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Texto publicado originalmente no Livro "Histórias e memórias da ocupação das regiões paranaenses no século XX.", 2014.
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LUPION, M. R. O.; DEOSWIJK, A. L. Histria do Paran sem excluses: o caso da pesquisa realizada no municpio de Lobato. In: Histrias e memrias da ocupao das regies paranaenses no sculo XX. SAMOGIN, C. A. G.; ROMPATO, M. (Orgs.). 1. ed. Maring: Massoni, 2015. P. 194-214.
POR UMA HISTRIA DO PARAN SEM EXCLUSES: o caso da
pesquisa realizada no municpio de Lobato, noroeste do Paran.
Marcia Regina de Oliveira Lupion
Faculdade Alvorada
Andreas Leonardus Doeswijk
Universidad de Uncoma-Argentina
Resumo: Procuramos neste artigo discorrer de forma crtica sobre as diversas memrias que
foram sendo construdas sobre o processo de ocupao do norte e noroeste paranaense ao
longo dos anos 1950 a 1980 e apresentar um modelo de anlise desse mesmo processo no qual
se assenta uma abordagem que denuncia a excluso que as memrias dos anos 1950 a 1980
criaram ao produzirem seus discursos picos ou economicamente deterministas. Discorre-se
tambm sobre como a documentao oral e um olhar microanaltico sobre as fontes
permitiram construir uma memria sobre a formao do municpio de Lobato no noroeste
paranaense que considera como sujeitos histricos, alm da consagrada Companhia
Melhoramentos Norte do Paran, pessoas comuns cujas experincias de vida tornaram-se a
fonte por excelncia daquele processo.
Palavras-chave: Norte e noroeste do Paran. Memria pica. Companhia Melhoramentos
Norte do Paran. Memria determinista. Historiografia dos Conflitos. Histria Oral.
1 INTRODUO
comum iniciarmos os estudos de Histria Regional na atualidade visitando os stios
relativos ao municpio ou aos municpios presentes na regio pretendida em nossa pesquisa.
Nada mais natural tendo em vista o nmero de informaes alcanadas nesse tipo de
ferramenta virtual. No cabe discutir a importncia de estarmos atentos aos contedos e
particularidades presentes nessas informaes mesmo porque como historiadores nos cabe
sempre promover a crtica interna aos documentos, seus dados e sua intencionalidade. Os
stios entretanto nos permitem visualizar de forma primeira alguns aspectos pretendidos na
24
pesquisa dentre eles o histrico dos municpios disposto na pgina das prefeituras. No raro
esses histricos trazem como grande fundador e organizador do municpio a Companhia
Melhoramentos Norte do Paran (CMNP) e por vezes at o nome de alguns daqueles
considerados pioneiros do processo de formao da cidade. Recentemente esses mesmos
histricos tm trazido informaes sobre a cultura da regio quando fazem aluso existncia
de povos indgenas no momento da criao do municpio, mas, esse elemento fruto das
severas crticas que tem sido feitas pela academia a uma memria que desconsiderou a
existncia e a importncia desses povos como os primeiros habitantes do norte e do noroeste
paranaense desde tempos imemoriais.
Os responsveis por promover essa crtica a memria excludente e que denominamos
pica foram historiadores e socilogos das universidades de Maring e Londrina cujos
trabalhos datados dos anos 1990 denunciaram essa excluso e demonstraram os motivos pelos
quais ela se realizou. Mas, no somente a memria pica foi alvo de crticas por conta da
historiografia dos conflitos, como foi conceituada aqui a produo da dcada de 1990.
Tambm foram alvo da crtica empreendida por essa produo os trabalhos sobre a histria da
construo do norte e noroeste paranaense datados dos anos 1970 e 1980 nos quais
predominava uma memria marcada pelo determinismo econmico como fator primordial
para a formao daquela regio. Assim como a memria pica a memria determinista
concebe apenas organismos oficiais e entidades econmicas como sujeitos da ao promovida
para a construo de uma sociedade capitalista no norte e noroeste do Paran. Sem contrariar
o importncia desses dois organismos, historiadores como Lucio Tadeu Mota e Nelson Dcio
Tomazi demonstram os reais interesses pelos quais sobretudo a memria pica promoveu a
excluso da presena de indgenas, caboclos e posseiros em sua historiografia e acima de
tudo, inserem esses personagens tambm como protagonistas no da formao da sociedade
baseada no capital e sim da prpria formao social do estado do Paran como um todo. Ser
pois, no sentido de discorrer sobre a importncia da historiografia dos conflitos como pioneira
de uma abordagem sobre a histria regional do norte e noroeste paranaense na qual so
estabelecidos novos parmetros para os estudos acadmicos relativos a esse espao que
elaboramos esse artigo e, apresentar os resultados obtidos com a pesquisa realizada no
municpio de Lobato, noroeste paranaense, demonstram a importncia dessa tipo de
abordagem para a escrita de uma outra, e mais completa, memria sobre a regio norte e
noroeste do Paran.
25
2 A MEMRIA PICA
So vrias as produes que se propem analisar e explicar a consolidao do
capitalismo na regio norte e noroeste do Paran e todas, sem exceo, leituras
imprescindveis tendo em vista a forma como o tema foi analisado pelo conjunto de cada
produo. Diz-se conjunto porque entre essas leituras obrigatrias encontram-se
principalmente trs tipos de abordagens e que nesse artigo foram denominadas de: memria
pica; memria determinista e historiografia dos conflitos.
No grupo da produo pica, ou seja, aquela que apresenta o processo que introduziu o
sistema capitalista na regio Norte paranaense como fruto do trabalho herico de um grupo
social restrito destacam-se desde obras completas que discorrem sobre a fundao de um
nico municpio1; colees em que constam resumos da trajetria de vrios municpios2 e
tambm, o livro que conta, por meio de uma narrativa pica, o desempenho da Companhia
Melhoramentos Norte do Paran (CMNP) no processo3. Sob ttulos apologticos e recheados
de narrativas heroicas essa produo escreveu uma memria histrica em que o processo em
questo se caracteriza pelo sentido ordeiro e pacfico que teria acompanhado a imensa
transformao scio-espacial da regio entre 1925 e 1970.
De forma geral a memria pica aborda a consolidao dos ideais da sociedade
capitalista no Norte paranaense remetendo um papel de destaque sobretudo a dois sujeitos
histricos em particular representados pela empresa Colonizadora Companhia Melhoramentos
Norte do Paran e um grupo caracterizado pela intrepidez de seus atos dentre eles,
empresrios-fazendeiros, pequenos e grandes proprietrios -, ambos conceituados pela
memria como os pioneiros4. De acordo com a CMNP5:
No h dvida de que essa fabulosa regio prosperou contando basicamente
com a organizao objetiva e dinmica da empresa privada que a desbravou,
1 Trabalhos que representam esse tipo de abordagem: MORATO, Ernesto Pianc; MENDES, Manoel Messias.
Os municpios: sua histria e sua gente. Astorga. Maring: CEDI Editora, 1980; e, SILVA, Jos Adalberto
Firmino. Mandaguari, sua histria, sua gente. Maring: J. A Editora, 1982. 2 Dois exemplos ilustram esse tipo de produo: FERREIRA, Jurandir Pires. Enciclopdia dos Municpios
Brasileiros. Rio de Janeiro: [S. n.] v. 31. 1959; e, FERREIRA, Joo Carlos Vicente. O Paran e seus
Municpios. Maring: Memria Brasileira, 1999. 3 COMPANHIA MELHORAMENTOS NORTE DO PARAN, Colonizao e desenvolvimento do Norte do
Paran. 2. ed., So Paulo: Ave Maria, 1977. 4 No presente trabalho no se questiona o papel pioneiro desempenhado pela CTNP/CMNP e os proprietrios de
terra que se estabeleceram na regio, questiona-se apenas, o carter excludente dessa designao que
desconsidera a importncia de outros grupos sociais como os trabalhadores autnomos da lavoura que jamais foram proprietrios de um terreno na zona urbana ou rural no Norte do Paran que tambm foram responsveis pela consolidao do processo.
5 COMPANHIA MELHORAMENTOS NORTE DO PARAN, Colonizao e desenvolvimento do Norte do
Paran. 2. ed., So Paulo: Ave Maria, 1977. p. 146.
26
e com a vontade de vencer dos que para ela afluram atrados pelas
perspectivas de liberdade de empreendimento que se lhes apresentavam.
Durante muitos anos, somente a determinao firme de vencer sustentou o
trabalho dos pioneiros.
Segundo a empresa ainda, o trabalho por ela desempenhado estaria imbudo de um
sentido utilitrio da rea adquirida e que se justificava uma vez que a empresa desbravaria o
serto existente transformando-o numa sociedade predominantemente capitalista e til
coletividade posto que se fundamentava na autntica democracia e que atravs da propriedade
privada vinha realizando na regio uma verdadeira, justa e pacfica reforma agrria6.
Ao supervalorizar o papel dos agentes acima citados essa memria criou o mito que
devido ao trabalho desempenhado pela CMNP e pelos pioneiros isso os torna os nicos
agentes responsveis pelo fenmeno de transformao social e ambiental acontecido na
regio. A esse mito ainda foi incorporado o sentido de que essas transformaes eram parte do
sacrifcio necessrio para elevar as potencialidades funcionais da rea colonizada de acordo
com uma civilizao mais desenvolvida, ou seja, dos ideais progressistas do sistema
capitalista baseado na propriedade privada e no liberalismo7.
Um exemplo de trabalho que divulgou esse carter pico do processo data de 1959 e,
dentre as vrias citaes que podiam ser retiradas desse texto escrito por Jurandir Pires
Ferreira8, e se refere ao municpio de Lobato no noroeste paranaense. A primeira citao
valoriza o papel da CMNP enquanto a segunda enfatiza o desempenho dos pioneiros de
Lobato, os quais inclusive tem seus nomes gravados no somente nesse mas em outros
trabalhos referentes ao municpio.
Embora o municpio de Astorga de que se originou o de Lobato tenha sido
obra daquela companhia imobiliria [CMNP], as poucas referncias
histricas encontradas nada informam que este tambm tenha sido planejado
e fundado pela empresa semeadora de cidades e condutora do progresso e do
engrandecimento do Norte do Paran.
Fruto da exuberncia do solo e do esforo dos primeiros desbravadores do
serto ignoto, o municpio de Lobato constitui afirmao dinmica e
espontnea da eficincia e capacidade realizadora dos modernos
bandeirantes, que fizeram daquela frtil regio a Cana brasileira, ou a nova
Terra da Promisso.
Com frases como essas a produo pica sustentou o mito criado pela CMNP e se
incumbiu de dissemin-lo no pas como mostra a propaganda feita pela companhia sobre o
6 Idem, p. 150. 7 Idem, p. 146. 8 FERREIRA, Jurandir Pires. Enciclopdia dos Municpios Brasileiros. Rio de Janeiro: [S. n.] v. 31. 1959. p.
304.
27
municpio de Londrina, o primeiro fundado no Norte do Paran (Figura 1). Ao criar esse mito
a memria excluiu a participao de outros protagonistas que promoveram a transformao do
Norte do Paran como posseiros, trabalhadores autnomos, mulheres, crianas e populaes
indgenas. Excluiu tambm, parte do significado social e histrico dos momentos que
Figura 1: Propaganda da CTNP, 1958.
Disponvel em: http://planetajc.blog.ter
envolveram o processo por serem conflituosos e em estarem em desacordo com os ideais de
progresso e desenvolvimento que ela sustentava para a regio.
Esse tipo de abordagem continuou a se repetir ainda por muitos anos no meio
acadmico. Joo Carlos Vicente Ferreira9, em trabalho datado de 1996, reproduz aspectos da
memria pica ao fazer o histrico de vrios municpios paranaenses. Atravs de tpicos
como os histricos de alguns municpios fundados pela CMNP o autor volta a enfatizar o
papel criador da empresa ao destacar que:
Desde o ano de 1925, quando um grupo de colonizadores ingleses, tendo
frente Lord Lovat, fundou a Companhia de Terras, foram semeadas dezenas
de cidades, e plantado o progresso e riqueza, em grande rea do territrio
Paranaense incluindo Lobato.
Aquele que se detiver apenas nas informaes contidas nessas fontes construir um
conhecimento parcial e arbitrrio sobre o processo por travar contato apenas com uma das
muitas memrias existentes exatamente aquela que mitifica o processo enfatizando o papel
desempenhado pela CMNP e por pessoas estigmatizadas como pioneiros, organismo e
pessoas imbudas de uma destinao histrica que se propunham transformar as grandes
reas de terra desabitadas, mas com grandes potencialidades no Norte do Paran em uma
sociedade baseada nos ideais do capitalismo democrtico, posto que empreenderiam uma
misso de elevado interesse pblico ao promoverem uma colonizao com base na
propriedade privada e no trabalho10. Pois, para a memria pica o que houve na regio Norte
do Paran entre 1925 at meados da dcada de 1960 foi um processo de colonizao em que a
transformao ambiental e a construo social por estarem baseadas nos moldes capitalistas,
seriam a melhor forma de desenvolver a regio, fato que por si s justificaria a forma
acelerada e intensa da transformao empreendida.
Os traos predominantemente positivos sobre os quais a memria pica construiu sua
verso histrica do processo foi questionado pelos historiadores das dcadas de 1990.
Preocupados em apresentar anlises sobre processos histricos cujos protagonistas no fossem
somente a CMNP e os setores sociais detentores do poder poltico e econmico de uma
regio, mas, sim, grupos sociais em suas mais diversas manifestaes no conjunto da
sociedade em que ocorreram tais processos enfatizando os conflitos que aconteciam entre
esses diversos grupos a historiografia dos conflitos ir problematizar a memria pica
sobretudo a partir dos interesses econmicos que subjazem empreita promovida pela
9 FERREIRA, Joo Carlos Vicente. O Paran e seus Municpios. Maring: Memria Brasileira, 1996. p. 402. 10 COMPANHIA MELHORAMENTOS NORTE DO PARAN, Colonizao e desenvolvimento do Norte do
Paran. 2. ed., So Paulo: Ave Maria, 1977. p. 08.
24
CMNP. Antes, porm, de apresentar os parmetros dessa ltima historiografia e sua crtica
sobre a consolidao do capitalismo na regio norte e noroeste do Paran, vejamos como uma
outra produo historiogrfica apresentou suas concluses sobre o fenmeno em questo.
3 A MEMRIA DETEMINISTA
O segundo conjunto de trabalhos voltados para a temtica da explicao do processo
ocorrido no Norte do Paran refere-se a abordagens de historiadores da dcada de 1980 nos
quais fica evidente a importncia do setor econmico representado pela produo cafeeira,
para a explicao do processo, da ser conceituada como historiografia determinista. Os
trabalhos de duas historiadoras em particular, Nadir Aparecida Cancian e France Luz so
paradigmticos no que se refere a essa abordagem11.
A primeira delas, Nadir Aparecida Cancian em tese defendida na dcada de 1970 ao
fazer um balano da cafeicultura no Norte do Paran entre 1900 e 1970, declara a iminente
importncia dessa produo agrcola para a transformao da regio no somente durante os
primeiros anos da consolidao da sociedade capitalista mas tambm para as mudanas
ocorridas em anos posteriores quando a produo cafeeira foi substituda por outras culturas.
Na cronologia por ela elaborada para demonstrar a importncia do caf como o elemento
econmico que conduziu a formao da sociedade norte paranaense a autora faz um
levantamento sobre os rumos da produo cafeeira em nvel nacional e internacional e como
esses rumos foram determinantes para a introduo dessa cultura no Paran.
Segundo ela, embora a produo cafeeira tenha sido freada em seu crescimento em
todo o Brasil no perodo que vai de 1929, ano da depresso, e 1945, ano que marca o final da
Segunda Grande Guerra, no Paran ao contrrio, ela foi estimulada12. Tal estmulo esteve
ligado aos interesses de grandes proprietrios, da CTNP (Companhia de Terras Norte do
Paran) e posteriormente da CMNP e tambm do governo em desenvolver a regio Norte do
estado. Esse fator aliado superproduo cafeeira e o esgotamento das reas produtoras de
caf nos estados de So Paulo, Minas Gerais, Esprito Santo, Rio de Janeiro, Bahia,
Pernambuco e Gois teria acelerado a busca de terras novas e ativou a especulao na
11 CANCIAN, Nadir A. Cafeicultura Paranaense 1900-1970. Curitiba: Grajipar/SECE-PR, 1981. LUZ,
France. O fenmeno urbano numa zona pioneira: Maring. 1980. 435 f. Dissertao (Mestrado em Histria
Social) - Departamento de Historia da Universidade de So Paulo, So Paulo, 1980. 12 CANCIAN, Nadir Aparecida Cafeicultura Paranaense 1900-1970. Curitiba: Grajipar/SECE-PR, 1981. p.
29.
25
compra e venda de terras. Para o Paran, significou a expanso do plantio com aumento de
produo nos anos seguintes e abertura de frentes pioneiras13. Dessa forma, estados como
So Paulo, ao limitarem a produo cafeeira teriam estimulado a vinda de lavradores,
paulistas principalmente, para o estado do Paran14.
Emmbora tenha havido esse estmulo produo a partir de 1930, nos anos 1960
iniciou-se uma nova etapa no setor econmico do estado. Como o caf alcanou nveis
elevados de produo, o governo federal iniciou um processo de incinerao da produo e
derrubada dos prprios cafezais. Sobre esse processo Cancian15 diz:
Buscava-se aumentar a produo de alimentos, que tendia a diminuir face s
variadas formas de monocultura que o caf vinha apresentando assegurando
ao mesmo tempo o equilbrio da balana de pagamentos mantendo o caf
brasileiro em posio de destaque na rea internacional atravs da poltica de
eliminao fsica de parte do arque cafeeiro, para forar elevao dos preos
externos.
Como a regio Norte do Paran tinha grande parte de sua estrutura econmica baseada
na produo cafeeira, mas no exclusivamente nessa, isso se tornou um problema para a renda
interna do estado. No perodo em que o caf estava em expanso os demais setores da
economia no conseguiram acompanhar o ritmo acelerado dessa produo e o setor agrcola
teria sido o que crescera mais lentamente em relao cafeicultura e, essa falta de infra-
estrutura impossibilitava que esse setor concorresse ou substitusse o caf16. Com isso, o
Paran a partir dos anos sessenta sofre uma nova transformao, tendo mais uma vez o caf,
produto propulsor da regio, como base da mudana uma vez que a superproduo dessa
cultura levou a uma reduo nos preos do produto e consequentemente, os grandes e os
pequenos produtores se voltaram para outras atividades agrcolas. O declnio dos preos do
caf no mercado internacional ento teria levado o estado a diversificar a produo atravs
da ampliao de pastagens artificiais e fomento das lavouras temporrias, de modo especial
das oleaginosas17.
Com base nesses dados, conclui-se que para Cancian as transformaes ocorridas na
regio Norte do Paran entre 1900 e 1970 estavam inseridas num contexto de poltica
nacional integrada aos interesses da economia internacional e se manifestaram no estado
atravs da produo cafeeira. Fator que leva concluso de que na abordagem feita pela
13.Idem, p. 28. 14 Idem, p. 33. 15 Idem, p. 131. 16 CANCIAN, Nadir Aparecida Cafeicultura Paranaense 1900-1970. Curitiba: Grajipar/SECE-PR, 1981. p.
131. 17 Idem, p. 29.
26
historiadora sobre o processo de implementao do capitalismo na regio no so
contemplados outros possveis participantes do processo sendo que apenas a produo
cafeeira leia-se mercado internacional - se apresenta como o sujeito histrico e
determinante por excelncia.
France Luz, em obra j citada e tambm escrita nos anos 1970, segue essa linha
determinista apresentada por Cancian ao concluir que para compreender o processo de
desbravamento e povoao do Norte do Paran, faz-se necessrio situ-lo num contexto mais
amplo da economia nacional e da expanso cafeeira paulista18. Em seu trabalho e com
relao ao papel desempenhado pela CTNP/CMNP France Luz19 acrescenta que:
A colonizao ali levada a efeito por aquela Companhia desenvolveu-se de
modo empresarial, dirigida para a ocupao e valorizao rpida das terras e
para a obteno de lucros. Sua ateno teve como resultado a diviso de
terras em pequenas e mdias propriedades, que eram vendidas a particulares
com a finalidade de nelas se cultivar o caf e produzir gneros de
subsistncia. Desta maneira, a empresa assegurava a rentabilidade do capital
investido na aquisio da gleba e nas obras de infra-estrutura, transportando
para os numerosos pequenos proprietrios que compravam seus lotes todos
os riscos decorrentes da explorao da terra.
Ainda que verificada a existncia de outros participantes no momento de implantao
da sociedade capitalista na regio citados pela autora como os numerosos pequenos
proprietrios sobre os quais recaiam os riscos da empreita iniciada pela CMNP, a autora no
trabalha essa questo do ponto de vista de um conflito e ainda menos do protagonismo
histrico das chamadas minorias. O desempenho da economia no processo supera a
importncia daquela informao e o processo de implantao capitalista continua a ser visto
como o propulsor das transformaes ocorridas na regio.
Como acontece com a memria pica, a produo determinista faz uma abordagem
parcial do processo por explic-lo somente como resultado do desenvolvimento econmico
ocorrido na regio centrado particularmente na cafeicultura. Essa parcialidade resultado de
uma anlise histrica que no contempla as transformaes scio espaciais como produto da
interligao de fatores humanos, econmicos, ambientais e polticos na constituio dos
processos histricos e na qual, os seres humanos, sujeitos por excelncia dos processos
histricos, no encontram espao representativo.
18 LUZ, France. O fenmeno urbano numa zona pioneira: Maring. 1980. 435 f. Dissertao (Mestrado em
Histria Social) - Departamento de Historia da Faculdade de Filosofia, Letras Cincia Humanas da
Universidade Erro! Vnculo no vlido.de So Paulo, So Paulo, 1980. p. 48. 19 Idem, p. 414.
27
Nesse contexto de memrias sobre a regio norte e noroeste do Paran ento, surge em
meados dos anos 1990 trabalhos que iro questionar essas duas vises. Baseadas sobretudo
nas propostas da Histria dos Annales e a considerao sobre a importncia dos vencidos
para uma melhor compreenso dos processos histricos, essa historiografia ir questionar as
memrias pica e a determinista e ampliar as informaes sobre a memria desse processo.
4 A HISTORIOGRAFIA DOS CONFLITOS
As duas produes analisadas brevemente nos pargrafos anteriores so de valor
inestimvel para conhecer muitos detalhes sobre o processo da consolidao do capitalismo
na regio como j foi dito embora no explorem as vrias potencialidades de conhecimento
sobre a histria do Paran que o processo ocorrido Norte da regio oferece. No que seja
possvel conhecer um momento histrico em sua plenitude, mas, atravs de uma forma
diferente de abordar os processos histricos, foi possvel explorar outros elementos relativos
ao processo em questo. Os responsveis por essa abordagem diferenciada foram
historiadores da dcada de 1990 que ao questionarem o carter excludente das memrias
citadas atravs de uma releitura das mesmas e de outros documentos relativos questo,
apontaram suas deficincias e demonstraram, atravs de novos objetos, teorias, mtodos e
fontes, particularidades ainda no exploradas do processo20.
As referidas particularidades histricas apresentadas pela historiografia dos conflitos
esto intrinsecamente ligadas s questes relativas s contradies existentes nos processos
histricos, fato que leva essa produo a enfatizar a participao de outros grupos sociais no
citados pelas memrias anteriores na transformao acontecida no Norte Paranaense como,
por exemplo, as sociedades indgenas, os posseiros e os caboclos. Alm disso essa
20 Alguns dos autores arrolados sob o termo historiografia dos conflitos: MOTA, Lcio Tadeu. As guerras dos
ndios kaingang: a histria pica dos ndios kaingang no Paran (1769-1924). Maring: EDUEM, 1994;
TOMAZI, Nelson D. Certeza de lucro e direito de propriedade: o mito da Companhia de Terras Norte do
Paran. 254 f. Dissertao (Mestrado), Departamento de Histria do Instituto de Letras, Histria e Psicologia
de Assis, UNESP Campus de Assis. 1989. TOMAZI, Nelson D. Norte do Paran histrias e fantasmagorias. 1997. 338 f. Tese (Doutorado) - Departamento de Histria, Setor de Cincias Humanas,
Letras e Artes, Universidade Federal do Paran, Curitiba, 1997; ROLLO GONALVES, Jos Henrique.
Histria regional e ideologias: em torno de algumas coreografias polticas do norte paranaense 1930/1980. 1995. 255 f. Dissertao (Mestrado), Departamento de Histria do Centro de Cincias Humanas, Letras e
Artes Universidade Federal do Paran, Curitiba, 1995. PRIORI, ngelo Aparecido. A revolta camponesa de Porecatu - a luta pela defesa da terra camponesa e a atuao do Partido Comunista Brasileiro (PCB) no
campo (1942-1952). Tese, (Doutorado em Histria) - Faculdade de Cincias e Letras da Universidade Paulista
UNESP. Assis, 2000.
28
historiografia reflete e apresenta os resultados de suas anlises enfatizando os ideais presente
no discurso da CTNP/CMNP, empresrios e estrutura governamental, ao aclamarem o sistema
capitalista como a melhor, seno a nica, forma de desenvolver a regio.
Um dos primeiros representantes dessa historiografia a introduzir os conflitos sociais e
a apresentar de forma crtica os interesses submersos sob a introduo dos ideais capitalistas
na regio, foi o historiador Lcio Tadeu Mota. Em sua obra A guerra dos ndios Kaingang,
datada de 1994, o autor denuncia a excluso social e histrica promovida pela memria pica
e tambm por intelectuais das mais diversas reas do conhecimento ao criarem a ideia de um
vazio demogrfico na regio ao apagaram da histria do processo a existncia dos grupos
indgenas das reas sobre as quais o estado do Paran foi delimitado.
Para discorrer sobre a existncia desses grupos e questionar a questo do vazio
demogrfico, Mota se props discutir a ideologia da construo de um territrio vazio,
desabitado, no terceiro planalto Paranaense21 sustentada pelo trabalho de gegrafos,
historiadores, a prpria CMNP e por livros didticos a partir da dcada de 1930.
A construo da idia do vazio demogrfico, ou de outras designaes criadas para
expressar esse mesmo ideal, como a palavra serto e mata virgem, so utilizadas nos trabalhos
citados por Mota e tambm pela memria pica para se referirem s reas de interesse
capitalista remetendo s mesmas um sentido de que tais espaos, devido ao no uso utilitrio
de seus recursos, tornavam-se prejudiciais ao desenvolvimento de uma sociedade capitalista
no Brasil. Para desmistificar a ideia de vazio demogrfico Mota analisou e interpretou o
discurso dos intelectuais que a criaram chamando a ateno para a forma dualista com que os
mesmos compreendiam a natureza e concluiu que tal discurso estava imbudo de formas
capitalistas de significar a natureza.
Segundo ele, os interesses capitalistas teriam transformado o terceiro planalto
Paranaense, em especial o Norte e o Oeste, a partir do conceito de natureza enquanto
mercadoria. Como para o capitalismo a natureza, animais, rvores, terra, tudo tem seu preo,
ao se expandir entre os anos de 1930 a 1960, a sociedade nacional, para construir seu espao
mercantilizado, destruiu o espao das comunidades indgenas, as matas e os animais
existentes das terras ento transformadas em mercadorias22. Esse conceito mercantilizado
utilizado por Mota para significar o tratamento dado pela sociedade capitalista natureza foi
trabalhado por Neil Smith e parte do pressuposto de que a idia que o capitalismo tem sobre a
21 MOTA, Lcio Tadeu. As guerras dos ndios kaingang: a histria pica dos ndios kaingang no Paran (1769-
1924). Maring: EDUEM, 1994. p. 9. 22 MOTA, Lcio Tadeu. As guerras dos ndios kaingang: a histria pica dos ndios kaingang no Paran (1769-
1924). Maring: EDUEM, 1994. p. 14.
29
natureza dualista, vista em princpio como hostil, um perigo a ser vencido com sacrifcio e
estoicismo, depois de conquistada pelas tcnicas criadas pelos seres humanos a natureza se
transforma em ddiva, pronta para fornecer a subsistncia23.
Acontece ento uma transformao no conceito de natureza quando ela deixa de ser
vista como hostil e passa a ser compreendida um espao dominado pelo homem e a partir de
ento como uma mercadoria. Fato que transforma o conceito de natureza num produto social
cujos protagonistas so homens que ao colocarem em prtica os ideais do capitalismo como a
ideia de progresso humano e material atravs da transformao da natureza, transformam os
espaos de acordo com seus interesses24.
Como se v atravs da anlise feita por Mota, a memria pica imbuda dos ideais
capitalistas construiu seus mitos sobre um discurso que deveria passar a idia da existncia de
grandes reas de terra desabitadas, mas com grandes potencialidades25 no Norte do Paran
apagando a existncia de outros ocupantes dessa regio. Com essa abordagem, Mota no s
questionou o mito do vazio demogrfico mas tambm e sobretudo, inseriu na histria da
ocupao os conflitos vividos pelos povos indgenas e os vrios grupos sociais que invadiram
seus territrios sobretudo a partir do sculo XVI, sendo a sociedade capitalista apenas uma
das representantes desses grupos, talvez porm, a mais significativa, dado o nvel elevado de
transformaes promovidos pela sociedade capitalista na regio.
Outro pesquisador que procura explicitar os interesses submersos aos ideais
capitalistas de transformao da regio Norte do Paran introduzindo os conflitos sociais
resultantes dessa transformao o socilogo Nelson Dcio Tomazi. No trabalho intitulado
Certeza de lucro e direito de propriedade26, datado de 1989, Tomazi analisa e critica o mito
criado pela CMNP com relao ao papel de destaque que a prpria empresa se auto-atribui no
processo de introduo de elementos capitalistas na regio Norte do Paran e, num segundo
trabalho, datado de 1997 e intitulado Norte do Paran: histrias e fantasmagorias27, o
23 Detalhes sobre essa viso mercantilista da natureza sero abordados em maior profundidade durante a parte
conclusiva do trabalho. SMITH, Neil. Desenvolvimento desigual: natureza, capital e produo do espao. Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988. p. 39-45, passim. 24 SMITH, Neil. Desenvolvimento desigual: natureza, capital e produo do espao. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1988. p. 39-45, passim. 25 COMPANHIA MELHORAMENTOS NORTE DO PARAN, Colonizao e desenvolvimento do Norte do
Paran. 2. ed. So Paulo: Ave Maria, 1977. p. 08. 26 TOMAZI, Nelson D. Certeza de lucro e direito de propriedade: o mito da Companhia de Terras Norte do
Paran. 254 f. Dissertao (Mestrado), Departamento de Histria do Instituto de Letras, Histria e Psicologia
de Assis, UNESP Campus de Assis. 1989. 27 TOMAZI, Nelson D. Norte do Paran histrias e fantasmagorias. 1997. 338 f. Tese (Doutorado) -
Departamento de Histria, Setor de Cincias Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paran,
Curitiba, 1997.
30
autor traz uma discusso sobre a violncia e a excluso sofridas por segmentos sociais que
viviam no Norte do Paran antes da ocupao capitalista.
Em Certeza de lucro e direito de propriedade, o autor analisa o discurso criado pela
companhia atravs da exposio minuciosa dos elementos que compem o mito. Segundo ele,
o mito criado pela CMNP foi composto por quatro elementos: o primeiro relativo a obra
pioneira da CMNP enquanto a base do segundo elemento relativa a misso da empresa em
transformar o terceiro planalto paranaense em um espao til coletividade sob os ideais do
capitalismo promissor. Quanto ao terceiro elemento, ele se constitui no papel de destaque que
a empresa remete aos pioneiros e o quarto elemento do mito composto pela ideal de reforma
agrria que a empresa propunha para a regio28.
De forma sistemtica o autor conclui que o mito parte do interesse em transformar a
regio Norte do Paran de acordo com os moldes de povoamento e produo do sistema
capitalista e que seus intrpidos pioneiros nada mais queriam a no ser obter lucros com a
venda de terras na regio. Ao revelar a ideia implcita em cada um dos elementos que
compunham o mito, Tomazi demonstra que as transformaes empreendidas pela empresa
no visavam a coletividade e sim enriquecimento e poder para os fazendeiros, empresrios
ingleses, comerciantes madeireiros e o governo do estado.
No mito criado pela Companhia esta aparecia como o organismo empreendedor de
uma obra pioneira na regio enfatizando a ideia de que a regio era desabitada e estava
espera de transformao o que a coloca como aquela que teria se responsabilizado por
promover o desenvolvimento do Norte do Paran de acordo com interesses democrticos e
coletivos29. Ao fazer a interpretao desse primeiro elemento Tomazi30 conclui que com essa
auto-atribuio, o mito,
Esconde, apaga o que ocorreu com as populaes que aos milhares
habitaram esta regio durante centenas de anos e que viviam do que a terra
lhes concedia, seja de frutos, animais ou de pequenas plantaes. O habitante
nativo no considerado como habitante, bem como a selva no produtiva,
pois povoamento e produo s deve ter significado se for visto na tica do
uso de homens e terra para a valorizao do capital.
28 TOMAZI, Nelson D. Certeza de lucro e direito de propriedade: o mito da Companhia de Terras Norte do
Paran. 254 f. Dissertao (Mestrado), Departamento de Histria do Instituto de Letras, Histria e Psicologia
de Assis, UNESP Campus de Assis. 1989, passim. 29 COMPANHIA MELHORAMENTOS NORTE DO PARAN, Colonizao e desenvolvimento do Norte do
Paran. 2. ed., So Paulo: Ave Maria, 1977. p. 146. 30 TOMAZI, Nelson D. Certeza de lucro e direito de propriedade: o mito da Companhia de Terras Norte do
Paran. 254 f. Dissertao (Mestrado), Departamento de Histria do Instituto de Letras, Histria e Psicologia
de Assis, UNESP Campus de Assis. 1989. p. 159.
31
Esse primeiro elemento introduz e apresenta a questo presente no segundo elemento
que relativa ao trabalho da empresa na regio quando o trabalho desempenhado pela
empresa passa a ser visto como uma valorosa misso que coube a CMNP empreender e,
assim, as aes da Companhia passaram para a memria como um marco na histria da
regio, ou seja, a histria do Norte do Paran passa a ser vista a partir do antes e do depois da
chegada CMNP ao estado.
Submersos a esse discurso se encontram outros ideais segundo Tomazi 31,
Esta periodizao exprime, pois, a seguinte viso histrica: antes da presena
da Companhia pouca coisa havia de significativo na regio; quando ela
aparece no cenrio, traz consigo o progresso, a civilizao e a ordem
(segurana) e a partir ela que se efetivam todas as outras. Ela , portanto, o
marco que define todas as aes anteriores e posteriores.
O autor conclui ainda que com esse discurso a Companhia procurou ocultar os
verdadeiros objetivos de sua ao que era a obteno de lucro o mais rapidamente
possvel32 e, diante dessa perspectiva, um novo elemento se introduz. Como a ao da
CTNP/CMNP foi desempenhada pelos intrpidos pioneiros so eles ento que passam a ser os
agentes que vislumbravam lucros com a transformao da regio, os mesmos apresentados
pela companhia como os heris da saga por ela empreendida. Para desmistificar esse sentido
heroico remetido a alguns agentes da companhia e a ela prpria, Tomazi33 introduziu novos
agentes no processo, os pioneiros, e retirou da companhia o lugar de destaque na empreita:
A prpria compra das terras no Norte do Paran bem como a concesso para
a construo da ferrovia, nada mais foi do que a conjuno de interesses de
fazendeiros j instalados na regio, que pretendiam que os ingleses viessem
a investir nela, interesses do governo estadual que procurava uma forma de
povoar esta regio e desta forma aumentar a sua arrecadao e do interesse
do prprio Lord Lovat, como representante de capitalistas ingleses, que
percebeu que aqui tambm poderia ser feito o que os ingleses j faziam em
vrias partes do mundo, conseguir grandes lucros com um projeto
imobilirio e com o monoplio dos transportes de homens e de mercadorias.
Outros tambm considerados pela empresa com pioneiros so os advogados,
funcionrios da empresa no exterior que se deslocaram para o Brasil para trabalharem na
CMNP e tambm polticos brasileiros, todos beneficiados com o plano desenvolvido pela
empresa no Paran. Alm desses, o autor cita ainda compradores de grandes e de pequenas
31 TOMAZI, Nelson D. Certeza de lucro e direito de propriedade: o mito da Companhia de Terras Norte do
Paran. 254 f. Dissertao (Mestrado), Departamento de Histria do Instituto de Letras, Histria e Psicologia
de Assis, UNESP Campus de Assis. 1989. p. 160. 32 Idem, p. 164. 33 Idem, p. 181.
32
propriedades, comerciantes, proprietrios de serrarias, como tambm trabalhadores sem terra,
que trabalharam para os outros, s possuindo sua fora de trabalho34.
Contudo, entre esses ltimos citados se encontra uma das contradies que a empresa
tentou ocultar em seu discurso mtico. Aquela que apresenta o grupo dos intrpidos pioneiros
como um segmento social homogneo e predominantemente vencedor. Sobre essa contradio
Tomazi35 assim se expressa:
A homogeneidade apresentada atravs da expresso pioneiros procura esconder a real condio de classe da populao que para c se deslocou e
oculta as relaes de classes que se estabeleceram entre os diversos
segmentos desta realidade, procurando sempre passar a idia de que todos
que para aqui vieram tinham as mesmas chances para progredir e enriquecer
e que no havia nenhuma contradio entre os pioneiros, pois todos tinham os mesmos interesses e almejavam as mesmas coisas.
Ele interpreta essa contradio da seguinte forma. Atravs dessa suposta
homogeneidade a condio de pioneiro tenta esconder a explorao acontecida atravs do
trabalho e ainda, disseminar a noo de que todos podem enriquecer desde que se esforcem,
que faam sacrifcios e trabalhem muito, pois todos os que aqui enriqueceram e venceram
porque assim o fizeram36.
Um quarto elemento viria formar, junto com os trs j citados, a memria sobre a
ocupao onde no cabem os conflitos e, muito menos, os fracassos. Esse quarto elemento
representado pelo exemplo pioneiro de reforma agrria empreendido pela CMNP na regio.
Sobre esse elemento Tomazi37 diz que o trabalho que a colonizadora realizou no Paran no
foi uma reforma agrria, mas sim, colonizao e, que esses dois termos se diferenciam na
medida em que reforma agrria pressupe a redistribuio dos direitos sobre a propriedade da
terra e que esta deve ser promovida pelo governo enquanto que o processo de colonizao,
a ocupao de terra devolutas, de terras livres, onde o governo e empresas privadas, associadas ou no, criam projetos de povoamento de
regies ditas vazias fundando ncleos urbanos e deslocando populaes, visando, no caso do estado, a acalmar determinadas inquietaes no meio
rural e, lucro, atravs da especulao imobiliria, no caso da iniciativa
privada. A colonizao pode ser um complemento mas nunca um substituto
da reforma agrria.
34 TOMAZI, Nelson D. Certeza de lucro e direito de propriedade: o mito da Companhia de Terras Norte do
Paran. 254 f. Dissertao (Mestrado), Departamento de Histria do Instituto de Letras, Histria e Psicologia
de Assis, UNESP Campus de Assis. 1989. p. 183. 35 Idem, p. 183. 36.Idem, p. 184. 37 Idem, p. 188.
33
Ao divulgar esse mito da reforma agrria, a Companhia estaria agindo de acordo com
os interesses do governo do Estado Novo e do governo estadual, que na verdade, estavam
mais interessados em afastar os perigos de subverso dos que no possuam terras no Brasil
do que realmente promover a diviso de terras entre os segmentos sociais que sobreviviam do
meio agrrio38, entre eles, trabalhadores da lavoura que se empregavam nas grandes fazendas
para obterem o prprio sustento e de familiares. Como empresa privada e colonizadora a
Companhia no tinha reais intenes de promover a reforma agrria no Norte paranaense, mas
sim, conseguir vultuosos lucros atravs da especulao imobiliria e da explorao do
trabalho de funcionrios empregados para realizarem o trabalho de derrubada da mata,
construo de estradas, entre outras atividades que exigiam fora fsica.
Em suma, so essas as crticas que Tomazi faz ao mito criado pela Companhia quando
o desconstri, atravs da anlise detalhada sobre o discurso implcito nos quatro elementos
que o compe e conclui que todo mito uma criao e que a empresa em questo tambm
teria criado o seu. Mas, que cabe ao historiador o compromisso enquanto aquele que tem, por
fora de seu ofcio, discorrer sobre o passado de forma crtica e o mais perto possvel do que
foi aquela realidade sendo, para tanto, necessrio no apenas guardar e conservar estes
fragmentos esquecidos do passado mas, principalmente, libert-los. necessrio que a
histria daqueles que foram vencidos no se passe silenciosamente39 conclui ele.
Foi pois considerando os conflitos sociais acontecidos desde o sculo XVI no Paran e
tambm, fazendo um balano crtico dos ideais que permeavam essas transformaes, que a
historiografia dos conflitos explicou as diversas fases e mudanas ocorridas na regio. Essa
perspectiva ampla de abordagem histrica resultou na inquestionvel participao das
sociedades indgenas sobretudo durante os anos do Brasil Colnia, do Imprio e tambm da
Repblica e, juntamente com posseiros e caboclos, os indgenas se tornaram grupos
antagnicos aos interesses de qualquer uma das formas de governo citadas, da as
contradies no interior dos processos histricos apresentadas e analisadas pela historiografia
dos conflitos.
38 TOMAZI, Nelson D. Certeza de lucro e direito de propriedade: o mito da Companhia de Terras Norte do
Paran. 254 f. Dissertao (Mestrado), Departamento de Histria do Instituto de Letras, Histria e Psicologia
de Assis, UNESP Campus de Assis. 1989. p. 190. 39 TOMAZI, Nelson D. Norte do Paran histrias e fantasmagorias. 1997. 338 f. Tese (Doutorado) -
Departamento de Histria, Setor de Cincias Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paran,
Curitiba, 1997. p. 26.
34
5 A PESQUISA REGIONAL E A HISTRIA ORAL
A pesquisa baseada na proposta da historiografia dos conflitos pretende discorrer
sobre o processo que consolidou traos profundos dos ideais capitalistas na regio em
conjunto com elementos culturais trazidos pelos migrantes e imigrantes de seus locais de
origem, partindo de uma abordagem diferenciada das citadas anteriormente. A escolha por
essa abordagem est ligada ao fato de que o mesmo passa a ser explicado como resultante da
organizao social produzida pelos indivduos, pessoas consideradas comuns, em ncleos
humanos fundados durante aquele processo. J o uso de documentos orais como fontes
histricas podem ser relevantes para estudos dessa natureza uma vez que sua riqueza reside na
subjetividade inerente a esse tipo de fonte.
No caso da pesquisa realizada no municpio de Lobato entre os anos 1999 e 2001 e
que resultaram num livro com a histria do municpio, a abordagem acima descrita revelou
que os sujeitos histricos que levaram a cabo a construo daquele pequeno municpio foram
no somente a CMNP e o governo, mas tambm aqueles que para l se dirigiram em busca de
construir sua vida num novo espao e sob novas formas de produo econmica. J no novo
espao porm, os moradores da zona rural de Lobato, a primeira a se desenvolver,
encontraram uma sociedade que precisava ser construda e cujo empreendimento dependia de
seus esforos pessoais mais do que das grandes empresas e governos que demarcaram o
municpio. As experincias vividas por eles nesse processo construtor foram ento narradas
no livro chamado As guas de Lobato no qual buscamos apresentar particularidades nem
sempre reveladas pelas memrias construdas sobre a ocupao do norte e noroeste
paranaense e apontamos a importncia de anlises que partem da visualizao da organizao
social, atravs das relaes sociais e do contato com o meio, como o que de fato une os seres
humanos nos espaos escolhidos para a reproduo da vida. Da a importncia das prticas
cotidianas descritas pelos depoentes de Lobato serem vistas como as estruturas, por vezes
maleveis, que por serem estrategicamente praticadas pelos interessados na construo de
uma sociedade se tornaram a fora motriz processo de consolidao capitalista na regio.
Assim, as individualidades das experincias humanas e a descrio minuciosa das evidncias
coletadas nas diversas fontes utilizadas na pesquisa em Lobato tiveram por objetivo
apresentar uma verso para o processo ocorrido a partir dessas prprias experincias, e com
isso, a pesquisa se constituiu num trabalho que privilegia o aspecto social dos processos
histricos, abordagem reveladora dos conflitos vividos no interior desses prprios processos,
muitas vezes no analisados por outras produes, como por exemplo, aquelas aqui citadas.
35
5.1 Caractersticas que permitem analisar a sociedade das guas historicamente
Como Lobato um municpio que foi projetado para existir, ou seja, que teve sua
fundao dirigida por uma empresa colonizadora e pelo Governo do estado, as transformaes
ambientais e sociais que a sociedade das guas apresentou estavam intrinsecamente ligadas
forma, ou aos motivos que levaram sua constituio. As guas, assim como outros
municpios da regio, foram construdas com o objetivo de atender a uma produo, a
cafeeira, cujo alcance era internacional. At mesmo num segundo momento da agricultura
lobatense, quando os cafezais so derrubados e h a introduo das oleaginosas, como a
mamona por exemplo, ainda assim esse produto no visava a subsistncia alimentar dos
moradores, fato que estaria ligado a essa produo de uma forma secundria quando a venda
do produto revertesse, ou no, em benefcios para quem o produziu.
Os moradores das guas ou so proprietrios seja de pequenas ou grandes
propriedades, ou so pessoas que l se estabeleceram para trabalhar em diversas atividades
autnomas que foram sendo necessrias ao longo dos anos em que a sociedade das guas
conheceu seu estabelecimento e evoluo. Durante essa fase, o mundo rural lobatense
conheceu vida social particular originria da imbricao entre a estrutura geogrfica recriada
pelos agrimensores da CMNP, a produo agrcola para um mercado internacional e a
diversidade cultural dos migrantes e imigrantes que para l se dirigiram.
Planejada para existir em sua forma espacial, as guas no foram planejadas em sua
organizao social. Para que esse elemento se efetivasse, os homens e mulheres que l se
estabeleceram contaram com conhecimentos adquiridos dos locais de onde vieram antes de se
estabelecerem em Lobato. Aqueles que construram a sociedade das guas no eram
originrios daquele espao, no tinham laos com a terra ou descendiam de familiares
passados. Todos esses vnculos passaram a se formar a partir do contato com a regio e, nesse
construir de laos, a sociedade das guas foi composta por formas organizativas do espao e
das sociabilidades inerentes a diversas nacionalidades e regionalidades. O que se tem ento
no habitat rural estabelecido em Lobato uma sociedade caracterizada pela diversidade de
costumes, valores e estruturas coletivas que foram estabelecidas pelos moradores ao
organizarem aqueles espaos.
Ao transformarem a regio Norte do Paran num espao recortado por pequenas,
mdias e grandes propriedades, governo, CMNP e empresrios se baseavam num ideal de
36
sociedade moderna cuja maior caracterstica era a produo agrcola em larga escala
decorrente do trabalho desenvolvido em propriedades privadas normalmente trabalhadas por
ncleos familiares restritos. Contrariamente a esse modelo unvoco de sociedade, a pesquisa
com a sociedade das guas revelou que o interesse dos seres humanos em organizar os
espaos sociais de forma a reproduzirem a vida humana utilizando as condies geogrficas
encontradas, em conjunto com os elementos culturais que trouxeram consigo do modo de vida
anterior aos seus estabelecimentos nas guas e, principalmente, buscando responder s
necessidades que foram surgindo no dia-a-dia em contato com o mundo rural por ser criado,
so elementos que impossibilitavam que a sociedade que se constituiu na zona rural de Lobato
fosse descrita como um modelo ideal de sociedade capitalista, ou moderna.
Considerando os diversos elementos sociais, culturais e econmicos que compunham
o mundo das guas, pde-se compreender que a sociedade das guas foi formada tanto por
elementos capitalistas ou modernos, como o caso da produo agrcola voltada para o
mercado internacional, quanto por elementos comuns ao habitat das sociedades rurais de
formao espontnea, notadamente pelas experincias culturais trazidos pelos migrantes de
regies e nacionalidades distintas que l se estabeleceram. Experincias essas que, no trazem
o novo, ao contrrio, trazem exatamente o conhecido, o popular, o corriqueiro, o cheiro e o
gosto do cotidiano. Ou seja, a vontade de reproduzir nas guas algo j conhecido e sobre o
qual se tem algum domnio. Contrariamente ao mundo da reproduo econmica, esse mundo
conhecido se apresentava como o universo da segurana sobretudo para os momentos de
aflio causados pelas incertezas que o primeiro trazia constantemente para os moradores
rurais. Resultados de pesquisa como o aqui apresentado s pode ser encontrado quando
partimos de uma abordagem marcada pela busca pelos conflitos inerentes aos processos
histricos e na qual o foco sobre os grupos sociais ampliado para que o maior nmero de
experincias humanas sejam visualizadas e analisadas.