Por Uma Historiog Sem Exclusoes

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Texto publicado originalmente no Livro "Histórias e memórias da ocupação das regiões paranaenses no século XX.", 2014.

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  • LUPION, M. R. O.; DEOSWIJK, A. L. Histria do Paran sem excluses: o caso da pesquisa realizada no municpio de Lobato. In: Histrias e memrias da ocupao das regies paranaenses no sculo XX. SAMOGIN, C. A. G.; ROMPATO, M. (Orgs.). 1. ed. Maring: Massoni, 2015. P. 194-214.

    POR UMA HISTRIA DO PARAN SEM EXCLUSES: o caso da

    pesquisa realizada no municpio de Lobato, noroeste do Paran.

    Marcia Regina de Oliveira Lupion

    Faculdade Alvorada

    Andreas Leonardus Doeswijk

    Universidad de Uncoma-Argentina

    Resumo: Procuramos neste artigo discorrer de forma crtica sobre as diversas memrias que

    foram sendo construdas sobre o processo de ocupao do norte e noroeste paranaense ao

    longo dos anos 1950 a 1980 e apresentar um modelo de anlise desse mesmo processo no qual

    se assenta uma abordagem que denuncia a excluso que as memrias dos anos 1950 a 1980

    criaram ao produzirem seus discursos picos ou economicamente deterministas. Discorre-se

    tambm sobre como a documentao oral e um olhar microanaltico sobre as fontes

    permitiram construir uma memria sobre a formao do municpio de Lobato no noroeste

    paranaense que considera como sujeitos histricos, alm da consagrada Companhia

    Melhoramentos Norte do Paran, pessoas comuns cujas experincias de vida tornaram-se a

    fonte por excelncia daquele processo.

    Palavras-chave: Norte e noroeste do Paran. Memria pica. Companhia Melhoramentos

    Norte do Paran. Memria determinista. Historiografia dos Conflitos. Histria Oral.

    1 INTRODUO

    comum iniciarmos os estudos de Histria Regional na atualidade visitando os stios

    relativos ao municpio ou aos municpios presentes na regio pretendida em nossa pesquisa.

    Nada mais natural tendo em vista o nmero de informaes alcanadas nesse tipo de

    ferramenta virtual. No cabe discutir a importncia de estarmos atentos aos contedos e

    particularidades presentes nessas informaes mesmo porque como historiadores nos cabe

    sempre promover a crtica interna aos documentos, seus dados e sua intencionalidade. Os

    stios entretanto nos permitem visualizar de forma primeira alguns aspectos pretendidos na

  • 24

    pesquisa dentre eles o histrico dos municpios disposto na pgina das prefeituras. No raro

    esses histricos trazem como grande fundador e organizador do municpio a Companhia

    Melhoramentos Norte do Paran (CMNP) e por vezes at o nome de alguns daqueles

    considerados pioneiros do processo de formao da cidade. Recentemente esses mesmos

    histricos tm trazido informaes sobre a cultura da regio quando fazem aluso existncia

    de povos indgenas no momento da criao do municpio, mas, esse elemento fruto das

    severas crticas que tem sido feitas pela academia a uma memria que desconsiderou a

    existncia e a importncia desses povos como os primeiros habitantes do norte e do noroeste

    paranaense desde tempos imemoriais.

    Os responsveis por promover essa crtica a memria excludente e que denominamos

    pica foram historiadores e socilogos das universidades de Maring e Londrina cujos

    trabalhos datados dos anos 1990 denunciaram essa excluso e demonstraram os motivos pelos

    quais ela se realizou. Mas, no somente a memria pica foi alvo de crticas por conta da

    historiografia dos conflitos, como foi conceituada aqui a produo da dcada de 1990.

    Tambm foram alvo da crtica empreendida por essa produo os trabalhos sobre a histria da

    construo do norte e noroeste paranaense datados dos anos 1970 e 1980 nos quais

    predominava uma memria marcada pelo determinismo econmico como fator primordial

    para a formao daquela regio. Assim como a memria pica a memria determinista

    concebe apenas organismos oficiais e entidades econmicas como sujeitos da ao promovida

    para a construo de uma sociedade capitalista no norte e noroeste do Paran. Sem contrariar

    o importncia desses dois organismos, historiadores como Lucio Tadeu Mota e Nelson Dcio

    Tomazi demonstram os reais interesses pelos quais sobretudo a memria pica promoveu a

    excluso da presena de indgenas, caboclos e posseiros em sua historiografia e acima de

    tudo, inserem esses personagens tambm como protagonistas no da formao da sociedade

    baseada no capital e sim da prpria formao social do estado do Paran como um todo. Ser

    pois, no sentido de discorrer sobre a importncia da historiografia dos conflitos como pioneira

    de uma abordagem sobre a histria regional do norte e noroeste paranaense na qual so

    estabelecidos novos parmetros para os estudos acadmicos relativos a esse espao que

    elaboramos esse artigo e, apresentar os resultados obtidos com a pesquisa realizada no

    municpio de Lobato, noroeste paranaense, demonstram a importncia dessa tipo de

    abordagem para a escrita de uma outra, e mais completa, memria sobre a regio norte e

    noroeste do Paran.

  • 25

    2 A MEMRIA PICA

    So vrias as produes que se propem analisar e explicar a consolidao do

    capitalismo na regio norte e noroeste do Paran e todas, sem exceo, leituras

    imprescindveis tendo em vista a forma como o tema foi analisado pelo conjunto de cada

    produo. Diz-se conjunto porque entre essas leituras obrigatrias encontram-se

    principalmente trs tipos de abordagens e que nesse artigo foram denominadas de: memria

    pica; memria determinista e historiografia dos conflitos.

    No grupo da produo pica, ou seja, aquela que apresenta o processo que introduziu o

    sistema capitalista na regio Norte paranaense como fruto do trabalho herico de um grupo

    social restrito destacam-se desde obras completas que discorrem sobre a fundao de um

    nico municpio1; colees em que constam resumos da trajetria de vrios municpios2 e

    tambm, o livro que conta, por meio de uma narrativa pica, o desempenho da Companhia

    Melhoramentos Norte do Paran (CMNP) no processo3. Sob ttulos apologticos e recheados

    de narrativas heroicas essa produo escreveu uma memria histrica em que o processo em

    questo se caracteriza pelo sentido ordeiro e pacfico que teria acompanhado a imensa

    transformao scio-espacial da regio entre 1925 e 1970.

    De forma geral a memria pica aborda a consolidao dos ideais da sociedade

    capitalista no Norte paranaense remetendo um papel de destaque sobretudo a dois sujeitos

    histricos em particular representados pela empresa Colonizadora Companhia Melhoramentos

    Norte do Paran e um grupo caracterizado pela intrepidez de seus atos dentre eles,

    empresrios-fazendeiros, pequenos e grandes proprietrios -, ambos conceituados pela

    memria como os pioneiros4. De acordo com a CMNP5:

    No h dvida de que essa fabulosa regio prosperou contando basicamente

    com a organizao objetiva e dinmica da empresa privada que a desbravou,

    1 Trabalhos que representam esse tipo de abordagem: MORATO, Ernesto Pianc; MENDES, Manoel Messias.

    Os municpios: sua histria e sua gente. Astorga. Maring: CEDI Editora, 1980; e, SILVA, Jos Adalberto

    Firmino. Mandaguari, sua histria, sua gente. Maring: J. A Editora, 1982. 2 Dois exemplos ilustram esse tipo de produo: FERREIRA, Jurandir Pires. Enciclopdia dos Municpios

    Brasileiros. Rio de Janeiro: [S. n.] v. 31. 1959; e, FERREIRA, Joo Carlos Vicente. O Paran e seus

    Municpios. Maring: Memria Brasileira, 1999. 3 COMPANHIA MELHORAMENTOS NORTE DO PARAN, Colonizao e desenvolvimento do Norte do

    Paran. 2. ed., So Paulo: Ave Maria, 1977. 4 No presente trabalho no se questiona o papel pioneiro desempenhado pela CTNP/CMNP e os proprietrios de

    terra que se estabeleceram na regio, questiona-se apenas, o carter excludente dessa designao que

    desconsidera a importncia de outros grupos sociais como os trabalhadores autnomos da lavoura que jamais foram proprietrios de um terreno na zona urbana ou rural no Norte do Paran que tambm foram responsveis pela consolidao do processo.

    5 COMPANHIA MELHORAMENTOS NORTE DO PARAN, Colonizao e desenvolvimento do Norte do

    Paran. 2. ed., So Paulo: Ave Maria, 1977. p. 146.

  • 26

    e com a vontade de vencer dos que para ela afluram atrados pelas

    perspectivas de liberdade de empreendimento que se lhes apresentavam.

    Durante muitos anos, somente a determinao firme de vencer sustentou o

    trabalho dos pioneiros.

    Segundo a empresa ainda, o trabalho por ela desempenhado estaria imbudo de um

    sentido utilitrio da rea adquirida e que se justificava uma vez que a empresa desbravaria o

    serto existente transformando-o numa sociedade predominantemente capitalista e til

    coletividade posto que se fundamentava na autntica democracia e que atravs da propriedade

    privada vinha realizando na regio uma verdadeira, justa e pacfica reforma agrria6.

    Ao supervalorizar o papel dos agentes acima citados essa memria criou o mito que

    devido ao trabalho desempenhado pela CMNP e pelos pioneiros isso os torna os nicos

    agentes responsveis pelo fenmeno de transformao social e ambiental acontecido na

    regio. A esse mito ainda foi incorporado o sentido de que essas transformaes eram parte do

    sacrifcio necessrio para elevar as potencialidades funcionais da rea colonizada de acordo

    com uma civilizao mais desenvolvida, ou seja, dos ideais progressistas do sistema

    capitalista baseado na propriedade privada e no liberalismo7.

    Um exemplo de trabalho que divulgou esse carter pico do processo data de 1959 e,

    dentre as vrias citaes que podiam ser retiradas desse texto escrito por Jurandir Pires

    Ferreira8, e se refere ao municpio de Lobato no noroeste paranaense. A primeira citao

    valoriza o papel da CMNP enquanto a segunda enfatiza o desempenho dos pioneiros de

    Lobato, os quais inclusive tem seus nomes gravados no somente nesse mas em outros

    trabalhos referentes ao municpio.

    Embora o municpio de Astorga de que se originou o de Lobato tenha sido

    obra daquela companhia imobiliria [CMNP], as poucas referncias

    histricas encontradas nada informam que este tambm tenha sido planejado

    e fundado pela empresa semeadora de cidades e condutora do progresso e do

    engrandecimento do Norte do Paran.

    Fruto da exuberncia do solo e do esforo dos primeiros desbravadores do

    serto ignoto, o municpio de Lobato constitui afirmao dinmica e

    espontnea da eficincia e capacidade realizadora dos modernos

    bandeirantes, que fizeram daquela frtil regio a Cana brasileira, ou a nova

    Terra da Promisso.

    Com frases como essas a produo pica sustentou o mito criado pela CMNP e se

    incumbiu de dissemin-lo no pas como mostra a propaganda feita pela companhia sobre o

    6 Idem, p. 150. 7 Idem, p. 146. 8 FERREIRA, Jurandir Pires. Enciclopdia dos Municpios Brasileiros. Rio de Janeiro: [S. n.] v. 31. 1959. p.

    304.

  • 27

    municpio de Londrina, o primeiro fundado no Norte do Paran (Figura 1). Ao criar esse mito

    a memria excluiu a participao de outros protagonistas que promoveram a transformao do

    Norte do Paran como posseiros, trabalhadores autnomos, mulheres, crianas e populaes

    indgenas. Excluiu tambm, parte do significado social e histrico dos momentos que

  • Figura 1: Propaganda da CTNP, 1958.

    Disponvel em: http://planetajc.blog.ter

  • envolveram o processo por serem conflituosos e em estarem em desacordo com os ideais de

    progresso e desenvolvimento que ela sustentava para a regio.

    Esse tipo de abordagem continuou a se repetir ainda por muitos anos no meio

    acadmico. Joo Carlos Vicente Ferreira9, em trabalho datado de 1996, reproduz aspectos da

    memria pica ao fazer o histrico de vrios municpios paranaenses. Atravs de tpicos

    como os histricos de alguns municpios fundados pela CMNP o autor volta a enfatizar o

    papel criador da empresa ao destacar que:

    Desde o ano de 1925, quando um grupo de colonizadores ingleses, tendo

    frente Lord Lovat, fundou a Companhia de Terras, foram semeadas dezenas

    de cidades, e plantado o progresso e riqueza, em grande rea do territrio

    Paranaense incluindo Lobato.

    Aquele que se detiver apenas nas informaes contidas nessas fontes construir um

    conhecimento parcial e arbitrrio sobre o processo por travar contato apenas com uma das

    muitas memrias existentes exatamente aquela que mitifica o processo enfatizando o papel

    desempenhado pela CMNP e por pessoas estigmatizadas como pioneiros, organismo e

    pessoas imbudas de uma destinao histrica que se propunham transformar as grandes

    reas de terra desabitadas, mas com grandes potencialidades no Norte do Paran em uma

    sociedade baseada nos ideais do capitalismo democrtico, posto que empreenderiam uma

    misso de elevado interesse pblico ao promoverem uma colonizao com base na

    propriedade privada e no trabalho10. Pois, para a memria pica o que houve na regio Norte

    do Paran entre 1925 at meados da dcada de 1960 foi um processo de colonizao em que a

    transformao ambiental e a construo social por estarem baseadas nos moldes capitalistas,

    seriam a melhor forma de desenvolver a regio, fato que por si s justificaria a forma

    acelerada e intensa da transformao empreendida.

    Os traos predominantemente positivos sobre os quais a memria pica construiu sua

    verso histrica do processo foi questionado pelos historiadores das dcadas de 1990.

    Preocupados em apresentar anlises sobre processos histricos cujos protagonistas no fossem

    somente a CMNP e os setores sociais detentores do poder poltico e econmico de uma

    regio, mas, sim, grupos sociais em suas mais diversas manifestaes no conjunto da

    sociedade em que ocorreram tais processos enfatizando os conflitos que aconteciam entre

    esses diversos grupos a historiografia dos conflitos ir problematizar a memria pica

    sobretudo a partir dos interesses econmicos que subjazem empreita promovida pela

    9 FERREIRA, Joo Carlos Vicente. O Paran e seus Municpios. Maring: Memria Brasileira, 1996. p. 402. 10 COMPANHIA MELHORAMENTOS NORTE DO PARAN, Colonizao e desenvolvimento do Norte do

    Paran. 2. ed., So Paulo: Ave Maria, 1977. p. 08.

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    CMNP. Antes, porm, de apresentar os parmetros dessa ltima historiografia e sua crtica

    sobre a consolidao do capitalismo na regio norte e noroeste do Paran, vejamos como uma

    outra produo historiogrfica apresentou suas concluses sobre o fenmeno em questo.

    3 A MEMRIA DETEMINISTA

    O segundo conjunto de trabalhos voltados para a temtica da explicao do processo

    ocorrido no Norte do Paran refere-se a abordagens de historiadores da dcada de 1980 nos

    quais fica evidente a importncia do setor econmico representado pela produo cafeeira,

    para a explicao do processo, da ser conceituada como historiografia determinista. Os

    trabalhos de duas historiadoras em particular, Nadir Aparecida Cancian e France Luz so

    paradigmticos no que se refere a essa abordagem11.

    A primeira delas, Nadir Aparecida Cancian em tese defendida na dcada de 1970 ao

    fazer um balano da cafeicultura no Norte do Paran entre 1900 e 1970, declara a iminente

    importncia dessa produo agrcola para a transformao da regio no somente durante os

    primeiros anos da consolidao da sociedade capitalista mas tambm para as mudanas

    ocorridas em anos posteriores quando a produo cafeeira foi substituda por outras culturas.

    Na cronologia por ela elaborada para demonstrar a importncia do caf como o elemento

    econmico que conduziu a formao da sociedade norte paranaense a autora faz um

    levantamento sobre os rumos da produo cafeeira em nvel nacional e internacional e como

    esses rumos foram determinantes para a introduo dessa cultura no Paran.

    Segundo ela, embora a produo cafeeira tenha sido freada em seu crescimento em

    todo o Brasil no perodo que vai de 1929, ano da depresso, e 1945, ano que marca o final da

    Segunda Grande Guerra, no Paran ao contrrio, ela foi estimulada12. Tal estmulo esteve

    ligado aos interesses de grandes proprietrios, da CTNP (Companhia de Terras Norte do

    Paran) e posteriormente da CMNP e tambm do governo em desenvolver a regio Norte do

    estado. Esse fator aliado superproduo cafeeira e o esgotamento das reas produtoras de

    caf nos estados de So Paulo, Minas Gerais, Esprito Santo, Rio de Janeiro, Bahia,

    Pernambuco e Gois teria acelerado a busca de terras novas e ativou a especulao na

    11 CANCIAN, Nadir A. Cafeicultura Paranaense 1900-1970. Curitiba: Grajipar/SECE-PR, 1981. LUZ,

    France. O fenmeno urbano numa zona pioneira: Maring. 1980. 435 f. Dissertao (Mestrado em Histria

    Social) - Departamento de Historia da Universidade de So Paulo, So Paulo, 1980. 12 CANCIAN, Nadir Aparecida Cafeicultura Paranaense 1900-1970. Curitiba: Grajipar/SECE-PR, 1981. p.

    29.

  • 25

    compra e venda de terras. Para o Paran, significou a expanso do plantio com aumento de

    produo nos anos seguintes e abertura de frentes pioneiras13. Dessa forma, estados como

    So Paulo, ao limitarem a produo cafeeira teriam estimulado a vinda de lavradores,

    paulistas principalmente, para o estado do Paran14.

    Emmbora tenha havido esse estmulo produo a partir de 1930, nos anos 1960

    iniciou-se uma nova etapa no setor econmico do estado. Como o caf alcanou nveis

    elevados de produo, o governo federal iniciou um processo de incinerao da produo e

    derrubada dos prprios cafezais. Sobre esse processo Cancian15 diz:

    Buscava-se aumentar a produo de alimentos, que tendia a diminuir face s

    variadas formas de monocultura que o caf vinha apresentando assegurando

    ao mesmo tempo o equilbrio da balana de pagamentos mantendo o caf

    brasileiro em posio de destaque na rea internacional atravs da poltica de

    eliminao fsica de parte do arque cafeeiro, para forar elevao dos preos

    externos.

    Como a regio Norte do Paran tinha grande parte de sua estrutura econmica baseada

    na produo cafeeira, mas no exclusivamente nessa, isso se tornou um problema para a renda

    interna do estado. No perodo em que o caf estava em expanso os demais setores da

    economia no conseguiram acompanhar o ritmo acelerado dessa produo e o setor agrcola

    teria sido o que crescera mais lentamente em relao cafeicultura e, essa falta de infra-

    estrutura impossibilitava que esse setor concorresse ou substitusse o caf16. Com isso, o

    Paran a partir dos anos sessenta sofre uma nova transformao, tendo mais uma vez o caf,

    produto propulsor da regio, como base da mudana uma vez que a superproduo dessa

    cultura levou a uma reduo nos preos do produto e consequentemente, os grandes e os

    pequenos produtores se voltaram para outras atividades agrcolas. O declnio dos preos do

    caf no mercado internacional ento teria levado o estado a diversificar a produo atravs

    da ampliao de pastagens artificiais e fomento das lavouras temporrias, de modo especial

    das oleaginosas17.

    Com base nesses dados, conclui-se que para Cancian as transformaes ocorridas na

    regio Norte do Paran entre 1900 e 1970 estavam inseridas num contexto de poltica

    nacional integrada aos interesses da economia internacional e se manifestaram no estado

    atravs da produo cafeeira. Fator que leva concluso de que na abordagem feita pela

    13.Idem, p. 28. 14 Idem, p. 33. 15 Idem, p. 131. 16 CANCIAN, Nadir Aparecida Cafeicultura Paranaense 1900-1970. Curitiba: Grajipar/SECE-PR, 1981. p.

    131. 17 Idem, p. 29.

  • 26

    historiadora sobre o processo de implementao do capitalismo na regio no so

    contemplados outros possveis participantes do processo sendo que apenas a produo

    cafeeira leia-se mercado internacional - se apresenta como o sujeito histrico e

    determinante por excelncia.

    France Luz, em obra j citada e tambm escrita nos anos 1970, segue essa linha

    determinista apresentada por Cancian ao concluir que para compreender o processo de

    desbravamento e povoao do Norte do Paran, faz-se necessrio situ-lo num contexto mais

    amplo da economia nacional e da expanso cafeeira paulista18. Em seu trabalho e com

    relao ao papel desempenhado pela CTNP/CMNP France Luz19 acrescenta que:

    A colonizao ali levada a efeito por aquela Companhia desenvolveu-se de

    modo empresarial, dirigida para a ocupao e valorizao rpida das terras e

    para a obteno de lucros. Sua ateno teve como resultado a diviso de

    terras em pequenas e mdias propriedades, que eram vendidas a particulares

    com a finalidade de nelas se cultivar o caf e produzir gneros de

    subsistncia. Desta maneira, a empresa assegurava a rentabilidade do capital

    investido na aquisio da gleba e nas obras de infra-estrutura, transportando

    para os numerosos pequenos proprietrios que compravam seus lotes todos

    os riscos decorrentes da explorao da terra.

    Ainda que verificada a existncia de outros participantes no momento de implantao

    da sociedade capitalista na regio citados pela autora como os numerosos pequenos

    proprietrios sobre os quais recaiam os riscos da empreita iniciada pela CMNP, a autora no

    trabalha essa questo do ponto de vista de um conflito e ainda menos do protagonismo

    histrico das chamadas minorias. O desempenho da economia no processo supera a

    importncia daquela informao e o processo de implantao capitalista continua a ser visto

    como o propulsor das transformaes ocorridas na regio.

    Como acontece com a memria pica, a produo determinista faz uma abordagem

    parcial do processo por explic-lo somente como resultado do desenvolvimento econmico

    ocorrido na regio centrado particularmente na cafeicultura. Essa parcialidade resultado de

    uma anlise histrica que no contempla as transformaes scio espaciais como produto da

    interligao de fatores humanos, econmicos, ambientais e polticos na constituio dos

    processos histricos e na qual, os seres humanos, sujeitos por excelncia dos processos

    histricos, no encontram espao representativo.

    18 LUZ, France. O fenmeno urbano numa zona pioneira: Maring. 1980. 435 f. Dissertao (Mestrado em

    Histria Social) - Departamento de Historia da Faculdade de Filosofia, Letras Cincia Humanas da

    Universidade Erro! Vnculo no vlido.de So Paulo, So Paulo, 1980. p. 48. 19 Idem, p. 414.

  • 27

    Nesse contexto de memrias sobre a regio norte e noroeste do Paran ento, surge em

    meados dos anos 1990 trabalhos que iro questionar essas duas vises. Baseadas sobretudo

    nas propostas da Histria dos Annales e a considerao sobre a importncia dos vencidos

    para uma melhor compreenso dos processos histricos, essa historiografia ir questionar as

    memrias pica e a determinista e ampliar as informaes sobre a memria desse processo.

    4 A HISTORIOGRAFIA DOS CONFLITOS

    As duas produes analisadas brevemente nos pargrafos anteriores so de valor

    inestimvel para conhecer muitos detalhes sobre o processo da consolidao do capitalismo

    na regio como j foi dito embora no explorem as vrias potencialidades de conhecimento

    sobre a histria do Paran que o processo ocorrido Norte da regio oferece. No que seja

    possvel conhecer um momento histrico em sua plenitude, mas, atravs de uma forma

    diferente de abordar os processos histricos, foi possvel explorar outros elementos relativos

    ao processo em questo. Os responsveis por essa abordagem diferenciada foram

    historiadores da dcada de 1990 que ao questionarem o carter excludente das memrias

    citadas atravs de uma releitura das mesmas e de outros documentos relativos questo,

    apontaram suas deficincias e demonstraram, atravs de novos objetos, teorias, mtodos e

    fontes, particularidades ainda no exploradas do processo20.

    As referidas particularidades histricas apresentadas pela historiografia dos conflitos

    esto intrinsecamente ligadas s questes relativas s contradies existentes nos processos

    histricos, fato que leva essa produo a enfatizar a participao de outros grupos sociais no

    citados pelas memrias anteriores na transformao acontecida no Norte Paranaense como,

    por exemplo, as sociedades indgenas, os posseiros e os caboclos. Alm disso essa

    20 Alguns dos autores arrolados sob o termo historiografia dos conflitos: MOTA, Lcio Tadeu. As guerras dos

    ndios kaingang: a histria pica dos ndios kaingang no Paran (1769-1924). Maring: EDUEM, 1994;

    TOMAZI, Nelson D. Certeza de lucro e direito de propriedade: o mito da Companhia de Terras Norte do

    Paran. 254 f. Dissertao (Mestrado), Departamento de Histria do Instituto de Letras, Histria e Psicologia

    de Assis, UNESP Campus de Assis. 1989. TOMAZI, Nelson D. Norte do Paran histrias e fantasmagorias. 1997. 338 f. Tese (Doutorado) - Departamento de Histria, Setor de Cincias Humanas,

    Letras e Artes, Universidade Federal do Paran, Curitiba, 1997; ROLLO GONALVES, Jos Henrique.

    Histria regional e ideologias: em torno de algumas coreografias polticas do norte paranaense 1930/1980. 1995. 255 f. Dissertao (Mestrado), Departamento de Histria do Centro de Cincias Humanas, Letras e

    Artes Universidade Federal do Paran, Curitiba, 1995. PRIORI, ngelo Aparecido. A revolta camponesa de Porecatu - a luta pela defesa da terra camponesa e a atuao do Partido Comunista Brasileiro (PCB) no

    campo (1942-1952). Tese, (Doutorado em Histria) - Faculdade de Cincias e Letras da Universidade Paulista

    UNESP. Assis, 2000.

  • 28

    historiografia reflete e apresenta os resultados de suas anlises enfatizando os ideais presente

    no discurso da CTNP/CMNP, empresrios e estrutura governamental, ao aclamarem o sistema

    capitalista como a melhor, seno a nica, forma de desenvolver a regio.

    Um dos primeiros representantes dessa historiografia a introduzir os conflitos sociais e

    a apresentar de forma crtica os interesses submersos sob a introduo dos ideais capitalistas

    na regio, foi o historiador Lcio Tadeu Mota. Em sua obra A guerra dos ndios Kaingang,

    datada de 1994, o autor denuncia a excluso social e histrica promovida pela memria pica

    e tambm por intelectuais das mais diversas reas do conhecimento ao criarem a ideia de um

    vazio demogrfico na regio ao apagaram da histria do processo a existncia dos grupos

    indgenas das reas sobre as quais o estado do Paran foi delimitado.

    Para discorrer sobre a existncia desses grupos e questionar a questo do vazio

    demogrfico, Mota se props discutir a ideologia da construo de um territrio vazio,

    desabitado, no terceiro planalto Paranaense21 sustentada pelo trabalho de gegrafos,

    historiadores, a prpria CMNP e por livros didticos a partir da dcada de 1930.

    A construo da idia do vazio demogrfico, ou de outras designaes criadas para

    expressar esse mesmo ideal, como a palavra serto e mata virgem, so utilizadas nos trabalhos

    citados por Mota e tambm pela memria pica para se referirem s reas de interesse

    capitalista remetendo s mesmas um sentido de que tais espaos, devido ao no uso utilitrio

    de seus recursos, tornavam-se prejudiciais ao desenvolvimento de uma sociedade capitalista

    no Brasil. Para desmistificar a ideia de vazio demogrfico Mota analisou e interpretou o

    discurso dos intelectuais que a criaram chamando a ateno para a forma dualista com que os

    mesmos compreendiam a natureza e concluiu que tal discurso estava imbudo de formas

    capitalistas de significar a natureza.

    Segundo ele, os interesses capitalistas teriam transformado o terceiro planalto

    Paranaense, em especial o Norte e o Oeste, a partir do conceito de natureza enquanto

    mercadoria. Como para o capitalismo a natureza, animais, rvores, terra, tudo tem seu preo,

    ao se expandir entre os anos de 1930 a 1960, a sociedade nacional, para construir seu espao

    mercantilizado, destruiu o espao das comunidades indgenas, as matas e os animais

    existentes das terras ento transformadas em mercadorias22. Esse conceito mercantilizado

    utilizado por Mota para significar o tratamento dado pela sociedade capitalista natureza foi

    trabalhado por Neil Smith e parte do pressuposto de que a idia que o capitalismo tem sobre a

    21 MOTA, Lcio Tadeu. As guerras dos ndios kaingang: a histria pica dos ndios kaingang no Paran (1769-

    1924). Maring: EDUEM, 1994. p. 9. 22 MOTA, Lcio Tadeu. As guerras dos ndios kaingang: a histria pica dos ndios kaingang no Paran (1769-

    1924). Maring: EDUEM, 1994. p. 14.

  • 29

    natureza dualista, vista em princpio como hostil, um perigo a ser vencido com sacrifcio e

    estoicismo, depois de conquistada pelas tcnicas criadas pelos seres humanos a natureza se

    transforma em ddiva, pronta para fornecer a subsistncia23.

    Acontece ento uma transformao no conceito de natureza quando ela deixa de ser

    vista como hostil e passa a ser compreendida um espao dominado pelo homem e a partir de

    ento como uma mercadoria. Fato que transforma o conceito de natureza num produto social

    cujos protagonistas so homens que ao colocarem em prtica os ideais do capitalismo como a

    ideia de progresso humano e material atravs da transformao da natureza, transformam os

    espaos de acordo com seus interesses24.

    Como se v atravs da anlise feita por Mota, a memria pica imbuda dos ideais

    capitalistas construiu seus mitos sobre um discurso que deveria passar a idia da existncia de

    grandes reas de terra desabitadas, mas com grandes potencialidades25 no Norte do Paran

    apagando a existncia de outros ocupantes dessa regio. Com essa abordagem, Mota no s

    questionou o mito do vazio demogrfico mas tambm e sobretudo, inseriu na histria da

    ocupao os conflitos vividos pelos povos indgenas e os vrios grupos sociais que invadiram

    seus territrios sobretudo a partir do sculo XVI, sendo a sociedade capitalista apenas uma

    das representantes desses grupos, talvez porm, a mais significativa, dado o nvel elevado de

    transformaes promovidos pela sociedade capitalista na regio.

    Outro pesquisador que procura explicitar os interesses submersos aos ideais

    capitalistas de transformao da regio Norte do Paran introduzindo os conflitos sociais

    resultantes dessa transformao o socilogo Nelson Dcio Tomazi. No trabalho intitulado

    Certeza de lucro e direito de propriedade26, datado de 1989, Tomazi analisa e critica o mito

    criado pela CMNP com relao ao papel de destaque que a prpria empresa se auto-atribui no

    processo de introduo de elementos capitalistas na regio Norte do Paran e, num segundo

    trabalho, datado de 1997 e intitulado Norte do Paran: histrias e fantasmagorias27, o

    23 Detalhes sobre essa viso mercantilista da natureza sero abordados em maior profundidade durante a parte

    conclusiva do trabalho. SMITH, Neil. Desenvolvimento desigual: natureza, capital e produo do espao. Rio

    de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988. p. 39-45, passim. 24 SMITH, Neil. Desenvolvimento desigual: natureza, capital e produo do espao. Rio de Janeiro: Bertrand

    Brasil, 1988. p. 39-45, passim. 25 COMPANHIA MELHORAMENTOS NORTE DO PARAN, Colonizao e desenvolvimento do Norte do

    Paran. 2. ed. So Paulo: Ave Maria, 1977. p. 08. 26 TOMAZI, Nelson D. Certeza de lucro e direito de propriedade: o mito da Companhia de Terras Norte do

    Paran. 254 f. Dissertao (Mestrado), Departamento de Histria do Instituto de Letras, Histria e Psicologia

    de Assis, UNESP Campus de Assis. 1989. 27 TOMAZI, Nelson D. Norte do Paran histrias e fantasmagorias. 1997. 338 f. Tese (Doutorado) -

    Departamento de Histria, Setor de Cincias Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paran,

    Curitiba, 1997.

  • 30

    autor traz uma discusso sobre a violncia e a excluso sofridas por segmentos sociais que

    viviam no Norte do Paran antes da ocupao capitalista.

    Em Certeza de lucro e direito de propriedade, o autor analisa o discurso criado pela

    companhia atravs da exposio minuciosa dos elementos que compem o mito. Segundo ele,

    o mito criado pela CMNP foi composto por quatro elementos: o primeiro relativo a obra

    pioneira da CMNP enquanto a base do segundo elemento relativa a misso da empresa em

    transformar o terceiro planalto paranaense em um espao til coletividade sob os ideais do

    capitalismo promissor. Quanto ao terceiro elemento, ele se constitui no papel de destaque que

    a empresa remete aos pioneiros e o quarto elemento do mito composto pela ideal de reforma

    agrria que a empresa propunha para a regio28.

    De forma sistemtica o autor conclui que o mito parte do interesse em transformar a

    regio Norte do Paran de acordo com os moldes de povoamento e produo do sistema

    capitalista e que seus intrpidos pioneiros nada mais queriam a no ser obter lucros com a

    venda de terras na regio. Ao revelar a ideia implcita em cada um dos elementos que

    compunham o mito, Tomazi demonstra que as transformaes empreendidas pela empresa

    no visavam a coletividade e sim enriquecimento e poder para os fazendeiros, empresrios

    ingleses, comerciantes madeireiros e o governo do estado.

    No mito criado pela Companhia esta aparecia como o organismo empreendedor de

    uma obra pioneira na regio enfatizando a ideia de que a regio era desabitada e estava

    espera de transformao o que a coloca como aquela que teria se responsabilizado por

    promover o desenvolvimento do Norte do Paran de acordo com interesses democrticos e

    coletivos29. Ao fazer a interpretao desse primeiro elemento Tomazi30 conclui que com essa

    auto-atribuio, o mito,

    Esconde, apaga o que ocorreu com as populaes que aos milhares

    habitaram esta regio durante centenas de anos e que viviam do que a terra

    lhes concedia, seja de frutos, animais ou de pequenas plantaes. O habitante

    nativo no considerado como habitante, bem como a selva no produtiva,

    pois povoamento e produo s deve ter significado se for visto na tica do

    uso de homens e terra para a valorizao do capital.

    28 TOMAZI, Nelson D. Certeza de lucro e direito de propriedade: o mito da Companhia de Terras Norte do

    Paran. 254 f. Dissertao (Mestrado), Departamento de Histria do Instituto de Letras, Histria e Psicologia

    de Assis, UNESP Campus de Assis. 1989, passim. 29 COMPANHIA MELHORAMENTOS NORTE DO PARAN, Colonizao e desenvolvimento do Norte do

    Paran. 2. ed., So Paulo: Ave Maria, 1977. p. 146. 30 TOMAZI, Nelson D. Certeza de lucro e direito de propriedade: o mito da Companhia de Terras Norte do

    Paran. 254 f. Dissertao (Mestrado), Departamento de Histria do Instituto de Letras, Histria e Psicologia

    de Assis, UNESP Campus de Assis. 1989. p. 159.

  • 31

    Esse primeiro elemento introduz e apresenta a questo presente no segundo elemento

    que relativa ao trabalho da empresa na regio quando o trabalho desempenhado pela

    empresa passa a ser visto como uma valorosa misso que coube a CMNP empreender e,

    assim, as aes da Companhia passaram para a memria como um marco na histria da

    regio, ou seja, a histria do Norte do Paran passa a ser vista a partir do antes e do depois da

    chegada CMNP ao estado.

    Submersos a esse discurso se encontram outros ideais segundo Tomazi 31,

    Esta periodizao exprime, pois, a seguinte viso histrica: antes da presena

    da Companhia pouca coisa havia de significativo na regio; quando ela

    aparece no cenrio, traz consigo o progresso, a civilizao e a ordem

    (segurana) e a partir ela que se efetivam todas as outras. Ela , portanto, o

    marco que define todas as aes anteriores e posteriores.

    O autor conclui ainda que com esse discurso a Companhia procurou ocultar os

    verdadeiros objetivos de sua ao que era a obteno de lucro o mais rapidamente

    possvel32 e, diante dessa perspectiva, um novo elemento se introduz. Como a ao da

    CTNP/CMNP foi desempenhada pelos intrpidos pioneiros so eles ento que passam a ser os

    agentes que vislumbravam lucros com a transformao da regio, os mesmos apresentados

    pela companhia como os heris da saga por ela empreendida. Para desmistificar esse sentido

    heroico remetido a alguns agentes da companhia e a ela prpria, Tomazi33 introduziu novos

    agentes no processo, os pioneiros, e retirou da companhia o lugar de destaque na empreita:

    A prpria compra das terras no Norte do Paran bem como a concesso para

    a construo da ferrovia, nada mais foi do que a conjuno de interesses de

    fazendeiros j instalados na regio, que pretendiam que os ingleses viessem

    a investir nela, interesses do governo estadual que procurava uma forma de

    povoar esta regio e desta forma aumentar a sua arrecadao e do interesse

    do prprio Lord Lovat, como representante de capitalistas ingleses, que

    percebeu que aqui tambm poderia ser feito o que os ingleses j faziam em

    vrias partes do mundo, conseguir grandes lucros com um projeto

    imobilirio e com o monoplio dos transportes de homens e de mercadorias.

    Outros tambm considerados pela empresa com pioneiros so os advogados,

    funcionrios da empresa no exterior que se deslocaram para o Brasil para trabalharem na

    CMNP e tambm polticos brasileiros, todos beneficiados com o plano desenvolvido pela

    empresa no Paran. Alm desses, o autor cita ainda compradores de grandes e de pequenas

    31 TOMAZI, Nelson D. Certeza de lucro e direito de propriedade: o mito da Companhia de Terras Norte do

    Paran. 254 f. Dissertao (Mestrado), Departamento de Histria do Instituto de Letras, Histria e Psicologia

    de Assis, UNESP Campus de Assis. 1989. p. 160. 32 Idem, p. 164. 33 Idem, p. 181.

  • 32

    propriedades, comerciantes, proprietrios de serrarias, como tambm trabalhadores sem terra,

    que trabalharam para os outros, s possuindo sua fora de trabalho34.

    Contudo, entre esses ltimos citados se encontra uma das contradies que a empresa

    tentou ocultar em seu discurso mtico. Aquela que apresenta o grupo dos intrpidos pioneiros

    como um segmento social homogneo e predominantemente vencedor. Sobre essa contradio

    Tomazi35 assim se expressa:

    A homogeneidade apresentada atravs da expresso pioneiros procura esconder a real condio de classe da populao que para c se deslocou e

    oculta as relaes de classes que se estabeleceram entre os diversos

    segmentos desta realidade, procurando sempre passar a idia de que todos

    que para aqui vieram tinham as mesmas chances para progredir e enriquecer

    e que no havia nenhuma contradio entre os pioneiros, pois todos tinham os mesmos interesses e almejavam as mesmas coisas.

    Ele interpreta essa contradio da seguinte forma. Atravs dessa suposta

    homogeneidade a condio de pioneiro tenta esconder a explorao acontecida atravs do

    trabalho e ainda, disseminar a noo de que todos podem enriquecer desde que se esforcem,

    que faam sacrifcios e trabalhem muito, pois todos os que aqui enriqueceram e venceram

    porque assim o fizeram36.

    Um quarto elemento viria formar, junto com os trs j citados, a memria sobre a

    ocupao onde no cabem os conflitos e, muito menos, os fracassos. Esse quarto elemento

    representado pelo exemplo pioneiro de reforma agrria empreendido pela CMNP na regio.

    Sobre esse elemento Tomazi37 diz que o trabalho que a colonizadora realizou no Paran no

    foi uma reforma agrria, mas sim, colonizao e, que esses dois termos se diferenciam na

    medida em que reforma agrria pressupe a redistribuio dos direitos sobre a propriedade da

    terra e que esta deve ser promovida pelo governo enquanto que o processo de colonizao,

    a ocupao de terra devolutas, de terras livres, onde o governo e empresas privadas, associadas ou no, criam projetos de povoamento de

    regies ditas vazias fundando ncleos urbanos e deslocando populaes, visando, no caso do estado, a acalmar determinadas inquietaes no meio

    rural e, lucro, atravs da especulao imobiliria, no caso da iniciativa

    privada. A colonizao pode ser um complemento mas nunca um substituto

    da reforma agrria.

    34 TOMAZI, Nelson D. Certeza de lucro e direito de propriedade: o mito da Companhia de Terras Norte do

    Paran. 254 f. Dissertao (Mestrado), Departamento de Histria do Instituto de Letras, Histria e Psicologia

    de Assis, UNESP Campus de Assis. 1989. p. 183. 35 Idem, p. 183. 36.Idem, p. 184. 37 Idem, p. 188.

  • 33

    Ao divulgar esse mito da reforma agrria, a Companhia estaria agindo de acordo com

    os interesses do governo do Estado Novo e do governo estadual, que na verdade, estavam

    mais interessados em afastar os perigos de subverso dos que no possuam terras no Brasil

    do que realmente promover a diviso de terras entre os segmentos sociais que sobreviviam do

    meio agrrio38, entre eles, trabalhadores da lavoura que se empregavam nas grandes fazendas

    para obterem o prprio sustento e de familiares. Como empresa privada e colonizadora a

    Companhia no tinha reais intenes de promover a reforma agrria no Norte paranaense, mas

    sim, conseguir vultuosos lucros atravs da especulao imobiliria e da explorao do

    trabalho de funcionrios empregados para realizarem o trabalho de derrubada da mata,

    construo de estradas, entre outras atividades que exigiam fora fsica.

    Em suma, so essas as crticas que Tomazi faz ao mito criado pela Companhia quando

    o desconstri, atravs da anlise detalhada sobre o discurso implcito nos quatro elementos

    que o compe e conclui que todo mito uma criao e que a empresa em questo tambm

    teria criado o seu. Mas, que cabe ao historiador o compromisso enquanto aquele que tem, por

    fora de seu ofcio, discorrer sobre o passado de forma crtica e o mais perto possvel do que

    foi aquela realidade sendo, para tanto, necessrio no apenas guardar e conservar estes

    fragmentos esquecidos do passado mas, principalmente, libert-los. necessrio que a

    histria daqueles que foram vencidos no se passe silenciosamente39 conclui ele.

    Foi pois considerando os conflitos sociais acontecidos desde o sculo XVI no Paran e

    tambm, fazendo um balano crtico dos ideais que permeavam essas transformaes, que a

    historiografia dos conflitos explicou as diversas fases e mudanas ocorridas na regio. Essa

    perspectiva ampla de abordagem histrica resultou na inquestionvel participao das

    sociedades indgenas sobretudo durante os anos do Brasil Colnia, do Imprio e tambm da

    Repblica e, juntamente com posseiros e caboclos, os indgenas se tornaram grupos

    antagnicos aos interesses de qualquer uma das formas de governo citadas, da as

    contradies no interior dos processos histricos apresentadas e analisadas pela historiografia

    dos conflitos.

    38 TOMAZI, Nelson D. Certeza de lucro e direito de propriedade: o mito da Companhia de Terras Norte do

    Paran. 254 f. Dissertao (Mestrado), Departamento de Histria do Instituto de Letras, Histria e Psicologia

    de Assis, UNESP Campus de Assis. 1989. p. 190. 39 TOMAZI, Nelson D. Norte do Paran histrias e fantasmagorias. 1997. 338 f. Tese (Doutorado) -

    Departamento de Histria, Setor de Cincias Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paran,

    Curitiba, 1997. p. 26.

  • 34

    5 A PESQUISA REGIONAL E A HISTRIA ORAL

    A pesquisa baseada na proposta da historiografia dos conflitos pretende discorrer

    sobre o processo que consolidou traos profundos dos ideais capitalistas na regio em

    conjunto com elementos culturais trazidos pelos migrantes e imigrantes de seus locais de

    origem, partindo de uma abordagem diferenciada das citadas anteriormente. A escolha por

    essa abordagem est ligada ao fato de que o mesmo passa a ser explicado como resultante da

    organizao social produzida pelos indivduos, pessoas consideradas comuns, em ncleos

    humanos fundados durante aquele processo. J o uso de documentos orais como fontes

    histricas podem ser relevantes para estudos dessa natureza uma vez que sua riqueza reside na

    subjetividade inerente a esse tipo de fonte.

    No caso da pesquisa realizada no municpio de Lobato entre os anos 1999 e 2001 e

    que resultaram num livro com a histria do municpio, a abordagem acima descrita revelou

    que os sujeitos histricos que levaram a cabo a construo daquele pequeno municpio foram

    no somente a CMNP e o governo, mas tambm aqueles que para l se dirigiram em busca de

    construir sua vida num novo espao e sob novas formas de produo econmica. J no novo

    espao porm, os moradores da zona rural de Lobato, a primeira a se desenvolver,

    encontraram uma sociedade que precisava ser construda e cujo empreendimento dependia de

    seus esforos pessoais mais do que das grandes empresas e governos que demarcaram o

    municpio. As experincias vividas por eles nesse processo construtor foram ento narradas

    no livro chamado As guas de Lobato no qual buscamos apresentar particularidades nem

    sempre reveladas pelas memrias construdas sobre a ocupao do norte e noroeste

    paranaense e apontamos a importncia de anlises que partem da visualizao da organizao

    social, atravs das relaes sociais e do contato com o meio, como o que de fato une os seres

    humanos nos espaos escolhidos para a reproduo da vida. Da a importncia das prticas

    cotidianas descritas pelos depoentes de Lobato serem vistas como as estruturas, por vezes

    maleveis, que por serem estrategicamente praticadas pelos interessados na construo de

    uma sociedade se tornaram a fora motriz processo de consolidao capitalista na regio.

    Assim, as individualidades das experincias humanas e a descrio minuciosa das evidncias

    coletadas nas diversas fontes utilizadas na pesquisa em Lobato tiveram por objetivo

    apresentar uma verso para o processo ocorrido a partir dessas prprias experincias, e com

    isso, a pesquisa se constituiu num trabalho que privilegia o aspecto social dos processos

    histricos, abordagem reveladora dos conflitos vividos no interior desses prprios processos,

    muitas vezes no analisados por outras produes, como por exemplo, aquelas aqui citadas.

  • 35

    5.1 Caractersticas que permitem analisar a sociedade das guas historicamente

    Como Lobato um municpio que foi projetado para existir, ou seja, que teve sua

    fundao dirigida por uma empresa colonizadora e pelo Governo do estado, as transformaes

    ambientais e sociais que a sociedade das guas apresentou estavam intrinsecamente ligadas

    forma, ou aos motivos que levaram sua constituio. As guas, assim como outros

    municpios da regio, foram construdas com o objetivo de atender a uma produo, a

    cafeeira, cujo alcance era internacional. At mesmo num segundo momento da agricultura

    lobatense, quando os cafezais so derrubados e h a introduo das oleaginosas, como a

    mamona por exemplo, ainda assim esse produto no visava a subsistncia alimentar dos

    moradores, fato que estaria ligado a essa produo de uma forma secundria quando a venda

    do produto revertesse, ou no, em benefcios para quem o produziu.

    Os moradores das guas ou so proprietrios seja de pequenas ou grandes

    propriedades, ou so pessoas que l se estabeleceram para trabalhar em diversas atividades

    autnomas que foram sendo necessrias ao longo dos anos em que a sociedade das guas

    conheceu seu estabelecimento e evoluo. Durante essa fase, o mundo rural lobatense

    conheceu vida social particular originria da imbricao entre a estrutura geogrfica recriada

    pelos agrimensores da CMNP, a produo agrcola para um mercado internacional e a

    diversidade cultural dos migrantes e imigrantes que para l se dirigiram.

    Planejada para existir em sua forma espacial, as guas no foram planejadas em sua

    organizao social. Para que esse elemento se efetivasse, os homens e mulheres que l se

    estabeleceram contaram com conhecimentos adquiridos dos locais de onde vieram antes de se

    estabelecerem em Lobato. Aqueles que construram a sociedade das guas no eram

    originrios daquele espao, no tinham laos com a terra ou descendiam de familiares

    passados. Todos esses vnculos passaram a se formar a partir do contato com a regio e, nesse

    construir de laos, a sociedade das guas foi composta por formas organizativas do espao e

    das sociabilidades inerentes a diversas nacionalidades e regionalidades. O que se tem ento

    no habitat rural estabelecido em Lobato uma sociedade caracterizada pela diversidade de

    costumes, valores e estruturas coletivas que foram estabelecidas pelos moradores ao

    organizarem aqueles espaos.

    Ao transformarem a regio Norte do Paran num espao recortado por pequenas,

    mdias e grandes propriedades, governo, CMNP e empresrios se baseavam num ideal de

  • 36

    sociedade moderna cuja maior caracterstica era a produo agrcola em larga escala

    decorrente do trabalho desenvolvido em propriedades privadas normalmente trabalhadas por

    ncleos familiares restritos. Contrariamente a esse modelo unvoco de sociedade, a pesquisa

    com a sociedade das guas revelou que o interesse dos seres humanos em organizar os

    espaos sociais de forma a reproduzirem a vida humana utilizando as condies geogrficas

    encontradas, em conjunto com os elementos culturais que trouxeram consigo do modo de vida

    anterior aos seus estabelecimentos nas guas e, principalmente, buscando responder s

    necessidades que foram surgindo no dia-a-dia em contato com o mundo rural por ser criado,

    so elementos que impossibilitavam que a sociedade que se constituiu na zona rural de Lobato

    fosse descrita como um modelo ideal de sociedade capitalista, ou moderna.

    Considerando os diversos elementos sociais, culturais e econmicos que compunham

    o mundo das guas, pde-se compreender que a sociedade das guas foi formada tanto por

    elementos capitalistas ou modernos, como o caso da produo agrcola voltada para o

    mercado internacional, quanto por elementos comuns ao habitat das sociedades rurais de

    formao espontnea, notadamente pelas experincias culturais trazidos pelos migrantes de

    regies e nacionalidades distintas que l se estabeleceram. Experincias essas que, no trazem

    o novo, ao contrrio, trazem exatamente o conhecido, o popular, o corriqueiro, o cheiro e o

    gosto do cotidiano. Ou seja, a vontade de reproduzir nas guas algo j conhecido e sobre o

    qual se tem algum domnio. Contrariamente ao mundo da reproduo econmica, esse mundo

    conhecido se apresentava como o universo da segurana sobretudo para os momentos de

    aflio causados pelas incertezas que o primeiro trazia constantemente para os moradores

    rurais. Resultados de pesquisa como o aqui apresentado s pode ser encontrado quando

    partimos de uma abordagem marcada pela busca pelos conflitos inerentes aos processos

    histricos e na qual o foco sobre os grupos sociais ampliado para que o maior nmero de

    experincias humanas sejam visualizadas e analisadas.