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1 Revista Amauta e a questão indígena: identidade e nação em perspectiva Henrique G. Silva 1 Resumo: O objetivo do presente trabalho é analisar as diversas contribuições textuais que preenchem as páginas da revista Amauta, publicação peruana que circulou entre os anos de 1926 e 1930. Ao identificar a importância do papel da revista no cenário intelectual latino- americano, nos deteremos às proposições, em forma de artigos, que abordem a questão indígena e a importância deste componente étnico para a formulação de projetos de identidade nacional e/ou continental. Para tal, daremos especial atenção às formulações de três dos principais indigenistas peruanos da década de 1920 que publicam na revista, José Carlos Mariátegui, Luis E. Valcárcel e José Uriel García. Palavras-chave: Amauta. Indigenismo. Intelectuais. Identidade. Revistas. Abstract: The objective of this work is to analyze the many textual contribuitions that fill the pages of the Amauta magazine, peruvian publication that circulated between the years 1926- 1930. By identifying the importance of the magazine’s role in the latin-americanintelectual scene, we will focus on the propositions, in the shape of articles, that approach the indigenous question and this etnical component’s significance to the formulation of national and/or continental identity projects. To this end, we will give special attention to the formulations of the main Peruvian indigenous 1920s who publish in the magazine, José Carlos Mariátegui, Luis E. Valcárcel e José Uriel García. Keywords: Amauta. Indigenism. Intellectuals. Identity. Magazines. A revista Amauta, publicada pela primeira vez em 1926, teve, em seus quase 5 anos de existência, 32 edições que, entre fechamentos arbitrários e problemas de manutenção, conseguiu lograr seu lugar na história da América Latina como uma das principais publicações de cunho político, artístico e cultural. Com o subtítulo de Doctrina Arte Literatura Polémica, a revista contou com a contribuição de autores de diversas partes do mundo, em especial do continente americano, e foi espaço para a discussão de uma série de temas de urgência no ambiente intelectual do período. 1 Mestrando do Curso de História Social no Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHIS-UFRJ), e-mail: [email protected].

Revista Amauta e a questão indígena: identidade e nação em … · 2016-02-28 · 1926 e 1930. Ao identificar a importância do papel da revista no cenário intelectual latino-americano,

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Revista Amauta e a questão indígena: identidade e nação em perspectiva

Henrique G. Silva1

Resumo: O objetivo do presente trabalho é analisar as diversas contribuições textuais que

preenchem as páginas da revista Amauta, publicação peruana que circulou entre os anos de

1926 e 1930. Ao identificar a importância do papel da revista no cenário intelectual latino-

americano, nos deteremos às proposições, em forma de artigos, que abordem a questão

indígena e a importância deste componente étnico para a formulação de projetos de identidade

nacional e/ou continental. Para tal, daremos especial atenção às formulações de três dos

principais indigenistas peruanos da década de 1920 que publicam na revista, José Carlos

Mariátegui, Luis E. Valcárcel e José Uriel García.

Palavras-chave: Amauta. Indigenismo. Intelectuais. Identidade. Revistas.

Abstract: The objective of this work is to analyze the many textual contribuitions that fill the

pages of the Amauta magazine, peruvian publication that circulated between the years 1926-

1930. By identifying the importance of the magazine’s role in the latin-americanintelectual

scene, we will focus on the propositions, in the shape of articles, that approach the indigenous

question and this etnical component’s significance to the formulation of national and/or

continental identity projects. To this end, we will give special attention to the formulations of

the main Peruvian indigenous 1920s who publish in the magazine, José Carlos Mariátegui,

Luis E. Valcárcel e José Uriel García.

Keywords: Amauta. Indigenism. Intellectuals. Identity. Magazines.

A revista Amauta, publicada pela primeira vez em 1926, teve, em seus quase 5 anos de

existência, 32 edições que, entre fechamentos arbitrários e problemas de manutenção,

conseguiu lograr seu lugar na história da América Latina como uma das principais

publicações de cunho político, artístico e cultural. Com o subtítulo de Doctrina Arte

Literatura Polémica, a revista contou com a contribuição de autores de diversas partes do

mundo, em especial do continente americano, e foi espaço para a discussão de uma série de

temas de urgência no ambiente intelectual do período.

1 Mestrando do Curso de História Social no Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHIS-UFRJ), e-mail: [email protected].

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No presente trabalho, nos deteremos sobre a publicação com o intuito de compreendê-

la como um importante veículo da intelectualidade latino-americana, em especial do país

peruano, para a formação de debates que contribuam para a formulação de projetos nacionais,

tema recorrente na intelectualidade do continente no período. Neste sentido, entendemos que

o componente étnico indígena, que representa uma grande parcela da população peruana,

passou a ser alvo de muitos destes intelectuais a fim de problematizar a noção de identidade

nacional, que por muito tempo relegava a segundo plano este importante contingente da

sociedade peruana. Portanto, o objetivo principal deste trabalho é detectar, nas páginas de

Amauta, a formulação de projetos nacionais que identifiquem no indígena uma matriz de

identidade peruana, destacando-se as diversas formas de apropriação de tal componente e o

espaço plural da revista para isto.

O surgimento de Amauta está diretamente vinculado à figura de seu criador e diretor,

José Carlos Mariátegui. Um dos mais importantes intelectuais da história peruana, Mariátegui

em sua curta trajetória de vida – morreu com apenas 35 anos – destinou boa parte de sua

produção à interpretação da realidade peruana e latino-americana a partir de um viés marxista

bastante original. Seu esforço de atuação não esteve limitado às suas contribuições escritas,

mas também a uma engajada vida militante, sendo protagonista em importantes momentos da

história política peruana, como na fundação do Partido Socialista Peruano e da Confederación

General de losTrabajadores Peruanos. O autor teve intensa participação no círculo letrado

peruano e latino-americano, mesmo tendo uma formação autodidata, com presença marcante

em ambientes como as Universidades Populares González Prada, na organização de

periódicos como Nuestra Época e Claridad e como um grande disseminador das novas ideias

com a fundação doEditorial Librería-Imprenta Minerva, por onde foram publicados seus dois

livros, La EscenaContemporánea (1925) e 7 Ensayos de interpretación de larealidad peruana

(1928), e outros de diversos autores do continente.

A revista Amauta, contudo, foi o espaço em que Mariátegui pôde não só apresentar

suas elaborações teóricas para a intepretação da realidade peruana, mas também, em grande

medida por sua eficiente práxis editorial, contribuir para um debate mais amplo sobre os

diversos problemas nacionais e continentais. Ao estabelecer uma importante rede de contato

com intelectuais de diversas partes do continente, Mariátegui conseguiu traduzir em seu

projeto a formação de um movimento diverso de renovação das ideias e ações para a América

Latina. De acordo com Alberto Tauro, Mariátegui

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articulou seu esforço “com de outros intelectuais e artistas” que pensavam de modo parecido; não formavam até então um grupo, mas suas coincidências geracionais autorizavam sustentar que representavam um movimento; e legitimamente julgaram que a edição de Amauta os permitiria conhecer-se melhor, concordar seus pontos de vista, fortalecer seus vínculos de solidariedade e atrair “outros bons elementos”.2

Amauta apresentou enorme diversidade de publicações, entre autores peruanos,

americanos e de outras partes do mundo. Em suas 32 edições publicadas, foram publicados

textos e artigos de diversos autores renomados, como Haya de la Torre, Dora Mayer de Zulen,

Luis Valcárcel, Uriel Garcia, José Carlos Mariátegui, José Vasconcelos, Jorge Luis Borges,

José Ingenieros,Karl Marx, Vladmir Lênin, Sigmund Freud, George Sorel, José Ortega y

Gasset e muitos outros. Este espaço passou a ser um dos mais significativos locais de

publicação da intelectualidade latino-americana do período, apresentando, em suas páginas e

edições, importantes contribuições e debates diretamente relacionados aos muitos assuntos

que permeavam os contextos linguísticos formados e transformados na importante década de

1920. Concordamos com Oscar Terán, portanto, ao entender que dada a diversidade de

autores

os números de Amauta compuseram, mês a mês, um espaço povoado por tensões provenientes tanto por se tratar de um corpo de ideias in fieri quanto pela pluralidade de vozes que a construíram, ainda que sempre sob a orientação mais intelectual do que política de Mariátegui.3

Composta por diversos artigos de arte, literatura, poesia, política, economia, crítica e

teoria literária e de artes, além de reproduções de diversas pinturas, fotografias e gravuras, a

revista Amauta foi um espaço de grande pluralidade de ideias e formas. Era possível localizar

nas páginas da revista, além de artigos e reproduções de diversos autores, uma série de seções

dedicadas exclusivamente a certos assuntos específicos, de acordo com a preocupação do

comitê editorial em publicá-los. Seções como Libros y Revistas – se dedicava a divulgar

informações sobre importantes obras do período, a partir de comentários e resenhas –, Labor

2“articuló su esfuerzo ‘con el de otros intelectuales y artistas’ que pensaban de modo parecido; no formaban hasta entonces un grupo, pero sus coincidencias generacionales autorizaban a sostener que representaban un movimiento; y legítimamente jusgaron que la edición de Amauta les permitiría conocerse mejor, concordar sus puntos de vista, fortalecer sus vínculos de solidariedad, y atraer ‘a otros buenos elementos’. [Tradução nossa]”. In: TAURO, Alberto. Noticia de “Amauta”. Revista Amauta: revista mensual de Doctrina, Literatura, Arte, Polemica. Edição em Facsímile; Lima: Empresa Editora Amauta S/A., 1976. p.12. 3“los números de Amauta compusieron mes a mes un espacio poblado por tensiones provenientes tanto de tratarse de un cuerpo de ideas in fieri cuanto de las voces plurales que la construyeron, aun cuando siempre bajo la guía más intelectual que política de Mariátegui. [Tradução nossa]”. In: TERÁN, Oscar. Amauta: vanguarda y revolución. In: ALTAMIRANO, Carlos (Dir.). Historia de los intelectuales en America Latina (volumen II). Buenos Aires: Katz, 2010. pp.178-179.

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– de caráter informativo, tinha como principal objetivo contribuir para a organização do

trabalhador urbano e rural – eEl procesodelgamonalismo– destinada a denunciar crimes e

abusos contra as populações camponeses, indígenas, submetidas aos desmandos dos

gamonales4 no interior – que, apesar da periodicidade irregular, foram importantes para a

definição do papel da revista.

Entendemos, portanto, que a importância das revistas para uma compreensão da

história intelectual latino-americana não pode ser relegada a segundo plano. Desde princípios

do século XX a produção letrada latino-americana vivenciou processo de plena expansão,

com a profissionalização do jornalismo e o crescimento das universidades. Somente no

intervalo de 1918-1930, como ressaltou Terán,5as publicações de todas as ordens triplicaram

no continente, incluindo-se periódicos e revistas. De acordo com Mabel Moraña, a

importância das revistas para o debate político e cultural na América Latina está relacionado

com uma tradição continental de dedicar às revistas e periódicos a função principal na

elaboração “das culturas nacionais e transnacionais, e no assentamento das bases ideológicas e

culturais que conformam a noção de cidadania e, mais amplamente, regulam o funcionamento

da sociedade civil”.6

Portanto, ao analisar as revistas como espaços de interação e debates entre diversos

autores, nos aproximamos das elaborações propostas por J. G. A. Pocock (2003) e Quentin

Skinner (1988) no que tange à noção de “contextualismo linguístico”.7 Em apresentação

resumida, a fim de compreender as diversas enunciações, ou speech acts, apresentadas por

autores, se faz necessária a análise do contexto linguístico em que os autores estão inseridos

para o entendimento não só de suas intenções, mas em que debates estes buscam se inserir e

transformar. Para Pocock “um autor é tanto o expropriador, tomando a linguagem de outros e

usando-a para seus próprios fins, quanto o inovador que atua sobre a linguagem de maneira a

induzir momentâneas ou duradouras mudanças na forma como ela é usada”.8 Parte desta

fundamentação teórica está consubstanciada no conceito de lance, proposto pelo autor para

4 “Típico representante da oligarquia rural, proprietário fundiário que exercia poder senhorial sobre os indígenas que habitavam suas terras” In: DOMINGOS, Maria Helena. A política em Amauta (1926-1930). Dissertação (Mestrado em História Social) – Rio de Janeiro: UFRJ/IH, 2012. p.36. 5TERÁN, Oscar. op. cit., p.169. 6 “de las culturas nacionales y transnacionales, y en el asentamiento de las bases ideológicas y culturales que conforman la noción de ciudadanía y, más ampliamente, regulan el funcionamiento de la sociedad civil. [Tradução nossa]”. MORAÑA, Mabel. Revistas culturales y mediación letrada en América Latina. Outra Travessia, nº 40/1, Ilha de Santa Catarina, 2° semestre de 2003. p.67. 7 POCOCK, J. G. A. Linguagens do Ideário Político. São Paulo: Edusp. 2003; SKINNER, Quentin. Meaning and Understanding in the History of Ideas. In: TULLY, James (ed.) Meaning and Context. Quentin Skinner and his critics. Princeton University Press, 1988. 8POCOCK, J. G. A. op. cit., p.29.

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significar o ato de fala que busca inovar o contexto linguístico em que se insere. Para além

disso, Pocock ainda assinala a importância de mapear as “comunidades argumentativas” às

quais os autores pertenciam, sendo as revistas, em especial a Amauta, como lugar para

formação de contatos e redes de intelectuais.9

A escolha do nome da revista contribui para a compreensão de um dos principais

objetivos da publicação. Amauta, que em quíchua significa mestre/sábio, enfatizava a

aproximação com a cultura local, indígena, e associava o projeto editorial com um dos

objetivos de seu criador: promover uma interpretação e elaboração de um projeto nacional que

resgatasse a figura do autóctone como pilar para a identidade do país. Mariátegui ainda

esclarece a opção pelo título na apresentação da revista: “O título não traduz somente nossa

adesão à raça, não reflete somente nossa homenagem ao Incaísmo. Especificamente, a palavra

‘Amauta’ adquire com esta revista uma nova acepção. Nós vamos a criar outra vez”.10

A formação da nação peruana, assim como as demais nações latino-americanas, foi

marcada por uma intensa disputa entre projetos de identidade que buscaram diferentes

referenciais para a constituição de uma ideia de comunidade. Desde interpretações como a de

Clemente Palma, que negavam a contribuição indígena para uma identificação coletiva, até as

proposições de consagrados intelectuais peruanos da Generacióndel 900, como Victor Andrés

Belaúnde, que visavam a inserção dos povos de origem nativa em um processo de integração

com os referenciais hispânicos de sociedade, o indígena sempre foi visto como uma parte

importante para a compreensão de um dado projeto de identidade nacional, mesmo que para

negá-lo. O indigenismo enquanto corrente surge, justamente, buscando rediscutir a

necessidade de identificar a importância deste grande extrato da população peruana e de

outros países latino-americanos. Em uma definição concisa de indigenismo, proposta por

Henri Favre, o conceito pode ser entendido como “uma corrente de opinião favorável aos

índios. Se manifesta em posicionamentos que tendem a proteger a população indígena, a

defendê-la das injustiças de que é vítima e a fazer valer as qualidades ou atributos que se

reconhece”. 11

Portanto, como se pode depreender da definição explicitada, o indigenismo não pode

ser entendido enquanto um movimento único e com propostas definidas e delimitadas. Várias 9Ibidem, p.38. 10“El título no traduce sino nuestra adhesión a la Raza, no refleja sino nuestro homenaje al Incaísmo. Pero específicamente la palabra ‘Amauta’ adquiere con esta revista una nueva acepción. La vamos a crearotra vez. [Traduçao nossa]”. MARIÁTEGUI, José Carlos. Presentación. In: Amauta, nº1, 1926. p.1. 11“una corriente de opinión favorable a los indios. Se manifiesta en tomas de posición que tienden a proteger a la población indígena, a defenderla de las injusticias de las que es víctima y a hacer valer las cualidades o atributos que se le reconocen. [Tradução nossa]”. In: FAVRE, Henri. El indigenismo. México D. F.: Fondo de cultura económica, 1998. p.7.

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foram as correntes indigenistas na história do continente, e em especial peruana, para

compreender e identificar a figura do indígena como um componente social e cultural a ser

valorizado. Essas diversas interpretações podem ser entendidas pela própria natureza diversa

da ideia. A defesa de intelectuais da Generacióndel 900 promovendo uma identidade

“integral” peruana, ressaltando as heranças culturais indígenas e europeias – em especial a

última –, movimentos organizados de denúncia e combate em favor dos nativos, como a

Asociación Pro-Indígena de Dora Mayer e Pedro Zulen, a frente política e cultural cusquenha

do Grupo Resurgimiento, e até um indigenismo de Estado promovido pela Patria Nueva de

Augusto Leguía,12 são alguns dos muitos exemplos da viva tradição indigenista peruana.

O indigenismo, portanto, foi um dos principais temas correntes na intelectualidade

peruana e, portanto, esteve amplamente representado nas páginas da revista Amauta. Muitos

foram os artigos e autores considerados indigenistas que publicaram na revista contribuindo

para o debate estabelecido. Nomes como Dora Mayer de Zulen, Julio C. Tello, César Vallejo,

GamalielChurata, Jorge Basadre, Alejandro Peralta e José Sabogal, por exemplo, figuraram

nas páginas da publicação. Contudo, no presente trabalho, nos deteremos sobre as proposições

de três referências do debate indigenista peruano da década de 1920, autores que emitiram

importantes lances, ressignificando conceitos e estruturas de pensamento e que, portanto,

lograram seus lugares na história intelectual do continente americano: Luis Valcárcel, Uriel

García e José Carlos Mariátegui.

Luis Eduardo ValcárcelVizcarra foi um historiador e antropólogo peruano que

contribuiu, em grande medida, para a propagação dos estudos indigenistas em seu país. O

intelectual, que destinou grande parte de sua obra para a compreensão da história do Peru pré-

colombiano, teve grande importância para o indigenismocusquenho, e peruano, na década de

1920. Em seus muitos trabalhos publicados na revista Amauta13, que transitam entre contos,

ensaios, discursos, resenhas e outros, o autor buscou se posicionar e interferir no debate

travado no período com suas teses indigenistas consideradas “radicais” por alguns

contemporâneos.

12 Ainda que fossem elaboradas leis para a defesa das comunidades indígenas frente o controle do gamonalismo, como a “Seção de Assuntos Indígenas”, a não preocupação do Estado em garantir o cumprimento destas leis perpetuou a dominação e a superexploração do camponês, mantendo-o relegado de qualquer plano de valorização real do indígena. 13 Dentre os diversos artigos publicados por Valcárcel em Amauta, nos deteremos em especial sobre as considerações apresentadas nos seguintes artigos: Tempestadenlos Andes (nº1), Detrás de lasmontañas (nº2), El problema indígena (nº7), Sumario de Tawantinsuyo (nº13) e Sobre Peruanidad(nº26).

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Um eixo que baliza as análises e proposições do autor foi a exaltação do período

incaico na história do continente sul-americano. O inkaísmo14 se centrou sobre uma

valorização da história do Império Inca, suas práticas e formas de vida, e, em especial, sua

herança cultural viva nas comunidades andinas no presente do autor.Os aspectos da

compreensão de Valcárcel sobre o papel dos indígenas na constituição de uma identidade

nacional peruana sustentam uma de suas mais polêmicas defesas no debate intelectual do

período, que é a noção de continuidade em relação ao passado incaico e o presente do novo

índio peruano. De acordo com o autor, existem diversos aspectos das civilizações pré-

colombianas que perduram até a contemporaneidade, dando as bases para a formação de uma

nova consciência nacional indígena. O milenarismo da “raça” indígena traria componentes da

força e espírito incaicos para os índios dos dias atuais, mesmo depois de séculos de controle

estrangeiro. No artigo Tempestadenlos Andes, publicado na edição inaugural de Amauta, o

autor faz pontuações importantes neste sentido, com analogias poéticas:

A árvore étnica vive de suas raízes, ainda que seus ramos se enrolem no emaranhado do bosque, ainda que sua copa se vista de exóticas flores. A raça perdura. [e conclui em seguida:] Pode ser hoje um império e amanhã um rebanho de escravos. Não importa. A raça permanece idêntica a si mesma. [...] O índio vestido como europeu, falando inglês, pensando como ocidental, não perde seu espírito. 15

Ainda que o próprio autor negue uma apropriação estritamente biológica do conceito

de raça,16 é possível detectar um discurso que em muito se aproxima das teorias raciais de fins

do século XIX e princípios do XX, como é apontado por muitos críticos e analistas. No artigo

Sobre Peruanidad, por exemplo, é frequente o recurso ao sangre ou espiritu como heranças

dos antepassados que ainda viveriam nos indígenas de seu tempo:

Muitos duvidam que o índio de hoje tem relação com o inkario ou tawantisuyu; passaram quatro séculos, a cultura importada, mudanças e transtornos infinitos [...]. No entanto, quem

14 De acordo com Patrícia Funes, o termo foi criado pelo próprio autor a fim de dar as bases de uma nova interpretação do período incaico e suas heranças para o indígena atual.Cf. FUNES, Patricia. Salvar la Nación: Intelectuales, Cultura y Política en Los Años Veinte Latinoamericanos. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2006. p.81. 15“El arbol étnico vive de sus raíces, aunque sus ramas se enreden en la maraña del bosque, aunque su copa se vista de exóticas flores. La Raza perdura. [...] Puede ser hoy um imperio y mañana um hato de esclavos. No importa. La raza permanece idéntica a si misma. [...] El indio vestido a la europea, hablando inglés, pensando a la occidental, no pierde su espíritu. [Tradução nossa]”. VALCÁRCEL, Luis. Tempestad en los Andes. In: Amauta, nº1, 1926. p.2. 16 “No son indios todos los etnicamente tales; y pueden llamarse con ese nombre muchos en cuya sangre no se ha mesclado una gota de la que circuló por las venas de Manko. El ‘indianismo’ ha pasado ya del plano puramente racial, biológico, para adquirir todo su valor en el mundo psíquico. El influjo de lo indio es tan poderoso en el Perú que de él no se libran cuatro quintos de la población total”. VALCÁRCEL, Luis. Sobre Peruanidad. In: Amauta, nº 26, 1929. p.100.

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nega ou duvida ainda não tomou conta da enorme persistência das raças antigas. [...] Forte unidade e vitalidade de estilo tem o Peru índio; seus usos e costumes imemoriais apenas variaram. O europeu só destruiu a armação política, todo o transferível da civilização incaica, mas não pôde arrancar dos indígenas peruanos sua “alma de cultura”, a raiz biológica de sua existência como povo.17

As bases estabelecidas com tais afirmações, identificando uma continuidade inata ao

indígena desde tempos imperiais, foram entendidas pelo autor como os alicerces para a

transformação em seu país. Afirma Valcárcel que a identidade incaica dos indígenas seria o

impulso para uma revolução social que colocaria as comunidades andinas no protagonismo

político do Peru e dos demais países indo-americanos.Portanto, muitos de seus textos tiveram

um forte teor de prenúncio de uma transformação que estaria por vir. No artigo El problema

indígena, publicado na sétima edição de Amauta, apresentou um característico teor de

advertência sobre o levante das minorias oprimidas no cenário político peruano: “Acima de

tudo, os novos índios readquiriram categoricamente sua qualidade de seres humanos;

proclamaram seus direitos; retomaram o fio solto de sua história para restabelecer as

principais instituições do inkario”.18

Partindo dos pressupostos já abordados, a tese da teoria de Valcárcel estava centrada

em dois importantes pontos: um é o de que existe uma herança inata no indígena atual,

cultural e biológica, que remonta a um desejo de retorno ao período incaico; o outro ponto é

de que a identidade nacional peruana não seria peruana se não fosse indígena e, mais do que

isso, se não fosse incaica, dado o expressivo contingente populacional de origem nativa no

Peru. E esta tomada de consciência se daria a partir de uma revolução social indígena,

protagonizada pelos próprios nativos. Valcárcel, portanto, criticou as correntes indigenistas

que exerciam atividades filantrópicas ou que considerassem o indígena um “menor de idade”,

como era frequentemente referido: “Conclua de uma vez por todas a literatura lacrimosa dos

indigenistas. O camponês dos Andes despreza as doces palavras de consolo”.19 Desta forma, o

intelectual cusquenho busca referências em uma intelectualidade que, mesmo não indígena,

17“Se ha dudado por muchos que el indio de hoy apenas se tiene relación con el inkano o tawantinsuyu; pasaron cuatro siglos, la cultura importada, cambios y transtornos infinitos [...]. Pero quienes así niegan o dudan no han tomado en cuenta la enorme persistencia de las razas viejas. [...] Fuerte unidad y vitalidad de estilo tiene el Perú indio; sus usos y costumbres inmemoriales apenas si han variado. El europeo sólo destruyó la armazón política, todo lo transferible de la civilización incaica, pero no ha podido arrancar a los peruindianos su ‘alma de cultura’, la raíz biológica de su existencia como pueblo. [Tradução nossa]”. Idem. 18“Ante todo, los nuevos indios readquirirán rotundamente su calidad de seres humanos; proclamarán sus derechos; anudarán el hilo roto de su historia para restablecer las instituciones cardinales del inkario. [Tradução nossa]”. VALCÁRCEL, Luis. El problema indígena. In: Amauta, nº7, 1927. p.3 19“Concluya de uma vez por todas la literatura lacrimosa de los indigenistas. El campesino de los Andes desprecia las dulces palavras de consuelo. [Tradução nossa]”. VALCÁRCEL, Luis. Tempestad en los Andes. In: Amauta, nº1, 1926. p.4.

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pudesse contribuir para a transformação desejada pela população andina. E assinala que as

transformações para uma nova tomada de consciência coletiva, incaica, seriam deste novo

movimento quenace detrás de lasmontañas.

Outro renomado intelectual do período foi o já citado José Uriel Garcia. O autor se

destacou, desde princípios do século XX, como um estudioso da cultura incaica e de sua

cidade, Cusco, e assim como Valcárcel, figurou como importante nome do Grupo

Resurgimiento.

Dentro de Amauta, Uriel García teve participação marcante, ainda que não frequente,

publicando dois artigos, na segunda e oitava edições. O primeiro, intitulado La musica

incaica, e o seguinte, como El nuevoindio. Nestes artigos, o intelectual cusquenho apresentou

as bases de sua tese de compreensão da realidade nacional peruana, buscando formular a

noção da formação de um chamado “ciclo neoindio”. Ciclo este que remonta a todo processo

histórico do período inca, o contato com o conquistador e a colonização, até o período

republicano, identificando a gestação de uma nova identidade originada do contato entre

europeus e nativos, formando uma cultura integrada e nacional. Como atenta o próprio autor,

do contato de duas culturas diametralmente opostas, espanhola e autóctone, a história peruana

ganha novos rumos e nova personalidade.20

Para Uriel García, a chegada dos espanhóis à América pode ser considerada um evento

de proporções gigantescas, tendo impacto profundo tanto sobre a organização política,

econômica e cultural das populações nativas, quanto sobre os invasores espanhóis. O evento,

como frequentemente é apontado, teve proporções irreparáveis para as sociedades nativas da

América, contudo, propiciou um contato intenso com os recém-chegados espanhóis que

também sofreriam influências das culturas locais, contribuindo para a formação de uma

genuína cultura americana:

Se a cultura incaica sofreu uma tremenda mudança nos rumos de seus destinos históricos e recebeu uma mescla exótica em sua integridade original, por sua vez, a velha civilização espanhola – síntese de elementos heterogêneos – se injeta da seiva indígena e perde, deste modo, seu vigor histórico; imerso em um mundo geográfico e moral que não era o seu, se produz de maneira distinta à cultura matriz, ao menos, em certos aspectos especiais.21

20 GARCIA, J. Uriel. El nuevo indio. In: Amauta, nº8, 1927. p.19. 21“Si la cultura incaica sufrió un tremendo viraje en el rumbo de sus destinos históricos y recibió una mezcla exótica en su integridad original, a su vez, la vieja civilización española –síntesis de elementos heterogéneos– se inyecta de la savia indígena y pierde, así mismo, su vigor histórico; inmerso en un mundo geográfico y moral que no era el suyo, se produce de manera distinta a la cultura matriz, por lo menos, en ciertos aspectos especiales. [Tradução nossa]”. Idem.

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O contato estabelecido desde a conquista, para Uriel García, seria o início do chamado

ciclo neoindio. Período de gestação de uma nova identidade peruana, influenciada tanto por

espanhóis quanto por indígenas, transitando em força e importância com o passar do tempo e

da intensidade do contato. Um aspecto importante da elaboração do autor é a compreensão de

que o ciclo neoindio, apesar de apresentar seu início no período de conquista e colônia, ele

ainda não estaria finalizado. De acordo com o autor, este ciclo se completaria com a formação

integral do “novo índio”, o americano de origem mestiça que apresentaria rasgos definidores

de uma herança cultural mesclada em prol de uma identidade nacional de caráter

genuinamente americana, peruana. O nuevoindio será “um fruto do porvir quando o incaico e

o colonial [...] sejam completamente modificados em torno da cultura moderna”.22

No artigo publicado na segunda edição de Amauta, La musica incaica, Uriel García

buscou aliar a sua interpretação sobre o ciclo neoindio em relação à música das comunidades

andinas. Ao dissertar sobre os diferentes tipos de músicas e danças incas, como lahuanca,

elharawi, elhuaino e elhayarachi, o autor procurou criticar as interpretações existentes sobre

estas expressões culturais indígenas que as assinalavam como a declaração de um fracasso,

defendendo, pois, que representam um estado de alma, momentâneo, característico de um

período de constituição de uma nova identidade. Nas palavras do intelectual: “Aquela

melancolia que flui de cada frase melodiosa é somente um estado transitório da maneira como

viu a pupila do índio seu panorama cósmico e sua tradução em valores emotivos”.23Além de

representar uma expressão das heranças culturais das civilizações incas, já que mesmo após

trezentos anos de colonização, “a música não perdeu seu valor histórico, é uma força viva de

nacionalidade”,24 o autor também denota como estas mesmas práticas sofreram parte do

processo de interação cultural entre nativos e conquistadores, apresentando um exemplo

destas transformações:

Um caso revelador disto que dissemos é o fato de se haver apropriado da música incaica no ritual católico. [...] Na “ida” da imagem de Belém, no convento das Nazarenas, se entonam as chamadas “chaiñas”, harawis incaicos de infinita ternura, que despertam recônditas melancolias na alma do novo índio.25

22“un fruto del porvenir cuando lo incaico y lo colonial [...] sean completamente modificados al tono de la cultura moderna. [Tradução nossa]”. Ibidem, p.20. 23“Aquella melancolía que fluye de cada frase melodiosa es sólo un estado transitorio de la manera cómo vió la pupila del indio su panorama cósmico y lo tradujo en valores emotivos. [Tradução nossa]”. GARCÍA, J. Uriel. La musica incaica. In: Amauta, nº2, 1926. p.11. 24“la música no perdió su valor histórico, es una fuerza viva de nacionalidade. [Tradução nossa]”. Idem. 25“Un caso revelador de esto que décimos es el hecho de haberse apropiado de la música incaica el ritual católico. [...] En la “ida” de la imagen de Belén, en el beaterio de las Nazarenas, se entonan las llamadas “chaiñas”, harawis incaicos de infinita ternura, que despiertan recónditas melancolías en el alma del nuevo indio. [Tradução nossa]”. Ibidem, p.12.

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Concordamos com Patricia Funes ao destacar que Uriel García, ao apresentar sua tese

do nuevoindio, polemiza tanto com os positivistas, quanto com os indigenistas mais radicais,

contra sua ênfase tanto biologicista como etnocêntrica,26 inclusive contestando parte das

afirmações de seu companheiro indigenista cusquenho Luis Valcárcel. Diferente deste último,

Uriel García entende que apesar das heranças culturais vivas do período incaico, a identidade

inca já não existiria mais, dando lugar a uma nova concepção do indígena, marcado também

pelas contribuições culturais de origem europeia. Este nuevoindio, para o autor, “ingressa, por

sua vez, em outro mundo imensamente maior do que o seu tradicional [...] e que torna

impossível a volta à tradição puramente incaica”.27

Para o criador e diretor da revista Amauta, José Carlos Mariátegui, a temática indígena

foi central para o desenvolvimento de suas teses de interpretação da realidade peruana e

latino-americana, além de ser o alicerce principal de suas formulações para uma identidade

nacional/continental. A revista, portanto, foi espaço privilegiado de atenção do autor que

publicou uma grande quantidade de artigos e considerações, muitos destes relacionados com a

abordagem aqui destacada.28

Suas análises sobre a realidade peruana foram marcadas por uma dupla acepção que

integrou originalmente as teses indigenistas de transformação social ao socialismo marxista,

promovendo uma criativa crítica às correntes que ignoravam ou minimizavam a importância

das populações indígenas e aportando seu projeto de revolução socialista justamente sobre

este extrato da população peruana. A análise marxista da realidade peruana elaborada pelo

autor apresentou características importantes que configurariam seu projeto como um

socialismo indo-americano, fugindo à ortodoxia das análises europeias e de outros autores

locais.

Em diversos artigos publicados na revistaAmauta, o autor apresentou uma

preocupação central em relação à análise da realidade peruana marcada pela sua formação

econômica, em essência, a base de uma apropriação do materialismo marxista. Partindo deste

pressuposto, o autor buscou assinalar que desde o período da conquista espanhola, o Peru

passou por um processo de formação de uma economia baseada na expropriação das terras 26FUNES, Patricia. op. cit., p.152. 27“ingressa a su vez en otro mundo agrandado inmensamente del suyo tradicional [...] y que hace imposible la vuelta a la tradición puramente incaica. [Tradução nossa]”. GARCIA, J. Uriel. El nuevoindio. In: Amauta, nº8, 1927. p.25. 28 Dentre a numerosa quantidade de artigos e escritos de Mariátegui na revista, dedicaremos especial atenção aos seguintes ensaios: La evolución de la economia peruana (nº2), Regionalismo y centralismo (nº4), Polémica finita / Indigenismo y socialismo: Intermezo polémico - Replica a Luis Alberto Sanchez (nº7), El problema de latierraenelPerú (nº10-11) e Esquema del problema indígena (nº25).

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comunais indígenas, em prol de um projeto, tido pelo autor, como feudal. Grande parte do

contingente de habitantes serranos, identificados em sua maioria como indígenas, herdeiros

do período pré-colombiano e subjugados por espanhóis/criollos desde a conquista, foram os

grandes prejudicados pelo controle dos gamonales, os “senhores feudais”da serra. Portanto,

na interpretação de Mariátegui, o problema indígena é, na verdade, um problema da terra. O

acesso à terra, parte da cultura das comunidades indígenas herdeiras de uma tradição incaica

com forte identificação com a atividade agrícola, era o aspecto a ser ressaltado para

compreender a importância do componente indígena para a transformação social no país:

O primeiro problema que se deve resolver aqui é, por conseguinte, o da liquidação da feudalidade, cujas expressões são duas: latifúndio e servidão. Se não reconhecêssemos a prioridade deste problema, haveria direito para nos acusar de prescindir sobre a realidade peruana.29

Em um polêmico apontamento defendido por Mariátegui em artigo denominado

Regionalismo y centralismo, o autor apresentou as dificuldades de construção de uma unidade

nacional pelas divergências inerentes a uma “dualidade de raça, de língua y de sentimento,

nascida da invasão e conquista do Peruautóctone por una raça estrangeira que não conseguiu

fundir-se coma raça indígena, nem eliminá-la e nem absorvê-la”.30 A fim de se defender das

críticas que o acusavam de estabelecer uma “impossibilidade” de integração nacional, fazendo

uma associação irreconciliável entre criollos e nativos, serranos e litorâneos, o autor reafirma

a necessidade de se entender o protagonismo indígena/serrano em um processo de

identificação nacional e a necessidade histórica de resolver a dualidade nascida na conquista:

“Não é meu ideal o Peru colonial, nem o Peru incaico, mas sim um Peru integral. [...]

Queremos criar um Peru novo no mundo novo”.31

Contudo, uma das mais interessantes contribuições do autor foi a interpretação criativa

da necessidade de um socialismo indo-americano, ou seja, a compreensão de que o motor

revolucionário socialista do continente americano – em especial de países como o Peru, com

29“El primer problema que hay que resolver aqui es, por conseguinte, el de la liquidación de la feudalidad, cuyas expresiones solidarias son dos: latifundio y servidumbre. Si no reconociésemos la prioridad de este problema, habría derecho, entonces sí, para acusarnos de prescindir de la realidad peruana. [Tradução nossa]”. MARIÁTEGUI, José Carlos. Polemica finita / Indigenismo y socialismo: Intermezo polémico - Replica a Luis Alberto Sanchez. In:Amauta, nº7, 1927. p.39. 30“dualidad de raza, de lengua y de sentimiento, nacida de la invasión y conquista del Perú autóctono por una raza extranjera que no ha conseguido fusionarse con la raza indígena ni eliminarla ni absorvela. [Tradução nossa]”. MARIÁTEGUI, José Carlos. Regionalismo y centralismo. In: Amauta, nº4, 1926. p.28. 31“Nos es mi ideal el Perú colonial ni el Perú incaico sino un Perú integral. [...] queremos crear un Perú nuevo en el mundo nuevo. [Tradução nossa]”. MARIÁTEGUI, José Carlos. Polemica finita / Indigenismo y socialismo: Intermezo polémico - Replica a Luis Alberto Sanchez. In: Amauta, nº7, 1927. p.38.

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grande concentração de populações indígenas – devia ter direta relação com as demandas dos

povos de origem nativa. De acordo com o autor, o socialismo

ordena e define as reivindicações das massas, da classe trabalhadora. E, no Peru, as massas – a classe trabalhadora – são em suas quatro quintas partes indígenas. Nosso socialismo não seria, pois, peruano – nem seria sequer socialismo –, se não se solidarizasse primeiramente com as reivindicações indígenas.32

O socialismo “indo-americano” como foi tratado, portanto, serviu como base para a

concepção nacional para Mariátegui, pois o autor, ao destinar seu interesse aos indígenas

como motores do processo revolucionário, buscou também identificar valores que pudessem

assinalar neste componente o principal em uma identidade nacional peruana. O “nacionalismo

revolucionário” de Mariátegui sofreu claro contraste em relação à maioria das correntes

marxistas do período que identificavam no nacionalismo um mecanismo ideológico dos

países imperialistas para justificar suas ações. O intelectual peruano não discordava desta

concepção, no entanto, visava demonstrar a possibilidade de um nacionalismo dos “povos

coloniais”. De acordo com o autor:

O nacionalismo das nações europeias – onde nacionalismo e conservadorismo se identificam e se consubstanciam – se propõe a fins imperialistas. É reacionário e antissocialista. Mas o nacionalismo dos povos coloniais – sim, coloniais economicamente, ainda que se vangloriem de sua autonomia política – têm uma origem e um impulso diversos. Nestes povos, o nacionalismo é revolucionário e, por fim, conflui com o socialismo.33

Portanto, em uma perspectiva de defesa de um socialismo indo-americano, Mariátegui

entendia não só o contingente populacional indígena como motor revolucionário, mas também

como uma importante identificação para um projeto nacional.

As páginas da revista Amauta, portanto, foram um significativo palco para a atuação

de diversos intelectuais que buscavam apresentar seus projetos para um tema tão urgente

dentro da intelectualidade de esquerda peruana, como a formulação de uma identidade

peruana que abarcasse também as contribuições do maior extrato populacional do país, os

indígenas. Vários foram os lances emitidos pelos autores a fim de renovar o contexto 32“ordena y define las reivindicaciones de las masas, de la clase trabajadora. Y en el Perú las masas, –la clase trabajadora– son en sus cuatro quintas partes indígenas. Nuestro socialismo no sería, pues, peruano, –ni sería siquiera socialismo– si no se solidarizase, primeramente, con las reivindicaciones indígenas. [Tradução nossa]”. Ibidem, p.37. 33“El nacionalismo de las naciones europeas – donde nacionalismo y conservatismo se identifican y consustancian – se propone fines imperialistas. Es reaccionario y anti-socialista. Pero el nacionalismo de los pueblos coloniales – sí, coloniales económicamente, aunque se vanglorien de su autonomia política – tiene un origen y un impulso talmente diversos. En estos pueblos, el nacionalismo es revolucionario y, por ende, confluye con el socialismo. [Tradução nossa]”. Ibidem, p.38.

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linguístico em que estavam inseridos, ressignificando interpretações e conceitos chaves para

as suas realidades. Destacamos aqui três das mais marcantes ponderações a fim de ilustrar a

profundidade do debate intelectual sobre o indigenismoe também para compreender a

importância da revista Amauta como um espaço de confluência e dissonâncias entre autores

que utilizavam a publicação como um veículo para debater ideias e projetos. As correntes

indigenistas, em especial as mais radicais, obtiveram um espaço importante na Amauta por

sua ampla popularidade e circulação no continente americano, abrindo a possibilidade para

um debate nacional ter amplitude continental.

Fontes primárias:

AMAUTA , Revista. Números 1 a 32. 1926-1930. Empresa Editora Amauta S/A. Lima. Peru. Edição fac-símile. Referências bibliográficas:

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