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Um exército invisível contra o câncer Mãos que sustentam o Brasil O primeiro universitário da família Um case de sucesso na saúde bucal pública Entrevista - José Mariano Beltrame

Revista Et alii

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Revista científica e cultural produzida pelo Núcleo de Jornalismo da Comunicação da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).

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Page 1: Revista Et alii

Um exército invisível contra o câncer

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Revista de Jornalismo Científi co e Cultural.

Et Alii é uma expressão latina, cujo signifi cado é “e outros”. O termo é usado em citações bibliográfi -cas, quando a obra possui muitos autores. Como esta é uma obra coletiva, voltada para o amplo de-bate de questões pertinentes em diversas áreas, sendo produzida não apenas pelos repórteres, mas principalmente pelos entrevistados e colaborado-res, optou-se pelo uso da expressão como o pró-prio nome da revista.

ExpedienteUniversidade Federal de Ouro PretoCampus Morro do Cruzeiro, s/n, Morro do CruzeiroOuro Preto – CEP: 35400-000

Administração Reitor: Prof. Dr. João Luiz MartinsVice-Reitor: Prof. Dr. Antenor Rodrigues Barbosa JúniorChefe de Gabinete: Profª. Drª. Margarete Aparecida Santos Assessor de Comunicação:Prof. José Armando AnsaloniCoordenador de Comunicação Institucional: Rondon Marques Rosa

ProduçãoCoordenação de Jornalismo: Ady Carnevalli Edição Geral: Ady Carnevalli e Edwaldo Cordeiro Projeto Gráfi co e Diagramação: Mateus Marques

RedaçãoJornalistas: Ady Carnevalli, Edwaldo Cordeiro e Mariana PetragliaBolsistas: Bruna Fontes, João Gabriel Nani, Kamilla Abreu, Kíria Ribeiro e Renata Felício

ApoioBolsistas: Íris Zanetti e Roberta NunesIlustração: Mateus Marques Revisão: Rosângela Zanetti e Milena Gallerani

Tiragem: 1.200 exemplares

Impressão: MJR Editora

ContatoTelefax: (31) 3559-1222Site: www.ufop.brEmail: [email protected]

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Debate interdisciplinar

A proposta da Et Alii é produzir jornalismo voltado primordialmente para ciência, educação, cultura e debates em geral. É uma publicação de uma Universidade, mas sua linha editorial não é a institucional convencional, de-dicada a apenas veicular eventos e feitos de si própria. A ideia é que os temas abordados possam informar, ressoar e provocar discussões em qualquer lugar em que sejam li-dos. A revista busca como fontes professores, especialistas, estudantes, pesquisadores, artistas e personagens do Brasil e de fora do país, na busca pela diversidade de visões, de ações e de resultados. E suas diretrizes estão ligadas à de-mocratização do conhecimento, à inserção de temas que ajudem a pensar o Brasil, à pluralidade de opiniões e à polifonia crítica e interdisciplinar.

Esta edição estampa na capa reportagem sobre o uso da nanotecnologia no tratamento do câncer, uma revo-lução que já está acontecendo, com resultados altamente positivos. A nanociência deve movimentar até o final do ano quase R$ 6 trilhões no mercado internacional, mas o Brasil é apenas o 25º do ranking mundial. Diante desse cenário, buscamos entender os investimentos do Governo Federal e traçar um panorama sobre as pesquisas e os cursos de ensino superior voltados para esta nova ciên-cia. Já a reportagem de abertura aborda a ampliação do acesso ao ensino público e a possibilidade de mobilidade econômico-social a partir da educação. “O primeiro uni-versitário da família” revela histórias de valorização profis-sional e melhora da auto-estima dos estudantes e de suas famílias, mas discute também a qualidade do ensino, que estaria, segundo críticos, voltado exclusivamente para o mercado de trabalho.

A revista apresenta ainda duas entrevistas com ges-tores de áreas estratégicas para o país. Elas inauguram espaços que serão cativos a cada edição, um dedicado ao debate permanente sobre temas voltados para a edu-cação, sempre após a primeira reportagem, e outro para convidados especiais, no final da revista. Nesta edição, o presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Ins-tituições Federais de Ensino Superior (Andifes), João Luiz Martins, faz um resumo de sua gestão à frente da entidade e avalia o cenário do ensino brasileiro. Já o secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, José Mariano Bel-trame, responde sobre UPPs, milícias, inteligência policial e ações de combate ao crime.

Et Alii espera assim iniciar sua contribuição para as diretrizes a que se propõe e desenvolver o conceito de que é possível produzir jornalismo público de forma atraente e informativa, mesmo fora de conglomerados comerciais de comunicação.

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04. Educação e sociedadeO primeiro universitário da família

10. Educação em debateEntrevista com o prof. João Luiz Martins, presidente da Andifes (gestão jun 2011/ago 2012)

16. EconomiaAgricultura Familiar - Mãos que sustentam o Brasil

23. Terceiro setorFundação Sorria: um modelo de sucesso na saúde pública

27. CiênciaNanotecnologia – Um exército invisível contra o câncer

33. EsporteEstratégia nutricional para aumentar a performance

37. Memória oralHistórias de um gandula de 1950

39. HistóriaUm olhar diferente sobre Roma antiga

44. Cultura - TeatroRir pra não chorar?

49. EntrevistaBruno Silveira, cineasta

50. VariedadesLiteratura, cinema, shows e espetáculos

51. ConexõesNovidades tecnológicas da web e do mundo digital

53. Convidado especialEntrevista com José Mariano Beltrame, secretário de Estado de Segurança Pública do Rio de Janeiro

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6 Educação e Sociedade

O sonho da casa própria, do auto-móvel e do emprego promissor. Até bem pouco tempo, apenas uma pequena par-cela da população brasileira conseguia realizar esses desejos. Na última década, porém, mais do que o aquecimento da economia, a ampliação do acesso ao en-sino superior vem mudando perspecti-vas e recuperando o poder aquisitivo e a autoestima das famílias. Não é raro o es-tudante ser o primeiro universitário da casa ou mesmo da própria comunidade em que vive. O pioneirismo, nestes ca-sos, não representa apenas crescimento profissional, mas pode significar tornar-se o espelho, a referência para as pessoas de sua convivência. No entanto, até que ponto o ingresso na universidade pode realmente provocar transformações so-ciais e culturais e formar uma sociedade capaz de refletir sobre si mesma e sobre o sistema que a rege? De um lado, as estatísticas, acompanhadas das histórias de conquistas de cada aluno, gritam e promovem as benécies da ampliação do acesso. De outro, a economia responde com a absorção dos recém-formados e aumento na média salarial desta ca-tegoria. Há ainda uma terceira via de análise, em que especialistas cobram a qualidade e a formação crítica de uma educação que estaria voltada apenas

O primeirouniversitárioda família

Como a ampliação do acesso ao ensino

superior promove ascensão econômica

e social, aquece o mercado de trabalho e

desperta cobranças quanto à formação

foto: Edwaldo Cordeiro

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Por Renata Felício

para servir às necessidades do mercado de trabalho. Nesta batalha ideológica, é possível pensar em vencedores? Quais os caminhos e as alternativas?

Estatísticas positivasDe acordo com pesquisa do Ibope,

encomendada pelo Ministério da Edu-cação (MEC), oito em cada dez entre-vistados disseram que familiares se sentiram motivados a iniciar ou prosse-guir os estudos após verem um parente ingressar no ensino superior. O levanta-mento, feito em 2009, constatou ainda que 80% dos alunos concluintes, pelo Programa Universidade para Todos (Prouni), já estavam empregados, 61% em sua área de formação. Para 68% houve aumento de renda. Foram ouvi-dos 1.200 recém-formados em estados de todas as regiões do País. O peso do diploma na melhoria da qualidade de vida também foi lembrado, com 97% dos entrevistados mostrando-se motiva-dos a cursarem especialização, mestrado ou doutorado.

Em 2012, o Brasil atingiu o conti-gente de 6,5 milhões de universitários. De acordo com o MEC, são 6,3 milhões matriculados em cursos de graduação e 173 mil na pós-graduação (mestrado e doutorado). O dado é 110% superior ao registrado em 2011. O parâmetro de crescimento do número de faculdades e universidades também revela sensí-vel evolução. Em 1991, eram 893 e, em 2000, 1.180. Já em 2010, a quanti-dade de instituições de ensino superior se aproximou de três mil, ou seja, três

vezes mais. Segundo a Unesco – órgão das

Nações Unidas para educação, ciência e cultura – a educação ajuda a comba-ter a pobreza e capacita as pessoas com conhecimento, habilidades e confiança que precisam para construir um futuro melhor. Quando uma pessoa está inse-rida em um ambiente em que ninguém chegou à universidade, ela marca o ini-cio de um desenvolvimento para todos que fazem parte da família. Con-forme dados do órgão, na América Latina, crianças cujas mães tiveram educação secun-dária continuam na escola dois ou três anos a mais do que aquelas cujas mães têm menos escolaridade. Esta evolução acontece ao longo de décadas e perpassa gerações.

O alargamento do funil de entrada no terceiro nível da educação, no Bra-sil, já apresenta reflexos na sociedade. Manter-se em um curso superior, po-rém, não é tarefa fácil. Em muitos ca-sos, é necessário abandonar a cidade natal para desbravar novos lugares, sem dinheiro, sem trabalho, sem nem ao menos um local fixo para morar. Para perseguir o sonho do diploma, o estudante enfrenta batalhas diárias que tornam a conquista pessoal ainda mais valiosa.

De menina pobre a pós-doutoraO sabor da vitória profissional,

obtida através do estudo, foi sentido por Lucelene Martins em uma época ainda mais difícil. “O período na uni-versidade foi uma abertura. Eu passei a acreditar mais em mim, mesmo sem ter muita consciência disso, e quem acre-dita, conquista. O mundo ficou maior e mais viável”, conta. Primeira universitá-ria de sua família, a menina que saiu de

Barretos rumo à ca-pital paulista, com o sonho de dar aulas em uma instituição reconhecida, é hoje professora e pesqui-sadora da Universi-dade de São Paulo (USP). Na bagagem acadêmica, cursos de mestrado, douto-

rado e pós-doutorado. No início, porém, não bastava o

nome na lista dos aprovados no vesti-bular. Era preciso muito mais. Como o curso de Geologia era integral, o que eli-minava a possibilidade de um emprego formal, Lucelene teve que batalhar para ser monitora de computação e bolsista de iniciação científica. Com o tempo, garantiu lugar na residência estudantil e vale-refeições no restaurante universitá-rio. Sobrevivia com cerca de um salário mínimo, contando com o que ganhava como garçonete nos finais de semana. Sua família não tinha condições de en-viar dinheiro, mas deu o que ela mais precisava: apoio. “A gente faz quase

“Em 2012, o Brasil atingiu o contigente de 6,5 milhões de universitários. De acordo com o MEC são 6,3 milhões matricu-lados em cursos de graduação e 173 mil na pós graduação (mestrado e doutorado.

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8 Educação e Sociedade

milagre com muito pouco, quando se está cercado de todo o restante que precisa”, conta. Hoje, aos 41 anos, Lu-celene sente-se realizada e orgulhosa de ter vencido a barreira dos estudos que a limitava, principalmente por poder ajudar financeiramente todos que cami-nharam juntos com ela.

De Araçaí para o BDMGQuando a jovem deixou a pequena

Araçaí (MG) para morar em Viçosa (MG), um objetivo foi traçado: conse-guir um diploma universitário. O so-nho concretizou-se com a graduação em Administração e Economia pela Universidade Federal de Viçosa (UFV). Hoje, Marta Eli Dias Oliveira mora em Belo Horizonte e trabalha no Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais (BDMG). Ela é especializada em Ges-tão de Regime de Mercado, uma área nova no Brasil, e também faz especia-lização em Estatística. Após fazer um curso na Espanha, na área financeira, passou a exercer um cargo de confiança no Banco, recebendo aproximada-mente R$ 10 mil por mês, mais partici-pação nos lucros anuais. Marta afirma que tudo o que conquistou foi à base de muita luta e fé. “A fé, a dedicação e uma pitada de sorte proporcionaram a motivação necessária para alcançar os objetivos com sucesso”, avalia.

Já Willian de Poli, também o primeiro da família a passar em um vestibular, está no seu segundo curso su-perior, no terceiro periodo de Filosofia, na Universidade Federal de São Carlos

(UFSCAR). No primeiro, o de Direito, na Universidade Paulista (UNIP), em Ribeirão Preto (SP), as dificuldades foram grandes. “Mi-nha verba era de R$ 400. Gastava mais da metade com aluguel, transporte e alimen-tação. Meus pais pa-gavam a mensalidade da Universidade e eu me sustentava com o salário de estágiario”, conta.

A 3 mil quilômetros de casaPara o estudante do curso de Le-

tras, da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), João Henrique Souza, a distância da família é a pior parte. Para realizar o sonho de conseguir o diploma superior, João saiu de Belém (PA) para estudar na cidade de Mariana (MG), a 2.824 km de casa. Com o apoio da bolsa cedida pela Universidade e com o pouco dinheiro que recebe da família, o estudante consegue visitá-los apenas no período das férias. Segundo ele, o sacrifício vale a pena para garantir um futuro melhor para todos.

As passagens de sacrifício e de emo-ções se repetem nas histórias contadas pelos estudantes. “Fazia muito tempo que eu não chorava como no dia em que vi o meu nome na lista dos apro-vados”, relata o aluno Robson Rocha, do sexto período do curso de Letras, da UFOP. “Quando eu contei para o meu pai que eu tinha passado na universi-dade, ele me pegou no colo, eu, com 25 anos nas costas”, brinca. Ele é o filho

“O mundo fi cou maior e mais viável” (Lucelene Martins, professora da USP)

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mais velho de uma família simples da cidade de Jan-dira, do interior paulista. O pai, que só estudou até o ensino fundamental, é autônomo. A mãe, dona de casa, possui o ensino fundamental incompleto. Robson será o primeiro a concluir os estudos, moti-vado pela necessidade de

um diploma para arrumar emprego. Hoje o jovem percebe que tomou a de-cisão correta e incentiva os três irmãos a fazerem o mesmo. Assim como João, William e Lucelene, Robson também se sustenta por meio de bolsa concedida pela universidade. Sem este auxílio, provavelmente nenhum deles consegui-ria se sustentar em outra cidade.

Se, por um lado, o estudante en-frenta os desafios pensando na família; por outro, é a família o suporte para essa conquista. De acordo com Rafael Magdalena, pró-reitor Especial de As-suntos Comunitários e Estudantis da UFOP, a valorização que se dá aos estu-dos é fundamental. Segundo ele, mui-tas familías que nunca tiveram alguém em uma universidade se esforçam mais para manter, da melhor forma possível, o estudante em outra cidade. “Você en-xerga o quanto que o aluno dá valor e se preocupa com os estudos”. Conforme Magdalena, com o apoio proporcionado pela UFOP, como auxílio-moradia e ali-mentação, é possível uma graduação de qualidade, permitindo a permanência do estudante durante todo o curso.

Diploma e bons salários De acordo com o economista,

mestre em integração da América La-tina pela USP e professor da Fundação Instituto de Ensino para Osasco (UNI-FIEO) e da Fundação Instituto Tecno-lógico de Osasco (FAC-FITO), Marcus Eduardo de Oliveira, não restam dú-vidas de que a evolução do acesso à universidade apresenta melhora. No en-tanto, ele ressalta que o caminho para a qualificação plena e irrestrita com inserção no mercado de trabalho com nível salarial acima da média ainda é de muitos obstáculos. E propõe a reflexão se o curso superior garante uma respei-tável colocação com bom salário.

O professor cita dados do IBGE, com base na Estatística do Ca-dastro Central de Empresas, de 2009. Segundo o Instituto, entre os que conseguem uma vaga, o salário médio de quem tem diploma universitário é 299,2% maior do que o daqueles com apenas o ensino médio. Enquanto os que possuem nível superior ganham em média R$ 4.239, os que não têm a mesma escolaridade recebem R$ 1.062,14. Na prática, o diploma univer-sitário assegura, de acordo com a pes-quisa, ganhos superiores a 211% sobre o salário médio do País, que é de R$ 1.540. Das aspirações profissionais, o concurso público ainda continua sendo a primeira opção para a inserção no mercado de trabalho após a formatura, mas a inciativa privada também vêm ab-sorvendo esses novos profissionais.

“A renda familiar se apre-senta com possibilidades de maior poder aquisitivo, ingrediente indispensável para fazer a atividade econômica andar sempre para frente” (Marcus Eduardo de Oliveira – UNIFIEO e FAC-FITO)

foto: Edwaldo Cordeiro

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10 Educação e Sociedade

Para Oliveira, a partir dessa pers-pectiva, “o jovem universitário dese-joso de progredir profissionalmente se sente motivado a dar continuidade aos seus estudos ainda que o salário inicial não seja o pretendido, pois o curso su-perior abre possibilidades de melhoria na renda familiar”. Ele recorre também aos dados do Cadastro Geral de Empre-gados e Desempregados (Caged) para balizar sua opinião. De acordo com o Caged, os salários médios de admis-são tiveram aumento real de 4,47% no primeiro trimestre de 2012, quando comparado ao mesmo período do ano passado, subindo de R$ 950,91 para R$ 993,44. Os valores têm como base o Ín-dice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) médio do primeiro trimestre de 2012. Todas as grandes regiões do país apresentaram crescimento real, com destaque para a Norte (6,37%); Centro-Oeste (6,22%) e Nordeste (5,45%), com ganhos reais acima da média nacional (4,47%). A região Sul apresentou alta de 4,18% e a Sudeste 4,16%”.

“Inequivocamente, o ingresso do jovem no ensino superior provoca mu-danças estruturais no seio familiar com a recuperação da autoestima e a possibi-lidade, substancial, de melhoria no seu bem-estar”, analisa Oliveira. “Economi-camente, a renda familiar se apresenta com possibilidades de maior poder aquisitivo, o que, para o conjunto da economia, funciona como ingrediente indispensável para fazer a atividade econômica andar sempre para frente”, conclui.

Formação para o mercado X formação crítica

Mesmo com a ampliação do nú-mero de vagas nas universidades, um dado ainda preocupa. De acordo com a Unesco, apenas um em cada cinco bra-sileiros frequentam o ensino superior. Diante desse quadro, algumas ações são questionadas. Para a socióloga e pesquisadora da Fundação do Desen-volvimento Administrativo (Fundap), Fabiana Grecco, “se deixarmos de ob-servar casos isolados para refletirmos sobre a estrutura educação/família contemporânea no Brasil, a relação entre essas duas instituições pode ficar mais complexa e, talvez, menos posi-tiva”. Ela lembra do Plano Nacional de Educação (PNE 2011-2020), sobre as metas e estratégias para o ensino, como um documento que contempla a “relação oportunista” entre educação e mercado de trabalho, em que a famí-lia seria beneficiada por uma educação com investimento em desenvolvimento econômico e não em conhecimento. Fa-biana compara algumas metas do docu-mento, como a 12, que “visa elevar, de forma qualificada, a taxa bruta de ma-trícula na educação superior para 50% e a taxa líquida para 30% da população de 18 a 24 anos”, mas não deixa claro a que educação se refere, e a 20, que fala em “ampliar progressivamente o investi-mento público em educação até atingir, no mínimo, 7% do Produto Interno Bruto do País”.

A pesquisadora lembra que estudos

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apontam a necessidade de um investi-mento público em educação de, pelo menos, 10% do PIB nacional. Segundo ela, “isso significa dizer que a maior in-serção nos cursos de nível superior não pode ser exposta como algo apenas po-sitivo, pois a educação que essas pessoas vão receber, em muitos casos, não vai além do que o Estado fornece como va-gas para que sua força de trabalho seja melhor qualificada e mais explorada, sem as ferramentas do conhecimento crítico que as ensinariam a refletir so-bre sua condição na sociedade”, analisa. Pensar sobre quem são as pessoas que atualmente se beneficiam das vagas em universidades públicas e privadas, tanto quanto em cursos técnicos profissio-nalizantes, em termos de classe, raça e gênero, seria necessário, conforme Fabiana.

“Este exercício pode amenizar o erro de nos atermos em análises que se fixam em dados estatísticos sobre a edu-cação no País e apresentam quantitati-vamente as benfeitorias que o ensino superior pode trazer, mas mascaram a qualidade dos mesmos. Nesses termos (de classe, raça e gênero), podemos ve-rificar as implicações do ingresso uni-versitário em famílias financeiramente desfavorecidas”, diz. E complementa: “Trata-se de uma reflexão sobre quais interesses simbólicos (como o status so-cial) da família são atendidos e como a educação oferecida pode resultar em termos de conhecimento crítico e emancipatório para o estudante, que atualmente não se enxerga como agente

“A maior inserção não pode ser exposta como algo apenas posi-tivo, pois a educação que essas pessoas vão receber, em muitos casos, não vai além do que o Esta-do fornece como vagas para que sua força de trabalho seja melhor qualifi cada e mais explorada” (Fabiana Grecco – Fundap)

da história e, portanto, busca por espe-cializações profissionais que o tornam fundamental na manutenção de um sis-tema que o explora”.

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12 Educação em Debate

O Brasil ocupa hoje a 13ª posição no

ranking mundial de produção de artigos

científicos de circulação internacional. Na

economia, caminha para ser a quinta potên-

cia do planeta na próxima década. Mesmo

tendo chegado a esse patamar, somente em

abril deste ano a Associação Nacional dos

Dirigentes das Instituições Federais de En-

sino Superior (Andifes) foi convidada pela

primeira vez na história para uma missão

oficial do Governo Federal no exterior. O

presidente da Andifes e reitor da Universi-

dade Federal de Ouro Preto (UFOP), João

Luiz Martins, integrou a comissão chefiada

pela presidenta Dilma Rousseff, na Confe-

rência Brasil-US: Partneship for 21st Cen-

tury, em Washington, nos Estados Unidos.

Martins foi responsável por apresentar um

panorama do Sistema Federal de Educação

Superior Brasileira e falou sobre o papel das

universidades federais na formação dos recur-

sos humanos e na geração de conhecimento.

Entre os tópicos, o Programa Ciência Sem

Fronteiras, que prevê a distribuição de 101

mil bolsas, em quatro anos, para estudan-

tes interessados em intercâmbio no exterior.

O presidente da Andifes ressaltou também

que o Brasil é um país atraente para receber

estudantes e pesquisadores americanos. Em

entrevista à Ett Alii, Martins fala sobre a

viagem histórica e analisa o quadro atual do

ensino no País. Ele avalia também sua ges-

tão à frente da Associação. No mandato de

um ano, junho 2011/agosto 2012, vê como

principal conquista a união entre os reitores

e a formulação de diretrizes que foram reu-

nidas em um documento oficial, entregue à

Presidência.

João Luiz Martins

foto: Edwaldo Cordeiro

13Entrevista

O senhor representou a Andifes em comissão especial que foi aos Esta-dos Unidos com a presidenta Dilma Rousseff. Como os participantes da Conferência Brasil-US: Partneship for

21st Century receberam o seu painel “Parcerias em educação: ciência sem fronteiras”?

Disse sobre a necessidade de o Bra-sil continuar investindo em educação, ciência e tecnologia, com percentual maior de participação no PIB, nos pró-ximos dez anos, e sobre a importância de dividir os royalties do petróleo para serem aplicados nas três áreas. Falei também sobre a possibilidade de os estudantes aprenderem em grupos de excelência, fora do País, para retorna-rem com conhecimento adquirido em áreas estratégicas. O investimento é fun-damental porque senão os jovens não terão mercado quando voltarem. O ob-jetivo era dizer que o Brasil está prepa-rado para esse passo. Os participantes ficaram interessados no conjunto de universidades e nas possibilidades de relacionamento e de parcerias.

Em reportagem publicada no site da Andifes, o senhor diz ser impor-tante tratar pendências e propostas co-muns do ensino superior e caminhar junto na construção das diretrizes da expansão, com excelência, das univer-sidades federais. É preciso maior in-tegração entre essas instituições para tornar o Brasil um país modelo em educação?

Realizamos, ano passado, vários seminários com a presença de reitores, governos e parlamentares, sobre temas

Por Edwaldo Cordeiro e Mariana Petraglia

da educação superior e básica. A partir deles, construímos um conjunto de di-retrizes, que, na verdade, são conceitu-ais, do que a gente imagina deixar como contribuição para qualquer governo. Isso porque as universidades são equi-pamentos de estado. Essas diretrizes são uma contribuição da Andifes para o en-tendimento do que pode ser utilizado na melhoria da educação em todos os níveis, para que cada universidade fede-ral possa se ver. Acredito que a palavra não é nem integração, pois cada uma, dentro daquilo que é possível fazer na sua região, pode dar grandes con-tribuições à sociedade a partir dessas diretrizes.

As universidades são verdadeiras cidades, inclusive com orçamentos su-periores a de muitos municípios brasi-leiros. A UFMG, por exemplo, possui mais de 30 mil alunos, quase três mil professores e um campus de 8,7 mi-lhões de metros quadrados. Diante dessas gigantescas estruturas, qual é o maior desafio dos reitores atualmente?

Cada universidade apresenta uma característica e uma importância, e elas vivem hoje alguns problemas comuns. Por exemplo: todas passaram, de 2008 para 2012, por uma grande expansão, praticamente dobraram de tamanho. Recebemos recursos para isso; no en-tanto, não conseguimos verba para re-solver o sucateamento, os laboratórios inadequados, os equipamentos ultra-passados. Ficamos mais de dez anos sem contratação de docentes. Um dos desa-fios é que as federais tenham recursos para se manterem, para recuperarem as

obras, os prédios que não ficaram pron-tos. Vários governos anteriores não colocaram a educação superior como prioridade. É preciso fazer contratação de professores e de técnicos-administra-tivos e suprir as deficiências. Temos aí, portanto, duas questões centrais: uma é resolver a infraestrutura das institui-ções, a fim de garantir um ensino de qualidade; a outra é a reposição do qua-dro de profissionais.

Entre as diretrizes do artigo 2º do Plano Nacional de Educação (PNE) es-tão a erradicação do analfabetismo, a superação das desigualdades educacio-nais e a valorização dos profissionais que atuam no setor. Por se tratar de uma nova proposta para remodelagem do ensino brasileiro, é possível até 2020 resolver efetivamente tais distorções?

O desafio da erradicação completa do analfabetismo e do retorno dos jo-vens e dos adultos que deixaram a escola está diagnosticado, preciso e quanti-ficado, ou seja, o custo para o país. É preciso garantir também que os jovens concluam a série corretamente, com boas noções de matemática e da língua. Isso está diretamente ligado ao papel do Estado em melhorar a carreira docente e a condição da escola, e em incentivar a família nesse processo de responsabi-lidade na educação. É necessário que o município, responsável pelo ensino fundamental, cumpra o seu papel. Não é só destinar recursos; é necessária uma definição de responsabilidade desses investimentos, o acompanhamento das verbas de financiamento, como elas são aplicadas, como as escolas podem

João Luiz Martins Presidente da Andifes

Gestão jun/2011 - ago/2012

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14 Educação em Debate

passar a ter uma estrutura melhor. Ou-tro aspecto também importante passa pelos pedagogos, pelos professores. A educação continuada é fundamental. Assim como o estudante, o professor precisa aprender sempre, estudar sem-pre, para conse-guir do aluno um resultado melhor. Os municípios e os estados precisam investir em con-dições que garan-tam uma carreira ao professor, para dedicar-se exclusiva-mente à escola. É necessário que o pro-fissional não tenha que estar em cinco, seis escolas ao mesmo tempo para rece-ber um bom salário.

O Governo federal vai selecionar milhares de estudantes em nível de graduação e pós-graduação para estu-dar no exterior, por meio do programa “Ciência sem Fronteiras”. O que isso significa para o avanço das pesquisas de ponta no Brasil e para o cresci-mento das universidades federais?

O programa é bastante abrangente no sentido de ser voltado para estudan-tes de graduação e de pós-graduação de áreas em que o País necessita intensifi-car a formação de profissionais, como as de tecnologias. O Brasil caminha para ser a quinta potência do mundo daqui a uma década, mas carecemos de estrutura, de investimentos profundos. O “Ciência sem Fronteiras” é estraté-gico para o País conseguir dar esse salto de desenvolvimento e adquirir a inova-ção necessária. No entanto, precisamos

resolver algumas questões caseiras. É necessário que os estudantes se apro-ximem mais do domínio das línguas, porque isso é uma fronteira difícil de ser ultrapassada; que as universidades comecem a criar um processo de cola-

boração na formação de uma segunda língua, com cursos intermediários e de diálogos. Talvez seja um dos mais importantes desafios dos últimos 20 anos com relação à formação de pes-soas no exterior. Nos Estados Unidos, por exemplo, mais de 50% dos jovens que fazem doutorado nas universidades americanas são de outros países. O sig-nificado disso é que eles voltam para os países de origem e nunca mais perdem a relação com o orientador. Então, ao desenvolver trabalhos, o pesquisador estará se relacionando sempre com o orientador da universidade americana que o acolheu. Por isso, a produção científica deles é dez vezes maior do que a de qualquer país.

A impressão que se tinha é de que não havia uma boa interlocução entre o Ministério da Ciência e Tecnologia e o da Educação. Hoje, fala-se mais em uma atuação conjunta entre as duas pastas. Essa é a chave para estabelecer novas diretrizes na educação e na pro-dução de pesquisas em todas as áreas

do conhecimento nas universidades federais?

Não. Primeiro acredito que o CNPq, uma autarquia pertencente ao Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação, e a Capes, que é uma autar-

quia pertencente ao MEC, tiveram um papel relevante, estruturante, im-portantíssimo no primeiro passo do “Ciência sem Fronteiras”. Eles

conseguiram inúmeras visitas, conta-tos, convênios, e abriram uma série de oportunidades para o início do programa. Só que esse papel esgotou. Agora o papel pertence às universida-des, porque somos nós quem vamos en-viar os alunos, fazer a seleção, trabalhar os estudantes, para que eles possam sair para outras universidades. O “Ciência sem Fronteiras” está instalado e será ampliado no horizonte de convênios com outros países, nas oportunida-des com outras instituições superiores de ensino. Que esse programa seja es-tratégico para o desenvolvimento do país, que os estudantes saiam, façam graduação, mestrado ou doutorado, e retornem ao Brasil para dar sua contri-buição. Se o País precisa desenvolver-se em todas as áreas do conhecimento, é necessário que esses jovens possam vol-tar para ajudar nesse desenvolvimento. Enquanto isso, o governo brasileiro pre-cisa fazer o papel dele, que seria investir em educação em um percentual maior do que investe hoje, ampliando as pos-sibilidades nas universidades, abrindo

“É preciso atrair jovens que sejam bons alunos e que estejam dispos-tos a serem professores. No entanto, não conseguimos fazer isso hoje porque esse jovem, que é bom aluno, não quer ser professor, ele quer ser engenheiro porque vai ganhar mais.”

15Entrevista

vagas, criando cursos, oportunidades nessa direção, melhorando a educação básica e, ao mesmo tempo, melhorando a infraestrutura de ciência e tecnologia, para receber de volta as pessoas, senão os estudantes vão voltar com qualidade, formação, mas não vão encontrar na universidade laboratórios, equipamen-tos, tecnologias e condições para seu trabalho.

Falta de professores qualificados, salários baixos, estrutura de sala de aula precária; falta giz, cadeira, car-teiras e livros. As famílias de muitas crianças em idade escolar são deses-truturadas, carentes; moram em locais com difíceis condições de acesso, insa-lubres. Há crianças que não chegam a ter as três refeições básicas do dia. E a escola é distante. É possível aprender assim?

O professor é central no processo de aprendizagem do aluno, de possibi-litar ao jovem aprender algo novo, de fazê-lo interessar-se. Sempre desejamos uma condição melhor em todos os as-pectos para facilitar o aprendizado, uma boa estrutura, uma boa tecnologia, uma família bem estruturada. Mas se não ti-ver um grande mediador, uma pessoa que possa provocar e motivar os alunos a aprenderem, não tem valor algum toda uma estrutura. Existem vários exemplos

pelo Brasil, em que várias escolas não têm a estrutura desejada, mas às vezes tem um professor lá presente, junto, atendendo, ensinando e mediando as informações. Temos que lutar por todas as condições, mas o professor precisa ser valorizado. A transformação se dá a partir do profissional, ele é o responsá-vel pelo ensino. Outra coisa, o professor no ensino fundamental é responsável por dar todas as disciplinas. Ele precisa de uma educação continuada, de um aperfeiçoamento, porque se não domi-nar bem o assunto, não vai ensinar. É preciso também atrair jovens que sejam

bons alunos e que estejam dispostos a serem professores. No entanto, não conseguimos fazer isso hoje porque esse jovem, que é bom aluno, não quer ser professor, ele quer ser engenheiro porque vai ganhar mais, vai procurar outra área com mais possibilidades de mercado.

Especialistas no setor falam da chamada “visão sistêmica da educa-ção” como alternativa para melhorar o ensino de base no Brasil. O que seria essa visão sistêmica?

Até o governo Fernando Henrique

Cardoso, o Brasil nunca teve um plano nacional de educação. Desde o Império que o Brasil tentou ter um, mas nunca teve. Quando conseguimos um em 2001, com 256 metas, uma das mais im-portantes - o financiamento - foi vetada pelo FHC. Com a chegada do governo Lula, houve a oportunidade de resgatar o financiamento e Lula não o fez. Co-meteu, portanto, um erro histórico. Aí foi criado o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) para cumprir al-gumas metas imediatas, que apresen-tou um bom resultado. O Reuni saiu, aconteceram aplicações em creches e

assim por diante. Surgiu então essa concepção, a visão sistêmica da educa-ção, ou seja, um programa que pudesse abrigar todos os níveis da educação, no qual você tem todos como sendo importantes, desde a creche até a graduação, com investimentos em programas e ações, apos-

tando também na educação superior como o nível responsável pela forma-ção dos demais. Hoje, o novo plano de educação possui 20 metas; na verdade, são 19, a vigésima é o financiamento, e cada meta apresenta um diagnóstico e o percentual do PIB para garanti-la. Isso será votado pelo Congresso Nacional. Portanto, nessa visão todos os níveis são encarados como estratégicos e im-portantes, com investimentos e metas a serem cumpridas.

Alguns especialistas são a favor

“Precisamos resolver algumas questões caseiras. É necessário que os estudantes se aproximem mais do domínio das línguas porque isso é uma fronteira difícil de ser ultrapassa-da. (...) Talves seja um dos mais importantes desafi os dos últimos 20 anos com relação à formação de pessoas no exterior”.

“Temos que lutar por todas as condições, mas o profes-sor precisa ser valorizado. A transformação se dá a partir do profi ssional, ele é o responsável pelo ensino”

Page 8: Revista Et alii

16 Educação em Debate

das chamadas “Ações Afirmativas”, as cotas raciais ou sociais, para tentar cor-rigir distorções históricas de acesso à educação superior. Outros são contra, pois afirmam que o acesso à universi-dade deve ser apenas por mérito, ou seja, os melhores classificados no ves-tibular devem ocupar as vagas. Qual a sua posição?

Primeiro o sistema federal não tem posição, cada universidade usa um conceito, uma política. Há aquelas que conseguiram a aprovação das políticas afirmativas, outras não. E o Brasil é plural, diferente, região por região. No Amazonas, por exemplo, a universidade possui cota para índios; em Alagoas, adotaram cota para gênero (mulher). Na verdade, a política afirmativa é tem-porária. Ela precisa ser adotada para dis-cutir as distorções sociais, ou seja, você tem um tecido social com uma série de problemas, provocados jus-tamente pelas políticas sociais dos governos, por todo esse processo de des-caso e falta de investimentos. Existe hoje uma dívida impor-tante do Brasil com certos seg-mentos, com fa-tias desse tecido social. Mais de 50% da população bra-sileira é afrodescendente e grande parte dos cargos importantes não é ocupada por essas pessoas. Quantos negros são

médicos, engenheiros? Se oportunida-des pudessem ser dadas para que essas pessoas tivessem acesso à educação e formação diferenciada, as famílias iriam melhorar e, portanto, iriam ter outras oportunidades. Teríamos um País me-lhor. Estou convencido desde o começo dessa discussão, iniciada em 2000. Na UFOP, não adotamos a cota racial, a nossa é social, ou seja, 30% das vagas es-tão asseguradas para estudantes egressos de escolas públicas. E a última avaliação que fizemos desse processo mostra que 90% dos estudantes que entraram na universidade pelo sistema de cotas ti-veram desempenho igual ou superior aos que não entraram. A partir desse diagnóstico, entendemos que estamos dando um passo importante de melho-ria para as famílias. Hoje temos 30% de alunos de Ouro Preto e da região. An-tigamente, em 2005, eram apenas 8%.

Há então inclusão. Sempre defendi essa concepção.

Nas últimas eleições para presi-dente da República, tomou conta dos de-bates a questão das privatizações. O se-nhor acredita que al-gum dia essa política possa chegar às uni-versidades federais? E se chegar, haveria

algum modelo plausível dentro dessa proposta?

Não existe modelo plausível para uma proposta pública. Acho que a

privatização chega sempre aos poucos, tentando conquistar espaço. Há interes-ses do governo em terceirizar algumas áreas porque o custo fica mais barato. Hoje a lei permite a licitação de uma empresa para fornecer mão-de-obra, como porteiros, vigilantes e motoristas. De certa maneira, uma parte já é priva-tizada. A luta dos nossos técnicos é que isso não ocorra mais para frente. A mi-nha defesa é nos mantermos no rumo público, que a gente lute pela autono-mia universitária. Devemos lutar por uma instituição pública com qualidade.

A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) realiza um exame para avaliar a formação dos bacharéis em Direito no País — só com a aprovação da entidade e a carteira em mãos é possível advogar. O senhor acredita que um exame nesse formato poderia ser aplicado em todas as áreas do conhecimento para avaliar a formação acadêmica das pessoas?

Uma coisa é a universidade ter autonomia para formar uma pessoa, outra coisa é a regulamentação da pro-fissão. O que não podemos abrir mão é da autonomia de formar um currículo necessário para que, naquele modelo, se tenha qualidade para desempenhar uma profissão. Acontece que essas or-ganizações trazem para si a importância de regular, muito por causa das várias instituições que não tem qualidade. Só para se ter uma ideia, 60% das matrícu-las em nível superior estão localizadas nos cursos de Administração, Direito e Pedagogia. O Brasil não se desenvolve só com essas três áreas. Talvez seja o Di-reito aquele que tem o maior número

“Temos hoje seis milhões de pessoas no nível superior, dois milhões estão nas universidades públicas e quatro milhões nas particulares. Em linhas gerais, 25% são formadas pelas institui-ções públicas e 75% pelas priva-das. De cada 100 estudantes de Direito, 75 são formados pelas particulares.”

17Entrevista

de cursos espalhados pelo Brasil. A Or-dem tem que exercer um controle nesse processo e ver a qualidade das pessoas em condições de exercer a profissão. Acho que as universidades públicas não têm esse pro-blema. Elas possuem uma qualidade boa. Contudo, temos hoje seis milhões de pessoas no nível superior, dois milhões delas estão nas universidades públicas e quatro milhões nas particu-lares. Em linhas gerais, 25% são formadas pelas institui-ções públicas e 75% pelas privadas. De cada 100 estudantes de Di-reito, 75 são formados pelas particula-res. Por isso existem ordens e conselhos regionais para zelar pela qualidade do profissional que irá atuar no mercado.

Como o senhor avalia a sua gestão à frente da Andifes nesse um ano de mandato? Quais os projetos que sua diretoria deixa consolidados e quais as propostas sugeridas para os sucessores?

O fator principal foi unir a Andi-fes novamente, unir as pessoas para que elas pudessem, nas suas diferenças, con-tribuir para uma entidade mais forte, pois ela representa mais de um milhão de estudantes, 59 universidades, todas distintas umas das outras. Avançamos bastante na concepção de unir o cole-tivo em torno dos objetivos para levar qualidade às universidades, para formar pessoas com qualidade. Conseguimos viabilizar a imagem da Andifes junto a Congresso Nacional, Câmara dos Deputados, Poder Judiciário, agências

de fomento, etc. O respeito e a repre-sentatividade foram ampliados nesse um ano, a ponto de sermos convidados para uma missão no exterior, coisa que

nunca havia acontecido. Portanto, há uma união maior dos reitores em torno da entidade, uma defesa importante do sistema federal oferecido aos jovens, uma ampliação de oportunidades. Existe um conceito de respeito da Andi-fes, inclusive com a imprensa. Defende-mos o coletivo, um sistema público que seja um equipamento do Estado e não do Governo. Sinalizamos o que é impor-tante para ele, e se quiser fazer faz, e se resolver não fazer, a consequência pode ser enorme, porque daqui a dez anos os problemas podem aparecer. Hoje, na Andifes, não existem adversários como existiam antigamente. As críticas que aconteceram à gestão são construtivas e com direcionamento. A sua imagem está recuperada. Não somos alinhados ao Governo, podemos ser aliados, mas alinhados jamais. Temos opiniões dis-tintas, discutimos aquilo que achamos ser importante, não concordamos com uma série de políticas de ações que são desenvolvidas. Criticamos, inclusive,

dizendo o que é o melhor a ser feito. Além desse conceito de entidade forte, representativa, independente, com au-tonomia, uma série de seminários reali-zados conseguiu estruturar um “pensar o futuro”. E um documento foi deixado com as diretrizes que imaginamos, ou seja, hoje cada uma das instituições de ensino superior federal consegue se ver aqui dentro. Este documento foi entre-gue oficialmente à presidenta, para di-zer que, se um dia ela quiser pensar uma política de estado, de futuro para as uni-versidades, está aí a política sugerida.

“Um documento foi deixado com as dire-trizes que imaginamos, ou seja, hoje cada uma das instituições de ensino superior fede-ral consegue se ver aqui dentro. Este docu-mento foi entregue ofi cialmente à presidenta, para dizer que, se um dia ela quiser pensar uma política de estado, de futuro para as universidades, está aí a política sugerida.”

Page 9: Revista Et alii

18 Economia

Agricultura Familiar

Mãos que sustentam o Brasil

Agricultura Familiar

Mãos que sustentam o BrasilPor Bruna Fontes e João Gabriel Nani

19

“Como seriam venturosos os agricultores se conhecessem os seus bens”. A afi rmação, em tom de utopia, é de Publio Marón Virgílio, poeta de Roma antiga, perspectivando uma “revolução agrária” nos campos romanos, visto que na ocasião os produ-tores rurais, em suas totalidades “familiares”, não obtinham, talvez até por desleixo, uma boa produ-tividade das terras. Tecendo uma ligação entre os romanos daquela época e o Brasil contemporâneo,

podemos indagar se os agri-cultores brasileiros “ouviram” Virgílio. O aproveitamento das pequenas terras vem movimen-tando a microeconomia do país. O mercado interno de alimentos depende hoje dos pequenos produtores rurais, que simples-mente parecem ter surgido de uma hora para outra. Parecem. Os pequenos agricultores sempre estiveram presentes na história do Brasil, desde os nativos indígenas, que cultivavam os alimentos a fi m de suprir suas necessidades, até os vários Josés e Marias que mantêm cultivos em suas pequenas propriedades ou quintais. E talvez esteja na produ-ção de alimentos para mercados internos gigantescos um dos alicerces para a força econômica dos países hoje emergentes — Rússia, Índia e China —, que, ao lado do Brasil, formam o grupo dos chamados BRICs.

Mãos que sustentam o BrasilMãos que sustentam o Brasil

foto: Flávia Gobato

Page 10: Revista Et alii

20 Economia

Toda semana, às terças, em Ouro Preto, e aos sábados, na cidade de Mariana, os irmãos Luciano Mar-cos, 35 anos, e Júlio César Coelho, 31, trabalham na feira. Com boa estrutura e uma ampla barraca, comercia-lizam biscoitos, café, cachaça, banana, doces, mel, chouriço e frango caipira. Naturais de Senhora dos Remédios, municí-pio localizado a 179 quilômetros de Belo Horizonte, os dois, junta-mente com a família, detêm uma propriedade destinada ao cultivo dos produtos a serem comercializados. Os demais irmãos, a cunhada e uma diarista que contribui duas vezes por semana ajudam na produção de café e cachaça. O pai, Hilário de Matos Coe-lho Neto, sempre foi agricultor e ensi-nou aos filhos a profissão, que hoje é o sustento de todos.

Luciano e Júlio tentaram ingressar no mercado de trabalho de outras for-mas. Foram garçons por dez anos, de-pois de concluírem o curso do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial – Senac, em Barbacena (MG). Mais tarde, com a aposentadoria do pai e o desem-prego batendo à porta, Luciano decidiu retornar às suas origens. Em 2008, con-venceu o irmão a venderem tudo o que tinham para comprar um caminhão. A ideia era facilitar o transporte das merca-dorias de Nossa Senhora dos Remédios para Ouro Preto e Mariana. A partir de então, eles passaram a viver com essa renda, extraindo em média um salário mínimo mensal. “O lucro é muito rela-tivo, depende da demanda do mês. Tem

mês que vende-

mos mais, outros me-nos, então a renda sempre varia.

Tudo tem uma perda. Os biscoitos, por exemplo, quebram; as bananas amadu-recem demais e, assim, o que não apro-veitamos doamos para o asilo”, contam.

A atividade dos irmãos feirantes tem forte peso na economia da região, mas parece ainda escondida atrás de outros setores, como turismo, indústria e mineração. No entanto, o cultivo e a comercialização direta desses produtos pelas famílias tornaram-se cada vez mais significativos e abrangem boa parte da microeconomia nacional.

12 milhões de agricultoresEm muitos dos casos, a produção

agrícola feita por famílias era tratada apenas como cultura de subsistência. Depois, desprendeu-se da nomencla-tura vinculada à ideia de pequenas hortas e passou a ser classificada como agricultura familiar. A expressão surgiu, no Brasil, para dar nome, voz e mer-cado a uma gama crescente de peque-nos produtores agropecuários que está

obtendo cada vez mais enfoque em âmbito nacional. Este in-teresse provém não de uma representatividade histórica ou cultural, mas do fato de como os pequenos cultivos vêm dominando o mercado interno de gênero alimentício e como, por consequ-ência, exercem forte participação na

economia brasileira, figurando como essenciais nas

relações internas de mercado.Os estabelecimentos familiares,

segundo dados do último censo agro-pecuário do Instituto Brasileiro de Ge-ografia e Estatística (IBGE), de 2006, ocupam 24,3% da área agrária produ-tiva, aproximadamente 107 milhões de hectares, sendo que neles estão 84% de todos os estabelecimentos rurais. Por este cenário, são mais de 4,1 milhões de estabelecimentos familiares e mais de 12,3 milhões de agricultores em ati-vidade. Estima-se que a produção dos estabelecimentos familiares represente aproximadamente 70% do total de alimentos produzidos no país, alimen-tos estes que inundam tabuleiros das pequenas feirinhas a prateleiras de re-des de hipermercados. Esses números evidenciam a essencial participação da agricultura familiar na economia, cor-respondendo a 38% do Valor Bruto da Produção (VBP).

Incentivo do Poder PúblicoO peso deste tipo de produção já

começa a ser absorvido pela própria estrutura administrativa do poder pú-blico. A Prefeitura de Ouro Preto, por

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foto: Divulgação

21

exemplo, conta com a Secretaria Muni-cipal de Agricultura Familiar, responsá-vel por promover vários programas de incentivo a este tipo de produção, como a requisição de máquinas agrícolas e a vacinação de rebanhos, um avanço e um diferencial em relação à maioria das cidades brasileiras. “Hoje, aproxima-damente, cinco mil pessoas que vivem no campo participam dos programas destinados à agricultura familiar. Para as inscrições das máquinas, são mais de 500 propriedades”, explica o secretário Alexandre Negreiros.

Esta atenção especial é necessária, segundo Negreiros, porque a atividade é extremamente importante para a eco-nomia da região. “Alguns produtos nos-sos, como a batata, são revendidos até na Ceasa (Central de Abastecimento de Minas Gerais) de Belo Horizonte”, co-memora. Este movimento entre campo e cidade é visto como positivo pelo gerente executivo do Sindicato de Pro-dutores Rurais de Itabirito (MG), José Flávio Vitor. Para ele, a agricultura fa-miliar sempre esteve ligada à subsistên-cia, mas cada vez mais vem migrando deste espaço para a área comercial.

“O pequeno agricultor vê a opor-tunidade de comercializar tudo aquilo que não é consumido pela família, a fim de gerar uma renda extra. A dificul-dade deste tipo de produtor se encontra no mercado e no crédito, pois há certa relutância em relação à credibilidade na hora dos investimentos. Em contrapar-tida, o impacto financeiro referente à mão de obra é inferior ao dos grandes produtores, já que geralmente a família fica incumbida deste papel”, avalia.

Lei da Merenda EscolarO Programa Nacional de Alimenta-

ção Escolar (PNAE), criado pelo Fundo de Desenvolvimento da Educação (FNDE), do Ministério da Educação (MEC), de acordo com a Lei Federal 11.947, assinada por José de Alencar, em junho de 2009, garante que, no mínimo, 30% dos gêneros alimentícios da merenda escolar sejam diretamente oriundos de produções agrícolas fa-miliares e empreendedores familiares rurais, de preferência do próprio muni-cípio. O programa visa à melhoria da qualidade alimentar dos alunos de es-colas públicas e da vida do homem do campo, a quem é garantido maior mer-cado consumidor.

Para quem produz alimentos, a ini-ciativa contribui para que a agricultura familiar se organize melhor e qualifique suas ações comerciais. Para quem ad-quire esses produtos, o resultado da Lei é a melhor qualidade da alimentação a ser servida. Além disso, a manutenção e a apropriação de hábitos alimentares saudáveis são combinadas a um maior desenvolvimento local de forma susten-tável. Para participar do fornecimento agrícola escolar, o produtor deve estar filiado a uma associação de agriculto-res familiares e possuir a Declaração de Aptidão ao Pronaf – DAP (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricul-tura Familiar).

Legislação e obstáculos

“Para se discutir agricultura fa-miliar no Brasil, é necessário inicial-mente entender que existe pluralidade e diversidade de atores sociais e formas de se relacionar com terra, família, vizi-nhança, cultura e espaço. Além disso, a

agricultura familiar é um modo de vida e uma forma instituída que o agricultor familiar constrói ao longo de sua vida, produzindo e articulando vários aspec-tos técnicos, culturais, simbólicos e so-ciais em seus sistemas de produção”, explica o professor da Universidade Federal de Viçosa (UFV), Marcelo Ro-marco, especialista na área de extensão rural.

Em esfera legal, o Governo Federal promulgou, em 2006, a Lei 11.326, de-finindo juridicamente a categoria agri-cultura familiar. Nesse sentido, no seu artigo terceiro, a Lei considera “o agri-cultor familiar e empreendedor familiar rural aquele que pratica atividades no meio rural, atendendo a requisitos es-pecíficos. Entre eles, que não detenha área maior do que quatro módulos fis-cais; dirija e utilize predominantemente mão de obra da própria família nas atividades econômicas de seu estabele-cimento ou empreendimento; e tenha renda familiar originada das ativida-des econômicas desenvolvidas em sua terra”.

A classificação “familiar” não é tão simples de ser empregada. Analisar modo, objetivo e montante de produ-ção é imprescindível para se chegar a uma conclusão. Não se trata apenas de uma questão culturológica ou de pro-dutividade. Várias formas de produção vindas de diferentes culturas classificam um estabelecimento como rural, visto que é possível destacar no enquadra-mento da Lei da agricultura familiar categorias como agricultores “familia-res”; “assentados da Reforma Agrária”; “pescadores artesanais”; “quilombolas”; “indígenas”; “seringueiros”; “ribeiri-nhos”; “extrativistas” e “atingidos por barragens”.

Brasil conta com 12,3

milhões de agricultores

em plena atividade

Page 11: Revista Et alii

22 Economia

O conceito de propriedade fami-liar surgiu apenas na década de 1990, quando a máquina estatal viu a neces-sidade da criação de políticas públicas que favorecessem os pequenos estabe-lecimentos rurais. A intenção era que houvesse um desenvolvimento em seus respectivos plantios, a fim de projetá-los mais efetivamente no mercado. Mais precisamente no governo de Fernando Henrique Cardoso, a expressão “agricul-tura familiar” passou a ser oficializada. A partir de 1996, após forte pressão dos movimentos sociais do campo, o Go-verno Federal deu início à criação de programas, ainda que tímidos, voltados para o já então agricultor familiar.

O principal instrumento de apli-cabilidade das políticas públicas foi e ainda é o Programa Nacional de For-talecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), cujo objetivo é fortalecer as atividades desenvolvidas pelo produ-tor familiar; buscar proporcionar o aumento da renda e agregar valor ao produto e à propriedade. Dessa forma, auxilia o agricultor familiar em relação à facilitação e à liberação de recursos para a modernização do sistema produtivo, a

valorização do produtor rural e a profis-sionalização dos produtores familiares.

O processo de incentivar esta pro-

dução intensificou-se no governo Lula,

quando, por meio do Ministério do De-

senvolvimento Agrário, foram criados

projetos e leis no intuito de fortalecer a

agricultura familiar. Porém, apesar das

políticas públicas criadas, ainda hoje

os estabelecimentos rurais enfrentam

dificuldades, como atraso na liberação

dos recursos, falta de assistência técnica

e extensão rural, instituições públicas li-

gadas aos serviços de extensão rural des-

preparadas para auxiliar os agricultores

na inserção desses programas; a própria

desorganização dos agricultores (falta de

associações ou cooperativas de agriculto-

res familiares); e o fato de que muitos

municípios ainda preferem comprar os

alimentos de grandes varejistas e ataca-

distas, prejudicando, assim, o fortaleci-

mento da agricultura local.

Agricultura familiar é só na Roça?Um estabelecimento rural não ne-

cessita de um mínimo de produtividade

e nem uma metragem mínima de ter-reno. Qualquer área que propicie deter-minado cultivo pode vir a se configurar como um estabelecimento rural, desde que cumpra as normas estabelecidas no Código. Nas cidades, vem surgindo uma agricultura familiar urbana, em que os quintais das casas passam a ser potenciais fornecedores de produtos alimentícios. Ervas, legumes, frutas e aves sãos os produtos mais comumente encontrados nesses cultivos. Seja em canteiros ou em hortas mais bem abas-tadas, estas culturas são extremamente coerentes com a produção antes “ru-ral”. Essas produções prospectam que a agricultura familiar possui vários ca-minhos para obter desenvolvimento; e um deles é o urbano. A opção pela sustentabilidade e pelo aproveitamento das áreas aptas para o plantio e a ade-quação às leis ambientais podem con-tribuir para impulsionar a agricultura familiar urbana.

foto: Íris Zanetti 23

A Lei da Merenda Escolar está em vigor?

O Cecane é um dos responsáveis pela implementação da Lei em Minas Gerais e no Espírito Santo, prevendo, no mínimo, 30% dos recursos federais a serem inseridos nos municípios bra-sileiros. O desenvolvimento da Lei da Merenda Escolar, em Minas, segundo o FNDE, é o que mais tem avançado de forma satisfatória no Brasil. Apesar de recente, ela já apresenta bons resul-tados, embora alguns municípios ainda tenham dificuldades em entender essa mudança de paradigma.

Quais são as principais dificulda-

des em implementar uma Lei de âm-bito nacional como esta?

O grande desafio é que somente o ente federal tem participado, em suma, com os recursos do município. Ou seja, os estados não têm investido nessa parte de alimentação escolar. Não há obedi-ência legal por parte dos estados e dos municípios em fazer a parte que cabe a cada um deles. Contudo, mais de R$ 1 bilhão em recursos federais estão sendo investidos, gerando economia local. A alimentação escolar deixou de ser um programa simplesmente de suplementa-ção, em que eram supridas parcialmente as necessidades alimentares, através da distribuição assistencialista, e passou a

ser um programa de desconcentração e direção de renda municipal.

Houve alguma mudança para o

agricultor depois da inserção da nova Lei?

Sim. Com esta nova política, há um redesenho do perfil de produção do pequeno agricultor familiar. Como nu-tricionista responsável pelo programa, vejo na elaboração do cardápio escolar - que deve atender um padrão de ade-quação mínimo, como a alimentação variada - a mudança de perfil do agri-cultor, que, juntamente com o nutri-cionista, rediscute o foco da produção, saindo da monocultura e aumentando o leque de produção para atender à demanda da alimentação variada. Isso passa a fortalecer não só a alimentação escolar, mas também o próprio agricul-tor. Por outro lado, o produtor pode ir além da aliança escolar, aumentando a produção e abarcando outros merca-dos com esse incentivo, para não ficar restrito.

Qual é o processo de inclusão do

município? Quem faz a proposta?Normalmente o Cecane trabalha

sobre uma demanda estabelecida pelo FNDE, através de municípios que apresentem problemas, que tenham alguma denúncia ou que ainda não

implantaram a Lei. Quem define a base de planejamento é o FNDE. Mas nada impede que o Cecane, mediante obser-vações e demandas espontâneas, possa selecionar. Os próprios municípios en-tram em contato a fim de executarem a Lei e nós os convidamos a participa-rem de cursos de capacitação, mesmo não estando formalmente na lista que o FNDE definiu. Então é flexível.

Quais os critérios que o municí-

pio precisa atender para ingressar no projeto?

Primeiramente, ter um nutricio-nista. Mas o principal é um Conselho de Alimentação Escolar atuante, uma vez que manterá o controle social e acompanhará no dia a dia a execução da política local. Se o Conselho não estiver implantado de forma adequada, existe uma possibilidade maior de o pro-grama não atender o que a Lei define. Por isso, só irá funcionar se tiver uma série de outros fatores. Por se tratar de uma Lei recente, as pessoas estão come-çando a aprender efetivamente o papel da conduta social e que não existe polí-tica pública se o principal interessado, o cidadão, não se envolver. Além de todos os benefícios, a lei ainda batalha por uma frente de politização social.

Entrevista: Camilo Adalton Mariano da Silva

Sub-coordenador do Centro Colaborador em Alimentação e Nutrição

Escolar (Cecane) e vice-diretor da Escola de Nutrição da Universidade

Federal de Ouro Preto (UFOP).

Page 12: Revista Et alii

24 Economia

Agricultura Patronal X FamiliarUm dos pontos mais conflituosos

na questão agrária é o embate entre a agricultura patronal e a agricultura fa-miliar. A chamada agricultura patronal é aquela em que suas produções são em larga escala, com um número elevado de funcionários, fixos ou temporários, geralmente focados em monoculturas, e que se situam em grandes extensões de terra. Em suma, ela pode ser consi-derada o oposto da agricultura familiar. Na maioria dos casos, os produtos dos estabelecimentos patronais geralmente vão para o mercado externo; assim, a contribuição econômica da agricultura patronal é analisada em esfera macro.

Pesquisador em sociologia e estu-dos estratégicos do campo, o professor Zander Navarro, pesquisador da Em-brapa Estudos e Capacitação (Brasília) e professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Extensão Ru-ral da Universidade Federal de Viçosa (UFV), parte de uma analogia diferente para delimitar a agricultura patronal. Segundo Navarro, “se a racionalidade do produtor rural é maximizar lucros (mesmo que utilize outras frases da lin-guagem, para expressar este objetivo), sua racionalidade pertence, de fato, a um campo de classe social e de objetivos pessoais que situam-se no campo bur-guês, empresarial, capitalista, patronal, ou outro adjetivo similar, que expressa um agente social capaz de almejar o ma-nejo de seus recursos visando à produ-ção de lucro (portanto, pode continuar sendo “familiar”, em termos de gestão da atividade agrícola, mas sua adminis-tração o fará agir como um verdadeiro “dono dos meios de produção”, apenas supervisionando as atividades e bus-cando sempre a melhor combinação de recursos para produzir mais e melhor).”

Sob a perspectiva de Navarro, a agricultura patronal independe do número de funcionários ou de sua ex-tensão. Mais além, ele defende que qualquer produção que possua como objetivo o lucro (superando as perspec-tivas de sustentabilidade) pode vir a ser considerada patronal. Ainda segundo ele, deve-se aplicar uma análise que vá

além de artigos ou teorias para classifi-car um estabelecimento. “Mas a racio-nalidade pode ser apenas ´maximizar renda´ dentro dos limites existentes de tamanho de área, capital e trabalho dis-poníveis, habilidades pessoais etc. Neste caso, estamos falando de um típico comportamento de classe média, que busca sempre ganhar certo resultado financeiro, dentro de um determinado período de tempo, mas com qual obje-tivo? Maximizar lucros? Claro que não, busca apenas repor seus instrumentos de trabalho, manter aberto o crédito para a produção (quando necessário), realizar alguma reforma de benfeitorias e equipamentos, comprar os insumos para a próxima safra e, depois de tudo isto, ainda sobrar algum dinheiro para as despesas da família (alimentação, lazer, estudo para os filhos, poupança para problemas de saúde etc.). Ou seja, este segundo produtor pode também falar, em sua linguagem do senso co-mum, em “buscar lucro” em sua ativi-dade (e a maioria o dirá desta forma), mas sua prática social é outra, diferente do primeiro”, avalia. “O cotidiano deste produtor é aquele de classe média,

buscando o que a sociologia chama-ria de ´reprodução social´, não muito mais do que isto”, conclui.

Novo código ambiental: Fim, recomeço ou adequação?

A discussão em torno do novo Có-digo Florestal para o país acirra opini-ões e polêmicas. Na maioria dos casos, os pequenos agricultores não possuem conhecimento ou informações sobre as mudanças que virão a ocorrer se ele entrar em vigor. O temor por punições mais severas e uma inflexibilidade nas determinações legais acentuam a recusa destes produtores rurais. A proposta, porém, acena com a possibilidade de que multas acumuladas possam ser suspensas caso haja adequação às deter-minações. De acordo com Rui Daher, administrador de empresas, consul-tor da Biocampo Desenvolvimento Agrícola e colunista do Portal Terra, a nova legislação nunca foi uma ameaça ao produtor rural, e principalmente ao produtor familiar. Rui acredita que muitos usam a agricultura familiar para justificar décadas de desrespeito à pre-servação ambiental e impedir punições sobre malfeitos do passado.

“Basta verificar que no crescimento da produção agropecuária predomina o aumento da produtividade e não da área plantada. Daí a necessidade de dar apoio técnico ao pequeno agricultor para aumentar a sua produtividade”, afirma, reiterando que as áreas dadas como de preservação pela nova pro-posta não influenciaram negativamente na produtividade da agricultura fami-liar. Em meio às polêmicas ideológicas e partidárias, a única certeza é de que o investimento qualificado em técnicas e tecnologias para incentivar a agricul-tura familiar a exoneraria de quaisquer punição ou deficit de produção e impul-sionaria o desenvolvimento do mercado interno de alimentos em consonância com as exigências de defesa do meio ambiente.

foto: Íris Zanetti

Um case de

sucesso na saúde

bucal públicaProjeto de assistência odontológica gratuita

reduz 65% das cáries em crianças carentesPor Kíria Ribeiro

fotos: Fundação Sorria / Divulgação

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26 Terceiro Setor

Os turistas que visitam Ouro Preto para conhecer os casarões seculares e a riqueza colonial da região têm sua aten-ção voltada para os detalhes das igrejas barrocas, as peças da arte do Século XVIII e a beleza arquitetônica do muni-cípio. Se o tempo destinado a passeios no museu aberto em que se transfor-mou a cidade descortina um conjunto de obras imponentes, a estada em ho-téis e pousadas pode revelar delicadezas e aromas de uma transformação social diferente. Produtos de higiene pessoal, como sabonetes, xampus e óleos de ba-nho, disponibilizados em muitos destes lugares, trazem em seu perfume a fór-mula invisível, recente e instigante de uma revolução voltada para a saúde e a auto-estima da comunidade local.

Todo o lucro obtido com estes materiais é revertido para a Fundação

Sorria que, há mais de três décadas, é referência de tratamento odontológico gratuito voltado para as crianças da ci-dade, representando um case de sucesso na parceria entre terceiro setor, inicia-tiva privada e poder público. Em 1993, no primeiro inquérito epidemiológico do município, apenas 16% das crianças estavam livres de cáries. Em 2008, o índice subiu para mais de 50%. A Fá-brica de Sabonetes Finos Ouro Preto, montada em 2005, a partir de uma co-operação técnica com a Escola de Far-mácia da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) é mais um braço que visa a tornar o projeto autossustentável e diversificar alternativas de negócios, ampliando os investimentos na saúde bucal pública. Os produtos são ofereci-dos para salões de beleza, rede hoteleira e empresas. Além disso, a Fundação

conta com mais três lojas para a venda direta aos turistas e à comunidade.

O Projeto Sorria teve início em 1978, com o objetivo de dar à popula-ção carente da cidade de Ouro Preto assistência odontológica gratuita e de boa qualidade. O trabalho começou com uma ação isolada do dentista Alu-ísio Drummond, hoje presidente da Fundação que leva o nome do projeto. Drummond decidiu subir os morros de Ouro Preto a fim de realizar palestras para a prevenção das cáries. Munido de um projetor de slides, alguns moldes de gesso, escovas, fio dental e evidenciador de placa bacteriana, ele ia às escolas, associações comunitárias, paróquias e fazendas de distritos para levar informa-ções sobre os cuidados com as cáries e despertar as comunidades para a impor-tância da saúde bucal.

A primeira unidade do projeto foi inaugurada em 1991, no Bairro de Santa Efigênia. Desde então, com a criação de outras sedes, o número de crianças atendidas é multiplicado. A cada novo posto, experiências foram se acumu-lando e, hoje, a instituição atende oito mil crianças em dez centros equipados com aparelhagem moderna e localiza-dos em pontos estratégicos de bairros de baixa condição socioeconômica. Além disso, a Fundação conta com uma unidade móvel, que fica na Santa Casa de Misericórdia, para o atendimento de casos mais delicados.

Conscientização dos paisAlém de prestar assistência odon-

tológica, a Fundação acompanha o

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desenvolvimento da criança, por meio de revisões periódicas. Mais de 20 mil já foram tratadas. Segundo Drum-mond, “o projeto não visa somente o tratamento dentário. Busca levantar a auto-estima e recuperar a cidadania nas crianças. Não nos relacionamos apenas com elas, mas com os pais, que são ins-truídos sobre os cuidados necessários. As crianças passam a ter um compor-tamento diferente e fazem com que os responsáveis também mudem porque o exemplo fica enaltecido”.

O atendimento odontológico é completo, incluindo ortodontia. As crianças recebem ainda orientação para aprender a cuidar da própria saúde bu-cal, por meio da escovação correta e do uso adequado do fio dental. “Os nossos objetivos são despertar a consciência sa-nitária nas crianças e em seus pais, aten-der a população mais pobre e devolver a elas o seu sorriso espontâneo. Esta consciência e o exercício da cidadania são, assim, os alicerces que solidificam as diretrizes da Fundação”, ressalta o dentista.

O projeto funciona em dife-rentes etapas. A primeira envolve o controle de doenças já existentes e o

desenvolvimento de atividades preven-tivas e educativas. Na segunda, são re-construídas as partes danificadas. Em seguida, ocorre a socialização de in-formações e, por último, a atenção se volta para problemas mais complexos e especializados.

Parcerias, prêmios e títulosO Projeto representa um caso raro

que conseguiu mobilizar todos os seto-res da sociedade em prol da causa defen-dida. Para que funcione gratuitamente, conta com parcerias como prefeitura, instituições públicas, fundações mistas e mais de 60 empresas privadas, além de colaboradores individuais. A Fundação é ainda amparada por profissionais da área odontológica e artistas que apadri-nharam a causa, como o músico João Bosco.

Pelos bons resultados, a iniciativa coleciona prêmios. Na galeria do re-conhecimento, Unicef, Abrinq, Movi-mento Negro Cultural de Ouro Preto, Procuradoria Geral de Justiça, Ministé-rio Público e outros. Atualmente, o Pro-jeto Sorria conta com 45 funcionários. Todos se dizem satisfeitos e até mesmo agraciados por fazerem parte de uma

equipe que não detém apenas as possi-bilidades técnicas de correção dentária, mas a própria perspectiva de transfor-mar socialmente os indivíduos.

“Há 19 anos, vim morar em Ouro Preto e, por acaso, o doutor Aluisio foi meu vizinho. Fiquei encantada com o projeto. Estou aqui desde 1993 e não pretendo sair tão cedo”, diz a técnica de higiene dental, Maria Dalva Freitas. Mesmo com dificuldades, a Fundação tem conseguido atingir metas de cresci-mento, mantendo índices de primeiro mundo no tratamento odontológico.

Em muitos casos, os atendimentos vêm atingindo a terceira geração das fa-mílias. Um exemplo é o de Aparecida de Cássia Lopes, que, depois de ter tido a filha tratada, agora acompanha sua neta. “O tratamento é excelente. Além de cuidarem da saúde bucal das crian-ças, eles entendem os problemas das famílias e tentam nos ajudar de todas as formas. Os funcionários, em geral, têm paciência, compreensão e muito carinho com os pacientes. Costumo di-zer que a Fundação é uma das melhores coisas aqui de Ouro Preto”, avalia.

Outro caso é o de Ternilane Gon-zaga, que chegou ao Projeto em 1999,

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aos 11 anos, com um desafio para a equipe: resolver seu problema na arcada dentária superior. Os seus dentes incisi-vos laterais estavam atrás dos incisivos centrais. Seu tratamento durou sete anos, entre procedimentos ortodônti-cos, ortopédicos e clínicos. O resultado refletiu em aspectos mastigatório, res-piratório e estético. E aumentou a au-toestima da jovem. “Não gostava dos meus dentes. Eram muito encavalados. Eu não podia nem fechar a boca. Hoje, não tenho mais vergonha de sorrir”, comemora.

Descoberta de novos talentosAlém de cuidar de dentes e sorri-

sos, a equipe da Fundação encontrou uma nova perspectiva de atuação: a descoberta de talentos a serem desen-volvidos na comunidade. Foi estabele-cida uma parceria com a UFOP para que profissionais dos cursos de música e de artes cênicas pudessem trabalhar com as crianças e desenvolver seu po-tencial criativo por meio de um coral e da arte de representar. O grupo teatral foi criado em 1996, com a peça ‘O Bom das Bocas’, e o coral, em 1999. Em seu repertório, estão incluídas canções do folclore e da música popular brasileira.

As apresentações acontecem em escolas e hospitais da cidade.

O monólogo “Despertar da consci-ência – O peregrino da solidariedade” também é produzido pela Fundação, mais especificamente pelo seu presi-dente. Na peça, o doutor Aloísio Drum-mond comenta sobre textos de Pablo Neruda, Shakespeare, Aldir Blanc e Paulo Lemos. O monólogo fala da ne-cessidade de cada um se aproximar mais do próximo, o que só é possível a par-tir de uma consciência social, condição básica de percepção e motivação para as iniciativas de solidariedade. O resul-tado é um espetáculo de elevada elabo-ração política e social.

Mais do que mostrar ser possível promover a saúde bucal das crianças brasileiras em padrão de excelência mundial, o modelo implantado na Fun-dação é referência para a construção de um país com menos contrastes sociais. Comprometimento e solidariedade movem a ação. E a articulação entre comunidade, poder público e iniciativa privada representa base sólida para a consolidação de uma cidadania possível e com resultados efetivos.

Entidades cobrem apenas 0,47% de atendimentos odontológicos no Brasil

O modelo de saúde bucal vigente no Brasil é ainda limitado. Dados do Governo Federal indicam que, no país, as instituições filantrópicas cobrem ape-nas 0,47% da demanda de assistência odontológica. Atualmente, a Funda-ção Sorria presta assistência completa e gratuita a crianças carentes, de zero a 18 anos, o que corresponde a 18% da população infantil de Ouro Preto. Este trabalho reduziu em mais da metade o índice de cárie nessa faixa da população e tem sido exemplo para outras cida-des. Em Ouro Preto, o Índice de Cá-rie Dentária (média de dentes cariados, perdidos e obturados), aos 12 anos de idade, é de 1,27, número considerado excelente pelo Ministério da Saúde.

A redução deste índice no período de 1993 (ano do primeiro inquérito epidemiológico na região) a 2008 (ano do último inquérito) foi de 65,67%. Se-gundo o diretor executivo da Funda-ção, Francisco Galdino, as crianças que estão no projeto desde os primeiros meses de vida atingem índices epide-miológicos inferiores aos estabelecidos. Para ele, são dados animadores, pois a Organização Mundial da Saúde (OMS) considera como bom o índice entre 1,2 e 2,5, semelhante ao dos países mais desenvolvidos do mundo. “Importante ressaltar que os pais abraçaram a causa e vêm sendo parceiros dos procedimen-tos realizados, razão pela qual consegui-mos baixar muito o índice de cárie”.

Para saber mais sobre a Fundação Sorria, basta acessar o seu site na Inter-net, através do endereço fundacaosorria.org.br

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Exército invisível contra o câncer

O uso da nanotecnologia no Brasil

foto: Mona Aragon, Carlee Ashley, Ph.D., e Jeffrey Brinker, Ph.D

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30 Ciência

O mercado internacional de na-notecnologia deverá atingir US$ 693 bilhões (mais de R$ 1,3 trilhões) até o final deste ano e US$ 2,95 trilhões (cerca de R$ 5,9 trilhões) até 2015, com o Brasil ocupando atualmente o 25º lugar no ranking mundial no setor, de acordo com a Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI). Todas essas cifras podem represen-tar conquistas importantes em várias áreas, principalmente na saúde, com o tratamento do câncer, por exemplo. A nanotecnologia é a ciência que possui a habilidade de construir, em laborató-rio, nanoestruturas que tenham tama-nho variável de até 300 nanômetros. O

Por Mariana Petraglia e Renata Felício

nanômetro é uma unidade de medida que equivale a um metro dividido por um bilhão. Quando comparado com o fio de cabelo humano, possui tamanho 50 mil vezes menor, invisível a micros-cópios comuns. Sua aplicação na saúde significa a possibilidade de algo muito pequeno carregar o fármaco (remédio) até uma célula especifica e tratá-la di-retamente. Associada a diversas áreas, como odontologia, medicina, biologia, bioquimica, veterinária, física e com-putação, a nova tecnologia possibilita evolução no combate a doenças graves, reduzindo efeitos colaterais das práticas convencionais.

O tratamento de um paciente com câncer, a partir da nanotecnologia, proporciona precisão cirúrgica para atingir as células afetadas. O fármaco é direcionado somente à célula can-cerígena, preservando todo o organismo. A utilização de nanopar-tículas, segundo pes-quisadores, permitirá o fim de consequên-cias como queda de ca-belo, imunidade baixa e anemia, otimizando resultados ou redu-zindo a recorrência aos modelos atuais de tra-tamento, ligados a ci-rurgia, radioterapia e, principalmente, aplica-ções quimioterápicas,

métodos que apresentam alto risco aos pacientes.

Diagnóstico e monitoraçãoDe acordo com a coordenadora

do programa de ciência do US Natio-nal Cancer Institute NCI - Instituto Nacional do Câncer, dos Estados Uni-dos, Sonia Calcagno, “a nanotecnolo-gia é essencial para o desenvolvimento de novas abordagens para a terapia, o diagnóstico e a monitoração”. Para os pesquisadores do NCI, o tratamento com nanopartículas oferecerá meios mais seguros e eficazes na batalha con-tra o câncer. A terapia convencional mais utilizada hoje, a quimioterapia, utiliza drogas que são conhecidas por matar as células doentes. No entanto, estas drogas também destróem as célu-las saudáveis, provocando no paciente náusea, fadiga e outros efeitos que comprometem o sistema imunológico. Com a nova tecnologia, as nanopartícu-las serão capazes de transportar drogas, fornecendo medicação diretamente no tumor, poupando os tecidos saudáveis. Como numa guerra, o “exército” de fár-macos deixa de usar armas de destrui-ção em massa e ganha um artefato capaz de matar apenas os “inimigos”.

Outro beneficio está na possi-bilidade de um diagnóstico precoce. O NCI trabalha para a descoberta da doença no seu estágio incial, uma vez que 90% dos casos de morte pelo câncer ocorrem em pacientes que de-senvolveram metástases (disseminação da doença para outros orgãos, além do principal, onde ocorreu o tumor

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inicial). Para os pesquisadores do Insti-tuto, se a doença for detectada no es-tágio inicial, uma simples cirurgia pode significar cura total. Segundo o grupo, a nanotecnologia será capaz de oferecer técnicas e dispositivos de rastreamento por imagens e biomarcadores específi-cos para o câncer, encontrando a fonte da doença enquanto as células doen-tes não se espalharam pelo corpo. Os métodos atuais só conseguem captar o câncer quando este realiza uma visível mudança de tecido. E, mesmo quando visível, é necessário cirurgia para desco-brir se o tumor é maligno ou benigno, por meio de biopsia.

A maioria das terapias baseadas em nanotecnologia ainda está em fase ex-perimental em diversos países. Mas, de acordo com Sonia Calcagno, existem al-gumas drogas aprovadas pelo Food and Drog Administration (FDA) - Adiminis-tração de Drogas e Alimentos - em mea-dos dos anos 1990, nos Estados Unidos, como o Doxil, medicamento com uma formulação lipossomal de doxorrubi-cina para o tratamento de Sarcoma de Kaposi, um tipo de tumor maligno. Atualmente, o Doxil é indicado para o combate ao câncer de ovário. Ela cita ainda a droga conhecida como Abra-xane, aprovada pelo FDA, em 2005, e utilizada no tratamento do câncer de mama. “Ideias simples, porém inteli-gentes, demonstrando versatilidade no design de drogras com nanopartículas”, afirma a pesquisadora.

Pesquisa nos Estados UnidosNos Estados Unidos, vários ensaios

clínicos utilizando nanopartículas es-tão sendo aprofundados, tornando os tratamentos mais sofisticados e di-recionados. De acordo com a direção do NCI, um paciente em tratamento usando a terapia baseada em nanotec-nologia será atendido de uma forma muito semelhante ao que é submetido à quimioterapia convencional, embora a expectativa seja de sensível redução ou desaparecimento dos efeitos colaterais.

O projeto americano Translation of Nanotechnology in Cancer - TO-NIC (Tradução da Nanotecnologia no Câncer) -, realizado pelo NCI - é uma parceria público-privada para promover oportunidades de desenvolvimento de soluções baseadas em nanotecnologia no câncer. A aproximação do governo norte-americano com as empresas far-macêuticas, biotecnológicas e nanotec-nológicas pretende avaliar plataformas promissoras e facilitar a tradução da pesquisa acadêmica para as clínicas. A busca é por diagnósticos seguros e efi-cazes, possibilitando ao paciente opções de tratamento.

Junto com o TONIC, o Insti-tuto conta com outros projetos. O ALLIANCE - Alliance for Nanotech-nology in Cancer (Aliança para Nano-tecnologia no Câncer), tem a missão de reunir pessoas com alto conhecimento em biotecnologia, produtos farmacêuti-cos e outros cuidados na área da saúde relacionados com empresas que apresen-tem interesse em estratégias na avaliação das plataformas de nanotecnologia ou

esforços para buscarem soluções para assistências oncológicas. Já o Nanote-chnology Characterization Laboratory - NCL (Laboratorio de Caracterização Nanotecnológica) – busca testar a toxi-cidade das nanopartículas. A intenção é que o laboratório funcione como re-curso nacional e base de conhecimento para todos os pesquisadores do câncer, facilitando, assim, a regulamentação do uso de nanotecnologia no tratamento e diagnóstico da doença.

Nanotecnologia no Brasil Programas e Parcerias Internacionais

Segundo o vice-coordenador geral de Micro e Nanotecnologias do Minis-tério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), Alfredo Mendes, o Brasil ainda não tem uma bandeira de nanotecno-logia, como o Japão, a Alemanha e os EUA, mas possui projetos importantes, com potencial, na área de cosméticos, no desenvolvimento de novos materiais a partir da biomassa, na produção em larga escala de nanotubos de carbono e em saúde. Recentemente, a Universi-dade de Brasília (UnB) apresentou um tratamento para a cura do câncer de pele, baseado em terapia fotodinâmica. “Comparado a outros países, estamos duas escalas abaixo. Eles investem bi-lhões por ano enquanto nós investimos menos de R$ 100 milhões/ano”, avalia Mendes.

Os programas nacionais começa-ram a partir do lançamento da Iniciativa

Vantagens do uso de nanopartículas para o tratamento do câncer

- Proteção para que as drogas não sejam absorvidas pelo organismo antes de chegarem ao alvo;

- Aumento de absorção das drogas em tumores e dentro das células cancerígenas;

- Monitoramento sobre o tempo da distribuição de drogas pelos tecidos, tornando mais fácil para os oncologistas avaliarem a efi cácia da aplicação;

- Controle para medicamentos não interagirem com células normais, evitando efeitos colaterais;

- Diagnóstico precoce, evitando metástase.

Fonte: National Cancer Institute (NCI) - Instituto Nacional do Câncer, dos EUA

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32 Ciência

Nacional de Nanotecnologia dos EUA, em 2000. Neste mesmo ano, os primei-ros passos foram dados no Brasil através da criação de redes de estudos sobre o assunto. De acordo o Governo Federal, entre 2002 e 2005 foram envolvidos em projetos da área 300 pesquisadores, 77 instituições de ensino e 13 empresas. Neste período, as publicações atingiram mais de mil artigos científicos, tendo sido depositadas aproximadamente 90 patentes pelo país. Em 2004, de acordo com o MCTI, a implementação das ações do Programa Desenvolvimento da Nanociência e Nanotecnologia, fo-cadas na geração de patentes, produtos e processos na área, assegurou o apoio à pesquisa básica e fortaleceu as redes existentes e a infraestrutura laboratorial.

Para o secretário substituto de Desenvolvimento Tecnológico e Ino-vação do MCTI, Adalberto Fazzio, a nanotecnologia é a plataforma tecno-lógica mais inovadora e, muitas vezes, disruptiva. “Como exemplo de sua im-portância, basta olhar a postura dos Estados Unidos. Em 2012, o governo norte-americano aprovou recursos de US$ 2,1 bilhões (mais de R$ 4 bilhões) e as empresas privadas investirão apro-ximadamente US$ 2,3 bilhões (mais de R$ 4,5 bilhões) para pesquisa e desen-volvimento (P&D) na área. É um dos maiores programas de P&D já realizado nos Estados Unidos”, observa Fazzio. Segundo ele, a transversalidade da na-notecnologia vem impactando todos os setores industriais: farmacêutico, têxtil, plástico, eletrônico, cosmético, agropro-dutos etc. “Investir em nano é garantir

agregação de valores em nossos produ-tos industriais assim como em nossas commodities.”

A partir dessa perspectiva, o go-verno brasileiro busca ampliar horizon-tes para as pesquisas neste campo. Em abril, foi publicada no Diário Oficial da União, assinada pelo ministro de Ciência, Tecnologia e Inovação, Marco Antônio Raupp, a criação do Sistema Nacional de Laboratórios em Nano-tecnologia - SisNano - para aumentar a interação entre os pesquisadores brasi-leiros. O projeto propõe desenvolver um programa de mobilização de empresas instaladas no Brasil e de apoio às suas atividades e otimizar a infraestrutura de pesquisa de 16 institutos nacionais de ciência e tecnologia -INCTs- dedicados à área. Além disso, tem como objetivo “capacitar o País a desenvolver progra-mas de cooperação internacional em condições de igualdade com os parcei-ros atualmente mais desenvolvidos no setor, sempre tendo em vista os grandes objetivos nacionais”. Segundo Mendes, o Brasil possui importantes parcerias em andamento com o Mercosul, Cuba, México, Canadá, Estados Unidos, União Européia e Ibas (India-Brasil-África do Sul).

Em fevereiro deste ano, outra im-portante parceria foi fechada. O MCTI instituiu o Centro Brasil-China de Pes-quisa e Inovação em Nanotecnologia, a CBC Nano. Essa parceria visa, dentre outros pontos, “organizar cursos e en-contros com o objetivo de promover ações cooperativas Brasil-China na área de Nanotecnologia; além de consolidar

e ampliar a pesquisa na área, expan-dindo a capacitação científica, com o objetivo de explorar os benefícios resul-tantes dos desenvolvimentos associados a implicações tecnológicas”, conforme informações publicadas no Diário Ofi-cial, no dia 13 de fevereiro de 2012, também assinadas pelo ministro do MCTI.

Graduação e pós na áreaPara compreender o mundo das

nanopartículas, é necessária base sólida em diversas áreas, como medicina, bio-logia, física, engenharia entre outras. Como consequência, o estudo em es-cala nanométrica está se tornando um campo multidisciplinar. A convergên-cia de pesquisadores de campos dife-rentes possibilitou o desenvolvimento acelerado da nanociência. Em 2010, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) inovou ao criar o curso de gra-duação em nanotecnologia, até então inexistente no Brasil. São quatro anos voltados para um estudo aprofundado e específico.

De acordo com a professora do curso e coordenadora de pós-graduação do IMA-UFRJ (Instituto de Macromo-léculas Professora Eloísa Mano), Maria Inês Bruno Tavares, faltam profissio-nais no mercado com conhecimentos sólidos e diversificados. “Nas universi-dades, os grupos de pesquisas têm alta capacidade nos seus assuntos”, afirma. Segundo ela, uma das vantagens do curso está no estágio rotativo, em que os alunos passam pelos laboratórios de diferentes áreas que envolvem a

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nanotecnologia, como o IMA, o Insti-tuto de Física e Química (CCMN), En-genharia de Materiais (COPPE - CT), a Escola de Química (EQ-CT) e a Biofí-sica (CCS).

Para o vice-coordenador geral de Micro e Nanotecnologias do MCTI, Alfredo Mendes, “cursos de graduação e pós-graduação são importantes na medida em que formam profissionais com conhecimento multidisciplinar e transdisciplinar fundamentais para a utilização das amplas possibilidades pro-porcionadas pelas nanotecnologias”.

Pesquisas concentradas em SPDe acordo com o Panorama da

Nanotecnologia, publicado pela ABDI, a maior parte dos estudos em nanoci-ência no Brasil está concentrada em São Paulo. Aproximadamente 70% dos artigos são de pesquisadores vin-culados a universidades e institutos de pesquisa paulistas, com destaque para a Universidade de São Paulo (USP), com 204 publicações. Em 2010, foi criado o primeiro centro brasileiro de nanotec-nologia e engenharia tecidual na área da saúde, localizado em Ribeirão Preto (SP).

O centro visa ampliar a produção de medicamentos nanoestruturados para o tratamento de câncer de pele com a aplicação com laser (fármacos fotoativados), além da produção em escala da pele artificial, usada para re-cuperação de queimados e tratamen-tos de problemas cicatriciais em geral. Coordenado pelo professor Antônio Cláudio Tedesco, do Departamento de

Química, da USP, em Ribeirão Preto, o tratamento de câncer de pele com fármacos fotoativados já está consoli-dado em projetos de pesquisa em par-ceria com dois centros ambulatoriais no país: Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e Universidade de Bra-sília (UnB-HRAN). Segundo ele, ainda em 2012 os ambulatórios de Manaus e do Acre deverão receber o tratamento, estendendo o modelo para o norte e o nordeste brasileiro.

Tedesco também desenvolve um sistema de veiculação de fármacos com nanotecnologia para medicamentos e princípios-ativos e fotoativos para tratamento de Parkinson, Alzheimer, desordens neuro-ortopétidicas e neuro-lógicas, malária e dengue, além dos tra-tamentos para o câncer. Ele pretende, junto aos órgãos federais, Ministério da Saúde e Secretaria Estadual de Saúde, adotar um modelo público de trata-mento, aberto a toda a população com um custo baixo.

A USP ainda utiliza um creme, produzido com o auxílio da nanotecno-logia e associado à aplicação de luz visí-vel para ativá-lo. Desenvolvido há mais de 35 anos no mundo e utilizado há 13 pela equipe da Universidade, o produto demonstrou 95% de eficiência na cura do câncer de pele e lesões pré-cancerí-genas, sendo testado desde o início dos estudos, em 500 pacientes, com trata-mento gratuito. Coordenador do grupo de Fotobiologia e Fotomedicina da USP, Tedesco afirma, porém, que ape-nas o creme não é capaz de curar o cân-cer de pele. Segundo ele, é necessário

seu emprego conjunto com a luz visível (laser ou LED, na faixa vermelha). O novo método provoca menos efeitos colaterais que outros adotados atual-mente, como quimioterapia e radiotera-pia. No entanto, ainda não é funcional para o tratamento de melanomas.

Na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), pesquisadores desenvolveram compostos com nano-partículas de prata explorando as pro-priedades antibacterianas do metal. A ideia é utilizar as nanopartículas nos tecidos, tintas e outros materiais com risco de contaminação, podendo ser bastante úteis em ambientes hospitala-res, por exemplo. Outro estudo reali-zado pela Unicamp, coordenado pelos químicos Nelson Duran Caballero e Oswaldo Luiz Alves, propõe um sistema à base de nanopartículas de ouro de três a quatro nanômetros, para liberação de fármacos antitumorais, agindo somente contra as células cancerígenas. Testado para células leucêmicas, o composto ainda está em fase de experimentação.

Terapia pioneira em Minas GeraisO uso de fotopartículas na terapia

fotodinâmica é um dos estudos cientí-ficos desenvolvidos na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), em Minas Gerais. Coordenada pela Dra. Vanessa Mosqueira, professora da Es-cola de Farmácia da Universidade, a pesquisa aborda a terapia que consiste em colocar uma substância não tóxica dentro de uma nanoparticula para que, quando irradiada por uma luz espe-cífica, esta mesma substância se torne

foto: Brenda Melendez e Rita Serda, Ph.D

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tóxica. O papel da substância depois de irradiada será barrar a célula procurada, impedindo o desenvolvimento da do-ença. A professora e sua equipe contam com a utilização de nanopartículas para que exista uma seletividade das células, ou seja, a garantia de que a substância com o fármaco somente atingirá as célu-las pré-determinadas.

As doenças que facilitam a ação das nanopartículas são aquelas em que as células causadoras não estão espalha-das por todo o organismo do paciente. Para Vanessa, a utilização da nanotec-nologia só deverá ser válida para as do-enças com grande dificuldade de cura, alto índice de morte e que acabam de-generando muito o organismo do do-ente. De acordo com a pesquisadora, o custo financeiro para a utilização desse recurso é bem elevado, pois con-tém uma estratégia científica complexa, uma busca pela substância correta para cada tipo de doença e a construção de uma partícula nanométrica, além de um laboratório com tecnologia muito avançada para o desenvolvimento e tes-tes das partículas.

A pesquisa realizada na UFOP é pioneira nos testes de nanocápsulas no tratamento de lesões pré-malignas que aparecem na região da boca e podem se transformar em um tipo de câncer. A pesquisa conta com o financiamento da Fundação de Amparo e Apoio à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapeming), Coordenação de Aperfei-çoamento de Pessoas de Nível Superior (Capes), Conselho Nacional de Desen-volvimento Científico e Tecnológico

(CNPq) e Organização Mundial da Saúde (OMS).

Falta de legislaçãoSegundo Vanessa, no entanto, ape-

sar do incentivo por parte do Governo Federal para o desenvolvimento e apri-moramento da nanotecnologia no País, até hoje não são encontrados no mer-cado produtos nacionais com o uso de nanopartículas. Para a professora, falta legislação específica da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) na área. Por enquanto, todos os produtos disponíveis para a comercialização no Brasil são importados, principalmente dos Estados Unidos e da Europa, au-mentando o seu preço.

A combinação de uma legislação moderna, aliada a investimentos quan-titativos e qualitativos em estrutura para a pesquisa, incluindo laboratórios, equi-pamentos e materiais, formação e in-centivo de pesquisadores, pode situar o país em nível de igualdade com centros avançados do mundo, considerando que a nanotecnologia é ainda uma ci-ência aberta, onde são embrionárias as novas descobertas e suas aplicações.

O acesso públicoPara o médico Helder Yankous,

superintendente geral do Complexo Hospitalar São Francisco, instituição filantrópica de Belo Horizonte, com 100% dos atendimentos voltados para pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS), a implantação de uma evolução tecnológica na área médica acaba pas-sando por períodos de avaliação custo/

benefício, abrangência, factibilidade e, principalmente, pelos questionamentos éticos. “A nanotecnologia promoverá diagnósticos mais rápidos e precisos, além de tratamentos mais humaniza-dos. No entanto, haverá uma primeira fase, a da novidade e do status, onde o acesso será para a população de maior poder econômico e o número de proce-dimentos muito maior do que o neces-sário. Depois, sua utilização será mais condizente com as melhores práticas e haverá uma melhor avaliação sobre sua real necessidade e possibilidade de uso no dia a dia das instituições”, prevê.

Para Yankous, somente após haver uma massa crítica relevante para a im-plantação de protocolos nas instituições com rigor ético é que a população em geral começará a ter como se beneficiar das novas práticas através do serviço público. “Até lá, sempre se avalia tam-bém o fato de o orçamento ser finito, qual a abrangência com as práticas já utilizadas e qual será com as novas dis-poníveis”, diz. “Consideramos a nano-tecnologia de suma importância para a evolução dos cuidados em saúde para todos nós, mas até que se tenha uma real efetividade e acessibilidade a todos que necessitarem teremos um longo ca-minho”, conclui.

foto: R. J. Wilson, Ph.D.; C. M. Earhart, Ph.D.; e S. X. Wang, Ph.D

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O rendimento dos atletas de alto nível apresenta melhora espantosa a cada nova disputa. As Olimpíadas constituem termômetro diferenciado e marcas históricas são devastadas na ve-locidade de um piscar de olhos. Os su-cessivos recordes quebrados em todas as áreas mostram melhor preparo físico e resistência das equipes. Na esteira deste sucesso, o cuidado com a alimentação dos atletas ganha destaque e se conso-lida como base para que os protagonis-tas do esporte moderno possam extrair o máximo de suas potencialidades.

A nutrição pode atender a pessoas comuns, freqüentadoras de academias de ginástica, e a atletas profissionais. O termo “nutrição esportiva” é usado mais especificamente no contexto do esporte de ponta, onde estratégias nutricionais têm o papel de otimizar a performance. Esta ramificação da ciência alimentar ajuda a compreender justamente o “como” e o “porquê” destes resultados. Através de pesquisas, os especialistas na área investigam os efeitos de dietas espe-cíficas e do uso de suplementos sobre a saúde, a recuperação e o desempenho.

A falta de cuidado com o que se come pode interferir no rendimento

Combinação de dietas quali+ cadas e treinos físicos contribuiem

para equilíbrio emocional e potencializa rendimento no esporte.

Por Kíria Ribeiro*

durante um campeonato e causar pro-blemas de saúde decorrentes da prá-tica esportiva. Treinos e competições constantes levam a desgaste e estresse para os quais o corpo muitas vezes não está preparado. “A nutrição esportiva não transforma um sedentário em um atleta, mas pode definir quem será o primeiro e o segundo colocado”, afirma a professora da Escola de Nutrição da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Simone Viana.

Segundo Viana, uma dieta é feita, na medida do possível, respeitando os hábitos alimentares do atleta. “A idéia é tentar corrigir algum desvio alimen-tar existente ou que possa futuramente levar a alguma patologia. O objetivo primeiro deve ser a saúde e depois o desempenho”, explica. O cardápio do atleta não difere muito da refeição do amador. A grande diferença será a de-manda energética, considerando que os competidores profissionais podem apre-sentar necessidades entre quatro mil e dez mil quilocalorias (kcal) por dia. No entanto, a refeição de ambos deve ter uma distribuição equilibrada de macro-nutrientes, com variedade de opções e controle no peso.

Estratégia

nutricional

para aumentar

a performance

“Quando dizemos que um ali-mento tem ´x´ calorias, nos referimos à quantidade de energia que ele pode fornecer ao organismo. A caloria é, na verdade uma dose de energia retirada de proteínas, carboidratos e gorduras, que é processada pelas células e res-ponde por funções vitais do corpo”, diz Viana. “O ideal é que o atleta e seu nu-tricionista tracem estratégias e testem alimentos que melhorem o rendimento esportivo e forneçam energia suficiente para as competições”, conclui.

No Minas, dieta para 900 atletas Na rotina das equipes de alto

nível, ânimo e disposição não podem faltar. Intensos treinamentos, viagens e sucessivas competições compõem uma agenda de compromissos que mexem com o físico e o psicológico. O equilí-brio entre corpo e mente, porém, de-pende de uma base pouco mencionada: o correto funcionamento do organismo. É hora de entrar em campo a estratégia da nutrição esportiva moderna.

A tarefa de Márcia Bernardes, por exemplo, não é das mais fáceis. A nutricionista do Minas Tênis Clube cuida da alimentação de mais de 900

ilustração: Divulgação

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atletas de diversas modalidades e faixas etárias, organiza cardápios de viagem e estabelece metas e dietas para o con-trole de peso de cada um. O restaurante do clube serve, em média, 600 refeições por dia. São consumidos 35kg de arroz, 35kg de feijão, 50kg de carne vermelha e 20kg de carne branca.

Os pratos são montados de acordo com as necessidades individuais. Atletas que precisam controlar o peso devem dar preferência a fibras e diminuir os carboidratos. O inverso é feito para os que precisam ganhar massa. “Oriento os atletas individualmente nas consul-tas, mas faço muitos trabalhos coletivos de orientação geral sobre alimenta-ção saudável e, especialmente, sobre a alimentação antes, durante e depois dos treinos e competições”, conta Ber-nardes. Segundo ela, os atletas ainda assistem palestras sobre educação nutri-cional e pirâmide alimentar. As equipes do Minas competem em modalidades de natação, vôlei, futsal e outras.

Atlético x Cruzeiro – A rivalidade a partir da cozinha

No futebol, Atlético-MG e Cruzeiro também investem pesado na supervisão nutricional para seus joga-dores. A alimentação equilibrada pode melhorar os depósitos de energia do organismo de cada atleta, reduzir o can-saço, aumentar o tempo de atividade, recuperar os músculos depois do treino e melhorar a saúde em geral. Os jogado-res devem seguir dietas que contenham quantidade de calorias adequada, per-mitindo tanto a manutenção de peso

corporal quanto o fornecimento de energia suficiente para atender a de-manda de treinos e jogos.

Para Flávia de Almeida, nutri-cionista do Cruzeiro, o desempenho é ponto chave para o seu trabalho. Se-gundo ela, dois eixos são perseguidos no clube. “Na Toca da Raposa, nós vi-samos saúde conjugada à performance do atleta, nunca esquecendo, porém, que estamos tratando do indivíduo”, pondera. De acordo com Almeida, es-tudos mostram que se um atleta atua com baixa reserva de glicogênio mus-cular, não vai conseguir completar o seu treino ou jogo comparado com o que tem a reserva boa. A profissional trabalha sintonizada com toda a co-missão técnica da equipe de futebol e se orienta a partir da definição da pro-gramação de cada semana. “Monto um cardápio mais variado possível e vou distribuindo os tipos de alimentos em suas refeições”, explica.

Atuando no arqui-rival do Cruzeiro, a nutricionista do Atlético-MG, Patrícia Teixeira também é linha dura com seus atletas. “O principal é estar presente e orientando cada joga-dor com suas necessidades individu-ais, verificando o percentual de massa magra, fazendo exames de sangue, en-tre outros”, avalia, acrescentando que acompanha o dia-a-dia das refeições dos atletas antes e após cada jogo. Para Tei-xeira, a nutrição é muito importante, visto que influencia diretamente no rendimento do atleta em campo. “Uma alimentação orientada e bem qualificada proporciona ao atleta melhores condições

dentro das quatro linhas e reduz o risco de fadiga precoce”, diz.

Prevenção de lesões e doençasPara o professor do curso de Ciên-

cias da Atividade Física, da Universidade de São Paulo (USP), Marcelo Saldanha, o equilíbrio entre exercício físico e boa alimentação pode não apenas potencia-lizar resultados, mas prevenir contusões. “Independente do nível de condiciona-mento ou do objetivo específico de cada indivíduo, a alimentação adequada pode ajudar a melhorar o desempenho, dimi-nuir o tempo de recuperação do exercício extenuante e evitar lesões, entre outros”, explica. Segundo Saldanha, a combinação entre alimentação e exercícios também re-duz o risco de inúmeras doenças crônicas, como diabetes, hipertensão, obesidade, osteoporose, câncer e outros. “A nutrição e a atividade física devem trabalhar juntos para promover a saúde e a qualidade de vida”, alerta.

Quando os atletas não conseguem os resultados esperados com os treinos físi-cos e as refeições, eles precisam observar se a nutrição está satisfazendo adequa-damente as necessidades do organismo. Alimentos ricos em gordura, como bis-coitos recheados ou pizzas, acabam não reabastecendo os músculos com as quan-tidades ideais de carboidratos e o desem-penho nos dias seguintes de treinos acaba caindo.

“Combustíveis” adequadosDurante a atividade física, há

um aumento no consumo de ener-gia e é preciso atenção para não faltar

foto: Edwaldo Cordeiro 37

o combustível certo. Caso esta falta ocorra, o organismo começa a usar a proteína de seus próprios músculos, causando perda de massa magra, o que é prejudicial ao atleta. O combustível pre-ferido pelo corpo durante o exercício é o glicogênio, cujas principais fontes são os carboidratos. Por isso, é importante consumi-los antes e depois dos exercí-cios, uma vez que vão liberar energia ra-pidamente para o corpo. A hidratação é ainda mais essencial durante a reali-zação de atividade física, pois o corpo perde água para regular a temperatura e, com ela, substâncias como potássio e sódio. “A hidratação é sempre muito importante, pois garante a circulação dos nutrientes pelo organismo. Sempre alerto meus alunos com relação à inges-tão de água durante o exercício físico”, explica o professor do Departamento de Educação Física da UFOP, Kelerson Pinto.

Outro componente destacado é um velho conhecido dos esportistas: as proteínas, presentes em alimentos como carnes, leite e soja. Sua utili-dade está na regeneração das fibras

musculares após os esportes, através da ação dos aminoácidos nelas presentes. Existem oito aminoácidos essenciais que nosso organismo não produz e que precisam vir desses alimentos. Pratican-tes de atividade física e atletas querem manter a disposição no dia-a-dia para que possam ter melhor rendimento em suas atividades. A nutrição ajuda a manter o entusiasmo necessário para enfrentar a maratona da vida moderna. Mas não cometer exageros também é importante. Excesso de proteínas e gor-duras, mais difíceis de serem digeridas, faz com que o sistema digestivo trabalhe mais, sobrecarregando o organismo e deixando o esportista extenuado.

Os suplementosUma boa alimentação, hábitos sau-

dáveis e a prática regular de esportes fazem parte da rotina de atletas amado-res e profissionais. A inserção de suple-mentos alimentares tem como objetivo completar a dieta diária do esportista, auxiliar na reposição de vitaminas e sais minerais, aperfeiçoar os resultados dos treinos e aumentar o desempenho

no esporte. Mas é preciso cautela. Es-ses produtos não podem ser usados indiscriminadamente.

De acordo com a professora do Departamento de Educação Física da UFOP, Lenice Becker, os suplemen-tos são indicados para pessoas que necessitam de mais calorias, proteínas e vitaminas, além das que são consu-midas nas refeições diárias. “Os atletas passam a maior parte do dia treinando e muitas vezes só as refeições comuns não conseguem oferecer todos os nu-trientes necessários. Por isso, usamos os suplementos para complementar a alimentação base e atingir as quantida-des de nutrientes que os atletas preci-sam”, explica. Ela alerta, no entanto, que os suplementos não devem ser utilizados como substitutos, pois não são capazes de repor as centenas de nu-trientes necessários que são encontra-dos nos alimentos naturais.

Hoje, o mercado apresenta diver-sos tipos de suplementos alimentares, cada um com a sua finalidade e do-sagem. Entre os mais utilizados estão os repositores de minerais. Esses pro-dutos possuem inúmeros compostos que podem alterar o metabolismo do atleta. Por isso, devem sempre ter o au-xílio de um nutricionista na prepara-ção da dieta e, consequentemente, na indicação do suplemento alimentar.

Os complementosPara a nutricionista Lucília Oli-

veira, da Academia Fórmula, de Belo Horizonte, estes produtos são necessá-rios dependendo da dieta de cada um. “O suplemento, na verdade, não é uti-lizado na academia como suplemento, ele é um complemento. Porque, às ve-zes, a gente tem uma demanda de pro-teína mais alta, mas a pessoa não tem tempo de comer. Então vamos usar um composto destes para complementar aquela refeição, para o atleta ter um bom desempenho. Não temos restrição aos suplementos, mas tudo deve ser de acordo com a necessidade”, explica.

As orientações de Lucília são segui-das pela triatleta Nathanaelle Mosca, 26 anos. Para ela, este acompanhamento

foto: Assessoria de Comunicação - Atlético-MG. Bruno Cantini

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38 Esporte

pode fazer a diferença no rendimento nos treinos. “A alimentação é funda-mental e os suplementos podem ajudar sim porque acabam complementando minha nutrição cotidiana”, afirma.

As “bombas” e os amadoresA vaidade excessiva, a busca pelo

corpo perfeito e o desejo de conseguir músculos do dia para noite levam algu-mas pessoas a fazerem de tudo por essa conquista, inclusive arriscarem suas próprias vidas. Muitas vezes, essa busca é feita por meio dos anabolizantes, to-mados ou aplicados diretamente nos músculos.

De acordo com especialistas, estes produtos são medicamentos fabricados através de combinações bioquímicas da testosterona, o hormônio responsável pelo desenvolvimento das características masculinas. O efeito dos anabolizantes é muito rápido. Uma pessoa que faz exercício, por exemplo, três vezes por semana, com uma determinada carga, vai conseguir um crescimento muscular correspondente Usando anabolizantes,

porém, o crescimento muscular é duas vezes maior.

As “bombas”, como são conheci-dos os compostos anabolizantes entre os amadores de academias de credibili-dade duvidosa, afetam o metabolismo do corpo e causam sérios efeitos cola-terais, podendo levar o atleta à morte. Entre os efeitos colaterais, atrofia testi-cular, diminuição da capacidade sexual, esterilidade, aumento da agressividade e infarto.

Por outro lado, um corpo definido e o aumento dos músculos podem ser conquistados de forma saudável, com nutrição apropriada combinada a exer-cícios adequados e repouso. “Treina-mentos com resultados a médio e longo prazos, que levam de um a dois anos, são demorados, mas são para a vida inteira”, avalia a nutricionista Simone Viana.

Proteína para reduzir desgaste Uma pesquisa desenvolvida

pela Escola de Nutrição da UFOP promete usar uma proteína de ori-gem animal, extraída do soro do leite

durante o processo de fabricação do queijo, para potencializar o desempe-nho de um atleta em uma competição. O nome é Whey Protein. Durante as atividades físicas, principalmente nas de maior esforço, é gerado o chamado estresse oxidativo, situação de excesso de radicais livres (substâncias tóxicas produzidas pelo corpo). O estresse e a defesa do organismo devem estar em equilíbrio, caso contrário o esforço pode causar envelhecimento precoce, câncer e outras doenças, como o Mal de Parkinson. Aprovada em dezembro de 2011, pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecno-lógico (CNPq), a pesquisa, coordenada pelo professor Marcelo Eustáquio Silva, busca reduzir o desgaste e, conseqüen-temente, os efeitos negativos sobre o atleta.

*Colaboração: Roberta Nunes

foto: Edwaldo Cordeiro

39Memória Oral

As escalações de cada seleção de 1950 saem como rimas fáceis de estro-fes de 11 versos. A consulta é direta à memória e, em menos tempo que o Google, os nomes dos jogadores vão fazendo renascer Itália, Espanha, Para-guai e outras equipes que estiveram na primeira Copa do Mundo de Futebol disputada no Brasil. O senhor Elmo Cordeiro, hoje com 78 anos, conjuga passado e presente com lembranças co-loridas de um tempo em preto e branco. Pela tela dos seus olhos, enxergamos o menino franzino de 16 anos que tra-balhou como gandula em três jogos da competição e teve contato direto com os craques estrangeiros que pisaram no gramado do Estádio Independência, em Belo Horizonte.

A função de apanhar e devol-ver as bolas que caíam fora do campo tinha ganhado o nome uma década antes, em 1939. Um jogador argen-tino, Bernardo Gandulla, contratado pelo Vasco, nunca chegou a atuar no time principal, mas sempre que a bola saía, lá ia ele correr para devolvê-la à partida, seja para o seu time ou para o adversário, praticando o chamado fair

play. Mesmo sem jogar, o atleta acabou ganhando a simpatia das torcidas e, a partir de suas atitudes, os “apanhadores de bola” passaram a ser naturalmente chamados pelo sobrenome do argen-tino. Em geral, garotos, cuja principal recompensa era a proximidade com os craques do futebol.

O gandula dos jogos em Mi-nas tinha chegado ao Estado há quatro

Histórias

de um

gandula

de 1950

Ele trabalhou em todos

os jogos da Copa, em

Belo Horizonte, viu

um iugoslavo 4 utuar

em campo, uruguaios

baterem na bola e na

força, e testemunhou,

nada menos, do que a

maior zebra da história

da competição

Por Ady Carnevalli e Edwaldo Cordeiro

foto: Edwaldo Cordeiro

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anos, quando o pai, um comerciante de Ni-

terói (RJ), decidiu tentar a sorte em terras mineiras. Elmo

trabalhou de office-boy na Construtora responsável por erguer o Estádio In-dependência, feito especialmente para a Copa de 1950. Antes, na capital mi-neira, os jogos eram disputados no Estádio Alameda, no Bairro de Santa Efigênia, onde hoje funciona um hiper-mercado. O menino recebeu de um dos donos da empresa um pedido para aju-dar na competição, apanhando as bolas na beira do gramado. Trabalho não re-munerado, mas privilégio de poucos na época.

“Repórteres, se muito, tinham dois atrás de cada gol”, lembra. “Era uma grande parafernália. As cabines de imprensa ficavam no alto e os fios de microfones e gravadores tinham que passar por cima da cabeça de torcedo-res, descendo pela arquibancada até o campo. Quando chovia, dava choque”, conta. E, para não perder o costume, desfia mais uma escalação, a da Suiça.

Jogos inesquecíveis Elmo trabalhou em três jogos:

Suiça x Iugoslávia, Uruguai x Bolívia e Inglaterra x EUA, cada um com uma história especial. Entre as seis seleções, o futebol da Iugoslávia era o que mais encantava. “Ganharam de 3 a 0 da Suíça, jogando só no toque de bola. E olha que a Suiça não era ruim, pois empatou com o Brasil depois. A Iugos-lávia tinha um meia, Mitic, que flutu-ava em campo”, lembra. Já o Uruguai goleou a fraca Bolívia por 8 a 0, mas o que chamou atenção não foi o futebol da azul celeste, que mais tarde calaria 180 mil pessoas no Maracanã. “Vence-ram batendo. Como eles bateram nos

pobres bolivianos, na bola e na força”, diverte-se. E lá vêm prontos, como num clique na memória, todos os nomes dos uruguaios.

A maior zebra de todas as Copas Nosso gandula também teste-

munhou a maior zebra da história de to-das as Copas, quando os poderosos ingleses perderam para uma seleção inexpressiva dos EUA, formada não apenas por ame-ricanos, mas por jogadores de países da América Central e do Caribe. “A fa-vorita para ganhar a Copa era a Itália, mas um ano antes, todos os jogadores do Torino, que era a base da seleção, morreram em um acidente de avião. A Inglaterra passou a ser a se-leção mais indicada para o título. Mas, no jogo com os EUA, perderam como o Barcelona perdeu agora para o Chel-sea. Tocaram bola o tempo todo dentro do campo adversário e tomaram o gol num bate-rebate na área”, lembra. “Os repórteres ficaram perdidos. Não tinha jeito de saber se estavam nervosos. Os dois times eram muito frios”. No gol dos EUA, a bola passou por debaixo do zagueiro Alf Ramsey, que 16 anos mais tarde, seria o técnico campeão do mundo, da Inglaterra, recebendo da Coroa a condecoração de Sir. “E os ame-ricanos nem ficaram sabendo do feito em 1950”.

Quando os tempos se misturam O jovem senhor Elmo, hoje fun-

cionário público aposentado, voltou ao Independência na reinauguração, em abril. Ele continua apaixonado por fute-bol. Às memórias dos campos somam-se

fotografias dentro dos gramados, como artilheiro, pelas equipes do Aluminas, de Ouro Preto-MG, e do Taubaté-SP. Na mistura dos tempos, a impressio-nante lucidez para analisar cenários de épocas tão distantes. “O futebol evoluiu na preparação física e psicológica, mas a técnica não é a mesma. Outro dia tive pesadelo depois de assistir um jogo da

Copa do Brasil, foi assombroso”, conta rindo.

E rapidamente volta aos dias em que vestia bermuda e calçados de al-parcata, quando devolvia as bolas nas mãos de verda-deiros heróis, não apenas do esporte, mas da cidadania

mundial. “Em 1950, muitas delegações não vieram. Ainda existiam tensões devido ao período pós-guerra. Viajar de navio era arriscado. Os que vieram superaram também este medo. E foram recebidos com uma festa muito bonita dos brasileiros”.

E lá vêm histórias dos locutores Jairo Anatólio Lima e Álvaro Celso Trindade, o Babaró, do melhor jogo que viu em sua vida (Flamengo 4x1 Ra-cing, em 1958), do fantástico goleiro do Uruguai e do Atlético-MG, Mazurkie-vski, de Domingos da Guia e de Bob Shalton. E, lógico, a escalação do Brasil de 1950. Estrofes irregulares de 11 ver-sos do menino que não conversava com o pai sisudo ao pai que adora uma boa prosa e não se intimida, mesmo quando um dos repórteres a entrevistá-lo é o próprio filho, Edwaldo Cordeiro.

“Os fi os de

microfones

passavam

por cima da

cabeça dos

torcedores”

foto: Divulgação

41História

A origem de Roma Segundo a mitologia, Roma foi

fundada por Rômulo, irmão gêmeo de Remo. Os irmãos, filhos de Marte e Reia Sílvia, teriam sido abandonados em um cesto nas águas do Rio Tibre, na Itália, sendo então encontrados por uma loba que os amamentou em uma gruta e, posteriormente, criados por um casal de pastores. Após adulto, Rômulo mata Remo, funda a cidade de Roma e se proclama rei. Assim, por tradição, a data de fundação de Roma é indicada em 21 de abril do ano 753 antes de

Um olhar diferente sobre Roma antiga

Grupo de pesquisadores brasileiros se

especializa em estudos sobre o Império Romano

e sugere novas visões sobre seus aspectos e

personagens mais famososPor Kamilla Abreu

Cristo (a.C). e, habitualmente, o nome da cidade é relacionado ao de Rômulo.

Já para os historiadores, a forma-ção e o povoamento de Roma é o re-sultado do encontro de três povos que habitavam a região da Península Itálica: gregos, italiotas e etruscos (de origem asiática). A sociedade nessa época era dividida entre duas classes: os patrí-cios, que eram nobres proprietários de terras; e os plebeus, que consistiam em artesãos, comerciantes e pequenos pro-prietários. A monarquia era o sistema político adotado; a economia, baseada

na agricultura e em atividades pastoris; e a religião, politeísta – que era a crença em vários deuses.

Nesse período, 753 a.C. a 509 a.C., Roma teve sete reis, sendo três de origem asiática, isto é, os etruscos cons-tituíam a maioria. O governo era exer-cido por um rei vitalício e pelo Senado, composto apenas por patrícios. Devido à centralização do poder nas mãos dos etruscos, os patrícios derrubariam a Monarquia, instalando a República.

A RepúblicaInstalada a República (509 a.C. a

27 a.C.), composta basicamente pela aristocracia, o Senado ganha grande po-der político. As finanças públicas, a ad-ministração e a política externa passam a ser supervisionadas pelos seus mem-bros. Já as atividades executivas são dis-tribuídas para os cônsules e os tribunos da plebe. Duas conquistas relevantes neste período foram a “Lei das Doze Tábuas”, quando a legislação, até então transmitida apenas oralmente, deveria ser escrita e pública; e a “Lei Licínica”, que garantia a participação dos plebeus no Consulado.

Com a República, os romanos pas-sam a desenvolver uma política impe-rialista baseada na conquista de novas terras, atendendo assim aos interesses

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A Loba Capitolina, escultura etrusca do século V aC - Museu dos Conservadores - O Símbolo do Império Romano

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dos patrícios. Neste panorama, vencem os cartagineses nas Guerras Púnicas – séc. III a.C., o que garante a hegemonia romana no Mar Mediterrâneo e, pos-teriormente, o domino sobre Cartago. Roma expande suas conquistas domi-nando Egito, Macedônia, Grécia, Gá-lia, Síria, Germânia, Trácia e Palestina. Assim, após sucessivas vitórias, conso-lida mudanças significativas e passa a ser o maior Império da Antiguidade.

O ImpérioO político e general Júlio César

forma uma aliança chamada “O Pri-meiro Triunvirato”, com os cônsules Pompeu e Crasso. Porém, depois da morte de Crasso, ele declara guerra a Pompeu, a fim de ter o poder absoluto de Roma. Mas acaba sendo assassinado ao se proclamar ditador. O herdeiro de César, Otaviano, permanece então em uma guerra civil, durante 14 anos, com Marco Antonio, que seria o segundo no poder. Assim, o Império Romano se inicia, segundo a periodização normal-mente utilizada, em 31 a.C., quando o patrício Otaviano sai vitorioso sobre Marco Antônio e Cleópatra, na Batalha de Ácio, e se consolida como o homem mais poderoso de Roma; ou em 27 a.C., quando Otaviano recebe o título de Au-gusto e se torna o primeiro imperador romano.

Em suma, o Império Romano de-signa a história de uma unidade polí-tica que dominou boa parte da Europa, o norte da África e largas parcelas do Oriente Próximo – região que compre-ende a Ásia, próxima ao mar Mediterrâ-neo, a oeste do Rio Eufrates, incluindo

Síria, Líbano, Israel, Palestina e Iraque. E o termo é utilizado, por convenção, como referência ao estado romano após a reorganização política efetuada pelo primeiro imperador.

Decadência e FimA dissolução do Império Romano

é dividida em dois momentos nas cro-nologias tradicionais. A derrota do im-perador Romulus Augustus, em 476, que o levou a reconhecer a soberania do germânico Odoacro, marca o fim do Império Romano no Ocidente. Esta cronologia, que se fez de largo uso, si-naliza também a passagem do Mundo Antigo para a Idade Média. O Império Romano Oriental ou Bizantino teria permanecido ainda por cerca de um milênio, desintegrando-se em 1453, quando morre Constantino XI e ocorre a captura de Constantinopla por Meh-med II, comandante dos turcos otoma-nos. Este evento também marcaria na chamada História Geral a transição da Idade Média para a Idade Moderna.

A reconstrução da históriaEm 2008, foi criado no Brasil o

Laboratório de Estudos do Império Romano (LEIR). A iniciativa partiu dos professores Norberto Guarinello, da Universidade de São Paulo (USP), hoje coordenador geral da pesquisa, e Fábio Faversani, da Universidade Fede-ral de Ouro Preto (UFOP). O LEIR é um grupo nacional que abrange diver-sas universidades para a pesquisa espe-cializada sobre o tema. Além de USP e UFOP, participam as federais de Goiás (UFG), do Espírito Santo (UFES), do

Triângulo Mineiro (UFTM), de Cam-pina Grande-PB (UFCG), do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e do Pampa (Unipampa), e a Estadual Paulista (Unesp-Franca). O LEIR também está vinculado à Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos (SBEC) e registrado como grupo de pesquisa do CNPq. A equipe é composta por professores e es-tudantes em seus diversos níveis de for-mação, de alunos de iniciação científica a pós-doutores.

A atração pelo estudo do Império Romano nas universidades e nas insti-tuições que cultivam o conhecimento histórico exerce um encanto diferen-ciado sobre os pesquisadores. Segundo Faversani, um dos coordenadores na-cionais do grupo, a razão para isto está nos “diversos aspectos ligados a este

Mosaicos produzidos durante o Império Romano

43História

período que perpassam nossa existência e nos fascinam enormemente ainda nos tempos atuais”. Para ele, “o historiador é movido pelo presente; assim, os con-flitos e as tensões do momento fazem com que olhe para o passado de uma forma diferente a cada período”.

O historiador, explica o docente, pode encarar os acontecimentos de uma mesma época de diversas manei-ras devido ao contexto em que cada um vive. Faversani avalia que consolidar a pesquisa sobre história antiga, no Bra-sil, deve levar à produção de um olhar original sobre este passado, pois os bra-sileiros vivem em uma realidade muito diferente da de colegas dos centros mais tradicionais de pesquisa, na Europa. “O que estamos produzindo, assim, são visões novas acerca de um passado

Fotos: http://www.romansociety.org/imago/home.html / Divulgação

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que é tomado por comum por todas aquelas culturas que compartilham o entendimento de que são herdeiras do Império Romano, o que se conven-cionou chamar de cultura ocidental”, complementa.

Em cada uma das universidades componentes da pesquisa há um grupo do LEIR. Esses núcleos promovem en-contros para debater os resultados em curso e estimular a sua publicação. Anualmente, as coordenações regionais se reúnem com o objetivo não apenas do intercâmbio entre os participantes, mas para o planejamento das atividades do grupo. O último encontro ocorreu em outubro de 2011, na UFOP, e teve como tema “O Império Romano e as fronteiras do tempo”.

Nero e a representação do monstro em cada pessoa

Um dos nomes de destaque quando se pensa em Império Romano é Nero, cuja biografia é associada ha-bitualmente a ter colocado fogo em Roma. Faversani estuda este persona-gem histórico com foco nas estratégias individuais e coletivas do Senado pe-rante o poder imperial e nas representa-ções que este grupo elabora sobre suas relações com o imperador. O professor baseia sua pesquisa principalmente nas

obras historiográficas de Cornélio Tá-cito e Sêneca.

Neste cenário, a abordagem ado-tada parte do pressuposto de que Nero teria feito um governo considerado ruim e que se afastou do ideal senato-rial. Assim, o estudo analisa o quanto as ações de Nero estariam distantes do mo-delo de Augusto e em que medida este juízo foi construído posteriormente. Busca, também, investigar qual a contri-buição dada pelos senadores para que o governo de Nero divergisse deste ideal. Para o historiador, Nero representa, de alguma forma, um monstro que as pes-soas seriam se tivessem oportunidade.

Antioquia e a cristianizaçãoO professor Gilvan Ventura, coor-

denador do LEIR na UFES, estuda o processo de cristianização do Império Romano, isto é, como o credo cristão foi aos poucos obtendo a hegemonia ao longo do século IV. Para tanto, o seu estudo de caso é a cidade de An-tioquia, capital da província da Síria. Ventura tenta demonstrar como essa cristianização é lenta e vacilante, ao contrário do que afirmam boa parte

dos historiadores. Para ele, nesse sen-tido, “Antioquia é uma cidade muito interessante, pois nela vê-se a integra-ção de pagãos, judeus e cristãos no dia a dia”. Sua pesquisa caminha no sentido de mostrar que, embora a elite eclesiás-tica (bispos, presbíteros, diáconos) tente regular as relações entre os adeptos de sistemas religiosos distintos, prevalece, nas termas, teatros, hipódromo e mercados um intenso convívio entre os

Busto de Julius Caesar

45História

habitantes da cidade, o que contraria a lógica excludente de atuação dos cris-tãos, que repelem qualquer outra expe-riência religiosa.

Os escravos cidadãosA escravidão no Império Romano

também é estudada no LEIR. Quem aborda esta vertente é Fábio Joly, um dos coordenadores do LEIR na UFOP.

Sua pesquisa abrange principalmente a história social de Roma. Segundo Joly, o seu interesse nos estudos recai nas re-lações entre manumissão e política na Roma antiga, sobretudo nos dois pri-meiros séculos da era cristã. Ele ainda explica que, em Roma, o escravo liber-tado por um cidadão podia se tornar também cidadão, fato que trazia con-seqüências políticas e econômicas sig-nificativas. Neste contexto, o docente compara, na sua pesquisa, o escravismo no Império Romano com o sistema es-cravista no Brasil do séc. XIX, em que se observa um padrão semelhante de inclusão política do liberto. A análise ainda evoca questões como relações de dependência, organização familiar e maneiras de auto-representação através das inscrições funerárias de escravos e

libertos achados em Roma.

Representações subjetivasA professora Juliana Marques,

coordenadora do LEIR na Unirio, aborda, por sua vez, a historiogra-fia, com ênfase nas questões estrita-mente teóricas do gênero literário sob uma perspectiva dos estudos históricos. Neste quadro, o traba-lho é focado nos conceitos de mapa mental e espaço cognitivo, isto é,

representações subjetivas do espaço no mundo antigo. O estudo é ba-seado primariamente

em Amiano Marcelino, mas, segundo a docente, a idéia é trabalhar o tema com outros historiadores romanos.

Publicações e outros estudos Outros aspectos do Império

Romano e dos personagens históricos deste período também são foco de es-tudo entre os pesquisadores do LEIR. Os resultados estão sendo configurados em artigos e outros trabalhos acadê-micos. Entre as produções feitas pelo LEIR, destaca-se a Revista Maré Nostrum, produzida pelo LEIR-USP e acessada em: fflch.usp.br/dh/leir/marenos-trum/home. Já o LEIR-UFOP está com o livro As formas do Império Romano, edi-tado pelos professores Fábio Faversani e Fábio Joly, prestes a ser publicado pela Editora da Universidade. Mais informa-ções a respeito das produções do LEIR podem ser acessadas através do site www.leir.ufop.br, onde é encontrado o conjunto da obra acadêmica brasileira sobre o Império Romano, publicado a partir de 2001, na área de bibliogra-fia. Os interessados em participar e/ou contribuir para o LEIR podem acessar o site do grupo através do formulário da área de contato ou enviar um e-mail para [email protected].

Arco de Hadrian Jerash, na Jordânia

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“O teatro é o primeiro soro que o homem inventou para se proteger da doença da angústia.” A frase, dita

no século passado pelo ator francês Jean-Louis Barrault, busca traduzir a essência da arte da represen-

tação cênica, que, desde as épocas mais remotas, teria a função de entreter e transportar o público para

realidades distintas do cotidiano. Assim, com a intenção de transmitir diferentes temas e formas de expres-

são, surgiram seus gêneros característicos. No entanto, um estilo vem se sobressaindo: a comédia. Com-

posta geralmente por cenas rotineiras, a especialidade encontrou, por um lado, espaço e importância como

Rir pra não chorar?

Vende mais porque é

comédia ou é comédia

porque vende mais?

47Cultura

Rir pra não chorar?

forma de manifestação crítica, mas, por outro, acabou se rendendo ao humor raso e de gosto duvidoso.

Em ambos os casos, porém, deparou-se com um forte público consumidor da indústria do entretenimento.

A crescente ascensão da comédia provoca um desequilíbrio em relação aos demais gêneros, como, por

exemplo, o drama, e sugere algumas perguntas: O espectador atual, no Brasil, só consegue ter prazer com

peças que fazem rir? Existe um círculo vicioso? As comédias geram grandes bilheterias e, em busca deste

lucro, as produções teatrais especializam-se nesta área? O público está + cando com preguiça de pensar?

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Os grupos teatrais estão presentes em 39,9% dos municípios brasileiros, movimentando juntamente com outras atividades da área cultural valores da or-dem de R$ 156 milhões ao ano, o que indica uma participação no setor de 7,9%. São também os que mais recebem incentivos por parte do poder público municipal na área cultural (80,5%). Já os festivais de teatro ocorrem em 25,8% das cidades. Os dados são do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de levantamentos realizados nos anos de 2003 e 2006. Os espetácu-los e principalmente as campanhas de popularização sempre se caracterizaram como espaços de reflexão e de abertura à diversidade, capazes de proporcionar encontros de formas de expressão dife-rentes. Porém, apesar de não existirem dados nem fontes oficiais, não é difícil observar a predominância da comédia em relação aos demais gêneros.

Seria uma ruptura com os valores dessa arte, caracterizada justamente pela pluralidade de formas de represen-tar e de experimentar? Se há recursos, por que os investimentos são concentra-dos em um só tipo de estilo? A comé-dia parte não somente da preferência pública, mas também de uma nova tendência de quem a faz? A bilheteria

Por Bruna Fontes e Kamilla Abreu

é mais atrativa? Estaríamos diante da concretização do pensamento do ícone do cinema italiano Alberto Sordi, em que “a vida é feita de três quartos de comédia e um de tragédia e, por isso, um cômico está em maior contato com a realidade”?

O cenário ontem e hojeA arte de representar surgiu em

Atenas, durante os cultos ao deus grego Dionísio, conhecido como o deus da fertilidade, do vinho e, mais tarde, do teatro. A tragédia e a comédia foram pri-mordialmente os dois gêneros que mais se sobressaíram. Em antigos festivais, a formação do júri se dava por categoria. A tragédia era composta pela nobreza, homens “superiores”, vistos como he-róis na sociedade. A comédia, por sua vez, era constituída por pessoas comuns da pólis - modelo das antigas cidades gregas -, escolhidas aleatoriamente na plateia. A comédia estimava a possibi-lidade democrática da sátira a todas as ideologias, principalmente a política, e obteve rápida popularização.

No Brasil, o padre Anchieta foi o precursor do teatro. Inspirado na Eu-ropa do séc. XVI, ele escrevia e encenava peças e atos medievais para a catequese dos índios. Assim, os jesuítas – padres da chamada Companhia de Jesus - per-ceberam na arte o método mais eficaz para a civilização dos nativos. Neste con-texto, os autos possuíam um fundo reli-gioso, didático e moral. Porém, o teatro nacional veio a se consolidar apenas em meados do séc. XIX, com o início do Romantismo, impulsionado por gran-des nomes, como Martins Pena, com suas comédias de costumes, o empresá-rio e ator João Caetano, o dramaturgo Artur Azevedo e os escritores Machado de Assis e José de Alencar.

De acordo com a Fundação Na-cional de Artes (Funarte), vinculada ao Ministério da Cultura, o Centro de Artes Cênicas aplicou, no ano passado,

em seus programas de circo, teatro e dança, valores da ordem de R$ 51,4 milhões. Segundo a coordenadora de teatro da Funarte, do Rio de Janeiro, Heloisa Vinadé, a produção teatral ca-rece de incentivo e sua atividade pode ser distribuída, com foco na execução, em vários segmentos, desde grandes espetáculos, financiados pela captação da Lei Federal de Incentivo à Cultura, conhecida como Lei Rouanet, até as pe-quenas peças, montadas com recursos das leis municipais e estaduais de incen-tivo à cultura, passando por aqueles que se utilizam dos recursos financeiros dos editais do Ministério da Cultura.

A supremacia da comédiaBasta uma rápida análise das peças

em cartaz ou mesmo da programação dos festivais de popularização do teatro para apurar que, no Brasil, a comédia supera os demais gêneros em número de opções, embora, muitas vezes, a quantidade não está diretamente rela-cionada à qualidade. O grupo Arma-zém, fundado em 1987 em Londrina (PR) e radicado no Rio de Janeiro desde 1998, enfrenta as dificuldades desse di-fícil mercado da arte. Tendo o drama sobressaindo em seu repertório, con-segue montar um espetáculo por ano. Segundo sua produtora executiva, Flá-via Menezes, “a comédia é o caminho mais fácil para o público chegar ao te-atro, até mesmo pela popularização na TV, dos programas de stand up comedy, o que possibilita a identificação do espec-tador com essa linha de dramaturgia”. Para ela, “o fato de uma comédia ruim apresentar bilheteria maior do que um bom drama é uma dura realidade”.

Atriz, diretora e dramaturga da Cia. Pessoal de Teatro de Cuiabá (MT), Juliana Capilé Rivera observa que a pre-ferência pelo humor acontece porque o público quer rir e esquecer os pro-blemas. Neste panorama, ela faz uma analogia em relação à TV. “As pessoas

“O fato de uma comédia ruim apresentar bilheteria maior do que um bom drama é uma dura realidade” (Flávia Menezes – Grupo

Armazém - RJ)

49Cultura

buscam no teatro o que encontram na TV, querem o que a mídia mostra, porém, com mais propriedade. A tele-visão, que é pautada por anunciantes e audiência, precisa censurar algumas cenas. O teatro não precisa disso, mas quer público; assim busca vender a mesma rosquinha saborosa, mas sem vitamina, que a TV vende”, diz.

Já a artista, pesquisadora, performer

e professora do Centro Teatro Univer-sitário da Escola de Educação Básica e Profissional (EBAP) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), De-nise Pedron, faz uma análise por outro ângulo, e observa que a comédia sem-pre foi popular. “Na Poética (conjunto de anotações de aulas sobre o tema da poesia e da arte entre os anos 335 a.C. e 323 a.C.), Aristóteles fala que a comé-dia trata dos homens pobres, da vida comum, em contraposição à tragédia, que trata dos nobres e dos deuses. Isso não quer dizer, no entanto, que seja um gênero inferior e que não se pode traba-lhar com esse modelo no campo cultu-ral”, pontua.

Ela cita movimentos, como o Ar-morial – ocorrido nos anos 1970, em Recife, com o objetivo de criar uma arte erudita a partir de elementos da

cultura popular do nordeste brasileiro -, e lembra toda a obra de Ariano Su-assuna. Para Denise, “a comédia pode ter qualidade, pois não existe ´cultura inferior´ e ´cultura superior´; essa di-ferença corresponde a um paradigma de pensamento preconceituoso”, avalia. A pesquisadora afirma ainda que, para apreciar a arte, o espectador precisa minimamente estar familiarizado com seus códigos de construção de sentido, mas não necessariamente entender o que o artista quer dizer ou mesmo de-cifrar a mensagem da obra. “Para uma apreciação ou fruição estética satisfató-ria, ele precisa conhecer um pouco da linguagem com a qual está entrando em contato. Existem vários modos de fazer teatro na contemporaneidade. A comé-dia faz rir, alivia o fígado, traz alegria e, talvez, por isso, faça sucesso”, conclui.

A massifi cação a preços populares Dramaturgo e diretor da Cia.

D.Maria do Fulô, de Itabirito (MG), e integrante da Cia. As Medeias, de Ouro Preto (MG), Carlos Renatto também lembra que a comédia sempre foi tra-tada como um gênero menor. “A tragé-dia representava o homem que servia de exemplo para os outros; já a comé-dia ridicularizava este homem”, ana-lisa. Segundo Renatto, o público tem

“O teatro busca vender a mesma

rosquinha saborosa, mas sem

vitamina, que a TV vende”

(Juliana Rivera – Cia. Pessoal

de Teatro – MT)

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capacidade de sentir prazer vendo ou-tros gêneros. No entanto, atualmente, há muito mais divulgação de comédia a preços populares, causando uma mas-sificação desse estilo. “Os subgêneros estão em alta, com grandes atores, mas peças fracas. Devido a essa formação do público, as comédias sobressaem finan-ceiramente em relação a outros gêneros, o que é mais comum nas pequenas ci-dades. Felizmente, nas capitais, ainda existem dramas que fazem sucesso”, diz.

Essa massificação notada pelo dramaturgo pode ser constatada nos festivais de teatro, com peças a preços populares. O maior do Brasil acontece, anualmente, nos meses de janeiro e fevereiro, em Belo Horizonte (MG), através da Campanha de Popularização do Teatro e Dança de Minas Gerais. A ideia surgiu em 1972, no Rio de Ja-neiro, e hoje a campanha é realizada também em São Paulo, Porto Alegre

“Os grupos teatrais estão facilitando muito o entendimento das peças para um público com preguiça de pensar” (Fátima Jorge – Grupo Ponto de Partida – MG)

e Pernambuco. Este ano, no evento mineiro, a comédia e suas vertentes mais uma vez foram o carro-chefe. No primeiro final de semana, de 13 espetá-culos, 12 eram do gênero. A campanha apresentou 61 peças de comédia e ape-nas dez de drama.

De acordo com a empreendedora cultural, filiada ao Sindicato dos Produ-tores de Artes Cênicas de Minas Gerais (Sinparc), Ana Nery, a programação se justifica porque a comédia é o gênero teatral mais popular no Brasil. Esse fe-nômeno acontece, segundo ela, devido ao estilo de vida e de costumes do brasi-leiro. “O cardápio de comédias na Cam-panha de Popularização é tão forte que o público se vê diante da encruzilhada: apostar no novo ou rever o que já deu certo?”, observa.

Peças ruins e público preguiçoso?

O professor do curso de Artes Cê-nicas da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Ricardo Gomes, con-corda que a preferência pela comédia está ligada ao temperamento do brasi-leiro e à própria personalidade cultural do País. “O público come o que é dado para ele”, diz. Para Gomes, a arte é uma necessidade fundamental e de grande valor na área educacional, já que pro-porciona maior sensibilidade ao ser hu-mano. No entanto, segundo o professor, “o teatro é uma arte obsoleta e vive em uma posição ambígua, devido ao fato de precisar da presença física em um mundo hoje considerado virtual.” Este fato teria permitido então, conforme

Gomes, “que o teatro ganhasse em pro-fundidade o que perdeu de amplitude.”

Fátima Jorge, produtora do grupo teatral Ponto de Partida, de Barbacena (MG), observa que o público, em sua maioria, está em busca do entreteni-mento, puro e simplesmente. Desta forma, a fim de atender esta demanda, as companhias teatrais acabam recor-rendo à comédia. Para ela, a maior difi-culdade para quem produz é a qualidade das peças com a qual se deparam. “Às vezes noto que os grupos teatrais estão facilitando muito o entendimento das peças para um público com preguiça de pensar. Parece que o ser humano está esquecendo de aprender esta coisa linda que é ouvir a palavra”, reflete. Para a produtora, o bom profissional é aquele capaz de extrair do público risos e lágrimas, o que deve envolver 5% de talento e 95% de suor. “Para o sucesso de uma boa peça, independente do gê-nero, é preciso ter um bom ator, uma boa história e, claro, um bom ouvinte”, conclui.

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O Festival de Inverno – Fórum das Artes, realizado em julho, nas cidades mineiras de Ouro Preto e Mariana, reuniu 315 atrações, entre música, artes visuais, expo-sições, gastronomia, ofi cinas e outros. O evento, que teve o tema Latinoamerica, atraiu cerca de 250 mil participantes, entre mora-dores, artistas e turistas.

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Lançamento

Cinema

Lançamento Literatura

Somos tão Jovens

Foto: Divulgação

No dia 11 de outubro, aniversário da morte do cantor Renato Russo, estreia o fi lme

Somos tão Jovens, que conta a história do líder da banda Legião Urbana. Dirigido

e produzido por Antônio Carlos da Fontoura, com roteiro de Marcos Bernstein, o

fi lme será protagonizado pelo ator Thiago Mendonça, com participação de Sandra

Corveloni, Marcos Breda, Laila Zaid, Bianca Comparato e Olivia Torres.

José Cláudio Castanheira é doutor em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e sub-coordenador

do curso de cinema da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Diretor, roteirista e sound designer para fi lmes, ele

indica o fi lme Meu Tio (Mon Oncle, de 1958, de Jacques Tati), um dos mais conhecidos do cineasta francês. A obra exerce

um fascínio sobre o espectador que talvez não tenha paralelo em outras cinematografi as. Para Tati, que trabalhou em várias

produções no período do cinema mudo, a palavra não consegue expressar com exatidão nossa experiência cotidiana.

Seus fi lmes fazem muito pouco uso da voz, preferindo falar através de gags cômicas e situações inusitadas. O personagem

principal, interpretado pelo próprio Tati, transita em um mundo que se modernizou rapidamente, mas preserva um olhar

curioso e ingênuo sobre as coisas. A fi gura de Tati é também inspiração para fi lmes recentes, como a animação “O Mágico”

(L’illusionniste, de 2010, de Silvain Chomet). 

Dica............................................................................cinema

JK e a ditadura (Editora Objetiva)Em edição revista e ampliada, Carlos Heitor Cony retoma a história recente do país que acompanhou de perto

como jornalista e homem de confi ança de Juscelino Kubitschek. Em 1964, JK tentou ao máximo evitar o golpe que depôs João Goulart, seu vice-presidente no período anterior. Diante do fato consumado, JK ainda acreditava que a eleição presidencial marcada para o ano seguinte, na qual seria candidato, ocorreria. No entanto, conforme o regime se fechava e eliminava o diálogo com a sociedade civil, inaugurando os “anos de chumbo”, ele se tornou uma das maiores vítimas da repressão. JK, que já havia sofrido infâmias por parte de Jânio Quadros, lutou contra a ditadura instalada. Cassado, exilado duas vezes, processado e preso, morreu em um acidente nunca inteiramente esclarecido em 1976, na Via Dutra. Cony mostra como JK tornou-se, à época, um dos maiores vultos da história brasileira.

53Painel por Mariana Petraglia

Vanilda Salignac de Sousa Mazzoni, doutora pela Universidade

Federal da Bahia (UFBA) e pós-doutora em Letras: Estudos

literários, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

sugere o livro As aventuras de Teresa Margarida da Silva e Orta,

em terras de Brasil e Portugal, de Conceição Flores. É a biografi a

de Teresa Orta, a primeira brasileira a ter um livro publicado em

Dica....................................................literatura

Portugal, no século XVIII. Sua importância está

não somente por ser uma mulher e literata em

um período de obscurantismo e cerceamento

feminino, mas por preencher mais uma lacuna

no enorme capítulo da história que ainda se

escreve sobre a mulher.

Lenda do Blues, B.B.King fará shows no Brasil:Rio de Janeiro: 29 de setembro (Vivo Rio) Curitiba: 02 de outubro (Teatro Guaira) São Paulo: 05 e 06 (Via Funchal) e 07 de outubro (Bourbon Street Music Club)

Entrevista: Breno Silveira (Cineasta)

Você tem relação antiga com o cinema, mas sua estreia

como diretor foi em Dois fi lhos de Francisco, em 2005. Como

é a experiência de dirigir um longa metragem?

Sou um bicho de set. Desde os 18 anos, fotografava em set. Ganhei

uma bolsa para estudar fotografi a para cinema na França. Trabalhei

com publicidade. Depois passei a fotografar fi lmes de amigos, como

Carla Camurati e Andrucha Waddington. Participava de tudo, até me

falarem que era hora de fazer meu próprio fi lme. Surgiu a oportunidade

de Dois Filhos de Francisco. Recusei, mas, ao ouvir a história contada

pelo próprio Sr. Francisco, encarei o desafi o.

O fi lme À Beira do Cami-

nho foi um sucesso na 16ª

edição do Cine PE, com seis

troféus. O que este fi lme tem

de especial?

O mais importante é o link

emocional. Nos meus fi lmes,

busco emocionar as pessoas. À

Beira do Caminho conta a história

de um homem que reaprende a

amar depois de já ter desistido. foto: Gabriela Barreto

Na fuga em um caminhão, que signifi ca a fuga da sua própria vida, o perso-

nagem não tem contato com mais ninguém, até que dá carona para um

menino que amolece o seu coração. O fi lme mostra a importância dos laços

familiares, de se reconciliar com o passado, das pessoas que você deixou

para trás, enfi m, fala sobre a importância do amor. Posso dizer que este é

o meu fi lme mais autoral, ele fala muito sobre o diretor. O prêmio Gilberto

Freyre é dado ao fi lme que melhor representa a cultura brasileira. E eu sou

um brasileiro apaixonado pela nossa cultura.

Dentre as comemorações do centenário de nascimento de Luiz

Gonzaga, está o lançamento do fi lme Gonzaga – de pai para fi lho

(previsto para 25 de outubro). O que o público pode esperar?

Mesmo sem querer fazer biografi as, quando recebi as fi tas cassete em

que o Gonzaguinha entrevistava o pai, não pude recusar o trabalho. Porque

o relacionamento dos dois era péssimo e, na entrevista, eles lavam a roupa

suja. O fi lho pergunta para o pai por que ele o abandonou e coisas do tipo.

E é a história de um dos artistas mais importantes da música brasileira. O

Gonzagão era uma pessoa apaixonada pelo País e andou muito por aí. Por

isso, o fi lme tem trechos em São Paulo, no Rio de Janeiro. Em Dois Filhos de

Francisco, foi a história dos fi lhos contada pelo pai. Em Gonzaga, é a história

do pai contada pelo fi lho.

Page 27: Revista Et alii

54 Tecnologia por João Gabriel Nani

Conexões #acesseBlogs sobre tecnologia, que podem ser acessados por desktops ou pelos mais variados dispositivos móveis,

como Smartphones e Tablets:

* Info – Da Editora Abril, não é em tese um blog, mas um conjunto de blogs. A linguagem adotada pelos blogueiros geralmente não é técnica, propor-

cionando fácil entendimento. O endereço é http://info.abril.com.br/blog/.

* Digital Drops – É um dos blogs mais conhecidos entre o público jovem que busca informações sobre aparatos eletrônicos e softwares. Também é

referencia nacional entre os blogs de gadgets, tendo recebido links de blogs internacionais, como Engadget, Gizmodo e Neatorama. O endereço é http://

digitaldrops.com.br/drops.

* GigaBlog – Notícias variadas sobre tecnologia, desde pizzarias que aceitam pedidos de entrega via Facebook até a criação de carros fl utuantes. Sua

atualização varia de acordo com o fl uxo de notícias. O endereço é uoltecnologia.blogosfera.uol.com.br.

* Discovery – Você quis dizer Google? Não, Discovery mesmo. O blog criado há alguns anos oferece suporte para os produtos da Google. Dicas,

ferramentas e notícias também são encontradas. O endereço é http://googlediscovery.com.

* Meio Bit – Muitas vezes, em um tom particular, o Meio Bit é um dos mais conhecidos blogs sobre tecnologia, com informações sobre hardwares e

softwares para desktops ou dispositivos móveis, além de inovações eletrônicas. Algumas crônicas sobre o mundo tecnológico também são disponibili-

zadas. O endereço é http://meiobit.com.

* How Stuff Works (como tudo funciona) – O HSW responde a qualquer pergunta que remeta ao funcionamento de algo, não só digital ou mecânico,

mas qualquer coisa que funcione, ou não. Desde uma lamparina ou a um complexo acelerador de partículas. O endereço é http://www.hsw.uol.com.br.

Conexões #omundonobolso

Cada vez mais os dispositivos de interação solidifi cam-se como peças essenciais na nova estrutura global e

se tornam objetos de bolso. Tablets e Smartphones crescem mais que a população chinesa e invadem não só

os mercados, mas também a vida dos indivíduos. O que essas tecnologias têm?

* Tablet - oferece agenda pessoal, leitor de textos e pacotes Offi ce, softwares para edição de vídeos e fotos, além do acesso

à internet, com possibilidade de conexão independente via Wi-fi .

* Smartphone - Veio para tornar o celular uma tecnologia obsoleta. Oferecendo praticamente tudo que o tablet oferece, o

aparelho também tem todas as funções de um celular, seja a de despertador ou a de telefone portátil. Com softwares simples

e práticos, não depende de redes wi-fi para conectar-se à internet, já que a maioria das operadoras oferece planos 3G com

acesso ilimitado à rede. O aparelho mais parece um computador de bolso, sendo que os mais modernos já possuem

processadores dual core (dois núcleos, celeridade para processar informações).

• Muitos sites oferecem conteúdo específi co para os Smartphones, desde a diagramação do próprio site até aplicativos

e Gadjets. Para verifi car se o site possui a visualização adaptada ao Smartphone, basta substituir o “www” do endereço

do site por “m”e todo conteúdo buscado estará à sua disposição.

• Os preços variam entre R$ 150, aparelhos de marcas desconhecidas ou chinesas, e R$ 3 mil, com os

requintados IPhones, da Apple. Geralmente, os aparelhos vêm com aplicativos básicos e facilidade

para downloads e softwares instalados, sejam eles próprios, como o Blackbarry Device, ou “livres”,

como o Android.

55Entrevista

Por Ady Carnevalli e Mariana Petraglia

José Mariano

BeltrameSecretário de Estado de Segurança

Pública do Rio de Janeiro

Quando o caçula nasceu, há dois anos,

ele prometeu que não ia repetir o erro de

criá-lo no exterior, cometido com seus dois

primeiros filhos (de outro casamento). A essa

altura, o gaúcho de fala mansa e conversa

fácil, já ocupava o cargo até então temido

por muitos homens públicos. Há três anos

e meio à frente da Secretaria de Segurança

Pública do Rio de Janeiro, José Mariano

Beltrame colhe os frutos da coragem para

enfrentar os traficantes “donos” dos morros

cariocas, os policiais criminosos e as orga-

nizações de milícias. Formado em Direito,

Administração de Empresas e Administra-

ção Pública, e especialista em Inteligência

Estratégica, Beltrame construiu carreira na

Polícia Federal, chegando a integrar o qua-

dro da Interpol. Responsável pela implanta-

ção das Unidades de Polícia Pacificadora

(UPPs), no Rio de Janeiro, é tratado como

herói pelos moradores das áreas “libertadas”

e respeitado por toda a população. Embora

confirme receber ameaças de morte, não es-

conde o orgulho dos resultados conquistados

por sua equipe, ao lado de sua mulher, a

secretária de segurança adjunta Rita Paes.

“Ela é oriunda de área carente, professora

do Estado e conhecedora da realidade do

Rio. A gente conversa muito, ela é muito

envolvida nisso comigo”, diz. Por trás do

secretário, um homem de hábitos comuns e

recordações inesquecíveis, como de uma via-

gem à Turquia. Amante de biografias, está

lendo a de Churchill. Mas não se descuida

do corpo. Na agenda lotada, ainda encon-

tra tempo para a ginástica na academia,

“para fortalecer a carcaça”. Não dispensa

um churrasco, como todo bom gaúcho, mas

só o feito por gaúcho. A exigência, porém,

não disfarça o jeito simples. “Estou inserido

no costume carioca de comer petisco e salga-

dinho em boteco. Gosto de uma cervejinha

e de passar na Feira dos Paraíbas, em São

Cristóvão, na sexta ou sábado. Não tenho

frescura não. Gosto de feijão com arroz e al-

guma coisa, assim como de comida mineira.

Pode me convidar que não vou fazer feio”,

brinca. Perguntado se agora é carioca, a res-

posta é imediata: “Não tenho dúvida disso.

Foi uma cidade que me deu oportunidade de

tentar fazer o que muito carioca não tinha

conseguido”. O secretário José Mariano Bel-

trame é o convidado especial da Ett Alii.

Ele fala sobre UPPs, milícias e segurança

pública, com a visão de que a polícia deve

interagir com as pessoas, prestar serviços e

não apenas acionar armas.

fotos: Assessoria de Comunicação - Secretaria de Esta-

do de Segurança Pública do Rio de Janeiro

Page 28: Revista Et alii

56 Convidado Especial

Quando o senhor aceitou o cargo de secretário de Segurança, qual era sua principal meta? Combate ao trá-fico, faxina de maus policiais, estrutu-ração da polícia?

Nunca pensei em ser secretário ou em participar de governo nenhum. Não mexi uma palha para chegar aonde cheguei, mas a opor-tunidade apareceu. Vi que precisávamos mostrar às pessoas que é possível, que a gente é séria e que as nossas propos-tas são sérias. O carioca já está cheio de outras coisas que não propostas sérias, compatíveis e objetivas. Precisávamos passar seriedade para a população e a ideia de que tínhamos uma proposta possível de ser feita.

A idéia das UPPs nasceu de uma conversa durante um almoço com sua equipe. O senhor lembra detalhes desse dia? Como as sugestões foram ganhando corpo e se encaixando? Como sua equipe passou a acreditar que poderia dar certo?

O almoço... Estou convencido de que grandes decisões você toma em reu-niões informais, pouco convencionais, onde as pessoas estão mais à vontade e prontas para serem desafiadas. Porque o clima de tranquilidade faz você dizer, pensar e ousar mais do que em uma reunião em que é cobrado, aonde tem que dar respostas racionais rápidas, nas quais você fica muito na defensiva. Hoje tenho certeza de que esse brainstorming é

um grande início de projetos. Naquele almoço foi assim. Começamos a dis-cutir que, como o Rio é uma cidade partida, pois tem áreas conflagradas, precisávamos entrar nessas áreas. E aí um dizia: Como vai entrar? Mas não tem gente, não tem carro, equipamento

blindado... vai só a polícia e não vai o resto? A partir dessas perguntas, fomos procurando respostas. Se passássemos a fazer concurso mensal para as polícias, a gente pode-

ria fazer isso. Ah, mas se pedíssemos equipamentos para as Forças Armadas, consegue fazer aquilo. E assim nasceu a UPP. É um projeto made in Rio, carioca da gema. Estava com os subsecretários e a Assessoria de Comunicação, que sempre interage conosco e é importante porque nos traz o que as pessoas estão falando, o que a própria imprensa está pensando. Então, nessa discussão, cada

um saiu com uma missão. Vê quantos homens precisa; como faz para formar; como entrar na favela; qual a potencia-lidade bélica que tem aquilo ali; como é o reflexo da comunidade dentro da mancha criminal da cidade. Passamos a nos desafiar e a procurar respostas. E aí nasceu o projeto que levamos quase dois anos para fazer.

O senhor acumula cursos e car-gos voltados para a inteligência estra-tégica na área de segurança pública.

O senhor não é político de carreira e não tem um passado como policial de repressão. Este perfil pode ajudar a transformar o próprio quadro policial do Rio, mesclando repressão aos crimi-nosos com integração com a sociedade civil?

Esta é uma das propostas que en-cerra o conceito de UPP. No Rio e em lugares do Brasil que têm violência, de ações mais fortes do crime, com áreas conflagradas, em função da leniência do estado e da tolerância da sociedade, os policiais foram jogados à guerra. O policial hoje aqui sabe muito bem subir morro, dar tiro, trocar tiro, matar, ferir, morrer, ver policiais mortos. A Polícia daqui sabe mais fazer guerra do que prestar serviço. Então, o paradigma da UPP faz o seguinte: ela desarma esses lu-gares e, por isso, faz com que o policial trabalhe nesses lugares não com fuzil, não totalmente armado. Claro que o policial vai ter sua arma de mão, como

em todo lugar do mundo, mas não mais com aquela carga, com aquela energia,

com aquela desconfiança e com aquele estresse de quem está num campo de guerra. Então, se a Polícia tradicional entra primeiro e debela armas, equipa-mentos, prende pessoas, o policial que chega numa segunda fase já entra em outro clima, numa outra ambiência, aonde em vez de ser guerreiro, vai ser um operador de Segurança Pública, vai desenvolver a arte de conversar com a comunidade. Isso inverte o paradigma de que a Polícia é violenta, de que é muito dada às armas e à pouca conversa.

“A Polícia daqui sabe mais fazer guerra do que prestar serviço.”

“Mudar a segurança pública, o serviço público, é como mudar o pneu com o carro andando. Você não pode parar a Polícia para fazer as mudanças.”

57Entrevista

As ocupações poderiam ter sido mal recebidas. Como sua equipe se preparou para isso?

Eu nunca achei que seria mal re-cebido. Temos que entender que os moradores dessas áreas vivem sob o governo de um tirano, sob a repres-são, sob a ponta de um fuzil. Uma mãe que tem um filho que morre e não pode retomar o corpo. Muitos corpos eram quei-mados no famoso ´microondas´. As pessoas passaram décadas sofrendo, presenciando tiro, granada, vendo um comando paralelo ali dentro. Duvido que elas não gostem e que não quei-ram a ordem. A aceitação da população existe, mas é normal que fique descon-fiada e pergunte com razão: Essa polícia que a vida inteira veio aqui trocar tiros com marginais, entrava nas nossas ca-sas, muitas vezes em porta errada, agora vem com esse ar totalmente diferente?. É claro que a população desconfia, mas, em contrapartida, não vê mais a guerra. Os seus filhos não estão mais expostos à linha de fogo, à bala traçante e a ôni-bus incendiado. Há, sim, resistência no trato entre o policial e a comunidade num primeiro momento. Mas isso com o tempo se acomoda. Vocês podem ver as UPPs que fizemos primeiro. Elas são muito melhor recebidas do que as mais recentes. Porque é um processo, onde o tempo vai absorver isso, assim como as pessoas que vendiam droga. Quem ven-dia droga ali há 20 ou 30 anos não vai nos entregar essa área de uma hora para a outra. Eles vão, volta e meia, tentar fazer incursões, algumas tentativas para

testar a polícia, para mostrar que não estão satisfeitos. Estamos contrariando interesses de quem não estava acostu-mado a ser contrariado. Mas a história de três anos das UPPs nos mostra que a presença do policial com a atitude e

a postura de interagir com a comuni-dade vai mudar essa concepção. Isso é processo, não é produto de prateleira. Não vai ficar pronto segunda-feira, mas os resultados são animadores.

A UPP apresenta-se como uma prática diferente de tudo o que já havia sido tentado. É uma espécie de polícia social. Existe um treinamento especí-fico para os policiais das UPPs? Quais são as principais instruções e quais os diferenciais em relação ao preparo convencional?

O projeto prevê essa preparação, mas mudar a Segurança Pública, o ser-viço público, é como mudar o pneu com o carro andando. Você não pode parar a Polícia para fazer as mudanças. Então começamos a ocupar as áreas e, no início, não tínhamos policiais recém-formados dentro do conceito que se es-pera de UPP. Hoje já se tem uma grade curricular, carga horária, conteúdo pro-gramático e professores voltados para essa prática. Como eu disse, é um pro-cesso. Nas primeiras UPPs, você não viu isso, mas graças a Deus se venceu e elas estão sedimentadas. Hoje os policiais

entram mais bem preparados. Isso vai cada vez mais se ajustar e funcionar me-lhor. Já temos policiais voltados para o cliente, que é a população. Temos aulas de sociologia, antropologia, direitos hu-manos, toda uma inclinação pedagógica

voltada para prestar serviço.

O filme Tropa de Elite critica os jovens da classe mé-dia, tratados, com ironia, como “es-

tudantes com consciência social”, em-bora totalmente alienados da guerra do tráfico. Para o senhor, como as uni-versidades contribuem ou poderiam contribuir com os setores de inteligên-cia da polícia?

Não sei, sinceramente. Não sei como a universidade vai fazer com essa questão da inteligência, da vigilância. A universidade tem um papel muito bem definido, que é o de despertar nas pes-soas a consciência crítica. Ela ajuda a segurança pública e a polícia através de ensinamentos, de aulas com professores tentando colaborar com as instituições de segurança pública no sentido de pre-parar seus efetivos, buscando formar ali um nascedouro de ideias.

A precariedade dos cursos de for-mação de policiais é tida como um sério problema na preparação dos efe-tivos. Para o senhor, como estes cursos deveriam ser?

Precisamos mostrar a função de prestação de serviços da Polícia. O policial precisa ser um operador de segurança pública. Eu digo, na condi-ção de secretário de Segurança, e sem

“Há muito a se aprender em gestão de segurança. Muitas vezes, com poda de árvores, iluminação pública ou deslocamento de um ponto de ônibus você resolve questões de segurança sem precisar da Polícia.”

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generalizar todos os estados, que há muito a se aprender em gestão de segu-rança. Muitas vezes, por exemplo, com poda de árvores, iluminação pública ou um deslocamento de um ponto de ôni-bus que aglomera muitas pessoas, você resolve algumas questões de segurança sem precisar da Polícia. É preciso tra-zer para cima das mesas dos delegados, comandantes e até de secretários (por que não?) os manuais de gestão pública. Deixar um pouco os códigos de lado porque os códigos são para os policiais que estão nas ruas. Gostaria que a pre-paração tivesse um perí-odo maior de aulas. O policial precisa, pelo me-nos no Rio de Janeiro, permanecer mais tempo dentro da escola. Aqui a gente tenta dar uma visão na prestação de serviço, saindo um pouco daquele clima de guerra, daquela visão de que o policial tem que se preparar com armas. Ele tem que fazer isso também, mas tem que estar mais preparado para o século 21, onde se tem rede social, Internet. Precisa interagir com as pessoas. Esse é um foco que as polícias devem ter: pres-tação de serviço. Somos servidores pú-blicos e não apenas guerreiros. Temos que administrar isso como empresa. Precisamos ter bons administradores de Recursos Humanos, bons gestores desse processo, uma preparação mais leve e mais racional para fazer a estrutura das Polícias andar.

Com a demonstração de força e inteligência do Estado, através das ocupações, ficou claro ser possível combater os traficantes. Veio à tona, porém, um inimigo que parece ser

mais nocivo: as milícias. Como comba-ter este novo inimigo?

A milícia existe no Rio há 20 anos. E durante pelo menos dez ela ficou sem um combate efetivo. Em janeiro de 2007, tinha sete ou oito presos. Hoje, são mais de 600 milicianos presos, in-cluindo oito vereadores e um deputado estadual. Mas durante dez anos o que aconteceu? A milícia não foi combatida e adquiriu uma gordura grande. Em segundo lugar, não há uma tipificação nos códigos brasileiros do que é milí-cia. Não é como você ser preso com um

produto roubado. Pegou em flagrante, prendeu, pronto. A milícia é um crime que precisa ser composto. É um quebra-cabeça a ser montado. Tem que ter um servidor público, tem que ter um servi-dor público de folga, tem que ter um servidor público de folga armado. E es-tes três ingredientes têm que estar junto com outros, como venda de segurança, de gás, de água e de serviços que são pú-blicos, mas o privado está fazendo. E a polícia? O que aconteceu? Como a po-licia não combateu, não atuou, ela não criou expertise nenhuma nisso. Temos aqui a DRACO (Delegacia de Repres-são às Ações Criminosas Organizadas e Inquéritos Especiais), onde se faz fun-damentalmente estas ações. Mas temos muito que avançar. Agora mesmo es-tou lutando para que se criminalize a milícia, para que se tenha um tipo pe-nal de milícia, para que isso vá para a lei, porque lei é ferramenta que agiliza

o processo, para recuperar o tempo perdido.

O Estado começou a chegar às áreas ocupadas, levando coleta de lixo, obras de infraestrutura e outros servi-ços. Especificamente em relação aos jo-vens, o que o senhor gostaria que fosse feito?

Estado, Município e União estão fazendo muita coisa, mas acho que a so-ciedade precisa fazer mais. A sociedade bate palma, mas não entra em campo. As pessoas acham bonito, mas não sobem

o morro. As pessoas precisam conhecer o morro, têm que subir lá e ver o que está acon-tecendo, saber o que aquela sociedade quer. Têm que levar o filho lá em cima para ver

como é que é. Porque frequentando é que poderão ter boas ideias. É preciso criar perspectivas para a juventude. Não cobrem isso do secretário de Segurança porque este tem que deixar nesses luga-res um ambiente propício para que os outros serviços cheguem. A segurança você não vai fazer com um policial agar-rado no fuzil numa escadaria de favela. Ele não vai garantir a segurança se tem lá um filho com fome, uma senhora do-ente, todo o lixo sem recolher, se não tem creche nem cultura. Isso tem que chegar. E é isso que vai trazer perspec-tiva para essa juventude, que acha que o mundo acaba ali onde termina o muro da favela. No Brasil, no Rio de Janeiro, nas universidades, enfim, há milhões de pessoas que são especialistas. E esta, sim, é uma necessidade.

Muitos especialistas propõem a descriminalização de drogas, como a

“A milícia não foi combatida e adquiriu uma gordura grande. Como a policia não combateu, não atuou, ela não criou expertise nenhuma nisso.”

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maconha. A descriminalização acaba com o problema da violência gerada pelo tráfico?

Uma coisa interessante, capitane-ada pelo ex-presidente Fernando Hen-rique Cardoso, é o debate sobre esse tema. Pena que ele não fez isso quando era presidente. Isso tem que ser ampla-mente discutido. Precisamos desmis-tificar a questão. Não vai ser com um “canetaço” ou com uma coisa votada rapidamente. Não é só descriminalizar ou criminalizar. É preciso ter a questão da recuperação do drogado. Se o Es-tado libera, ele tem a obrigação de dar condições a essa pessoa de se tratar do vício. Oferecer os recursos para quem quiser se recuperar. Hoje como ela faz? Vai no SUS? É preciso toda uma discus-são de saúde pública. Porque se o cara é viciado, é importante saber que o cida-dão tem direito a querer se recuperar. Hoje só consegue isso quem tem muito dinheiro. Então, não podemos respon-der simplesmente: “Ah, sou contra ou a favor”.

O sistema penitenciário, como é hoje no Brasil, recupera o cidadão ou é uma escola para criminosos? Se lhe fosse dada a tarefa de reestruturá-lo, o que o senhor proporia?

A segurança pública deve ser vista como um sistema for-mado por polícias, Ministério Público, Tribunal de Justiça e Sistema Penitenciário. Se você prender mal, se denunciar mal, vai julgar mal. Se uma casa de custódia não recuperar o preso, o cara volta para a parte de baixo da pirâmide e a polícia acaba trabalhando duas, três vez mais. Como fazer isso? Não sei. Há estudos,

especialistas, a Secretaria de Assistência Social, programas de inserção. É funda-mental que essa pergunta seja respon-dida. O Sistema Penitenciário de hoje recupera? Se sim, ótimo, porque terí-amos uma desaceleração de toda essa cadeia. Se isso não acontece, a pessoa volta lá pra baixo. A gente fala muito: tem que aumentar o efetivo policial. Mas se recuperássemos o preso, quem sabe a criminalidade diminuiria. Porém não vamos generalizar. Deve haver lu-gares melhores, embora temos muito que avançar. Porque aí, se o sistema me-lhora, o sistema descomprime.

Em que pese o sucesso das UPPs, denúncias de práticas de abuso de po-liciais contra PPPs (pretos, pobres e prostitutas) ainda freqüentam os noti-ciários. A lei para policiais criminosos é muito branda? O senhor mudaria a lei se pudesse?

Sem dúvida, historicamente neste País, a assertiva existe. Mas quero fazer um reparo: normalmente, nas ações po-liciais, você encontra esse perfil como praticante de crimes, até porque a ex-clusão social fez com que mais pretos e pobres se tornassem criminosos. Se bem que tem muita gente boa, estu-

dada e rica que não para de roubar e de cometer crime... As penas para os ser-vidores públicos, na minha opinião, fa-lando como servidor público, poderiam ser modificadas. E mais, o Processo

Administrativo Disciplinar (PAD), que é único para o Brasil inteiro, tinha que ser sumário, por dois motivos: se o po-licial envolvido não tem culpa, ele quer logo se livrar do problema. E se for cul-pado, a sociedade quer que ele pague logo pelo que fez. O processo hoje tem várias medidas protelatórias. Aquele que comete o crime e é um mau servi-dor fica alguns anos ganhando salário. E quando sai a condenação, já se per-deu o caráter exemplar da punição.

O senhor acredita em um modelo universal de segurança pública para o país?

Não. Duas coisas: o Brasil é imenso, são 27 estados, 16 mil quilôme-tros de fronteira seca, 9 mil quilômetros de fronteira marítima, uns 5 mil quilô-metros de um rio que corta de Leste a Oeste, uma floresta imensa, cerrado, caatinga, serra. Podemos ter uma espi-nha dorsal pequena, ter quatro, cinco, seis diretrizes. Mas você não pode vir com fórmulas aplicadas no Rio Grande do Sul, que tem toda uma questão de fronteira com Uruguai e Argentina. Aí você pula para a Floresta Amazônica, onde as pessoas transitam de barco. São culturas, etnias, peculiaridades diferen-

tes. Cada Estado pode adaptar práticas. Mas a realidade de cada lugar tem que ser respeitada.

“A sociedade bate palma, mas não entra em campo. As pessoas acham bonito, mas não sobem o morro. As pessoas precisam conhecer o morro, têm que subir lá e ver o que está acontecendo, saber o que aquela sociedade quer.”

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A maioria dos crimes contra agen-tes que defendem a segurança pública e a Justiça conta com cumplicidade dentro da própria estrutura do Estado. Como é viver com ausência de rotina (é o que se imagina de um secretário de segurança do Rio) e com o perigo de ser executado?

A corrupção não é só na Polícia. Quando se fala em corrupção, todo mundo pensa na Polí-cia, mas ela está nas instituições. Cor-rupção não é os R$ 30 que o policial

pega na esquina. Você tem no Rio a contravenção do Jogo do Bicho, a milí-cia, o tráfico de drogas, muitas vezes, ar-raigados nas instituições. Se você quer

se sentar aqui nessa cadeira e fazer um trabalho sério e forte para combater esses estigmas que são representativos na Segurança Pú-blica do Rio, você tem que conviver com a questão da

ameaça de morte, botar na conta e viver com naturalidade. Porque, se você vem cá e põe a cabeça debaixo da mesa e não

mexe com milícia, Jogo do Bicho, Corregedoria, retirada de território etc., então você não assumiu o desafio. As ameaças exis-tem, mas se a gente veio para cá é para lutar contra essa situação e não para ficar aqui trocando seis por meia dúzia. A gente vê o resultado do traba-lho. Esta é a alavanca que toca a gente para frente.

Como o senhor vê, a longo prazo, os resul-tados das ações de sua equipe? O senhor teme que o trabalho seja com-prometido com o decor-rer do tempo, seja por gestores incompetentes ou pela falta de vontade política?

Esse risco existe. Não dá para dizer que

“Se o Estado libera (o consumo de droga), ele tem a obrigação de dar condições a essa pessoa de se tratar do vício. (...) Hoje como ela faz? Vai no SUS?”

“Se um político vier no meu lugar, ele não vai mexer nisso aí, sabe por quê? Porque ele vai estar perdendo voto. Se um técnico vem pra cá, ele não vai mexer porque ele tem estatística, tem dados para trabalhar e vai ver o que está funcionando.”

está garantido. Esse risco não é só aqui, mas em qualquer lugar. Mas o grande agente transformador de tudo e garan-tidor das medidas é a sociedade. O pro-jeto UPP, por exemplo, já passou por cima do secretário, não pertence mais à Secretaria, e nem eu quero. Ele já está lá na mão das pessoas. São elas que têm de se manifestar e cobrar a sua perma-nência. Temos um decreto que garante as UPPs até 2016, mas o que vai fixar isso é a manifestação popular. Se um político vier no meu lugar, ele não vai mexer nisso aí, sabe por quê? Porque ele vai estar perdendo voto, e voto é o que ele tem de mais importante na vida. Se um técnico vem pra cá, ele não vai me-xer porque ele tem estatística, tem da-dos para trabalhar e vai ver o que está funcionando. Pode acabar? Pode, como

tudo na vida. Mas no momento em que a sociedade pegar isso para si e tiver a rédea, as coisas ficam mais difíceis de serem alteradas.

A arte de Casamenor

Casamenor, natural de Contagem-MG, vem há seis anos pesquisando a adaptação das técnicas convencionais da gravura em metal à gravação sobre placas de circuito impresso, provenientes do lixo eletônico.

A gravura aqui reproduzida trata-se de uma interpretação da “Alegoria da divindade”, presente no livro “Iconologia”, do italiano Cesare Ripa.

Título:Ó inclemente divindade, sobre os cadáveres insepultos das outras, obsoletas, nós te inventamos!

contato: [email protected]

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