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TERRITÓRIO E POLÍTICA DE SAÚDE
Tânia Mara da Silva Backschat1
Líria Maria Bettiol Lanza2
RESUMO: Nas últimas décadas, as políticas sociais têm enfatizado as diretrizes da descentralização e
municipalização e se apropriado das discussões sobre o território. Apesar de ser um conceito central
para a geografia, a dimensão territorial tem ganhado destaque em áreas como a antropologia, a ciência
política e a sociologia. No campo da saúde ela também tem relevância na medida em que procura
aproximar-se dos lugares onde as pessoas vivem procurando conhecer os determinantes sociais no
processo de saúde e doença. O presente artigo objetiva discutir, nas dimensões teóricas e conceituais,
sobre o território- vivido e a sua apropriação pela política de saúde. O Sistema Único de Saúde
implantado em todo território nacional, está organizado sobre uma base territorial reorganizando todo
o modelo de atenção a saúde. Para isso, partiu-se de um estudo teórico acerca do conceito território e
como a política de saúde se apropria dessa categoria como estratégia para o agir em saúde. Sendo
assim, observou-se que apesar das diversas nomenclaturas utilizadas para as diferentes configurações
espaciais, aproximar e conhecer o território é fundamental para as equipes de saúde e gestores
municipais quando se trata da organização dos serviços e ações de saúde.
PALAVRAS-CHAVE: território; saúde; políticas sociais.
INTRODUÇÃO
Nos últimos anos o interesse pelo conceito território tem sido utilizado e
debatido em vários campos do conhecimento de maneira a responder a diferentes
necessidades interdisciplinares. Apesar de ser um conceito central para a geografia, a
dimensão territorial tem ganhado destaque em áreas como da antropologia, da ciência política
e da sociologia. Á luz do processo de descentralização e municipalização tem-se assistido à
descentralização das políticas sociais implicando em desafios e oportunidades de
atuação tanto para o Estado quanto para a sociedade civil e aproximando-se da categoria
território enquanto eixo norteador de suas ações. No campo da saúde, a dimensão
territorial também tem uma relevância na medida em que procura aproximar-se dos lugares
1 Assistente social da Prefeitura Municipal de Campo Mourão e professora da Faculdade Unicampo e
mestranda noPrograma dePós-graduação em Serviço Social e Política Social da Universidade Estadual de
2 Doutora em Serviço Social pela PUC de São Paulo. Professora do Departamento de Serviço Social e do
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Política Social da Universidade Estadual de Londrina.
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onde as pessoas vivem procurando conhecer os determinantes sociais no processo de saúde e
doença e organização dos serviços de saúde.
O Sistema Único de Saúde – SUS - implantado em todo território nacional, está
organizado sobre uma base territorial reorganizando todo o modelo de atenção à saúde nos
últimos anos. Apesar das diversas nomenclaturas utilizadas para as diferentes configurações
espaciais, aproximar e conhecer o território tem se tornado fundamental para as equipes de
saúde e gestores municipais quando se trata da organização dos serviços e ações de saúde.
Destacada a importância e relevância deste debate no contexto atual, neste trabalho
será abordado, em primeiro momento, como o processo de urbanização brasileira apresenta-se
acelerado e configurando uma nova realidade, com a interiorização do fenômeno urbano e
crescimento do número de pequenas e médias cidades, estimulado pela diretriz da
descentralização e municipalização.
Devido às dimensões continentais do território nacional, as cidades brasileiras
apresentam uma disparidade em seus indicadores sociais sendo urgente a aproximação do
território para a prestação de serviços públicos de qualidade em face da necessidade dos
gestores municipais em atender suas populações. Assim é importante aproximar e analisar as
principais discussões sobre o conceito território.
Em segundo momento, discute-se sobre o uso e as formas como o território tem sido
apropriado pela política de saúde brasileira, no contexto temporal a partir dos anos 1990.
Sendo um mediador entre os processos socioeconômicos, da organização dos serviços de
saúde e suporte de vida da população, as características do território deve ser levado em
consideração no processo de operacionalização da política de saúde.
OBJETIVOS
Discutir, nas dimensões teóricas e conceituais, sobre o território-vivido e a sua
apropriação pela política de saúde.
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Este artigo é resultado de um de levantamento bibliográfico a partir das discussões na
disciplina de Política de Saúde e das atividades do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Gestão
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de Política Social, ofertados pelo Programa de Pós-graduação em Serviço Social e Política
Social da Universidade Estadual de Londrina.
Diante da quantidade de discussões acerca do território enquanto conceito e uso,
selecionou-se para esse estudo autores dos campos da saúde coletiva, geografia, antropologia
e serviço social, tendo em vista que as contribuições nesses textos – livros, artigos e pesquisas
concluídas – permitiram o alcance do objetivo proposto nesse trabalho.
RESULTADOS
Ao longo das últimas décadas, os municípios brasileiros têm ganhado
centralidade no processo de elaboração de políticas sociais. A origem do federalismo
brasileiro é datada na Constituição Republicana de 1889 em que sua idéia inicial era de
“permitir maior descentralização e autonomia, em face do descontentamento das elites
regionais com a centralização monárquica” (MACHADO; VIANA, 2009, p. 29). As autoras
apontam que a história do federalismo no país está marcada por momentos de centralização e
descentralização e regimes autoritários e democráticos.
A partir da década de 1980, a associação entre democracia e descentralização de
políticas redesenha a estrutura do Estado em uma lógica de federação descentralizada, dando
ênfase ao papel dos municípios e levando-os a enfrentar o desafio de assumir as políticas
sociais e de promover o desenvolvimento local.
No sistema federativo, os estados são as unidades de maior hierarquia dentro da
organização político-administrativa do país e estão subdivididos em municípios. No estudo
sobre essa temática (BACELAR, 2009; SANTOS, 2012; MAIA, 2014), o município pode ser
conceituado como o espaço territorial político dentro de um estado ou unidade federativa,
composto de zona rural e zona urbanizada e administrado por uma prefeitura. A cidade é
compreendida como o espaço urbano delimitado por um perímetro urbano e onde se localiza a
prefeitura municipal. Para ser considerada cidade, é preciso ter um número mínimo de
habitantes e uma infraestrutura que atenda minimamente as condições dessa população.
Existem vários critérios de delimitação e classificação para várias classes e
tamanhos de cidades, devendo estas serem compreendidas na sua relação com a sociedade.
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Nos estudos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE3, sobre a distribuição e a
mobilidade da população em solo brasileiro, ao longo do século XX, o número de municípios
cresceu de 1.121, no ano 1900 para 5.507 municípios, no ano 2000. Atualmente, de acordo
com dados do último Censo em 2010, o Brasil possui 5.561 municípios, sendo a maioria das
cidades classificadas como pequenas e médias cidades (IBGE, 2010).
Com isso, observa-se uma expansão do número de cidades sendo as diretrizes da
descentralização e municipalização das políticas públicas grandes contribuintes desse
processo. De acordo com Santos (1979) o aumento do número de cidades pode ser explicado,
ainda, a partir do desenvolvimento e da modernização dos meios de produção, com a
concentração de instrumentos de trabalho e meios de produção mais modernos em certos
pontos do território e a formação de uma rede de transporte, o comercio exterior, a expansão
precoce das indústrias, o desenvolvimento das forças produtivas aliado ao consumo restrito a
uma parcela limitada da população implicando em diferentes estilos e qualidade de vida.
Dessa maneira, os lugares se diferenciam como resultado do arranjo espacial do modo
de produção. Tanto as regiões quanto os estados e municípios passam a agregar desigualdades
sociais significativas, expresso em diferentes indicadores de educação, trabalho, rendimento,
saúde, saneamento básico. Com isso, o desafio é considerar as diferentes realidades dos
municípios brasileiros para o processo de implantação das políticas sociais, que atualidade
vem se apropriando da dimensão territorial.
Essa dimensão territorial deve ultrapassar os limites físicos e de ocupação de uma
porção específica de terra, implicando em compreender o território numa perspectiva de
construção histórica, política e simbólica, permeada de relações sociais e de disputa de poder
(SANTOS, 1979; 2012; HAESBAERT, 2007; SAQUET, 2007). De acordo com esses autores,
na perspectiva histórica o espaço caracteriza-se enquanto uma construção social e
historicamente datada onde os objetos e as ações devem ser reunidos numa lógica simultânea
entre o passado (sua datação, sua realidade material, sua causação original) e a lógica da
atualidade (seu funcionamento e significado no presente).
3 O IBGE se constituir a principal fonte de dados estatísticos e demográficos no Brasil.
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Em consonância os autores supracitados, o conceito de território vinculado à
perspectiva política e de poder encontra-se numa dupla dimensão relacionada à dominação e à
apropriação. Na dimensão explícita a dominação ocorre vinculada ao valor de troca desse
território e na dimensão simbólica ocorre a apropriação por meio do seu valor de uso, ou seja,
carregada das marcadas do vivido. Não está relacionado apenas a função de ter, mas também
ao de ser (significação das pessoas). Todo território é ao mesmo tempo funcional e simbólico,
pois os componentes, funções e significação são elementos indissociáveis.
Neste sentido, o conceito território está vinculado ao modo como as pessoas utilizam a
terra, se organizam no espaço e como dão significado ao lugar. Daí a importância de
considerar a dinâmica, a heterogeneidade, as relações, as histórias e o movimento de uma
localidade específica no processo de elaboração de políticas sociais. Para relacionar-se com e
no território é necessário ter noção e domínio de sua complexidade uma vez que o território é
ocupado por uma população heterogênea, formada por atores sociais muitas vezes
antagônicos, mas que “obriga todo mundo a viver junto e, consequentemente, a discutir todos
os dias o seu futuro” (SCARCELLI, 2011, p. 65)
Com isso, o território se torna um terreno clássico de lutas políticas e urbanas.
Conhecer essa realidade e apreender os jogos de interesses e disputas, assim como os limites e
potencialidades permite que ele se torne ponto de partida e não de chegada no processo de
elaboração de políticas sociais. Tratar a dimensão territorial enquanto o espaço vivido,
reconhecer e valorizar as particularidades locais, os anseios e as necessidades da população
significa permitir a democratização das informações e o exercício da cidadania com
aprimoramento de políticas diferenciadas para questões específicas de suas populações.
O território e a política de saúde no Brasil
O conceito território tem sido utilizado por várias áreas do conhecimento e na saúde
sua aproximação inicial se deu por meio da epidemiologia (BARCELLOS, 2008). Apesar de
se constituir como uma categoria de análise essencial para esta disciplina, por muito tempo o
espaço foi compreendido como um processo separado do tempo e das pessoas, apenas como
um lugar geográfico com a predisposição a determinadas doenças.
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No final da década de 1970 esse quadro começou a mudar quando um grupo de
sanitaristas, engajados no processo de transformação social, fez duras críticas ao modelo
proposto e lançou um movimento que ficou conhecido como Epidemiologia Social4. Esse
movimento teve repercussões na América Latina e ganhou vários adeptos na saúde pública
brasileira, ajudando a difundir o conceito de espaço geográfico como um mediador das
diferenças dos problemas de saúde. A epidemiologia passa a ser cada vez mais solicitada a
associar os riscos e problemas de saúde dos indivíduos com objetivo de prevenir riscos e
evitar danos à saúde com base na elaboração de diagnósticos da situação de saúde e das
condições de vida da população em áreas delimitadas.
Assim, o lugar juntamente com as pessoas e o tempo passam a comporem as principais
dimensões de análise dos fenômenos epidemiológicos. As condições de saúde de uma
determinada população são diretamente afetadas pelas “condições domiciliares, como as
características da habitação; locais, como a condição de saneamento; regionais, como o clima;
e globais, como a estrutura econômica” (BARCELLOS, 2008, p. 46). O uso do território
enquanto categoria operacional se debruça sobre o cotidiano das pessoas e diagnosticam
a realidade de maneira particularizada. Contudo, não se pode perder de vista que os processos
particularizados e locais são reflexos de determinações gerais e globais.
Conforme apontam os artigos de diversos autores da obra de Barcellos (2008), as
inovações trazendo tônica do debate de território no âmbito da saúde está relacionada
requisições do movimento de Reforma Sanitária dentre as quais se destacam a adoção de um
novo conceito de saúde, entendido não mais como ausência de doença, mas resultante de
condicionantes e determinantes biológicos, ambientais, sociais, estilo e modo de vida e
trabalho; a adoção dos princípios da universalidade, compreendida como garantia de atenção à
saúde por parte do sistema a todo e qualquer cidadão, integralidade, ou seja, o atendimento do
cidadão com ações de promoção, prevenção, cura e reabilitação oferecidas pelo sistema de
saúde em diferentes níveis de atenção e equidade, isto é, a garantia de ações e serviços em
todos os níveis de acordo com a sua complexidade, sem privilégios e sem barreiras
4 Em seu artigo “O território na saúde: construindo referencias para analises em saúde e ambiente”, MONKEN
et al. (2008, p. 35) apresenta os principais lideres desse movimento. Mesmo não sendo da área da
epidemiologia, o geógrafo Milton Santos foi o maior responsável pela difusão do conceito de espaço
geográfico no Brasil.
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(BARCELLOS; MONKEN, 2014). Embora esses conceitos representem um avanço na
garantia de acesso à política de saúde ao cidadão, os princípios firmados pela atual política de
saúde enfrentam desafios na sua operacionalização como as desigualdades e iniqüidades
sociais em saúde, delineadas pelas políticas neoliberais e reestruturação produtiva do capital.
Importante salientar que, impulsionadas pelo Movimento da Reforma Sanitária, no
período da transição democrática (1985) as transformações no âmbito da política de saúde se
intensificam já sinalizando o uso da dimensão territorial. Há a criação do SUDS – Sistema
Unificado e Descentralizado de Saúde, em 1987. Logo no ano seguinte, 1988, há
profundas mudanças no marco regulatório nacional com a promulgação da Constituição
Federal de 1988 onde a saúde passa a ser considerada enquanto uma política pública do
Estado de direito a todo cidadão brasileiro e o sistema é unificado através do Sistema Único
de Saúde – SUS.
A partir da Lei nº 8.080 de 19 de setembro de 1990, o SUS é regulamentado com a
descentralização e gestão do sistema para os municípios. Nos anos seguintes, âmbito do
Ministério da Saúde, várias políticas são criadas tendo a tônica do processo de
municipalização e valorização da dimensão territorial. Dentre elas destacamos a criação do
Programa Saúde da Família (1994), Norma Operacional Básica – NOB (1996) e Norma
Operacional de Assistência em Saúde – NOAS (2001), Política Nacional de Atenção Básica e
Política Nacional de Promoção a Saúde (2006) e Núcleo de Apoio a Saúde da Família (2008)
e Decreto nº 7.508 (2011). Nesse sentido o território, lugar onde se materializa as políticas
sociais, se transforma em uma estratégia de ação para o desenvolvimento de ações e serviços
de saúde com o objetivo de promoção, prevenção e recuperação da saúde.
O SUS implantado em todo o país está organizado sobre uma base territorial onde os
serviços e as ações em saúde devem ser operacionalizadas a partir da territorialização. De
acordo com Gondim et al. (2008) a territorialização em saúde é compreendida como o
processo de diagnóstico, intervenção e produção de informação em saúde e se coloca como
uma metodologia capaz de operar mudanças no modelo assistencial e nas práticas sanitárias
vigentes segundo a lógica das relações entre ambiente, condições de vida, situação de saúde e
acesso as ações e serviços de saúde.
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O processo de elaboração de diagnósticos territoriais permite a obtenção de informações e
dados. Seguidos da sistematização e interpretação à luz de um referencial teórico, conduzem e
facilitam o processo de tomada de decisões e definição de estratégias de ação por meio da
interação território e profissional de saúde. Este processo de territorialização se configura
como uma das bases operacionais dos sistemas de vigilância em saúde e da atenção básica.
Configura-se como um princípio organizativo assistencial mais importante no sistema de saúde,
visto que “permite espacializar e analisar os principais elementos e relações existentes em uma
população, os quais determinam em maior ou menor escala seu gradiente de qualidade de vida”
(GONDIM et al., 2008, p.250).
Dentro da dimensão territorial, a política de saúde assenta-se em diretrizes
organizacionais que são compreendidas pela descentralização da gestão do sistema, a
regionalização e hierarquização dos serviços, a participação da comunidade e o caráter
complementar do setor privado. Na política de saúde, o principio da municipalização é
transferir para as cidades a responsabilidade e os recursos necessários para que estes exerçam
as funções de coordenação, negociação, planejamento, acompanhamento, controle,
avaliação e auditoria da saúde local, controlando seus recursos financeiros, as ações e os
serviços de saúde prestados em seu território.
As diretrizes organizacionais são operacionalizadas por meio das normas operacionais.
A Norma Operacional de Assistência à Saúde – NOAS - (2001) e Decreto nº 7.508/2011
prevêem a organização do SUS em uma rede articulada e que integre serviços de acordo com
a capacidade de diferentes municípios. Quando da impossibilidade do município de oferecer
todos os serviços de saúde a as legislações acima citadas asseguram o atendimento
intermunicipal e interestadual. Isso porque, nem todos os municípios reúnem as condições
exigidas para a oferta de todos os serviços de saúde, tanto do ponto de vista de infra-estrutura
de oferta de serviços quanto à baixa arrecadação municipal e capacidade de gerenciamento
limitada. Portanto, não conseguem exercer a autonomia federativa reconhecida na
Constituição. Assim aqueles municípios que se encontram melhor aparelhados prestam
melhores serviços à população local, mas acabam também por absorver as demandas das
populações vizinhas.
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Nessa perspectiva, a regionalização efetiva-se como proposta que articula uma rede
de serviços de saúde de vários municípios, localizada em área geográfica delimitada e
com uma população definida para atender às necessidades de saúde da população, sendo que o
município com maior complexidade de serviços deve atender a vários municípios com menor
complexidade de serviços.
Há ainda a figura dos consórcios, que podem firmar alianças estratégicas
representativas dos interesses regionais comuns, com o objetivo viabilizarem a gestão pública
nos espaços metropolitanos e microrregionais, ampliando a capacidade de articulação dos
municípios com as demais esferas de governo. Contudo, mesmo com a existência de
consórcios de saúde, percebe-se, empiricamente, a dificuldade de organização dos serviços de
saúde em regiões formada basicamente por pequenas cidades, sendo que nem todas as
necessidades da população relativas à saúde conseguem ser solucionada no território de
abrangência dos consórcios.
Sobre a delimitação da área de abrangência, os serviços de saúde contam com uma
delimitação espacial utilizado para a gestão dos serviços e controle de doenças. A abrangência
de um serviço de saúde deve ser coerente com os níveis de atenção, a saber, primário,
secundário e terciário.
A atenção primária em saúde é o centro da rede de atenção, estruturante dos demais
níveis de atenção, sendo compreendida pela Unidade Básica de Saúde/equipe da Estratégia
Saúde da Família e constitui-se como o ponto mais próximo do domicilio das pessoas. Nela
devem-se organizar os serviços de promoção e prevenção dos cuidados, individual e coletiva,
em saúde. É ainda sua responsabilidade atender situações de saúde de baixa complexidade,
normalmente nas áreas de ginecologia, pediatria e clínica geral e na área de odontologia.
Através das Unidades Básicas, situações mais complexas e que necessitam de
intervenção especializada são referenciadas para o nível de atenção secundário, compreendido
pelas diferentes especialidades médicas e serviços de apoio e diagnóstico, como
exames patológicos, exames de imagem e outros exames de apoio terapêutico. Os
atendimentos que requerem especialização de alta complexidade, como terapia renal
substitutiva, assim como as situações de urgência e emergência são referenciados para os
hospitais e pronto socorro, que compreende a atenção terciária do sistema de saúde. No
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segundo e terceiro nível de atenção os contornos territoriais não são visíveis, sendo definidos
geograficamente com base na necessidade de atenção da população e podem estar localizados
em um município, em parte de um município ou vários municípios.
Na tentativa de organizar a rede de serviços e ações em saúde, as divisões territoriais
utilizadas pelo SUS são ainda caracterizadas por uma variedade de nomenclaturas e divisões
territoriais: municípios, distritos sanitário, área, micro-áreas e domicílio. Para Barcellos
(2008, p. 47) o município representa o nível inferior no qual é exercido o poder de decisão
sobre a política de saúde no processo de descentralização.
O distrito sanitário é adequado para municípios de grande porte, para aproximar a
administração pública da população e seu objetivo é a delimitação de uma base territorial
definida geograficamente, contendo pontos de atenção a saúde adequada às características do
perfil epidemiológico da população adscrita.
Para Gondim et al. (2008), no processo de municipalização se identificam diferentes
territórios dentre os quais o território área refere-se a uma área definida por critérios não só
geográficos, mas ainda levando em consideração os aspectos econômicos, sociais e
culturais. Corresponde a área de atuação de uma a equipe de saúde e seu objetivo é planejar as
ações, organizar os serviços e viabilizar os recursos para o atendimento das necessidades de
saúde dos cidadãos/famílias residentes no território, com vistas à melhoria dos indicadores e
condições de saúde da comunidade.
O território micro-área é uma subdivisão do território área sob a
responsabilidade da equipe de saúde e atualmente é usado na Saúde da Família. Normalmente é
assimétrico, delimitado segundo a concentração de grupos populacionais mais ou menos
homogêneos de acordo com as condições objetivas de existência. Nele se localizam os domicílios,
ou territórios-moradia, que é o local, espaço da vida, que se destina a servir de habitação a uma ou
mais pessoa, sendo o lócus para o desencadeamento de ações de intervenção.
A política de saúde considerando a dimensão territorial também tem tido implicações
no processo de trabalho, através de mapeamentos dos equipamentos urbanos e condições
socioambientais, esquadrinhamento do espaço, definição de áreas e micro-áreas de
abrangência identificações das vulnerabilidades, ocorrência e prevalência de doenças
crônicas e agudas. Um ator importante dentro deste processo de trabalho tem sido os agentes
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comunitários, tanto de saúde como de endemias, que pela particularidade de suas funções são
os profissionais que cotidianamente visitam os domicílios coletando informações e
averiguando as condições de saúde da população.
Contudo, somente pensar a divisão do território com recortes aleatórios ou baseados
na soma de domicílios, em agrupamento de quarteirões ou no estabelecimento de áreas de
abrangência segundo características geográficas não corresponde ao processo de
territorialização e acaba por não atender os princípios preconizados pelo SUS. A divisão
territorial deve ser definida mediante critérios culturais, políticos e sociais levando em
consideração o território vivido pela população.
O território é expressão de uma determinada área, população e uma instância de poder,
quer seja ele público, privado, governamental ou não governamental. Enquanto palco de
conflitos e de disputa, na atual conjuntura dois projetos políticos institucionais requisitam
interesses divergentes. O primeiro, o projeto neoliberal possui como premissa a
desresponsabilização do Estado pela saúde e a defesa de um modelo mercantil. Em
contrapartida, o Projeto da Reforma Sanitária requisita ações e serviços convergentes aos
atuais princípios do SUS.
Como bem demonstram os estudos de Barcellos (2008), além de ter a sua importância
na organização política, administrativa, econômica e gerencial, o território tem a sua
importância para o agir em saúde pois, como produto social, nele se verifica a interação entre
saúde e população. O território quando usado na compreensão do espaço vivido das
populações permite subsídios para as intervenções propostas pela política de saúde.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O artigo buscou destacar as aproximações teórico-conceituais entre a concepção de
território-vivido e a política de saúde. Para além de uma delimitação espacial de terra ou
referência a limites de solo, o território implica em relações sociais e que, como sabemos, na
atual sociedade capitalista é permeada de interesses contraditórios. Dentre esses interesses,
destacamos a prevalência das políticas econômicas sobre as políticas sociais onde os
interesses do mercado financeiro muitas vezes se sobrepõem as políticas sociais implicando
em riscos a saúde da população.
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As atuais transformações socioeconômicas impõem a necessidade do olhar sob o
processo de urbanização brasileira. Mesmo com atual configuração da rede urbana, como
crescente processo de interiorização do fenômeno urbano, grandes disparidades e
desigualdades sociais ainda são encontradas nas diferentes regiões e municípios brasileiros
em seus indicadores sociais. Inclusive, nas próprias cidades e bairros é possível
identificar desigualdades sociais, onde territórios modernos e luxuosos convivem ao lado de
territórios marcados pela extrema pobreza. Assim podemos afirmar que o atual espaço
urbano reflete uma sociedade desigual e classista, pois as condições de saúde de uma
determinada população são diretamente afetadas pelas condições sociais, econômicas,
domiciliares, locais e ambientais ampliando o conceito de saúde como resultado de fatores
biológicos, estilo e modo de vida e trabalho.
Em se tratando da política social de saúde, a dimensão territorial tem estruturado e
sido elemento fundamental para o Sistema Único de Saúde, implicando em alterações tanto na
organização da rede de serviços, quanto no modelo de assistência e no processo de trabalho
em saúde (BARCELLOS, 2008; GONDIM et al. 2008; BARCELLOS; MONKEN, 2014).
Contudo, as equipes de saúde e gestores só podem considerar os territórios como tal quando
pensados junto com a população, a partir do seu uso. Afinal, território é poder, não somente
poder do Estado, mas também da sociedade civil. Dessa maneira, a aproximação do território
para o conhecimento das condições objetivas de vida da população pode contribuir com a
fomentação de estratégias para o agir em saúde que realmente venham de encontro com as
necessidades da população.
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