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Publicidade, marketing e cidadania na educação matemática Ana Sofia Alves, EB2.3 Vale de Milhaços Cláudia Fialho, ES de Gil Vicente João Filipe Matos, Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa Introdução Embora envolta nas diferentes polémicas emergentes da proposta de renovação curricular de 2001, a criação de uma área curricular com os objectivos de Formação Cívica veio chamar explicitamente a atenção para o papel importante que a escola tem no desenvolvimento de cidadãos informados e participativos. Naturalmente que a contribuição da escola nesse domínio não pode limitar-se à introdução de um espaço no horário dos alunos para trabalhar as questões da cidadania. O desenvolvimento de uma educação para a cidadania democrática envolve todas as disciplinas e tem fortes implicações nos seus programas e práticas pedagógicas. No caso da disciplina de matemática não são visíveis, de forma notória, quer nas orientações curriculares do documento Currículo Nacional de Competências do Ensino Básico quer nos programas do ensino secundário, vestígios de uma linha orientadora no sentido da educação e promoção da cidadania. No entanto (e apesar disso), defendemos que são os professores os elementos essenciais na transformação do currículo prescrito pelas autoridades num instrumento de trabalho ao serviço da educação dos jovens. Exemplo do diálogo matemática e cidadania: a publicidade Colocar a educação matemática em diálogo com a construção da cidadania implica considerarmos os conhecimentos matemáticos como elementos que permitem compreender melhor (num sentido transformativo) a realidade em que estamos inseridos e a sociedade 1

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A PUBLICIDADE,

Publicidade, marketing e cidadania na educao matemtica

Ana Sofia Alves, EB2.3 Vale de Milhaos

Cludia Fialho, ES de Gil Vicente

Joo Filipe Matos, Faculdade de Cincias da Universidade de Lisboa

IntroduoEmbora envolta nas diferentes polmicas emergentes da proposta de renovao curricular de 2001, a criao de uma rea curricular com os objectivos de Formao Cvica veio chamar explicitamente a ateno para o papel importante que a escola tem no desenvolvimento de cidados informados e participativos. Naturalmente que a contribuio da escola nesse domnio no pode limitar-se introduo de um espao no horrio dos alunos para trabalhar as questes da cidadania. O desenvolvimento de uma educao para a cidadania democrtica envolve todas as disciplinas e tem fortes implicaes nos seus programas e prticas pedaggicas. No caso da disciplina de matemtica no so visveis, de forma notria, quer nas orientaes curriculares do documento Currculo Nacional de Competncias do Ensino Bsico quer nos programas do ensino secundrio, vestgios de uma linha orientadora no sentido da educao e promoo da cidadania. No entanto (e apesar disso), defendemos que so os professores os elementos essenciais na transformao do currculo prescrito pelas autoridades num instrumento de trabalho ao servio da educao dos jovens.

Exemplo do dilogo matemtica e cidadania: a publicidadeColocar a educao matemtica em dilogo com a construo da cidadania implica considerarmos os conhecimentos matemticos como elementos que permitem compreender melhor (num sentido transformativo) a realidade em que estamos inseridos e a sociedade em que vivemos. preciso dar aos alunos oportunidades para o desenvolvimento de uma atitude crtica relativamente sociedade, onde muitas decises e aces so planeadas, conduzidas e justificadas a partir de modelos matemticos.

Ao perspectivar orientaes para o trabalho na escola deve distinguir-se claramente entre ensinar matemtica e educar matematicamente os alunos. Para alguns educadores (e infelizmente para muitos cidados) o ensino da matemtica incide essencialmente na tarefa de fazer com os alunos aprendam factos matemticos. Nesta viso, educar matematicamente parece ser entendido como fornecer aos alunos informao sobre factos matemticos (que no seno a recontextualizao de elementos da matemtica na prtica escolar) com o argumento de que ou sero teis noutras disciplinas ou sero teis alguma vez na vida. Existem aqui alguns elementos do que Skovsmose e Valero (2002) chamam a ressonncia intrnseca a crena de que as aprendizagens matemticas tradicionais faro (algum dia) ressonncia no desenvolvimento pessoal e social dos jovens e dos adultos. Um dos maiores erros desta perspectiva ignorar que uma grande parte dos jovens ser tacitamente excluda do acesso a outras formas de conhecimento e a outras posies e empregos (Matos, 2003).

Uma outra perspectiva entende que a matemtica constitui um elemento que confere uma dimenso muitssimo potente aos modelos que a sociedade cria e adopta para o seu funcionamento. Como tal, a educao deve incluir formas de aprender a lidar com esses modelos uma vez que educar matematicamente inclui levar os alunos a apropriar-se de modos de entender matematicamente as situaes do dia-a-dia.

Uma das actividades que tem vindo a emergir, cada vez com mais importncia na sociedade da informao em que vivemos, a da publicidade e marketing. Embora eventualmente todos ns reclamemos que no seguimos o que a publicidade nos quer impor, a verdade que os estudos que so realizados pelas empresas especialistas em questes de mercado mostram que a publicidade tem tendncia a ter um efeito claro e visvel nas vendas de um determinado produto. Actualmente os cdigos de conduta dos profissionais da publicidade so objecto de discusso e controvrsia dada a fragilidade da fronteira entre o que e oq eu no eticamente aceitvel em publicidade. Por exemplo, Stephen Kline (1993) no livro Out of the Garden analisa os modos como o imaginrio das crianas manipulado pelos anncios comerciais na televiso e como as sries infantis se constituem num receptculo de figuras estereotipadas volta da qual as crianas organizam a sua experincia imaginativa. As estratgias deste marketing (que tem como audincia as crianas e indirectamente os pais) passam pela mistura e uso deliberado das figuras do imaginrio das crianas quer em spots publicitrios quer em sries infantis. Na publicidade mais dirigida aos adultos h uma tendncia clara para utilizar igualmente esteretipos que acabam igualmente por constituir elementos organizadores da actividade desses mesmos adultos apesar das diferenas culturais que muitas vezes so evidentes nas mensagens que so enviadas aos consumidores.

Esta problemtica tem mltiplas dimenses que a escola deve abordar. A disciplina de matemtica tem certamente um papel na anlise das situaes e dos problemas que a publicidade implica.

A experincia

No seguimento da linha de preocupaes com que o GTAM se tem vindo a debater, foram realizadas algumas experincias com o objectivo de analisar o papel da educao matemtica no desenvolvimento de um currculo que visa contribuir para a formao de cidados conscientes, crticos e intervenientes.

A actividade, cuja descrio e anlise constitui esta comunicao incidiu sobre os modos de trabalhar uma educao matemtica que possibilite, pelo seu contedo e forma, o desenvolvimento nos alunos de competncias de cidadania, na sua vertente crtica e participativa. Com o objectivo de contribuir para o Projecto Curricular de Turma e para aprendizagem da Matemtica, enquadrando-a no estudo de preocupaes sociais, as professoras dinamizaram um conjunto de quatro sesses de 90 minutos, nas aulas de Matemtica, Estudo Acompanhado e Formao Cvica.

Num dos Conselhos de Turma foi dado a conhecer aos vrios professores, uma lista de temas variados que os alunos mostravam interesse em trabalhar. Procurou seleccionar-se dessa lista um assunto que fosse familiar aos alunos, mas sobre o qual ainda no tivessem reflectido explicitamente. A escolha recaiu sobre "A Publicidade" tambm pelo facto de ser um tema actual e acessvel, e que poderia contribuir para a formao dos alunos como cidados participativos e crticos em relao sociedade em que esto inseridos. Uma vez que o tema escolhido era demasiados vasto, optou-se por restringir este trabalho a: usos e abusos da matemtica na publicidade.

Ao contrrio do que usual, a escolha do tema foi feita sem noo prvia dos materiais que estariam disponveis. Como ponto de partida para a preparao destas sesses foram realizadas pesquisas e recolhas de informao que pudessem constituir uma boa forma de abordagem ao tema. Foram seleccionados alguns anncios de jornais e revistas que utilizavam a matemtica e apresentavam aspectos polmicos e susceptveis de discusso. Foi tambm elaborado um guio de anlise aos anncios, no sentido de promover uma maior discusso entre os vrios elementos de cada grupo. Nesta actividade pretendia-se que os alunos fizessem uma leitura crtica da matemtica utilizada em determinados anncios e que identificassem o poder persuasivo da matemtica na publicidade e em outras situaes. Foi utilizada publicidade autntica, para ensinar os alunos a identificar, interpretar, avaliar e criticar a matemtica implcita e explicita nos anncios, ajudando-os a formarem-se matematicamente e incentivando-os a serem cidados intervenientes e crticos relativamente aos fenmenos que os rodeiam.

Aps uma breve apresentao da actividade os alunos comearam por observar o seu anncio respondendo ao guio de anlise. Os grupos trabalharam activamente e a discusso foi muita. Os alunos identificaram, com facilidade, o produto que se pretendia vender e as razes apresentadas nos anncios para se comprar. Todos os grupos souberam reconhecer enganos nos anncios, mas tiveram alguma dificuldade em expressar por escrito esses enganos.Uma dessas situaes ocorreu com o anncio As sugestes do Dr. Ventura da agncia de viagens Halcon. Os alunos afirmaram que a poupana anunciada no era verdadeira, e como justificao referiram o facto de que a mdia de gastos semanais apresentada no fazia sentido, pois era calculada numa semana em que ocorriam situaes casuais (por ex. prenda de aniversrio) e envolvia gastos que no ocorriam semanalmente (por ex. telefone). Questionaram ainda a veracidade de alguns dos valores de gastos apresentados na referida mdia. Os outros grupos descobriram enganos na construo de grficos, na utilizao de estimativas exageradas e tabelas pouco esclarecedoras.

Na sesso seguinte, os alunos apresentaram, turma, o trabalho que tinham realizado. Durante as apresentaes, as professoras tentaram aprofundar a reflexo dos alunos atravs do questionamento, proporcionando um ambiente rico em argumentao e exerccio do sentido crtico. Os alunos demonstraram que tinham um bom conhecimento do anncio que tinham estudado, foram bastante crticos em relao aos anncios, salientaram no apenas as questes matemticas, mas tambm aspectos visuais como o tamanho de letra utilizado e as imagens escolhidas. Foram bastante participativos, inquiridores e argumentativos, quer nos seus anncios quer nos dos colegas.

Na ltima sesso foi discutido qual o poder persuasivo da Matemtica e o porqu desse poder. Os alunos apresentaram como justificao para o uso da Matemtica o facto de que os grficos e os nmeros chamam mais a ateno que os textos, e influenciam tambm muito mais porque se considera que prestam informaes mais correctas que as palavras. Para os alunos essa influncia existe porque muitas pessoas no conseguem interpretar a Matemtica que surge nos anncios e aceitam como correcto toda a informao escrita que acompanha o grfico ou a tabela.

Professora Porque que as pessoas olham para um grfico e pensam: isto deve ser bom, est aqui um grfico e tudo.

Drio Porque um grfico influencia e como elas no sabem o que que quer dizer no reclame acham que bom.

Vanessa Elas vem o grfico e pensam assim: esto aqui montes de provas a provar que o produto bom.

Eduardo Porque elas no sabem ver o grfico.

Marcelino No sabem analisar.

Eduardo O grfico chama a ateno.

Edi As pessoas ficam logo a olhar para aquilo ali: Ah! Isto um grfico.

No decorrer desta discusso inicial, era patente para os alunos a ideia de que bastava frequentar a escola, saberem ler e interpretar grficos para no serem enganados. Transmitiu-se a ideia que, tal como saber ler e interpretar, a prtica de analisar e questionar muito importante para se ser cidados informados e crticos. Os alunos compreenderam que, muitas vezes, a Matemtica presente nos anncios no estava errada, mas era utilizada abusivamente conforme a ideia que se pretendia transmitir. Para evitar que fossem manipulados, sentiram que deveriam desenvolver uma prtica reflexiva perante situaes, face s quais a anlise crtica e a discusso so aces indispensveis.

Edi Ns estivemos a analisar os anncios na Matemtica e agora se passar na rua e vir um anncio em relao s letras grandes e os grficos vou olhar melhor.

Professora Ento se calhar as coisas que aprendem na escola no so s para os testes.

Edi Pois no, ns tambm aprendemos a ser pessoas.

Professora E em relao disciplina de Matemtica o que que ela te ajudou?

Edi Ns podemos utilizar a Matemtica para desmascarar a Matemtica que engana as pessoas. H a Matemtica verdadeira e a Matemtica que engana as pessoas que aqueles grficos assim...

Joo E ns temos de utilizar a verdadeira ou a falsa?

Edi Ns temos de utilizar a verdadeira. Ns temos de desmascarar. Ns no podemos ser enganados pelos outros.

Foram apresentados outros exemplos da utilizao da matemtica para difundir uma determinada ideia, em estudos de vendas de jornais, na adeso a greves e nmeros de desemprego, para que os alunos compreendessem que existem vrias situaes onde a Matemtica pode ser manipulada conforme a ideia que se quer transmitir.

Exemplo 2: Utilizao da Matemtica em estudos de vendas de jornais.

As professoras receavam que ao sarem do tema da publicidade, falando de outros exemplos, como nmeros relacionados com greves, vendas de jornais ou estudos encomendados por partidos polticos, os alunos se desinteressariam ou no demonstrassem conhecimentos suficientes para discutir esses assuntos. Mas rapidamente perceberam que estes conheciam os partidos do governo e da oposio, tal como os nomes dos principais dirigentes polticos. Tambm estavam relativamente bem informados sobre os nmeros do desemprego e conheciam vrios jornais incluindo qual o pblico-alvo de cada um. Souberam discutir a greve dos trabalhadores devida s alteraes no pacote laboral e percebiam qual a funo de sindicatos como a CGTP. ConclusoAo analisar esta experincia pode-se concluir que apesar dos temas tratados (publicidade, jornais, greves e poltica) serem geralmente associados ao mundo dos adultos isso no foi um factor de desmotivao por parte dos alunos. Eles revelaram-se cidados interessados e informados sobre esse mundo (que tambm o deles) demonstrando que possvel trazer para as aulas preocupaes sociais e polticas e atravs delas aprender a ser matematicamente competente. Para isso, o objectivo no pode ser estudar um determinado contedo matemtico, mas possibilitar que os alunos sigam o caminho que escolherem, trabalhando a Matemtica que retiram de cada situao e compreendendo qual o poder persuasivo desta cincia.

Referncias

Kline, S. (1993). Out of the Garden Toys and childrens culture in the age of TV marketing. London: Verso.

Matos, J.F. (2003). A educao Matemtica como fenmeno emergente. Comunicao ao Congresso Ibero-Americano de educao Matemtica (ref. net)Skovsmose, O. & Valero, P. (2002). Ref.Tanaka, K. (1994). Advertising Language: a pragmatic approach to advertisements in Britrain and Japan. New York: Routledge.

Exemplo 1: Anncio analisado

No muito claro o que aprender saber factos matemticos. Por exemplo, saber recitar a tabuada pode indicar que se aprendeu a estrutura da multiplicao ou que se reconhece um conjunto de padres entre os nmeros ou nenhuma dessas coisas

Basta pensar em exemplos relativamente simples como a matemtica que est presente na preparao do Oramento Geral do Estado em Portugal.

O dia-a-dia deve ser entendido no sentido de Jean Lave (Lave, 199?) no o que se passa necessariamente fora da escola mas todo o conjunto de actividades que faz parte da vida diria das pessoas. Curiosamente, para os alunos, de facto, o dia-a-dia essencialmente o viver a escola.

So mltiplas as formas que a publicidade assume e muito complexos os modos como se dirige ao consumidor e invade a sua privacidade manipulando literalmente a sua vontade. ainda de salientar que diversos estudos nesta rea mostram que definitivamente a publicidade e o marketing tm uma influncia decisiva na economia quer a nvel local quer a nvel mundial.

Neste livro Kline analisa o desenvolvimento da cultura do entretenimento e do brinquedo desde o Lego e a Barbie at s Tartarugas Mutantes Ninja atravs dos meios de promoo pela via das sries televisivas, dos livros de banda desenhada e dos filmes. Passando pelos objectivos comerciais dos grandes armazns da especialidade como o Toys R Us, revela como as oportunidades para atingir uma grande audincia de crianas atravs da televiso um elemento fundamental no desenvolvimento de novas abordagens publicidade e mostra claramente como as crianas so catapultadas para um contnuo espao-tempo catico e fantstico de brinquedos e objectos.

No livro Advertising Language, Tanaka (1994) analisa a linguagem utilizada na publicidade escrita (e.g em cartazes e publicaes peridicas) contrastando alguns aspectos de natureza cultural entre o Reino Unido e o Japo sobretudo no que se refere s metforas utilizadas na comunicao encoberta (isto , no explcita) dirigida ao consumidor.

Grupo de Trabalho sobre Aplicaes e Modelao Matemtica da APM.

A turma em questo, do 7 ano de escolaridade, era composta por 22 alunos da Escola Secundria Poeta Al Berto, em Sines.

Neste anncio apresentada a mdia de gastos semanais do Dr. Ventura se ficar em casa (695 euros). Em contrapartida uma semana em Punta Cana com tudo includo custa 689 euros, concluindo-se que se viajar poupa 6 euros.

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