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“Isto é a vida: não há planger, nem imprecar, mas aceitar as coisas integralmente com seus ônus e percalços, glórias e desdouros, e ir por diante.” Machado de Assis, “Teoria do medalhão” Papéis avulsos, 1882. “Se procurar bem, você acaba encontrando não a explicação (duvidosa) da vida mas a poesia (inexplicável) da vida.” Carlos Drummond de Andrade, Corpo, 1984. (Foto tirada pelo neto Luís Maurício 31/1/1987 – Acervo CDA)

Revista da Academia Brasileira de Letras

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Drummond e Machado de Assis: uma filosofia da dúvida (ou o ceticismo irônico).Palestra em mesa-redonda realizada em27/11/2002, na Academia Brasileira de Letras.Versandooutros aspectos da obra do poeta,participaram também da mesa o Acadêmico Ivan Junqueira e oprofessor Gilberto Mendonça Teles.

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  • Isto a vida: no h planger, nem imprecar, masaceitar as coisas integralmente com seus nus epercalos, glrias e desdouros, e ir por diante.

    Machado de Assis, Teoria do medalhoPapis avulsos, 1882.

    Se procurar bem, voc acaba encontrandono a explicao (duvidosa) da vidamas a poesia (inexplicvel) da vida.

    Carlos Drummond de Andrade,Corpo, 1984.

    (Foto tirada pelo neto Lus Maurcio31/1/1987 Acervo CDA)

  • Drummond e Machadode Assis: uma filosofiada dvida (ou oceticismo irnico)

    Marcos Almir Madeira

    Vou aproximar no espao literrio Machado de Assis e Car-los Drummond de Andrade.Antes de mais, vejo dois pensadores: Carlos essencialmente na

    poesia e at certo ponto na crnica; Machado na fico romanesca eno conto.

    Nem um nem outro se adestraram para a filosofia, que no foipara eles uma carreira, um rumo planejado, uma diretriz. Quero dizerque no foram filsofos ostensivos. Se me ocorresse uma classifica-o extravagante ou mesmo maligna, eu diria que tero sido ambosfilsofos sem dolo... O certo que se compraziam no ato de pensar,nesse expediente de organizar, de montar, de armar idias e enfei-x-las num mosaico caprichoso. Antes de tudo o que havia nos dois

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    Palestra emmesa-redondarealizada em27/11/2002, naAcademia Brasileirade Letras.Versandooutros aspectos daobra do poeta,participaram tambmda mesa o AcadmicoIvan Junqueira e oprofessor GilbertoMendona Teles.

    Drummond e Machado de Assis: uma filosofia da dvida...

  • era o deleite de buscar e encontrar o sutil, em conviver no tanto com o explci-to, mas bem principalmente fruir o sabor das coisas implcitas.

    Se pudessem materializar-se, metamorfoseando-se na escala da pontuaocomum, muito raramente seriam pontos de exclamao, mas reticncias quasesempre... Eu at diria que se deliciavam com a dvida ou com a arte de explo-r-la. Em Drummond, essa peripcia literria, bela explorao, ganha freqente-mente a substncia de uma definio da prpria alma, ou de uma expansocontida, toda interior.

    Exemplos de filosofia da dvida, ou da dvida filosfica em si mesma, estona leve stira potica, que boa parte da sua obra. Estou pensando naquele fa-moso poema em que a indefinio do estado de esprito do poeta e portanto asua dvida gravita, no em torno de um caminho; mas de uma pedra. E a est,singularssima, a sua filosofia irnica. Quanto mais irnica, mais filosofia desti-lou, como na trama daquele E agora, Jos?. 0 Convm recordar que esta per-gunta-chave do poema dirigida ao irmo morto. O poeta acaba dizendo que afesta acabou. A festa era a vida. De maneira que aquela indagao E agoraJos? a exteriorizao de uma dvida diante da prpria morte. E est nisso aironia maior, que ficou sendo um mecanismo de compensao. Satirizar a morteser um meio de replicar a angstia, como quem tenta enganar a prpria dor.

    Quando incursionou pela poesia de mensagem poltica mais clara, como nopoema Rosa do povo, sua palavra protesto, libelo sem arrebatamento, queele nunca teve, mas vem a ser tambm amargura, fruto de um certo ceticismo e,por isso mesmo, de um estado de dvida. Esse ceticismo, tambm no poemaintitulado Segredo, torna-se bem claro logo nos trs primeiros versos:

    A poesia incomunicvel.Fique torto no seu canto.No ame.

    No poema Lio, a filosofia do desencanto ou da desesperana, tecidacom mais sutileza ou mais ironia, adverte:

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    Marcos Almir Madeira

  • Se procurar bem, voc acabaencontrando, no a explicao(duvidosa) da vida, mas a poesia(inexplicvel) da vida.

    Observe-se que a prpria poesia a aparece inexplicvel. Seria uma pesquisaexcitante, do maior interesse literrio, e rendimento filosfico, a que pudsse-mos fazer para verificarmos se o nosso Drummond taxou de inexplicvel apoesia, antes ou depois de ter Fernando Pessoa definido o poeta como umfingidor...

    Prometi algumas reflexes paralelas sobre Machado de Assis. Vou cumprir.Chego a crer que para o Bruxo do Cosme Velho, como para o Magrinho de

    Itabira e depois Andarilho de Copacabana, o exerccio da literatura, em termosde poesia e prosa, no ter resultado apenas de um impulso vocacional ou deum mero prazer esttico. Mais que isso: a literatura no ter sido para ambosum fim em si mesmo, mas um meio de construir idias ou fazer dela uma artede pensar, uma tcnica de comunicao profunda, uma proposta de filosofiapura e filosofia, permitam-me insistir, tendo por sistema nervoso a dvida ea ironia. Ou para melhor: a ironia embebida ou imersa na dvida.

    Lembremo-nos da problemtica de Capitu, a personagem mais nevrlgicade Machado, encarnao, ao mesmo tempo melanclica e suave, de uma incer-teza que at hoje perdura na mente dos analistas literrios e dos psiclogos em-brenhados na trama do romance.

    Do mesmo corte filosfico aquele Memrias pstumas de Brs Cubas como porigual Dom Casmurro, Quincas Borba, Memorial de Aires, obras capitais que no fa-zem seno confirmar o ceticismo, que eu diria orgnico, do escritor inconfun-dvel. E no o ceticismo um retrato da dvida, ou no raro seu fruto mais ci-do? No caso de Machado e de Drummond, nem sempre cido ou amargo; vemadoado freqentemente pela graa do prprio humor que no corri; vembrando, ameno, eu ia dizer gracioso, mesmo quando arranha na crtica, umaarte literria meio gata; nunca seria canina...

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    Drummond e Machado de Ass i s : uma f ilosof ia da dvida . . .

  • Foram essas caractersticas espirituais de ambos o que os aproximou na for-mulao de uma filosofia s vezes aparentemente acidental, mas estavam neles,precederam o escritor em prosa e verso. Foram realmente pensadores.

    Veja-se a filosofia irnica do livro Alguma poesia, quando Drummond se saicom esta:

    Se meu verso no deu certo,foi seu ouvido que entortou.Eu no disse que no souseno poeta?

    Na forma e na essncia esta tirada j mostra o poeta pensador no rumo dosmodernos. E aqui atinjo um ponto relevante. Drummond, por sua prpria n-dole, foi um moderno antes que modernista, como seria, no plano poltico,adepto de uma poltica popular, mas no creio que populista.

    No penso em modernismo; prefiro pensar em modernidade. J me ocorreu dizerque todos os ismos trazem no bojo uma quota de ortodoxia, vazada antes numpropsito destrutivo que numa proposta de agregao de valores, pour l honneurde la raison, como pediria Renan.

    A opo modernista pode resultar de um estado de esprito e no de um es-tado de opinio; j na adeso modernidade creio que poderemos identificarum gesto da inteligncia descontrada ou uma definio desligada da atitudede faco. No modernista, uma efervescncia, o rudo do protesto, o gosto daemulao e do grito. No moderno, um certo liberalismo, a inteno de fundirtendncias, de entrelaar opes.

    O modernismo predatrio, que produz uma espcie de terrorismo literrio,praticado por chitas em prosa e verso, esse, na verdade final, Drummond no opraticou, desde logo por imposio da prpria ndole. Era ele antes de tudoum sbrio, inimigo pessoal do escndalo, da grosseria de todas as formas,austero consigo mesmo. E mais: seu temperamento vetava a vulgaridade.Bem sabia que uma coisa o verso livre, outra a linguagem corrupta, o estilo de

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    Marcos Almir Madeira

  • chinelo. E naquele saboroso livro que Fazendeiro do ar, denunciou a chatice deser moderno. E rimou: Agora serei eterno. Quando li este seu desabafo, lem-brei-me de uma bela reflexo do agudo pensador uruguaio que foi HenriqueRod, hoje to esquecido; o clssico, dizia ele, o eternamente atual.

    Numa tarde de reunio no PEN Clube do Brasil, recordei-lhe o achado deRod. E ele: isso. O Rod sabia das coisas.

    Alis, no volume que batizou de Lio de coisas est o poema, composto deuma nica estrofe, em louvor de Cames, que trata pelo prenome Lus. Obser-ve-se o corte clssico da sua construo potica, a comear pelos requintes deritmo e pela ordem inversa, usada nos dois primeiros versos:

    Este, de sua vida e sua cruzUma cano eterna solta aos aresLus de ouro, vazando intensa luzPor sobre as ondas altas dos vocbulos.

    Eis a. Estamos longe da brejeirice, do humor fcil, da poesia-conversa, os-tentando s vezes uma certa extravagncia, no tanto quanto forma, masquanto temtica.

    Em certa medida, a austeridade, a circunspeo ou mesmo alguma severida-de na conduta de todo dia compunham a vida da criatura disciplinada, atentaaos usos ou mesmo a certas praxes. No nos esqueamos: foi ele um funcion-rio pblico reputado como exemplar. E no ser interessante recordar queMachado de Assis, um dos seus dolos, tambm o foi? Carlos no Ministrio daEducao, como chefe de gabinete de Gustavo Capanema; Machado, muitoantes, numa secretaria pletrica, acumulando, no Imprio e na Repblica, Via-o, Agricultura e Obras Pblicas. Ambos batiam o ponto, abrindo e encerrandoo expediente, condenados preciso, exao, ao zelo.

    Tudo isso explica que nunca se desmandassem, e na vida literria houvesseficado, dentro da relatividade das coisas, um certo resduo cultural da vida detrabalho ou de servio pblico. Mas o fato que, como homens de boa pena,

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  • buscaram, no exerccio efetivo da literatura, um mecanismo de compensao.Nunca se desmandaram, repito. No caso de Drummond, mesmo a convergn-cia, numa certa fase da produo, para os preceitos do moderno, no o desfiguroudo seu natural, que era, e foi at o fim, a tendncia para a linha de equilbrio.

    Falei de resduos culturais da vida burocrtica e no resisto lembrar aosmeus caros ouvintes, para dar-lhes um s exemplo, que o grande Machado dei-xou cair num dos seus mais belos sonetos, primor de lirismo, uma nodoazinha,um cacoete verbal adquirido por certo no cotidiano da repartio.

    Estou querendo aludir ao seu canto de amor a Carolina j morta, bela tei-mosia de um corao que nunca se dividiu:

    Querida, ao p do leito derradeiroEm que descansa desta longa vida,Aqui venho e virei, pobre querida,Trazer-te o corao do companheiro.

    Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro,Que a despeito de toda humana lidaFez a nossa existncia apetecidaE num recanto ps o mundo inteiro.

    Trago-te flores, restos arrancadosDa terra que nos viu passar unidosE ora mortos nos deixa, e separados.

    Que eu, se tenho nos olhos mal feridosPensamentos de vida formulados,So pensamentos idos e vividos.

    Em plena expanso romntica, Machado parece reassumir a redao oficial efala-nos de pensamentos formulados. Nada menos lrico: esse formulados tem rano dedespacho burocrtico, de cartrio ou de farmcia. Surpreendeu-me o deslize.

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    Marcos Almir Madeira

  • Para ir chegando ao fim, senhoras, senhores, desejo brindar o cronista per-feito que o nosso Carlos soube ser. E para ufania dos fluminenses, foi na ame-na Nova Friburgo que madrugou a vocao do cronista, no jornalzinho dosalunos do Colgio Anchieta Aurora Colegial, onde se expandia uma literaturaimberbe. O escritorzinho era uma vida em boto: a soma dos seus janeiros malchegava casa dos quinze anos. Mas a vida rodou e bem mais tarde, no Rio,continuou em sua lufa-lufa de cronista na revista Para Todos, culminando a ati-vidade no gnero em 1941, como colaborador do Correio da Manh, da Folha Ca-rioca e notadamente do Jornal do Brasil. A reunio de boa parte das suas crnicasem livro deu-nos a saborear bem especialmente em Cadeira de balano, Caminhos deJoo Brando, De notcias e no-notcias se faz a crnica e Fala, amendoeira.

    Em Cadeira de balano, como bem observou o poeta e crtico Gilberto Men-dona Teles, h uma certa inspirao em Machado de Assis. Em Papis avulsos ofilsofo do romance diz que seus contos so avulsos e esclarece: No vierampara aqui como passageiros que acertam de entrar na mesma hospedaria. Sopessoas que a obrigao do po fez sentar mesma mesa. E Drummond, emCadeira de balano, falando de seus textos de cronista: Trazendo-os para aqui,foi como se reconhecesse objetos emprestados a vizinhos, alis simpticos.Vamos sentar.

    A boa verdade que o poeta filsofo soube realizar-se na crnica. O que eladesde logo exige o que ele sempre teve para dar: coloquialidade, comunicabi-lidade, a simplicidade de quem conversa com o leitor na pgina e a sabedoriade versar assuntos que no so de ningum porque so de todos; muito princi-palmente quanto se diverte com as coisas do cotidiano e os valores eternos danatureza. Contou-nos ele que abrindo a janela matinal... pousou a vista nasrvores que algum remoto prefeito deu rua (eram amendoieras). Estavamtodas verdes, menos uma. Da o ttulo do livro: Fala, amendoeira.

    A est: na tcnica do cronista, a alma do poeta.

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    Drummond e Machado de Ass i s : uma f ilosof ia da dvida . . .

  • O pensamentosocial da Igreja

    Pe . Fernando Bastos de vila , S . J .

    Por um conjunto de circunstncias propcias aconteceu ter sidoeu o primeiro jesuta, membro da Companhia de Jesus, noBrasil a ser eleito membro da Academia Brasileira de Letras. Aconte-ce agora, por circunstncias intencionais, que dediquei longos anosde minha atividade como professor universitrio ao ensino do pen-samento social da Igreja a que perteno. Julguei assim que poderiacolaborar com nossa Revista Brasileira, oferecendo-lhe um artigo so-bre os grandes princpios que a Doutrina Social da Igreja (D.S.I.)veio elaborando e difundindo desde suas origens, com a encclica Re-rum Novarum de Leo XIII, 1891, at os nossos dias.

    No pretendo dispersar-me na indagao histrica sobre a elabo-rao conceitual desses princpios, mas simplesmente formul-losna sua densidade original, enfatizando sua atualidade e sua impor-tncia para a soluo dos graves problemas com que o mundo hojese defronta.

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    Padre daCompanhia deJesus, professoruniversitrio,fundador darevista SPES Sntese Poltica,Econmica e Social,autor de obras desociologia,histria, doutrinasocial da Igreja,filosofia ereligio.

  • Condenso a formulao deste pensamento social em seis grandes princ-pios, assumidos pela Igreja.

    Os grandes princpios

    1. A dignidade inalienvel da pessoa humana, luz da f: criada por Deus, remidapor Cristo, santificada e vocacionada pelo Esprito Santo. Dignidadeque exclui qualquer discriminao racial, social, econmica, religiosa oucultural. O homem o caminho da Igreja, a sntese mais densa docompromisso da Igreja com o homem, tema que encerra a Encclica Cen-tesimus Annus (C.A.). o princpio que marca a distncia entre a Doutri-na Social da Igreja e todos os sistemas e ideologias da inspirao totalit-ria de direita ou de esquerda, para as quais a pessoa s recebe sentido docoletivo social do qual ela apenas uma parte descartvel.

    2. A primazia do bem comum. O princpio se bifurca em dois planos: o nacionale o mundial.

    O bem comum nacional a responsabilidade e a prpria razo de serdo Estado que pode tudo aquilo e s aquilo que promove o bem co-mum, ou seja, o bem de todos, sem discriminaes. Ele precisamente oconjunto das condies concretas que permitam a todos atingir nveis devida compatveis com sua dignidade. O bem comum em sua dimensomundial o bem da comunidade das naes (C.A. no 52) confiado auma autoridade supranacional e cujos sujeitos so precisamente os di-versos pases do mundo. Sua concretizao e as condies de sua eficciaso ainda apenas esboadas nas grandes organizaes supranacionais,sob a tutela da ONU, mas parece constituir o desfecho de uma evoluomilenar inscrita na prpria natureza social do homem.

    O bem comum universal ser o grande desafio do terceiro milnio,para recuperar a imploso do Segundo Mundo e a marginalizao doTerceiro Mundo. (C.A.)

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    Pe . Fernando Bastos de vila , S . J .

  • 3. A destinao universal dos bens. Os bens criados se destinam a todos os ho-mens. A apropriao individual, o chamado direito de propriedade, uma forma eficaz de realizar melhor esta destinao. A propriedade,situada assim luz deste princpio, entendida como responsabilidadesocial e no como privilgio excludente: Sobre toda a propriedadeprivada pesa uma hipoteca social. (Laborem Exercens, L.E.)

    4. A primazia do trabalho sobre o capital. O capital, como forma de apropriaocoletiva, pblica ou privada, s legtima na medida em que serve aotrabalho (L.E.). O capital o fruto do trabalho e a ele se destina. oprincpio que marca a incompatibilidade da Doutrina Social da Igrejacom o capitalismo liberal. importante relembrar o carter fundamen-tal desse princpio num momento histrico no qual, com a imploso dosocialismo real, um neoliberalismo, j denunciado por Joo Paulo II, naCentesimus Annus, se apresenta com a pretenso de ser a nica opo, parauma humanidade sem alternativas.

    5. O princpio da subsidiariedade. Segundo ele, as instncias superiores de poderno se devem atribuir o desempenho daquilo que as instncias inferiorespodem melhor realizar. O dever das instncias superiores um dever su-pletivo, de coordenao e promoo da iniciativa e da criatividade dasinstncias inferiores. este princpio a fonte da vitalidade de um nme-ro imenso de instituies, movimentos e iniciativas que so a expressoda maturidade democrtica liberta do paternalismo estatal. tambm oprincpio que oferece os critrios para discernir, na variedade das con-junturas, a soluo de problemas tais como centralizao e descentrali-zao, nacionalizao e privatizao.

    6. O princpio da solidariedade. o princpio segundo o qual cada um cresce emvalor e dignidade na medida em que investe suas capacidades e seu dina-mismo na promoo do outro. O princpio vale analogicamente para to-das as relaes concretas: entre o homem e a mulher, os pais e os filhos,

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    O pensamento soc ial da Igre ja

  • os grupos sociais, os nveis e setores de poder, o capital e o trabalho, omundo desenvolvido e o subdesenvolvido. Hoje pode-se falar numadescoberta sempre mais lcida de uma relao de solidariedade entre ohomem e a natureza: o homem mais se valoriza na medida em que pre-serva a natureza, e esta protegida e preservada garante melhor qualidadede vida para o homem.

    Onde reside a originalidade de uma Doutrina fundada sobre esses pilares?Em dois aspectos que considero essenciais.

    Primeiro: Toda a histria humana foi a histria de uma incansvel busca deliberdade e de justia.

    O homem quis ser mais livre das contingncias naturais e das violncias queo oprimiam. Mas a humanidade fez a trgica experincia de que a conquista daliberdade criou condies para a imposio de uma imensa iniqidade social.Refiro-me s conseqncias da Revoluo Francesa, da Revoluo Industrial e questo social delas resultante.

    A frustrao gerada por essa questo social alimentou uma nsia de justiaexpressa em condies de igualdade, que resultou numa imensa opresso de li-berdade, especialmente da liberdade religiosa. Refiro-me Revoluo Soviti-ca, ao comunismo internacional cuja imploso no Leste Europeu assistimosrecentemente.

    A nsia de liberdade foi pretexto para a injustia, a busca da justia foi reali-zada pelo sacrifcio da liberdade.

    O primeiro aspecto da originalidade da D.S.I. precisamente este: ela defende oatendimento s radicais exigncias da justia, precisamente atravs do exerccioresponsvel da liberdade, ela defende a liberdade para atender s exigncias dajustia.

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    Pe . Fernando Bastos de vila , S . J .

  • Entretanto, o desejo de liberdade e de justia no obviamente caracters-tica exclusiva da D.S.I. Muitas outras doutrinas o promovem. Aqui vem as-sim o segundo aspecto da originalidade da D.S.I.: fora da Igreja a busca da liber-dade com justia passava pelo dio. S a Igreja percebe com toda a clarezaque a definitiva conciliao entre as exigncias da liberdade e da justia uma civilizao do amor.

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    O pensamento soc ial da Igre ja

  • Vista de Ouro Preto

  • Lembranas de OttoLara Resende

    Afonso Arinos Filho

    Excerto de um dirio

    Rio, 1o de maio de 2002 Se fosse vivo, Otto Lara Resende comple-taria, nesta data, oitenta anos. De poucos amigos sinto, hoje, faltaquanto a dele. Na minha prpria famlia, uma prima disse-me, certavez, que era Otto quem fazia a ponte entre ns todos.

    Eu tinha uns doze anos quando Israel Pinheiro alugou uma casadefronte nossa, em Copacabana. Seu pai, Joo Pinheiro, foragrande amigo e sucessor, no governo de Minas Gerais, de CesrioAlvim, av de Afonso Arinos. Pronunciara-lhe, beira do tmulo,o elogio fnebre. Israel, experiente poltico mineiro, era velho ami-go e colega de Afonso na Cmara, e costumava dizer que, se o seupartido, o Social Democrtico, e o de Arinos, a Unio Democrti-ca Nacional, no os atrapalhassem, eles resolveriam os problemaspolticos ali mesmo, na Rua Anita Garibaldi. Da a intimidade en-tre os seus nove filhos, meu irmo e eu, que tornamos de fato, noslongos anos em que nossos pais ali residiram simultaneamente, asduas casas numa s.

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    Participaona mesa-redondarealizada naABL, em21/11/2002,em homenagemao 80o

    aniversrio deOtto LaraResende.

  • Dentre as filhas de Israel, graciosas e algumas extrovertidas, Helena fazia-senotar pela beleza tmida e suave. Jovens admiradores no lhe faltavam entre asrelaes da sua famlia, no Rio e em Belo Horizonte, at que por l comeou aaparecer, com insistncia, um moo magro, moreno e falante. Era o Otto.

    O noivado seguiu as regras de praxe das tradicionais famlias mineiras. Comfreqncia, os irmos de Helena os acompanhavam, e, certa vez, coube-me estepapel. Ocasio inesquecvel, pois Helena pedira emprestado o automvel deum tio, para passearem. Com Otto ao volante, dobramos a primeira esquina e,ao empreendermos a segunda, o carro desgovernou-se e abraou o poste nos-sa frente, para total desolao e constrangimento dos jovens noivos.

    Casaram-se em bela cerimnia no Mosteiro de So Bento. Quando chegoua nossa vez, em 1955, Beatriz e eu adquirimos, por coincidncia, um pequenoapartamento quase fronteiro quele onde moravam Helena e Otto, na Gvea.E ali a casa de Otto se tornou o centro constante das palestras inesgotveis da-quele incansvel fazedor de amigos.

    Fernando Sabino eu j conhecia desde quando, em 1943, aos dezesseteanos, se apresentara na nossa casa trazendo seu primeiro livro de contos, Osgrilos no cantam mais, para ofert-lo a Afonso Arinos, ento em plena faina decrtica literria nos jornais do Rio. Notei, na ocasio, as botinas sertanejas quecalava. S muitos anos depois, confidenciou-me que as envergara como atitu-de literria, para impressionar o crtico mineiro.

    Entre os visitantes freqentes de Otto encontravam-se Paulo MendesCampos, Hlio Pellegrino, sempre romntico e exaltado, Marco AurlioMoura Matos, Carlos Castello Branco, tambm casado havia pouco com abela e voluntariosa lvia, Lus Edgar de Andrade, Jos Carlos de Oliveira,Nelson Rodrigues, Rubem Braga, Armando Nogueira, Wilson Figueiredo,Murilo Rubio, Jos Aparecido, e tantos outros amigos e jornalistas. Estesltimos, vindos de todos os cantos do Brasil, mas sobretudo de Minas, com-punham a nata da imprensa carioca de ento.

    J era considervel a experincia jornalstica de Otto quando Adolfo Blochchamou-o para assumir a chefia da redao da Manchete, que fundara ambicio-

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    Afonso Arinos Filho

  • nando disputar com O Cruzeiro, de Assis Chateaubriand, a preferncia dos lei-tores cariocas. E Otto convidou-me para que eu me encarregasse da seo in-ternacional da revista, o que fiz, escrevendo longas matrias, at partir a serviopara o exterior. Adotara o pseudnimo de Gil Cssio, herdado do meu tio-ave homnimo Afonso Arinos, quando este colaborava na imprensa paulista,pois a condio de diplomata no me permitia exprimir-me vontade em ma-trias versando poltica externa. E, de fato, numa delas, Gil Cssio recebeupronta resposta do embaixador do Peru, aps criticar a ditadura militar entovigente naquele pas.

    Aprestava-me a assumir meu primeiro posto diplomtico, em Roma, e sur-gira para Otto a oportunidade de trabalhar como adido cultural na Blgica.Mas ele hesitava muito, indagando sobre a capital belga, consultando os ami-gos sem cessar. Um dia, confidenciou-me que, se no viajasse logo, acabariapor tornar-se um daqueles tipos populares ento em voga no Rio, sentadonuma sarjeta, enquanto os passantes o apontariam: Olha ali o Bruxelas.

    Seguimos ambos para o exterior, onde nos visitamos mutuamente. Por suamo, Beatriz e eu conhecemos a Blgica, onde passamos uns poucos dias hos-pedados no seu apartamento de Bruxelas, a fazer incurses deslumbrantes pe-los canais, palcios e museus de Bruges, e visitando Gand, encantados com oCordeiro Mstico de Jan van Eyck. Um entupimento nasal que eu trouxera de Pa-ris e se agravara com abuso de inalantes ocasionou cmica trapalhada com umagentil mdica pediatra vizinha de Otto (cuja marido zeloso desconfiava da-quela espce dindien). A doutora, consultada pelo telefone, julgava estar tratandode uma criana. A confuso chegou a merecer a crnica Um nariz em Bruxe-las, de Fernando Sabino, no seu livro A companheira de viagem.

    Isto foi em 1957. No ano seguinte, chegou a vez dos nossos amigos virem Itlia, mas por um ms, pois alugamos, juntos, uma casa no balnerio de Frege-ne, a uns vinte quilmetros de Roma. Otto viajou de Bruxelas a Roma ao vo-lante do seu carro, pelas atravancadas rodovias peninsulares (a Autostrada del Soleainda no existia). Egresso da Blgica ordeira e silenciosa, espantava-o a desor-dem, a indisciplina, a gritaria e a movimentao incessantes. Ao chegar, co-

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    Lembranas de Otto Lara Resende

  • mentou comigo nunca haver visto um povo to parecido com a caricatura de simesmo quanto o italiano.

    Na praia de Fregene, encontrvamos o meu amigo de mocidade, Antniode Teff, filho do diplomata e ex-campeo brasileiro de automobilismo Ma-nuel de Teff. O belo Antnio era, ento, astro dos chamados spaghetti-western,filmes em grande moda naquela poca. E estava acompanhado por uma estrelade primeira grandeza do cinema italiano. Quando a deusa dourada emergia doMediterrneo azul, dava a Otto e a mim a impresso de que assistamos a umareprise do Nascimento de Vnus, de Botticelli.

    Dali excursionvamos incessantemente pelos arredores. Levei-os um dia aCastelgandolfo para verem o papa, que l veraneava, e, quando Pio XII apare-ceu no balco, a pequenina Cristiana, surpresa, interpelou Otto: U, papai, opapa gente?

    Outro perodo de frias passamos juntos em Portugal. Otto l se encontra-va como adido cultural, e eu vinha por via area de Genebra, onde servia naqualidade de cnsul do Brasil. Ele esperava-me, com Helena, no aeroporto deLisboa, e dali mesmo subimos para a quinta de parentas nossas, no Minho,onde Beatriz nos aguardava. amos comendo os deliciosos pastis mineirosque a boa Geralda preparara, enquanto Helena trazia ao colo a caulinha re-cm-nascida e ainda sem nome, que o pai apelidara Maria-po-de-queijo, porlembrar-lhe uma figura popular da sua So Joo del Rei. Foi outra temporadadeliciosa, com excurses ao Douro e Galcia. J conhecamos o norte de Por-tugal, mas a nova oportunidade reforou o prazer com que aceitei o Consula-do-Geral no Porto, quando este, anos mais tarde, me foi oferecido.

    Lembro-me, por outro lado, do pasmo de Afonso Arinos, quando Otto,eleito para a Academia Brasileira de Letras, convidou-o para receb-lo em1979, mas concitando-o, em cartas sucessivas e prementes, a aproveitar o en-sejo do discurso para um pronunciamento significativo, que deixasse o maispossvel de lado o recipiendrio. Em suma, deveria acolher Otto Lara Resen-de, porm sem falar em Otto Lara Resende. E isso em nome do bom sensomineiro...

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    Afonso Arinos Filho

  • Eu poderia escrever, aqui, pginas e pginas, lembrando-me de Otto, da suahumanidade, da sua integridade, da sua lealdade e generosidade para com ami-gos. Passou comigo, junto a Fernando Sabino e Hlio Pellegrino, toda a noitedo velrio de meu filho primognito. Eram legendrias as suas tiradas humo-rsticas, sempre desconcertantes. As crianas o fascinavam. Seu livro A boca doinferno est entre os mais pungentes que j li, narrando dramas e tragdias da in-fncia. Grande jornalista, entrevistador de televiso, romancista, contista, cro-nista, escritor infatigvel (inclusive de cartas), dele ficar sobretudo, entre osque tiveram o privilgio de desfrutar da sua amizade e da sua companhia, alembrana de um conversador sem igual, pela inteligncia fulgurante da suapresena, espalhando idias e frases, verdadeiras gemas preciosas, como se fos-sem pedras sem valor. Mas este jorro de esprito escondia uma profunda an-gstia existencial. E ele acreditava na redeno.

    Um dia faz j dez anos , eu me encontrava na chancelaria da nossaEmbaixada na Haia quando minha mulher telefonou-me de casa, chorando.Otto se fora, de forma totalmente inesperada, em conseqncia de uma inter-veno cirrgica banal. Tnhamos uma convidada diplomata para o almoo,mas Beatriz no conseguia conter o pranto. Apoi-la naquela emoo me aju-dou a disfarar a minha.

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    Lembranas de Otto Lara Resende

  • Abadia de Solesmes, na Frana,o maior centro de cultura do cantogregoriano em todo o mundo.

  • A msica sacra crist:das origens atualidade

    Odilon Nogueira de Matos

    Desde os seus primrdios a religio crist serviu-se da msicacomo instrumento de culto. O exemplo vinha dos israelitas,em cujos ritos a msica desempenhava papel importante. O VelhoTestamento apresenta diversas passagens que ilustram essa presenada msica no culto judaico, ora sob a forma litrgica, ora sob a for-ma devocional. Nascido dentro da tradio israelita, no poderia ocristianismo furtar-se a essas influncias. Assim, os mesmos salmos eprovavelmente os mesmos hinos das sinagogas eram ouvidos, tam-bm, nas primeiras comunidades crists. conhecida a recomenda-o do apstolo Paulo escrevendo aos efsios: Enchei-vos do Esp-rito Santo falando entre vs mesmos em salmos, em hinos e em cn-ticos espirituais, cantando e louvando ao Senhor. Assim, o cantocongregacional constitua elemento de culto to importante quantoas oraes e as prdicas.

    Na sua expanso pelo Mediterrneo, o cristianismo transportouconsigo a tradio salmdica, que herdara do judasmo, e mais os hi-

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    Historiador,autor de Fontespara a histria deSo Paulo numaconjuntura detransio (1981) eCaf e ferrovias(1990). Membroda AcademiaPaulista deLetras e doIHGSP.

  • nos que foram sendo compostos para a necessidade da igreja nascente. Ao quetudo indica, as igrejas do Oriente foram as que primeiro aceitaram as novasformas de cnticos e isto talvez possa ser explicado, ainda, pela maior pro-ximidade dos centros da cultura judaica. So conhecidos, por exemplo, di-versos hinos atribudos a Clemente de Alexandria, que faleceu no incio dosculo III, bem como outros, da autoria de Mtodo, de Sinsio e de Efrem,mais ou menos da mesma poca. A seguir, devem ser mencionados os no-mes de Santo Hilrio e Santo Ambrsio. O primeiro, tendo vivido algumtempo na Frgia, voltou a Roma e comps um livro de hinos, que inclui al-guns de sua prpria autoria. Quanto ao segundo, pode ser considerado overdadeiro iniciador da msica crist ocidental, o que deu sua igreja deMilo um papel excepcional na histria do cristianismo primitivo. A partirdessa poca (fins do sculo IV) duas circunstncias significativas contri-buram para o enriquecimento da msica crist: a) a expresso do cristia-nismo para outras reas da Europa continental, tendo como ponto de par-tida a diocese milanesa, e b) a organizao do canto romano. So Jernimo,a pedido de Dmaso (papa de 367 a 384), reviu o saltrio e regulou o cicloeclesistico, segundo a ordem estabelecida pela Igreja de Jerusalm. Tal sis-tema vigorou at que Gregrio Magno empreendesse nova reforma na li-turgia e na msica da Igreja.

    A reforma gregoriana

    Papa de 590 a 604, Gregrio Magno ligou seu nome de modo indissol-vel msica religiosa, pois sua reforma prende-se o surgimento de novamodalidade de canto que recebeu o seu nome e que, durante a maior par-te da Idade Mdia, foi a nica forma de canto aceita pela Igreja. Mondico edesacompanhado, o chamado canto gregoriano constitua-se de oito modos, de-rivados do antigo tetracorde dos gregos: quatro modos denominados autnti-cos, que vinham j de Santo Ambrsio, e quatro derivados, denominados pla-gais. Caracterizavam-no, entre outras coisas, o vocalize sobre uma slaba para

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    Odilon Nogueira de Matos

  • acentuar um sentimento ou uma idia, e o ritmo formado da simples alter-nncia de longas e breves.

    Da reforma gregoriana resultou a fixao de novas formas de cntico reli-gioso, associadas todas liturgia do culto cristo, que, aos poucos, se enri-quecia de novos elementos a acentuar o sentido de solenidade e de magnifi-cncia, que com o tempo adquiriu. Algumas dessas novas formas revestem-sede maior importncia e aqui as indicamos: antfonas (originalmente um cnti-co alternado entre o sacerdote e a congregao), aleluias (cntico de jbilo,herdado tambm dos israelitas, sempre em forma de vocalize), tropos (simplesestrofes intercaladas nos salmos), intritos (salmos ou versos de salmos que osacerdote entoava ao dirigir-se ao altar), ofertrios (durante a consagrao),graduais (tambm em forma de antfona, entoados nos degraus do altar) e se-qncias (formas livres de composio, assim denominadas por serem canta-das em seqncia ao Aleluia).

    As seqncias tornaram-se, pela sua forma livre, uma das mais ricas modalida-des de msica religiosa da Idade Mdia. Todavia, o Conclio de Trento, no s-culo XVI, disciplinando a msica na Igreja, eliminou a maior parte delas, porserem suas letras julgadas pouco adequadas finalidade a que se destinavam.Tal o rigor dos cnones tridentinos a este propsito, que apenas cinco seqn-cias foram conservadas: 1. Victimae Paschali, para a festa da Pscoa; 2. Veni SancteSpiritus, para o domingo de Pentecostes; 3. Lauda Sion, para a festa de CorpusChriste; 4. Stabat Mater, belssimo poema alusivo presena de Maria no dra-ma do Calvrio; e 5. Dies Irae, expressivo poema de Toms Celano, incorpora-do ao ofcio das missas fnebres. Cumpre lembrar que estas duas ltimas sur-giram bem mais para os fins da Idade Mdia.

    Ao lado de todos esses riqussimos cnticos de natureza litrgica, devem serindicados, igualmente, ricos cnticos devocionais, conhecidos pela denomina-o de motetes, os quais, tomando como tema um aspecto qualquer da vida reli-giosa, desenvolvem-se de forma mais ou menos livre, sempre dentro do maiorsentido de expressividade e espiritualidade: Ave Maria, Magnificat, Salve Regina,Nunc dimittis, e tantos outros.

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    A msica sacra crist : das origens atual idade

  • A polifonia medieval

    Os ltimos sculos da Idade Mdia constituem, na histria da msica, umfrtil perodo de pesquisas, no sentido de novas formas de composio, que-brando a rigidez do canto gregoriano e encaminhando-se para uma rica e varia-da polifonia, que comea com o movimento da chamada Ars Nova e terminanas trs importantes escolas de Notre Dame, Borgonha e Franco-Flamenga. Ma-nuscritos que chegaram at ns como o da Missa de Tournai revelam umpasso bem avanado com relao ao gregoriano e prenunciam a obra de Guil-laume de Machaut, autor da mais antiga missa polifnica que se conhece,abrangendo todas as partes fixas do ofcio: Kyrie, Gloria, Credo, Sanctus, Be-nedictus e Agnus Dei. Tal missa, que muitos afirmam ter sido composta para acoroao de Carlos V, de Frana, em 1364, representa um considervel avanono sentido da polifonia. Novas perspectivas surgem, ainda, com as obras deDufay, Ockeghen e Obrechet e, mais para o fim da Idade Mdia, talvez melhorj no Renascimento, com Orlando de Lassus, Heinrich Issak e Josquin dePrs. Estes, mais do que ltimos compositores medievais, devem ser conside-rados os primeiros da Idade Moderna.

    Tendo em vista que, pela mesma poca, desenvolvem-se ricas e variadasformas da msica secular, a comear pelas canes dos trovadores, pelaslaudes e, mais tarde, pelos madrigais, no de se estranhar que numerosospontos de contato surjam entre as duas correntes da msica. A utilizao detemas profanos (ou seculares) na msica religiosa torna-se expediente co-mum, dando origem s chamadas missas de pardia, porque parodiavamum cntico profano qualquer, escolhido como cantus firmus para a missa. Pra-ticamente todos os compositores do fim da Idade Mdia e do Renascimentolanaram mo deste processo, o que explica os ttulos, muitas vezes incon-gruentes e pouco adequados, pelos quais suas obras so hoje conhecidas. Oj referido Conclio de Trento estendeu tambm sua disciplina a este setor,proibindo as missas de pardia, mas, ainda assim, conhecem-se composi-tores que burlaram as decises conciliares simplesmente omitindo nas suas

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    Odilon Nogueira de Matos

  • composies qualquer aluso, no ttulo, a eventuais canes profanas: ori-gem das muitas missas sem nome (missa sine nomine) que vieram enriquecer amsica religiosa deste perodo.

    A msica religiosa no Renascimento

    Figura marcante, certamente a mais expressiva da msica religiosa do Re-nascimento, foi Giovanni Pierluigi da Palestrina, nascido em 1524 e falecidoem 1594. Iniciando sua carreira musical como menino de coro, permaneceuquase a vida toda vinculado Igreja, legando-nos as maiores obras sacras dapoca. Alm de muitas missas (Papa Marcelo, Assumpta est Maria,Ascendo ad Patrem, entre outras, deixou considervel nmero de motetes,alm da rica coleo Le Vergine, por ele intitulada Madrigais espirituais,sobre textos de Petrarca. Pela mesma ocasio, na Espanha, Toms Lus deVictoria (o Palestrina espanhol) produziu vastssima obra, nas mesmas for-mas empregadas pelo grande compositor italiano. E na Inglaterra elisabetanaencontramos a figura marcante de Willian Byrd (que j tem sido denominadoo Palestrina ingls), autor tanto de missas e motetes na tradio catlica,quanto da msica para o service da Igreja Anglicana.

    Dentre as formas musicais criadas ou revalorizadas pelo Renascimento,uma delas acabou vinculando-se msica sacra, embora no seja exclusiva-mente uma forma de msica religiosa: o oratrio. Sua origem remonta ao ano de1600, quando Cavalieri fez executar A representao da alma e do corpo. A naturezadescritiva e no raro dramtica fez com que o oratrio fosse considerado umaespcie de pera no representada. Nascido na mesma ocasio que a pera, aevoluo do oratrio processou-se paralelamente do melodrama, com o qualapresenta muitos pontos de contato. Seu nome, puramente acidental, deri-vou-se da Congregao do Oratrio, fundada por So Felipe Neri, e em cujasede foram levadas a efeito as primeiras realizaes do novo gnero musical.

    Coube a Carissimi (1604-1674) fixar definitivamente a forma do ora-trio, dando-lhe o carter descritivo que no teve nas primeiras experin-

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    A msica sacra crist : das origens atual idade

  • cias de Cavalieri e que acabou fazendo dele uma espcie de irmo gmeo dapera. A um texto apresentado por um narrador, seguem-se, alternadas, ascenas dos personagens. Os assuntos bblicos preponderam no incio danova forma musical: Jeft, Jonas, O julgamento de Salomo, para ci-tar apenas os de Carissimi. curioso observar que o oratrio, tendo nas-cido na Itlia e dentro da tradio catlica, tenha se desenvolvido mais nospases protestantes, onde a forma adquiriu propores grandiosas, nuncavistas em sua terra de origem. As Paixes de Schtz e, especialmente, asde Bach e as grandes obras de Hndel podem ser considerados os pontosmximos que a forma atingiu. O oratrio continuar sendo sempre cultiva-do, mesmo no perodo romntico e nos tempos modernos, como se veroportunamente.

    A Reforma protestante

    De capital importncia para a histria da msica religiosa foi a Reformaprotestante do sculo XVI. Alm de a nova igreja reformada ter restabelecidoo canto congregacional, de tanto interesse na igreja primitiva, mas que, aospoucos, foi sendo abandonado, doravante passa a ser uma das caractersticasde todas as diversas igrejas originadas do movimento reformista, contribuiu aReforma para a msica com a criao de outras. Como forma musical criadapela Reforma, figura o coral luterano. O prprio Lutero era msico e com-positor e procurou sempre estimular os compositores ligados ao seu movi-mento a que escrevessem hinos para que os fiis cantassem. O coral luteranoreveste-se de trs caractersticas fundamentais: a) linha meldica muito fcil,para que todos pudessem cantar; b) utilizao da lngua nacional, no caso oalemo; c) utilizao freqente de melodias populares. Senfl, Nicolai, Hassler,Franck, Scheidt, Praetorius, Walther, Schein e Crueger, entre outros, so no-mes que se alinham, juntos com o prprio Lutero, como autores de um inapre-civel tesouro musical e espiritual que projetou o nome do grande movimentodo sculo XVI nos anais da histria da msica e foi o ponto de partida de uma

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    Odilon Nogueira de Matos

  • rica hinologia que se estendeu a todo o mundo, cada vez mais estimulada pelasdiversas denominaes protestantes.

    O coral luterano estimulou o surgimento de uma variada literatura para o r-go, especialmente o chamado Choralvorspiele, que se poderia traduzir por preldios-sobre-corais, pequenas peas instrumentais, verdadeiras meditaes ao rgo sobretemas dos corais luteranos. Raro o compositor alemo, que tenha escrito para orgo, mesmo nos tempos modernos (Brahms, Reger), que no tenha produzi-do obras nesta nova forma. A todos, porm, excede Johann Sebastian Bach(1685-1750), cujos preldios-sobre-corais, avulsos ou agrupados em colees, figu-ram entre as mais valiosas produes para esse instrumento.

    Outra forma, no criada mas valorizada pela Reforma, foi a cantata, que en-controu igualmente em Bach a sua mais alta expresso. Num total de mais deduzentas, as cantatas por ele compostas cobrem todo o ano eclesistico daIgreja luterana, que compreende numerosas datas no comemoradas pelas ou-tras igrejas protestantes. Neste mesmo gnero das cantatas destacaram-se tam-bm Bruxtehude e Telemann, entre outros. Citemos, ainda, como formas mu-sicais valorizadas pela Reforma, as histrias sacras, do gnero Paixes ou dashistrias de Natal e Ressurreio. Ou, ainda, as sonatas bblicas, de Kuhnau.

    Como sabido, a Reforma protestante no conseguiu manter uma unidadeno grande movimento de ciso do Cristianismo ocidental. Numerosas igrejasforam se organizando logo aps o incio do movimento (1517) e cumpre no-tar que nem todas reagiram, face msica, da mesma maneira que a comunida-de luterana. Assim, por exemplo, a Igreja de Genebra e, posteriormente, as daFrana e de boa parte da Inglaterra, muito mais rgida nos seus princpios e naliturgia, procurando afastar-se o mais possvel da tradio catlica, no aceita-ram, de incio, outra forma de cntico que no fossem os salmos. Isto propiciou,dentro das igrejas de tradio calvinista, o surgimento de uma verdadeira esco-la salmdica, com os nomes de Clement Marot, Claude Le Jeune e ClaudeGoudimel, ou, ento, com a publicao, na Inglaterra, de numerosos sal-trios (colees de salmos), muitos dos quais trazidos pelos pilgrims para ascolnias inglesas da Amrica do Norte. Posteriormente, entretanto, as igrejas

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    A msica sacra crist : das origens atual idade

  • de tradio calvinista mudaram sua orientao quanto msica sacra, e todaselas, tanto quanto as demais denominaes protestantes, vo contribuir comalgumas das mais belas pginas para o maior enriquecimento da j rica hinolo-gia protestante.

    A msica religiosa no Classicismo

    Todas as grandes figuras do Classicismo (Vivaldi, Pergolesi, Scarlatti,Bach, Hndel, Haydn, Mozart) tm seus nomes vinculados msica religiosa,e foi neste setor que muitos deles escreveram suas maiores obras. Seria longo efastidioso enumer-los todos. Citemos, apenas, os mais conhecidos.

    Johann Sebastian Bach, autor de uma obra imensa, abrangendo quase todasas formas de composio, teve boa parte de sua vida ligada Thomaschule, deLeipzig, onde, como mestre-de-capela, tinha por compromisso compor a m-sica para as cerimnias do ano eclesistico e, ainda, cuidar da execuo damsica que escrevesse e ensin-la na escola paroquial. Data desse perodo deLeipzig a maior parte de suas cantatas. Num total de mais de duzentas, como hpouco indicamos, constituem as cantatas de Bach o maior acervo de msica sa-cra j produzido por um s autor. Suas cantatas variam com freqncia na for-ma e na estrutura, sendo as mais comuns as que alternam recitativos, rias e co-ros, encerrando-se quase sempre com um coral, sabiamente utilizado pelomestre. Alm de to grande acervo, deixou Bach, ainda, as Paixes (segundoos quatro evangelistas), os oratrios do Natal e da Pscoa, as quatro missasbreves, o sublime Magnificat, os inmeros preldios-sobre-corais (para orgo), diversos motetes e a monumental Missa em si menor, que alguns con-sideram a maior obra da msica sacra universal.

    George Friedrich Hndel (1685-1759), embora nascido na Alemanha, vi-veu a maior parte de sua vida na Inglaterra. Autor de vasta e multivariada obra(peras, oratrios, sonatas, concertos), vinculou-se msica religiosa especial-mente pelos seus oratrios, inegavelmente as maiores obras j escritas nesse g-nero. Compostos quase todos na sua fase inglesa, versam quase todos temas

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    Odilon Nogueira de Matos

  • ligados ao Antigo Testamento: Israel no Egito, Salomo, Jeft, Dbo-ra, Ester, Sanso, Saul. A todos, entretanto, supera, pela beleza e ex-pressividade, o Messias, escrito em 1741. Mais do que todos os outros ora-trios handelianos, o Messias alcanou vasta popularidade e alguns dos seuscoros, especialmente o Aleluia, com que se encerra a segunda parte, incorpo-raram-se ao repertrio de todos os conjuntos corais do mundo.

    Josef Haydn (1732-1809), alm de um grande oratrio sacro, que pode sercolocado entre as maiores obras do gnero (Criao), e de um grandiosoStabat Mater, deixou grande nmero de missas, as mais belas que o sculoXVIII nos legou: Lord Nelson, Para o tempo de guerra, Cellensis, San-ta Ceclia, entre outras. O carter quase sempre jubiloso de suas missas va-leu-lhe muitas crticas, porque no se coadunavam com a natureza severa damsica sacra, a que a Igreja estava habituada desde os tempos medievais. Mas inegvel o sentimento de espiritualidade no grande compositor austraco, mes-tre de tantas obras-primas, e que utilizou para a msica sacra at os recursospuramente instrumentais, como, por exemplo, na monumental srie intituladaAs sete ltimas palavras da cruz, escrita para quarteto de cordas.

    No deixa de ser curioso que Mozart (1756-1791), tendo dominado todosos gneros de composio, compondo obras magistrais em todos eles, nohouvesse se interessado tanto pela forma oratoriana, na qual produziu apenasduas peas e que no esto entre as maiores do seu acervo: O dever do primei-ro mandamento e Betulia liberata. Em compensao, deixou-nos vinte mis-sas, numerosos motetes, antfonas, litanias, coroando sua obra com o sublimeRequiem, que deixou inacabado, mas foi completado por um seu amigo ediscpulo.

    Na escola italiana so muitos os autores do glorioso settecento, que deixaramimportantes obras sacras: Vivaldi autor de diversos salmos e de um oratriosacro-militar, intitulado O triunfo de Judite; Alessandro Scarlatti com umStabat Mater, a Paixo segundo So Joo e a Missa de Santa Ceclia;Pergolesi com o seu inspirado Stabat Mater; Stradella, com uma cantata deNatal e um oratrio sobre So Joo Batista, e tantos outros. Os franceses dos

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    A msica sacra crist : das origens atual idade

  • sculos XVII e XVIII, recentemente revalorizados, apresentam igualmenterico acervo de msica religiosa: Marc Antoine Charpentier (Magnificat,Te Deum, missas), Campra (motetes e salmos), Lully (Te Deum e Misere-re), Gilles (Requiem), Delalande (salmos).

    Caracterizou, ainda, este perodo do Classicismo, o surgimento de uma bri-lhante msica de circunstncia, quase sempre de natureza religiosa, associada acerimnias das cortes ou s comemoraes de vitrias militares. Como exem-plos, o Te Deum, de Lully, para a coroao de Lus XIV, o Requiem, deGilles, pelo falecimento do mesmo monarca, ou os Te Deum de Hndelpela vitria de Dettingen e pela paz de Utrecht.

    Nos autores do perodo de transio do Classicismo para o Romantismo,assinalado pelos ltimos anos do sculo XVIII e pelos primeiros do sculoXIX, a msica sacra tambm est presente, embora de maneira no to acen-tuada. Beethoven (1770-1827), a figura mais significativa do perodo, dei-xou-nos duas missas e um oratrio (Cristo no Monte das Oliveiras), osquais, embora valiosos, no esto entre as suas maiores obras e no contribu-ram em nada para a sua popularidade. No consenso comum, Beethovencontinua sendo o grande mestre da sonata, da sinfonia e do quarteto. Rossinideixou-nos um Stabat Mater e uma missa, sua ltima obra, mas certamen-te ningum se lembraria dele hoje apenas por essas obras. Cherubini figuracomo autor de duas missas, e no legado de Cimarosa encontramos tambmuma missa de rquiem.

    Do Romantismo aos nossos dias

    O Romantismo no foi um perodo muito propcio msica religiosa, mastodos os mestres romnticos, com poucas excees, contriburam, embora emproporo menor, para o enriquecimento da msica sacra: Schubert, com di-versas missas; Mendelssohn, com dois grandes oratrios (Elias e So Pau-lo); Liszt com algumas missas e dois oratrios (Christus e A legenda deSanta Isabel). Mesmo um compositor lrico como Verdi, que durante toda a

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    Odilon Nogueira de Matos

  • sua longa vida no pensou seno em termos de pera, pagou seu tributo m-sica sacra, compondo uma missa de rquiem em memria de Manzoni, almde quatro pequenas peas sacras, escritas j ao crepsculo de sua existncia.Assim tambm no acervo de outro compositor de peras, Puccini, deparamoscom uma missa, recentemente descoberta.

    Entre os autores franceses do perodo romntico, Gounod legou-nos umamissa dedicada a Santa Ceclia, mas sua grande popularidade decorre de umaAve Maria, que no seno uma meditao sobre o primeiro preldio doCravo bem temperado, de Bach; Bizet e Cesar Franck escreveram canesreligiosas, sendo que do ltimo tambm o grande oratrio As bem-aven-turanas. Dentre os alemes, certamente a obra-prima da msica sacra dosculo XIX o Deutsche Requiem, de Brahms, com texto no litrgico, masextrado das Escrituras.

    Dos compositores ligados s escolas nacionalistas, no tcheco Dvorak queencontramos a maior vocao para a msica sacra, como o demonstram quatroobras-primas de sua autoria: um Stabat Mater, um Te Deum, uma missade rquiem e o oratrio Santa Ludmila. Mais para o fim do sculo, outrotcheco, Leos Janacek, compe uma Missa eslava, sobre antigos textos glago-lticos. Pela mesma poca, compositores ligados Igreja Ortodoxa (Archan-gelsky, Lvov) procuram dotar sua igreja de um aprecivel tesouro hinolgico,litrgico e devocional. Assim tambm, na Inglaterra, onde a forma oratoriana,que continuou sendo cultivada desde os tempos de Hndel, encontra em Elgare em John Stainer dois grandes mestres, o primeiro com The Apostles eThe Dream of Gerontius, e o segundo com The Crucifixion, um dos ora-trios mais populares na Inglaterra de hoje.

    O interesse pela msica religiosa continua, dos ps-romnticos aos nossosdias, com obras de real valor, como as de Bruckner, Holst, Vaughan-Williams,Stravinsky, Britten, Poulenc, Honegger, Villa-Lobos, para citar apenas os no-mes mais conhecidos.

    Documento importante para a histria da msica sacra o Motu prprio dePio X, datado de 22 de novembro de 1903. Procurando mostrar a convenin-

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    A msica sacra crist : das origens atual idade

  • cia de a Igreja Catlica restaurar suas formas primitivas de canto, despertouum interesse revitalizador pelo canto gregoriano (o modelo supremo da m-sica sacra), especialmente entre os beneditinos que tm hoje, na Abadia deSolesmes, na Frana, o maior centro de cultura do canto gregoriano em todo omundo. O interesse estendeu-se a todos os pases e praticamente pode-se falarnuma reforma da msica religiosa catlica aps o documento do grandepontfice. Por outro lado, a forma oratria, que havia sido quase abandonadapelos compositores catlicos, apesar de ter sido dentro do catolicismo que elanasceu, foi reavivada com a obra de Lorenzo Perosi, autor de A ressurreiode Lzaro, O trnsito da alma e outras obras mestras, colocando novamen-te a Igreja Catlica na vanguarda dos grandes mestres do oratrio.

    O continente americano apresenta, especialmente nos tempos coloniais,uma rica tradio de msica religiosa. Na Amrica do Norte, a influnciados pilgrims, levando para l seus saltrios, ou a dos morvios, grandes cul-tores da msica e cujos mestres, revalorizados recentemente pelos norte-americanos, oferecem preciosa contribuio hinolgica, dentro de umatradio que continuou sendo cultivada nos Estados Unidos pelas di-versas igrejas protestantes. Na Amrica Latina, a tradio catlica esti-mulou as festividades de igreja, para as quais se fez necessria uma msicacolonial brasileira e latino-americana, que ultimamente vem sendo pes-quisada, predominantemente religiosa. Sirva de exemplo o acervo relati-vo ao chamado Barroco mineiro, cujos mestres eram todos msicos deigreja. Assim tambm, posteriormente, o Padre Jos Maurcio NunesGarcia, que durante os reinados de D. Joo VI e D. Pedro I proveu demsica a corte do Rio de Janeiro, deixando vrios motetes e missas, entreestas o rquiem para as exquias da rainha Dona Maria I.

    Caberia, ainda, aqui uma referncia utilizao de temas religiosos emobras no religiosas, como peras e bailados, ao tratamento por autores mo-dernos de autos e mistrios medievais (caso de Britten, por exemplo), ou uti-lizao de temas populares na msica sacra, a exemplo do que se fez em outraspocas: s vezes como expediente catequtico (Missa Luba, Missa Bantu),

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    Odilon Nogueira de Matos

  • s vezes como aproveitamento folclrico (Missa em aboio ou a Missa domorro, esta sobre temas das favelas) ou simplesmente como entrosamento demelodias e ritmos populares, como a Missa de Axelrud ou a Messa dOggido compositor italiano Enrico Intra; ou ainda na pera-rock, Jesus Christ su-per-star, dos norte-americanos Tim Rice e Andrew Webber.

    O segundo Conclio Vaticano, de meados do sculo passado, marcou aabertura de uma nova fase na histria da msica religiosa catlica. No apenaso canto congregacional foi restabelecido (embora ainda no de todo generali-zado), com maior participao dos fiis no ofcio divino, como determinouuma quebra de rigidez das formas de missa (que vinham da Idade Mdia), pro-piciando a utilizao de textos mais livres e mais adequados s diversas nature-zas do ofcio divino, de acordo com elementos circunstanciais que toquemmais de perto sensibilidade e s emoes dos fiis. Mais ainda: passou a Igrejaa adotar as lnguas nacionais em vez do latim. E conseqentemente numerososcompositores, em todos os pases, puseram-se a escrever missas para a nova li-turgia, todas elas moda do coral luterano, de linha meldica muito fcil, poisdevem ser cantados por todos.

    E assim tambm as msicas para os dois grandes momentos do ano eclesis-tico, aqueles que se prendem ao nascimento e morte de Cristo. O Natal cons-tituiu, ao longo dos sculos, uma das ricas fontes de inspirao musical e emtodos os pases: Nols na Frana; Christmas Carols na Inglaterra e nos pa-ses de lngua inglesa: Weihnachtslieder, nos de lngua alem, Navidadnos de lngua espanhola, e por a afora, que todos eles, sem exceo, possuemem grande quantidade msicas de Natal, formando inaprecivel tesouro. Isto,sem falar nas grandes obras polifnicas inspiradas na festa magna da Cristan-dade. O mesmo se poder dizer da chamada Semana Santa, desde as paixesmedievais e renascentistas, a que j se fez referncia, at obras mais simples,litrgicas ou devocionais, que enriquecem musicalmente a vida da Igreja nascomemoraes da paixo, morte e especialmente ressurreio de Nosso Se-nhor. E nesta seara, Natal e Semana Santa, todos os ramos do Cristianismo catlicos, protestantes, ortodoxos apresentam enorme contribuio.

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    A msica sacra crist : das origens atual idade

  • Mas, no s estes grandes momentos da Semana Santa e do Natal. Todo ocalendrio eclesistico, que comea com o domingo do Advento, ou seja oquarto domingo antes do Natal, e termina com a festa de Cristo Rei, constituifonte preciosa de inspirao musical: o Advento, a Festa da Imaculada, a Epi-fania, a Festa da Purificao, a Septuagsima, a Sexagsima, a Qinquagsima,a Anunciao, a Ascenso do Senhor, o Pentecostes, a Santssima Trindade, oCorpus Christi, a Visitao, a Assuno, a festa de Todos os Santos e final-mente a de Cristo Rei. Poderamos arrolar inmeras composies inspiradasnesses grandes momentos do ano eclesistico.

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    Odilon Nogueira de Matos

  • Um prefcio: A empresamoderna no Brasil

    Antonio Delf im Netto

    Os dois agentes econmicos fundamentais dentro da teoriaeconmica so os consumidores e as firmas. As firmas soresponsveis pela produo de bens e servios para a satisfao dasnecessidades dos consumidores. Apesar de sua fundamental impor-tncia, os economistas pouco sabem a respeito do dia-a-dia da em-presa, do processo produtivo e das motivaes dos empresrios.

    A firma comeou a ser efetivamente compreendida pelos econo-mistas aps a publicao de Ronald Coase, The Nature of the Firm, em1937, sendo que os estudos nesta direo levaram Coase e DouglasNorth a obter o Nobel de Economia.

    Geralmente os estudos a respeito da firma procuram visualiz-ladentro de uma estrutura de mercado. Uma questo que geralmentese coloca se o sistema de mercado, com um grande nmero de fir-mas produzindo isoladamente, por ter garantido um grande desen-volvimento nas economias ocidentais e orientais, a melhor formade estruturao. Argumenta-se que a existncia de custos transacio-

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    Ex-ministroda Fazenda,deputado federal(PPB-SP).

  • nais no mercado e de algumas ineficincias do sistema de preos em sinalizar aalocao tima dos fatores produtivos pode reduzir a eficincia do sistema, eque a existncia de firmas integradas verticalmente, ou no extremo uma econo-mia com planejamento central, reduziria os custos e aumentaria a eficincia.

    A verdade que, apesar da existncia dos custos na soluo de mercado,existem custos muito maiores na soluo centralizada. A existncia de uma au-toridade central afeta o funcionamento do sistema econmico, e existem situa-es onde a interveno governamental no a melhor, como o caso, porexemplo, de um comportamento oportunista por parte da autoridade central,onde a deciso pode ser tomada considerando-se os interesses pessoais e no aeficincia do sistema.

    Existem custos para coibir a autoridade central de adotar uma estratgiaque leve em considerao apenas os seus interesses e no o interesse comum.

    Mesmo que as autoridades sejam competentes, imbudas de esprito pbli-co e imunes a suborno, ainda existiriam duas razes que recomendariam a re-duo do poder discricionrio das autoridades centrais:

    1a Prover as demais organizaes dos incentivos corretos. A autoridadetem de ser capaz de agir contra seus prprios interesses, se isto for necessrio, eisto s possvel se existirem limites ao poder central.

    2a Desencorajar o comportamento de rent seeking, daqueles que soafetados pelas decises do poder central.

    Alm destas questes, resta ainda uma fundamental. Qual o estmulo quelevaria a autoridade central a adotar a estratgia que geraria a maior eficincia(alis, sem a existncia do mercado, como definir a melhor estratgia)? Em umsistema de mercado, a existncia do lucro se incumbe de gerar os estmulospara a adoo da melhor estratgia. Embora devam existir custos transacionaise no exista informao perfeita, os custos decorrentes da estratgia de produ-o de firmas isoladas parece ser bem menor do que aqueles decorrentes deuma estratgia centralizada.

    Comportamentos desonestos, que aumentam os custos transacionais e re-duzem a eficincia produtiva em um sistema de mercado, podem ser reduzidos

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    Antonio Delf im Netto

  • com a existncia de normas, cdigos de conduta, etc. Um aumento da veloci-dade de circulao de informao (e quem negar este aumento com o enormeprogresso da informtica e das telecomunicaes?) reduz os custos de transa-o, pois os agentes passam a ser punidos pelo seu comportamento desonestono apenas onde agiram oportunisticamente como em outros mercados.

    A economia ainda engatinha no conhecimento de como funciona uma fir-ma, e de quais so os estmulos que levam os empresrios a adotar uma dadaestratgia. Atualmente a teoria tem dado muito peso aos custos para explicar ocomportamento das firmas e pouca ateno tem sido dada s mudanas tecno-lgicas.

    Outras questes, como a existncia de contratos incompletos, reputao,incerteza, direitos dos proprietrios, planejamento, etc., so campos que preci-sam ser explorados e provavelmente o sero no futuro prximo.

    Este o caminho aberto pelo trabalho do Sr. Joo de Scantimburgo que osleitores agora vo apreciar.

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    Um prefc io : A empresa moderna no Bras il

  • Pieter Breughel (1527-1569)Torre de Babel, 1563leo sobre painel de madeira, 113,9 x 154,9 cmMuseu de Histria da Arte, Viena

  • A Torre de Babel e oneokantismo

    Nelson Saldanha

    A Torre de Babel, pintada por Breughel o Velho, sem dvidaum dos mais intrigantes quadros de seu tempo. Refiro-me grande Torre, que se acha em um museu de Viena (Breughelpintou outras, das quais apenas uma no desapareceu e se acha emRotterd).

    Trata-se de um quadro impressionante. A Torre ocupa quasetoda a tela, to grande de dimetro quanto de altura, com a baselargamente plantada sobre o cho. De um lado, o espao restantemostra um porto com navios; do outro, h um casario que se es-tende para longe. No primeiro plano o rei (Nemrod) observa ostrabalhos de cantaria, acompanhado de algumas figuras. E mui-tos tm tentado analisar ou interpretar o quadro: o orgulho hu-mano que se expressa na ousadia da Torre (cf. Gnese, captulo11), e que se reflete na pessoa do rei; a origem oriental do tema,indicada pelo fato de estarem, certos personagens, ajoelhados di-ante do monarca. Em alguns dos andares h aberturas que po-

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    Advogado eescritor, nasceuno Recife, em1933. Professoruniversitrio,membro daAcademiaPernambucanade Letras,publicou vrioslivros, entre osquais: Histriadas idias polticasno Brasil; Sociologiado Direito;Humanismo eHistria; O jardime a praa.

  • deriam lembrar um aqueduto. Houve comentaristas que associaram a for-ma geral da Torre ao Coliseu Romano; poderia semelhar, ainda, um amon-toado de castelos.

    Dir-se-ia tambm, conforme a associao que a cada observador ocorre,um mandala com ngulos, ou ento um anti-mandala: unidade e diversidadeconjugadas de modo um tanto estranho. Semelharia ainda um colossal dep-sito de coisas vrias, inclusive de gente: uma edificao inslita e entretantoimponente.

    Mas a Torre d, alm de tudo isto, uma impresso a mais: a de uma constru-o humana que se finca na terra (um rochedo ou um plano) e se confundecom ela. A largura da construo, os tons em que se acha pintada (ocre, bege,cinza), a compleio assimtrica.

    E nisso, na fuso entre a base da Torre e o pedao de cho terrestre em quese acha plantada, cabe ver uma representao das relaes do homem com aterra. O homem na terra, habitando casas que se fazem nela e dela; e contudosaindo dela, subindo em torres, erigindo monumentos, inclusive obeliscos,tentando alar vo e chegar s nuvens. Sabe-se que um dos lugares-comunsreferentes ao quadro dizer que ele retrata a soberba dos homens que busca-ram levantar patamares de pedra (ou de tijolo) chegando s nuvens (h nu-vens, no quadro, altura da parte superior). Mas no caso da torre a constru-o no se destaca da terra, nem poderia faz-lo: funde-se com ela pelo ladode baixo, pelos alicerces.

    A Torre hbrida no sentido grego, de desmedida, e tambm no senti-do que tomou, modernamente, de mistura. H, portanto, um contraste,que ao mesmo tempo uma fuso, entre a construo humana, enorme ebizarra, e a terra em que se encrava. Ou seja, e agora tento dizer o essencial:entre a natureza e o humano. Em termos contemporneos, natureza e cul-tura. A natureza como o bsico, mas tambm o rude, o bruto, ou ainda opr-humano. Mas tambm como garantia e asseguramento, como a proxi-midade do cho para quem navega. E como o regular, o que apresenta regu-laridades, o previsvel. James Frazer, no captulo XLIII de The Golden Bough,

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    Nelson Saldanha

  • registrou em belas frases o aprendizado, entre os povos antigos, da regula-ridade das estaes, expressada no surgimento dos gros ou das rosas.

    Uma edificao que pretende ser como uma montanha; uma parte da natu-reza prolongando-se na obra humana. O humano como negao da natureza, ecomo parte dela; o humano inimaginvel sem a fisiologia e sem o mundo natu-ral. Na Idade Mdia europia, as coisas vindo da natureza (como no Estagiritaa condio humana, peri fseus poltica). As coisas saindo de Deus, inclusive opoder, mas ao mesmo tempo saindo da natureza. Com o mundo dito moderno que o homem tentaria dominar a natureza e criar as coisas, as da polticainclusive, por sua conta e risco. Em Maquiavel e em Hobbes o Estado e a pol-tica so obra dos homens, no mais coisas dadas a eles.

    Com o mundo dito moderno veio o processo de secularizao: antro-pocentrismo, humanismo, gradativo recuo dos padres teolgicos diantedos padres leigos, vale dizer, racionais. O homem se descobre desvalido,desprovido dos amparos transcendentais, e recorre a si mesmo: cai paradentro de si, de seu saber precrio, e busca no interior da sociedade (e dasinstituies) o fundamento para sua ao, que antes vinha de Deus e deseus ditames.

    Mas, como na histria ocorre tantas vezes, pedaos de uma poca sobrevi-vem na poca seguinte (Hegel entendeu isto). Persistem componentes teolgi-cos dentro do Ocidente dessacralizado; persistem ou retornam, como porexemplo no conservadorismo francs do tempo de Joseph de Maistre.

    Retenhamos que, quando se pensava nas instituies como coisa natural,elas eram entendidas como obra divina. Omnis potestas a Deo. como se a secula-

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    A Torre de Babel e o neokantismo

  • rizao racionalizadora viesse a ser uma espcie de exacerbao do cultural, dohumano (homo faber), primando ousadamente sobre o natural. Sob este aspecto,ao menos; sob ele, o componente teolgico se associa idia de natureza. Nopor acaso a escolstica falava da luz natural da razo.

    O conflito, dentro da vida humana, entre natureza e cultura tem sido repre-sentado sob diversas formas. O conflito, digo, ou a unio. Nas religies antigas e na respectiva arte aparecem figuras que so misto de homem e animal: as-sim, no Egito, deuses com cabea de chacal ou de falco; na Caldia, os tourosalados com rosto e barba de gente; em Creta o Minotauro; na Grcia os cen-tauros, as esfinges, as sereias. Geralmente a cabea humana. O humano con-duzindo a natureza, ao que parece, mas preso a ela.

    Na mitologia grega os gigantes aparecem como criaturas rebeldes e perver-sas (ao contrrio dos heris e dos semideuses). Os ciclopes, por exemplo: naOdissia, Polifemo enfrentado pela sagacidade de Ulisses e de seus companhei-ros, e ele representa uma criatura pr-humana, vinda de um lugar sem cidades esem leis. E tambm pr-poltica, porquanto somente com a polis se tem o serhumano em sua plenitude: o homem como animal poltico. Tambm nosLusadas o Adamastor, rebelde derrotado, transformado em acidente geogrfi-co, surge como ameaa para os navegadores: com ele, a nuvem que ps noscoraes um grande medo.

    Deste modo se expressa, naqueles relatos fundamentais, a pertincia huma-na, em luta com a natureza ou superando estgios pr-humanos da existncia.O humano fazendo-se, quase como se j ento ocorresse a intuio de que aohomem cabe a liberdade terrvel de ser isto ou aquilo, de construir e destruir; ede que lhe cabe como diriam os existencialistas a escolha de sua essncia.

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    Nelson Saldanha

  • Mas, retomemos a figura da torre. As comparaes seriam, no plano histrico,as pirmides egpcias e os zigurates mesopotmicos, cujo desenho Breughel deveter conhecido, dada a semelhana com sua Torre (ou com suas torres: mais se-melhana, alis, no caso do quadro menor). E ainda as pirmides truncadas dosmaias e dos astecas, cuja origem ao que suponho continua sendo um enigma. Oszigurates devem ter sido o modelo de Breughel, e de resto a narrativa bblica falaem tijolos, que eram (e no a pedra) o material usado pelos caldeus.

    No Canto primeiro do Purgatrio, Dante refere um monte, que oprprio Purgatrio (dove lumano spirito si purga) e que como o tronco de umcone, com sete planos em volta. Em 1465, Domenico di Michelino pintouum retrato de Dante, corpo inteiro, com um livro na mo, tendo ao fundo aMontanha do Purgatrio: no alto desta, uma aluso ao Paraso. A monta-nha, semelhante a um zigurate (e tambm a um bolo de noiva), antecipa emalguma medida a Torre de Breughel, que na verdade tem algo de monte e algode zigurate. Breughel est mais prximo do drama da juno / conflito entreo natural e o humano.

    Erich Auerbach menciona os sete terraos da Torre de Babel, lembrandoo nmero sete presente nas jornadas gnsticas (Dante trazendo para a Comdiaelementos orientais).

    Retornemos aos sculos XVI e XVII (O prncipe em 1513, o Leviat em1651). Em Maquiavel a poltica se acha descrita como um domnio indepen-dente da tica e da teologia: os homens fazem e desfazem as situaes. EmHobbes a natureza humana condiciona a passagem do estado de natureza,com seus perigos, para o Estado social, atravs do contrato: novamente o hu-mano, isto , o poltico, superando o natural, isto , o pr-poltico. O processode secularizao, com seu preo da perda das transcendncias, imps ao ho-mem a necessidade de assumir autorias. Cada vez mais se discutem problemasinstitucionais, inventam-se doutrinas. O Ocidente da transio ps-revolu-es liberais crescentemente um frum de debates.

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    A Torre de Babel e o neokantismo

  • Na Idade Mdia contrapunham-se o Cu e a Terra. Com a secularizao,que se desenvolve a partir (mais ou menos) do Renascimento, fala-se menosno cu: pensa-se no Homem e no Mundo. Passa a crescer a experincia da vidaurbana; o homem e a cidade se identificam e ambos se afastam da natureza. Nosculo XX seria possvel pensar no homem como ser histrico, e entender todaa Histria como histria do homem urbano. Desenvolve-se ento o tema dadistino entre natureza e cultura.

    O Renascimento ocasionou o surgimento de uma concepo filosfica danatureza, relacionada com o interesse pelas cincias empricas e com a idia deuma alma universal, correlata da unidade do mundo. A criao de uma His-tria Natural (de que provocativamente fala Foucault em Les mots et les choses)envolveu, por outro lado, uma considerao dos caracteres nos quais se ex-pressa a realidade objetiva. La nature, diz Foucault, est (comme) un tissuininterrompu de mots et de marques.

    Nos sculos XVIII e XIX, um novo tipo de razo, a razo revolucionria, seimps pela eficcia: sempre a razo natural, mas reelaborada pelo racionalis-mo aplicado de Voltaire e de Rousseau to diferentes, mas no de todo , eprolongada no cientificismo alimentado a partir de Comte pelo positivismo. Arazo revolucionria dispensava a Histria e fazia-se histria: era o logos criadorde Sieys impondo obra poltica burguesa (secularizada) um sentido de autole-gitimao. Rousseau e Voltaire amavam o natural, este com o senso comum eaquele com a metafsica, buscando no homem aquilo que vinha sendo ocultadopela histria.

    Mas no se questionou, ento, a diferena entre natureza e cultura. O temaaparece na Fenomenologia de Hegel sem, contudo, entrar no Sistema. Kant noatinara com o problema, mas os neokantianos o descobriram. As cincias soci-ais cincias do homem e da cultura praticamente inexistiam poca deKant, para o qual o conhecimento cientfico se achava representado basica-mente na fsica. Com o advento das cincias culturais, tornou-se necessriorever o quadro das cincias, dominado por muito tempo pela classificaolinear e evolutiva de Comte; esta foi uma tarefa dos neokantistas, marcada-

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    Nelson Saldanha

  • mente Windelband e Kickert. Aquele distinguindo entre o explicar, prpriodas cincias naturais (e das positivas), e o compreender, prprio das cinciasdo esprito; este formulando, no pequeno e relevante livro Cincia Natural eCincia Cultural, o status epistemolgico do conhecimento referido a valores,peculiar s cincias culturais. O pensar secularizado, aps minimizar o compo-nente teolgico, chegou a uma tipologia leiga das cincias. O sculo XX come-ou dispondo, j, dessas tematizaes.

    Positivistas e neopositivistas de todos os matizes ainda defendem teimosa-mente a tese de que s existe uma cincia, ou um tipo de cincia, mas s umateimosia.

    As religies antigas nasciam junto Natureza: grutas, montes, jardins, de-sertos, animais. E aqui cito, como j o tenho feito, a frase de Andr Pietre: associedades nascem na religio e morrem na burocracia. Vivemos a idade dodinheiro e da tecnologia, um tempo paradoxalmente individualista e impes-soal. Algum j observou que o cavalheiro de outras pocas recebia umaformao, enquanto que o executivo de hoje recebe um treinamento (trai-ning). A natureza fsica vai sendo destruda, enquanto que a natureza (en-quanto essncia) das coisas perde o resto de seu perfil. Os ambientes emque esto as decises maiores parecem, hoje, cada vez menos naturais, nosentido das folhas e da madeira: o desenvolvimento desmatador, se cal-cula com cifras e ignora os seres de carne e osso. Crescem desmesuradamenteas populaes e os edifcios, lenta catstrofe que nega os dados da Histria edespreza a memria das naes.

    Recife, 3 de maro de 2003.

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    A Torre de Babel e o neokantismo

  • James Joyce (1882-1941)

  • O milagre literrioda Irlanda

    Benedicto Ferri de Barros

    Algo de espantoso ocorre nessa pequena ilha que tem apenasum tero do Estado de So Paulo e cuja populao aindahoje no alcana quatro milhes de habitantes: ela produziu Burke,Oscar Wilde, Bernard Shaw, William Butler Yeats, James Joyce, Sa-muel Beckett, Seamus Heaney, quatro deles prmios Nobel de Lite-ratura.

    Que h nesse ecmeno de to frtil para to ampla e alta produ-o literria?

    Dureza geogrfica, dureza histrica. Abismos tnicos, fanatismoreligioso e poltico, violncia, imobilismo, desolao, desesperanatotal. Um pncaro da vida e da morte.

    Seu territrio foi invadido desde o sculo XII pelos ingleses, que daIrlanda fizeram sua primeira colnia. Seguiram-se, at os dias de hoje,oitocentos anos de luta aberta ou surda como fogueira mal extinta contra a dominao britnica. As contradies da revoluo cromwel-liana, onde a minoria puritana derrota a maioria catlica e, no sculo

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    Jornalista eprofessor,especialista emhistria e culturajaponesa. Autor,entre outras, dasseguintes obras:O mercado de capitaisdos Estados Unidos Organizaes e seufuncionamento (trad.),Mercado de Capitais eABC de Investimentos,Mudanas econmicasmundiais e a crisebrasileira, Japo A harmonia doscontrrios, Viagemao Japo, Rapsdiade Ouro Preto(poesia).

  • XVII, antecipa com os massacres de Wexford, Drogheda e outros o horror ge-nocida do fanatismo ideolgico dos totalitarismos do nosso sculo, jamais fo-ram eliminadas da memria e do sangue irlands. Em 1916 explode a revoluoseparatista; em 1921 consumou-se a diviso entre a Irlanda catlica do sul e oUlster protestante do norte; a Irlanda do Norte permaneceu ligada Inglaterra, aIrlanda do Sul adquiriu o status de Estado Livre sob o regime de dominium britni-co, do qual s se livrou com a declarao da Repblica e sua retirada da Common-wealth em 1948. O Ulster minoritrio e protestante e a maioria da RepblicaIrlandesa convivem nessa mesma pequena e despojada ilha.

    Despojada, sim. Em meados do sculo passado, ela era habitada por seis mi-lhes, que viviam quase exclusivamente de batatas. Uma praga, que dura quasecinco anos, reduz drasticamente as colheitas. Um milho de irlandeses pere-cem; cerca de dois milhes emigram nos cinco ou seis anos seguintes. A Irlandajamais recuperou seus seis milhes de habitantes, nem esqueceu o desamparoem que a Inglaterra a deixou.

    No corao da Irlanda se degladiam as foras autctones de sua cultura celto-galica-catlica e a seduo da vitoriosa cultura protestante anglo-britnica.No ltimo milnio no houve trguas entre elas. A histria da diviso, do con-flito de fs e lealdades o dia-a-dia do irlands. Ao mesmo tempo, essa perp-tua agitao parece condenada monotonia de um imobilismo sem sada.Como disse Moore (1852-1933): Nada viceja (na Irlanda), a no ser os sol-teires, as freiras, os padres e os bois. Talvez devesse completar o quadroacrescentando: e as paixes.

    Tal habitat cultural insuportvel para individualidades de inteligncia esensibilidade mais finas. Foradas a conviver com o drama e a desesperana,elas se realizam no reino da literatura, espcie de exlio anmico auto-impostoonde seus intelectuais se refugiam. Vo alguns para a odiosa Inglaterra e aforma pela qual a vivem e produzem traduz claramente o que pensam e sen-tem. Wilde e Shaw, com seu sarcasmo e cinismo, so exemplos notrios.

    Os grandes literatos irlandeses, por diversos que sejam sua cosmoviso e es-tilo, so todos retirantes de um mundo que os sufoca. Um mundo que odeiam

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    Benedicto Ferri de Barros

  • e amam ao mesmo tempo; que a um tempo exaltam e criticam. So todos, emmescla de propores variadas, radicais, apaixonados, extremistas, cnicos,destruidores violentos romnticos e buclicos. Esses motivos e paixes,como imensa fogueira vital que incendeia as almas, so os que, transfiguradosna literatura, iluminam e aquecem suas obras.

    Tais consideraes nos vieram como nuvens sopradas pela leitura da sur-preendente Guirlanda de histrias Uma antologia do conto irlands (So Paulo, Edito-ra Olavobras, 1996), organizada por Munira Mutran,1 reunindo dezessetetrabalhos de diferentes autores, peas de um nvel literrio e uma qualidade detraduo raramente apresentados por obras do gnero. Trs captulos finais,um da organizadora, Consideraes sobre o moderno conto irlands, outrode Maria Helena Peixoto Kopschitz, sobre Ping, de Samuel Beckett, e umaIntroduo Ping, de Haroldo de Campos, completam o volume.

    Estamos inclinados a crer que no por mero acidente de preferncia da or-ganizadora que a coleo (exceo feita a Ping e a Asas da pomba que nis-so se diferenciam do conjunto) mantm um estranho ar de comunidade entresuas peas, como se os diferentes autores e contos fossem simples variantes deuma forte identidade comum, a saber, a terra e a literatura irlandesa. H, no li-vro todo, o cheiro do mesmo solo, do mesmo mar, das mesmas praias, do mes-mo cu, da mesma vida provinciana, buclica, apaixonada, a um tempo singelae sofrida, resignada, alegre e comunicativa.

    Salvo pelo milagre da mais apurada sensibilidade transposta para a arte lite-rria, difcil compreender como possvel, com o enredo mais simples, asmais simples palavras, os fatos os mais comuns, a maior brevidade, alcanar

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    O milagre l iterrio da Irlanda

    1 Munira H. Mutran professora e livre-docente da Universidade de So Paulo, na Faculdade deFilosofia, Letras e Cincias Humanas, e fundadora e presidente da Associao Brasileira de EstudosIrlandeses. Seu e-mail: [email protected]; e-mail da distribuidora de livros: [email protected]

  • tanta fora, tanta profundidade, tanta beleza, como se a prosa se elevasse a aonvel de comunicao da poesia a mais alta. Os tipos so comuns, mas seu per-fil os singulariza, e, desenhados a leves traos de pincel, parecem, contudo, gra-vados em gua-forte.

    Em alguns contos, como O amante demnio, Hspedes da nao,Miss Holland, Barro, est visto que a vida no mesmo para brincadeiras.Na maioria os sentimentos se mesclam na confusa ambivalncia que caracteri-za a autntica realidade humana.

    Nunca estive na Irlanda, mas como se a houvesse visitado e de h muito aconhecesse e a sua gente, pois muitos de seus lugares e pessoas me lembram,universalmente, lugares e gente da minha prpria infncia, lugares singelos ehumildes onde vivi enquanto menino.

    J salientei o nvel igualmente alto de cada conto. Em matria de prefernciapessoal coloco-os, porm, em trs planos: o primeiro, constitudo por O fun-do da terra e o fundo do mar, O gato e o milharal, Hspedes da nao,O bbado e O fazedor de aguardente (nessa exata ordem); meio desorde-nadamente, O amante demnio, A velha, Miss Holland, A coroa domartrio, A tola borboleta, Paixo, A partida para o exlio; ficam numterceiro plano e para dizer tudo, no consegui atravessar As asas da pombanem me atrevi a ler Ping. uma questo de alergia cultural que me sinto naobrigao de explicar no parntesis que vai a seguir.

    Excelente o trabalho informativo de Munira Mutran e altamente meditadase judiciosas as consideraes de Maria Helena Kopschitz, profunda conhece-dora e analista de Beckett que .

    (Pessoalmente tenho alergia pelo extremismo em todos os campos, a inclu-dos o da literatura e artes em geral. Trata-se de uma concepo pessoal, avessa deformao da linguagem, da comunicao originalidade outrance que seamanceba com o caos.

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    Benedicto Ferri de Barros

  • Literatos e artistas (como cada homem em seu ofcio) constantementefazem exerccios em busca de novas formas de expresso. s vezes, a srio, svezes com um sentido e alvo deliberados. Porm, com freqncia no menor,por brincadeira, simples desfastio, por ociosidade, por no terem o que fazer, porautismo. Pour pater le bourgeois, intrujar o crtico, mistificar um pblico que des-prezam, para gozar narcisistamente a estupefao que causam, divertir-se comas acrobacias e contores intelectuais que provocam nos que buscam motivose significado onde eles no puseram nenhuns. O pior quando, por uma re-tranca inesperada do feedback recebido, acabam levando a srio as prpriaschanchadas.

    A chamada arte moderna, de vanguarda, de contracultura, embarcou afundo nesse processo e muitos foram os grandes artistas e literatos que assimse exprimiram e exploraram seu pblico e seus crticos. Outros, honestamen-te piraram de verdade, ou atingiram a verdade apesar de pirados. Um ocea-no de mediocridades os acompanhou nessas facilidades ou dificuldadespessoais.

    O equvoco insupervel da contracultura querer passar e ser tomada poralguns como cultura. Ela o fruto desesperado de um extremismo niilista radi-cal (com perdo da redundncia) que jamais ser incorporado cultura, por-que impotentemente objetiva deformar e destruir, ao passo que a cultura pornatureza criao, formao, acumulao e comunicao.

    Professores e crticos, por dever profissional, so obrigados a acompanharessa produo. Mas como sou um consumidor de literatura e de arte, e no umestudioso do que se passa nesses campos, no gasto meu tempo com ela.)

    lbum de retratos breve notcia

    Foram nove anos de estudos e dois de redao.Circunscrevendo-se s duas ltimas dcadas do sculo XIX e utilizando

    como documentos bsicos (alm de vasta bibliografia complementar) depoi-mentos autobiogrficos de trs poetas e artistas irlandeses mximos, Wilde,

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    O milagre l iterrio da Irlanda

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    Benedicto Ferri de Barros

    George Gordon NoelLord Byron (1788-1824)

    George Bernard Shaw(1856-1950)

    William Butler Yeats(1865-1939)

    Samuel Beckett(1906-1989)

  • Moore e Yeats, que circulavam pelo tringulo de Londres, Paris e Dublin,Munira reconstitui o clima cultural e a problemtica espiritual que vir a ser atemtica desenvolvida por todo o sculo XX.

    O livro lbum de retratos George Moore, Oscar Wilde e William Butler Yeats no fimdo sculo XIX: um monumento cultural (Humanitas, FFCL USP-Fapesp, So Pau-lo, 2002) representa um feito intelectual notvel. No s pela originalidade domtodo empregado, com estrito rigor acadmico, como se evidencia no primeirotero da obra, cuja leitura pode ser de menor interesse geral. Mas do ponto devista literrio, pelo fato de, metabolizando gigantesca erudio, ter conseguidoconvert-la em lmpida e flagrante narrativa. Como se Munira tivesse vividonaqueles lugares e tempos, tivesse compartilhado a intimidade de suas perso-nagens e nos contasse sobre isso. E que personagens! No ambiente onde Moo-re, Wilde e Yeats convivem e formam seu esprito e suas concepes sobre artee literatura, d-se de encontro com figuras como Darwin, Shaw, Manet, Degase numerosas outras figuras da literatura e das artes em geral em momentos osmais significativos de sua vida, de suas idias e de sua personalidade.

    Mais do que simples trabalho exegtico na rea da literatura, a obra assimum amplo painel que recupera em sua intimidade o esprito de toda uma po-ca, mediante um esforo multidisciplinar. Nasce com a envergadura de umclssico no oceano bibliogrfico existente.

    Falei em multidisciplinaridade. No me consta, contudo, que Munira sehaja especializado em histria, psicologia, antropologia e outras cincias hu-manas. Entretanto, sua rica e devotada cultura literria um exemplo belo econfortador de que em lugar do invivel sonho da multidisciplinaridade ocaminho literrio pode proporcionar uma cultura humanista perdida pelafragmentao dos conhecimentos imposta pelo especialismo. E s a formaohumanista, como todos sabemos, s ela pode nos dar plena compreenso dosproblemas humanos.

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    O milagre l iterrio da Irlanda