

anteriormente, foi veiculada em “O Tempo”, com circulação no Estado de Minas

Gerais, tendo sua publicação ocorrido em 19 de dezembro de 2004.

Antes de nos debruçarmos especificamente sobre a descrição dessa matéria

enquanto gênero discursivo, entendemos ser conveniente explicitar qual o nosso

olhar acerca da mídia impressa, de modo especial no que concerne à produção

jornalística. Fugiria aos nossos objetivos trazer uma discussão pormenorizada de

postulados teóricos a respeito dos jornais, mas acreditamos ser necessário projetar

o nosso local de fala quando tratarmos da questão.

Preliminarmente, diremos que não será adotada uma postura fatalista quanto

ao papel da mídia, no sentido de acreditar que toda veiculação de notícias é, por

essência, deliberadamente manipuladora e que distorce os fatos de acordo com os

interesses da instância de informação.

Por outro lado, menos ainda nos filiamos à ideia de que os discursos são

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neutros e que as informações traduzem de forma transparente uma suposta

realidade. Há diversos olhares sobre aquilo que chamamos de fato e distintas

formas de se relatar algo; e isso se dá em função dos diferentes imaginários

sociodiscursivos que sustentarão os dizeres de quem relata num dado momento (o

que certamente é influenciado por fatores sociais tão variados que não seríamos

capazes de enumerá-los). Isso é próprio do discurso. Enunciamos de um

determinado lugar de fala, sendo perpassados por nosso conhecimento de mundo e

pelos valores que nos orientam. Constituímo-nos sujeitos tão somente no e pelo

discurso.

Na enunciação que toma lugar na mídia jornalística isso é ainda mais visceral.

Pretender a transparência entre a informação e a realidade é uma ilusão ingênua,

que pressuporia a exclusão do processo interlocutivo, tanto da instância de

produção quanto da de interpretação, e as presenças dos sujeitos participantes do

jogo enunciativo. A informação veiculada em jornais se enquadra, a nosso ver, na

arquitetura do quadro comunicacional de Charaudeau73, no qual se instituem os

seres de fala (EUe e TUd) e os seres sociais (EUc e TUi), como se descreverá com

maiores detalhes adiante.

Tomando por base a noção de que, segundo Charaudeau (2006b, p. 36), “a

informação é pura enunciação”, apresentamos nossa reflexão sobre o processo que

implica a ideia de não transparência da informação na mídia jornalística, a qual pode

ser representada pelo seguinte esquema:

O acontecimento, em termos conceituais, só passará a existir a partir do

momento em que é captado. A captação / percepção de um acontecimento

demanda a mobilização de um processo de significação, que por sua vez já não será

idêntico de pessoa para pessoa. Depois de percebido, o acontecimento se tornará

um fato a ser relatado. Em termos práticos, queremos dizer que cada jornalista

lançará um tipo específico de olhar sobre o fato, que dependerá de suas

experiências, suas expectativas quanto à importância da divulgação desse fato.

73

Conforme Charaudeau (2009a, p. 52), discussão realizada por nós no 3º capítulo desta pesquisa.

Acontecimento → captação / percepção (fonte) → interpretação /

transformação dos fatos (instância de produção da informação) →

representação do fato (notícia) → veiculação da notícia → recepção da notícia

(instância receptora)

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Em seguida, o fato será interpretado segundo os valores, a linha editorial e os

interesses da empresa jornalística. Conforme Emediato (2005, p. 106), a “instância

de produção da informação se apresenta como uma instância mediadora entre as

fontes e o alvo receptor da informação” e essa mediação “produz, com frequência,

uma transformação da matéria original.” Tal prática da mídia impressa enseja algo

crucial de ser analisado: os fatos, para se tornarem notícias, passam por um

processo de representação. Não existe um “retrato” fiel da realidade, mas um recorte

representado do fato.

Charaudeau (2006b, p. 133) sinaliza que é feita uma seleção dos fatos pela

instância midiática, levando-se em conta, basicamente: i) a atualidade dos fatos; ii) a

capacidade de reportar fatos que ocorreram tanto em locais próximos quanto

distantes da instância receptora, transmitindo-os quase de modo simultâneo à sua

ocorrência, o que confere uma desejável sensação de ubiquidade por parte dos

leitores e iii) a hierarquia de importância dos fatos, considerando, por exemplo, o que

pode interessar ou emocionar o público.

Esta escolha dos fatos a serem publicados é um dos fatores que condicionam

a construção do sujeito destinatário idealizado pela instância jornalística, tida, por

sua vez, como sujeito comunicante.

Após isso, entra em cena a configuração de um sujeito enunciador,

responsável por “dizer” a notícia, o que se concretizará por meio de sua veiculação

propriamente dita. A organização enunciativa se completa com o consumo efetivo

pela instância de recepção, sendo ela constituída pelos sujeitos interpretantes.

Já nos voltando para a questão dos gêneros em si, é preciso ter em mente

que a matéria jornalística que compõe o material de análise desta tese teve sua

emergência em dois espaços discursivos distintos; tendo, por conseguinte, sido

estabelecidos dois contratos comunicacionais:

1) quando foi veiculada socialmente na mídia impressa mineira, em 19 de dezembro

de 2004, o qual se configura entre a instância jornalística e a instância receptora

cidadã e

2) no momento em que foi juntada pela Cemig ao Procedimento Administrativo Cível

(PAC), relativo ao inquérito civil promovido pelo Ministério Público Federal.

A descrição da matéria como gênero produzido pela instância jornalística será

focada subsidiariamente nesta pesquisa, pois muito embora seja importante apontar

suas características – e nós buscaremos fazê-lo –, o que nos interessa mais de

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perto é avaliar como essa matéria de “O Tempo” foi apropriada e deslocada para o

domínio jurídico, sendo utilizada como prova no PAC, destinada ao convencimento

dos Procuradores da República, representantes do MPF.

Em outras palavras, buscar-se-á avaliar de que forma essa matéria serviu

como artefato para uma densa argumentação da Cemig, tendo por escopo

comprovar que as medidas ajustadas com o Ministério Público – as quais visavam a

mitigar impactos socioambientais negativos às comunidades locais da região de

instalação da UHE de Irapé – estavam sendo cumpridas.

A matéria jornalística é a mesma, porém sua utilização se dá em outra esfera

de ação social. Essa característica é relevante na medida em que aponta para a

mobilidade, o trânsito dos gêneros discursivos, os quais são retextualizados,

ressignificados dependendo de onde são veiculados, ou seja, do suporte de sua

difusão.

Esse deslocamento do gênero da instância jornalística para a instância

judiciária influencia notadamente a argumentação. Muitos procedimentos

argumentativos utilizados na primeira propiciam efeitos de sentido significativos

quando destinados ao órgão ministerial.

Nessa perspectiva, algo que detidamente nos chama a atenção é como as

visadas se operacionalizaram nesses atos linguageiros. Tratando de ambos os

contratos (na instância jornalística e na instância judiciária), avaliamos a presença

de duas visadas bastante marcadas: a de informação e a de captação / incitação.

Charaudeau (2006b, p. 86) explica que a finalidade do contrato de

comunicação midiática, no qual se insere a mídia jornalística, acha-se na tensão

entre essas duas visadas: a de fazer saber, correspondente à visada de informação,

“que tende a produzir um objeto de saber segundo uma lógica cívica: informar o

cidadão”; e a de fazer sentir, para ele a visada de captação, “que tende a produzir

um objeto de consumo segundo uma lógica comercial: captar as massas para

sobreviver à concorrência.”

No que se relaciona à matéria do Jornal “O Tempo”, a visada de informação

se concretizou na medida em que foi apresentado ao cidadão mineiro algo que

estava ocorrendo na sociedade e que poderia suscitar seu interesse: a construção

de uma nova usina hidrelétrica no Estado.

Já no que concerne à visada de captação, a aludida matéria constrói uma

encenação, cujo enredo é carregadamente marcado pelo drama: convida-se o

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sujeito destinatário a aderir à ideia de que os efeitos positivos advindos da

implantação da Usina de Irapé trarão a “salvação” para as comunidades locais;

quase como uma “boa nova” ao estilo religioso. Nesse sentido podemos notar que o

discurso é constituído para seduzir, persuadir o leitor a simpatizar-se com o

empreendimento, lançando-se mão de expedientes espetacularizados. Conforme

nosso ponto de vista, isso por vezes é feito de modo tão exacerbado, que

acrescentamos à visada de captação uma visada de incitação, uma vez que os

benefícios são apresentados de modo tão óbvio que não caberia ao destinatário não

aderir à argumentação do enunciador, sendo aquele incitado, interpelado a aceitar

as razões deste. Nesse processo são postos em atividade inúmeros imaginários

sociodiscursivos capazes de fundamentar esses dizeres.

Procuraremos descrever de que forma isso se verificou – tanto com relação à

visada de informação quanto com as de captação / incitação – discutindo os

procedimentos do modo de organização argumentativo explicados no segundo

capítulo desta tese, a exemplo do que efetivamos com referência à petição inicial no

item 4.1.

Acima mencionamos que nos dois contratos em que o gênero matéria

jornalística tomou lugar, isto é, na instância da mídia jornalística e na instância

judiciária, realizaram-se as visadas de informação e de captação / incitação. Ocorre

que, em se tratando especificamente da utilização do gênero nessa segunda

instância, ou seja, no momento em que a Cemig anexa a matéria ao PAC, foi posta

em movimento também uma nova visada: a probatória. A intencionalidade

enunciativa e a troca dialogal são ampliadas. A Cemig enquanto empreendedora da

construção da UHE de Irapé buscava informar os procuradores da República sobre

as ações por ela colocadas em prática no local, ao mesmo tempo em que objetivava

captar / incitar os representantes do MPF a aderirem ao seu discurso. Entretanto,

havia o intuito por parte da empresa de que todas essas informações veiculadas na

matéria servissem como “prova” de seu dizer, uma vez que a situação de

comunicação era a de um inquérito civil que tinha justamente o condão de averiguar

se a Cemig estava cumprindo com medidas mitigadoras de impactos

socioambientais negativos para as comunidades do entorno de Irapé.

Essa matéria jornalística ganhou notória importância na estrutura da

investigação do Ministério Público, porque ela teve o condão de representar a “voz”

da Cemig sobre o empreendimento junto à sociedade mineira, o que fora

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primeiramente realizado com a publicação da notícia no jornal. Era como se a

concessionária de energia elétrica dissesse: “Aqui nós apresentamos os benefícios

trazidos pela construção da Usina Hidrelétrica de Irapé”. Os fatos contidos na

matéria deveriam ser supervalorizados, em razão da necessidade de buscar um

juízo positivo por parte do órgão ministerial, convencendo-se de que eram

verossímeis. Havia uma razão de ordem prática bastante considerável para que o

MPF fosse incitado a aderir aos argumentos da Cemig, no sentido de que esta

estava obedecendo ao convencionado no Termo de Ajustamento de Conduta: na

cláusula terceira deste TAC (páginas 03 e 04) eram estipuladas as penalidades em

caso de seu descumprimento, valendo a pena mencioná-las:

CLÁUSULA TERCEIRA O descumprimento ou atraso no cumprimento de qualquer das obrigações estabelecidas nos itens (...) da Cláusula Segunda, sujeitará a CEMIG:

a) À suspensão imediata das obras de implantação ou da operação do empreendimento UHE Irapé, até adimplemento das obrigações descumpridas ou atrasadas;

b) Ao pagamento da quantia de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), a título de multa pecuniária, por dia de atraso, a qual será devida a partir do dia subseqüente ao vencimento do prazo estipulado para o adimplemento das referidas obrigações.

As obrigações consistiam em promover ações: de remanejamento da

população atingida pela usina; de remanejamento da Comunidade Negra de Porto

Coris; de proteção do patrimônio cultural e de bens extrapatrimoniais coletivos;

relativas a programas socioambientais e ainda de cumprimento de condicionantes

adicionais estabelecidas pelo Conselho Estadual de Política Ambiental (COPAM),

pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (IBAMA),

pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e pela Fundação

Cultural Palmares (FCP)74.

Dito de outro modo, se a Cemig não atendesse ao convencionado no TAC –

tendo o encargo de prová-lo – o MPF teria a prerrogativa processual de ingressar

com uma ação de execução, na qual pediria em juízo: i) a suspensão das obras da

usina e ii) a cobrança do pagamento de uma multa (diária!) de R$ 20.000,00 (vinte

mil reais), o que acarretaria um prejuízo financeiro bastante significativo à empresa.

Reiteradamente nesta pesquisa fizemos referência à questão de a matéria

74

Não figura como nosso objetivo detalhar o conteúdo das obrigações estabelecidas entre a CEMIG e

o MPF. Nós as apontamos de modo resumido para informar o leitor sobre o andamento processual da ação civil pública.

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jornalística ter servido como prova na relação administrativo-jurídica entre a Cemig e

o Ministério Público. Nosso intuito é dimensionar a importância do status da prova no

Direito e seu consequente reflexo no processo argumentativo.

Toda a dinâmica de argumentação no discurso jurídico tem por objetivo

precípuo erigir um eficaz arcabouço probatório. Isso se justifica na medida em que a

decisão judicial tem, obrigatoriamente, que se fundamentar nas provas que são

carreadas aos autos75.

Segundo Didier (2008, v.2, p. 72), a “finalidade da prova é convencer o juiz”,

sendo, pois, este “seu principal destinatário: ele é quem precisa saber a verdade

quanto aos fatos, para que possa decidir”. No caso específico do inquérito civil, o

destinatário primário era o Ministério Público Federal (mas também o magistrado,

como se verá adiante), o qual, repetimos, tinha de ser convencido de que a Cemig

estava cumprindo as obrigações avençadas no TAC, caso contrário, poderia ajuizar

a ação de execução acima explicitada.

Apesar de o Código de Processo Civil apresentar um rol de provas em

espécie (depoimento pessoal; exibição de documento ou coisa; documental;

testemunhal; pericial e inspeção judicial), o art. 332 desse diploma processual

permite que “todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que

não especificados neste Código” sejam hábeis para provar “a verdade dos fatos, em

que se funda a ação ou a defesa.” Em princípio, tudo que seja admitido em Direito

pode ser prova.

Ainda conforme Didier (2008, v.2, p. 133), “documento é uma coisa

representativa de um fato por obra da atividade humana”, considerando-se, como o

jurista aponta (op. cit., p. 134): o DVD com gravação audiovisual, o CD com

gravação sonora, a fotografia impressa, o e-mail, dentre tantos outros. A matéria

jornalística se enquadra formalmente como uma prova documental, sendo sua

inclusão costumeiramente aceita em processos judiciais76.

Todos os documentos anexados num processo judicial não o são de modo

aleatório ou neutro. Ao contrário, tudo é extremamente parcial. Cada polo litigante

efetua a juntada de documentos tendo por objetivo executar uma estratégia de

75

Anteriormente já discutimos que as decisões judiciais seguem o princípio do “livre convencimento

motivado” dos magistrados. 76

Exemplo de matéria jornalística anexada em autos processuais encontra-se na jurisprudência do

Superior Tribunal de Justiça (STJ), conforme noticiado em http://stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=97563

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persuasão.

Descrever a mobilidade da matéria jornalística de um contrato para outro,

avaliar como se deu a ampliação das visadas, discutir como se configuraram

diferentes situacionalidades significa analisar como esse gênero se constrói como

ação prática na dinâmica da vida coletiva. Essas são propriedades funcionais

relevantes para se debater a questão do gênero, considerando-se a concepção de

discurso enquanto prática sócio-histórica.

Passemos agora a verificar as circunstâncias que determinaram os contratos

de comunicação acima referidos, passando, assim, a tratar da instituição dos

sujeitos dos atos linguageiros, o que por sua vez guarda relação direta com os

aspectos genéricos. Serão avaliados, pois, dois quadros comunicacionais: o da

matéria publicada pela instância jornalística, isto é, pelo “O Tempo” e o da matéria

jornalística juntada ao inquérito civil, no Procedimento Administrativo Cível.

O primeiro quadro pode ter sua representação assim definida:

Quadro 4: Quadro de contrato comunicacional da matéria jornalística de “O Tempo” veiculada na instância midiática Fonte: Elaborado pelo autor a partir Charaudeau (2009a)

Nesta enunciação jornalística, o sujeito comunicante encontra-se constituído

pelos profissionais da empresa “O Tempo”, possivelmente os redatores da agência

de notícias, os quais têm um projeto visando a um destinatário idealizado (TUd),

configurado por eventuais leitores desse jornal, interessados em obter informações a

respeito da questão da produção de energia elétrica no Estado de Minas Gerais.

Para alcançar esse objetivo, EUc se desdobra num sujeito enunciador (EUe).

Circuito externo / dimensão psicossocial

EUc: TUi Profissionais da

Agência de notícias Leitor efetivo da

do Jornal “O Tempo” matéria

Circuito interno / dimensão enunciativa

EUe: porta-voz

dos impactos

socioambientais

positivos pela

construção da

UHE Irapé

TUd: leitores

de “O Tempo”

interessados na

questão da

energia

elétrica

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Retomando a proposta teórica de Charaudeau (2009a, p. 63), buscando responder

ao questionamento “quem o texto faz falar?” verificamos no percurso argumentativo

desta matéria a presença de uma voz ecoante, anunciando exclusivamente os

positivos impactos socioambientais oriundos da atual implantação e da futura

operação da Usina de Irapé. A presença desse sujeito enunciador não é ocultada.

Quando discutirmos os excertos selecionados da matéria, apontaremos por que

notamos que isso é mostrado de forma tão ostensiva. Vale lembrar que EUe e TUd

são os protagonistas do ato de linguagem, instituídos no espaço do dizer, no circuito

interno dessa enunciação.

No espaço externo à fala configurada, são parceiros o sujeito comunicante

(EUc) e o sujeito interpretante (TUi), no caso, os leitores efetivos da matéria do

jornal, consumidores das informações veiculadas.

Já o segundo quadro, referente ao contrato em que a matéria é apropriada e

deslocada para a instância judiciária, a representação é um pouco distinta:

Quadro 5: Quadro de contrato comunicacional da matéria jornalística de “O Tempo” veiculada na instância judiciária Fonte: Elaborado pelo autor a partir Charaudeau (2009a)

Os sujeitos comunicantes, seres sociais, são os representantes da Cemig,

que figurava como requerida no Procedimento Administrativo Cível, relativo ao

inquérito civil. Tivemos acesso aos autos e pudemos verificar que, na maioria das

vezes, dois indivíduos prestavam esclarecimentos ao Ministério Público Federal, na

condição de representantes da concessionária de energia: M. N. C. e D. B. M., cujos

Circuito externo / dimensão psicossocial

EUc: TUi: Representantes da

Cemig - Requerida

no PAC Procuradores da

República

(membros do MPF),

que deram andamento

ao PAC,

Serventuários do MPF,

Interessados

Circuito interno / dimensão enunciativa

EUe: porta-voz

dos impactos

socioambientais

positivos pela

construção da

UHE Irapé

TUd:

Procuradores

da República

com atuação

no PAC e

Juiz

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nomes serão indicados apenas pelas iniciais e cujos cargos ocupados à época serão

omitidos, em decorrência de nossa proposta de não expor nenhuma pessoa física

envolvida tanto na ação civil pública quanto no PAC. Por essa razão, depreendemos

que eles tomaram a iniciativa do processo de dizer, com o ato de juntar a matéria

jornalística, instituindo um projeto de fala baseado nas visadas de informação,

captação / incitação e de comprovação (visada probatória).

Nesta encenação jurídica, o sujeito enunciador, construído como ser da fala, é

o mesmo da matéria da instância jornalística: o porta-voz dos inúmeros benefícios

trazidos pela Usina de Irapé.

Todavia, o sujeito destinatário é diferente: aqui o enquadramento enunciativo

é voltado para os procuradores da República, membros do Ministério Público

Federal, que atuariam no inquérito civil. Essa atuação pode ser hipotética, pois em

alguns casos ocorre o fato de um procurador dar início aos procedimentos e depois

ser substituído por outro, em razão de férias, promoções etc.

Configura-se enquanto TUd, sob o nosso ponto de vista, também o juiz do

caso, como afirmamos acima. Ainda que ele não participe do inquérito civil (o qual é

presidido pelo MPF), na hipótese de se comprovar o não cumprimento das medidas

celebradas no TAC, haverá uma ação de execução, esta sim destinada para o

magistrado da causa. Por essa razão, a Cemig, como investigada, igualmente

orienta sua atividade enunciativa / argumentativa visando ao convencimento do

julgador.

A Cemig, sabedora das penalidades que lhe poderiam ser imputadas, objetiva

uma total conformação entre o sujeito TUi- procuradores da República,

representantes do MPF, que de fato conduziram o inquérito civil, e o sujeito

destinatário. Outros seres históricos também podem se configurar enquanto TUi, tais

como os servidores que laboravam no Ministério Público, promovendo

burocraticamente o andamento processual, e demais interessados que tenham se

informado dos documentos anexados ao PAC.

Quando analisamos os enunciados selecionados no gênero petição inicial,

dissemos que toda a estrutura argumentativa se fundamentava no princípio do

desenvolvimento sustentável. Com relação à matéria jornalística isso não se deu de

modo diverso. A discursivização empreendida pela Cemig foi embasada pelo mesmo

princípio. A diferença reside no aspecto escolhido pela concessionária: o do

desenvolvimento econômico, como se verá adiante.

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A publicação do Jornal “O Tempo”, conforme explanado acima, ocorreu em

19/12/2004. Foram destinadas à matéria objeto desta tese 8 (oito) páginas num

caderno intitulado “ESPECIAL”, de uma edição de domingo. Segundo relatório de

pesquisa quantitativa realizada pela Federação Nacional das Agências de

Propaganda, os leitores consideram o domingo o dia mais importante para se ler

jornal77. Esse dado pode indicar o porquê da veiculação da matéria sobre a Usina de

Irapé nesse dia, sendo-lhe, inclusive conferido um status de reportagem especial.

Conforme Paulino (2003, p. 47), “o espaço da notícia no jornal já se faz índice da

importância dada a ela, da intenção do jornal de fazer chegar ao leitor sua visão

daquele fato.”

Pelo menos três interesses estavam em jogo discursivamente: o político (uma

vez que a própria matéria faz menção ao fato de a obra ser “estratégica para o

governo de Minas Gerais”); o econômico (há um texto tratando especificamente do

consórcio das 5 empresas responsáveis pelo empreendimento, no rodapé de cada

página estavam estampadas suas logomarcas e a última página é inteiramente

dedicada a elas) e o social (no sentido de, conforme a ótica do Jornal, seria

relevante levar as informações ao grande público sobre os benefícios

socioeconômicos propiciados pela usina). Retomaremos esses tópicos ao longo da

análise.

Em se tratando da formatação da matéria relativa à enunciação que tomou

lugar na instância judiciária, ela foi apresentada sob a forma de uma cópia

xerográfica, ocupando no inquérito civil 15 (quinze) páginas de papel no tamanho A4

(cada uma das 8 páginas do tamanho efetivo do jornal foi dividida em duas),

seguindo a sequência dos números de 001667 a 00168. Com o intuito de facilitar a

referência às páginas, a partir de agora convencionaremos a adoção da numeração

de 01 a 1578. Muito embora recorramos a informações veiculadas ao longo de toda a

matéria, iremos nos debruçar especificamente sobre enunciados selecionados das

páginas 01, 02, 03, 04, 06, 07, 08 e 09, cujos textos trouxeram argumentos que

defendiam a viabilidade e a sustentabilidade da implantação da usina, segundo a

perspectiva da Cemig.

77

De acordo com a pesquisa, realizada em março de 2010, 42,3% consideram o domingo o dia mais importante da semana para se ler jornal (a segunda-feira ficou em 2º lugar, com 30,6%). Disponível em: http://www.fenapro.org.br/relatoriodepesquisa.pdf 78

Essas 15 páginas podem ser vistas na íntegra nos Anexos deste trabalho.

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162

A exemplo do que foi feito com relação à petição inicial, passaremos a discutir

os excertos selecionados da matéria, a fim de desenvolvermos a análise dos

procedimentos inscritos nos objetivos desta pesquisa.

Na página 01, foi estampada a capa da matéria, a qual, tendo por fundo uma

imagem aérea da usina ainda em construção, trouxe como antetítulo e título,

respectivamente, os seguintes dizeres:

Há um jogo enunciativo que trabalha semanticamente o vocábulo “luz”. É

óbvio que a instalação de uma usina hidrelétrica produz energia para gerar

iluminação. Mas aqui há uma constituição metafórica de luz que remonta a um

imaginário de salvação, como se a usina fosse “a luz no final do túnel” para os

moradores locais. Referido imaginário traz consigo um forte apelo do discurso

religioso: aquele que estava na escuridão simbolizada pelo túnel depara-se, enfim,

com uma luz redentora, divina.

Charaudeau (2006b, p. 254) aponta que uma vez selecionados os

acontecimentos, as mídias os relatam de acordo com um “roteiro dramatizante”,

citando como exemplo o 11 de setembro, consistindo em:

(1) Mostrar a desordem social com suas vítimas e seus perseguidores; (2) Apelar para a reparação do mal, interpelando os responsáveis por este mundo; (3) Anunciar a intervenção de um salvador, herói singular ou coletivo com o qual cada um pode

identificar-se.

O fragmento acima ilustra bem uma das estratégias das quais o sujeito

argumentante lança mão: a construção de um enredo carregadamente dramático,

em que a UHE Irapé aparece como um elemento de salvação para o povo da região

do Vale do Jequitinhonha. É possível pensarmos como isso foi estruturado:

a) existe um status quo de sofrimento do povo do Vale do Jequitinhonha, sobretudo

caracterizado pela pobreza;

b) a solução para esse problema se dará com a construção da Usina Hidrelétrica de

Irapé;

c) aparecem as figuras da Cemig e do Estado de Minas Gerais como os benfeitores

responsáveis pela implantação da usina.

HIDRELÉTRICA DE IRAPÉ

UMA LUZ NO JEQUITINHONHA

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163

Ainda na capa (página 01), é inserida uma chamada79, a qual transcrevemos:

Discursivamente percebe-se que o sujeito enunciador da matéria ampara-se

em recursos de espetacularização dos fatos. Para tratar da altura da usina, traz

como exemplo talvez o maior ícone mundial utilizado de forma espetacularizada pela

mídia: as extintas torres do World Trade Center. O interessante é que é citado um

fato que notoriamente se volta para o imaginário de destruição, de morte. Basta

lembrar que com os ataques dos aviões que derrubaram as torres foi contabilizado o

número de mortos em 3.04580. Entretanto, se por um lado faz-se referência a um

evento trágico que ensejou tamanha comoção, gera-se, por outro, um efeito de

sentido que remonta ao imaginário sociodiscursivo de renovação, superação,

celebração da vida, uma vez que os Estados Unidos buscaram, após o incidente,

garantir a manutenção de uma imagem de poder e de hegemonia política. Referido

imaginário será ainda retomado, sustentando a fala de EUe.

A nosso ver, no bojo dessa construção linguageira, inicia-se em termos

enunciativos a configuração pela Cemig de um ethos de benfeitora, de salvadora. A

empresa traz a boa nova à sociedade: a obra da Usina de Irapé, que representa,

discursivamente, algo grandioso para a região Nordeste.

Nesse excerto, tudo relacionado ao empreendimento é representado de forma

espetacular e maiúscula. As dimensões da usina são ostentadas faraonicamente:

com “208 metros de altura”, sendo a “mais profunda represa do país” e um dos

“maiores empreendimentos nacionais em infra-estrutura”, com investimento de “R$ 1

bilhão”.

79 Chamada: Pequeno texto usado na primeira página para chamar a atenção do leitor para

determinado material (Cf. Glossário de Jornalismo, disponível em: www.neteducacao.com.br), 80

Dado disponibilizado pela Folha online, disponível em:

http://www1.folha.uol.com.br/folha/reuters/ult112u9396.shtml

Com 208 metros de altura, que correspondem à metade as extintas torres World Trade Center, a Usina Presidente Juscelino Kubitscheck ou hidrelétrica de Irapé, que a

Companhia Energética de Minas Gerais – Cemig – está construindo no Rio Jequitinhonha será a mais profunda represa do país. A empresa está investindo cerca de R$ 1 bilhão na obra que é, também, um dos maiores empreendimentos nacionais

em infra-estrutura. A formação do lago começará, provavelmente, no final de janeiro e depende apenas da remoção para suas novas casas dos últimos moradores atingidos

pela inundação.

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Em se tratando dos elementos que constituem o dispositivo argumentativo

(proposta, proposição e persuasão), é possível avaliar que a concessionária de

energia elétrica lançou mão do seguinte dispositivo argumentativo:

- Proposta: a efetivação da construção da Usina Hidrelétrica de Irapé trará

desenvolvimento à região do Vale do Jequitinhonha.

- Proposição: porque solucionará os problemas socioeconômicos da sofrida

população regional.

Na página 02 da matéria, textualmente podemos verificar a apresentação da

proposta do sujeito argumentante, que se concretiza no seguinte enunciado,

composto por um título, seguido de um bigode81:

Novamente há uma transposição do estado das coisas: apesar da riqueza

(que é só em “cultura”, segundo EUe), da tradição e da humanidade, somente agora

a região terá contada a sua “nova” história, com os contornos do desenvolvimento

econômico, transparecendo um efeito discursivo que se ampara no imaginário de

renovação.

Aludido imaginário também abarca outros discursos tais como o que sustenta

a ideia de que o “povo brasileiro sempre acredita na mudança para melhor”; que, a

despeito de todos os infortúnios, não perde a esperança. De 2005 a 2011, o governo

federal se apropriou desse discurso veiculando massivamente a campanha

motivacional “Sou brasileiro e não desisto nunca”. Um dos criadores da campanha,

Homen Salão, apontou o que seria o “verdadeiro” significado do discurso

governamental:

O verdadeiro significado da frase é que, independente da exploração, do descaso, da miséria, da falta de recursos básicos, do desrespeito aos direitos humanos, da subserviência institucionalizada, da infinda opressão de impostos cada vez maiores, da infraestrutura precária, da corrupção como prática normalizada, o povo deve permanecer honesto e

81 De acordo com o Glossário de Jornalismo (Disponível em: www.neteducacao.com.br), bigode é um

“fio de um ponto tipográfico que serve para marcar uma separação visual entre textos e/ou ilustrações. Sua característica é não ocupar toda a medida do material que ele separa. É centralizado nela de forma a deixar margens brancas de igual extensão nos dois lados.”

A nova história do Jequitinhonha

Rica em cultura, tradição e humanidade, região terá agora o seu tão sonhado desenvolvimento econômico

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íntegro sempre, acreditando que as coisas mudarão82.

Carregado de um forte teor dramático, o enunciado permite a leitura de que

agora o tão “sonhado” desenvolvimento não seria uma quimera, uma esperança,

mas a “realidade” proporcionada pela Usina de Irapé.

Ainda na página 02, encontramo-nos diante da proposição do argumentante,

configurada no excerto abaixo:

Na sua busca de influência, o sujeito enunciador promove sua atividade de

persuasão, colocando em prática procedimentos voltados à adesão do sujeito

interpretante. Lança-se mão do procedimento discursivo de definição do Vale do

Jequitinhonha. Isso ocorre na medida em que são descritos aspectos naturais,

sociais, produtivos e estruturais da região. A pobreza – tanto no aspecto natural

(solo árido, castigado por secas e enchentes), quanto no sociológico (com

reprodução social baseada em atividades pouco lucrativas, como a pecuária e a

agricultura) – é designada como a principal característica do Vale, sendo ela

responsável pelo sofrimento experimentado pela população local. Há uma “longa

história de sofrimento” e um “cenário de desolação” que, com o advento da obra

deixarão de existir. Tudo lembra uma narrativa dramática, que tem seu ápice no

momento em que a Usina de Irapé vem como a reparadora do mal historicamente

instaurado.

Em termos do procedimento semântico, discursivamente o enunciador filia-se

ao domínio do pragmático, apresentando sua noção acerca do que seria

considerado útil para os moradores da região, numa postura que valoriza

positivamente a riqueza, o desenvolvimento econômico.

Já dissemos anteriormente que o fundamento maior que estrutura os

82

Disponível em: http://www.noticiasglobais.com/brasil/governo-brasileiro-desiste-da-campanha-sou-

brasileiro-e-nao-desisto-nunca/

Ao Nordeste de Minas Gerais, está o Vale do Jequitinhonha, marcado por uma longa história de sofrimento, que se encerrará agora, com a inauguração da Usina de Irapé. (...) A maior parte do solo é árida, sendo castigada regularmente por secas e enchentes. A pecuária extensiva é a sua principal atividade econômica, seguida pela produção agrícola. (...) Nesse cenário de desolação, a usina será fundamental para atrair empreendimentos industriais, criar pólos de geração de empregos e renda, melhorar a infra-estrutura de transportes e, principalmente, fortalecer a vocação turística do Vale.

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procedimentos argumentativos do sujeito enunciador dessa matéria jornalística se

encontra consubstanciado no imaginário sociodiscursivo do “desenvolvimento

econômico”, sendo este o pilar, segundo a ótica da Cemig, da sustentabilidade.

Vale nos reportarmos a alguns discursos-textos83 que fundamentam essa

ideia de desenvolvimento sustentável, a fim de verificar de que modo esse

imaginário vem se consolidando sócio-historicamente.

A expressão ‘desenvolvimento sustentável’ foi primeiramente utilizada na

Declaração de Estocolmo em 1972. Em seguida, no ano de 1987, foi trazida

expressamente em documento assinado pela Organização das Nações Unidas, que

ganhou o nome de Relatório de Brundtland. Posteriormente, teve sua ratificação

definitiva na Conferência do Rio de Janeiro, ECO-92, na qual foi citada em 11 dos

vinte e sete princípios lá preceituados. Para citar um exemplo, vejamos o que dispõe

o Princípio 4:

A fim de alcançar o desenvolvimento sustentável, a proteção do ambiente deverá constituir-se como parte integrante do processo de desenvolvimento e não poderá ser considerada de forma isolada.

O desenvolvimento sustentável é também tratado pela Constituição Federal

de 1988, em seu art. 225, caput, ao determinar que “incumbe ao Poder Público e à

coletividade o dever de defender e preservar o meio ambiente ecologicamente

equilibrado para “as presentes e futuras gerações.”

Igualmente já nos reportamos à sua noção conceitual, segundo a qual, nos

dizeres de Sirvinskas (2009, p. 58), o desenvolvimento sustentável “procura conciliar

a proteção do meio ambiente com o desenvolvimento socioeconômico para a

melhoria da qualidade de vida do homem. É a utilização racional dos recursos

naturais não renováveis.” Aludido autor ainda aponta que esse princípio também é

conhecido como “meio ambiente ecologicamente equilibrado ou

ecodesenvolvimento”.

Vale enfatizar que talvez o maior desafio em termos da política ambiental

mundial seja o de buscar garantir o equilíbrio entre os valores relacionados ao

crescimento socioeconômico – que obviamente traz em seu bojo o acesso do

indivíduo a melhores condições financeiras – e aqueles que orientam a preservação

ambiental, a fim de que não se comprometa a perenidade de recursos naturais e de

83

Novamente utilizamos o vocábulo “discursos-textos”, em alusão à citação de Charaudeau (2006a,

p. 205), para o qual alguns imaginários “podem ser racionalizados por discursos-textos que circulam nas instituições (escolas, constituições de Estados, justiça etc.)”

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processos ecológicos, bem como não sejam desconstituídos valores culturais e

históricos próprios das coletividades. Essa matemática não é simples. O embate

argumentativo entre o Ministério Público Federal e a Cemig gira efetivamente em

torno desse imbróglio ambientalista.

A arquitetura argumentativa erigida pelo sujeito enunciador volta-se também

para a figura do Estado de Minas Gerais. Na página 03, num subtexto intitulado

“Aspectos técnicos da obra”, são utilizados procedimentos de composição

classificatória, o que se verifica por meio da retomada de alguns dados técnicos, tais

como a “Localização”, o “cronograma” da obra e os “volumes” a serem alcançados.

Entretanto, o que nos chama a atenção é o enunciado logo após o título,

introduzindo novamente a questão da obra de Irapé:

Nesse excerto, vale nos voltarmos para a questão de como o sujeito

enunciador encena sua identidade discursiva valendo-se de uma visada orientada

para a criação de uma imagem positiva. A Cemig, que é uma companhia de capital

aberto controlada pelo Governo do Estado de Minas Gerais84, não é a única

benfeitora de Irapé. O ente federativo igualmente atua na construção de uma nova

ordem socioeconômica para a região. A obra se insere, pois, na agenda política.

No contrato que se estabelece entre a instância política e a instância cidadã,

uma das principais representações que se tem é de que as ações governamentais

serão traduzidas em melhores condições sociais para a população. Essa seria,

inclusive, em tese, uma finalidade da ação política. No fragmento selecionado, lê-se

que o interesse estatal pela usina se inscreve por sua importância social e

econômica, sendo então, um empreendimento estratégico, ou seja, algo pensado

para o futuro, visando a resultados concretos.85 Pela exposição do enunciado, é

84

De acordo com o site da concessionária do setor elétrico. Disponível em:

http://www.cemig.com.br/pt-br/a_cemig/quem_somos/Paginas/default.aspx 85

Segundo Mintzberg (2001), teórico da área de Administração de Empresas, “estratégia” trata-se da

“forma de pensar no futuro, integrada no processo decisório, com base em um procedimento formalizado e articulador de resultados.” (Cf. MINTZBERG, Henry; QUINN, James. O processo da estratégia. 3.ed. Porto Alegre: Bookman, 2001).

Nas águas do rio Jequitinhonha, entre os municípios de Berilo e Grão Mogol, está sendo construída a Usina Presidente Juscelino Kubitschek , a hidrelétrica de Irapé, obra estratégica para o governo de Minas Gerais, pela sua importância social e econômica para a região.

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possível perceber um efeito de sentido de que o governo tem em Irapé, inclusive, um

objeto de propaganda política. Conforme nosso ponto de vista, instaura-se uma

visada de incitação notadamente marcada, cuja lógica beira quase a do discurso

publicitário.

Em artigo que trata da análise da publicidade, Lysardo-Dias e Gomes (2005,

p. 127), discutindo a encenação publicitária sob o viés do quadro comunicacional de

Patrick Charaudeau, sugerem que o bem de consumo ou serviço que é objeto de

venda/compra é redimensionado como um “objeto cultural ao qual se agregam

valores potencialmente relevantes para um público alvo previamente determinado”

(grifo nosso).

Ora, a despeito de o contrato de fala entre a Cemig e o público alvo do Jornal

“O Tempo”, instaurado na instância jornalística, e aquele constituído entre a

concessionária de energia e o MPF, na instância judiciária, não terem a visada de

fazer com que seus destinatários consumam um produto, sob nossa ótica, a

construção da Usina de Irapé, pela forma como se apresentou em ambas essas

instâncias, indicando-se todas as suas “excelentes” propriedades, guardaria uma

proximidade simbólica com uma enunciação publicitária.

Processa-se uma visada de incitação que impele, interpela o destinatário a

“adquirir” o “produto” UHE Irapé, por sua ótima qualidade (já que são apresentados

somente os benefícios com a implantação da obra). Busca-se a adesão por meio de

uma estratégia discursiva na qual o enunciador demonstra a necessidade (ainda que

imaginada) de “aquisição” do empreendimento por parte de seus interlocutores.

Claro que não se trata de uma aquisição com contraprestação pecuniária, mas

relacionada à “compra da ideia”.

Outra questão relacionada a uma encenação publicitária constante na matéria

analisada, essa, sim, devidamente marcada, volta-se à veiculação das logomarcas

das empresas participantes do consórcio responsável pela construção da usina. Das

8 páginas do jornal (em tamanho real)86, referidas logomarcas aparecem

estampadas por 7 (sete) vezes, sempre ao final de cada página. Ainda lhes é

dedicado um texto87, com dados relativos aos investimentos, em que se informa que

“cerca de R$ 600 milhões, em valores atualizados, serão gastos nas obras civis de

86

Aqui estamos tratando das páginas do Jornal em tamanho real e não das 15 páginas a que fazemos referência na análise. 87

Na página 05 (numeração convencionada anteriormente por nós, de 15 páginas equivalentes às

folhas juntadas ao PAC).

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Irapé”, estando a cargo das consorciadas. Ainda, as duas últimas páginas da

matéria (equivalente a uma página inteira do jornal original) tratam exclusivamente

das empreiteiras, com fotos e um pequeno texto precedido pelo título: “O

CONSÓRCIO CONSTRUTOR DE IRAPÉ SE ORGULHA POR FAZER A SUA

PARTE NO DESENVOLVIMENTO DE MINAS GERAIS”.

Seguindo a análise, na página 04 apresenta-se outro texto na matéria, o qual

replica parte da chamada que segue o título, por nós já discutida. Faz-se menção

novamente ao aporte oferecido pelo governo do Estado, “que participa com 90

milhões”.

Alguns excertos merecem comentários:

Configura-se, a nosso ver, um procedimento de composição diferente

daqueles propostos por Charaudeau no arcabouço teórico descritos por nós no

subcapítulo 3.3 da pesquisa (de composição linear e composição classificatória).

Trata-se de uma retomada, quase literal, de argumentos, que já haviam sido

expendidos pelo sujeito enunciador na página 02 da matéria, concernentes às

vantagens socioeconômicas originadas pela construção da Usina. Essa repetição

busca reforçar e legitimar aludidos argumentos, trazendo-lhes uma aura de maior

veracidade, buscando-se, assim, a adesão de TUi. Comparemos os enunciados das

páginas 02 e 04:

Página 02 Página 04

- “atrair empreendimentos industriais

- “criar pólos de geração de empregos

e renda”.

- “melhorar infra-estrutura de

transporte”

- “fortalecer vocação turística”

- “atrair empreendimentos industriais”

- “gerar empregos”

- “fortalecer vocação turística”

O tópico “pobreza” é igualmente rediscutido na página 04, em torno do qual o

sujeito enunciador alude ao baixo índice de desenvolvimento humano das pessoas

que viviam na região, à época:

(...) a hidrelétrica será fundamental para atrair empreendimentos industriais, gerar empregos e até fortalecer a sua vocação turística.

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É utilizada a locução verbal “estão plantados” complementada por “índices de

desenvolvimento humano mais acanhados do planeta”, gerando semântica e

discursivamente uma ideia que a pobreza está “enraizada” de forma profunda, quase

inexorável, no solo do Jequitinhonha. Entretanto, a Cemig e o Estado de Minas

Gerais, como benfeitores atuando heroicamente, têm o poder de “arrancar o mal

pela raiz”, mesmo que esse seja um mal de contornos planetários... Um tom de

espetacularização permanece enredando a enunciação.

O sujeito social, Cemig, sabedor da sua posição de requerido no inquérito

civil, neste excerto enuncia de um lugar de contestação ao que o Ministério Público

Federal discutira exaustivamente na petição inicial pesquisada no capítulo

precedente desta tese: no momento em que se faz referência ao quilombo de Porto

Coris como “esquecido”, há um movimento de refutação ao órgão ministerial, para

quem o esquecimento partiu justamente da empreendedora que não considerou a

existência dessa comunidade quilombola no Estudo de Impacto Ambiental /

Relatório de Impacto Ambiental quando da apresentação do licenciamento da Usina

de Irapé.

Ainda na página 04, colacionamos o seguinte enunciado, precedido do

intertítulo “Exército de trabalhadores”:

O nome do engenheiro, pelos mesmos motivos explanados antes, não será

indicado. A tessitura argumentativa se constrói sobre o ideário da força, do poder ao

estilo militar. Muito embora tenha havido vários percalços para a execução da obra,

menciona-se, por exemplo, que as “máquinas demoraram mais de três meses” para

alcançar regularmente a margem direita do rio, não se impediu o ato de bravura do

“exército” de mais de 3.600 homens para atingir seus objetivos. Isso nos lembra uma

narrativa de guerra, com soldados sendo comandados por um líder.

Já nas páginas 06 e 07, sob o título “PERSONAGENS DE IRAPÉ”, é inserido

um subgênero no macrogênero matéria jornalística, qual seja, o relato de vida. Os

relatos trazidos pelo enunciador se configuram, em realidade, como procedimentos

Naquela região, onde vivem (sic.) quase um milhão de pessoas, estão plantados alguns dos índices de desenvolvimento humano mais acanhados do planeta, como o esquecido quilombo de Porto Coris, no município de Leme do Prado, onde poucas casas tem (sic) água encanada ou banheiro com louça sanitária.

O engenheiro P. comanda um exército que chegou a alcançar 3.600 homens, em novembro último e mais de 500 máquinas e tratores (...)

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discursivos de descrição narrativa. A construção identitária dos sujeitos /

personagens se realiza de acordo com a representação imagética que o Jornal tem

de cada um deles. Isso porque não se dá a fala a nenhum dos indivíduos sobre os

quais se relata, não havendo ocorrência de discurso direto. A descrição de seus

estados é exclusivamente proposta e desenvolvida pelo EUe da matéria, que traz

recortes de acontecimentos para caracterizar a identidade dos moradores da região.

Selecionamos alguns enunciados, cuja análise pode, segundo nossa

perspectiva, contribuir para aprofundar a descrição de como se instrumentalizou o

gênero matéria jornalística no âmbito da seara ambientalista de Irapé. Todos os

fragmentos são precedidos por uma foto88; trazem um destaque e logo se segue a

legenda, na qual se inserem os relatos em si. Na página vemos:

Ao se promover a descrição da vida dos moradores, o sujeito enunciador põe

em jogo um discurso que se volta para o valor da proximidade, da intimidade. De

algum modo, essa visada de captação demonstraria que os gestores da execução

da obra da usina não se preocupariam tão somente com números, cifras e

resultados, mas com as pessoas reais.

Novamente toca-se na questão da comunidade quilombola de Porto Coris,

agora por meio do relato de um morador, o senhor A. M.. O interessante é que ele é

referido como não descendente de escravo, apenas o “marido da professora local”

supostamente o seria. Discursivamente, emerge um efeito de sentido que ampara a

argumentação da Cemig com relação ao TAC assumido com o MPF (na ação civil

pública) e ao inquérito civil instaurado: de que a situação da identidade da

comunidade não é tão clara assim: A. M. não é descendente de escravo, então será

que Porto Coris pode ser considerada remanescente de quilombos? Quem

descende de escravo é um ser “sem nome”, sabe-se lá se também o é. Geram-se

88

Não serão discutidas nesta pesquisa as fotos. Isso porque não está entre os nossos objetivos

realizar uma descrição de conteúdo icônico. Os nomes dos moradores serão apontados pelas suas iniciais.

SONHO REALIZADO

A. M. e seus dois filhos, em frente à sua casa, de 150 metros quadrados, no quilombo de Porto Coris. A propriedade estará submersa dentro de noventa dias e está localizada na margem direita do Jequitinhonha, no município de Leme do Prado. Ele não é descendente de escravos, mas o marido da professora local. Adão realizará o sonho de ter uma escritura de imóvel em seu nome e receberá 40 hectares de indenização.

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dúvidas quanto à convicção técnica da identidade coletiva.

EUe ainda se atém à realização do “sonho” do morador de se adquirir a

escritura do imóvel. No capítulo 3 desta tese, fizemos alusão ao art. 68 do Ato das

Disposições Constitucionais Transitórias, que textualmente aduz:

Aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.

Assim, o argumento de que a Cemig é que proporcionaria a regularização da

documentação do imóvel do morador não se sustenta legalmente, porque o simples

reconhecimento da comunidade como remanescente de quilombos por si só já

garantiria o direito ao título imobiliário.

Outro relato, cuja legenda já se encontra na página 07, trata de uma jovem de

22 anos, vejamos com se deu a constituição de sua imagem pelo EUe:

São ativados enunciativamente pelo menos três imaginários neste enunciado

sobre o relato da vida de H. A.

O primeiro diz respeito ao imaginário, socialmente bastante valorizado, da

“ascensão social pelo trabalho”. Atribuída a Benjamin Franklin (1706-1790), a noção

de que “o trabalho dignifica o homem” remonta ao discurso religioso cristão, com

exaustiva circulação no Ocidente. Existem inúmeras passagens bíblicas remetendo

à ideia segundo a qual o trabalho realizado pelo homem agrada aos olhos de Deus:

no Salmo 128:1-2, consta que são “felizes todos os que temem Iahweh e andam em

teus caminhos! Do trabalho de tuas mãos comerás, tranqüilo e feliz”; na passagem

do livro Eclesiastes (3:13) lê-se: “E, que o homem coma e beba, desfrutando do

produto de todo o seu trabalho, é dom de Deus”; já no texto do Evangelho de Lucas

(10:7), Jesus se reporta aos seus discípulos dizendo que “o operário é digno de seu

NAS NUVENS H.A., 22 anos. Tem o segundo grau completo e mora em Virgem da Lapa, a menos de 40 km de Irapé, onde trabalhava como empregada doméstica e recebia R$ 50,00. Foi admitida na obra como auxiliar de limpeza, em 2002. Ela ficou muito feliz, pois teria carteira assinada e salário de R$ 300 mensais. Desde então foi promovida duas vezes e hoje trabalha no setor de contabilidade. O salário pulou para mais de R$ 800,00 fora as horas extras e assistência médica extensiva à sua filha de três anos. Em julho, durante a solenidade de desvio do rio, conheceu o engenheiro, D. F., de 27 anos, que chegara à obra naquela manhã. Apaixonaram-se à primeira vista e ficaram noivos em

12 de outubro, dia de Nossa Senhora Aparecida, de quem é devota.

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salário”89.

No que tange ao discurso jurídico, o imaginário de ascensão social pelo

trabalho encontra eco em dispositivos legais da Constituição e do direito ambiental.

A eles iremos nos ater em vista de se aproximarem dos nossos objetivos de tratar a

enunciação da sustentabilidade. Todavia vale mencionarmos que há diversas outras

áreas do Direito voltadas à atividade laborativa, dentre as quais podemos citar,

exemplificativamente, o Direito do Trabalho, o Direito Empresarial, o Direito

Previdenciário, o Direito Tributário.

A Constituição Federal de 1988, em seu art. 1º, indica como um dos

fundamentos do Estado Democrático de Direito “os valores sociais do trabalho e da

livre iniciativa”. O art. 170 do texto constitucional amplia a discussão do tema,

tratando expressamente da ordem econômica e financeira, a qual é fundada no

trabalho humano e na livre iniciativa e tem por finalidade “assegurar a todos

existência digna, conforme os ditames da justiça social”. Convencionou-se

denominar esse discurso constitucional como o “princípio da livre iniciativa”.

Importante dizer que a defesa do meio ambiente é um de princípios

norteadores do art. 170 (inciso VI). Fiorillo (2008, p. 27) explicita que, em termos

ideais, deve-se conciliar a proteção a recursos ambientais e o desenvolvimento

econômico, uma vez que “os recursos ambientais não são inesgotáveis, tornando-se

inadmissível que as atividades econômicas desenvolvam-se alheias a esse fato.”

O constitucionalista português, José Joaquim Gomes Canotilho, lança luzes

sobre o que ele chamou de “fenômeno de tensão entre princípios”, fazendo

referência à dificuldade de se avaliar, no âmbito do Judiciário, um fato que põe em

movimento a aplicação de princípios constitucionais conflitantes. O autor refuta a

noção de se pretender a existência de validade absoluta dos princípios, propondo,

ao invés disso, a aplicação de um juízo de ponderação:

A pretensão de validade absoluta de certos princípios com sacrifício de outros originaria a criação de princípios reciprocamente incompatíveis, com a conseqüente destruição da tendencial unidade axiológico-normativa da lei fundamental. Daí o reconhecimento de momentos de tensão ou antagonismo entre os vários princípios e a necessidade de aceitar que os princípios não obedecem, em caso de conflito, a uma ‘lógica do tudo ou nada’, antes

podem ser objecto de ponderação e concordância prática, consoante o seu ‘peso’ e as circunstâncias do caso (CANOTILHO, 1995, p. 190).

89

Os trechos citados foram extraídos de A Bíblia de Jerusalém, São Paulo: Paulinas, 1986,

respectivamente das páginas 1095, 1170 e 1949.

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Voltamo-nos nesse momento da pesquisa a essa questão pois ela é o cerne

do embate argumentativo entre a Cemig e o Ministério Público Federal: a

concessionária de energia defende o desenvolvimento econômico – um dos valores

perseguidos pelo ideal desenvolvimento sustentável –, resultante da construção da

Usina de Irapé, baseando-se, dentre outros imaginários, no que ampara o princípio

da livre iniciativa; e do lado oposto o órgão ministerial, o qual também encontra

esteio no desenvolvimento sustentável, mas arrazoando que a implantação da

hidrelétrica vai de encontro à proteção a valores ambientais primordiais, sendo,

então, inviável.

Após a Constituição de 1988 e as Conferências sobre o meio ambiente,

sobretudo a partir da ECO-92, tenta-se política e juridicamente alterar o paradigma

de que vale tudo em termos de degradação ambiental para se alcançar

desenvolvimento econômico. O que se busca é a coexistência entre o trabalho e a

livre iniciativa e um meio ambiente ecologicamente equilibrado em todas as suas

nuances (natural, artificial, cultural e laboral).

Fiorillo (2008, p. 36) traz sua postura acerca do princípio do desenvolvimento

sustentável e a relação entre preservação ambiental e desenvolvimento econômico,

dizendo que:

Devemos lembrar que ideia principal é assegurar existência digna, através de uma vida com qualidade. Com isso, o princípio não objetiva impedir o desenvolvimento econômico. Sabemos que a atividade econômica, na maioria das vezes, representa alguma degradação ambiental. Todavia, o que se procura é minimizá-la, pois pensar de forma contrária significaria dizer que nenhuma indústria que venha a deteriorar o meio ambiente poderá ser instalada, e não é essa a concepção apreendida no texto. O correto é que as atividades sejam desenvolvidas lançando-se mão dos instrumentos existentes adequados para a menor degradação possível.

O entendimento do Supremo Tribunal Federal no que tange à dicotomia

atividade econômica e direito à preservação do ambiente tem sido no sentido de que

deve prevalecer o “princípio do desenvolvimento sustentável como fator do justo

equilíbrio entre as exigências da economia e as da ecologia”, como se depreende da

ADI-MC 3540/DF, cujo Relator foi o Ministro Celso de Mello, em decisão publicada

dia 03/02/2006. Esses são imaginários sociodiscursivos que fundamentam os

dizeres no âmbito das questões ambientais que tratam do desenvolvimento

sustentável. Mas a aplicação prática de tudo isso não é tão fácil.

Ainda no que diz respeito ao imaginário de ascensão social pelo trabalho, vê-

se no enunciado do relato de H. A. toda uma construção, positiva para o sujeito

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enunciador, da transposição do lugar social que agora a jovem passa a ocupar: ela

era empregada doméstica, profissão pouco valorizada (cuja classe até hoje

encontra-se às turras com o Legislativo que ainda não a equipara com os demais

trabalhadores); passa para auxiliar de limpeza com um incremento salarial e

posteriormente chega ao setor de contabilidade, com um salário maior ainda,

somado aos benefícios da carteira assinada e assistência médica extensiva à filha.

O ethos de benfeitora da Cemig vem à tona novamente, pela forma como são

apresentadas as informações, porquanto são engendrados ethé pela maneira como

se discutem as ideias. Há um efeito de sentido de que os atos voltados à

personagem cuja vida é relatada foram praticados por pura bondade. Ocorre que a

assinatura da carteira é um direito garantido por lei a cada trabalhador e caso a

empresa não a assinasse em 48h após a admissão já estaria em descumprindo à

legislação e ao entendimento jurisprudencial, inclusive sendo obrigada a pagar multa

correspondente a 1 (um) dia de salário, por dia de atraso90. Não se tratava, pois, de

benevolência, mas de obrigação legal.

A referência aos valores dos salários que a jovem passou a ganhar gera outro

efeito de sentido positivo para a fala de EUe: no contexto histórico da época (de

2002 a 2004, respectivamente, ano em que ela começou a trabalhar, conforme

informado, e o de publicação da matéria), o salário mínimo foi de R$ 200,00 (2002) a

R$ 260,00 (2004)91. Considerando que ela recebia apenas R$ 50,00 atuando como

doméstica e passou a auferir R$ 800,00 no setor de contabilidade, seu ganho

aumentou 16 vezes. A citação desses valores advindos dos empregos – temporários

– proporcionados pela construção da usina funciona como um forte argumento

demonstrativo de que o empreendimento, de fato, trazia benefícios em termos

econômicos para os moradores de Irapé, uma vez que referidos números são dados

verificáveis por qualquer pessoa, conferindo-lhes, pois, um teor de verossimilhança.

O segundo imaginário sociodiscursivo que fundamenta a estrutura

argumentativa do sujeito enunciador é o da “narrativa do conto de fadas”. Não pode

haver nada mais romântico do que a história de amor entre uma princesa e um

90

Precedente Normativo nº 98, do Tribunal Superior do Trabalho (TST): “Será devida ao empregado a indenização correspondente a 1 (um) dia de salário, por dia de atraso, pela retenção de sua carteira profissional após o prazo de 48 horas.” Disponível em: http://www.tst.jus.br/precedentes-normativos 91

Conforme publicação das Medidas Provisórias nºs: 35/2002 e 182/2004.

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príncipe encantado. Como recurso de argumentação, utiliza-se um outro modo de

organização discursivo, no caso, a narração da princesa pobre, configurada pela

jovem H. A., a qual encontra seu príncipe encantado, rico e bem-sucedido, o

também jovem engenheiro, D. F. Num “passe de mágica”, seus olhares se

entrecruzam e a paixão aflora. É o encantamento do “amor à primeira vista”, próprio

dos contos que, de modo maniqueísta, tratam sentimentos complexos como se

fossem um produto a ser adquirido comercialmente. Nesse caso, as “fadas

madrinhas” são a Cemig e o Estado de Minas Gerais, os quais “trouxeram” o

príncipe não a um baile de gala, com pompas e festejos, mas à “solenidade do

desvio do rio”, evento com as mesmas características festivas, possibilitando que

naquela mesma manhã os personagens se apaixonassem.

Finalmente, o terceiro imaginário que sustenta os valores trazidos pela fala de

EUe é o de “respeito às tradições religiosas”. Poder-se-ia ter informado tão somente

que H. A. e D. F. ficaram noivos em 12 de outubro, sem, no entanto, fazer referência

à data que celebra o dia de Nossa Senhora Aparecida.

Em 16 de Julho de 1930, o então Papa, Pio XI, assinou o Decreto constituindo

Nossa Senhora da Conceição Aparecida Padroeira do Brasil. Segundo o censo 2010

do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)92, o número de católicos teve

um certo declínio, de 73,6% em 2000 para 64,6% em 2010. Entretanto, essa religião

ainda apresenta o maior número de adeptos no país. O discurso religioso, e em

especial o católico, influencia o modo de os brasileiros significarem suas próprias

vidas, seja para se aproximar de seus princípios, seja para refutá-los. Na matéria, na

página 02, uma foto com a legenda “Igreja da cidade de Turmalina” faz outra

referência icônica a esse imaginário de respeito às tradições religiosas. O

enunciador mostra-se próximo às tradições locais, à história religiosa do povo, ao

meio ambiente cultural. Discursivamente, talvez isso fosse de valia para a adesão do

destinatário MPF.

Igualmente na página 07, estampa-se o relato da vida de um senhor, já

visivelmente idoso. A legenda traz aspectos enunciativos relevantes para essa

pesquisa:

92

Disponível em:

http://censo2010.ibge.gov.br/noticias-censo?view=noticia&id=3&idnoticia=2170&busca=1&t=censo-2010-

numero-catolicos-cai-aumenta-evangelicos-espiritas-sem-religiao

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Chama a atenção no enunciado o uso do superlativo: o senhor P. M. N. não

está apenas satisfeito, mas “satisfeitíssimo” com as ações da Cemig, que lhe

comprara um imóvel a título de indenização. Na sequência, sob o nosso ponto de

vista, instaura-se um encadeamento de argumentos, cuja construção gera um efeito

de sentido, até certo ponto, de comicidade: EUe afirma, primeiramente, que o

personagem, sobre o qual se fala, está “satisfeitíssimo” com a aquisição do imóvel,

mas caso exista alguma pendência, é por sua culpa exclusiva, pelo fato de não ter

apresentado a documentação da área. Ora, P. M. N. está ou não está

satisfeitíssimo?

Uma leitura diversa é permitida: “você, atingido pela barragem, ‘tem’ de estar

satisfeitíssimo porque a empreendedora é proativa e está fazendo a sua parte em

todos os aspectos, então, faça também a sua!”. Verifica-se um tom quase

interpelativo, que emerge em função da constituição de um ethos de eficácia da

Cemig. Recordamos que uma das obrigações acordadas com o Ministério Público

era justamente implementar todas as ações de remanejamento da população

atingida pela implantação da barragem.

O próximo relato (ainda na página 07) conta a história de R. G. e traz um

segundo personagem, um tatu, que está em seu colo na foto. Há toda uma

construção que remete ao imaginário de proteção ambiental da fauna:

Vale nos reportarmos a alguns discursos do domínio jurídico que

fundamentam esse imaginário. Expressa é a determinação constitucional (art. 225, §

1º, VII) no sentido de que cabe ao Poder Público a proteção da fauna e da flora,

proibidas todas as práticas que coloquem em risco a função ecológica, provoquem a

extinção das espécies ou submetam os animais à crueldade.

SATISFAÇÃO

P. M. N. é um fazendeiro satisfeitíssimo com a Cemig, que lhe comprou 600 hectares de terras para indenizar os atingidos pela inundação. A empresa pagou tudo à vista, sem regatear e se existe alguma pendência é por sua exclusiva culpa, que ainda não apresentou a documentação de toda a área.

RESGATE DA FAUNA R. G. é nascido em Almenara, cidade localizada a 300 quilômetros, rio abaixo. Administrador rural e apaixonado pela vida rural, trabalha num setor que tem a sua cara. É o responsável pelo resgate da fauna, atividade que consiste na captura de animais ameaçados de afogamento, durante a formação do reservatório. O tatu da foto, de nome “Mané”, é primeiro hóspede do seu Centro de Triagem.

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Leandro Eustáquio (2008, p. 41) menciona que “a vedação de práticas que

provoquem a extinção de espécies também é obrigação constitucional” do Estado,

objetivando, pois, “manter, além do equilíbrio ambiental, a biodiversidade.”

Destaca-se, ainda, o art. 32 da Lei 9.605/98 – Lei de Crimes Ambientais –, o

qual dispõe que “praticar ato de abuso, maus tratos, ferir ou mutilar animais

silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos” gera ao infrator pena

de detenção de 3 meses a 1 ano e multa.

Durante a elaboração do Estudo de Impacto Ambiental relativo ao

empreendimento de Irapé produzido pela Cemig, em dezembro de 1993, havia

seções destinadas à proteção da fauna, tais como as que preconizavam estudos do

meio físico, do meio biótico e a do Programa de Estudos de Monitoramento da

Fauna e da Flora93.

No enunciado opera-se novamente o recurso do procedimento discursivo da

descrição narrativa. São apresentadas algumas características que, em princípio,

seriam constituintes da personalidade de R. G.. Menciona-se que ele é “apaixonado”

pela vida rural e o setor onde trabalha é a sua “cara”. Em termos da análise do ato

linguageiro, no que se refere às circunstâncias sociais que determinavam o contrato

entre a Cemig e o MPF, entendemos que no momento em que a empresa veicula a

noção de identidade de alguém apaixonado pela vida rural e com a “cara” do resgate

à fauna acaba igualmente instaurando a sua própria imagem, o ethos pelo qual quer

ser reconhecida, de protetora da fauna. Dizemos isso em virtude de que o gênero

matéria jornalística está nesse momento inscrito na instância judiciária e, conforme

expusemos acima, encontra-se pungente a visada probatória por parte da Cemig,

que objetivava demonstrar ao órgão ministerial – seu TUd – o cumprimento do

compromisso de proteger a fauna.

Outro recurso utilizado pelo sujeito enunciador é o de “personificação” do

animal. É-lhe atribuído um nome, “Mané”, o que gera alguns efeitos discursivos:

a) ao se dar um nome ao animal, promove-se a sua identificação, como se fosse

único, especial. Não é um mero animal, é o “Mané”;

b) a personificação propõe a existência de uma relação de proximidade entre R. G. e

o tatu, pela qual é estabelecido um vínculo de afetividade;

c) ao se mencionar que o animal é o primeiro “hóspede” do Centro de Triagem,

93

No EIA/RIMA mencionado: estudo do meio físico (páginas 34-39); meio biótico (páginas 40-48) e

Programa de Estudos de Monitoramento da Fauna e da Flora (páginas 82,83).

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retoma-se uma noção de hospitalidade e acolhimento. Ele não foi capturado e

trancado num local destinado aos animais, mas sim “recebido”, tal como um

convidado.

O último relato da página 07, sobre o qual lançaremos nosso olhar, trata dos

trabalhadores que compunham parte da equipe de construtores da Usina de Irapé.

Na foto são colocados, lado a lado, 8 funcionários, utilizando capacetes obrigatórios

nas atividades de construção civil. Vejamos o enunciado da legenda:

O destaque da legenda, “Encontro marcado”, enunciativamente sugere uma

reunião entre amigos e expressivamente o tom é de informalidade.

A legenda em si também traz uma linguagem do âmbito do cotidiano, como se

pode verificar com o uso da expressão que dá início ao texto: “Essa turma aí”. São

trabalhadores, mas o efeito gerado é de que são amigos se divertindo, porque

“adoram” construir a usinas, tendo prazer nisso.

Em seguida, estabelece-se um ethos de credibilidade da equipe (e da Cemig),

em função da experiência de cada funcionário em construir hidrelétricas, visto que o

menos experiente já tem três em seu currículo, ou seja, ele mesmo já é bastante

conhecedor do ofício.

Posteriormente, emerge um imaginário de “abnegação”, de quem trabalha por

amor, pois eles não se incomodam com condições adversas e essa seria a “única”

explicação para se arriscarem no penhasco de 500 metros. Dá-se a ideia, no circuito

da fala configurada, de que os empregados estão se sacrificando por um ideal, por

paixão, muito embora, cada qual esteja, obviamente, sendo remunerado para

executar o serviço.

Na página 08 da matéria juntada ao inquérito civil, o sujeito enunciador dispõe

de um processo de interação que dá fala direta à Cemig: é colacionada uma

entrevista concedida por uma representante da empresa – a qual apontamos

hipoteticamente como sujeito comunicante do contrato relativo à instância judiciária,

ou seja, M. N. C. – ao Jornal “O Tempo”. O lugar de fala é institucional, o discurso

ENCONTRO MARCADO Essa turma aí na foto tem uma grande paixão em comum. Eles adoram construir usinas hidrelétricas. O mais inexperiente tem, pelo menos, três barragens enriquecendo a biografia. Não se incomodam em trabalhar em condições adversas, única explicação aceitável para quem os vê, subindo e descendo, diariamente, esse penhasco de 500 metros de altura, onde está localizada a barragem de Irapé.

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oficial da concessionária, que se estabelece por intermédio de uma extensa citação

de quem tem autoridade para enunciar.

Sob nossa perspectiva, esse outro subgênero (entrevista) compõe o

macrogênero (matéria jornalística)94.

O título e o bigode contêm os seguintes dizeres:

Anteriormente discutimos de que forma se constituiria a proposta como um

dos itens que compõem o dispositivo argumentativo da Cemig: “a efetivação da

construção da Usina Hidrelétrica de Irapé trará desenvolvimento à região do Vale do

Jequitinhonha”. Igualmente indicamos o que seria, conforme nosso ponto de vista, a

proposição, enquanto o engajamento do argumentante com relação à proposta: a

hidrelétrica em operação trará desenvolvimento “porque solucionará os problemas

socioeconômicos da sofrida população regional.” Com os enunciados em epígrafe,

são retomadas tanto a proposta quanto a proposição. Sob a forma de perguntas e

respostas, a ideia de que o sujeito enunciador desse contrato é “o porta-voz dos

inúmeros benefícios trazidos pela Usina de Irapé” é ratificada discursivamente, em

razão dos efeitos de sentido que podem ser recuperados.

Ao se propor que a “vida vai melhorar”, EUe sugere, em termos semânticos,

uma noção globalizante, visto que o significado de “vida” é extremamente

amplificado. Vida é uma totalidade, abarcando desde as atividades e funções

orgânicas em funcionamento até a significação do porquê da existência. Fica a ideia

de que a usina proporcionará qualidade, sentido às suas vidas, pois o cuidado com

eles é o “diferencial da obra”. Não se deixa transparecer um conceito tecnicista, em

que a Usina de Irapé é apenas uma obra realizada para o fim de incrementar a

produção de energia na região. “Cuidado” pressupõe um grau de preocupação, de

empatia e, até, de afeto, suscitando-se a emergência de ethé de solidariedade e de

humanidade da representante da Cemig, ou seja, da própria concessionária.

O início do texto (também na página 08) novamente contextualiza o cenário

94

Temos ciência que poderia se analisar aludidos gêneros (entrevista e matéria jornalística) tomando por base as diferenças dos respectivos quadros comunicacionais que instauram, com suas especificidades. Contudo, considerando que a visada probatória permanece, a nosso ver, sendo a principal no processo enunciativo em ambos os gêneros, não promoveremos essa análise quanto à entrevista. Em vez disso, selecionaremos enunciados para fins de análise.

‘A vida vai melhorar com a usina de Irapé’ Para M. N. C., (aposto indicando o cargo que ocupa), o cuidado com os moradores é o

diferencial da obra

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de construção da usina, repetindo que:

A cifra de “R$ 1 bilhão” é mencionada expressamente na matéria pela quarta

vez (as outras tomaram lugar na capa, no título da página 04 e no texto também da

página 04), o que remonta à grandiosidade do feito.

Também se reveste de uma aura espetacularizada a fala de que a usina é “a

maior obra de todos os tempos do Vale do Jequitinhonha”, o que, em tese, incita o

destinatário a se interessar pela informação, em razão de que fato como esse nunca

tenha acontecido na região. Isso poderia de algum modo influenciar o MPF a ter um

julgamento menos rigoroso em suas ações no inquérito civil, pois a partir da leitura

do enunciado, poder-se-ia ter uma visão mais positiva sobre o empreendimento.

Perguntada pelo Jornal se “Irapé vai contribuir para se evitar futuros

apagões”, a entrevistada responde (já na página 09):

A segunda parte da citação (“O que torna Irapé imprescindível não é tanto a

sua capacidade de geração de energia, mas a possibilidade de mudança na

economia local”) é inclusive retomado em destaque no centro da entrevista, entre as

perguntas e respostas.

Com esse enunciado, enunciativamente, institui-se uma subversão do

discurso capitalista: mesmo como investimento de R$ 1 bilhão por parte da Cemig,

do Estado de Minas Gerais e das cinco empreiteiras consorciadas, a UHE de Irapé é

diferenciada porque a motivação de sua criação é o fomento da economia da região,

cujos índices de desenvolvimento são, conforme anunciado, muito acanhados.

Grandes investidores vêm para “salvar” uma economia modesta. No que se refere

ao procedimento semântico, o efeito de sentido é do âmbito do ético – aquilo que é

“bom” para os indivíduos locais – , em detrimento do pragmático – segundo a ótica

de que se constrói uma usina hidrelétrica para, em termos práticos, gerar energia e

lucro advindo dessa produção.

Mas na pergunta que segue, pela maneira como é elaborada, o entrevistador

acaba valorizando a atuação da empresa: “Ainda assim, não será uma energia muito

O governo de Minas e a Cemig estão construindo, com investimentos de R$ 1 bilhão, a maior obra de todos os tempos do Vale do Jequitinhonha. Trata-se da usina hidrelétrica de Irapé (...)

A capacidade da usina não é tão significativa. Terá capacidade instalada de 360 MW, semelhante à de Três Marias. O que torna Irapé imprescindível não é tanto a sua capacidade de geração de energia, mas a possibilidade de mudança na economia local.

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superior às necessidades da região?” A resposta retoma o papel não só da Cemig

como também o do Estado de Minas Gerais (página 09):

A construção enunciativa aqui se reporta a um discurso de caráter político,

pondo em jogo um ethos de credibilidade. Charaudeau (2006a, p. 119) propõe que

um ator político pode ser julgado digno de crédito se atender a uma condição de

performance, ou seja, se tem “meios de pôr em prática o que anuncia ou promete”.

EUe replica uma fala própria do discurso político: é um “projeto de Estado”,

um “compromisso de governo” promover o desenvolvimento de todas as suas

regiões e o bem-estar do povo e isso efetivamente estaria se sendo colocado em

movimento com a construção da hidrelétrica de Irapé. O cumprimento de promessas

assumidas em campanha eleitoral sairia da esfera das ideias, para se traduzir em

fatos, como o que caracteriza o empreendimento da usina. A representante da

Cemig assume expressamente o discurso governamental.

Na continuação da página 09, as próximas três perguntas giram em torno dos

benefícios trazidos pela implantação da Usina, trazendo-se como pano de fundo a

questão da energia. O imaginário do desenvolvimento econômico sustenta a

enunciação. Indicaremos as perguntas e os enunciados selecionados, para

posteriormente procedermos à análise:

O tempo: “A senhora tem alguma informação de que o desenvolvimento é induzido

pela energia?”

O tempo: “Qual a importância da Hidrelétrica de Irapé para a Cemig?

A usina de Irapé não é apenas uma iniciativa da Cemig, mas um projeto de Estado. O governo tem o compromisso de promover o desenvolvimento de todas as suas regiões e bem-estar da população.

Sempre foi assim, por toda parte, e com o Vale não será diferente. Primeiro vem a infra-estrutura, incluindo a energia. Depois, os empreendimentos privados. (...) Estamos promovendo uma verdadeira reforma agrária, oferecendo condições de trabalho para as famílias atingidas pelas inundações. Todas estão recebendo terras, sementes, adubos, defensivos, casas confortáveis, financiamentos e completa assistência técnica.

A Cemig vive da produção e comercialização de energia. Essa é a nossa atividade econômica. Com o país em crescimento a tendência será o aumento da demanda. Ainda está na lembrança de todos os graves problemas causados pelo apagão e, em decorrência, temos de tomar todas as medidas para evitar problemas de abastecimento.

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O tempo: “Qual será a repercussão da usina de Irapé, do ponto de vista econômico

e social?

No primeiro excerto empreende-se uma breve discussão acerca da relação

desenvolvimento / energia. O sujeito enunciador promove um efeito de naturalização

do fato de que energia e desenvolvimento estão “sempre” inter-relacionados. O

advérbio garante discursivamente a noção de que a situação é dessa forma, não

sendo necessários maiores questionamentos.

Em seguida, aplicando-se um recurso ligado à argumentação demonstrativa,

inicia-se a apresentação de um rol de benefícios em termos de desenvolvimento

resultantes da produção energética:

a) infraestrutura, também em virtude da própria energia;

b) empreendimentos privados;

c) uma verdadeira reforma agrária, que se desdobra em: condições de trabalho para

as famílias atingidas pelas inundações, aquisição de terras, sementes, adubos,

defensivos, casas confortáveis, financiamentos e completa assistência técnica. A

reforma agrária retoma o imaginário da função social da propriedade, o qual já foi

discutido por nós no subcapítulo 4.1 desta pesquisa.

A razão demonstrativa busca apresentar as “provas” para o argumento, com a

finalidade de promover a adesão de TUi. Elencar o que a energia produzida por

Irapé pode trazer de efetivamente positivo tende a afastar questionamentos sobre o

crescimento socioeconômico que pode ser suscitado pelo empreendimento, pois os

argumentos estariam, em princípio, apoiados em fatos verossímeis.

No que tange ao segundo excerto selecionado, enfatiza-se a importância da

produção de energia – ainda relacionando-a diretamente ao crescimento – e do

papel institucional da Cemig, inclusive no que diz respeito ao crescimento do Brasil.

Entretanto, no enunciado, num primeiro momento, a Cemig esquiva-se do ethos de

solidariedade com a população de Irapé, lançando mão de um procedimento

semântico muito mais voltado ao domínio do pragmático, isto é, da utilidade prática

da construção da Usina de Irapé, apontando claramente que a atividade da Cemig

Os benéficos começaram já no primeiro dia de obra, com a contratação de milhares de trabalhadores da região. (...) Alguns benefícios receberam obras urbanas, outros estão recebendo recursos referentes ao Imposto sobre Serviços. Quando começar a geração de energia, será distribuído na região o equivalente a R$ 100 milhões anualmente, referentes ao ICMS e royalties.

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visa ao lucro, pois “a produção e comercialização da energia é sua atividade

econômica”. O discurso tem como cenário a dinâmica capitalista, com um contorno

bem menos humanitário.

Igualmente é da seara do pragmático a associação feita por EUe no sentido

de que a energia elétrica é útil para o crescimento do país, sendo a Cemig

importante para a consecução da tarefa de produzi-la. Reinstitui-se um discurso da

órbita política: a Cemig toma para si a responsabilidade estatal de solucionar

problemas sociais concernentes ao abastecimento de energia, apontando os

problemas causados à época pelos “apagões” e se incluindo discursivamente pelo

uso do pronome em primeira pessoa do plural (“temos de tomar todas as medidas”)

na iniciativa de coibir incidentes como esse. Outro atributo para que o ente político

seja digno de confiança é que aquilo que ele anuncia e aplica seja seguido de efeito,

ao que Charaudeau (2006a, p. 119) nomeia de condição de eficácia. Não basta tão

somente a Cemig e o Estado construírem a Usina de Irapé, ela tem de ser eficaz,

contribuindo para minimizar as dificuldades enfrentadas nas questões que envolvem

a energia elétrica.

Invariavelmente a agenda da energia elétrica vem à tona no cenário

sociopolítico. Se na época houve inúmeras reclamações a respeito dos “apagões”,

recentemente a energia foi pauta na mídia servindo de base para críticas ao governo

federal. Veja95 o acusou de inventar mais “uma fórmula para evitar ajustes

inevitáveis na economia do país”. Segundo a revista, os ajustes na conta de luz,

previstos para esse ano, foram prorrogados para 2015, “convenientemente” para

depois das eleições. Explicava-se que em razão da estiagem acima do normal, as

usinas térmicas, mais caras, estavam sendo utilizadas ininterruptamente, sendo que

isso só deveria se dar em caráter emergencial, elevando, dessa forma, o gasto das

distribuidoras. O custo adicional chegaria a 20 bilhões, causando perdas ao setor

elétrico. Ainda conforme a revista, o governo socorria as distribuidoras com recursos

do Tesouro, para não ter que permitir o aumento das tarifas ao consumidor, sendo

essa uma manobra política para não desagradar possíveis eleitores.

Já no terceiro excerto, utiliza o EUe de um procedimento discursivo de

acumulação: ele aponta que repercussão econômico-social de Irapé se deu em

95

Matéria publicada na edição de 19/03/14, páginas 60 e 61. Disponível em:

http://veja.abril.com.br/acervodigital/home.aspx

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razão de vários fatores somados (e não de apenas um), o que reforça o ato de

persuasão:

a) no primeiro dia já foram contratados milhares de trabalhadores (igualmente em

destaque entre as perguntas e respostas);

b) alguns municípios receberam obras urbanas;

c) outros municípios estão recebendo recursos referentes ao Imposto sobre

Serviços;

d) quando começar a geração de energia será distribuído na região o equivalente a

R$ 100 milhões anuais, relacionados ao ICMS e royalties.

Chama a atenção o uso de termos com uma carga semântica de certa

indeterminação (à exceção da cifra especificamente apontada de R$ 100 milhões,

que se trata possivelmente de uma estimativa): “milhares” (mas não se apontam

quantos); “alguns” (mas não fala quais); “outros” (que também não são designados),

apontando uma imprecisão dos dados, o que, a nosso ver, pode gerar um efeito

discursivo no sentido de que as informações exatas são omitidas por não serem

suficientemente abrangentes, podendo configurar, assim, um número pouco

expressivo.

Conforme dissemos acima, a enunciação nesse último excerto acaba

novamente confirmando a instituição do sujeito enunciador do contrato

comunicacional como o “porta-voz dos benefícios socioambientais da Usina de

Irapé”. No gênero matéria jornalística, em momento algum é feita qualquer

ponderação que leve em conta os efeitos negativos causados pela instalação da

hidrelétrica. Todavia, a própria Cemig faz referência a eles no Estudo de Impacto

Ambiental, produzido em 1993. Tratando do “MEIO SOCIOECONÔMICO E

CULTURAL”, na página 68 deste EIA/RIMA, a concessionária expõe que, com o

incremento da população, esperavam-se os seguintes impactos ambientais:

- Aumento da demanda sobre a infra-estrutura social e de serviços (deterioração na

prestação dos serviços básicos e aumento dos preços dos serviços em geral);

- Desorganização sócio-cultural (alteração do padrão cultural local; mudança na

configuração do patrimônio edificado e aumento de criminalidade, roubo e

prostituição);

- Possibilidade de disseminação de endemias importadas;

- Poluição das águas devido ao incremento e disseminação de esgotos domésticos

(disseminação de doenças de veiculação hídrica) e

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- Aumento da caça e pesca.

As duas últimas perguntas que compõem a entrevista inserida na matéria

jornalística tratam do acordo celebrado entre a Cemig e o Ministério Público Federal,

referindo-se, pois, ao Termo de Ajustamento de Conduta. Iremos transcrevê-las na

íntegra, a fim de as analisarmos em seguida:

O Tempo: A Cemig não se excedeu na indenização aos atingido? Pessoas que eram

proprietárias de um simples lote de 150 metros quadrados receberam uma fazenda

de 50 hectares, muitas já com plantações, além de casa, financiamentos e sementes

para dois anos seguidos de plantio. Afinal, a Cemig é uma empresa pública.

O Tempo: A senhora acredita que todas as reivindicações foram atendidas?

Pela forma como as duas respostas de EUe foram desenhadas

discursivamente, a Cemig parece apresentar uma peça contestatória na qual refuta

os argumentos levantados pelo MPF na petição inicial do caso de Irapé.

Se o órgão ministerial apontava na petição inicial que a Cemig não levou em

conta os valores extrapatrimoniais da história, cultura e identidade dos povos locais,

a empreendedora busca demonstrar que isso é falso apontando na entrevista que é

absolutamente defensável na recomposição de direitos dos atingidos já que realizou

um “intenso programa de compensações ambientais, financeiras e culturais que

incluem”: i) registro de patrimônio histórico e cultural, ii) remoção de igrejas, iii)

projeção de fotos de famílias, iv) criação de centros de referência e registros dos

saberes e fazeres do Vale.

O Ministério Público incisivamente defendia que não tinha havido uma

participação efetiva dos indivíduos quando da elaboração do EIA/RIMA (pelo fato de

não terem sido ouvidos os remanescentes de quilombo da Comunidade Negra de

Assinamos, realmente, um acordo ousado com o Ministério Público e vamos cumpri-lo integralmente. Nossa iniciativa é absolutamente defensável na recomposição de direitos e na garantia de uma atividade econômica sustentável. Todos os atingidos tornaram-se proprietários e desejamos que todos prosperem, que sejam vitoriosos. (...) Criamos 28 associações de reassentados.

Irapé é para a Cemig um projeto de que envolve a usina, um programa de desenvolvimento econômico e, também, de respeito às pessoas que serão atingidas pela inundação. Realizamos um intenso programa de compensações ambientais, financeiras e culturais que incluem registro de patrimônio histórico e cultural, remoção de igrejas, projeção de fotos de famílias, criação de centros de referência e com registros dos saberes e fazeres do Vale. (...) Não enxergamos Irapé apenas como três turbinas em operação.

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Porto Coris), fato esse refutado pela Cemig, fazendo alusão à criação de 28

associações de reassentados, o que, em tese, atenderia ao princípio de participação

democrática na tomada de decisões de implantação de atividades poluidoras do

meio ambiente, conferindo representatividade às pessoas da região.

É retomado na enunciação o ethos de humanidade por parte da

concessionária de energia, uma vez que o projeto em torno de Irapé,

discursivamente, leva em conta um programa de desenvolvimento econômico –

promovendo uma “atividade econômica sustentável” – mas igualmente um programa

de “respeito às pessoas”, pois não se vê a usina “apenas como três turbinas em

operação”. A concepção de desenvolvimento sustentável sobre a qual a

empreendedora se fundamenta mais uma vez é erigida no enunciado: o

desenvolvimento não pode prescindir do crescimento econômico, entretanto, as

pessoas, numa visão humanitária, são enunciativamente levadas em conta.

No embate argumentativo entre MPF e Cemig, um dos mais importantes

pontos abordados se encontra no tratamento dos indivíduos afetados pela barragem.

As consequências da implantação da usina para o ser humano era um foco

fundamental das discussões, principalmente no que tange à ideia de como seria

afetada a memória, a história, a identidade, o reconhecimento de si e da coletividade

das pessoas que estavam sendo removidas de suas casas, possivelmente onde

viviam desde seus nascimentos, para serem levadas a um locus desconhecido.

Técnica e praticamente não se questiona que em termos econômico-materiais os

envolvidos estavam tendo uma mudança de vida em que lhes era oferecida uma

nova infraestrutura. Porém, essa novidade não se operava apenas com referência a

pisos, tijolos, janelas, telhados, pastos, sementes... Havia uma necessidade –

imposta, coercitiva e inarredável – de se remodelar suas formas de pensar, de viver,

de significar o próprio mundo. Será que construir uma nova igreja no

reassentamento promoveria o mesmo sentimento de sacralidade para pessoas que

a vida inteira tiveram suas experiências religiosas (batizados, casamentos, velórios

etc.) na antiga igreja da comunidade? Projetar fotos das famílias no

reassentamento, alijando os indivíduos do convívio com os outros membros da

comunidade, não geraria uma sensação de melancolia ainda maior para muitos?

Existe, em certa medida, uma relação do sujeito com o lugar onde ele vive, o que

contribui para a construção de sua identidade. Pensando sob a perspectiva do

sistema de valores compartilhados entre os sujeitos sociais, históricos, empíricos,

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não podemos desconsiderar essas questões.

O último excerto que será colacionado para análise encontra-se no texto que

vem logo após a entrevista da representante da Cemig, na página 10 da matéria

jornalística, cujo título é “Desapropriados ganham novos bens”. Selecionamos o

seguinte enunciado:

Retoma-se na enunciação o imaginário sociodiscursivo da solidariedade, no

caso, fundamentada pela “generosidade ilimitada” da Cemig no repasse dos lotes a

que os atingidos faziam jus, em razão da desapropriação de suas terras que seriam,

então, destinadas à barragem de Irapé.

No fragmento acima, o recurso expressivo do uso da informalidade configura-

se no sentido de conferir à Cemig (empresa) o atributo da generosidade, que é

próprio das pessoas. Personificar a empreendedora da UHE de Irapé, imputando-lhe

esse valor, pode contribuir para uma adesão de TUi pelo afeto, gerando um efeito de

empatia.

O discurso da solidariedade / generosidade encontra arrimo em textos legais,

em pronunciamentos políticos e em atos linguageiros que tomam lugar em situações

comunicacionais do cotidiano.

É relevante ressaltar que o primeiro “objetivo fundamental” apontado

expressamente pela Constituição brasileira, em seu artigo 3º, I, é o de “construir uma

sociedade livre, justa e solidária”. O aludido dispositivo carrega a força axiológica de

consagrar a solidariedade como uma das finalidades para as quais o Estado

Democrático de Direito foi formado. Assim, por força da lei maior, esse valor

permeará toda a legislação infraconstitucional e perpassará o discurso jurídico na

sua totalidade.

Nessa perspectiva, a doutrina jurídica da mesma forma discorre sobre

aspectos da solidariedade. A esse respeito, Comparato (2004, p. 577) menciona

que:

Ela é o fecho de abóboda do sistema de princípios éticos, pois complementa e aperfeiçoa a liberdade, a igualdade e a segurança. Enquanto a igualdade e a liberdade põem as pessoas

A generosidade da Cemig na implantação usina de Irapé parece não encontrar limites. Cada um dos moradores que foram desapropriados, mesmo que seja proprietário de um minúsculo lote, receberá pelo menos 40 hectares. As terras serão entregues com cerca de arame, sementes, defensivos e adubos para dois anos seguidos de plantio. As casas que os aguardam – já que nem todos ainda fizeram suas mudanças – é de alvenaria, tem três quartos (no mínimo), sala, água quente e uma fantástica novidade para muitos: o banheiro com louça sanitária.

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umas diante das outras, a solidariedade as reúne, todas, no seio de uma mesma comunidade. Na perspectiva da igualdade e da liberdade, cada qual lhe reivindica o que lhe é próprio. No plano da solidariedade, todos são convocados a defender o que lhes é comum.

Na seara política, invariavelmente, faz-se referência ao brasileiro como sendo

um povo ‘generoso’. A Presidente Dilma, no discurso da cerimônia de entrega de

unidades habitacionais relacionadas ao Programa Minha Casa, Minha Vida, em

Parnaíba/PI, preocupada com as manifestações contrárias em torno da realização

da Copa do Mundo de futebol no país, fala:

Faltam poucos dias para Copa do Mundo. Eu espero que essa Copa seja a Copa das Copas. Nós sempre gostamos de futebol e sempre fomos para os outros países para assistir a Copa, aqueles que podiam, e foram bem tratados. Nós temos uma característica, somos um povo alegre, generoso e amigo. Vamos demonstrar nessa Copa, se aparecer turista por aqui, porque vai andar turista por todo o Brasil, mesmo onde não tem estádio de futebol e não é cidade-sede. Então, eu peço a vocês isso: vamos mostrar que somos capazes de receber bem (grifo nosso).

Retomando a avaliação do enunciado proposto por EUe, a expressão da

generosidade encontra-se, em termos de procedimento semântico, no domínio do

ético, associando-se ao valor da bondade. No espaço social, isso é visto de forma

positiva. Pela operacionalização constitutiva da fala do enunciador, parece que a

Cemig estava tendo uma atitude de desprendimento, de doação espontânea. Mas

será que o repasse de um lote de 40 hectares era, de fato, um ato de generosidade?

De acordo com o Anexo I, item 5.1.8.1, do Termo de Ajustamento de Conduta

assinado entre a Cemig e o MPF, o qual tratava de critérios para a definição dos

lotes a serem destinados aos atingidos pela usina, lemos que “a área de cada lote

deverá ser igual a 1 (um) módulo fiscal.”

A conceituação do Módulo fiscal é tratada pela Lei nº 6.746/79, que altera o

Estatuto da Terra (Lei 4.504/64), o qual regula os direitos e obrigações relativos aos

imóveis rurais, para os fins de execução da reforma agrária e promoção da política

agrícola nacional. Trata-se de uma unidade de medida de área (expressa em

hectares), fixada especificamente para cada município.

O módulo fiscal é parâmetro para a classificação do imóvel rural. O

“minifúndio”, de acordo com o art. 22, I, do Decreto nº 84.685/80, é o imóvel rural

com dimensão inferior a um módulo fiscal. Benedito Ferreira Marques (2009, p. 55)

explica que o minifúndio é “combatido e desestimulado no ordenamento jurídico

agrário” porque não cumpre a sua “função social”, “não gera impostos nem viabiliza

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a obtenção de financiamentos bancários pelo minifundiário.”

A pequena propriedade, consoante a Lei nº 8.629/93, art. 4º, II, “a”, é o imóvel

rural de área compreendida entre 1 (um) e 4 (quatro) módulos fiscais, área mínima

para que a exploração da propriedade rural seja economicamente viável.

A bacia de Irapé atingiu as terras de seis municípios: Berilo, Botumirim,

Cristália, Grão Mogol, Minas Novas e Turmalina. Os lotes a serem disponibilizados

pela Cemig poderiam se localizar em qualquer município do Estado de Minas

Gerais, priorizando-se, todavia, os de origem do grupo a ser reassentado ou outros

do Alto Jequitinhonha.

Consultando a Instrução Especial / INCRA nº 20, de 28 de maio de 2014, que

é a que estabelece o módulo fiscal de cada município, encontramos tão somente a

referência do município de Berilo, cujo módulo fiscal era exatamente de 40 hectares.

Dito de outro modo, os 40 hectares dos lotes entregues aos reassentados,

provavelmente, equivaliam a um módulo fiscal, medida mínima, segundo o

entendimento jurídico atual, para que a propriedade fosse considerada produtiva. A

Cemig estava cumprindo a legislação vigente e honrando o TAC firmado com o

Ministério Público Federal, mas não se pode dizer que isso era um ato de

“generosidade”.

Por fim, observamos no excerto selecionado, mais uma vez, um tom, até certo

ponto, bastante orientado para o discurso da mídia publicitária: o procedimento da

definição do imóvel, utilizando-se o modo de descrição para apontar as suas

características, muito mais se assemelha a uma encenação de publicidade, na qual

se fazia presente a visada de fazer-crer que o “produto” tinha ótimas qualidades, a

fim de garantir a adesão de TUi, incitando-o a adquirir a “mercadoria anunciada”. O

formato como foi veiculada a informação também sugere esse efeito:

Terras de 40 hectares, com arames, sementes, defensivos e adubos para dois anos

seguidos de plantio; casas de alvenaria com três quartos, sala, água quente e uma

“fantástica” (!) novidade para muitos; o banheiro com louça sanitária.

Novamente, esse “produto” se traduzia nos benefícios trazidos pela Cemig

com a construção da Usina de Irapé, especificamente, quanto aos imóveis que

seriam disponibilizados para os atingidos.

Retomamos Mello e Emediato (2013, p. 247), os quais apontam que, ainda

que o discurso da mídia jornalística esteja atravessado pelo ideal de objetividade,

“não há informação sem enunciação, sem um posicionamento sobre o saber

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colocado em jogo”.

Observamos que, quando a matéria foi veiculada na instância jornalística,

notadamente se mostrou presente a marca da opinião do Jornal “O Tempo”, no

sentido de que havia, tão somente, aspectos positivos com a instalação da usina,

operando-se uma postura discursiva em prol das atividades empreendidas pela

Cemig e pelo Estado de Minas Gerais. No espaço relacionado à instância judiciária,

a Cemig, como requerida no inquérito civil promovido pelo MPF, apropriou-se da

matéria como sendo sua própria voz, visando a comprovar, não só que estava

cumprindo integralmente as obrigações assumidas no Termo de Ajustamento de

Conduta, mas que a Usina Hidrelétrica de Irapé era ambientalmente sustentável, por

proporcionar o desenvolvimento econômico para a região do Vale do Jequitinhonha.

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5 CONCLUSÃO

O arcabouço metodológico que buscamos erigir, enfocando as três

abordagens concernentes aos gêneros do discurso, à subjetividade e ao modo de

organização argumentativo, mostrou-se operacional para analisarmos a construção

enunciativa do desenvolvimento sustentável em Direito Ambiental, relativa ao caso

da Usina Hidrelétrica de Irapé. Muito embora tenhamos tratado dessas abordagens

conceitual e praticamente de forma separada em alguns momentos da análise,

percebemos que elas se inter-relacionam.

Para cada gênero estudado verificou-se a existência de um diferente contrato

de comunicação e esses não poderiam prescindir de uma definição dos sujeitos

participantes do ato linguageiro. Buscamos, então, descrever como esses sujeitos se

instauraram nos gêneros petição inicial e matéria jornalística, tanto no circuito da fala

configurada, momento em que voltamos nossos olhares para o sujeito enunciador e

para o sujeito destinatário (seres da fala), quanto para o circuito externo à fala

configurada, instituindo-se o sujeito comunicante e o sujeito interpretante (seres

sociais). Nesse processo, buscamos avaliar os procedimentos de argumentação dos

quais os sujeitos lançaram mão, a fim de alcançar a adesão de seus interlocutores.

Ganhou importância a questão dos gêneros do discurso enquanto ações sociais, em

função do embate argumentativo instaurado entre o Ministério Público Federal, que

deu início a uma demanda judicial por meio do protocolo da petição inicial, e a

Cemig, a qual utiliza a matéria jornalística como prova num inquérito civil público.

A análise empreendida sobre a petição inicial e a matéria jornalística, as quais

tomaram lugar no espaço jurídico, demonstrou que não é possível uma delimitação

hermética sobre as características dos gêneros do discurso.

A petição inicial tem propriedades mais estabilizadas: seu aspecto formal é

condicionado aos parâmetros que a sistemática legal estabelece, remetendo, assim,

a uma coerção institucionalizada, que acaba por constranger a enunciação: o que é

dito tem de sê-lo dessa forma. Esse gênero tem como função precípua dar início às

demandas judiciais, promovendo o ato de exercício do direito de ação, que por sua

vez engendra todo um complexo sistema de gêneros para se obter a resposta do

Judiciário ao conflito a ele submetido.

Já a matéria jornalística apresentou uma configuração distinta. O seu

deslocamento da instância midiática para a instância judiciária apontou para um

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relevante fenômeno da genericidade: apesar de ter sido preservada a sua forma, há

uma ressignificação de seu uso, uma vez que foram mantidas as visadas de

informação e de captação / incitação, mas acrescentou-se a essas a visada

probatória, o que influenciou marcadamente a argumentação, pois a finalidade

passara a ser, também, comprovar que o que havia sido veiculado era “verdadeiro”.

Igualmente, merece ser lembrado o procedimento utilizado na matéria

jornalística concernente à inserção de subgêneros – como foi o caso dos relatos de

vida e da entrevista – no macrogênero matéria jornalística.

Sob o nosso ponto de vista, essas análises demonstram o trânsito, a

mobilidade, a dinamicidade de gêneros e sua consequente reapropriação, num

processo que evoca uma ampliação de visada, em razão do locus em que são

instrumentalizados, corroborando que as próprias relações sociais estão em

constante movimento. Vemos, pois, que quanto mais a sociedade – e, claro, o

discurso jurídico aí se integra – se complexifica, mais os gêneros se reconfiguram.

Tivemos o intuito de discutir a argumentação na sua relação com o quadro

situacional no qual foram definidos os sujeitos instituídos nos gêneros petição inicial

e matéria jornalística. Acreditamos que, dessa forma, operacionalizamos uma

dimensão discursiva da prática argumentativa. Delimitamos as propostas, as

proposições e o desenvolvimento dos atos de persuasão colocados em jogo por

ambos os polos litigantes. No que tange especificamente ao percurso relacionado à

persuasão, discutimos os procedimentos semânticos, discursivos e de composição

utilizados para se garantir a adesão dos sujeitos-alvo da argumentação.

Algumas outras questões merecem comentário. Como vimos, o

desenvolvimento sustentável consiste na busca de se promover a conciliação entre

três demandas distintas, mas interdependentes: i) o crescimento econômico; ii) o

bem-estar social e iii) a preservação ecológica. Tanto o MPF quanto a Cemig

estruturaram suas tessituras argumentativas tomando por base a sustentabilidade.

Ocorre que cada qual se filiava a um determinado discurso sobre o que é

considerado sustentável. O órgão ministerial, num domínio de avaliação daquilo que

deveria ser considerado ético, defendia o porquê da inviabilidade do projeto, em

virtude de a usina causar impactos ambientais negativos, ferindo assim o bem-estar

dos atingidos, com a desestruturação do patrimônio sócio-histórico-cultural. A

Cemig, por outro lado, no âmbito de um domínio de avaliação pragmático, justificava

a plausibilidade técnica e social da instalação da hidrelétrica, em virtude do intenso

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desenvolvimento econômico por ela gerado.

Esse embate argumentativo demonstra que não há uma univocidade quanto

ao discurso do desenvolvimento sustentável. Essa voz única também não existe no

que tange ao discurso jurídico em si. Isso porque o Direito é, essencialmente, um

produto da enunciação. As leis somente nascem após a ocorrência de embates

sociopolíticos; as ações judiciais têm sua emergência em razão de conflitos que

terão de ser solucionados pelo Estado; as decisões dos membros do Judiciário,

baseando-se num exercício de sopesamento de valores, são atos discursivos de

interpretação. E é numa arena constituída sócio-historicamente que os sujeitos

participantes desses atos linguageiros irão atuar.

Acreditamos que discutir os processos enunciativos é, também e em certa

medida, pensar a sociedade e seus conflitos. Com fulcro nessa orientação e

buscando refletir de que modo o discurso e as ações sociais podem afetar a vida

dos indivíduos, fizemos incursões em fatos cotidianos do cenário jurídico da

contemporaneidade.

Uma possível contribuição desta pesquisa reside na análise e na descrição de

alguns imaginários sociodiscursivos sobre o desenvolvimento sustentável. Vale dizer

que esse levantamento não se encerra em si mesmo, já que outros trabalhos podem

propiciar novas discussões e, como corolário, inúmeros outros imaginários podem vir

a ser avaliados.

No que tange ao Ministério Público Federal, verificamos que os seguintes

imaginários sociodiscursivos fundamentaram seu dizer na persecução da adesão de

seus interlocutores: de moralidade; de participação popular; de prevenção de danos

ambientais; de preservação do meio ambiente cultural; de função social da

propriedade; de proteção da identidade e da dignidade humana; de justiça social; de

sadia qualidade de vida; de desenvolvimento econômico e de reparação dos danos

extrapatrimoniais dos atingidos. Relacionando-se com os imaginários, alguns ethé

emergiram nas enunciações do MPF: o de representante do povo; de moralidade; de

justiça social, de indignação e de superpoderes.

Já a concessionária de energia teve sustentada sua fala em imaginários

sociodiscursivos de renovação; de desenvolvimento econômico; de ascensão social

pelo trabalho; de proteção do meio ambiente cultural; de proteção ambiental da

fauna; de abnegação. Constituíram-se ethé de benfeitora (juntamente com o Estado

de Minas Gerais); de credibilidade; de humanidade; de solidariedade e de

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generosidade.

A análise dos procedimentos utilizados no modelo argumentativo estruturado

na matéria revela, de certa forma, uma tomada de posição, na qual o Jornal “O

Tempo” demarca a sua opinião, na direção de um juízo de valor positivo quanto às

atividades da Cemig e do Estado de Minas Gerais na implantação da Usina de Irapé.

Não foram apresentados prós e contras, mas tão somente os benefícios em termos

de desenvolvimento econômico, muitas vezes contrariando elementos técnico-

jurídicos.

Procuramos descrever como os imaginários foram racionalizados em

discursos-textos materializados em distintas instâncias de enunciação. Nessa

perspectiva, serviram-nos de base, por exemplo, a Constituição Federal, um

conjunto de atos normativos e inúmeros princípios jurídicos. Da mesma forma,

percebemos a emergência de imaginários: i) na discursivização das identidades dos

indivíduos das comunidades pertencentes à região do Vale do Jequitinhonha; ii) nos

julgamentos institucionalizados que os membros do MPF e os representantes da

Cemig fizeram de si mesmos e iii) na forma como o órgão ministerial e a companhia

energética apreenderam e enunciaram os fatos ocorridos em Irapé. Em função

disso, observamos que a noção de imaginários põe em movimento representações

multifacetadas, abarcando, pois, distintas significações e que os imaginários se

apresentam numa dinâmica interdiscursiva. Uma cadeia semântica da

sustentabilidade é plurivocalmente erigida a partir de vozes emanadas do discurso

político, do discurso legislativo, do discurso religioso e obviamente do discurso

jurídico.

Esta é a nossa leitura acerca da construção enunciativa do desenvolvimento

sustentável. Sabemos que muitas outras poderiam ser feitas. Na perspectiva da

realização de outras pesquisas, acreditamos que seria interessante uma abordagem

que contemplasse enunciações sobre a sustentabilidade associando-as a

imaginários que circulam na sociedade civil organizada, como o enunciado pelas

Organizações não governamentais (ONGs), ou ainda no espaço publicitário.

Num contexto mais ampliado, a interface Linguística / Direito, a nosso ver,

ainda demanda inúmeras reflexões. Futuros trabalhos podem ser empreendidos,

levando-se em conta a dimensão social da linguagem, discutindo, por exemplo,

outros gêneros passíveis de utilização na instância jurídica: as decisões judiciais ou

o que se pode chamar de discurso decisório; os Termos de Ajustamento de

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Conduta, que carregam em si uma visada conciliatória; os laudos dos peritos nas

ações judiciais, instituídos para se alcançar a “verdade” dos fatos.

A análise da relação entre a mídia e o discurso jurídico igualmente pode ser

explorada, numa empreitada para se verificar quais os efeitos enunciativos da

discursivização de processos judiciais na instância midiática.

Outra questão relevante que merecia investimento, tomando-se por base

discursos dos membros do Poder Judiciário na atual história brasileira, seria o

estudo da imbricação entre Direito e política, o que, instintivamente, poderia se

conceber como a judicialização da política.

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ANEXO A – MATÉRIA JORNALÍSTICA DE “O TEMPO” JUNTADA AO PAC

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