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PROGRAMA DE SAÚDE MENTAL EM PALMEIRA –PR:
PERSPECTIVAS DE UM TRABALHO INTERDISCIPLINAR
Ana Carolina Miola
Danuta Estrufika Cantóia Luiz
Emilie Faedo Della Giustina1
Carlos Eduardo Coradassi
RESUMO: O presente artigo tem como objetivo sistematizar a experiência de trabalho interdisciplinar
desenvolvido pela equipe de profissionais do Programa de Saúde Mental de Palmeira/PR, no ano de
2013. Para o alcance deste objetivo foi necessária a realização de uma pesquisa de caráter qualitativo
com recorrência aos profissionais que compõem a equipe, através de duas entrevistas coletivas (as
entrevistas foram gravadas e transcritas com depoimentos fracionados de 15 profissionais), pesquisa
documental e contatos informais com a coordenação do programa. Os dados foram organizados e
interpretados através de análise de conteúdo, no formato categorial, tendo como etapas para analise:
pré-análise, exploração do material, tratamento dos resultados e interpretações. A sistematização dos
elementos que compõem a experiência nos oferece a visualização de alternativas, estratégias e
possibilidades de realizar trabalhos de caráter interdisciplinar no âmbito das políticas públicas, neste
caso em específico, na área de saúde mental.
PALAVRAS-CHAVE: Trabalho Interdisciplinar; Saúde Mental; Trabalho em Rede.
INTRODUÇÃO
Considerando que a temática em torno da interdisciplinaridade tem sido objeto de
preocupação das políticas públicas em âmbito nacional, visto sua importância para o avanço
de ações voltadas para projetos comprometidos com a perspectiva transformadora, o Núcleo
de Estudos e Pesquisa: Estado, Políticas Públicas e Práticas Sociais (NEPPS) vinculado ao
Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais Aplicadas, da Universidade Estadual de
Ponta Grossa – UEPG, desenvolveu uma pesquisa de âmbito regional como uma forma de
contribuir para o debate da temática em tela.
O presente artigo é fruto de um conjunto de reflexões sistematizadas a partir da experiência
dos pesquisadores/autores no NEPPS, o qual é constituído de profissionais de diversas áreas, como
por exemplo: direito, psicologia, serviço social, veterinária, educação física, jornalismo, entre
outros; mas que (para a realização de uma pesquisa de caráter interdisciplinar) possuem um objeto
1 Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Estadual de Ponta Grossa
(UEPG). [email protected]
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de pesquisa em comum: práticas profissionais de caráter multi ou interdisciplinar no âmbito das
políticas públicas na região dos Campos Gerais no estado do Paraná.
A pesquisa parte da seguinte problematização geral: no âmbito das políticas públicas
na região dos Campos Gerais, existem práticas exitosas multi ou interdisciplinares? Em que
áreas e locais se encontram tais práticas? Como se configuram em termos de equipe
profissional, metodologia de intervenção e resultados alcançados?
Enfatiza-se a relevância da pesquisa no âmbito das políticas públicas na região dos
Campos Gerais pelo fato do desconhecimento da existência de uma pesquisa desta natureza.
Pesquisar realidades locais e/ou regionais é relevante para verificar a possibilidade dessas
ações, pois os Municípios geralmente não têm essa prática da pesquisa no sentido de
sistematizar suas experiências e os dados que caracterizam suas realidades.
Outro aspecto que merece ser enfatizado e que reforça a importância da pesquisa, não
somente desta, mas da produção do conhecimento que alimenta as práticas sociais, é a socialização
do conhecimento. Por vezes o cotidiano da prática profissional é tão dinâmico, complexo e cheio de
afazeres que não permite aos profissionais socializar as experiências oriundas das suas práticas nas
políticas públicas. Esta dificuldade pode ser minimizada por meio de pesquisas cientificas que
sistematizem e publicizem as experiências exitosas, intenção do presente artigo.
OBJETIVO
Sistematizar a experiência de trabalho interdisciplinar realizada pela equipe de
profissionais do Programa de Saúde Mental de Palmeira-PR.
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Os procedimentos metodológicos utilizados para o alcance dos objetivos definidos
consistiram na revisão de literatura relativa às categorias teóricas: interdisciplinaridade; práxis
social; e emancipação. Após a fundamentação teórica, partiu-se para o campo empírico de pesquisa.
Para definição da amostra e dos sujeitos de pesquisa foi adotado o seguinte
procedimento: Seleção do Programa de Saúde Mental do Município de Palmeira - como
exemplo de prática exitosa de trabalho interdisciplinar (setembro/2013); b) Contato com a
equipe municipal para esclarecimento dos objetivos da pesquisa, solicitação de documentos
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sistematizados sobre a experiência e agendamento das entrevistas (setembro/2013); c)
Realização de duas entrevistas coletivas com os profissionais que compõem as equipes2
consideradas com práticas interdisciplinares e pesquisa documental em documentos
disponibilizados pela equipe entrevistada.
Para a realização das entrevistas foi utilizado um roteiro de entrevista semi-
estruturada, com questões abertas: Como surgiu a proposta? Quem é o público-alvo? Quais
são os objetivos da experiência? Qual é a base da experiência/proposta /projeto (Legal,
teórica, metodológica)? Como se desenvolve a prática com o público-alvo da experiência
(metodologia, procedimentos, estratégias ou outras formas de intervenção); O que considera
específico de sua profissão? O que é comum nas práticas desenvolvidas? O trabalho favorece
o exercício do interdisciplinar? Quais as dificuldades e facilidades pra materialização do
exercício interdisciplinar? Como a equipe mantém espaços de exercício interdisciplinar? Há
possibilidades de discussão e retroalimentação da experiência, reuniões sistemáticas,
capacitações? Quais os resultados concretos alcançados junto aos grupos trabalhados?
(outubro/novembro/2013).
Por fim, organização e interpretação dos dados coletados através de analise de conteúdo, no
formato categorial, tendo como etapas para analise: pré-análise, exploração do material, tratamento
dos resultados e interpretações (CAREGNATO; MUTTI, 2006) (março a maio/2014).
RESULTADOS
O Programa de Saúde Mental no município de Palmeira é realizado por uma equipe
interdisciplinar, formada por médicos, psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais e agentes
sociais. Conta ainda com o apoio de agentes comunitários de saúde, técnicos administrativos,
farmacêuticos e outros profissionais que atuam na atenção primária à saúde, articulados com
demais profissionais que integram a equipe ampliada de saúde mental na rede pública do SUS.
2 As entrevistas foram gravadas e transcritas com depoimentos fracionados de 15 profissionais. Com relação
aos procedimentos éticos, ainda que os sujeitos participantes ocupem cargos de servidores públicos e
conceder informações relativas ao serviço público se constitua em um dever do servidor e direito de qualquer
cidadão que o solicitar, os participantes da pesquisa assinaram um Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido (TCLE) autorizando o uso dos depoimentos na elaboração do estudo. Além disso, na
apresentação dos dados, o anonimato dos participantes foi reguardado pela substituição dos nomes dos
profissionais pelas funções exercidas.
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No processo de organização e análise dos dados foram elencadas três categorias: a)
Das práticas compartilhadas e específicas; b) Das facilidades e dificuldades na realização do
trabalho interdisciplinar; c) Resultados do trabalho interdisciplinar. As quais estão
apresentadas na sequencia:
a) Das práticas compartilhadas e específicas
Cada profissional da saúde envolvido no Programa de Saúde Mental do município possui
especificidades inerentes à sua profissão, no entanto, em um contexto geral, é possível denotar
que existem práticas compartilhadas pelo grupo. Estas características apontam uma convergência
de discurso dos membros, que trabalham em prol de objetivos comuns, ainda que voltadas cada
qual á sua área específica. Como grupo construído com vistas à interdisciplinaridade, é válido
ressaltar que a interdisciplinaridade não ignora as diferenças existentes entre as diversas áreas do
conhecimento, no entanto, parte do pressuposto que estas diferenças devem ser compartilhadas ao
ponto de buscar construir um objeto de atenção (teórico-prático) comum e capaz de gerar
intervenções críticas na realidade (MUNHOZ e JUNIOR, 2009).
Quanto às práticas comuns a todos, destaca-se o acolhimento. Todos os profissionais
ouvidos citam em seus discursos o acolhimento da pessoa que chega, que é a ocasião primeira
quando se escuta este indivíduo, é feita triagem e encaminhamento do mesmo. Cada
profissional atua em um momento, ainda que nesta mesma etapa de “acolher”.
Acolher é receber e dar oportunidade de escuta, orientar e ou encaminhar, é
realizada uma triagem a respeito do problema que a pessoa apresentou, se o caso é
de saúde mental psiquiatria /ou psicologia é realizado um cadastro que a pessoa
deve estar com RG e o cartão do SUS para dar prosseguimento no tratamento, e
também caso haja uma nova procura o cadastro já esta pronto. Muitas vezes a
dificuldade que a pessoa apresenta nem sempre é da parte da saúde mental e assim
sendo fazemos o encaminhamento ao órgão competente até que pode ser o CRAS , a
policia, o fórum, CRAS [...] (AGENTE SOCIAL).
[...] os outros profissionais da equipe tanto a Psicóloga 2, quanto o Psicólogo 1, a
Agente Social tem livre circulação até porque eles tem uma vinculação com os
pacientes por isso muitas vezes é importante a presença deles, perceberem que a
oficina terapêutica está interligada com a consulta psiquiátrica, que está
interligada com o acolhimento, está interligada com o medicamento que é entregue
na farmácia pra eles entenderem esse cuidado coletivo, [..]. Então a gente flutua
algumas funções comuns [...] (COORDENADORA).
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Também, reconhecem em suas falas como o trabalho em conjunto é agregador,
complementar e interligado, indo ao encontro do escopo do Projeto que prevê a
interdisciplinaridade. Como Thiesen (THIESEN, 2008) coloca, a interdisciplinaridade trata-se
de um movimento que acredita na criatividade das pessoas, na complementaridade dos
processos, na inteireza das relações, no diálogo, na problematização, na atitude crítica e
reflexiva. Enfim, numa visão articuladora que rompe com o pensamento disciplinar,
parcelado, hierárquico, fragmentado, dicotomizado e dogmatizada que marcou por muito
tempo a concepção cartesiana de mundo e que logo, deste modo, se apresenta na experiência
do grupo de trabalho ao reconhecerem a conexão e complementaridade de cada etapa – do
acolhimento às visitas domiciliares:
Essa troca [...] a ideia que não resolve nada sozinho independente da especialidade,
da profissão, depende das equipes da atenção primária pra resolver muitas
questões, relação de interdependência, mas também de co-responsabilidade. [...] E,
por exemplo, numa família, não tem como tratar bem uma criança se os pais não
estão bem. Se os pais da criança não estão bem , a criança não vai estar, se as
nossas equipes não estiverem minimamente saudáveis ou preparadas a clientela
também não vai estar bem, o termômetro é realmente o quanto a gente tem
conseguido avançar com os pacientes, se eu estou lutando tanto na linha de frente
(COORDENADORA).
Pensando em práticas específicas, quanto aos Agentes Comunitários de Saúde, estes
indicam o “elo entre a comunidade e o serviço de saúde” (COORDENADORA). Este elo,
segundo eles, aproxima paciente/agente, a medida que os profissionais vão até as casas dos
pacientes, conhecendo mais de perto suas realidades e famílias, construindo “elos” que
solidificam a relação e leva-os a compreenderem e levarem a uma identificação. Estes
profissionais fazem a busca ativa do paciente e reconhecem os problemas diretamente nas
comunidades, ao longo de visitas periódicas.
[...] a parte da identificação também, as vezes a gente esta com a família com mais
frequência do que o próprio médico, você vê na casa, vê na rua... então nosso
contato com a família é bem mais frequente[...]. Muitas vezes a gente, pela
identificação do paciente vê que tem alguma coisa errada, mas o médico na
consulta nem percebeu, porque lá (na consulta) ele(o paciente) acabou adotando
uma postura diferente[...] (AGENTE COMUNITÁRIO DE SAÚDE).
Por sua vez, os agentes sociais focam suas práticas no que tange ao acolhimento. A
agente social entrevistada afirma que centra seu principal foco na mediação do paciente que
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chega. "Vou ao lugar encaminhar ele digo é tal e tal [...]e muitas vezes eu vejo que eles saem
satisfeitos" (AGENTE SOCIAL).
Já os psicólogos elencam ao menos seis funções específicas compartilhadas entre os
três psicólogos entrevistados. São elas: avaliação psicológica, psicoterapia, oficina
terapêutica, apoio psicológico e terapia focal. Estas práticas específicas são realizadas a partir
das técnicas da psicologia, sendo que, por exemplo, as dinâmicas também são realizadas por
outros profissionais, no entanto, a partir da práxis do mesmo.
Outra categoria de profissionais envolvidos com o Projeto de Saúde Mental em
Palmeira são os Assistentes Sociais. No momento, apenas uma profissional desta área atua no
Projeto, mas houve momentos em que mais um trabalhador dividia funções com a atual –
como no ano anterior às entrevistas, 2012. Isto é importante dizer à medida que as funções da
mesma ficam comprometidas com sobrecarga de trabalho, em comparação ao que era
realizado anteriormente. A Assistente Social participa essencialmente do acolhimento e da
triagem e cita que em outros momentos conseguia maior mobilidade para atuar em outras
situações, quando acompanhada de outro profissional.
A minha missão é a escuta, a primeira coisa da assistente social nessa área da
saúde é o acolhimento, a escuta porque na escuta que a gente identifica muitas
situações, a pessoa chega pedindo medicamento e você vê que aquilo vai muito além
daquela prescrição médica, a garantia dos direitos, encaminhar, orientar, como a
Agente Social falou, estabelecimento de vínculos. Eles também têm uma referencia
ali onde podem recorrer (ASSISTENTE SOCIAL).
A fala da profissional confirma que o acolhimento é uma prática comum entre os
profissionais e destaca o papel do Serviço Social no grupo de profissionais que é a compreensão
do processo vivido pelo individuo no contexto em que está localizado numa perspectiva de
totalidade: “você vê que aquilo vai muito além daquela prescrição médica”. E visualizar
perspectivas de “garantia dos direitos, encaminhar, orientar” Ou dito nas palavras de Yazbek
(2004, p.45) “[...] se for desconsiderada a totalidade [...] a desconexão do micro-social, do
particular para com o todo [...]” se perde a visão de totalidade da questão trabalhada.
Aspecto destacado por este profissional, mas que é comum nos depoimentos dos
demais entrevistados: abordar o usuário dos serviços de saúde mental no contexto no qual esta
inserido. Ou seja, a interdisciplinaridade é diretamente relacionada a uma perspectiva de
totalidade: a relação das partes com o todo é um conjunto articulado e interconectado numa
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mútua relação. “Depois de os ter estudado a cada um em particular, é necessário examinar a sua
relação recíproca” (MARX, 1983, p.225), integrando seus elementos ao conjunto, as partes ao todo,
“[...] se bem que nunca se possa chegar a uma totalidade que não seja ela mesma elemento ou parte
[...]” (GOLDMANN, 1979, p.13).
b) Das facilidades e dificuldades na realização do trabalho interdisciplinar
Cabe preliminarmente retomar a identificação de que o Programa de Saúde Mental no
município de Palmeira é realizado por uma equipe interdisciplinar, formada por diversas
categorias profissionais. Dessa forma, não se deve ignorar, a priori, que as diferentes
profissões e funções desenvolvidas pelos agentes tem uma história, formação e cultura
próprias, que certamente influenciam no trabalho tomado isoladamente, assim como dentro da
perspectiva de grupo e até na interdisciplinaridade. Como bem leciona Munhoz (2005, p. 68),
As profissões, de modo geral, não aprendem a se enriquecer mutuamente pelas
diferenças, com base em compreensões que possuam em comum sobre a realidade;
também não se exercitam no trato de problemas acima das diferenças de
compreensão; nem se habilita no enfrentamento de problemas a partir de sua
explicitação como problemática a ser analisada conjunturalmente e conjuntamente
pelos diversos profissionais envolvidos.
Todavia, partindo da referência de que a interdisciplinaridade pressupõe a necessidade
de discussão, reflexão e trabalho integrado das áreas de atuação; conjugando conceitos,
experiências e até mesmo especificidades para um objetivo posto de forma universal e geral; a
experiência do Programa de Saúde Mental do município de Palmeira, como se apresenta,
permite a condução da análise a partir de uma prática interdisciplinar concreta.
Nessa busca de superação do trabalho isolado e específico, concebendo-o num
contexto global da sociedade e da necessidade dos sujeitos envolvidos, a equipe do Programa
de Saúde Mental do município de Palmeira, tem buscado práticas capazes de engendrar a
melhoria e eficiência do trabalho. Para tanto, o grupo se reúne frequentemente para discussão
de casos, avaliação do Programa, elaboração de atividades, estudos e atualizações na área,
bem como participando e promovendo eventos relacionados ao tema; isso tudo na perspectiva
do melhor diagnóstico e consolidação do trabalho e como mecanismo de fortalecimento da
equipe.
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Vejamos tal representação na fala de agente que integra a equipe do Programa:
Quando as situações acontecem e a gente intervém, não tem clareza e nem certeza
de onde aquilo vai dar, não sei se vou acertar ou não vou acertar, se vai ser
produtivo ou não. Então, quando as situações passam a gente consegue discutir os
casos depois das condutas que a gente tomou que resultado que teve, eu acho que
isso é a facilidade [...] (COORDENADORA).
Estou num momento que penso mais na equipe do que nos pacientes [...]. Se as
nossas equipes não estiverem minimamente saudáveis ou preparadas a clientela
também não vai estar bem (COORDENADORA).
Tal conjugação de esforços, que supera a mera convivência entre saberes diferentes
(multidisciplinaridade), tem se demonstrado como um elemento fundamental para a eficiência
do trabalho e a melhor aceitação junto à comunidade atendida, conforme corroborado por
falas recorrentes dos membros da equipe:
Acontece na discussão de casos, o apoio um ao outro, o trabalho em equipe
desenvolvendo quando precisa uma nova estratégia, esse momento das quartas-
feiras está instituído há muitos anos, inclusive planejamento (PSICÓLOGO 1).
No acolhimento trabalhamos em parceria com a farmácia devido a dúvidas que
surgem devido à medicação pelo paciente. Também esta sendo realizado um
cadastro de todas as pessoas que fazem o uso de psicotrópicos é fornecida a
carteirinha verde para que o paciente possa prosseguir o tratamento com o médico
que o atendeu, a exigência de ser o mesmo médico é que o paciente seja
acompanhado mais de perto no tratamento e muitas vezes não há necessidade de ser
acompanhado pelo psiquiatra (AGENTE SOCIAL).
Assim, evidente que os registros de experiências, a integração e comunicação no
trabalho realizado pela equipe que desenvolve o atendimento à saúde mental no município de
Palmeira, vêm contribuindo para o avanço no trabalho prestado. De forma mais específica, a
condução do trabalho a partir de uma prática interdisciplinar, implica na maior segurança dos
agentes envolvidos e no sistema de decisão no qual estão inseridos, bem como para o melhor
diagnóstico e efetividade no tratamento aplicado.
A interdisciplinaridade aplicada ao Programa tem permitido perceber que é possível
construir uma relação de troca e partilhas entre saberes e experiências diversas, integrando o
conhecimento já produzido em práticas compartilhadas, através do diálogo, promovendo a
confiança e a inter-relação entre os olhares diferentes, para maior aproximação, compreensão
e solução dos problemas vinculados à realidade que lhes se apresenta.
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Fator fundamental inclusive para que o trabalho se desenvolva numa perspectiva de
total aproximação com os sujeitos ao qual o Programa se destina, conforme se observa das
falas abaixo e que seria muito mais difícil se não desenvolvido dentro dessa prática de
experiências interdisciplinares.
A gente faz esse trabalho também, vir aqui no centro pegar o medicamento levar
pro PSF [...]. A parte da identificação também, as vezes, a gente esta com a família
com mais frequência do que o próprio médico, você vê na casa, vê na rua [...].
Então nosso contato com a família é bem mais frequente [...] muitas vezes a gente
vê que tem alguma coisa errada, mas o médico na consulta nem percebeu, porque
ele acabou adotando uma postura diferente (AGENTE COMUNITÁRIO DE
SAÚDE).
Eles falam de tudo com a gente [...] pro médico eles não se ‘encorajam’ de falar
(FALA CONJUNTA AGENTES COMUNITÁRIOS DE SAÚDE).
Olha se tem uma coisa específica do agente de saúde é o elo entre a comunidade e o
serviço de saúde [...] nem todo psicólogo tem uma afinidade com saúde mental, que
dirá todo ACS, todo médico, todo enfermeiro, tem uma coisa que é muito particular
de cada um[...] então acho que essa cumplicidade, quando realmente consegue
acontecer essa cumplicidade na equipe, essa maturidade facilita
(COORDENADORA).
Assim, por mais que se reconheçam algumas dificuldades na metodologia de trabalho
adotada pelo Programa de Saúde Mental do município de Palmeira/PR, como carências
estruturais, dificuldade de compreensão acerca da perspectiva de trabalho por parte de alguns
profissionais do atendimento de saúde (p.ex.: aproximação dos médicos do atendimento geral
com os psiquiatras e médicos do Programa), são inequívocos os avanços e benefícios da
prática interdisciplinar aplicada, conforme se percebe através da análise das falas dos sujeitos
envolvidos, anteriormente referenciadas. Reiterada no comprometimento dos membros da
equipe, até mesmo para a superação das dificuldades que inicialmente se apresentaram.
c) Resultados do trabalho interdisciplinar
Identificada a efetividade de um trabalho interdisciplinar no âmbito da Saúde Mental
no município de Palmeira, destacam-se alguns resultados dessa experiência, os quais também
nos levam a considerar que há um trabalho desta natureza. Os relatos mostram o sucesso de
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campanhas com envolvimento da comunidade, escolas, creches, grupos e elogios da gestão
municipal ao trabalho na área:
[...] quero aproveitar a oportunidade e parabenizar a equipe pela caminhada, foi
um sucesso dia 10, e recebi um elogio ontem [...]. Então, a Direção disse que está
muito contente, satisfeito com nosso trabalho e principalmente pela dedicação de
vocês. Aconteceu de uma forma muito legal porque teve uma mobilização da
comunidade lá sem tamanho, que trouxe a escola, creche o grupo, o pessoal lá do
Rocio 2, o pessoal do Rocio 1, parabenizar a equipe, todo trabalho lá no grupo de
saúde mental (COORDENADORA).
De acordo com o pensamento de gramsciano, a construção de uma nova visão de
mundo é uma tarefa de cunho pedagógico e filosófico. Pedagógico, tendo em vista que há a
necessidade de ser difundida entre os indivíduos e filosófico porque se trata de realizar um
contraponto ao senso comum, visando superar criticamente a ideologia dominante
(MARTINS, 2008).
Nessa disputa travada no solo cultural e ideológico para que se consiga determinar a
direção da ação coletiva, destaca-se o papel dos intelectuais. Na acepção
gramsciana, (relacionar com as práticas profissionais emancipatórias) eles
devem educar ética e politicamente os grupos aos quais se vinculam organicamente,
adequando as suas consciências, os seus valores e os seus comportamentos à
situação concreta da formação econômica e social, tendo em vista os interesses e as
necessidades de classe (MARTINS, 2008, p. 296 - grifo nosso).
Percebe-se a importância das práticas educativas e democráticas que sejam capazes de
socializar e universalizar o conhecimento/saber, fato que contribui para a elaboração de uma
cultura política mais madura das classes subalternas. Essa ação favorece rupturas moleculares
(LUIZ, 2011) frente à cultura dominante instituída, favorecendo a construção de um novo
projeto societário, comprometido, efetivamente, com os ideais emancipatórios. E é essa
possibilidade de rupturas moleculares, de mudanças no senso comum com relação à Saúde
Mental que as práticas de mobilização junto à comunidade, às escolas e creches do município,
desenvolvidas pela equipe profissional podem contribuir.
Outro elemento apontado como resultante do trabalho interdisciplinar desenvolvido
refere-se à diminuição dos internamentos; reduzido número de suicídios e monitoramento de
casos relacionados; valorização/responsabilização da família sobre a saúde do doente:
[...]temos tido menos internamentos. A gente tem demanda, mas por exemplo, hoje
de manhã a gente estava vendo a questão de tentativa de suicídio. Tem um
município que veio nos visitar e conhecer nosso trabalho, nos contou que eles têm
tentativa de suicídio todo dia no município [...]. Então aqui nós temos um registro, a
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Agente Social tem esse cuidado de registrar a 'ideação' suicida, então quando surge
na fala ela registra, quando tem a tentativa a gente registra, infelizmente a gente
teve um óbito nesse ano, é o primeiro ou o segundo?? [...] Então, teve ano que teve
mais, teve ano que tiveram muitos internamentos em hospital psiquiátrico, hoje por
transtorno mental, por surto mesmo a gente não tem internado tanto. [...]
(COORDENADORA).
Relativo à diminuição dos internamentos, há que se destacar a direção do trabalho
assumida pela equipe no sentido de priorizar o tratamento do paciente da Saúde Mental
inserido no âmbito familiar e social, sendo o internamento uma medida de última instância,
para casos mais graves.
Essa leitura e posicionamento liga-se à uma perspectiva processual de transformação
que passa da subalternidade ao protagonismo e autonomia dos sujeitos. Neste caso específico,
os pacientes da Saúde Mental, historicamente marginalizados na sociedade brasileira, lógica
que vem sendo superada por um entendimento desses enquanto sujeitos de direitos, inclusos à
vida em sociedade. Processo que se realiza mediante elevação social, cultural e política da
sociedade em seu conjunto - de um ponto de vista gramsciano (LUIZ, 2011).
Nota-se uma noção de proteção social que supera a unilateralidade de
responsabilização no cuidado do paciente da saúde mental - a união de forças de todas as
esferas: Família, Estado e Sociedade. Elemento que se nota em relação ao incentivo do
protagonismo da família e do paciente no processo do tratamento:
Não que o surto não aconteça, ele acontece da mesma forma que acontecia antes ,
ou um pouquinho menos por causa da atenção ser diferenciada, a
responsabilização, toda a família está sendo mais valorizada. A família muitas vem
com o discurso, de que 'cuide, você não é o profissional da saúde mental? Não, mas
o senhor é a família dele, tem a mãe o senhor é o pai, o filho [...]
(COORDENADORA).
A legitimidade do trabalho de forma geral, que se mostra no respeito da população e
do poder público quanto à conduta do serviço (não internamento – quando “forças externas”
faziam pressão para tanto) também é elencada enquanto um resultado positivo:
Às vezes a gente tem que dizer assim: não tem indicação para internamento, o
clínico tem que avaliar o seu caso, ver seus exames porque a instituição não vai te
atender. E a família não aceitava isso, as vezes vinham forças externas, querendo
nos obrigar, e a gente conseguiu trabalhar isso, e a população respeita nossa
conduta quando a gente diz não (COORDENADORA).
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A definição da palavra emancipação do Diccionario del Nuevo Humanismo
(CENTRO Mundial de Estudios Humanistas , 1996) diz tratar-se de: “Processo e objetivo da
libertação do estado de sujeição. Recuperação da liberdade, soberania, autonomia e independência”
(tradução nossa). Relacionada ao depoimento acima, nota-se que o processo de trabalho
possibilita rupturas emancipatórias não apenas aos usuários da política de Saúde Mental, mas
também fortalece a autonomia da equipe profissional em definir os rumos e prioridades do
trabalho a partir de uma perspectiva de prevalência do conhecimento técnico, e não a partir de
influências externas, de imposição de regras.
O respeito ao conhecimento técnico e à autonomia da equipe profissional é um
elemento bastante significativo enquanto resultado de um trabalho interdisciplinar. E ainda,
no âmbito da relação com o poder público e a população, a equipe visualiza o
desenvolvimento de ações estratégicas como um meio de otimizar o serviço, como por
exemplo, o uso da "carteirinha" como uma maneira de "desafogar" o serviço.
Somado a isto, os relatos apontam para a maturidade do grupo, equipes mais
resolutivas e comunicação entre as equipes:
A comunicação entre as equipes melhorou muito, antes tinha uma coisa assim,
tudo tinha que passar pela Agente Social, a referência era ela [...]. Hoje a gente
inverteu totalmente essa lógica , porque a gente não tem lista de espera [...] tem o
acolhimento, todos fazemos acolhimento, as ACS, os profissionais, todos têm livre
acesso aos profissionais, eu acho que isso é uma coisa muito legal , é maturidade
(COORDENADORA).
No pensamento gramsciano a educação ocupa lugar central num processo de mudanças
sociais, assim como a dimensão do conhecimento e da política. No que tange à educação, quer
seja ela formal ou não, ela deve ser considerada, pois a mesma é responsável pela difusão das
visões de mundo. Desta forma, a educação desempenha uma ação ético-política, pois pode servir
de instrumento de manutenção da ordem vigente, formando nas massas o consenso no que diz
respeito à visão de mundo dos dominantes e dirigentes num processo de adaptação da conduta das
classes subalternas aos imperativos do grupo no poder. Por outro lado, a educação tem
possibilidades de ser empregada para alterar as relações de poder, forjando as condições
imprescindíveis para fazer o enfrentamento da hegemonia em vigor e colaborar para a
mobilização e constituição de uma nova civilidade (MARTINS, 2008).
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Relacionada a essa perspectiva pedagógica a equipe profissional organiza grupos de
saúde mental nas unidades de saúde da cidade:
A gente tem um jeito diferente lá no bairro, porque a gente tem um grupo de saúde
mental. Tem todos os pacientes de saúde mental lá do bairro cadastrados e a gente
se reúne todo mês. [...] Todo mês temos esse grupo e cada mês falando de um tema
diferente; mas tudo focado com saúde mental e só participa paciente e familiar de
saúde mental (AGENTE COMUNITÁRIO DE SAÚDE).
Essa tarefa requer a ação de “educadores”, pois trata-se de um processo pedagógico, tendo
em vista que as “[...] práticas de mobilização social e organização são expressões das práticas
educativas [...]” e podem contribuir na “[...] busca da ampliação de consensos em torno [...]” dos
projetos societários das classes subalternas. (DURIGUETTO e BALDI, 2012, p. 197).
Gera-se a possibilidade para que mediante a disseminação de uma nova visão de
mundo criada e instituída pelas classes subalternas ocorra a organização de uma nova cultura.
Nesse processo, a visão de mundo configura-se como um componente capaz de orientar e
mobilizar os comportamentos dos indivíduos e dos grupos e classes sociais.
Entendemos que as ações de cunho pedagógico (e até mesmo de contra-cultura)
desempenhadas no âmbito da Saúde Mental em Palmeira configuram-se como um embrião,
como o desenvolvimento de um potencial que os trabalhadores na área mostram-se
comprometidos a desenvolver.
Isso tudo resulta no reconhecimento do trabalho desenvolvido no município, na
Região e no Estado do Paraná. E de que é possível extrair elementos contraditórios inerentes à
realidade social que impõem possibilidades de (re)construção de ideais emancipatórios, ainda
que num contexto de pequenas rupturas que compõem um processo em construção de
mudanças na sociedade.
CONCLUSÕES
Ao objetivar sistematizar a experiência de trabalho interdisciplinar realizada pela
equipe de profissionais do Programa de Saúde Mental de Palmeira/PR foi possível identificar
alternativas, estratégias e possibilidades de realização de um trabalho de caráter
interdisciplinar no âmbito das políticas públicas, neste caso específico, na área de saúde
mental.
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No que tange a interdisciplinaridade a partir das práticas realizadas pelo grupo de
trabalho e categorias profissionais envolvidas, é possível denotar que este conceito é aplicado
e desenvolvido no Projeto de Saúde Mental de Palmeira. Destaca-se que a
interdisciplinaridade, enquanto experiência que se manifesta na realidade social de exercício
profissional, não é uma fórmula que se aplica e seus resultados podem ser mensurados
quantitativamente. O que se buscou neste estudo foi analisar qualitativamente momentos de
um processo em desenvolvimento de uma experiência de trabalho interdisciplinar bem-
sucedida
Esta interdisciplinaridade pode ser percebida, como mostrado ao longo do estudo,
quando integrantes falam como cada elemento em suas especificidades complementa o todo
do trabalho, em prol de potencialização do conhecimento. Característica que permeia o debate
dos diferentes profissionais envolvidos.
Outro ponto importante levantado é o fator integração entre comunidade e o serviço de
saúde. Esta ligação favorece ao tratamento do paciente com uma visão de totalidade, com
integração da família e da realidade vivenciada pelos mesmos, com o intuito de romper com
questões historicamente reproduzidas no âmbito da Saúde Mental relacionadas à exclusão
social dos pacientes e desresponsabilização da sociedade.
Neste contexto de interdisciplinaridade com uma visão de totalidade, o trabalho
desenvolvido, analisado a partir de uma perspectiva de práxis profissional, aparece para avançar a
uma condição igualitária do ser humano, a partir de uma organização coletiva. Neste estudo,
entende-se que as práticas profissionais contribuem nesta transformação e no exercício da cidadania
relativo a todos os sujeitos envolvidos: pacientes, familiares, profissionais e comunidade.
Os relatos acerca dos resultados demonstram um processo de "rupturas moleculares",
expressão fundamentada em Luiz (2011), que permite interpretar ações cotidianas (como as
relatadas neste artigo, advindas da práxis profissional num contexto de trabalho
interdisciplinar) como parte de um processo (de longo prazo) de mudanças sociais.
Mudanças essas que envolvem questões culturais, de elevação do senso comum ao
bom senso. Essas "rupturas moleculares" referem-se a ações concretas, que embora não
rompam de imediato com a estrutura social mais ampla, fazem parte de processos que
influenciam novos modos de pensar e de atuar na coletividade (LUIZ, 2011).
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REFERÊNCIAS
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