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Revista Jurídica UniSEB Ano III - Nº 3 - Outubro 2013 ISSN 2317-2681

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Revista Jurídica

UniSEB Ano III - Nº 3 - Outubro 2013

ISSN 2317-2681

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CONSELHO EDITORIAL

O Conselho Editorial da Revista Jurídica UniSEB é composto por docentes convidados do Centro Universitário UniSEB e outras instituições de ensino superior, bem como por profissionais da área jurídica.

André Luiz Carrenho GeiaCésar Augusto Ribeiro Nunes

Dirceu José Vieira ChrysóstomoElizabete David Novaes

Fernando H. Costa Roxo da FonsecaGilberto Andrade de Abreu

Giovanni Comodaro FerreiraKarina Prado Franchini Bizerra

Luciana Lopes CanavezPaulo Henrique Miotto Donadeli

Reginaldo ArthusRomualdo Gama

Sérgio Ricardo VieiraSérgio Roxo da Fonseca

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EXPEDIENTE

A Revista Jurídica UniSEB é uma publicação anual do curso de Direito do Centro Universitário UNISEB – União dos Cursos Superiores Seb Ltda.

CHAIM ZAHERM. Reitor – UniSEB

REGINALDO ARTHUSVice-Reitor – UniSEB

KARINA PRADO FRANCHINI BIZERRAPró-Reitora - UniSEB

ROMUALDO GAMACoordenador de Operações Acadêmicas - UniSEB

PAULO HENRIQUE MIOTTO DONADELICoordenadora do Curso de Direito - UniSEB

CÉSAR AUGUSTO RIBEIRO NUNESCoordenador da Revista Jurídica – UniSEB

Editor ResponsávelProf. Reginaldo Arthus

Rua Abrahão Issa Halack, nº 980Bairro Ribeirânia, Ribeirão Preto-SP

CEP 14096-160

* Opiniões expressas pelos autores em seus trabalhos, artigos e entrevistas não refletem, necessariamente, a opinião do Centro Universitário UniSEB, da União dos Cursos Superiores Seb Ltda, de seus mantenedores,

diretores, coordenadores, docentes, discentes e membros do Conselho Editorial.Por terem ampla liberdade de opinião e de crítica, cabe aos colaboradores da Revista Jurídica UniSEB a

responsabilidade pelas ideias e pelos conceitos emitidos em seus trabalhos.** Não serão devidos direitos autorais ou qualquer remuneração pela publicação dos trabalhos na Revista

Jurídica UniSEB. O autor receberá gratuitamente um exemplar da Revista (versão impressa) em cujo número seu trabalho tenha sido publicado.

ACEITAMOS PERMUTA – EXCHANGE DESIREDINTERCÂMBIO DESEÓ – ÉCHANGE DESIRÉ

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R281 Revista Jurídica UniSEB / Centro Universitário UNISEB. Ano 1. n.1 (nov. 2011) -.- Ribeirão Preto, SP : UNICOC, 2011. Ribeirão Preto, 2011.

Ano 3. n. 3 (out. 2013)AnualISSN: 2317-2681 (versão impressa)

1. Ciências Jurídicas. 2. Direito Nacional. 3. Direito Internacional. 4. Doutrina. 5. Jurisprudência. I. Centro Universitário UniSEB. II. Revista Jurídica.

CDD 340

Ficha Catalográfica

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SUMÁRIOCONCEPÇÕES HERMENÊUTICAS A RESPEITO DO PROPÓSITO NEGOCIAL COMO ELEMENTO DA ELISÃO TRIBUTÁRIA NO DIREITO BRASILEIRO .......13Mario Augusto Carboni

JORNADA 12h POR 36h: CRÍTICA AO ARGUMENTO DA NECESSIDADE ECONÔMICA COM JUSTA REMUNERAÇÃO ........................................................31Fábio Luiz Ferraz Ming

LEI Nº 11.340/06: CONCEPÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DE GÊNERO E DE DIREITO ...........................................................................................................................41Taylisi de Souza Corrêa Leite e Euller Xavier Cordeiro

CLÁUSULAS ABUSIVAS NOS CONTRATOS DE ADESÃO REGIDOS PELO CÓDIGO CIVIL SOB A PERSPECTIVA DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA ............................................................................................................................................53Daniel Oliveira da Silva

CLÁUSULAS ABUSIVAS NO DIREITO DO CONSUMIDOR NO BRASIL E NA ARGENTINA ...................................................................................................................65Ewerton Meirelis Gonçalves

A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA PÚBLICA DE ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA ..........................................................................................................77 Veridiana Tonzar Ristori Ozaki, João Bosco Penna e Carolina Paulino Penna

A NOVA MORFOLOGIA DO TRABALHO ..............................................................93 Ricardo Antunes

A CONCEPÇÃO HUMANISTA DO DIREITO AGRÁRIO E A PRESERVAÇÃO DO MEIO AMBIENTE .................................................................................................103 Taisa Cintra Dosso

DIREITOS HUMANOS E SUAS PERSPECTIVAS AMBIENTAIS: DIMENSÕES, ASPECTOS HISTÓRICOS E NATUREZA DIFUSA ...............................................115 Rafael Costa Freiria

OS ESTIGMAS DA PENA E A REINCIDÊNCIA CRIMINAL: A REABILITAÇÃO COMO INSTRUMENTO DE RESSOCIALIZAÇÃO ...............................................127 Paulo Henrique Miotto Donadeli

A INFLUÊNCIA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS NAS TRANSFORMAÇÕES JURÍDICAS BRASILEIRAS .........................................................................................137 Renata Pujol Tardeli e Elizabete David Novaes

CRITÉRIOS DE AFERIÇÃO DE NACIONALIDADE E CONFLITOS DECORRENTES COMO ORIGENS DA APATRIDIA ...........................................149 Nicole Cardoso Paganini

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REFLEXÕES SOBRE ACESSO À JUSTIÇA NO BRASIL E CONSTRUÇÃO DA PACIFICAÇÃO SOCIAL ............................................................................................157 César Augusto Ribeiro Nunes e Elizabete David Novaes

O DECRETO Nº 7.962/2013 E A BANALIZAÇÃO DO DIREITO DE ARREPENDIMENTO NAS RELAÇÕES DE COMÉRCIO ELETRÔNICO ............167 Leopoldo Rocha Soares

POLÍTICA EDITORIAL DA REVISTA JURÍDICA UniSEB ....................................181

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9Revista Jurídica Centro Universitário UniSEB

APRESENTAÇÃO

Neste ano de 2013 a Revista Jurídica da Faculdade de Direito do Centro Universitário UniSEB se apresenta a comunidade acadêmica em sua 3ª Edição, congregando novamente textos de elevado nível científico e de destacado valor interdisciplinar. Em consonância com as diretrizes editoriais reformuladas há dois anos, o corpo de pareceristas e de editores desta mais nova edição pôde reunir uma significativa coletânea de trabalhos acadêmicos, capitaneados ao longo de quase todo o ano de 2013, mantendo, assim, o já característico rigor avaliativo da Revista, que, por sua vez, tem garantido o reconhecido nível de excelência das produções recentes. Aliado ao criterioso trabalho dos pareceristas continua sendo fundamental o conjunto de diretrizes editoriais do Periódico, o qual prevê total imparcialidade do revisor em sua atividade de leitura e avaliação dos trabalhos, tendo em vista a adoção do processo “Blind Peer Review” (revisão paritária inominada).

Com efeito, o crescimento qualitativo da Revista Jurídica UniSEB compatibiliza-se, sem dúvidas, com o vigoroso desenvolvimento do Curso de Direito do Centro Universitário UniSEB, também em ascensão nos últimos anos. Ainda que possamos eleger outras formas de demonstrar a qualidade do ensino em nossa Instituição, são sempre significativos os índices de aprovação de alunos no Exame Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil - OAB. Estes dados são referenciais para dimensionarmos o bom desempenho de nossos alunos no âmbito regional e nacional, principalmente diante das exigentes demandas colocadas pelo mercado de trabalho. Segundo o Conselho Federal da OAB, em publicação divulgada recentemente, considerando-se os resultados do XI Exame de Ordem Unificado, realizado em agosto de 2013, o índice de aprovação dos alunos formados na Faculdade de Direito do Centro Universitário UniSEB foi de 24,24%, mais do que o dobro do percentual obtido pela segunda IES Privada da cidade de Ribeirão Preto. Trata-se, este resultado, de percentual significativo para a nossa instituição, principalmente se comparado ao índice geral médio de todas as faculdades do Brasil, no patamar de 14,19% de aprovação.

Em suma, podemos afirmar que vivemos um especial momento histórico de crescimento e desenvolvimento de nosso curso de Direito. Felizmente, alcançamos esta guinada de bons resultados em momento social também histórico em nosso país, uma vez que acompanhamos por todos os meios de comunicação os movimentos de superação de conceitos e marcos regulatórios engendrados por formações sociais autoritárias e excludentes. Neste ano de 2013, percebemos o renovar da trajetória política de nossa sociedade organizada com vistas às possibilidades de um novo tempo, marcado pela afirmação de novos direitos e de justiça social. Nessa edição da Revista Jurídica UniSEB, buscamos sintetizar uma parte dessa conjuntura nacional, particularmente no diagnóstico possível daquilo que diz respeito às relações entre o plano social e o jurídico.

Portanto, da exposição de questões mais técnicas a apresentação de debates sócio-jurídicos que desenvolvem temas como a discriminação de gênero e os

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movimentos sociais, por exemplo, os artigos publicados nesta edição buscaram associar diretamente o conhecimento e a prática do Direito. O ordenamento jurídico, como fruto do processo político, só pode ser concebido e compreendido como resultado determinado pela ancoragem das lutas sociais e políticas de um país. Nessa esteira, e conforme referido anteriormente, parece prevalecer no Brasil um ciclo de crescimento das forças dos movimentos sociais que almejam a distribuição de uma pluralidade de direitos, criados dessa vez para a tolerância e para a igualdade. Cabe a nós como juristas destes novos tempos criar, definir, sustentar e acreditar numa sociedade que caminhe para a superação das tradicionais dominações e que produza a real democracia moderna.

Para nós, depois de praticamente 02 anos a frente deste projeto de registro e de difusão da produção científica do Curso de Direito do Centro Universitário UniSEB, permanecem inalteradas as motivações pessoais e profissionais que nos orientam na atividade de coordenar iniciativa tão fundamental para qualquer Instituição de Ensino que preze pela qualidade do seu serviço oferecido aos alunos. Tem sido uma alegria permanente recebermos os elogios daqueles que acessam às Revistas e, principalmente, que tomam contato, a partir da leitura, dos conteúdos apresentados e muito bem analisados pelos autores publicados em cada nova edição. Por obvio, não poderia deixar de agradecer, sempre, o apoio incondicional da equipe que compõe a Mantenedora do Centro Universitário UniSEB, assim como a figura especial do Vice-Reitor, Prof. Dr. Reginaldo Arthus. Personagens como este é que renovam o nosso compromisso com a Educação e com o trabalho voltado para a emancipação dos sujeitos e das ideias. Por último, não podemos deixar de mencionar a contribuição, igualmente fundamental para o sucesso da Revista Jurídica, advinda da Pró-Reitoria Acadêmica e da Coordenação do Curso de Direito do Centro Universitário UniSEB.

César Augusto Ribeiro NunesCoordenador da Revista Jurídica - UniSEB

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DOUTRINA

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CONCEPÇÕES HERMENÊUTICAS A RESPEITO DO PROPÓSITO NEGOCIAL COMO ELEMENTO DA ELISÃO TRIBUTÁRIA NO DIREITO BRASILEIRO

MARIO AUGUSTO CARBONI 1

ResumoO presente artigo tem por escopo investigar as perspectivas hermenêuticas sobre a utilização da doutrina do propósito negocial na análise da juridicidade das atividades de planejamento tributário voltadas à elisão fiscal perante as normas do ordenamento jurídico nacional.PALAVRAS-CHAVE: Propósito Negocial; Elisão; Planejamento Tributário.

IntroduçãoA análise do propósito negocial no sistema jurídico tributário brasileiro

atrela-se fundamentalmente na investigação sobre os limites e possibilidades do planejamento tributário diante das normas jurídicas que compõem o ordenamento jurídico nacional.

Inicialmente deve-se atenção à questão semântica que recebe destaque nessa matéria, especialmente para distinção do campo da licitude e ilicitude das atividades de planejamento tributário. Na doutrina encontram-se as expressões elisão fiscal, evasão ou elusão para referenciar aspectos das condutas de planejamento tributário.

Paulo Ayres Barreto (2008, p. 208) utiliza a expressão elisão tributária para se referir ao planejamento tributário na acepção de conduta lícita dos contribuintes no sentido de evitar, reduzir ou postergar o pagamento de tributos, ao passo que evasão é conduta ilícita. Hugo de Brito Machado (2001, p. 115), ao contrário, toma o termo evasão fiscal para designar a conduta lícita do contribuinte para economia de tributo, ao passo que elisão denota o emprego de meios ilegítimos e ilícitos para se furtar ao pagamento de tributos.

Heleno Torres ao cuidar das atividades de planejamento tributário propõe, à semelhança do tratamento na doutrina estrangeira, a figura da elusão tributária. Segundo o autor o termo elisão, do latim elisione, significa ato ou efeito de elidir, eliminar, suprimir, ao passo que eludir, do latim eludere, significa evitar ou esquivar-se com destreza, furtar-se com habilidade ou astúcia, ao poder ou influência de outrem. Assim, elusão tributária é o fenômeno pelo qual: “o contribuinte usa de meios dolosos para evitar a subsunção do negócio praticado ao conceito normativo do fato

1 Procurador-Seccional da Fazenda Nacional em Ribeirão Preto-SP. Mestre e Doutorando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP. Especialista em Direito Público pela Universidade de Brasília-UnB. Especialista em Direito Processual Civil pelo Instituto de Ensino Superior COC. Pós-graduação em Administração Pública pela Fundação Getúlio Vargas - FGV-SP. Professor na Pós-graduação em Direito da Fundação Armando Álvares Penteado – FAAP. Professor na Faculdade de Direito do Centro Universitário UniSEB-Ribeirão Preto-SP. Formação complementar: Corso di Specializzazione en Diritto Italiano pela Università degli studi di Modena i Reggio Emilia – Facoltà di Gi-urisprudenza - Modena - Itália; e Las relaciones laborales en Europa en la actual situación de crisis económica - Departament de Dret Mercantil, Dret del Treball i de la Seguretat Social pela Univesitat de Barcelona – Espanha.

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típico e a respectiva imputação dos efeitos jurídicos, de constituição da obrigação tributária, tal como previsto em lei” (2003, p. 36).

A elusão tributária diferentemente da evasão fiscal em que se identifica afronta direta à lei, pode ser vista como um terceiro gênero das atividades de planejamento tributário, uma zona cinzenta entre as atividades lícitas ou elisivas e as atividades ilícitas ou evasivas, na qual se encontram negócios jurídicos aparentes praticados mediante utilização de artefatos para redução ou eliminação da carga tributária, e que dependem do tratamento de cada ordenamento jurídico para reconstruir a ação do contribuinte com vistas a desvendar a realidade atrativa da imposição tributária, a exemplo das teorias da prevalência da substancia sobre a forma e do propósito negocial no Reino Unido e Estados Unidos da América, o abuso de formas ou de estruturação jurídica na Alemanha ou conflito na aplicação da norma tributária na Espanha (ROSEMBUJ, 1999, p. 105.).

Quando se adotam três campos semânticos para determinação do conteúdo linguístico das facetas de um mesmo fenômeno, a exemplo das expressões como elisão, elusão e evasão, se amplia sobremaneira o problema da delimitação das questões. Assim, deixadas as divergências conceituais e semânticas à parte, identifica-se certa inclinação pela doutrina majoritária no sentido de que elisão fiscal liga-se à hipótese de economia lícita de tributos, ao passo que evasão fiscal refere-se à economia ilícita, ilegítima ou de sonegação tributária.

Em razão disso e da inexistência de consenso doutrinário para definição dos termos identificadores dos limites da licitude do planejamento tributário, adota-se doravante, na linha do entendimento majoritário, o termo elisão para as atividades lícitas e admissíveis de planejamento tributário e o termo evasão para as atividades ilícitas e repudiadas pelo ordenamento jurídico.

Pois bem, diante da polarização das condutas de planejamento tributário em elisivas e evasivas, tem-se que há naquelas um campo em que se admite o planejamento tributário com o fim de evitar, reduzir ou retardar a ocorrência do fato gerador do tributo. Entretanto, é nesse cenário de possibilidades elisivas que se encontram os negócios jurídicos que muitas vezes são apenas aparentes, viciados ou desprovidos dos elementos essenciais e que podem apontar na direção da evasão fiscal, abrindo-se espaço para sua requalificação para fins tributários, precedida da desconsideração e inoponibilidade ao Fisco.

Diversos institutos e teorias jurídicas, como o propósito negocial, o abuso de formas, o abuso de direito, a fraude à lei, o dolo, a simulação e a dissimulação têm sido utilizados pela administração tributária nacional e estrangeira para identificar os artefatos e os negócios jurídicos aparentes que sob o manto elisivo da livre iniciativa, autonomia da vontade e liberdade organizacional configuram verdadeiras condutas evasivas fiscais, desconsideráveis para permitir a incidência da norma tributária impositiva mediante requalificação.

No presente trabalho são apresentados resultados investigativos sobre a doutrina do propósito negocial no direito comparado, posto que ordenamento jurídico brasileiro não contém dispositivo normativo expresso a respeito do propósito negocial como elemento de validade dos negócios jurídicos perante a

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administração tributária, sendo que as construções da jurisprudência nacional, especialmente no cenário da jurisdição administrativa tributária, tem-se se pautado pela interpretação das normas nacionais mediante a importação de conceitos retirados de sistemas jurídicos estrangeiros, de modo que se torna relevante ao estudo da matéria levar em consideração o tratamento do propósito negocial no direito tributário comparado.

E por fim, são evidenciados no decorrer das reflexões os fundamentos hermenêuticos da doutrina jurídica nacional polarizados na adoção ou refutação da aplicabilidade da teoria do propósito negocial como elemento validador dos negócios jurídicos e transações ligadas ao planejamento tributário dos contribuintes diante das normas do sistema jurídico tributário brasileiro, sob as luzes fundamentadoras de linhas positivistas e pós-positivistas ligadas à leitura e releitura de valores e princípios ligados à solidariedade social, eficácia positiva do princípio da capacidade contributiva, segurança jurídica, tipicidade cerrada e princípio da legalidade, os quais balizam, em última análise, a configuração da doutrina do business purpose no direito brasileiro.

Propósito negocial no campo do Direito TributárioOrigem do instituto

Pode-se apontar a origem da teoria do propósito negocial ou business purpose theory no direito suíço e no direito norte-americano. Pela teoria em foco, tem-se que a legitimidade da elisão tributária decorre da necessária existência de algum objetivo, propósito ou utilidade, de natureza material ou econômica que impulsione e fundamente a prática de atos jurídicos pelos contribuintes, não sendo tolerados a finalidade ou propósito relacionado puramente à economia de tributos (DÓRIA, 1977, p. 75).

Consoante se extrai da construção jurisprudencial suíça, a elisão fiscal não será válida e legítima: “se a forma de direito civil eleita pelas partes é insólita e não corresponde à situação econômica; se a tal fato se acresce uma apreciável economia de impostos e se ficar patente que tal estado das coisas não tem outra explicação senão a redução da carga fiscal” (DÓRIA, Op. cit. P. 76).

Por sua vez, a teoria do propósito negocial no direito norte-americano construiu-se para aplicação nas chamadas reorganizações societárias ou empresariais, que albergam as mutações societárias decorrentes da fusão, cisão e incorporação de sociedades ou pessoas jurídicas, de modo a buscar o alcance de vantagens no campo da tributação. Segundo a teoria, é imprescindível que as reorganizações empresariais apresentem alguma utilidade negocial, de modo que serão ilícitas se evidenciarem apenas a finalidade ou escopo de redução substancial do tributo.

O leading case “Gregory v. Helverin” (293, U.S. 465) é relacionado pela doutrina como aquele que serviu de origem para a construção da teoria do propósito negocial nos Estados Unidos da América. No julgamento do referido caso pela Suprema Corte dos Estados Unidos, em 07 de janeiro de 1935, ficou afastada a formatação de um negócio em razão da prevalência da substância sobre

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a forma, fixando-se a orientação de que os tribunais levam em consideração os fatos e não os meros rótulos, traduzida da máxima “The courts looks to facts, not to labels” (ABRAHAM,2011, p. 88).

A partir do leading case considerado e das subsequentes decisões da jurisprudência norte-americana, a doutrina fixou a teoria de que o propósito negocial pode ser identificado com base em três testes: o teste de permanência da reorganização societária levada a efeito, de forma que não se qualificam no conceito legal de reorganizações, aquelas efêmeras, ou seja, que não objetivem consequências permanentes ou duradouras; o teste da vantagem societária, por meio do qual, sem considerar a vantagem tributária, a reorganização deve assegurar um benefício à sociedade remanescente, sem confundir com um benefício advindo diretamente aos seus sócios; e por fim, o teste da economia fiscal, por força do qual não serão consideradas lícitas as reorganizações se o escopo único identificado nas negociações e transações jurídicas realizadas for o de reduzir tributos.

Delimitação conceitualTomadas por fundamentos as origens e os casos relacionados à construção

da teoria do propósito negocial verifica-se que o seu conceito está atrelado à eficácia e validade do negócio jurídico perante a administração tributária consoante sua finalidade, escopo ou propósito motor apresente como elemento central o desiderato negocial, econômico, mercantil.

Não há previsão expressa sobre o propósito negocial vigente no direito positivo brasileiro de onde se possa extrair certa delimitação normativa. Houve referência ao propósito negocial durante a vigência da Medida Provisória nº 66/2002 ao pretender regular como antielisiva a norma do parágrafo único do art. 116, do Código Tributário Nacional - CTN.

O artigo 14 do referido ato normativo estabeleceu que eram passíveis de desconsideração pela administração tributária os atos ou negócios jurídicos que visassem a reduzir o valor de tributo, a evitar ou a postergar o seu pagamento ou a ocultar os verdadeiros aspectos do fato gerador ou a real natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária. Sendo que, para a desconsideração de ato ou negócio jurídico a medida provisória determinou que se deveriam levar em conta, entre outras, a ocorrência de falta de propósito negocial ou abuso de forma.

O § 2º do artigo 14 mencionado determinou balizas para conceituação do propósito negocial, pois previu que seria considerado indicativo de falta de propósito negocial a opção pela forma mais complexa ou mais onerosa, para os envolvidos, entre duas ou mais formas para a prática de determinado ato. Entretanto a Lei 10.637/02, na conversão da Medida Provisória 66/02, não ratificou o mencionado dispositivo, o qual perdeu vigência, não restando na legislação brasileira qualquer referência ao propósito negocial.

A doutrina tributária brasileira e as diversas decisões dos órgãos administrativos sobre a matéria2 ao tratarem do tema do propósito negocial fazem

2 Podem ser citados como exemplos os seguintes julgados do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais - CARF, em âmbito federal: Acórdão nº 103-23.357, Acórdão nº 101-95.552 e Acórdão nº 101-96.087.

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referência ao desnaturamento da função objetiva do negócio jurídico, exigindo a existência de causas reais, de modo que o conceito do propósito negocial vem sendo sedimentado em proximidade com as figuras da invalidade do negócio jurídico e da ilicitude pelo abuso de direito ou mesmo pelo abuso de formas, conforme será tratado alhures. Desse modo, os negócios jurídicos praticados pelas empresas e agentes econômicos devem apresentar sempre finalidade negocial, relegado a segundo plano os efeitos tributários, posto que se comprovado que o único propósito do negócio jurídico entabulado corresponde a meio para obtenção de vantagem fiscal ou redução de tributos está-se diante de negócio ilegítimo e inoponível ao Fisco.

Ao tratar do tema Paulo Ayres Barreto ensina que: “a teoria do propósito negocial centra-se em critérios subjetivos: a real intenção do contribuinte que pratica certos atos que geram economia fiscal ou redução de tributos” (Op. cit., p. 232).

Em última análise pode-se afirmar que o que busca a doutrina do propósito negocial é que o uso das formas jurídicas devem expressar fielmente os eventos da realidade fenomênica. Assim, levando em consideração que as sociedades empresárias têm sempre como objetivo auferir lucros, não é razoável ou crível conceber que no exercício das suas atividades não haja, mesmo que mediatamente, traços demonstrativos da sua finalidade econômica lucrativa, de modo que são desprovidos de validade os negócios jurídicos praticados apenas com o propósito de economia de tributos, sem qualquer evidência econômica ou negocial ligada aos objetivos empresariais.

Propósito negocial no direito comparadoNo direito comparado são encontradas diversas referências ao propósito

negocial como elemento de validação das condutas de planejamento tributário levadas a efeitos pelos contribuintes com vistas à redução, postergação ou eliminação da imposição tributária mediante processos e negócios juridicamente arquitetados com a finalidade de economia de tributos.

O ordenamento jurídico brasileiro não contém dispositivo normativo a respeito do propósito negocial como elemento de validade dos negócios jurídicos perante a administração tributária, sendo que as construções da jurisprudência nacional, especialmente no cenário da jurisdição administrativa tributária, têm-se pautado pela interpretação das normas nacionais mediante a importação de conceitos retirados de sistemas jurídicos estrangeiros, de modo que se torna relevante ao estudo da matéria levar em consideração o tratamento do propósito negocial no direito tributário comparado.

O sistema jurídico por excelência que comporta a utilização da análise do propósito negocial dos atos jurídicos com reflexos tributários é o norte-americano, que ao lado do sistema suíço, deu origem à teoria da finalidade negocial ou teste do propósito negocial (business purpose test), conforme noticiado linhas acima.

A exemplo do que ocorre em outros países da linha jurídica do direito consuetudinário (common Law), nos Estados Unidos da América, a utilização do método interpretativo jurisprudencial apresenta-se como elemento-chave para o

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combate às condutas ilícitas de planejamento tributário. Nesse diapasão, as cortes norte-americanas se valem de algumas teorias para auxiliar na identificação das casos representativos de evasão fiscal, cujo alvo motor é a redução ou eliminação da carga tributária, a exemplo da substância sobre a forma (substance over form), etapas da transação (step transaction), propósito negocial (business purpose), fraude nas transações (sham transaction) e conteúdo econômico (economic substance). Verifica-se dentro desse rol de teorias utilizadas pelas cortes norte-americanas, a do propósito negocial, que acaba por abarcar em visão mais ampla o conteúdo econômico e a substância dos negócios jurídicos.

Segundo escólio de Ricardo Lodi Ribeiro (2003, p. 160):

(...) nos Estados Unidos predomina a teoria do business purpose test, com o exame, pela administração fiscal, da intenção negocial do contribuinte. Assim, se os negócios jurídicos carecem de motivação econômica, diversa da economia fiscal, pode haver desqualificação pela Fazenda Pública.

No mesmo sentido, o ordenamento jurídico na Inglaterra, de matiz consuetudinária, adota para análise da ilicitude do planejamento tributário (tax evasion), a teoria da substância sobre a forma e a busca pelo propósito da operação entabulada.

Na França, cuja linha jurídica é da tradição romano-germânica, e, portanto calcado o ordenamento jurídico em normas gerais e abstratas, não há referência expressa ao propósito negocial, entretanto sua consideração extrai-se da normativa a respeito da cláusula geral antielisiva constante no artigo 64 do Livre de Procédures Fiscales, o qual trata sobre as hipóteses de caracterização do abuso de direito para fins de desqualificação fiscal dos negócios jurídicos, nos casos em que o ato seja fictício e que a motivação seja exclusivamente fiscal.

Na Alemanha, a questão do controle do planejamento tributário encontra-se no § 42 do Código Tributário Alemão (AO, 1977). Pode-se extrair a seguinte redação do texto legal alemão3:

(1) Não será possível contornar a legislação tributária pelo abuso de opções legais de planejamento fiscal. Se os elementos para preencher a incidência de determinada regra tributária específica forem preenchidos, as consequências legais devem ser determinadas de acordo com aquela regra. Quando isto não for o caso, o pedido de crédito fiscal deve, em caso de um abuso na acepção da subseção (2) abaixo, surgir da mesma maneira como ele surge através do uso de opções legais apropriadas para as transações econômicas em causa. (2) Um abuso será considerado existente quando uma opção legal inapropriada é escolhida e, em comparação com a opção apropriada, leva a vantagens tributárias sem intenção do Direito para o contribuinte

3 Gesetze ganz einfach. Abgabenordnung (AO) §42 Missbrauchtatbestand. Disponível em: http://gesetze-ganz-einfach.de. Acesso em: 02. jul. 2013

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ou terceiro. Isso não se aplica quando o contribuinte fornece evidências de razões não tributárias para a opção selecionada que são relevantes quando vistos de uma perspectiva global.

No que tange ao propósito negocial, no direito alemão encontra ressonância na complementação do dispositivo legal do AO acima citado, posto que para análise do planejamento juridicamente inapropriado verifica-se se este se encontra sem fins econômicos, inconstante, complicado, ininteligível, artificial, supérfluo, ineficaz e incongruente4.

Na Espanha a legislação tipifica institutos inseridos na política antielisiva, adotando-se a fraude à lei, a simulação e o abuso de forma nos artigos 24, 25 e 28.2 da Ley General Tributária. Também não há referência autônoma ao propósito negocial, o qual decorre da conceituação dos institutos acima citados, em especial da fraude à lei, importando citar o art. 24 da LGT, que assim dispõe: “Para evitar el fraude de ley se estenderá que no existe extensión del hecho imponible cuando se graven hechos, actos o negocios juridicos realizados con el propósito de eludir el pago del tributo, amparándose en texto de normas dictadas con distinta finalidad, siempre que produzcan un resultado que se dé audiencia al interessado. Los hechos, actos o negocios juridicos ejecutados en fraude de ley tributária no impedirán la aplicación de la norma tributária eludida ni darán lugar al nacimiento de las ventajas fiscales que se pretendia obtener mediante ellos. (...) “.

Na Argentina, conforme se extrai da Lei Nacional nº 11.683, há a positivação da interpretação teleológica ou da consideração econômica, eis que consta a seguinte determinação legal: “En la interpretación de las disposiciones de esta ley o de las leyes impositivas sujetas a su régimen, se atenderá al fin de las mismas y a su significación económica. Sólo cuando no sea posible fijar por la letra o por su espíritu, el sentido o alcance de las normas, concepto o términos de las disposiciones atendichas, podrá recurrirse a las normas, conceptos y términos del derecho privado”.

Assim, o ordenamento jurídico argentino, a exemplo dos demais considerados, traz conceitos de significação econômica para as normas tributárias, o que dá ensejo à aplicação do propósito negocial, posto que a substância negocial e não a formatação jurídica do negócio é o ponto-chave para o alcance fiscal das transações, o que dá liberdade à administração tributária para buscar a evidência econômica dos negócios, independentemente das formas jurídicas adotadas, e verificado o elemento econômico do ato jurídico, aplicar a norma tributária impositiva adequada segundo a capacidade contributiva do agente.

4 Gesetze ganz einfach. Abga1enordnung (AO) §42 Missbrauchtatbestand. Disponível em: http://gesetze-ganz-einfach.de. Acesso em: 02. jul. 2013.

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Elisão tributária e propósito negocial no sistema jurídico tributário brasileiroPonto de partida: o alcance da norma do parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional

O tratamento do propósito negocial no direito brasileiro encontra-se no plano da interpretação do alcance da norma constante no parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional, acrescentado pela Lei Complementar nº 104/2001, vazada nos seguintes termos: “a autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária”.

Desde a inserção desta norma no sistema jurídico tributário brasileiro a doutrina se debruça a estudá-la principalmente em dois aspectos. O primeiro consiste em desvendar sua natureza jurídica e seu alcance. O segundo aspecto diz respeito à aplicabilidade da referida norma quanto aos poderes de desconsideração dos atos e negócios jurídicos atribuídos à autoridade fiscal diante da menção expressa de que devem ser observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária.

Quanto a este segundo aspecto de preocupação hermenêutica sobre a aplicabilidade da norma do parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional, parcela da doutrina defende sua eficácia imediata. Entretanto, a doutrina majoritária adota posição no sentido da necessária superveniência de lei ordinária que regulamente o procedimento tendente à sua eficácia. Nesse sentido Paulo de Barros Carvalho (2004) ensina que:

Pode acontecer que uma norma válida assuma o inteiro teor de sua vigência, mas por falta de outras regras regulamentadoras, de igual ou inferior hierarquia, não possa juridicizar o fato, inibindo-se a propagação de seus efeitos. Ou ainda, pensemos em normas que façam a previsão de ocorrências factuais possíveis, mas, tendo em vista dificuldades de ordem material, inexistam condições para que se configure em linguagem incidência jurídica. Em ambas as hipóteses teremos uma norma válida dotada de vigência plena, porém impossibilitada de atuar. Chamemos a isso de ‘ineficácia técnica’. Tércio Sampaio Ferraz Jr. utiliza ‘ineficácia sintática’ no primeiro exemplo e ‘ineficácia semântica’ no segundo. As normas jurídicas são vigentes, os eventos do mundo social nelas descritos se realizam, contudo as regras não podem juridicizá-los e os efeitos prescritos também não se irradiam. Falta a essas normas “eficácia técnica”.

Na mesma direção encontra-se a conclusão de Ives Gandra da Silva Martins (2005, p. 949), para quem: “a eficácia da norma é futura e condicionada, não podendo, pois, dar suporte a qualquer ação fiscal para fazê-la efetiva, sem lei que crie os procedimentos pertinentes para tal fim”.

Também James Marins (2002) entende que o dispositivo legal em questão somente poderá ser aplicado ao caso concreto, após a vigência da lei ordinária regulamentadora por força do princípio da anterioridade.

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Marco Aurélio Greco (2001) entende que não poderá a Administração Tributária praticar ato de desconsideração fundamentado nesse dispositivo (exceto nos casos de abuso ou fraude à lei), haja vista que a natureza da ação administrativa e o princípio da legalidade insculpido no artigo 37, caput, da Constituição Federal de 1988, mostram que se trata de norma de eficácia limitada, cuja eficácia e aplicabilidade dependem da edição de lei ordinária. Para esse doutrinador, excetuando-se os casos de dissimulação, abuso de direito e fraude à lei, enquanto não for editada a lei ordinária para disciplinar os procedimentos de aplicação do dispositivo supracitado, não pode a Administração Tributária exercer esta competência do modo e sob a forma que livremente escolher.

Por sua vez, Paulo Ayres Barreto (2008, p. 269) entende que enquanto a lei ordinária não disciplinar o procedimento de desconsideração dos negócios jurídicos celebrados para dissimular a ocorrência do fato gerador, não será aplicado o artigo 116, parágrafo único, do CTN, pois há eficácia técnica, de natureza sintática.

Quanto à natureza jurídica e o alcance da norma do parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional, identifica-se na doutrina nacional a polarização das conclusões hermenêuticas em duas direções vetoriais opostas, a ser tratada nos tópicos subsequentes em específico quanto à abertura jurídica para aplicação da teoria do propósito negocial.

Em apertada síntese pode-se dizer que num pólo interpretativo encontra-se a doutrina chamada de moderna que num viés pós-positivista à luz da jurisprudência dos valores e com fulcro na solidariedade social e eficácia positiva do princípio da capacidade contributiva qualifica a norma do parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional como cláusula geral antielisiva, com vistas à proibição da elisão abusiva, nos moldes do ordenamento jurídico francês.

Por outro lado, encontra-se a parcela da doutrina, chancelada como tradicional, que direciona o sentido e alcance da referida norma à luz do positivismo jurídico, especialmente com fundamento no princípio da legalidade, tipicidade cerrada e segurança jurídica.

Propósito negocial na perspectiva pós-positivista da capacidade contributiva e solidariedade social

A perspectiva de adoção da teoria do propósito negocial no direito brasileiro funda-se na chamada doutrina moderna, influenciada pelos ideais pós-positivistas fixados na vertente hermenêutica da jurisprudência dos valores, segundo a qual deve haver uma reaproximação entre a Ética e o Direito, bem como sob o viés jurídico sobressaem os valores fundantes do sistema e os princípios como orientações de otimização, de modo que haja uma simbiose entre a interpretação teleológica e a interpretação sistemática, como pontos marcantes do Estado Democrático de Direito (Torres, 2000, p. 105).

Especialmente no campo tributário a jurisprudência dos valores propõe a ponderação entre o princípio da capacidade contributiva, vinculado à justiça fiscal e argumentação democrática, e o princípio da legalidade, atrelado que está à segurança jurídica na sua qualificação como segurança-regra (TIPKE, 2008).

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Considerando o ordenamento jurídico tributário nacional, a jurisprudência dos valores remete sempre aos princípios da igualdade, da capacidade contributiva e da solidariedade social, princípios evidentemente caros a qualquer sistema tributário, em especial o brasileiro, largamente marcado pela tentativa de equalizar os ônus tributários entre os contribuintes.

Amparado na jurisprudência dos valores, especialmente pela metodologia elaborada por Karl Larenz, Ricardo Lobo Torres afirma que o contribuinte deve se manter nos limites da possibilidade expressiva da letra da lei, ou seja, que não cometa abusos quando pratica atos elisivos.

Assim, o planejamento tributário lícito decorre da autonomia individual dos contribuintes, ficando restrita, porém, aos limites da razoabilidade, da proteção à segurança jurídica e ao princípio da justiça. Neste sentido, quando o contribuinte atua em campo lacunoso do texto legal, de modo a estruturar negócio jurídico formalmente lícito, mas com finalidade apenas de economizar tributos, empreende-se interpretação que transborda os limites da lei, agindo em senda de ilicitude.

Segundo ensinamento de Lobo Torres, as normas antielisivas têm como fundamento justamente cercear a interpretação analógica, distorcida do contribuinte, sendo – neste sentido – contra-analógica, amparadas obviamente pelos princípios da igualdade e da capacidade contributiva.

Em realidade, a contra-analogia ocorre na hipótese da autoridade administrativa requalificar os atos praticados pelos contribuintes, que seriam inconsistentes em vista do ordenamento jurídico amparado por valores como a legalidade tributária. A escolha de norma de cobertura inadequada pelo contribuinte seria afastada pelas normas antielisivas de dois modos, basicamente, a contra-analogia e a redução teleológica, consistente em técnica pela qual “a autoridade administrativa reduz o alcance da lei à sua finalidade econômica”.

Para sustentar a posição de que haveria mesmo uma norma antielisiva, Lobo Torres afirma que a dissimulação, tal qual regulado pelo art. 116 do CTN, refere-se não ao fato gerador concreto, mas ao fato gerador abstrato, não corretamente subsumido pelo contribuinte.

Nesse campo de interpretação teleológica e valorativa, baseada em ideias pós-positivistas, merece destaque o escólio de Marco Aurélio Greco quanto à eficácia positiva da capacidade contributiva. O princípio da capacidade contributiva está previsto expressamente na Constituição Federal de 1988, a qual determina no § 1º do art. 145, que sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.

Para Marco Aurélio Greco, a capacidade contributiva não é apenas um limite negativo ao poder de tributar, mas também um comando positivo do constituinte e que a tributação deve alcançá-lo onde for detectada a capacidade contributiva (2004, os. 184-186). Assim, a capacidade contributiva está ligada à aptidão para

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participar do rateio das despesas públicas como instrumento da busca de uma sociedade mais justa e solidária.

Desse modo, os negócios jurídicos praticados com o único propósito de fuga à imposição tributária não encontram sustentação jurídica, sendo viciados, posto que representam agressão à solidariedade social (ibiden, p. 185).

Nesse sentido, a simulação, que legitima a desconsideração dos negócios jurídicos no CTN, não mais está ligada ao aspecto da vontade, mas sim à causa do negócio jurídico. Por isso, em última análise, dever ser questionada a causa real versus a causa aparente do negócio, e assim, se a causa do negócio aparente estiver ligada exclusivamente à finalidade de reduzir ou eliminar a incidência do tributo, surge para a autoridade administrativa tributária, com base na solidariedade social, o poder de desqualificar o negócio privado, por ausência de propósito negocial.

Pode-se concluir, portanto, diante das considerações da doutrina moderna, que a figura do propósito negocial, ao lado do abuso de direito e do abuso de formas, são extraídas do sistema jurídico brasileiro e se encontram no mesmo rol das figuras do dolo, fraude, simulação e dissimulação, estes previstos em regras específicas da legislação tributaria (CTN), como instrumentos à disposição para serem utilizados pela administração tributária para fins de desconsiderar os atos ou negócios jurídicos levados a efeito pelos contribuintes com vistas a evitar, reduzir ou retardar a imposição tributária, posto que agressores da solidariedade social e da capacidade contributiva em sua eficácia positiva.

Propósito negocial na perspectiva positivista da legalidade e segurança jurídicaOutra perspectiva da teoria do propósito negocial no direito brasileiro

subtrai-se da chamada doutrina tradicional, influenciada pelos ideais positivistas e liberais fixados na vertente hermenêutica da jurisprudência dos conceitos, segundo a qual as categorias jurídicas são produto da expressão da realidade econômica e social subjacente à norma, não cabendo ao intérprete a preocupação com dados empíricos ou externos ao ordenamento jurídico, mas sim com a lógica e com a noção sistêmica das normas jurídicias (MORAES, 1975, p. 83-102).

Na perspectiva positivista, a primeira questão que se discute ao tratar do propósito negocial, que como visto anteriormente, está intimamente ligado à interpretação da natureza jurídica e do alcance do dispositivo legal do parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional, é sobre a possibilidade ou não de cláusula geral antielisiva no ordenamento jurídico brasileiro.

A chamada doutrina tradicional, fundamentada nos ideais positivistas, entende a validade como a qualidade que uma norma jurídica tem de pertencer a um ordenamento jurídico de forma harmônica com os demais elementos que a compõem, sendo que para que uma norma antielisiva seja considerada válida no ordenamento jurídico brasileiro é necessário que essa norma não esteja em conflito com as demais normas que compõem o sistema tributário nacional.

Entre essas normas, no campo tributário, sobressaem o princípio da legalidade tributária, que impede o Estado de exigir o pagamento de tributo sem que tenha ocorrido a situação hipoteticamente prevista em lei como fato gerador

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de obrigação tributária. Há também o princípio da segurança jurídica, que está relacionado ao princípio da legalidade, na medida em que garante aos contribuintes a certeza de que não poderão ser surpreendidos com invasões indevidas e não convencionadas ao seu patrimônio, manifestadas em cobranças de tributos com base em critérios não previstos em lei.

Considerando, então, a elisão tributária como campo de liberdade do contribuinte de utilizar, na condução de suas atividades econômicas, formas jurídicas previstas em lei que lhe permitem economizar tributos, uma norma jurídica que permitisse a desconsideração dessa opção negocial lícita feita pelo contribuinte com a finalidade de impor a cobrança de um tributo que seria devido se o contribuinte tivesse optado pela forma negocial mais gravosa economicamente, estaria ferindo, no mínimo, os princípios da legalidade e da segurança jurídica acima mencionados, que normatizam valores extremamente caros para a manutenção de um Estado Democrático de Direito. Nesse sentido é o escólio de Paulo de Barros Carvalho (p. 88), para quem:

Sem dúvida, é legítima a técnica de organização preventiva dos negócios jurídicos a serem praticados, visando à economia de tributos. Nestes casos, o particular opta por praticar atos que não se enquadrem nos modelos das normas jurídicas tributárias, alcançando, porém, resultados econômicos semelhantes àqueles decorrentes da concretização dos fatos que fariam nascer débitos tributários. (...)Essa, inclusive, é a leitura que se deve tomar do referido princípio ontológico de que “tudo que não estiver juridicamente proibido, estará juridicamente permitido”, que, no direito tributário, adquire maior expressão quando colocados em consonância ao princípio axiológico do subsistema constitucional tributário da estrita legalidade, nos exatos termos em que, para qualquer imposição tributária, a previsão legal expressa é a forma constitucionalmente escolhida para legitimar a cobrança de tributos.

Nesse sentido, segundo a interpretação acima é possível afirmar que uma norma antielisiva não seria válida no ordenamento jurídico brasileiro, por desrespeitar princípios constitucionais tributários que constituem garantias fundamentais dos contribuintes, como é o caso da legalidade e, especialmente, da segurança jurídica.

Nesse cenário, esclarecedoras são as lições de Paulo Ayres Barreto, para quem os limites para o exercício do poder de tributar encontram-se plasmados no plano constitucional, que minudentemente estabeleceu as bases do sistema tributário nacional, assegurando uma série de garantias individuais aos cidadãos em face do Estado, por meio da delimitação do espectro de atuação do legislador em matéria tributária, e fundamentalmente pela limitação do poder das autoridades administrativas tributárias em relação à tarefa de aplicação do arcabouço legislativo específico (2008, p. 210).

Seguindo essa linha de raciocínio só é possível identificar na capacidade contributiva uma limitação ao poder de tributar, uma garantia individual do

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contribuinte e não uma porta aberta ao elastecimento do poder de tributar, bem como das autoridades administrativas fiscais para desconsiderar os negócios jurídicos por meio de interpretação casuística.

Desse modo, no sistema tributário brasileiro a busca pela efetividade do princípio da capacidade contributiva deve ser entendida como garantia fundamental do contribuinte e não pode desrespeitar o princípio da legalidade e da segurança jurídica, de maneira que previsão legal de cláusula antielisiva não seria válida no ordenamento jurídico brasileiro.

Tomando-se por base essa perspectiva apontam-se diversos caminhos interpretativos sobre a razão da norma inserta no parágrafo único do art. 116 do CTN. Para parcela da doutrina essa alteração não teve nenhuma eficácia uma vez que o art. 149, VII, do Código Tributário Nacional já previa a possibilidade de lançamento de ofício ou revisão de lançamento nas hipóteses de dolo, fraude e simulação, sendo a dissimulação uma espécie desta última, conhecida como simulação relativa.

Segundo Paulo de Barros Carvalho (Ob. cit., p. 85), a Lei Complementar nº 104, de 2001, ao acrescentar o parágrafo único ao art. 116 do Código Tributário Nacional, não introduziu qualquer efetiva alteração normativa no ordenamento jurídico brasileiro, servindo apenas para ratificar regra já existente no direito pátrio, qual seja, aquela prevista no art. 149, VII do Código Tributário Nacional, que já autorizava, desde 1966, a desconsideração de negócios jurídicos dissimulados.

Entretanto, existe um postulado hermenêutico, segundo o qual “o legislador não utiliza palavras inúteis”. Assim, o intérprete deve se conduzir a obter a máxima eficácia do texto legal, a partir de todos os seus termos, não podendo escolher, assim, apenas aqueles que favorecem sua posição e desconsiderar ou esquecer os demais. Desse modo é possível entender que a inserção da norma do parágrafo único no art. 116, do CTN apresenta um sentido normativo.

Assim, segundo Paulo Ayres Barreto (Ob. cit., p. 217-221), representa mais que uma mera ratificação da simulação, pois tal comando normativo, além de representar um ato de fala de caráter perlocucionário, serve para reconhecer, que no caso da dissimulação, há dois fatos constituídos em linguagem: o simulado e o dissimulado. Por isso, no que se refere às provas, haverá um confronto entre duas manifestações de linguagem: a exarada pelo contribuinte e a exarada pela autoridade administrativa. A autoridade administrativa deverá comprovar, neste caso, a ocorrência do fato ocultado e a inocorrência do fato aparente. Assim, justifica-se a alteração promovida pela LC nº 104/2001, para que o legislador ordinário estabeleça, especificamente com relação à dissimulação, o procedimento legal que irá definir a verdade lógica prevalecente. Em síntese, a diferença semântica verificada entre os institutos da simulação e da dissimulação é que justifica a inserção do parágrafo único do artigo 116 do CTN.

Sob as vestes dessa vertente positivista ou doutrina tradicional os limites de atuação da autoridade tributária para desconsiderar os atos ou negócios jurídicos ligados ao planejamento tributário circunscrevem-se às hipóteses tratadas nas normas do direito positivo nacional.

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Nesse ponto, impera observar que por haver norma tributária específica regulando as hipóteses de ineficácia dos atos e negócios jurídicos perante a autoridade tributária, consistentes nos artigos 149, VII (que tratam de dolo, fraude e simulação absoluta) e parágrafo único do artigo 116 (dissimulação ou simulação relativa), ambos do CTN, ficaria afastada segundo disposto no art. 109 do CTN, a utilização de conceitos em sentido diverso oriundos do direito privado, especificamente do Direito Civil.

Assim, a desconsideração dos negócios jurídicos pela autoridade tributária no direito positivo brasileiro somente são admitidas se configuradas as hipóteses de dolo, fraude, simulação ou dissimulação, sendo esta, mediante procedimento específico ainda a ser estabelecido segundo determina a norma do parágrafo único do art. 116 do CTN.

Portanto, no ordenamento jurídico tributário brasileiro não há espaço para a utilização da teoria do propósito negocial (tampouco do abuso de formas ou abuso de direito) pela autoridade administrativa tributária para fins de desconsiderar atos e negócios jurídicos empreendidos pelos contribuintes no exercício regular do seu direito de planejamento tributário, por expressa ausência de previsão legal especifica nas normas tributárias que tratam da ineficácia dos negócios jurídicos perante o Fisco.

O único espaço para utilização da teoria do propósito negocial seria apenas em sentido indiciário (BARRETO, Ob. cit, p. 246-249) de simulação ou dissimulação dos negócios jurídicos, sempre sujeitas a serem comprovadas pela autoridade administrativa. Assim, a prova indiciária, entendida como conjunto de indícios ou fatos jurídicos que por presunção levam à conclusão de outro (o que se quer provar), indubitavelmente, serve como ponto inicial para formação da convicção da autoridade administrativa.

Deve-se considerar que nos casos de atos simulados ou dissimulados, há o intuito de ocultação de fatos jurídicos, o que, em muitos casos, pressupõe que haja ausência de linguagem jurídica, de maneira que, de fato, haveria maior dificuldade para a autoridade administrativa reconstituir esse fato através de prova direta.

Considerações finaisNas considerações a respeito dos limites e possibilidades do planejamento

tributário pelos contribuintes e da natureza e alcance jurídico de cláusulas antielisivas muito tem se discutido e propalado a respeito da doutrina tradicional e da doutrina moderna, ligadas, respectivamente, aos critérios hermenêuticos da jurisprudência dos conceitos e da jurisprudência dos valores.

Contudo apresenta-se sempre necessário ter em vista o momento histórico da construção das teorias para, com argumentos sólidos, refutar ou adotar as considerações conclusivas de cada qual, de modo que a mera menção à tradicional ou moderna doutrina pode configurar discurso retórico, desprovido de qualquer conteúdo, com a única finalidade de se qualificar algo como inovador em contraponto àquilo que seria ultrapassado.

Não se nega que no Direito tributário a redução de possibilidade interpretativa

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deve ser buscada, por melhor que sejam os princípios do ordenamento jurídico brasileiro, em prol da segurança jurídica. Entretanto, a Constituição Federal adotou linha de convergência dispersiva entre os grupos de pressão da ocasião, sendo a ordem econômica mais liberal e a ordem social mais intervencionista, de modo que sobressaem das normas constitucionais um conjunto de regras, princípios e valores que devem ser objeto de cotejo diante da realidade jurídica considerada.

No campo da elisão tributária é possível reconhecer o direito dos contribuintes de se autorganizarem, com base na livre iniciativa, inclusive com a finalidade de economia de tributos. Entretanto, essa liberdade não é ilimitada e seus limites não são apenas encontrados nas normas específicas que delineiam o poder estatal de tributar, mas em todo o ordenamento jurídico.

A questão específica do propósito negocial está atrelada intimamente aos limites da elisão fiscal, como um dos fundamentos do poder da administração tributária de desconsideração dos negócios jurídicos empreendidos por força de atividades de planejamento tributário dos contribuintes com vistas a evitar, reduzir ou postergar a imposição tributária.

É certo que o cabedal legitimador de atuação da autoridade tributária para desconsiderar os atos ou negócios jurídicos ligados ao planejamento tributário encontra-se nas hipóteses identificadas como de sua ineficácia, as quais são tratadas expressa ou implicitamente pelas normas do direito positivo brasileiro.

Nesse campo normativo existem as normas tributárias específicas que regulam as hipóteses de ineficácia dos atos e negócios jurídicos perante a autoridade tributária, consistentes nos artigos 149, VII (que tratam de dolo, fraude e simulação absoluta) e parágrafo único do artigo 116 (dissimulação ou simulação relativa), ambos do CTN.

E ainda, há as normas decorrentes da interpretação dos dispositivos constitucionais, como a solidariedade social e a capacidade contributiva em suas facetas negativa e positiva, além de outras normas ligadas à licitude dos negócios jurídicos, como boa-fé, fins sociais e econômicos, bons costumes, expressamente previstas no Código Civil.

Não se pode qualificar como chancelado pela ordem jurídica nacional os negócios jurídicos pactuados com a única finalidade de economia tributária, posto que diante da necessidade de tributação para rateio das despesas públicas vinculadas à idéia de solidariedade social, bem como diante da evidencia de fato econômico revelador de riqueza, a finalidade ou causa do negócio estar fincada apenas e exclusivamente à economia de tributos, represente agressão aos correlatos princípios constitucionais e configura abuso de direito. Desse modo, impõe-se a exigência de propósito negocial para fins de licitude dos atos e negócios jurídicos que estejam ligados à elisão fiscal.

A questão da desconsideração dos negócios jurídicos pela administração tributária liga-se à presença da cláusula antielisiva esculpida no parágrafo único do art. 116, do CTN por força da Lei Complementar nº 104/2001. Consta da exposição de motivos que deu ensejo à edição da Lei Complementar nº 104/2001, com inspiração no modelo jurídico francês, a intenção de: “desconsiderar atos ou

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negócios jurídicos com finalidade de elisão, constituindo-se, dessa forma, em instrumento eficaz para o combate aos procedimentos de planejamento tributário com abuso de forma ou de direito”.

Em que pese o fato de que o conteúdo normativo positivado no parágrafo único do art. 116, do Código Tributário Nacional não corresponder ao texto da exposição de motivos, não se admite a interpretação vazia do dispositivo.

Nesse sentido, é possível admitir que dissimulação tratada no parágrafo único do art. 116, do CTN, envolve a investigação dos negócios jurídicos pela autoridade administrativa tributária às luzes da doutrina do propósito negocial, sendo que a ausência de causa ou finalidade econômica pode representar elemento indiciário da de negócio jurídico dissimulado, ou mesmo elemento configurador da ilicitude do ato ou negócio por abuso de direito diante dos valores e princípios ligados à consecução dos objetivos fundamentais da sociedade livre, justa e solidária.

Sobressai assim o entendimento de que a ausência de disposição expressa no sistema tributário, exigindo para os atos e negócios jurídicos a motivação especial caracterizada pelo propósito negocial, apenas dificulta a análise jurídica, mas não a inviabiliza5, a partir do momento em que se considere as disposições constitucionais da solidariedade social e da eficácia positiva da capacidade contributiva, bem como do Direito Civil, no que diz respeito à boa-fé, como requisito dos atos e negócios praticados.

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JORNADA 12H POR 36H: CRÍTICA AO ARGUMENTO DA NECESSIDADE ECONÔMICA

COM JUSTA REMUNERAÇÃO

FÁBIO LUIZ FERRAZ MING 1

ResumoO presente artigo visa contextualizar as mudanças e implicações legais causadas pela adoção da jornada de trabalho 12h por 36h no espaço das relações econômicas. Além disso, apresenta argumentos, no sentido de que essa jornada, considerada especial no atual disciplina do Direito do Trabalho, consubstancia um dispositivo expropriador e desumanizador das atividades e do sujeito que trabalha. Os argumentos e as apologias, insuficientes e falaciosas, serão consideradas e escrutinadas, desvendando o artifício de sua legitimação ideológica e sustentação mistificadora.PALAVRAS-CHAVE: Direito do Trabalho; Jornada de Trabalho; 12h x 36h; Direitos Humanos.

A jornada e a duração do trabalho são normas jurídicas estatais de direito imperativas que atrelam o trabalhador à obrigatoriedade e à soberania da norma. Como salienta DELGADO (2008, p. 851): “Assim, a renúncia, pelo trabalhador, no âmbito da relação de emprego, a alguma vantagem ou situação resultante de normas respeitantes à jornada é absolutamente inválida”. O ordenamento jurídico é composto de dois alicerces normativos responsáveis pela proteção do trabalhador, sem os quais, estaria ainda mais vulnerável a exploração da sua força de trabalho. Um deles é o artigo 4682 da CLT, e o outro é o artigo 9°3 da CLT; ambos visam evitar prejuízo, direta ou indiretamente ao trabalhador. Como é sabido, a CLT já nasce alheia ao seu modelo e padrão contemporâneo e sofre a influência de um modelo econômico que corrompe e expropria o trabalhor da sua dignidade humana em prol da manutenção das taxas de lucros pela classe dominante; não pode, desta forma, ser interpretada de modo a flexibilizar ou permitir algum prejuízo para o operário. Assim, remetendo ao contexto da jornada de trabalho, uma alteração benéfica que ocorre é à transferência do trabalho noturno para o diurno4, que propicia ao trabalhador recuperar suas forças gastas na atividade laboral no período mais adequado à sua saúde e, além disso, propicia ao trabalhador oportunidade de manter o convívio familiar e social, usufruir do horário comercial, desfrutar de atividades lúdicas etc.

Anteriormente à Carta de 1988, o artigo 58 da CLT estipulava duração diária de trabalho de 8 horas e 48 horas semanais. Atualmente, o ordenamento

1 Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas-SP, Atualmente, cursando o Mestrado em Relações de Trabalho, Desigualdades Sociais e Sindicalismo na Faculdade de Sociologia da Universidade de Coimbra. Advogado. Email: [email protected] Art. 468 da CLT – Nos contratos individuais de trabalho só é lícita a alteração das respectivas condições por mútuo consentimento, e ainda assim desde que não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade da cláusula infringente desta garantia.3 Art. 9° da CLT - Serão nulos de pleno direitos atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação.4 Súmula 265 do TST.

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jurídico brasileiro prevê uma jornada padrão que orienta todo o setor dos trabalhadores, de 8 horas ao dia, totalizando 44 horas semanais, regulamentada pelo artigo 7°, XIII, CF/885. Entendemos que em relação à norma anterior ocorreu uma revogação parcial, uma vez que continua a ser de 8 horas o periodo padrão. A jornada de trabalho constitui uma fração diária de 7,20 horas, incorporada nesse valor o repouso semanal remunerado (RSR), o que totaliza 220 horas (7,20 horas X 30 dias = 220 horas) como nos mostra DELGADO (2008, p. 880). Por outro lado, juntamente com ela existem outras jornadas, específicas, que se aplicam apenas a uma determinada categoria, por exemplo, o conjunto dos bancários, ou aqueles que se submentem à sistemática especial de atividade ou organização do trabalho, como em turnos ininterruptos de revezamento.

O turno de revezamento ininterrupto vem evoluindo no ramo do Direito do Trabalho. Incialmente, em meados do Estado Novo, em 1940, ocorria uma discriminação jurídica entre as vantagens trabalhistas e os que exerciam essa jornada, pois, alguns direitos eram negados6. Na Carta Constitucional de 1946, os trabalhadores foram postos em pé de igualdade superando essa discriminação. Atualmente, com a Constituição de 1988, a majoritária jurisprudência7 entende que os turnos ininterruptos estão em vantagem jurídica em relação à jornada padrão.

Nas palavras do professor Delgado (DELGADO, 2008, p. 886), a jornada ininterrupta prejudica a saúde do trabalhador:

[...] é evidente que alternâncias bimestrais, trimestrais, e similares de horários também podem atender ao tipo jurídico constitucional, por provocarem intenso desgaste físico, psicológico, familiar e social ao trabalhador. [...] além disso, seria grosseiramente ilógico que a Constituição criasse jornada especial com o intuito fortemente protetivo, fundada até mesmo em considerações de saúde pública (a redução da duração do trabalho é o único meio de reduzir os malefícios causados por esse sistema ao organismo da pessoa que a ele se submete) [...] para colocá-la em contradição a outra norma de forte conteúdo protetivo e de saúde pública.

Como já visto, este modelo adotado tem como objetivo flexibilizar os direitos, reduzindo a participação do Estado na economia e exigindo a desregulamentação positiva, para que seja regulada pelas leis do mercado. Desta forma, podemos notar que as normas que um dia protegiam o trabalhador limitando sua jornada em 8 horas, hoje através de uma interpretação superficial e infundada, flexibilizam para mais, para além da jornada anteriormente sedimentada. Assim, direitos há muito tempo adquiridos, postos como necessários à saúde do trabalhador, hoje são suprimidos por artifícios tidos como legais e benéficos para ele, através de

5 Cabe observar que em 19 de maio de 1998, o Parlamento francês aprovou uma lei que reduz a semana de trabalho a 35 horas. Da mesma forma a Itália aprovou legislação semelhante.6 Alguns dos direitos negados eram a hora ficta e o adicional noturno.7 Processo: RR - 179/2005-013-17-00.1 Data de Julgamento: 07/10/2009, Relator Ministro: Aloysio Corrêa da Veiga, 6ª Turma, Data de Divulgação: DEJT 16/10/2009. “HORAS EXTRAORDINÁRIAS. COMPENSAÇÃO DE JORNADA. JORNADA 12 X 36. NORMA COLETIVA. VALIDADE. É válido o acordo de compensação de jornada para adoção do regime de 12 x 36 horas, mediante participação da entidade sindical, ainda que exceda a jornada limite de 10 (dez) horas de que trata o § 2º do artigo 59 da CLT, pois possibilita ao empregado, após uma jornada maior de trabalho, de doze horas, o descanso determinado, de trinta e seis horas, baseado na livre negociação havida entre as partes. Recurso de revista não conhecido.

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explicações superficiais. A jornada 12X36 é fruto do plurinormativismo jurídico existente em nosso

ordenamento. Ela não decorre do processo legislativo, ou seja, não há qualquer disposição normativa na CLT ou na Constituição Federal regulamentando-a, mas decorre de outra fonte, também de efeito erga omnes8, isto é da convenção ou do acordo coletivo, diciplinados na CF, artigo 7°, inciso XXVI. Entretanto, as disposições normativas negociadas entre sindicatos e empresas ficam vedadas de dispor sobre quaisquer assuntos como, direitos constitucionais, fundamentais, ou já garantidos na legislação, com a finalidade de diminuí-los. Desta forma é defesa a criação de normas coletivas que de alguma maneira gerem a degradação da pessoa humana, ou de suas condições de trabalho9.

Um dos pontos em que ocorre essa limitação está presente nas normas que regulamentam sobre saúde do trabalhador, descritas nos artigos 6°10 e 22511 da CF/88. Assim, nesse primeiro ponto, verificamos que a jornada de trabalho 12X36 não pode ser regulamentada por convenção/acordo coletivo, uma vez que ela gera prejuízo e não benefício para o operário. As profissões que mais se utilizam do regime 12X36 são do setor da saúde, entre plantonistas enfermeiros e médicos; também no setor de segurança, como de porteiros, agentes de segurança e de policias. Mesmo com finalidades distintas, os argumentos aqui enunciados servem tanto para um grupo como para o outro, e para todos os que têm como jornada de trabalho o regime convencionado ou não de 12X36, tendo em vista que os prejuízos decorrentes dessa jornada afetam o ser humano independentemente do seu ofício.

Uma pesquisa realizada pela doutora Marissol Bastos de Carvalho, sobre os problemas de saúde dos trabalhadores de enfermagem apresenta-nos constatações científicas sobre os prejuízos causados pelo aumento da jornada. A pesquisa foi realizada em um hospital integrado ao Sistema Único de Saúde (SUS) na cidade de São Paulo, com o objetivo de identificar as cargas a que estão expostos os trabalhadores de enfermagem, e compreender os processos de desgaste. O período de trabalho analisado foi o preponderante na área, ou seja, o regime de 12X36, desta forma, convergindo com o objeto da nossa pesquisa. Nas palavras de CARVALHO (2004, p. 142):

A jornada de trabalho para a equipe de enfermagem na Instituição ocorre em turnos fixos de 12 por 36 horas, tanto diurnos como noturnos. Não existe diferença entre os trabalhadores contratados pelo regime celetista ou cooperado. Os trabalhadores realizaram um esquema de rodízio entre si para o intervalo do almoço. Em situações, que há necessidade de um plantão extra, o contratado pelo regime celetista recebe em banco de horas, enquanto o trabalhador cooperado, o pagamento em dinheiro. Na literatura sobre os malefícios da jornada de 12 por 36 à saúde dos trabalhadores, há controvérsias. Evidenciamos entre os

8 Que atinge toda uma coletividade, no caso toda uma categoria de trabalhadores ou os empregados de uma empresa.9 Art.16 – 1 da Convenção n° 155 da OIT.10 Diz o art. 6° da CF: “São direito sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção a maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta constituição”.11 Diz o art. 225 da CF: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

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trabalhadores do CH o quanto esta jornada é intensa. Por meio dos depoimentos dos trabalhadores, o número de folgas do trabalhadore contratado pelo regime celetista é igual à do trabalhador cooperado, ou seja, não há divergências entre a jornada. O que mais nos chamou a atenção nos relatos foi o não cumprimento dos critérios estabelecidos na elaboração da escala mensal, como ultrapassar sete dias de trabalho consecutivos sem folga. (grifos nossos)

Nesse trecho, extraído da pesquisa, é possivel notar que a soberania da norma é desrespeitada na prática das relações de trabalho, o descanso das 36 horas, essencial na argumentação daqueles que defendem a jornada por ser maior do que daqueles que trabalham 8 horas, é suprimido pela necessidade do atendimento aos pacientes, ou por ordens da chefia. Os trabalhadores se submetem aos comandos patronais pelo receio de perder o trabalho e ao atendimento por se deparar constantemente com outras pessoas hospitalizadas necessitando de ajuda. Esse contexto direciona, através de uma obrigatoriedade psicológica, o funcionário a extrapolar os limites dessa jornada. Desta forma, como é possivel argumentar favoravelmente a uma jornada responsável por gerar prejuízos a saúde, sofrimento psicológico, dores no corpo, e consequentemente para as pessoas que estão em contato com esses profissionais, pacientes/clientes, colegas de trabalho e chefe, família (marido, esposa e filhos), resulta em atendimento precário, sujeitando os que precisam de um diagnóstico a maiores possibilidades de erros, a atrito com os colegas de profissão e, no seio familiar, torna-se o local onde o profissional descarrega todo esse desgaste. Estes são os problemas habituais da jornada 12 por 36 quando desrespeitado o descanso, ocorre a potencialização dos sintomas os conflitos que, antes eram verbais, tornam-se físicos; os diagnósticos, que eram errados ou incompletos, efetivam-se por meio dos acidentes de trabalho; a estrutura familiar é corrompida ou deixada de lado, por causa de vícios adotados por esses trabalhadores, como forma de se esquivar ou se isolar desses problemas, na maioria, fumo e álcool.

Estas são as situações vivenciadas corriqueiramente por diversos setores da sociedade, como nos hospitais, na rede de segurança, tanto pública como privada, e nas rodovias por meio do transporte de cargas. Este contexto, de perversidades e atrocidades, a favor do qual, infelizmente a maioria jurisprudencial e doutrinária se posiciona, com base na mera alegação de que o descanso 12 por 36 é mais benéfico do que aquele propriciado pela jornada normal de 8 horas. Entendemos que acompanhar os ventos das novas tendências se torna uma árdua tarefa, uma vez que nosso país se acovarda perante os paradigmas, pois em vez de encetar esforços para melhorar a qualidade de vida do trabalhador, prefere optar em fazer uma mera homenagem formal, resgatando, diariamente, por meio de mais e mais processos trabalhistas, sobre a matéria de acidentes de trabalho, pedidos de horas extras; relembrar as crianças, mulheres e pais do início do século XX, obrigados a laborar em jornadas de 12, 13, 14 até 17 horas diárias.

Quando não é este o motivo, a diminuição dos salários se torna a válvula propulsora do descumprimento do descanso, que obriga os profissionais e similares

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a buscarem fontes de renda complementar, com todos os prejuízos já mencionados. Em uma análise geral, a forma do modelo econômico neoliberal, adotado no Brasil e na maior parte do mundo, obriga a empresa a potencializar as taxas de lucro, a fim de manter a competitividade. Para o contínuo crescimento, a empresa necessita reduzir os gastos, assim, o setor que gera a maior economia é o dos trabalhadores, que se potencializa pela violação dos seus direitos. Nessa pesquisa realizada pela doutora Marissol de Carvalho, numa das empresas integrada ao Sistema Único de Saúde, esta impõe aos seus funcionários um trabalho contínuo sem tempo para descanso. Obrigatoriamente, os profissionais que trabalham além das 12 horas diminuem a necessidade de contratação de outros funcionários. Os defensores dessa jornada argumentam em prol da continuidade dos serviços prestados. No livro do autor Mészáros (2008, p. 147) uma opinião importante sobre esse tema se mostra esclarecedora:

Ora, quem realmente quer às 35 horas semanais de trabalho, de Lionel Jospin? Por certo, não os empregadores da França, que alegam que isso elevará os custos de trabalho e reduzirá sua competitividade. Tampouco o contribuinte, que suspeita que terá de pagar impostos mais elevados para financiar o esquema. E, cada vez mais, nem mesmo os sindicatos, que temem que isso conduza à diminuição dos salários e dos direitos trabalhistas. E sequer os trabalhadores, cuja maioria espera continuar trabalhando tanto quanto antes, mas com mais turnos inoputurnos e hora não-sociais. Mesmo os desempregados, os supostos beneficiados no esquema, imaginam quantas vagas de trabalho serão efetivamente criadas, se é que alguma será criada. [...] O Sr. Jospin se encontra envolvido em um esquema em que nem mesmo ele – conforme boatos sussurrados – acredita.

A jornada de 12X36, realizada por meio de um acordo entre empresa e

sindicato beneficia somente um dos polos desta relação, o empregador, enquanto que o empregado é parte expropriada do seu direito de descanso. Impressionante como o Direito do Trabalho, ramo do Direito com maiores possibilidades de diminuição das desigualdades sociais, pode proporcionar tantas contradições. Portanto, mesmo que o descanso seja respeitado pela empresa e pelo trabalhador, ele não é suficiente para recuperar as forças desprendidas propiciar o convívio social e familiar. Desta forma a doutora Carvalho (2004, p. 143) descreve os danos causados por essa jornada.

Em relação às cargas ao que os trabalhadores de enfermagem estão expostos a todos os seus tipos, ou seja, às físicas, às fisiológicas, às biológicas, às mecânicas, às psíquicas e às químicas, estas são com muita frequência potencializadas pelas cargas psíquicas. (...) A intensificação do ritmo de trabalho ocorre pelo insuficiente número de profissionais para os pacientes, acrescido a isso diversas atividades a serem cumpridas que também são exigias pela chefia.(...) Foram relatados problemas de diferentes naturezas do desgate mental, como fadiga, estresse, insatisfação, desânimo, desmotivação, alteração de comportamento, choro, ansiedade, irritabilidade, raiva

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e abuso de alcool. (...) A pausa na jornada (intervalo de 36 horas) é insuficiente para recuperar o corpo da fadiga, que é intensa e que persiste no lar dos trabalhadores, sendo o repouso considerado como insuficiente. (...) No final da jornada de trabalho, a intensificação, o desânimo e a desmotivação podem estar associados com as relações multiprofissionais negativas e com a desvalorização do trabalhador. (...) O choro é uma válvula de escape bastante usada pelas mulheres. (...) Os TRE identificam que a irritabilidade está presente no cotidiano do trabalho como no retorno ao lar, onde a irritabilidade manifesta-se nos relacionamentos familiares, dificultando o convívio. Muitas vezes o trabalhador opta pelo retraimento para evitar conflitos como os episódios de agressividade dirigidos à família. (grifos nossos).

Essas são algumas das consequências da jornada acima do limite legal, listadas pela pequisadora. Como supracitado, o desgate mental não se restringe, somente, ao âmbito das relações de trabalho, por outro lado, ele persiste no retorno dos trabalhadores ao lar e nas relações interpessoais com os familiares. No mesmo sentido, a situação dos trabalhadores deste ramo chega a ser tão grave que os memsos passam a sofrer de burn-out, para o ser humano, profissional da área médica, deixando-o totalmente esgotado e sem energias. Como certificado na pesquisa de Marissol Bastos de Carvalho; (CARVALHO, 2004, p.148/149), algumas delas são:

O abuso de alcool é outra manifestação de desgate mental vivida por alguns trabalhadores e trazida pelo grupo. O abuso de álcool, assim como o estresse, também são percebidos pelos TRE, não apenas na equipe de enfermagem, pois enfatizam que os usuários de bebida alcoólica fazem-no fora do espaço institucional.A experiência da sessão foi atribuída como um momento de descanso da jornada, pelo simples fato de estarem sentados, e percebida como uma estratégia defensiva. Acreditamos que isto se deva à intensificação do ritmo de trabalho.Desse modo, podemos concluir como ocorre o processo de trabalho na Instituição. Pelas suas condições, os trabalhadores encontram-se expostos a todas as cargas de forma intensa e específica, gerando um processo de desgaste físico e mental tão intenso. Um desgaste mental que se aproxima do sofrimento psíquico, pela pontencialização da exposição à carga psíquica e não pelo convívio com o objeto de trabalho, como o senso comum nota, mas sim pelas condições de trabalho a que estão inseridos estes trabalhadores de enfermagem.

Portanto, é inconcebível como a jornada em questão possa ser considerada mais benéfica para o trabalhador e, desta forma, admitida como regramento coletivo válido; tal argumento não pode mais mascarar a real finalidade da permissividade desta norma, uma forma de flexibilizar os direitos trabalhistas, ensejando numa desregulamentação do direito do trabalho, em benefício da classe dominante. O trabalho se comporta como instrumento a serviço dos interesses de uma determinada classe, a elitizada. Os danos causados por essa estrutura de controle afetam muitas dimensões: a relação de trabalho, o ambiente familiar e

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degradam a saúde do ser humano. Esse ataque à integridade física e psíquica do trabalhador acaba por prejudicar a relação entre sujeito e objeto. O neoliberalismo já impõe um distanciamento entre esses dois componentes da relação de trabalho e o ataque à saúde do trabalhador agrava ainda mais essa relação, tornando o objeto cada vez mais impessoal em relação ao produtor, como se isso ainda fosse possível no capitalismo. A desmotivação, o sofrimento e as demais cargas psíquicas tornam a relação entre objeto e sujeito cada vez mais distantes, no que resulta em um número maior de acidentes, como visto atualmente no caso dos controladores de vôo, já que no decorrer do dia o trabalhador perde gradativamente a capacidade de concentração e reação. De acordo com a Magistrada Candy Florêncio Thome (THOME, 2008, p. 4) há diversas consequências do prolongamento da jornada:

Conforme Sebastião de Geraldo de Oliveira, o prosseguimento do labor causa, gradativamente, um aumento no calor corporal, aumento no consumo de calorias, gerando, cansaço e fadiga, que pode desenvolver para uma fadiga crônica ou até esgotamento. (...) José Augusto Rodrigues Pinto afirma que uma das causas do estresse laboral é o desequilíbrio do repouso e o alongamento das jornadas de trabalho.

Esse aumento da jornada, que supera o limite de 8 horas de trabalho,

diminui o rendimento dos trabalhadores em quase 50% no ambiente de trabalho, por consequência temos a elevação do número de acidentes decorrentes da falta de atenção, como sabiamente nos demonstra Süssekind (2000). Este aumento de erros cometidos em serviço decorrentes desse degaste desnecessário acaba por gerar um custo, na maioria das vezes transferido para toda a sociedade, através de aposentadorias e indenizações. A jornada de trabalho é um enlaço com o intuito de diminuição do salário, da saúde e por via indireta, de uma gama de direitos, como demonstra Süssekind (2000) e Souto Maior (2007).

Outro ponto a ser esclarecido refere-se à qual norma prevalece quando em confronto uma geral heterônoma justrabalhista com uma decorrente de negociação. Nesse sentido, o doutrinador e ministro do TST Maurício Godinho Delgado (2008, p. 85) questiona, “Em que medida as normas juscoletivas podem se contrapor (sic) às normas jusindividuais imperativas estatais existentes?” responde;

Pelo princípio da adequação setorial negociada as normas autônomas juscoletivas construídas para incidirem sobre uma certa comunidade econômico-profissional podem prevalecer sobre o padrão geral heterônomo justrabalhista desde que respeitados certos critérios autorizativos: a) quando as normas autônomas juscoletivas implementam uma padrão setorial de direitos superior ao padrão geral oriundo da legislação heterônoma aplicável; b) quando as normas autônomas juscoletivas transacionam setorialmente parceralas justrabalhistas de indisponibilidade apenas relativa (e não de indisponibilidade absoluta).

A legislação brasileira, através da Contituição Federal de 1988, artigo 7° XIII, flexibilizou a norma regulamentadora da jornada de trabalho, alterando a

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indisponibilidade absoluta existente para que seja de disponibilidade relativa. Assim, a interpretação dada pela majoritária jurisprudência é pela possibilidade, a partir da nova regulamentação, de ultrapassar o limite mediante acordo/convenção coletiva. Por outro lado, a norma infraconstitucional, trazida pela CLT em seu artigo 5912 amarra, estipulando um teto de 10 horas diárias. O primeiro critério exige que seja implementado um padrão superior pela norma coletiva em relação ao padrão geral da legislação heterônoma. No caso da jornada em análise, ocorre uma violação da legilação infraconstitucional, bem como, nenhum acréscimo para o trabalhador, pelo contrário, um prejuízo como será demonstrado a seguir.

Imprescindível reconhecer que a norma juslaboral estatal tenha como objetivo beneficiar ou proteger o trabalhador, uma vez que a desigualdade decorrente de uma sociedade dividida por classes proporciona consequências perversas para os trabalhadores. Assim, se a norma estatal não atende às necessidades da sociedade, a norma juscoletiva, em caso mais benéfico, deve prevalecer quando preservar ou melhorar as condições de trabalho. Assim quando a negociação diminui direitos ou gera prejuízos, deve a norma geral trabalhista prevalecer, uma vez que preserva direitos mínimos13. A Constituição visa à criação de uma ordem jurídica mais favorável ao trabalhor, artigo 7°14 da CF, e uma das formas de incentivar é permitir a pactuação entre empregador e empregado, desde que observado a legislação.

Mesmo assim, a jornada de 12 horas de trabalho por 36 de descanso é considerada legal, ou seja, uma total contradição entre normas e preceitos, contrariando, inclusive, os próprios princípios, como a segurança e medicina do trabalho, que proíbem a violação, alteração ou flexibiliazação de normas de segurança e medicina do trabalho, por meio de acordo/convenção coletiva. Entretanto, nem sempre foi assim. Inicialmente, em 1996, foi considerada irregular pela jurisprudência majoritária, porque praticada em violação à lei e, desta forma repudiada. Afinal, ela feria frontalmente a gramática da Constituição que estipula um teto de 44 horas semanais. Hoje, ela continua ferindo o mesmo texto da CF/88 e da CLT, e, em alguns pontos, de algumas OITs e tratados internacionais. Entretanto a jurisprudência se direcionou para o outro lado, o da legalidade, abrindo-se aos novos argumentos, consolidando um novo paradigma. Desta forma, a jornada 12X36 passou a ser permitida desde que previamente estipulada em acordo/convenção coletiva. Essa nova roupagem, classificada como razoável, é capaz de ludibriar os olhos de magistrados e operários que, numa análise superficial, ao verem um descanso de 36 horas, passam a acreditar que esta jornada é mais benéfica, em relação àquela tradicional que exige um trabalho diário de oito horas.

12 Art. 59 A duração normal do trabalho poderá ser acrescida de horas suplementares, em número não excedente de 2 (duas), mediante acordo escrito entre empregador e empregado, ou mediante contrato coletivo de trabalho.13 A OJ nº 30, do C.SDC/TST, “Nos termos do art. 10, II, “a”, do ADCT, a proteção à maternidade foi erigida à hierarquia constitucional, pois retirou do âmbito do direito potestativo do empregador a possibilidade de despedir arbitrariamente a empregada em estado gravídico. Portanto, a teor do art. 9º da CLT, torna-se nula de pleno direito a cláusula que estabelece a possibilidade de renúncia ou transação, pela gestante, das garantias referentes à manutenção do emprego e salário (DJ, 19.08.98)”. Desta forma, inadimissível que haja flexibilização de normas de ordem pública para pior, resultando prejuízo aos trabalhadores.14 Art. 7° da CF – São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outrso que visem à melhoria de sua condição social.

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Considerações FinaisEsta coleta de material nos levou à compreensão de que a proposição da

jornada 12 por 36h decorre de uma organização da classe elitizada, representada pelos industriais, com o objetivo de aumentar as taxas de lucro. Entendemos, ainda, que tais classes, seguindo a receita do Consenso do Washington, desregulamentariam através da flexibilização, o Direito do Trabalho, anteriormente estruturado com algumas garantias compensatórias. Uma delas, se não a mais importante, foi com relação à jornada de trabalho limitada em 8 horas, sendo autorizadas duas horas extraordinárias.

Formou-se, desta forma, um monstro jurídico que se enraizou na sociedade, na doutrina, em artigos jurídicos, no exercício da profissão e na jurisprudência, dando existência a esse regime. Desta forma, consolidou-se uma aura de legalidade, servindo aos interesses dos dominantes. Pretendemos comprovar, através desta pesquisa, e dissolver essa aura, que nada mais é do que uma neblina, responsável por obscurecer o nosso discernimento, impossibilitando muitos de chegar à condição de compreensão da verdadeira realidade.

Portanto, buscamos, através dos dados coletados, criteriosamente, comprovar que esta jornada não é benéfica para o trabalhador, como pensava ou defende a maioria dos juristas, dos trabalhadores, dos sindicatos e de muitos empregadores. Verificamos, que os danos são graves e desestruturam o convívio social, a saúde e a identidade dos que são obrigados a submeterem-se a essa jornada, como consequência. O homem é passivel de erros, mas eles podem ser potencializados se precarizadas as condições de trabalho e a saúde do trabalhador. Esta é a condição acarretada pela jornada 12 por 36h, expor o trabalhador a maiores riscos de acidente, à distituição de sua condição humana, por meio da fadiga e do desgaste mental, remunerando sempre menos.

Assim, podemos dizer, neste contexto deturpado: o momento em que estamos vivendo, com a história reduzida a motivos econômicos, exige que tenhamos a coragem, muitas vezes dolorida, de apresentar os conflitos, para compreendê-los, e assim decifrá-los, e reencontrarmos a nossa identidade como juristas, há muito tempo perdida, de modo a desvendar as armadilhas implantadas no tema da jornada 12 por 36h, e, com o conhecimento criar e empunhar as armas para transformá-la ou superá-la. Essa foi nossa permanente motivação, esperamos ter contribuído para que o Direito do Trabalho reencontre outra vez sua identidade, na salvaguarda e rigorosa apologia da vida, identidade e interesses das classes trabalhadoras. Somente assim essa área e campo da prática social encontraria as justificativas de sua existência e singularidade, institucional e política.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASBRASIL. Lei nº 5.452, de 1º de Maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 9 de Ago. 1943.CARVALHO, M. B. O trabalho de enfermagem psiquiátrica e os problemas de saúde dos

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trabalhadores. São Paulo. Universidade de São Paulo Escola de enfermagem. 2004.DELGADO, M.G Curso de direito do trabalho. São Paulo. Editora LTr. 2008.MÉSZÁROS, I. O desafio e o fardo do tempo histórico. São Paulo. Editora Boitempo. 1ª Edição. 2008. SOUTO MAIOR, J. L. Curso de direito do Trabalho vol. I, teoria geral do direito do trabalho. In Varios autores. São Paulo. Editora LTr. 2007.SOUTO MAIOR, J. L. Revezamento 12 x 36. São Paulo. Coletânia Trabalhista IOB. Edição n°17. – Vol. III. Setembro de 2005.SÜSSEKIND A. Instituições de direito do trabalho. São Paulo. Editora LTr. 19ª Edição. 2000.THOME, C. F. Absoluta invalidade do regime de 12 X 36. São Paulo. Editora RDT 14-07/3. Julho de 2008.

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LEI Nº 11.340/06: CONCEPÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DE GÊNERO E DE DIREITO

TAYLISI DE SOUZA CORRÊA LEITE 1

EULLER XAVIER CORDEIRO2

ResumoAtravés dos contornos históricos e sociológicos do gênero, torna-se possível compreender a evolução de garantias jurídicas positivadas como produtos de intensas lutas feministas, inseridas na dinâmica dos conflitos sociais que marcaram a modernidade recente. Preconizando-se que apenas uma concepção pós-estruturalista de gênero como pauta do feminismo é que pode garantir uma real emancipação subjetiva da mulher na atualidade, intenta-se demonstrar que as garantias legais e sua evolução passam por um substrato teórico acerca das concepções sobre gênero. A partir de uma análise da evolução dos direitos das mulheres no Brasil, este trabalho pretende lançar luzes para a edificação de uma nova visão acerca dos direitos da mulher como direitos fundamentais.PALAVRAS-CHAVE: Gênero; Feminismo; Direitos da mulher; Brasil; Direitos humanos.

IntroduçãoSempre que se trata de processos discriminatórios, há uma perversidade

inerente à sua dinâmica, que insiste em negar sua existência concreta. Por subterfúgios como a piada ou escamoteamentos mais diversos, a sociedade não escancara a discriminação. Por isso, o primeiro desafio para a superação da exclusão e afirmação de direitos consiste no escancaramento das demandas. No Brasil, isso é ainda mais contundente, tendo em vista nossa mitografia democrática, calcada nas fantasias da cordialidade e do pacifismo, e mascarada na veleidade dos tratamentos.

É patente que nenhuma prática discriminatória está calcada em diferenças biológicas efetivamente. Na realidade, tomam-se por subterfúgio alguns marcadores físicos e/ou culturais para se constituir uma diferença sociocultural, ou seja, não é a biologia que estabelece o parâmetro discriminatório – ela apenas funciona como mais um elemento tomado para se erigir padrões de normalidade e aceitação, subjugação e empoderamento. No caso das mulheres, a diferença biológica é bastante significativa, e, especialmente pelas demandas relacionadas à sexualidade, tem servido para constituir espaços sociais que a mulher pode ou não pode ocupar desde os tempos mais remotos.

As práticas de subjugação da mulher remontam à antiguidade e perduram até os dias presentes, apesar da modernidade capitalista esclarecida ter prometido igualdade. Muito embora lutas sociais, principalmente, durante o século XX, tenham

1 Professora universitária. Mestre em Direitos Fundamentais pela Unesp-Franca. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Tutela Penal dos Direitos Humanos (NETPDH).2 Advogado. Mestrando em Direitos Fundamentais pela Unesp-Franca. Membro do Núcleo de Estudos Tutela Penal dos Direitos Humanos (NETPDH).

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encontrado êxito relativo no que diz respeito à positivação jurídica de direitos da mulher, como a própria declaração de 1948, e as convenções internacionais, as construções simbólicas que perfazem a cultura das relações intersubjetivas continuam situando a mulher no lugar da subjugação.

A despeito dos direitos positivados em documentos legislativos mais diversos, a exclusão persiste, e a perversidade das imposições culturais mina qualquer possibilidade concreta de dignidade humana feminina. Nesse sentido, as garantias positivadas e a evolução legislativa precisam acompanhar o desenvolvimento histórico-social e corresponder aos anseios das mulheres na construção de sua dignidade e dos direitos humanos.

Aspectos históricos e sociológicos da luta feministaPodemos dizer, didaticamente, que o feminismo ocidental é sociologicamente

dividido em três grandes gerações. Na primeira geração do feminismo o objeto primordial das lutas por igualdade refere-se ao direito de votar, de ser proprietária, realizar contratos e ao direito da mulher em escolher o homem com quem iria dividir a vida, escapando das imposições patriarcais e dos casamentos arranjados. As sufragistas ou sufragetes do Reino Unido e Estados Unidos da América ficaram conhecidas por sua luta civil, que contrariava a crença pseudorracional fundada em autores modernos de que a mulher era incapaz de tomar decisões argutas para reger sua vida patrimonial e os destinos republicanos. Ao fim, conseguiram chamar a atenção dos políticos varões por meio de atos extremos, como tentativas de suicídio, e, ao fim de uma luta dolorosa e árdua, obtiveram algum êxito. Diz Leda Maria Hermann que: “A efervescência dos ideais democráticos no século XIX fez da batalha pelo direito ao voto o impulso fundamentais dos movimentos das mulheres. Equiparadas aos doentes e deficientes mentais e às crianças, as mulheres eram consideradas intelectualmente incapazes de exercer direitos políticos”. (HERMANN, 2008, p. 68).

Assim, a estratégia de luta mais eficaz é também a mais extrema e a primeira conquista parcial das mulheres ocidentais deu-se após a morte de uma manifestante, que se atirou à frente do cavalo do rei da Inglaterra. A partir de então, com a aprovação do Representation of the People Act, em 1918, estabeleceu-se o voto feminino no Reino Unido, definitivamente impulsionado pela luta social da primeira onda do feminismo. O advento da lei britânica motivou mulheres de diversos outros países a lutarem pelo sufrágio em todo o ocidente.

No Brasil, a luta pela emancipação feminina fortaleceu-se no Rio Grande do Norte após uma mulher conseguir judicialmente o reconhecimento de seu direito de votar, e foi ganhando impulso em todo o país, levando o voto feminino a ser regulamentado em 1934. Nos Estados Unidos da América, a luta foi ainda mais contundente. O primeiro grupo norte-americano organizado era a “Sociedade Antiescravagista Norte-Americana”, que tinha por mote principal a luta abolicionista, liderado por Susan B. Anthony, Lucretia Mott, Elisabeth Cady Stanton, Lucy Stone e Frances Wright. Além desta, a luta trabalhista foi crucial. Uma manifestação reprimida com brutal virulência, no dia 08 de março de 1857, matou mais de uma centena de mulheres carbonizadas. Apesar de parecer que o “Dia

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Internacional da Mulher” é uma dádiva da evolução humana, ele é fundado nesse acontecimento específico, porque simboliza a luta feminina por direitos prometidos nas revoluções burguesas, através de sangrentas contendas sociais levadas a cabo por mulheres ocidentais até os dias presentes. Muito diferente do que se propaga, a “evolução histórica” dos direitos da mulher não é mero desdobramentos de um processo civilizatório modernizante contínuo. Em 1848, após o episódio na fábrica têxtil, a Convenção de Sêneca Falls reuniu-se para discutir a luta por direitos de igualdade de propriedade e salário, guarda dos filhos, autonomia para efetuar contratos e capacidade para ser sujeito processual ativo, além da principal bandeira do movimento: o sufrágio feminino. Em 1949, criou-se a “Associação Nacional dos Direitos da Mulher”, mas a luta das sufragistas norte-americanas só obteve êxito em 1920, com a Emenda Constitucional nº. 19 (CASTRO, 1983, p. 174).

Já a chamada segunda onda do feminismo representa o período da atividade feminista que teria começado no início da década de 1960 e durado até o fim da década de 1980, com o Women’s Liberation Front (Frente de Liberação das Mulheres), a queima de sutiãs e os protestos por liberação sexual. Situa-nos Eric Hobsbawm:

(...) a partir da década de 1960, começando nos EUA, mas espalhando-se rapidamente pelos países ricos do Ocidente e além, nas elites de mulheres educadas do mundo dependente – mas não, inicialmente, nos recessos do mundo socialista – encontramos um impressionante reflorescimento do feminismo. Embora esses movimentos pertencessem, essencialmente, ao ambiente de classe média educada, é provável que na década de 1970, e sobretudo na de 1980, uma forma política e ideologicamente menos específica de consciência feminina se espalhasse entre as massas do sexo (que as ideólogas agora insistiam que devia chamar-se “gênero”), muito além de qualquer coisa alcançada na primeira onda de feminismo. (HOBSBAWM, 2003, p. 306).

A nova perspectiva adotada consistia em apartar a mulher de sua identificação necessária com o papel social de guardiã do lar e da família, e da obrigatoriedade identitária de ser esposa e mãe para se reconhecer mulher. A mais ilustre representante dessa geração é Simone de Beauvoir, com sua obra emblemática “O segundo sexo”. Afirma Helio Gallardo:

Podría decirse, em el extremo, que hasta la década de los sesenta el siglo XX parecía dominado y caracterizado por las movilizaciones anticoloniales. Desde los setenta, en cambio, adquirem resonancia y projección las luchas de la mujer com teoría de género y los movimientos ecologistas (...) la vivencia de la opresión de género em la relación de pareja y de família ayudó a descodificar el mundo imperante como un orden generalizado de violaciones e violencias. La dominación patriarcal y masculina agredía desde luego a las mujeres en él ámbito ‘íntimo’ del hogar (...) Internalizado el patriarcado por mayorías femeninas (...) hacia verse desde fuera de sí mismas a

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las mujeres, las llevaba a torturarse, a buscar transformarse (o al menos pretenderlo) en objeto de seducción, de ‘encantamiento’. La raíz libidinal de la violencia y sujeción resultó tal vez más vistosa que la tercermundista para trizar la cultura falsamente universalista de patriarcas, varones e corporaciones, pero sin conseguir vincularla decisivamente con la dominación geopolítica y económica.” (GALLARDO, 2005, P. 43).

As feministas desejavam obter liberdade para formular qualquer escolha profissional sem serem achacadas por uma sociedade patriarcal tradicionalista, mas era central também a luta pelo reconhecimento da sexualidade feminina, a fim de se romper com a visão tradicional religiosa binária de sexo pecaminoso ou sexo para procriação. A luta por liberdade sexual significou um ponto fulcral no processo de luta por emancipação feminina, que não está superado – ainda em decurso, mobiliza debates até os dias atuais. É também nesse momento que se inicia o amadurecimento das discussões acerca da discriminação das mulheres, quando o “gênero” vai surgir como uma categoria reivindicada pelo próprio movimento feminista. Afirma Guacira Lopes Louro:

A emergência da categoria [gênero] representou, pelo menos para aquelas e aqueles que investiram na radicalidade que ela sugeria, uma virada epistemológica. Ao utilizar gênero, deixava-se de fazer uma história, uma psicologia, ou uma literatura das mulheres, sobre as mulheres e passava-se a analisar a construção social e cultural do feminino e do masculino,atentando para as formas pelas quais os sujeitos se constituíam e eram constituídos, em meio a relações de poder. O impacto dessa nova categoria analítica foi tão intenso que, mais uma vez, motivou veementes discussões e mesmo algumas fraturas internas. Também as relações de gênero passaram a ser compreendidas e interpretadas de muitas e distintas formas, ajustando-se (a) ou interpelando referenciais marxistas, psicanalíticos, lacanianos, foucaultianos, pós-estruturalistas. (LOURO, 2002, p. 15).

Naquele momento, estabelecer a diferença era estratégico para uma luta por reconhecimento, suplantando a falsa isonomia formal que vigorava desde as revoluções burguesas. Por isso, não sem razão, as feministas da segunda geração buscavam seu referencial teórico nos escritos marxistas.

Ocorre que, com o desenrolar da luta feminista na segunda metade do século XX, outras demandas começaram a surgir, impulsionando os substratos teóricos do feminismo a romper com a categorização marxiana. Epistemologicamente, estudiosas como Judith Butler e Joan Scoth vão procurar ultrapassar as limitações do materialismo histórico, entendendo que a análise do sexismo precisava incluir categorias como “classe” e “trabalhador”, “homem” e “mulher”, numa perspectiva conjunta, suplantando as limitações de uma visão marxista mais ortodoxa, dando origem à categoria sociológica “gênero”.

Toda vez que se invoca o “gênero” como uma categoria absoluta, “a priori”, está-se cometendo um erro profundo. Muito embora toda a nossa cultura esteja

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fundada numa dicotomia entre homens e mulheres, sustentáculo da sociedade patriarcal, os referenciais identitários que separam masculino e feminino, situando cada qual em categorias apartadas e estanques, é um construto sócio-cultural de salutar importância quando se deseja compreender o fenômeno do sexismo. Nesse passo, a marcação do “gênero”, como uma nova possibilidade discursiva emancipatória da subjetividade, é uma tentativa de suplantar a hierarquização. Todas as categorizações desse sistema binário possuem o escopo de situar homens e mulheres em papeis sociais específicos, e esse dualismo, que, no ocidente, remonta à tradição judaico-cristã, não foi alterado na modernidade. Na realidade, a mitificação de um sujeito universal só veio reforçar o não-lugar daqueles que não puderam se enquadrar nesse referencial abstrato que suportou toda a positivação moderna de direitos subjetivos. Ensina Lauretis:

A primeira limitação do conceito de “diferença(s) sexual(ais)”, portanto, é que ele confina o pensamento crítico feminista ao arcabouço conceitual de uma oposição universal do sexo (a mulher como a diferençado homem, com ambos universalizados; ou a mulher como diferença pura e simples e, portanto, igualmente universalizada), o que torna muito difícil, se não impossível, articular as diferenças entre mulheres e Mulher, isto é, as diferenças entre as mulheres ou, talvez, mais exatamente, as diferenças nas mulheres. (LAURETIS, 1994, p. 207).

A partir dessa nova concepção, que traz a diferença para o interior da

luta, permite-se uma visão plural acerca das possibilidades de se experienciar o feminino, de ser mulher e se saber mulher. A modernidade negou subjetividade à mulher, indo buscar fundamento em discursos biologistas, afeitos à razão, pois já não mais se podia afirmar que a mulher era um ser inferior pela vontade de deus. A racionalidade moderna não comporta outras mitificações que não a de si mesma, e, de algum modo, precisava sustentar as teias sociais construídas pela fantasmagoria da religiosidade, enquanto interessantes para a manutenção de estruturas concentradas de poder, de acordo com os interesses do Capital.

Ocorre que as dinâmicas relacionais incrustadas no seio social já se pautavam em relações hierárquicas de poder, que passavam também pela diferença de sexo, idônea a atribuir papeis sociais distintos a homens e mulheres, perfazendo sempre o empoderamento do masculino. Essas dinâmicas remontam à formação moral do ocidente e foram apreendidas pela modernidade capitalista de forma muito específica, afastando a mulher do patamar de subjetivação universalizante de direitos e da razão, aproveitando-se de sua subjugação cultural para explorar a mão de obra feminina mais drasticamente do que a masculina, e utilizando as investidas psíquicas de necessidade de aceitação pelo masculino para fomentar o consumismo feminino exacerbado.

A despeito das mulheres ocidentais se julgarem mais avançadas no que diz respeito à efetivação de direitos, garantias e inclusão, deve-se levar em conta a influência do sistema econômico capitalista na dinâmica de sua inserção social. Ainda assim, embora tenhamos significativas conquista nos âmbitos político e

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econômico, com mulheres exercendo altos cargos executivos no meio corporativo e munidas de incontestável poder político, como o caso da atual primeira ministra alemã, da atual presidenta do Brasil, e da emblemática “dama de ferro” neoliberal inglesa das décadas anteriores, no desenrolar do trato comezinho, ainda há a mulher para casar e a mulher para se fazer sexo (não só no imaginário masculino, tendo em vista que as próprias mulheres são fiscais de um comportamento feminino “adequado”).

Por isso, as feministas da contemporaneidade invocam um sujeito do feminino mais abrangente e emancipado, descolado do sexo biológico, para abarcar concepções de gênero amplas e plurais, bem como um patamar de luta menos apartado de uma perspectiva emancipadora do humano. Eis a lição de Teresa de Lauretis, ao propugnar um novo “sujeito do feminismo”:

Com a expressão “o sujeito do feminismo” quero expressar uma concepção ou compreensão do sujeito (feminino) não apenas como diferente de Mulher com letra maiúscula, a representação de uma essência inerente a todas as mulheres (...), mas também como diferente de mulheres, os seres reais, históricos e os sujeitos sociais que são definidos pela tecnologia do gênero e efetivamente ‘engendrados’ nas relações sociais. (LAURETIS, 1994, p. 217).

Esse sujeito será constituído discursivamente pelo próprio movimento feminista, ou seja, não pode ser um dado, uma categoria “a priori”, nem universal, mas deve ser necessariamente uma construção discursiva, o que, também, de maneira nenhuma, pode significar um determinismo lingüístico, mas um processo constante de inclusão das diferenças. É a partir dessa revisão categorial e do privilégio da possibilidade de uma construção discursiva que poderemos, então, corroborar um novo sujeito, para que os direitos da humana possam finalmente efetivados.

Conquistas de direitos das mulheres no BrasilComo ocorreu no resto do mundo ocidental, a luta por direitos das mulheres

coincide com outros movimentos, como o republicano e o abolicionista; porém, aqui, a positivação normativa se deu de maneira bastante atrasada em relação aos países de capitalismo central. No período colonial, a legislação adivinha da metrópole, o que acabou por atrasar o desenvolvimento moderno do direito brasileiro, e, consequentemente, a positivação de garantias para as mulheres. Conquanto, mesmo após sua independência, o Brasil permaneceu importando modelos estrangeiros, que não guardavam relação com os aspectos sociais da realidade nacional (PIMENTEL, 1978, p.14). A primeira constituinte, convocada por D. Pedro I, excluía negros e mulheres da condição de cidadãos. Com a proclamação da república, em 1981, essa situação não foi alterada, senão vejamos, segundo Cardoso:

A nova Assembléia Nacional Constituinte continuava discriminando as mulheres, os analfabetos, os negros, praças e religiosos. Da mesma

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forma, o poder econômico continuou sendo abusivo, e os deputados eleitos representavam os interesses dos fazendeiros, da nascente burguesia industrial e financeira, e dos oficiais militares. (CARDOSO, 1986, p.78).

O reconhecimento da condição de cidadã e o direito ao sufrágio feminino só vieram em 24 de fevereiro de 1932, desde que a mulher fosse casada, viúva ou solteira com renda própria. Em 1934, leciona Silvia Pimentel, que essas restrições foram eliminadas e: “pela primeira vez, o constituinte brasileiro demonstra sua preocupação pela situação jurídica da mulher proibindo expressamente privilégios ou distinções por motivo de sexo” (PIMENTEL, 1978, p. 17). A Constituição de 1937 (a “polaca”) silenciou sobre o tema, mas, em 1946, a obrigatoriedade em votar foi estendida às mulheres. Em 1962, foi promulgado o “Estatuto da mulher casada” (Lei 4121/62), que reconheceu sua capacidade civil, a reserva de patrimônio na comunhão de bens e propiciou o “desquite” – já que o Código Civil de 1916 estabelecia ser o homem o “chefe” da sociedade conjugal e, em relação à capacidade, equiparava as mulheres aos silvícolas, menores e pródigos. Com a Constituição de 1967, nossa constituição pós-declaração da ONU de 1948, foi garantida a igualdade para todos perante a lei, sem distinção de sexo. No dia 18 de dezembro de 1979 foi realizada a Convenção sobre Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher, adotada pela Resolução 341/80 da Assembleia Geral das Nações Unidas. As determinações dessa convenção objetivavam, clara e primordialmente, a busca da plena igualdade material entre seres humanos do sexo masculino e feminino, não só formalmente perante a lei, mas efetivamente na educação, nos direitos trabalhistas, e nos direitos e garantias individuais. Foi ratificada pelo Congresso Nacional brasileiro em 1994.

Então, com a Carta Maior de 1988, foi reconhecido constitucionalmente que a discriminação contra a mulher viola os princípios da igualdade e da dignidade humana, dificultando sua participação na vida política, social, econômica e cultural do país. Posteriormente, tivemos a Convenção de Belém do Pará em 1994, ratificada pela ordem interna em 1995, que trouxe a definição de violência doméstica contra a mulher, como a que tenha ocorrido dentro da família ou unidade doméstica ou em qualquer outra relação interpessoal, em que o agressor conviva ou haja convivido com a vítima no mesmo domicílio ou comunidade. Ainda, reconhece a violência de gênero perpetrada por qualquer pessoa, na comunidade, local de trabalho, estabelecimentos educacionais de saúde ou qualquer outro lugar, e mesmo aquela perpetrada ou tolerada pelo Estado.

Apenas doze anos após a convenção, o Brasil editou uma lei com vistas a coibir concretamente a violência contra a mulher. No dia 07 de agosto de 2006 foi publicada a Lei n.º 11.340, uma revolução jurídica na luta pelos direitos das mulheres, que entrou em vigor em 22 de setembro de 2006, alcunhada como Lei Maria da Penha, embora tal denominação não tenha sido feita em seu texto, em homenagem a uma mulher brasileira que sofreu inúmeros abusos e violências de seu companheiro e lutou por obter justiça.

O objetivo primordial da lei é coibir a violência contra a mulher, praticada

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no âmbito doméstico e/ou decorrente de relações afetivas, recrudescendo o tratamento penal dado ao agressor, que perdeu os benefícios previstos na Lei 9.099/95. A violência de gênero é, segundo a maioria dos autores, aquela praticada pelo homem contra a mulher, oriunda da desigualdade biológica entre os sexos, mas, mais do que isso, da desigualdade social, que estanca papeis sociais possíveis para seres humanos de um ou outro gênero, que não necessariamente se confunde com o sexo biológico, mas se aproxima das manifestações sociais de papeis femininos ou masculinos.

O masculino define sua identidade social como superior à feminina, estabelecendo uma relação de poder e submissão, que culmina no domínio do corpo da mulher, violentando-o. Conquanto, essa percepção está profundamente calcada numa perspectiva binária do gênero, que só concebe duas formas de ser e estar no mundo – como homem e como mulher.

Ainda, a Lei Maria da Penha (11.340/2006) previu a implementação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher com o apoio das equipes de atendimento multidisciplinares. Quase sete anos após a publicação da Lei, essa importante política pública é timidamente desenvolvida. Segundo a rede de atendimento à mulher3, há apenas cinquenta e cinco Juizados instalados no país, e, especificamente no Estado de São Paulo, há apenas um na capital paulista. Dada a complexidade das situações concretas envolvendo as violências contra as mulheres, faz-se imprescindível um atendimento multidisciplinar, para além da parcial perspectiva jurídico-penal. A estruturação dos Juizados com a equipe de atendimento multidisciplinar insere-se dentro de uma política de Estado que permite a promoção e a defesa dos direitos humanos das mulheres, num permanente processo de luta por direitos e abertura de espaços. O Estado brasileiro ainda não viabiliza a abertura e desenvolvimento dos processos e espaços de luta pela dignidade feminina e a vagarosa criação dos Juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher com equipes de atendimento multidisciplinar é uma prova disso.

Conforme vimos tentando demonstrar neste trabalho, as generalizações e universalizações acerca do gênero podem constituir um primeiro passo para a positivação de garantias fundamentais, como ocorreu com a lei 11.340/06. Porém, é apenas um primeiro passo. A partir daí, outras batalhas precisam ser travadas, alargando-se a idéia inicial de violência contra a mulher, para novas visões sobre o que pode constituir uma violência de gênero, incluindo-se no rol de proteção, por exemplo, casais homoafetivos que reproduzem os padrões de dominação sexista no interior de seu relacionamento, com uma clara divisão de papeis sociais.

Por isso, enquanto setores conservadores da sociedade insistem em alegar que a edição da lei feria o princípio constitucional da igualdade, membros da magistratura progressista realizam hermenêuticas extensivas da lei, ampliando seu âmbito de aplicação para casais homoafetivos4, para agressores do sexo feminino5, e sem vínculo formal com a vítima6.

3 Disponível em http://www.brasil.gov.br/secoes/mulher/cidadania-e-seguranca/rede-de-atendimento. Acesso em 31/01/2013.

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Portanto, sem dúvida, a lei trouxe avanços significativos no combate à violência contra a mulher no Brasil, mas requer implementação completa e efetiva, além de alargamento hermenêutico. Segundo a agência de pesquisas do Senado7 – dataSenado – para 60% das mulheres, a proteção melhorou depois da lei, e, para 95%, uma lei específica sobre o tema é de extrema importância. De 2007 a 2011, a percepção entre as mulheres de que a lei não é respeitada caiu de 49% para 41%. Obviamente, o caráter preventivo da lei penal possui significativas limitações, de modo que a edição da lei não possui o escopo de acabar com a violência doméstica, porém, não se pode negar a necessidade de tratamento criminal diferenciado, pois o Estado não pode se eximir de suas obrigações constitucionais.

Ocorre que a positivação normativa não significa que o texto da lei será integralmente respeitado, muito menos que a violência irá cessar. Nesse sentido, afirma Maria Berenice Dias:

Ninguém duvida que a violência sofrida pela mulher não é exclusivamente de responsabilidade do agressor. A sociedade ainda cultiva valores que incentivam a violência, o que impõe a necessidade de se tomar consciência de que a culpa é de todos. O fundamento é cultural e decorre da desigualdade no exercício de poder e que leva a uma relação de dominante e dominado. Essas posturas acabam sendo referendadas pelo Estado. Daí o absoluto descaso de que sempre foi alvo a violência doméstica. (DIAS, 2008, p.15).

É oportuno frisar-se, também, que o princípio da igualdade não significa que um Estado democrático constitucional (como o nosso) deva tratar a todos igualmente, pois essa isonomia formal apenas manteria as desigualdades reais. Por isso, o Estado tem a obrigação de promover políticas de isonomia, de modo que o princípio da igualdade é material, corresponde à obrigação estatal de tratar desigualmente os desiguais para promover igualdade. Essa postulação é relevante, pois quando se editou a Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha), muitas vozes reacionárias se levantaram, afirmando que os homens também deveriam ter proteção, por fidelidade ao princípio da igualdade. Felizmente, este não foi o entendimento do Pretório Excelso, especialmente, no que se refere à inaplicabilidade da Lei 9.099/958.

Mais recentemente, o PLC 122/069, em tramitação no Congresso Federal brasileiro, viria no mesmo sentido, ampliando o rol de tutela da Lei 7.716/89, que só abarca a discriminação racial. Com a alteração, qualquer discriminação em razão de gênero, sexo e orientação sexual, além da raça, seria protegida legalmente. E a proteção é muito específica quando se fala em discriminação: o PLC 122/06 visa

4 Apelação Cível Nº 598362655, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Ataídes Siqueira Trindade, Julgado em 01/03/2000; Apelação Cível nº 70012836755, Sétima Câmara Cível, Tribunal do RS, Relatora: Maria Berenice Dias, Julgado em 21/12/2005; 5 TJMG; 3ª Câm. Crim; Rec. em Sentido Estrito 1.0145.07.414517-1/001; Rel. Des ANTÔNIO CARLOS CRUVINEL; Data do Julgamento: 15/12/2009; 6 STJ, CC Nº 103.813/MG; CC 90767/MG; TJRS Conflito de Jurisdição Nº 70041105339, Segunda Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS; TJDF - RCL RCL 96029720108070000 DF 0009602-97.2010.807.0000.7 http://www.senado.gov.br/noticias/lei-maria-da-penha-traz-avancos-mas-violencia-domestica-ainda-preocupa.aspx. Acesso em 31.01.2013.8 STF, ADC 19 e ADI 4.424.

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coibir o impedimento de acesso a oportunidades de emprego, estabelecimentos, educação e serviços, em função de discriminação. Trata-se de uma proposta de lei muito específica, que só possui o escopo de atender os ditames de nossa ordem democrática e da Constituição Federal. Não é nada revolucionário, mas um mero cumprimento da ordem vigente, e, ainda assim, encontra tanta resistência. A aprovação do projeto em questão será mais um instrumental na árdua batalha por igualdade e emancipação feminina no Brasil, para que possamos combater a opressão histórica das mulheres e sua exclusão em nossa sociedade. A conversão deste projeto em Lei Complementar é uma agenda de lutas por direitos humanos presente que a sociedade e, especialmente, os juristas precisam abraçar.

Considerações FinaisA construção teórica de uma concepção de “gênero” que transforma a

mulher num sujeito político feminista universal emula os padrões totalitários do esclarecimento, corroborando uma nova excrescência da racionalidade instrumental. Esse sujeito “mulher”, como sujeito de direitos, não é capaz de absorver demandas de outros grupos étnicos e culturais que não se coadunem à universalização. As mulheres latino-americanas possuem demandas por direitos muito diversas daquelas das mulheres norte-americanas ou europeias, assim como as mulheres negras possuem questões incompreensíveis para as brancas, e as lésbicas reivindicam direitos que não estão na pauta das heterossexuais. Essa concepção particular precisa ser levada em conta num processo de construção de direitos, pelo que as universalizações são maléficas se tomadas como categorias “a priori”.

Então, as universalizações só podem ser tomadas como uma plataforma primeva de lutas, uma tela sobre a qual se pode pintar as mais diversas matizes de reivindicações consoantes as especificidades de cada sujeito e as idiossincrasias de cada grupo. É nesse sentido que o movimento feminista atual se pauta numa concepção pós-estruturalista, sem, contudo, criar uma nova categoria universal que inviabilize direitos.

Um feminismo pós-estruturalista precisa, portanto, partir de uma compreensão da constituição identitária do sujeito, compreendendo que a formação subjetiva está pautada em relações de poder, de modo que o escamoteamento das diferenças no interior de cada grupo de gênero (entre “homens” e “mulheres”) alimenta essas relações de poder e cristaliza as hierarquias. É justamente essa constituição universal das identidades num sistema binário que suporta a padronização de comportamentos atinentes a um ou outro grupo (isso é coisa de homem, aquilo é coisa de mulher).

Uma concepção verdadeiramente pós-estruturalista precisa desconstruir, inclusive, esses referenciais identitários opressores, subvertendo os padrões, para que o sujeito se constitua em sua própria experiência no mundo. Para isso, uma ordem verdadeiramente democrática deve primar para que todas as condições

9 Disponível em http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=79604. Acesso 31/01/2013.

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sejam favoráveis a essa experiência, permitindo-se a liberdade de escolha, num entendimento amplo acerca da proteção à dignidade da pessoa humana.

É imprescindível, nesse sentido, que os movimentos feministas e os movimentos por direitos humanos realizem um diálogo com a antropologia cultural, segundo a qual a biologia não é um dado determinante, mas, ao contrário, é a cultura que constrói nossa relação com a biologia. Nesse passo, o feminismo pós-estruturalista vai assimilar a compreensão culturalista da civilização, afirmando que o próprio corpo é uma construção cultural, e que, num processo emancipatório de gênero, o sujeito precisa ser dotado da liberdade da construção dialética de sua corporalidade.

Ressalte-se que não se refuta a existência do sexo biológico, mas que a identidade de gênero se dê pela introjeção subjetiva das aferições que o sujeito formula acerca de sua própria estrutura corporal, libertando-o dos cerceamentos discursivos exteriores hegemônicos acerca do que é “ser homem” ou “ser mulher”.

Por esses contornos, temos duas perspectivas cruciais para a efetivação dos direitos da mulher com máxima eficácia. De um lado, a aplicação enérgica da legislação penal que visa coibir a violência de gênero, junto com a implementação ampla e eficiente dos postos especializados de atendimento à mulher, que têm previsão legal, mas não se tornaram compromissos de governo, na forma de políticas públicas. De outro lado, a superação cultural da perspectiva binária e dicotômica da existência humana, que separa homens e mulheres e coloca estas últimas em posição subalterna.

A primeira perspectiva tem caráter pós-violatório, isto é, só alcança as demandas quando a mulher já foi violentada. Destarte, apesar de reconhecermos a importância da persecução criminal e do recrudescimento da lei para tutelar os direitos da mulher, temos que este não é o melhor caminho para uma tutela genuína e intergral. O direito positivo e seus mecanismos vinculantes e sancionadores são salutares, mas não podem ser os únicos. A outra perspectiva privilegia uma proteção pré-violatória, isto é, não cuidar do problema quando ele já ocorreu (através de sanção), mas evitar que ele aconteça. Aqui é que entra a revolução cultural propugnada pelo feminismo pós-estruturalista.

Então, a proposta deste trabalho é que se lute em duas frentes combinadas. Numa, pela positivação e efetivação de direitos subjetivos das mulheres e repressão à violência; noutra, pela eliminação cultural de todas as formas de abuso e discriminação. Acreditamos ser possível avançarmos nos debates acerca dos direitos humanos das mulheres, pois é somente com a garantia e a efetivação dos direitos da humana, isto é, de uma mulher que se saiba mulher por se autorreconhecer como tal através de sua própria experiência feminina (e de um homem que não se perceba superior à mulher), que, enfim, poderemos erigir uma verdadeira ordem justa e democrática.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASCARDOSO, Irede; CARDOZO, José Eduardo Martins. Caminhos da constituinte: o direito da mulher na nova constituição. São Paulo: Global, 1986.

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CLÁUSULAS ABUSIVAS NOS CONTRATOS DE ADESÃO REGIDOS PELO CÓDIGO CIVIL SOB A

PERSPECTIVA DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA

DANIEL OLIVEIRA DA SILVA 1

ResumoO presente trabalho tem como objetivo realizar um estudo acerca dos contratos de adesão sob a perspectiva do princípio da boa-fé objetiva. Inegável que o Código Civil de 2002 trouxe ao operador de direito toda uma principiologia de modo a humanizar e nortear - com ética e lealdade - todas as relações interpessoais. Partindo desse pressuposto, mister se faz analisar o instituto contratual sob a égide do princípio da boa-fé objetiva verificando o conflito entre tal princípio e as cláusulas abusivas contidas nos contratos de adesão. Outrossim, diante desse paradigma, o presente estudo tenta apontar os reflexos da existência das cláusulas abusivas, tanto na economia, quanto na sociedade, bem como as consequências jurídicas e a forma de resolução desse conflito. Para alcançar o objetivo proposto, a metodologia utilizada nesta pesquisa se baseia em análise doutrinária e o direito comparado. Por fim, pretende o presente estudo apontar soluções lógicas e jurídicas para a superação do conflito existente entre as cláusulas abusivas contidas nos contratos de adesão e o princípio da boa-fé objetiva.PALAVRAS-CHAVE: Contrato; Adesão; Princípio da Boa-fé Objetiva;

IntroduçãoNo denominado mundo globalizado, onde a rapidez é o aspecto

predominante nas relações interpessoais, os contratos assumem importante papel porquanto trazem segurança jurídica às atividades negociais. No “universo empresarial”, grandes corporações, com o intuito de resguardar seus interesses econômicos, dar mais celeridade a suas operações e reduzir seus respectivos custos, valem-se de instrumentos contratuais standard, repletos de cláusulas abusivas que, por vezes, acabam por desvirtuar completamente a essência do ajuste.

Em tais avenças, chamadas pela doutrina e pela legislação de “contratos de adesão”, os deveres da parte aderente extrapolam o razoável, a evidenciar a provável ocorrência de infração ao princípio da boa-fé objetiva que há de nortear as relações interpessoais. Ademais, os contratos de adesão quase sempre abrigam em seu bojo condições adversas ao aderente. Essa situação gera uma incomensurável problemática do ponto de vista social e econômico, haja vista que os desdobramentos da abusividade causam reflexos que extrapolam as partes envolvidas na relação contratual.

Assim importante analisar as cláusulas contidas nos contratos de adesão para verificar se coadunam com o princípio da boa-fé objetiva, esculpido no artigo 422 do Código Civil.

1 Advogado. MBA - Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) de Campinas-SP. Pós-graduando em Direito Civil e Processo Civil pelas Faculdades Integradas Metrocamp-Campinas-SP. Advogado-Sócio do escritório jurídico Barbosa Duarte e Portugal de Oliveira – Sociedade de Advogados, com sede em Campinas- SP. Email: [email protected].

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Conceito: Contratos, contratos de adesão e cláusulas abusivas Inegável que a disciplina contratual moderna vem sofrendo inúmeras

alterações, particularmente resultantes da denominada constitucionalização do direito privado, de modo que o direito civil, que outrora se limitava a regular as relações estritamente privadas, passa, agora, a ter como missão harmonizar as relações privadas com os princípios trazidos pela Carta Magna:

Quebra-se então, a rigidez de certos princípios, atenuam-se certos conceitos e noções, admite-se a ingerência de fatores externos nos contratos, limitando-se sensivelmente a participação da vontade individual no vinculo contratual.Modificam-se, pois, as estruturas tradicionais, insinuam-se novas posições, alteram-se dados da realidade, aos quais se tem de ajustar o Direito, à luz do qual se tem manifestado o dirigismo nos Estados Modernos. (BITTAR; BITTAR FILHO, 2003, p.122)

Tais alterações são visivelmente constatadas quando se observa que o universo contratual, outrora um oásis inquestionável do liberalismo econômico, agora possui uma principiologia que tem como missão humanizar as relações interpessoais e até mesmo propagar a justiça social.

Essa nova visão do direito civil é fruto de um Estado Social que delega a todos os seus membros a missão de alcançar o bem comum, de forma que o indivíduo, enquanto tal, deve buscar em suas relações interpessoais atingir metas e agir de acordo com os princípios e valores esculpidos na Carta Magna. Essa repartição de responsabilidade posta pela nova perspectiva do direito civil nos leva a crer que a posição de destaque dos contratos na economia, para muitos o mais importante instrumento de transmissão de riquezas (RODRIGUES, 2006, p. 11), deve harmonizar as relações privadas com os interesses sociais.

Por esses motivos, observa-se que o Legislador Pátrio, quando da criação do Diploma Civil, erigiu o princípio da boa-fé objetiva – na forma de cláusula geral - com objetivo social, que abaixo será estudado.

Contratos e contratos de adesão: conceito e disciplina legal A disciplina contratual moderna possui em seu bojo uma enormidade de

tipos contratuais e de contratos atípicos, diferentes formas de contratar e distintos agentes capazes de contratar, bem como farta legislação aplicável ao caso concreto. Nosso estudo, todavia, se restringirá aos contratos de adesão nas relações de direito civil, excluindo-se as hipóteses de relação de consumo.

Feita a ressalva acima, passemos a análise dos contratos sob a perspectiva do Código Civil de 2002. Segundo Maria Helena Diniz (2003, ps. 23 e 24):

O contrato constitui uma espécie de negócio jurídico, de natureza bilateral ou plurilateral, dependendo, para sua formação, do encontro da vontade das partes, por ser ato regulamentador de interesses privados. Deveras, a essência do negócio jurídico é a auto-regulamentação dos

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interesses particulares, reconhecida pela ordem jurídica, que lhe dá força criativa. Num contrato, as partes contratantes acordam que se deve conduzir de determinado modo, uma em face da outra, combinado seus interesses, constituindo, modificando ou extinguindo obrigações. O contrato repousa na ideia de um pressuposto de fato querido pelos contraentes e reconhecido pela norma jurídica como base do efeito jurídico perseguido. Seu fundamento é a vontade humana, desde que atue conforme a ordem jurídica. Seu habitat é o ordenamento jurídico. Seu efeito é a criação, modificação ou extinção de direitos e obrigações, ou melhor, de vínculos jurídicos de caráter patrimonial.

A doutrina pátria assim descreve essa modalidade contratual adesiva:

Contratos de Adesão, nome que lhe deu Saleilles, é aquele em que todas as cláusulas são previamente estipuladas por uma das partes, de modo que a outra, no geral mais fraca e na necessidade de contratar, não tem poderes para debater as condições, nem introduzir modificações, no esquema proposto. Este último contraente aceita tudo em bloco ou recusa tudo por inteiro. (RODRIGUES, v. 3, 2006, 44)

Verifica-se, assim, que o conceito de contrato de adesão chega, em tese, a contrariar o conceito de contrato propriamente dito. Tal assertiva é feita, haja vista a limitada, ou melhor, quase nula manifestação de vontade da parte mais fraca, denominada aderente, quando da celebração de contratos de adesão. Sob essa perspectiva, surge o primeiro questionamento em nosso trabalho: Contratos de adesão são de fato contratos?

A resposta, a tal questionamento é sim. Ocorre, todavia, que para justificar a existência desse tipo contratual, busca-se o fundamento na interdisciplinaridade da ciência jurídica, razão pela qual Enzo Roppo (1947, ps. 7-8), com a propriedade que lhe é peculiar, ensina que a análise dos contratos deve ser realizada em conjunto com a economia e ciências correlatas, de modo que o objeto de estudo seja compreendido sob as suas diversas acepções e perspectivas:

Mas como acontece com todos os conceitos jurídicos, também o conceito de contrato não pode ser entendido a fundo, na sua essência íntima, se nos limitarmos a considerá-lo numa dimensão exclusivamente jurídica – como se tal constituísse uma realidade autônoma, dotada de autônoma existência nos textos legais e nos livros de direito. Bem pelo contrário, os conceitos jurídicos – e entre estes, em primeiro lugar, o de contrato - refletem sempre uma realidade exterior a si próprios, uma realidade de interesses, de relações, de situações econômico-sociais, relativamente aos quais cumprem, de diversas maneiras uma função instrumental. Daí que para conhecer verdadeiramente o conceito do qual nos ocupamos, se torne necessário tomar em atenta consideração a realidade econômico-social que lhe subjaz e da qual ele representa a tradução cientifico jurídica: todas aquelas situações, aquelas relações, aqueles interesses reais que estão em jogo, onde quer que se fale de <<contrato>> (o qual, nesta sequência, já se nos não afigura identificável com um conceito pura e exclusivamente jurídico.)

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Partindo desse pressuposto e realizando a análise dos contratos sob a perspectiva jurídica e econômica, conclui-se que a existência dos contratos de adesão se justifica no universo negocial de um mundo globalizado. Além dessas características, é de se notar que grandes companhias se utilizam de contratos de adesão standard, seja para contratar ou para serem contratadas. A justificativa, nesse contexto, é a mesma: i) padronização dos instrumentos contratuais para melhor gerenciá-los; ii) redução de custos operacionais; iii) controle dos riscos assumidos na operação; iv) segurança jurídica.

Evidente que, quando da criação desses contratos de adesão standard, o operador do direito acaba por definir um regramento extremamente protetivo, de modo que o aderente finda por se curvar a uma série de obrigações acessórias que fogem do escopo do objeto contratual e o tornam deveras oneroso para si. Tais obrigações são criadas por meio de cláusulas de legalidade duvidosa que ferem o sinalagma que deve reinar nesse tipo de contrato. Essas cláusulas, comuns no universo negocial, são denominadas pela doutrina de abusivas, conforme abaixo veremos.

Cláusulas Abusivas: conceito e forma As cláusulas abusivas são a consequência lógica do fato de uma das partes,

utilizando do seu poderio econômico, impõe a sua vontade à outra (aderente). Nesse sentido: “são aquelas que, inseridas num contrato, possam contaminar o necessário equilíbrio ou possam, se utilizadas, causar uma lesão contratual à parte a quem desfavoreçam” (GAMA, 2001, p. 108). Não obstante, Enzo Roppo (1947, p. 317), ao se deparar com cláusulas abusivas contidas nos contratos de adesão afirma que:

[...] as empresas predisponentes fazem deste seu poder de determinação unilateral e arbitrário do conteúdo das relações contratuais um uso vexatório em prejuízo dos aderentes; as cláusulas uniformes impostas a estes últimos são, em regra, conformadas de modo a realizar exclusivamente os interesses da empresa, garantindo-lhe vantagens a que correspondem, a cargo da contraparte, riscos, ônus e sacrifícios bem mais gravosos do que aqueles que lhe deveriam caber [...]

Pelo acima exposto, podemos afirmar, destarte, que as cláusulas abusivas podem se manifestar de diferentes formas nos contratos de adesão, desde a criação de obstáculos à rescisão de contratos até a retenção de contraprestação do aderente, em contratos de trato sucessivo, de forma unilateral. Verifica-se, por oportuno, que a abusividade resta hialinamente demonstrada quando as obrigações acessórias acabam por onerar demasiadamente o aderente. Ou seja, além das obrigações principais, que constituem a essência do contrato, o aderente acaba se sujeitando a obrigações que destoam da natureza do negócio por serem, para ele, extremamente custosas - financeiramente - e de difícil realização – faticamente.

Outra característica das cláusulas abusivas, é que, além de exporem o sujeito a quem foram impostas condições contratuais extremamente desvantajosas,

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acabam por constranger - fator psicológico - o aderente a cumprir integralmente a avença, mesmo que isso signifique sua ruína. Esclarecemos: pela leitura dos contratos de adesão, conclui-se que, na hipótese de o aderente não conseguir adimplir a integralidade de suas obrigações (principais e acessórias) ou na de, em determinado lapso temporal, optar pela rescisão contratual, haverá a incidência, no caso concreto, de várias cláusulas contratuais que o onerarão demasiadamente. Assim, é de suma importância a análise do princípio da boa-fé objetiva, para verificar sua essência, alcance e efeitos quando da análise do instituto contratual bem como a dicotomia existente entre o citado princípio e as cláusulas abusivas.

Princípio da boa-fé objetiva – conceito, manifestação e concretude A disciplina contratual possui princípios basilares que devem ser

observados quando da celebração de contratos. Ainda que a doutrina pátria, via de regra, reconheça cinco princípios contratuais básicos (i) pacta sunt servanda, ii) autonomia da vontade, iii) relatividade dos efeitos, iv) boa-fé objetiva e v) função social), para escopo do nosso trabalho, nos atentaremos, exclusivamente, ao princípio da boa-fé.

Princípio da boa-fé objetiva: conceito e características Segundo o que ensina a melhor doutrina, boa-fé objetiva pode ser

conceituada como:

[....] um dever de comportamento leal, cuja aferição se dá no exame das relações concretas. Nessa esteira, pode-se não apenas vinculá-la à noção de justiça contratual, mas também à noção constitucional de tutela da dignidade da pessoa humana.Se a pessoa somente pode ser considerada em suas relações de intersubjetividade, e é nessas relações que se dá a realização de sua dignidade, é obvio que há um dever por parte dos sujeitos, sob o risco de ofensa a dignidade do outro, a manterem um comportamento leal. De outro lado, liga-se a boa-fé, também, ao princípio da solidariedade. Trata-se de uma imposição que se refere não só ao direito dos contratos, mas que nesse ramo, por certo, - dada a noção de que no contrato há ínsita a ideia de cooperação entre ambas as partes – encontra um ambiente ideal para sua aplicação (RAMOS, Org., 2002, p. 32).

Assim, nas relações interpessoais, em verdade, o que se espera das partes, ainda que seus interesses sejam conflitantes, é tão somente que haja lealdade. A boa-fé deve permear os negócios jurídicos ao longo de toda a relação negocial: i) antes – tratativas iniciais, ii) durante – execução do objeto do contrato, iii) após: obrigações remanescentes, agindo a parte com diligência e honestidade perante a parte contrária.

Destaca-se, por oportuno, que o princípio da boa-fé não é um fator impeditivo para a celebração de contratos; pelo contrário, tal princípio é como uma chama que ilumina as partes durante todo o caminho percorrido por elas – as etapas contratuais – auxiliando-as a ter clareza do que cada uma pode, legitimamente, esperar da parte contrária, de modo que o afastamento da chama que ilumina esse

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caminho torna-se sinônimo de afastamento da tutela do ordenamento jurídico. Outrossim, mister se faz observar que, ao elevar a boa-fé objetiva ao

patamar de princípio contratual, o Legislador Pátrio, por outro lado, não o definiu – como uma regra –, deixando dessa forma, tal princípio conformado como uma cláusula geral de direito. Não obstante, pode-se afirmar que tal técnica legislativa, dá maior amplitude à zona discricionária do operador de direito; nesse sentido, um autor contemporâneo, discutindo tais aspectos, afirma: “legislar por cláusulas gerais quer dizer deixar ao juiz, ao interprete, uma maior possibilidade de adaptar a norma às situações de fato” (PERLINGERI, 2008, p. 237).

Tepedino (2003, p. 19) pondera a esse respeito que cláusulas gerais são (os destaques não estão no original):

Normas que não prescrevem uma certa conduta mas, simplesmente, definem valores e parâmetros hermenêuticos. Servem assim como ponto de referência interpretativo e oferecem ao intérprete os critérios axiológicos e os limites para aplicação das demais disposições normativas.

Disso temos que o princípio da boa-fé objetiva, por ser exteriorizado na forma de cláusula geral, possui como característica a mobilidade, pois sua aplicação se deve exclusivamente à análise que faça o operador do direito do caso concreto. A interpretação da cláusula geral da boa-fé objetiva, todavia, não fica aberta ao arbítrio do operador do direito; pelo contrário, deve ser realizada harmonizando-se com toda a principiologia do ordenamento jurídico pátrio, em especial, com a Lei Maior e o Diploma Civil, de modo que se possa dar a adequada concretude a tal cláusula.

Inegável, dessa forma, que o princípio da boa-fé objetiva, além de resguardar as expectativas legítimas das partes, está intimamente relacionado com a possibilidade de realização de justiça social. Esclarecemos: numa relação estritamente privada, a boa-fé objetiva tem a missão de guiar as relações contratuais de modo que os abusos sejam repelidos e, em ato contínuo, a relação contratual seja adequada aos ditames do direito constitucional e do Diploma Civil. Nesse sentido:

A boa-fé objetiva não se furta de também guardar relevante papel nesta perspectiva de justiça, pois, no sentido antes aventado, funciona como “[...] antecâmara do princípio da justiça contratual [...]”, vale dizer, da equidade, situando-se na própria base da comutatividade contratual, pois inibidora de um comportamento que, v.g., faça incluir no contrato cláusulas agora lidas como abusivas e que imponham ou mesmo sugiram um distanciamento econômico entre as partes e as obrigações pecuniárias (não equivalentes) que assumiram. A justiça contratual, destarte, se baseia na equivalência econômica, e mais adiante, na boa-fé objetiva (NALIM, 2008, 145).

Assim sendo, a análise dos contratos e suas cláusulas não deve ser realizada através única e exclusivamente da busca pela vontade das partes; essa análise vai além, a atenção ao princípio da boa-fé – constatação de estarem presentes no caso

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concreto os deveres de lealdades e honestidade – deve ser o foco do operador do direito.

O Princípio da boa-fé objetiva X cláusulas abusivas nos contratos de adesão Até o presente momento, observamos que as cláusulas abusivas contidas

nos contratos de adesão são fruto da imposição do elo economicamente mais forte na relação jurídica contratual, em detrimento dos aderentes. Nesse contexto, resta evidenciada a existência de uma dicotomia entre as cláusulas abusivas e o princípio da boa-fé objetiva. Enquanto a boa-fé objetiva busca humanizar as relações internegociais, norteando-as com princípios éticos e sociais, as cláusulas abusivas, por outro lado, tutelam interesses exclusivamente econômicos de apenas uma das partes. Desta feita, mister se faz ressaltar as consequências – diretas e indiretas – trazidas pela incidência das cláusulas abusivas nos contratos de adesão e, consequentemente, seus reflexos nas relações interpessoais.

Não obstante, somos instados a questionar: Quais as consequências no universo empresarial e social das cláusulas abusivas? Como solucionar o conflito existente entre as cláusulas abusivas inseridas nos contratos de adesão e o princípio da boa-fé objetiva? Tais são os questionamentos que abaixo pretendemos trazer à baila.

Cláusulas abusivas: consequências Para verificarmos as consequências trazidas pelas cláusulas abusivas nos

contratos de adesão, no caso concreto, basta imaginarmos um singelo exemplo: Um contrato de prestação de serviços onde se estipula que a remuneração do prestador não será reajustada – ainda que a vigência desse instrumento seja de 5 (cinco) anos. Para denúncia desse ajuste, o Contratado (prestador de serviço) deve conceder aviso prévio de 180 (cento e oitenta) dias, além de arcar com o pagamento de valor previamente estipulado que ultrapassa o montante total do contrato. Não obstante, é facultado ao Contratante (tomador de serviços) efetuar a retenção da contraprestação dos serviços, na hipótese de inadimplemento contratual de qualquer tipo ou espécie.

Ressalta-se que, o encaminhamento jurídico lógico acima exposto é extremamente comum em contrato de adesão – cláusulas acessórias extremamente onerosas, acrescidas de dificuldades para a rescisão ou denuncia dos contratos e pesadas multas - o que evidencia, por óbvio, a quebra do sinalagma na relação contratual. A hipótese acima pode significar, sem sombra de dúvidas, a ruína do pequeno empresário como reflexo direto da incidência das cláusulas abusivas, haja vista que, não raras vezes, este não possui condições econômicas e financeiras para arcar com todas as condições abusivas estipuladas nos contratos de adesão.

Quanto aos reflexos indiretos das cláusulas abusivas, se verifica que há agentes, estranhos à relação contratual estabelecida entre as partes, que são afetados pelos nefastos efeitos das cláusulas abusivas, os quais, no nosso exemplo, vão de fornecedores até os empregados do prestador de serviços (aderente). Assim sendo, temos que os reflexos das cláusulas abusivas na economia e na sociedade

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são como uma pedra arremessada em uma lagoa: não é apenas o ponto específico onde a pedra cai que sofrerá seu impacto (efeito direto); pelo contrário, toda a lagoa será afetada pelo deslocamento da água (efeito indireto), o que demonstra a importância do presente tema.

Como solucionar o conflito existente entre as cláusulas abusivas inseridas nos contratos de adesão e o princípio da boa-fé objetiva?

Por todo acima exposto é possível afirmar, peremptoriamente, que a existência de cláusulas abusivas nos contratos de adesão acaba ferindo diametralmente a principiologia esculpida no Código Civil, em especial a boa-fé objetiva por conta da impossibilidade de convivência das cláusulas abusivas com o dever de lealdade e a eticidade preconizada pelo legislador nas relações interpessoais.

Notório que o ordenamento jurídico brasileiro não pode se sujeitar a tais situações, de forma que o legislador, então, criou diferentes mecanismos para o operador de direito confrontar as cláusulas abusivas quando da sua manifestação, seja na relação de consumo ou nas relações de direito civil. Em se tratando de contratos regidos pelo Código Civil Brasileiro, o operador do direito, ao se defrontar com as cláusulas abusivas contidas em determinado contrato de adesão, deve, sem sombra de dúvidas, buscar o princípio da boa-fé objetiva como mecanismo para extirpar a injuridicidade das condições abusivas estabelecidas instrumento contratual.

Como já afirmado acima, o princípio da boa-fé objetiva está normatizado na forma de uma cláusula geral, podendo, dessa forma, se adequar á situação de fato para fazer justiça ao caso concreto. Ocorre que a aplicação do princípio da boa-fé objetiva, contudo, não pode ser feita através de um raciocínio meramente lógico. Nesse sentido:

Dessa forma, o juiz, ao decidir sobre conflitos nos contratos, vai ter obrigatoriamente de averiguar a presença da boa-fé naquela relação jurídica. Não deverá apoiar-se no silogismo clássico e matemático, mas, ao contrário, usará do raciocínio do tipo dialético, num vai-e-vem entre fato, valor e norma até chegar a concreção pedida pelo direito (FERNANDES, Org., 2009, p.48).

Assim, do conflito existente entre o princípio da boa-fé objetiva e as cláusulas abusivas, a consequência jurídica que será preconizada pelo operador de direito, uma vez que é a única que se harmoniza com a nova principiologia contratual é a declaração de nulidade das cláusulas abusivas.

A fundamentação para tal raciocínio encontra embasamento jurídico na ofensa do art. 422 do Código civil Brasileiro, que traz, consequentemente, a inequívoca incidência do artigo 2.035, parágrafo único, do referido diploma, senão veja-se: (destaques não são do original)

Art. 2.035. A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos

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antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução.Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos (BRASIL, 2002).

Destacamos, por oportuno, que a declaração de nulidade por contradição ao princípio da boa-fé objetiva pode englobar tanto as cláusulas abusivas quanto o contrato como um todo. A aplicação do princípio da boa-fé objetiva, então, servirá como mecanismo para restabelecer o sinalagma da situação jurídica contratual, de modo que essa atuação do Estado – intervenção direta na “vontade das partes” – terá como intuito humanizar as relações jurídicas contratuais.

Instrumentos contratuais leoninos não se coadunam com a prática jurídica moderna; o controle de custos e o poderio econômico não podem servir de sustentação para que uma das partes (aderente) da relação jurídica estabelecida por meio de contrato de adesão seja colocada em situação de risco. Conforme se assevera: (destaques não são do original)

Compete ao Estado, também no campo jurídico-privado, proteger os sujeitos em situação deficitária de capacidade de defesa dos interesses próprios. Fá-lo-á com recursos a instrumentos de direito ordinário. Onde este apresente lacunas de protecção inconstitucionais, o juiz está autorizado a cumprir essa tarefa, designadamente através do desenvolvimento judicial do direito (RIBEIRO, 2005, p. 11).

Destacamos, por oportuno, que as cláusulas abusivas contidas nos contratos de adesão além de contrariar o princípio da boa-fé objetiva (art. 422 do Código Civil) não deixam de ser um exercício abusivo de direito. O abuso do direito, segundo o que ensina a melhor doutrina, pode ser conceituado como a atuação que contraria a boa-fé, a moral, os bons costumes ou os fins econômicos e sociais da norma, consoante o que lembra Venosa (2005, p. 587). Aplicando-se a conceituação supra ao objeto do nosso estudo, observa-se, nessa seara, que as cláusulas abusivas contidas nos contratos de adesão representam, para todos os efeitos, um abuso da liberdade contratual, com bem assevera Joaquim de Souza Ribeiro (2005, p. 13):

E, por outro lado, não é desapropriado em falar-se a respeito de um abuso da liberdade de contratar. Sabendo nós que o abuso do direito não se restringe aos direitos subjectivos, propriamente ditos, abarcando antes todas as posições activas, incluindo as faculdades jurídicas, compreender-se-á a propensão de alguma doutrina em situar nesse campo o regime de controlo do conteúdo.

A prática do abuso de direito, por meio do abuso da liberdade contratual, ressalta-se é veementemente combatida pelo ordenamento jurídico pátrio, conforme se observa pela leitura dos arts. 187 e 927, do Diploma Civil:

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Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.(...)Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. (BRASIL, 2002)

Reconhecendo as cláusulas abusivas contidas nos contrato de adesão como abuso de direito (ilícito civil), haverá a incidência do artigo 187 do Código Civil, de modo que, a consequência para tanto, uma vez verificado que o aderente sofreu prejuízos pecuniários, é o surgimento do dever de indenizá-lo – aplicação do artigo 927 do Código Civil. Dessa forma, o Estado protege aquele que é afetado diretamente pelos reflexos das cláusulas abusivas (Aderente) e reprime o praticante do abuso de direito.

Pelo acima exposto, concluímos que a utilização do regramento destacado é suficiente para extirpar qualquer quebra do princípio da boa-fé objetiva, lealdade e eticidade, de modo a restabelecer o sinalagma contratual, bem como reparar todos os danos causados por essa relação jurídica desproporcional – viés econômico.

Considerações Finais Verificamos que as cláusulas abusivas contidas nos contratos de adesão

contrariam a principiologia expressa no Código Civil, em especial o princípio da boa-fé objetiva, haja vista que representam clara ofensa à lealdade e eticidade nas relações interpessoais. Tal conduta não se coaduna com os valores estipulados no ordenamento jurídico pátrio.

Lembramos que o direito não pode servir de mero instrumento de controle dos detentores do poder econômico. Sua função primordial e propagar a justiça social, de modo que o bem comum, previsto na Lei Maior, se concretize. Assim sendo, as cláusulas abusivas nos contratos de adesão representam um obstáculo a ser superado pelo operador do direito. As consequências das cláusulas abusivas nos contratos de adesão são inúmeras; aceitar que prevaleçam sobre a principiologia esculpida no ordenamento pátrio, em especial sobre o princípio da boa-fé objetiva, é transferir à sociedade todas as consequências e prejuízos que as tais cláusulas trazem – sejam eles diretos ou indiretos.

Para a superação desse obstáculo, destarte, o operador do direito deve utilizar do princípio da boa-fé objetiva, uma vez verificada a cláusula abusiva no contrato de adesão, o que ocasionará a sua declaração de nulidade, reestabelecendo-se assim o sinalagma na relação contratual.

A declaração de nulidade, todavia, não é o único efeito trazido pelo ordenamento pátrio. Em nosso estudo, resta hialinamente demonstrado que, na hipótese de danos causados ao aderente pelo exercício de direito abusivo (ilícito

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civil) estipulado por cláusulas abusivas em contratos de adesão, surge o dever de indenizar àquele que causou o dano, de modo a reparar todos os prejuízos verificados.

Desse modo, a aplicação do princípio da boa-fé objetiva, quando da análise das cláusulas abusivas contidas nos contratos de adesão, acaba sendo um importante instrumento criado pelo legislador para humanizar as relações interpessoais, pois, mesmo que não contenha a solução para a resolução do conflito, aponta o caminho a ser traçado para sua solução.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASBITTAR, Carlos Alberto, BITTAR FILHO, Carlos Alberto. Direito Civil Constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003.BRASIL, Código Civil Brasileiro - Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002.DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais. São Paulo: Editora Saraiva, 2003, vol. 3.FERNANDES, Wanderley (Org.). Fundamentos e Princípios dos Contratos Empresariais. São Paulo: Editora Saraiva, 2007. GAMA, Hélio Zaghetto. Curso de Direito do Consumidor. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2001.NALIM, Paulo. Do Contrato Conceito Pós Moderno (Em busca de sua formulação na perspectiva civil – constitucional). Curitiba: Editora Juruá. 2008.RAMOS, Carmem Lucia Silveira (Org.). Direito Civil Constitucional – Situações Patrimoniais. Curitiba: Editora Juruá, 2002. RIBEIRO, Joaquim de Souza. O controle do conteúdo dos contratos: uma nova dimensão da boa-fé. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), v. 42, 2005.RODRIGUES, Silvio. Dos Contratos e das Declarações Unilaterais da Vontade. São Paulo: Editora Saraiva, 2002, vol. 3.ROPPO, Enzo. O Contrato. Coimbra: Editora Almedina, 2009.TEPEDINO, Gustavo. A Parte Geral do Novo Código Civil: Estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2003.VENOSA, Silvio Salvo. Direito Civil – Parte Geral. São Paulo: Editora Atlas, 2005, vol. 1.

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CLÁUSULAS ABUSIVAS NO DIREITO DO CONSUMIDOR NO BRASIL E NA ARGENTINA

EWERTON MEIRELIS GONÇALVES 1

ResumoA defesa do consumidor estabelecida na América Latina, principalmente, a partir da década de 90 do século XX, incluiu tratamento específico para as chamadas cláusulas abusivas. Imperiosa a análise da legislação dos diversos países, sobretudo daqueles com maior trânsito comercial e daqueles que compõe um mesmo bloco econômico. Brasil e Argentina figuram como dois dos principais países da América do Sul. Comparação entre a regulamentação dos direitos do consumidor em ambos os países, notadamente frente às cláusulas abusivas.PALAVRAS-CHAVE: Direito do consumidor; Cláusulas abusivas; Direito comparado.

Hodiernamente, o número de demandas propostas por consumidores na busca de alteração de contratos firmados com fornecedores é muito grande2. A prática forense tem demonstrado ser extremamente comum a defesa, por parte dos fornecedores, da prevalência daquilo que foi estabelecido no contrato – pacta sunt servanda. Neste artigo, inicialmente, iremos traçar, ainda que brevemente, os aspectos históricos mais relevantes da formação dos contratos. Após, serão estabelecidas as diretrizes da regulamentação dos contratos, no Brasil e na Argentina, a partir da vigência das leis que estabeleceram a proteção ao consumidor. Esta análise terá como foco a normatização quanto às cláusulas abusivas. Por fim, será analisada a eventual necessidade de harmonização ou unificação do direito destes dois países.

O direito romano não prestigiou o consensualismo. Ao reverso, o contrato tinha caráter extremamente formal, exigindo para sua formação a dicção de palavras singelas, mas imprescindíveis3. Para além das palavras, era possível, como ainda hoje ocorre, a exigência de entrega de objeto de um contratante a outro4. Em um como em outro caso, a ausência destes elementos descaracterizava a formação do contrato, podendo significar simples pactum5.

1 Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, juiz eleitoral do Tribunal Regional Eleitoral do Estado de São Paulo, mestre em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus de Franca.2 Neste sentido: TEIXEIRA, Fernando. STJ pode dar fim a avalanche sobre contratos bancários. JusBrasil. 1 de outubro de 2008. Disponível em http://abdir.jusbrasil.com.br/noticias/116488/stj-pode-dar-fim-a-avalanche-de-acoes-sobre-contratos-bancarios Acesso em 24 nov 2011. Ainda como demonstração da afirmativa, pode ser citado o julgamento de recurso repetitivo pelo Superior Tribunal de Justiça em relação à cobrança de tarifa para fornecimento de água (RESP 1113403). O simples fato de se caracterizar como recurso repetitivo bem indica a recorrência de tais demandas.3 A título de exemplo, na lição de Moreira Alves: “Centum mihi dari spondes? (Prometes dar-me cem?); Spondeo (Prometo)”. Segundo o mesmo autor, mais tarde, “ao lado da forma verbal spondes? spondeo, admitiu-se o emprego de outras expressões como dabis? dabo; promittis? promitto; fidepromittis? fidepromitto; fideiubes? fideiubeo; fácies? faciam” (ALVES, José Carlos Moreira. Direito romano. Vol. II. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p.140).4 Assim, no direito brasileiro, o comodato (Art. 579 do CC), o penhor (Art. 1.431 do CC), etc.5 Na lição de Moreira Alves, “em Roma, nem todo acordo de vontade lícito gera obrigações: contrato (contractus) e pacto (pactum, conuentio) eram acordos de vontade, mas, ao passo que aquele produzia obrigações, este, em regra, não” (ALVES, José Carlos Moreira. Direito romano. Vol. II. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p.109).

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É possível afirmar, com Gilissen6, que o consensualismo teve caráter de exceção no direito romano, mas foi conhecido, ao menos, a partir da Lei das XII Tábuas. Quase todos os tipos contratuais deviam ser formados re ou revestir-se da stipulatio. Para Gilissen, os germânicos também não tiveram tradição no consensualismo, sendo pouco crível a teoria consensualista calcada no adágio mediavel ein Mann, ein Wort7, ao contrário do que os historiadores alemães defenderam8.

Na Baixa Idade Média aparecem sinais de transição dos contratos reais para os formais. O juramento – juramentum -, que trazia promessa de ação de fazer ou não fazer (não de testemunho) tem a tônica desse formalismo materializado por palavras (per Deum juro) ou por gestos (colocar as mãos sobre os evangelhos ou levantar as mãos). Alguns resquícios dessas fórmulas chegaram até os dias atuais.

O consensualismo pode ter sua gênese no direito canônico, no qual sempre foi dado grande valor à palavra, tomando-se a mentira como perjúrio. Mas foi o glosador Johannes Teotonicus que, em 12129, de forma então inaudita, escreveu que o dever de ação pode nascer de um pacto nu. A ideia era totalmente contrária à regra do direito romano (ex nudo pacto, actio non oritur). Gregório IX, em 1234, dá guarida àquela ideia: pacta quantumque nuda servantur. Na França, no Livre de Justice et de Plet, previu-se que o acordo de vontades deveria ser cumprido e, nos séculos XIII e XIV, o desenvolvimento do comércio nas cidades da Itália, França e Países Baixos fomentou essa alteração na formação dos contratos10.

Já no fim da Idade Média, o individualismo ultrapassa a concepção comunitária do direito e, daí em diante, será o homem, individualmente considerado, o sujeito de direitos. Os interesses da comunidade familiar, econômica e religiosa deixam de ultrapassar aqueles meramente individuais.

O consensualismo, finalmente, chega vitorioso à época moderna, estando agasalhado, mesmo que de maneira implícita, no Código Civil Francês. Por óbvio, a influência do direito francês, que se fez sentir no mundo todo, também é muito presente na América do Sul11, sem olvidar, entretanto, que o primeiro Código

6 GILISSEN, Jonh. Introdução histórica ao direito. Tradução de A. M. Hespanha e L. M. Macaísta Malheiros. Lisboa: Fundação Calouste Gulben-kian, 1986, p.732.7 Em tradução livre: um homem, uma palavra.8 A quase insignificante atividade comercial do período e a pequeníssima contratação de obrigações que não fossem de execução imediata são os principais argumentos para a tese.9 GILISSEN, Jonh. Introdução histórica ao direito. Tradução de A. M. Hespanha e L. M. Macaísta Malheiros. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1986, p. 735.10 Não é lícito, contudo, supor que essas alterações ocorreram sempre de maneira linear e abrangendo a todos indistintamente. Como em qualquer processo histórico, existem marcos indicando alterações de ideologias e concepções, refletindo uma tendência e não a aceitação indistinta da mu-dança. Neste sentido, mesmo com todas as alterações, Gilissen noticia que “os juristas franceses do séc. XVIII, pela sua parte, estão atrasados em relação aos filósofos. Muitos práticos e comentadores, sobretudo no sul da França, continuam desesperadamente agarrados ao direito romano. No entanto, constata-se que são feitas tentativas que visam conciliar o formalismo romano da stipulatio e a autonomia da vontade. Domat escreve nas suas Loix civiles dans leur ordre naturel (1689); ‘qualquer convenção, tendo ou não nome, tem sempre os seus efeitos e obriga ao que foi estipulado’” (idem, p.738).11 Rui Stocco, tratando da influência do Código Civil francês, afirma: “Este paradigma que orientou e influenciou a legislação codificada de in-úmeros países ao longo de dois séculos – com força de irradiação nos demais países europeus, nas Américas, na África e na Ásia – foi o primeiro código moderno da Europa e marco decisivo na evolução do direito privado. Com ele nasceu a febre de codificação que varreu a Europa, no século XIX, espraiando-se pelas Américas, convertendo-se o Código Napoleão como uma espécie de “Código-modelo”, mas muito mais do que isso, uma permanente inspiração. Quase todos os países latino-americanos tomaram-no por modelo, como se verifica nos Códigos da Argentina, Paraguai, México, Peru, Venezuela, Bolívia e Chile” (palestra proferida no Seminário em Comemoração ao Bicentenário do Código Civil Francês,

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Civil Brasileiro, de 1916, teve marcante inspiração do Código Civil Alemão12. De qualquer forma, a doutrina civilista brasileira apresenta inúmeros artigos do Código Civil de 1916 que, praticamente, copiam o texto francês13.

Já a autonomia de vontade encontra na Escola Jusnaturalista fundamento robusto. No século XVII, a regra do pacta sunt servanda era princípio base do direito natural. Para Grócio, este princípio deveria ser observado tanto pelos indivíduos como pelas nações (respeito aos tratados). Mas o corolário da autonomia de vontades será encontrado na lição de J. J. Rousseau: “Cada indivíduo obriga-se como quer, quanto quer, mas apenas enquanto quer”. Na França, o Código Civil de 1804 irá consagrar a autonomia de vontades, estampada no artigo 1.134: “As convenções legalmente formadas impõem-se como lei àqueles que as celebraram”.

É bem de ver-se que os abusos da autonomia da vontade são percebidos já no século XIX e, sobretudo, no século XX. Diversos pensadores socialistas (como Marx, Saint-Simon e Comte) anotam a completa ausência de proteção aos mais fracos. O proletariado encontra-se em total sujeição aos empregadores. A discrepância de forças não se limita aos direitos sociais, sendo facilmente encontrada nas relações firmadas pelo indivíduo de maneira isolada.

O prestígio calcado, simplesmente, na proteção da declaração de vontades e do respectivo cumprimento do declarado dado Código Civil Brasileiro de 191614 não foi repetido no novo Código, promulgado em 2002. Sem que se adentre a regulamentação dos contratos intercivis e interempresariais15, matéria estranha ao específico objeto desta análise, é justo apontar que o novel Código prestigiou a boa-fé objetiva. Igualmente, é certo que a América Latina, sobretudo a partir da década de 90 do século XX, testemunha o surgimento de sistemas especiais de proteção ao consumidor16.

realizado pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, no auditório do Superior Tribunal de Justiça - Brasília-DF, no dia 27 de setembro de 2004, painel presidido pelo Ministro Edson Vidigal, Presidente do Superior Tribunal de Justiça). De nossa parte, necessário apontar, entretanto, que os primeiros Códigos Civis da Itália (1865) e de Portugal (1867), que foram inspirados pelo Código Napoleônico, já foram substituídos em 1942 e 1966 respectivamente e, desta feita, tiveram nítida inspiração do Código Civil da Alemanha.12 No Brasil, as Ordenações do Reino vigeram até a promulgação do Código Civil de 1916, posto que o Código Civil de Portugal – influenciado pelo francês - foi promulgado quando o Brasil já não estava mais sob o jugo português. O “Esboço” (1860-1865) de Teixeira de Freitas, anterior àquele primeiro código brasileiro, não se atinha de maneira marcante ao Código Napoleônico, vez que Freitas tinha restrições à monumental obra. Neste sentido, era favorável à unificação do direito civil e comercial (antecipando-se em quarenta anos ao BGB), defendia o universalismo do direito, ao contrário da lei francesa, que demonstrava certa desconfiança com os estrangeiros. Teixeira também cuidava das pessoas jurídicas e apresentava um outro conceito de propriedade imobiliária. O avançado pensamento de Freitas levou-o a ser comparado com Savigny.13 No dizer de Arnoldo Wald, “quanto aos fatores jurídicos e morais, o direito brasileiro pertence, como todos os da América do Sul, ao grupo do direito francês. Ele se prende à mesma tradição do direito romano e aos mesmos preceitos do cristianismo e da civilização ocidental, mas se apresenta com incontestável originalidade. (WALD, Arnoldo. A evolução da responsabilidade civil e dos contratos no direito francês e brasileiro. Conferência proferida na Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro em 4.6.2004. In: Revista da Emerj – Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, v. 7, n. 26, p. 94-114, 2004).14 Baseada em Couto e Silva e Raiser, a professora Cláudia Lima esclarece: “Neste sentido, a função da ciência do direito será a de proteger a von-tade criadora e de assegurar a realização dos efeitos queridos pelas partes contratantes. A tutela jurídica limita-se, nesta época, portanto, a possi-bilitar a estruturação pelos indivíduos de relações jurídicas próprias através dos contratos, desinteressando-se totalmente pela situação econômica e social dos contratantes e pressupondo a existência de uma igualdade e uma liberdade no momento de contrair a obrigação” (MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor. O novo regime das relações contratuais. 6. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 60).15 Em relação à interpretação dos contratos, veja-se lição de Pontes de Miranda (MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. Parte especial. Tomo XXXVIII. Rio de Janeiro: Borsoi, 1962. p.69).16 Segundo estudo realizado pelo Departamento de Proteção ao Consumidor do Brasil, na América Latina, “quase todos os países fazem menção à defesa do consumidor em sua Constituição e contam com um Código de Defesa do Consumidor (CDC). Na maioria das nações, o CDC entrou em vigor a partir da década de 1990. É salutar registrar que, neste período, o modelo de Estado sofreu profundas transformações no Brasil e em toda América Latina. Encontramos também implantações da defesa do consumidor mais recentes, o que justifica a pouca experiência com a aplicação

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Como visto, a adoção irrestrita da defesa à autonomia de vontades – pacta sunt servanda – esteve longe de garantir equilíbrio material entre as partes. Especificamente em relação ao consumidor, viu-se logo a necessidade de sua proteção diferenciada pelo Estado17. Nesta senda, Brasil e Argentina, como praticamente toda a América Latina, cuidaram de instituir normas protetivas ao hipossuficiente.

Em verdade, a alteração foi, antes de tudo, política. Para o Professor Fábio Konder Comparato18, o “direito do consumidor, em seu conjunto, como realização de uma política pública, é novo na evolução do direito”. Em seguida arremata:

É obvio que o surgimento dessa nova política governamental, dando nascimento a um conjunto sistemático de normas jurídicas, nada mais é do que a manifestação do que as regiões industrializadas do planeta haviam atingido, desde o início dos anos sessenta, desse século, uma nova etapa na evolução econômica. Até então, a preocupação maior dos economistas – os sacerdotes dessa “triste ciência”, como disse Ricardo foi, sem dúvida, a de resolver as carências, que afetavam, em maior grau, todas as regiões do mundo. A se ingressar, porém, pela primeira vez na história da humanidade, na era da opulência, foi possível mudar o objeto central das preocupações político-econômicas: não mais a falta de produção e, sim, a qualidade dos produtos ou mercadorias distribuídos no mercado. O consumidor, de elemento passivo e secundário na cena econômica, assumia um papel ativo e relevante, no campo político, ele deixava de ser tutelado, para se tornar uma força eleitoral com a qual era doravante preciso contar.

Tamanha valoração mereceu os direitos do consumidor, que o sistema normativo brasileiro blindou, por assim dizer, alterações no microsistema de defesa. Em outras palavras, não poderá ocorrer alteração, admitidas para outras matérias, senão pela alteração do próprio Código de Defesa do Consumidor. Importa assentar ser comum no Brasil a inserção de matérias estranhas umas a outras, em um mesmo diploma legal, o que ocorre, muitas vezes, como maneira de burlar a fiscalização popular quanto ao conteúdo da alteração.

No Brasil, o Código de Defesa do Consumidor, Lei 8.078 de 11 de setembro

normativa. A Bolívia só conta com normas para a defesa dos usuários de serviços públicos e no Belize, como exceção, existem, desde 1954, leis esparsas de defesa do consumidor”. Defesa do Consumidor na América Latina. Atlas geopolítico.Brasília: 2005.17 Sobre o tema, ensina Leonardo de Medeiros Garcia: “Em razão da boa-fé objetiva, a abusividade das cláusulas não é aferida subjetivamente, ou seja, não se infere se o fornecedor, ao estipular as cláusulas contratuais, tinha o conhecimento de quem eram abusivas frente ao Código Consumerista. No intuito de proteger essa categoria vulnerável, denominada consumidor, o legislador privilegiou valores superiores ao dogma da autonomia da vontade (pacta sunt servanda), como a boa-fé objetiva e a justiça contratual, permitindo que o Poder Judiciário tenha condições de aferir, objetivamente, quando estará ocorrendo um desequilíbrio entre as partes, possibilitando, assim, um efetivo controle do conteúdo dos contratos de consumo. O novo Código Civil, preocupado com o equilíbrio contratual, também estipula meios para que se controle os contratos abusivos, ao determinar que a liberdade de contratar seja exercida em razão e nos limites da função social do contrato e que os contratantes sejam obrigados a guardar, tanto na conclusão do contrato, quanto na execução, os princípios de probidade e boa-fé (GARCIA, Leonardo de Medeiros. Direito do consumidor. Código comentado e jurisprudência. 5. ed. Niterói: Impetus, 2009, p.296).18 COMPARATO, Fábio Konder. A proteção ao consumidor na constituição brasileira de 1988. Revista de Direito Mercantil, São Paulo, n. 80. p. 66-67, out./dez. 1990.

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de 1990, tem gênese constitucional (Art. 5º, inciso XXXII19, Art. 170, inciso V20, ambos da Constituição Federal e Art. 48 da ADCT21). A Argentina, por sua vez, cuidou da proteção ao consumidor pela Lei 24.240, (também calcada em texto constitucional, Art. 4222).

Especificamente no que tange às cláusulas abusivas23, o Código de Defesa do Consumidor do Brasil cuidou da matéria nos artigos 51, 52 e 5324, enquanto a lei argentina regulamentou referida defesa em seu artigo 37, além das Resoluções que se seguiram (Resolucion 23/2006, Resolucion 9/2004, etc)25.

As cláusulas abusivas são contrárias ao direito, mas para sua caracterização exigem menos do que exigiam as cláusulas ilícitas. Não é necessária prova de má-fé ou intuito fraudulento do fornecedor; basta demonstração da existência de ofensa à boa-fé objetiva (não se perquire os elementos subjetivos da ação).

19 Art. 5 - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:[...] XXXII - o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor.20 Art. 170 - A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:[...] V - defesa do consumidor;21 Art. 48 - O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor.22 Artículo 42- Los consumidores y usuarios de bienes y servicios tienen derecho, en la relación de consumo, a la protección de su salud, seguridad e intereses económicos; a una información adecuada y veraz; a la libertad de elección, y a condiciones de trato equitativo y digno. Las autoridades proveerán a la protección de esos derechos, a la educación para el consumo, a la defensa de la competencia contra toda forma de distorsión de los mercados, al control de los monopolios naturales y legales, al de la calidad y eficiencia de los servicios públicos, y a la constitución de asociaciones de consumidores y de usuarios. La legislación esta-blecerá procedimientos eficaces para la prevención y solución de conflictos, y los marcos regulatorios de los servicios públicos de competencia nacional, previendo la necesaria participación de las asociaciones de consumidores y usuarios y de las provincias interesadas, en los organismos de control. 23 De qualquer forma, o sucesso da legislação consumerista “muito se deve ao art. 51 e à firme atuação jurisprudencial nesta área nos primeiros 15 anos do CDC [...] a evolução jurisprudencial em matéria de combate às cláusulas abusivas, no Brasil, em face dos ditames de boa-fé e equilíbrio do CDC, foi das mais admiráveis” (MARQUES, Cláudia lima. Contratos no código de defesa do consumidor. O novo regime das relações contratuais. 6. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2011, p.961).24 O texto legal brasileiro é extenso; apenas no artigo 51 ficou estabelecido: “Art. 51 - São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contrat-uais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: I - impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos. Nas relações de consumo entre o fornecedor e o consumidor pessoa jurídica, a indenização poderá ser limitada, em situações justificáveis; II - subtraiam ao consumidor a opção de reembolso da quantia já paga, nos casos previstos neste Código; III - transfiram responsabilidade a terceiros; IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade; V - segundo as circunstâncias, e em particular, segundo a aparência global do contrato, venham, após sua conclusão, a surpreender o consumidor; (Vetado). VI - estabeleçam inversão do ônus da prova em prejuízo do consumidor; VII - determinem a utilização compulsória de arbitragem; VIII - imponham representantes para concluir ou realizar outro negócio jurídico pelo consumidor; IX - deixem ao fornecedor a opção de concluir ou não o contrato, embora obrigando o consumidor; X - permitam ao fornecedor, direta ou indiretamente, variação do preço de maneira unilateral; XI - autorizem o fornecedor a cancelar o contrato unilateralmente, sem que igual direito seja conferido ao consumidor; XII - obriguem o consumidor a ressarcir os custos de cobrança de sua obrigação, sem que igual direito lhe seja conferido contra o fornecedor; XIII - autorizem o fornecedor a modificar unilateralmente o conteúdo ou a qualidade do contrato, após sua celebração; XIV - infrinjam ou possibilitem a violação de normas ambientais; XV - estejam em desacordo com o sistema de proteção ao consumidor; XVI - possibilitem a renúncia do direito de indenização por benfeitorias necessárias; Parágrafo primeiro - Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que: I - ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence; II - restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou o equilíbrio contratual; III - se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso. Parágrafo segundo - A nulidade de uma cláusula contratual abusiva não invalida o contrato, exceto quando de sua ausência, apesar dos esforços de integração, decorrer ônus excessivo a qualquer das partes. Parágrafo terceiro - O Ministé-rio Público, mediante inquérito civil, pode efetuar o controle administrativo abstrato e preventivo das cláusulas contratuais gerais, cuja decisão terá caráter geral. (Vetado). Parágrafo quarto - É facultado a qualquer consumidor ou entidade que o represente requerer ao Ministério Público que ajuíze a competente ação para ser declarada a nulidade de cláusula contratual que contrarie o disposto neste Código ou de qualquer forma não assegure o justo equilíbrio entre direitos e obrigações das partes”. lembre-se que se trata de elenco numerus clausus e não numerus apertus. (GARCIA, Leonardo de Medeiros. Direito do consumidor. Código comentado e jurisprudência. 5. ed. Niterói: Impetus, 2009. p.310).25 Na lei Argentina (Ley 24.240), de maneira mais singela que o Brasil, dispôs: ARTICULO 37. — Interpretación. Sin perjuicio de la validez del contrato, se tendrán por no convenidas: a) Las cláusulas que desnaturalicen las obligaciones o limiten la responsabilidad por daños; b) Las cláusulas que importen renuncia o restricción de los derechos del consumidor o amplíen los derechos de la otra parte; c) Las cláusulas que contengan cualquier precepto que imponga la inversión de la carga de la prueba en perjuicio del consumidor. La interpretación del contrato se hará en el sentido más favorable para el consumidor. Cuando existan dudas sobre los alcances de su obligación, se estará a la que sea menos gravosa. En caso en que el oferente viole el deber de buena fe en la etapa previa a la conclusión del contrato o en su celebración o transgreda el deber de información o la legislación de defensa de la competencia o de lealtad comercial, el consumidor tendrá derecho a demandar la nulidad del contrato o la de una o más cláusulas. Cuando el juez declare la nulidad parcial, simultáneamente integrará el contrato, si ello fuera necesario.

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De proêmio, vê-se que a lei brasileira, neste ponto e inicialmente, foi mais completa que a lei argentina. Sem embargo disso, a Argentina cuidou de implementar inúmeros complementos à lei e assim o fez por meio de resoluções, como veremos adiante.

Em outras palavras, sobre a enumeração de hipóteses legais de abusividade, e sem embargo da cláusula geral, é evidente haver sido o artigo 51 do CDC brasileiro muito mais amplo que o artigo 37 da lei argentina na regulamentação inicial da matéria. No entanto, a Argentina aumentou sensivelmente as hipóteses de abusividade por meio de sucessivas resoluções. Lembramos aqui a Resolução 53/2003, a Resolução 26/2003 (que revogou e substituiu a Resolução 3/2003) e a Resolução 9/2004.

Com os complementos trazidos pelas resoluções, e com espectro de hipóteses ampliado, existiu aproximação ainda maior da normatização da matéria entre os dois países. Aliás, nas considerações da Resolução 53, a necessidade de harmonização entre as legislações dos países integrantes do Mercosul (que conta com Brasil e Argentina em sua formação) foi, justamente, um dos fundamentos da conduta argentina26. Mas numa análise geral dos dispositivos constantes em ambos os países, vê-se similaridade e congruência muito grandes.

Ambos os países não trazem punição aos contratantes com abuso, senão a própria nulidade da cláusula27. Assim, qualquer penalidade extra, se caracterizados, devem ser buscados em outro arrimo (dano moral28, repetição de indébito, etc.) que não a abusividade de uma ou várias cláusulas.

Tanto num como noutro país, o controle frente ao equilíbrio do contrato pode ser posterior à sua formação, quando “o contrato já está formalmente perfeito, quando o consumidor já manifestou a sua vontade, livre e refletida, mas o resultado contratual ainda está inequitativo29”. Na verdade, para a eminente consumerista Cláudia Lima Marques, o CDC elegeu dois momentos para harmonizar as relações de consumo. No primeiro, a lei cria novos direitos ao consumidor e novas obrigações aos fornecedores, regulamentando a fase pré-contratual e a própria formação do vínculo. No segundo momento, o Código proíbe a inserção de cláusulas abusivas nestes contratos, garantindo proteção posterior à formação30. O mesmo tratamento foi realizado na Argentina, vez que o controle prévio e posterior do contrato é expresso, consoante disposição do referido artigo 37, in verbis:

En caso en que el oferente viole el deber de buena fe, en la etapa previa

26 Ficou ali indicado: Que un criterio similar ha sido adoptado en los estatutos tuitivos de los consumidores de los demás países del MERCADO COMUN DEL SUR (MERCOSUR), como así también en los de otras regiones, por ejemplo los de la UNION EUROPEA, exhibiéndose como una técnica regulatoria útil a ese objeto protectivo.27 Assim também Alemanha, Portugal e Luxemburgo. Na Argentina, a Resolução 53/2003 indicou: Cuando em los contratos se hubieren incluído clausulas como las tipificadas en el Anexo, se trendán por no convenidas...28 O Superior Tribunal de Justiça não admite a caracterização de dano moral por mero inadimplemento do contrato. Por todos: Recurso Especial nº 876.527 - RJ (2006/0076179-3) Relator : Ministro João Otávio De Noronha.29 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor. O novo regime das relações contratuais. 6. ed. ver. atual. ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 933.30 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor. O novo regime das relações contratuais. 6. ed. ver. atual. ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 933.

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a la conclusión del contrato o en su celebración o transgreda el deber de información o la legislación de defensa de la competencia o de lealtad comercial, el consumidor tendrá derecho a demandar la nulidad del contrato o la de una o más cláusulas.

Para além disso, a lei brasileira optou pela disposição das normas gerais e específicas em um mesmo artigo de lei, afastando-se do exemplo alemão. O inciso IV, artigo 51 da Lei 8.078/90 é que dá o tom de generalidade a todas as práticas, conquanto esteja, por assim dizer, escondido entre as hipóteses não exaustivas elencadas no artigo 51.

No ponto, importa lembrar a tendência mundial em tomar-se a abusividade calcada em critérios objetivos, isto é, atendo-se mais aos efeitos do contrato que à eventual malícia. Neste sentido e de maneira comprobatória do quanto alegado, a Diretiva 93/13 da Comunidade Européia, cuidando das cláusulas abusivas, dispõe:

Artigo 3º.1. Uma cláusula contratual que não tenha sido objecto de negociação individual é considerada abusiva quando, a despeito da exigência de boa fé, der origem a um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor, entre os direitos e obrigações das partes decorrentes do contrato.

Sempre com base no artigo 51 da lei brasileira, vê-se que os incisos II, III, VII, X e XII, XV e XVI não têm similar expresso na Argentina, enquanto o inciso IV é a norma geral da lei brasileira e acaba atenuando a importância de todas as demais hipóteses descritas, pois a fórmula de tomar como nula as cláusulas que “estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade” abarca a totalidade daquelas outras expressas, sem prejuízo da caracterização de abusividade de qualquer outra cláusula.

Já o inciso I é bastante similar ao disposto na alínea “g”, do Anexo da Resolução 53/2003, ambos cuidando da atenuação ou exoneração da responsabilidade do fornecedor por vícios do produto ou serviço. Mas o CDC da Argentina já tinha dispositivo vedando cláusula que desnature ou limitem a responsabilidade do fornecedor (artigo 37 da Lei 23.240).

O inciso VI veda a inversão do ônus da prova em prejuízo do consumidor, norma similar àquela da alínea “c” do próprio artigo 37 da lei argentina e, ainda, do inciso II, alínea “e” do Anexo à Resolução 53/03. O inciso VIII proíbe a imposição de representante para concluir ou realizar outro negócio em nome do consumidor, previsão constante da alínea “j” do Anexo à Resolução 53/2003.

A unilateralidade da opção de concluir ou não o contrato, bem assim a rescisão unilateral da avença pelo consumidor estão vedada, respectivamente, pelos incisos IX e XI da lei brasileira e defesa, igualmente, pela alínea “c” do Anexo à Resolução 53/2003.

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O inciso XIII não permite a alteração unilateral do conteúdo ou qualidade do contrato. A alínea “b” da Resolução 26/2003 trouxe a mesma negativa, conquanto a proibição não seja absoluta na Argentina, pois ela poderá ocorrer “en aquellos casos que la autoridad de aplicación determine conforme pautas y critérios objetivos”.

Por fim, a proteção ao meio ambiente, com proibição de cláusula que importe à violação das normas ambientais descrita pelo inciso XIV da lei brasileira tem eco nas normas da alínea “k” da Resolução 26/2003 e alínea “k” da Resolução 53/2003.

Pela forma de redação e pela importância da matéria, a doutrina brasileira e também a jurisprudência entenderam possível a declaração de sua nulidade ex officio pelo juiz31. E na Argentina, a lei descreve a necessidade do juiz, em declarando a nulidade da cláusula abusiva, reequilibrar o contrato32 se a tanto referida declaração ensejar. Lembre-se, no Brasil, o preço exagerado não foi tomado como cláusula abusiva. Preferiu o Código que eventual modificação deste elemento ocorra com base no artigo 6º, incisos IV e V33.

Por justiça, registramos dispor a lei argentina de diversas normas proibindo compensação de dívidas, entrega de outros produtos ou serviços não incluídos no contrato (venda casada), além de hipóteses exclusivas aos contratos de planos de saúde e telefonia móvel, que não têm disposição similar no artigo 51 da Lei 8.078/90 do Brasil, mas que restam proibidas em outras normas da mesma lei ou pela jurisprudência. Aliás, o papel da jurisprudência foi de extrema importância na formação dos conceitos e diretrizes de proteção em ambos os países. No Brasil, a professora Cláudia Lima Marques, como indicado alhures, elogia o entendimento da jurisprudência dos primeiros vinte anos de vigência do CDC e, na Argentina, foi o entendimento da Corte Suprema de Justicia de La Nacion que levou à alteração e formação de algumas regras das diversas resoluções já apontadas34.

Tanto no Brasil como na Argentina, a jurisprudência tem papel marcante na delimitação dos contornos das cláusulas abusivas, conforme indicamos alhures. Contudo, e sem nos valermos de análise mais contida, a jurisprudência não tem mantido, ao menos no Brasil, os mesmos níveis de exigência e firmeza para toda a gama de fornecedores, o que – é necessário dizer – se dá também pela diferenciação estabelecida nas regulamentações legais dos respectivos setores.

Para nos restringirmos ao tribunal responsável pela uniformização do

31 A orientação sofreu um revés com a Súmula 381 do Superior Tribunal de Justiça, que dispõe: “Nos contratos bancários, é vedado ao julgador conhecer, de ofício, da abusividade das cláusulas”. Contudo, substanciosa doutrina, com razão, entende que a Súmula é inconstitucional. Neste sentido, por todos, . MARQUES, Cláudia lima. Contratos no código de defesa do consumidor. O novo regime das relações contratuais. 6. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2011.32 Artigo 37, fine: Cuando el juez declare la nulidad parcial, simultáneamente integrará el contrato, si ello fuera necesario.33 Art. 6 - São direitos básicos do consumidor: [...] IV - a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços; V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas...34 Neste sentido é taxativa a Resolução 26/2003: Que también resulta adecuado modificar el inciso c) del Anexo antes referido, a fin de receptar la doctrina de la CORTE SUPREMA DE JUSTICIA DE LA NACION respecto de los contratos de plazo indeterminado, en tanto el Alto Tribunal ha sostenido que en dichos contratos, las partes pueden rescindir sin causa, siempre que el ejercicio de tal derecho no sea abusivo y que se otorgue preaviso con antelación suficiente, todo ello sin perjuicio de la facultad otorgada a la Autoridad de Aplicación para establecer requisitos adicionales en casos especiales, habida cuenta el desequilibrio entre las partes en los llamados contratos de adhesión.

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entendimento jurisprudencial da legislação federal do Brasil – Superior Tribunal de Justiça, percebe-se, se não se pode dizer uma certa complacência com as instituições financeiras, ao menos ausência de rigor para reequilíbrio dos contratos bancários quando comparadas as decisões afetas a estes com aquelas pertinentes a outros fornecedores35. Tomemos, por exemplo, as decisões a respeito dos planos de saúde e aquelas atinentes aos contratos bancários nas matérias mais relevantes que têm merecido maior análise da jurisprudência brasileira.

Quanto aos planos de saúde, o Superior Tribunal de Justiça editou recente Súmula proibindo limitação do tempo de internação hospitalar, mesmo que a cláusula esteja inserida no contrato. A pacificação daquele entendimento foi vazado nos seguintes termos: Súmula 302 - É abusiva a cláusula contratual de plano de saúde que limita no tempo a internação hospitalar do segurado”. O mesmo tribunal tem entendido como abusiva a cláusula que prevê aumento de mensalidade nos plano de saúde exclusivamente em razão da faixa etária do contrante36. Ainda, o tribunal entende abusiva a limitação contratual com gastos para tratamento de enfermidade coberta pelo plano de saúde37.

Já no que tange às instituições financeiras, o Superior Tribunal de Justiça tem se mostrado menos rigoroso. Mesmo naqueles casos que o inadimplemento do consumidor acarreta uma cobrança em valores muitíssimos maiores que a dívida original, tem-se entendido como legal o procedimento. Um indicativo da maneira do tribunal enxergar as instituições financeiras foi a recente edição da Súmula 381, que determina: “Nos contratos bancários, é vedado ao julgador conhecer, de ofício, da abusividade das cláusulas”. O que chama a atenção no entendimento é a restrição da declaração ex officio apenas nos casos de contratos bancários. Ademais, a súmula destoa do entendimento da maciça doutrina e mesmo da jurisprudência dos tribunais inferiores.

Outro indicativo do menor rigor jurisprudencial em favor das instituições financeiras é a aceitação de capitalização dos juros, mesmo quando o Supremo

35 Embora a questão possa não estar superada em outros países, no Brasil os bancos são considerados fornecedores nos termos preconizados pelo Código de Defesa do Consumidor, conforme decisão do Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2.591, proposta pelo CONSIF – Confederação Nacional do Sistema Financeiro. 36 Neste sentido decisão publicada no portal eletrônica daquele tribunal em 3 de maio de 2012, Rel. do Min. Sidnei Beneti: Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial. Plano de saúde. Nulidade de cláusula contratual que prevê o aumento da mensalidade em razão da faixa etária. Prequestionamento. Ausência. Aplicação da Súmula 83/stj. Improvimento. Agrg no Aresp 79837 / RS. [...] Há nulidade da cláusula de contrato de plano de saúde que prevê reajuste de mensalidade baseado exclusivamente na mudança de faixa etária de contratante idoso, ainda que se trate de contrato firmado antes da vigência do Estatuto do Idoso, porquanto, sendo norma de ordem pública, o Estatuto tem aplicação imediata, não se tratando de retroatividade da norma para afastar os reajustes ocorridos antes de sua vigência, sim em vedação à discriminação do idoso em razão da idade. Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial 2011/0271315-6. 37 Por todas, tome-se a decisão de 17 de fevereiro de 2012, com relatoria do Min. Raul Araújo: CIVIL. CONSUMIDOR. SEGURO. APÓLICE DE PLANO DE SAÚDE. CLÁUSULA ABUSIVA. LIMITAÇÃO DO VALOR DE COBERTURA DO TRATAMENTO. NULIDADE DECRETADA. DA-NOS MATERIAL E MORAL CONFIGURADOS. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. 1. É abusiva a cláusula contratual de seguro de saúde que es-tabelece limitação de valor para o custeio de despesas com tratamento clínico, cirúrgico e de internação hospitalar. 2. O sistema normativo vigente permite às seguradoras fazer constar da apólice de plano de saúde privado cláusulas limitativas de riscos adicionais relacionados com o objeto da contratação, de modo a responder pelos riscos somente na extensão contratada. Essas cláusulas meramente limitativas de riscos extensivos ou adicionais relacionados com o objeto do contrato não se confundem, porém, com cláusulas que visam afastar a responsabilidade da seguradora pelo próprio objeto nuclear da contratação, as quais são abusivas. 3. Na espécie, a seguradora assumiu o risco de cobrir o tratamento da moléstia que acometeu a segurada. Todavia, por meio de cláusula limitativa e abusiva, reduziu os efeitos jurídicos dessa cobertura, ao estabelecer um valor máximo para as despesas hospitalares, tornando, assim, inócuo o próprio objeto do contrato. 4. A cláusula em discussão não é meramente limitativa de extensão de risco, mas abusiva, porque excludente da própria essência do risco assumido, devendo ser decretada sua nulidade. REsp 735750 / SP RECURSO ESPECIAL 2005/0047714-2.

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Tribunal Federal já assentou a impossibilidade de sua cobrança38. Entretanto, não se há negar, as decisões do STJ têm arrimo na Medida Provisória nº 2.170-36/2001 (reedição da Medida Provisória nº 1.963-17/2000), diploma legal que autoriza a capitalização de juros para os contratos posteriores à sua vigência39. O tribunal relega a análise da constitucionalidade da norma ao Supremo Tribunal Federal.

Por fim, e sempre restrito às questões de maior apelo e consequências práticas mais relevantes, o STJ entende impossível limitar os juros cobrados pelas instituições financeiras, afirmando que eles não estão limitados pelo Decreto 22.512/50 (Lei de Usura)40. A consequência, todavia, é a evolução de dívidas módicas a valores astronômicas sem que se entenda a medida como um desequilíbrio contratual.

Se a legislação que ambos os países dispõem é muito avançada e o Poder Judiciário tem contribuído para afirmação dos direitos dos consumidores (nada obstante as reservas apontadas anteriormente), o Poder Executivo, no Brasil, dispõe da recentíssima criada Secretaria Nacional do Consumidor41. Anteriormente cuidava-se de um departamento, ligado ao Ministério da Justiça. Doravante, a Secretaria continua ligada ao Ministério da Justiça, mas com novo status. A atuação da Senacon concentra-se no planejamento, elaboração, coordenação e execução da Política Nacional das Relações de Consumo, com o objetivo de: (a) garantir a proteção e exercício dos direitos consumidores; (b) promover a harmonização nas relações de consumo; e (c) incentivar a integração e a atuação conjunta dos membros do SNDC.

Por obra da Secretaria são realizados cursos em todo território nacional para preparação dos órgãos e entidades voltados à defesa do consumidor (Procons, Ministério Público, Defensorias Públicas, entidades civis de defesa do consumidor, etc.). É esta mesma Secretaria a responsável pela fiscalização administrativa de fornecedores, inclusive com competência para imposição de multas. Também cuida da formação de cadastro nacional de reclamações sobre a prestação de serviços ou fornecimento de produtos, apontando os setores com maior número de reclamações e a efetiva resposta a tais reclamações42.

38 A Súmula 121 do Supremo Tribunal Federal dispõe: “É vedada a capitalização de juros, ainda que expressamente convencionada”. 39 A título de exemplo, lembramos recentíssimo julgado do STJ a respeito da matéria: Agravo Regimental - Recurso especial - Contratos bancários - Capitalização mensal de juros - MP 2.170-36/2001 - Inconstitucionalidade. 1 - A alegação de inconstitucionalidade de Medida Provisória é ma-téria de índole constitucional, escapando aos lindes do recurso especial. 2 - É firme a jurisprudência desta Corte no sentido da aplicabilidade da MP 2.170-36/2001, aos contratos bancários celebrados a partir de 31 de março de 2000, enquanto não houver qualquer decisão vinculante nesse sentido. 3 - Agravo regimental a que se nega provimento. (STJ - AgRg no REsp nº 740.744 - RS - 3ª T. - Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino - J. 28.06.2011 - DJe 01.07.2011).40 Agravo Regimental no Agravo de Instrumento. Ação de busca e apreensão. Conversão em depósito. Obrigação de depósito do bem ou do valor respectivo. Análise dos elementos fático-probatórios dos Autos. Óbice da súmula 7/STJ. [...] 3. A jurisprudência desta Corte é assente no sentido de que os juros remuneratórios cobrados pelas instituições financeiras não sofrem alimitação imposta pelo Decreto nº 22.626/33 (Lei de Usura), a teor do disposto na Súmula 596/STF, de forma que a abusividade da pactuação dos juros remuneratórios deve ser cabalmente demonstrada em cada caso, com a comprovação do desequilíbrio contratual ou de lucros excessivos, sendo insuficiente o só fato de a estipulação ultrapassar 12% ao ano ou de haver estabilidade inflacionária no período, o que não ocorreu no caso dos autos. (posicionamento confirmado pela Segunda Seção, no julgamento do Resp n. 1.061.530/RS, Rel. Ministra Nancy Andrighi, sob o rito do art. 543-C do CPC). AgRg no Ag 1239411 / MG Agravo Regimental no Agravo de Instrumento 2009/0195423-4.41 A Secretaria Nacional do Consumidor – Senacon, foi criada pelo Decreto 7.738, de 28 de maio de 2012. A regulamentação de suas atribuições foram estabelecidas no art. 106 do Código de Defesa do Consumidor e no art. 3º do Decreto n° 2.181/97.42 Assim o Cadastro nacional de reclamações fundamentadas 2010: Relatório analítico. Brasil. Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor.

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43 SALERNO, Marcelo Urbano. Derecho civil profundizado. Buenos Aires: Ciudad Argentina, 1998.

Em conclusão, vê-se que as legislações brasileira e argentina são, em muitos pontos, harmônicas. Ambos os países procuraram prestigiar a defesa prévia e posterior do consumidor, elencando hipóteses legais de abusividade de inúmeras cláusulas. No Brasil, para além disso, foi prevista norma aberta, pela qual possível vedar as hipóteses não previstas na lei (a rigor, sempre haverá hipóteses não passíveis de previsão).

A proteção similar entre os países é que permite tomá-las como harmônicas, conquanto a regulamentação brasileira seja, a nosso critério, mais avançada que a Argentina. Isso tanto pela previsão de norma geral, como por dispor de espectro mais numeroso de hipóteses legais. De qualquer forma, existem diversas normas quase idênticas entre os dois países e que, no conjunto, trazem proteção efetiva ao hipossuficiente, máxime pela atuação firme e ativa da jurisprudência de ambos os países.

Por tudo, conquanto desejável pequeno desenvolvimento da regulamentação argentina, desde já fica autorizado entender como harmônicas as legislações. Fazem-se verdadeiras, ainda hoje, as palavras do Professor Marcelo Urbano Salerno43, o qual, parafraseando o presidente argentino Roque Saenz Peña, teve a lucidez de afirmar: “em matéria civil, entre a Argentina e o Brasil, tudo nos une, nada nos separa”.

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Comentários ao código de defesa do consumidor. 3. ed. rev. ampl. atual. São Paulo: Forense, 2010.MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. Parte especial. Tomo XXXVIII. Rio de Janeiro: Borsoi, 1962. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Teoria geral das obrigações. vol. II. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999.SALERMO, Marcelo Urbano. Derecho civil profundizado. Buenos Aires: Ciudad Argentina, 1998.STOCCO, Rui. Palestra proferida no Seminário em Comemoração ao Bicentenário do Código Civil Francês, realizado pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, no auditório do Superior Tribunal de Justiça (Brasília-DF), no dia 27 de setembro de 2004.WALD, Arnoldo. A evolução da responsabilidade civil e dos contratos no direito francês e brasileiro. Conferência proferida na Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro em 4.6.2004. In: Revista da Emerj – Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, v. 7, n. 26, p. 94-114, 2004.

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A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA PÚBLICA DE ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA

VERIDIANA TONZAR RISTORI OZAKI 1

JOÃO BOSCO PENNA2

CAROLINA PAULINO PENNA3

ResumoO Poder Judiciário vem assumindo um importante papel na concretização dos direitos sociais, notadamente o direito à saúde. O presente trabalho tem por objetivo apontar críticas concernentes à judicialização da política pública de assistência farmacêutica.PALAVRAS-CHAVE: Ativismo judicial; Políticas públicas; Medicamentos.

Introdução Os direitos fundamentais sociais conquistaram no Brasil, nos últimos

tempos, força normativa e efetividade. Tais direitos passaram a ter aplicabilidade direita e imediata, convertendo-se em direitos públicos subjetivos, passíveis de serem exigidos judicialmente. O reflexo disso é o grande volume de ações judiciais para o fornecimento gratuito de medicamentos pelo Poder Público. Com o escopo de concretizar o preceito constitucional da universalização da saúde, a atividade judicial passa a intervir nos gastos públicos em termos de políticas públicas.

Essas ações fundamentam-se nos arts. 6º e 196 da Constituição Federal, que preceitua o direito à saúde como um direito do cidadão e um dever do Estado e que estabelece as bases de um sistema de saúde, que busca a universalidade e a igualdade às ações e serviços de saúde, bem como, a integralidade no atendimento.

A tutela jurisdicional deve ser entendida como verdadeiro espaço para se pleitear bens e serviços de saúde que forem prestados de forma insuficiente ou deficiente pelo Estado. Nesse sentido, o Poder Judiciário pode ser entendido como um palco de participação em matéria de políticas públicas de saúde.

Muito embora o Brasil seja uma economia forte, cujo PIB o posiciona no 7º lugar do ranking do Fundo Monetário Internacional (INTERNATIONAL MONETARY FUNDY, 2011), é um país que apresenta muitas desigualdades sociais, tendo a 84º posição no ranking do índice de desenvolvimento humano – IDH – das Nações Unidas, abaixo, por exemplo, do Cazaquistão (68º), Cuba (51º), Peru (56º), Trindade e Tobago (62º), Panamá (58º), Arábia Saudita, Kuwait (63º) e Argentina (45º) (UNITED NATIONS, 2011). De sorte que o Brasil, ante todas as

1 Advogada e mestranda em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP, Av. Eufrásia Monteiro Petráglia, 900 – Bairro: Jd. Dr. Antonio Petráglia – CEP: 14409-160 – Franca/SP.2 Pós-doutor pela Universidade de Coimbra, Professor adjunto de Medicina legal, Bioética e Biodireito na graduação e pós-graduação do curso de Direito da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP/Franca, Av. Eufrásia Monteiro Petráglia, 900 – Bairro: Jd. Dr. Antonio Petráglia – CEP: 14409-160 – Franca/SP.3 Graduanda do curso de Direito da Universidade Paulista – UNIP, Av. Carlos Consoni, 10 – Jd. Canadá – CEP: 14024-170 – Ribeirão Preto/SP.

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disparidades sociais e econômicas que assolam a população, não tem se mostrado capaz de dar conta da demanda pelos serviços públicos, notadamente na área da saúde.

Com efeito, o Poder Judiciário assume um papel mais ativo na concretização dos direito sociais diante da debilidade das instituições de representação democrática e de mediação política e social (ABRAMOVICH, 2005, p. 204). A isso, agrega-se o fato de que um Estado com uma máquina burocrática cada vez maior e insulada de controle democrático, clama por uma maior atuação do Poder Judiciário no controle da Administração Pública (EPP, 1998, p. 16).

É saudável que o Judiciário promova um diálogo com os gestores públicos, aos quais caberia explicar por que razão um determinado serviço ou programa social não estão implementados ou se estão sendo mal disponibilizados, se é destinado o máximo de recursos a áreas prioritárias, se existe informação suficiente acerca das necessidades da população, ou ainda se já possui um planejamento para atender a demanda pleiteada (PISARELLO, 2007, p. 101-102). Nessa perspectiva, a atividade judicial voltada à concretização de direitos sociais, que forem implementados de maneira insuficiente ou ineficaz apresenta, em certa medida, aspectos positivos.

Ocorre que a judicialização do direito à saúde passa a manifestar sintomas graves, acarretando impactos econômicos significativos nas finanças públicas. Observa-se uma proliferação de decisões extravagantes ou emocionais, que condenam a Administração a arcar com o custeio de tratamentos e medicamentos que não constem de listas oficiais e protocolos clínicos do SUS. Esses excessos colocam em risco a continuidade das políticas públicas, impedindo a alocação racional dos recursos públicos, e, no mais das vezes, privilegia uma parcela restrita de indivíduos, que recorreu às vias judiciais para fazer valer seus direitos, em detrimento do restante da população. Dessa feita, o preceito constitucional do acesso universal a bens e serviços de saúde acaba se tornando uma promessa inalcançável.

Nesse passo, o presente trabalho tem por objetivo estudar a questão concernente à judicialização da política pública de assistência farmacêutica. Para tanto, será feita uma breve análise da história da saúde pública no Brasil, do contorno jurídico do direito à saúde na Constituição Federal de 1988 e dos aspectos relevantes do Sistema Único de Saúde e da política pública de assistência farmacêutica. Em seguida, buscar-se-á demonstrar os custos da concretização do direito à saúde por meio da atividade judicial. Por fim, serão apontadas críticas à judicialização excessiva da saúde.

Nota histórica da saúde pública no Brasil A história da saúde pública no Brasil tem início no século XIX, com a chegada

da Corte Portuguesa. Nessa época, havia algumas ações de combate à lepra e à peste e algum controle sanitário em portos e ruas. O Estado passa a realizar ações mais efetivas no campo da saúde, com a adoção do modelo “campanhista”, no período de 1870 a 1930, recorrendo-se, contudo, ao uso da força policial. Embora tenha havido abusos, esse modelo obteve êxito no controle de doenças epidêmicas

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e na erradicação da febre amarela no Rio de Janeiro (BARROSO). É somente a partir da década de 1930 que há a estruturação do sistema

público de saúde e ações públicas curativas passam a ser realizadas. Há a criação do Ministério da Educação e Saúde Pública, bem como, os Institutos de Previdência, conhecidos como IAPs. Todavia, esses serviços cingiam-se à categoria profissional vinculada ao respectivo Instituto. Dessa forma, não havia uma universalização da saúde pública em sua dimensão curativa, pois beneficiava apenas os trabalhadores que contribuíam para os institutos de previdência (BARROSO).

Durante o regime militar, os Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAPs) foram unificados, surgindo o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), ao qual foram vinculados o Serviço de Assistência Médica e Domiciliar de Urgência e a Superintendência dos Serviços de Reabilitação da Previdência Social. Todo trabalhador com vínculo empregatício era contribuinte e beneficiário do novo sistema, tendo atendimento na rede pública de saúde. Os demais cidadãos eram excluídos do sistema e não contavam com o mesmo atendimento (BARROSO).

A precariedade desse sistema e sua evidente insuficiência, atrelada ao processo de redemocratização, culminou no movimento de reforma sanitária. O marco do movimento sanitarista foi a Assembléia Constituinte, em que se deu a criação do Sistema Único de Saúde (BARROSO). Nesse passo, o direito a saúde restou plasmado na Constituição Federal de 1988 em seu art. 196, que assim prevê: “a saúde é um direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (BRASIL, 1988, art. 196). Portanto, a partir da Constituição Cidadã, a titularidade dos direito à saúde pertence a todos os brasileiros, independentemente do vínculo empregatício, de modo que se pode afirmar que está assegurada a universalização do direito à saúde e a igualdade no tratamento de todos os indivíduos.

O direito à saúde na Constituição Federal de 1988

Como já destacado, a Constituição Federal de 1988 assegura o direito à saúde em seu art. 196. Além disso, a Carta Magna, em seu art. 6º, incluiu o direito a saúde na categoria dos direitos sociais, os quais têm eficácia plena e aplicação imediata nos termos do art. 5º, § 1º, do mesmo diploma legal.

O direito à saúde se insere na categoria dos direitos fundamentais de segunda geração, também denominados de direitos sociais, que surgiram a partir do século XX, em virtude da constatação da insuficiência da mera limitação do poder estatal perante os cidadãos por meio de direitos e garantias individuais. Esses direitos marcam uma nova fase dos direitos fundamentais, uma vez que necessitam de uma atuação positiva por parte do Poder Público. Conforme José Afonso da Silva:

Assim, podemos dizer que os direitos sociais, como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos

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que tendem a realizar a igualação de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade. Valem como pressupostos do gozo dos direitos individuais na medida em que criam condições materiais propícias ao aferimento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível com o exercício efetivo da liberdade (SILVA, 1999, p. 289-290).

A fim de delimitar o objeto de estudo, necessário se faz entender o que seja “saúde”. O conceito de saúde passou por uma grande evolução graças aos avanços tecnológicos e científicos. Saúde não significa apenas a ausência de doença. Hodiernamente, o conceito de saúde traz em seu bojo uma dimensão voltada à coletividade, ao meio ambiente e às relações sociais. De acordo com Marlon Alberto Weichert:

Com efeito, ainda que premiando a visão individual, o cidadão não poderá continuar saudável sem que o meio em que vive – e as pessoas que o rodeiam – também estejam ou possuam em condições de salubridade, especialmente diante do contágio e da contaminação pelos agentes diretamente provadores das doenças. E, por outro lado, a tutela desse direito não pode ficar restrita ao indivíduo, pois é um bem coletivo, de todos os membros da sociedade (WEICHERT, 2004, p. 120).

Segundo o preâmbulo da Constituição da Organização Mundial de Saúde, de 07 de abril de 1948:

Saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade. Gozar do melhor estado de saúde que é possível atingir constitui um dos direitos fundamentais de todo o ser humano, sem distinção de raça, de religião, de credo político, de condição econômica ou social.

A Lei Orgânica da Saúde Pública, em seu art. 3º, define saúde da seguinte maneira:

A saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais; os níveis de saúde da população expressam a organização social e econômica do País.

Assim, o direito a saúde tem natureza ampla e complexa, englobando diversos elementos como a alimentação, a moradia, o saneamento básico, meio ambiente, trabalho, renda, educação, transporte, lazer. Esses elementos são extremamente relevantes para a efetiva fruição da saúde. Como direito social, o direito à saúde não pode ser examinado somente numa esfera individual, mas também, numa perspectiva transindividual. A Constituição Federal elevou o acesso à saúde à categoria de direito subjetivo público, podendo ser exigido judicialmente, bem como impôs ao Estado um catálogo de deveres derivados

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desse direito (MAPELLI JÚNIOR; COIMBRA; MATOS, 2012, p. 18). Ademais, o Estado tem o dever de regulamentar, fiscalizar e controlar

todas as ações e serviço de saúde, nos moldes do art. 197 da Constituição Federal.

Sistema Único de Saúde: diretrizes e princípios O Sistema Único de Saúde (SUS) tem como principais marcos normativos

para sua conformação a Constituição Federal de 1988 e as Leis Orgânicas de Saúde. O SUS compreende o modelo público de ações e serviços de saúde no Brasil. Representa um divisor de águas na evolução institucional do país e estabeleceu o arcabouço jurídico-institucional no campo das políticas públicas em saúde. É norteado por um conjunto de princípios e diretrizes válidos para todo o território nacional, partindo-se da premissa de que o direito à saúde é dever do Estado, bem como, propiciando, em sua estrutura institucional e decisória, espaços e instrumentos para democratização e compartilhamento da gestão do sistema de saúde (NORONHA; LIMA, MACHADO, 2008).

A Constituição Federal, em seu art. 198, estabelece: “as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo; II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; III - participação da comunidade” (BRASIL, 1988, art. 198).

O caput do referido dispositivo combinado com o art. 23, inciso II, também da Carta Magna, estabelecem que União, Estados, Distrito Federal e Municípios participam do Sistema Único de Saúde, assumindo responsabilidade solidária pela prestação de serviços e ações inerentes à promoção, proteção e recuperação da saúde.

Ademais, os incisos do art. 198 traçam as diretrizes do Sistema Único de Saúde. A diretriz da descentralização vem enfatizada no art. 7º, inciso IX e alíneas, da Lei Orgânica da Saúde, complementando a ideia de regionalização e hierarquização da rede de serviços de saúde. Dessa forma, a responsabilidade político-administrativa não recai sobre um órgão único e central, sendo transferida aos municípios a prestação e a direção dos serviços de saúde. A diretriz referente ao atendimento integral preleciona que o SUS deve suportar não só a prestação de serviços, mas também a disponibilidade de remédios e insumos essenciais na prevenção e manutenção da saúde. Deve-se ainda buscar ações preventivas, reduzindo o custo do sistema de saúde. A diretriz constitucional da participação social foi regulamentada pela Lei 8.142/1990 e estabelece que a população deve participar da gestão do sistema de saúde, por meio das Conferências de Saúde e Conselhos de Saúde (MAPELLI JÚNIOR; COIMBRA; MATOS, 2012, p. 23).

Nos termos do art. 200 da Constituição Federal, cabe ao Sistema Único de Saúde: controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde e participar da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos; executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem como as de saúde do trabalhador; ordenar a

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formação de recursos humanos na área de saúde; participar da formulação da política e da execução das ações de saneamento básico; incrementar em sua área de atuação o desenvolvimento científico e tecnológico; fiscalizar e inspecionar alimentos, compreendido o controle de seu teor nutricional, bem como bebidas e águas para consumo humano; participar do controle e fiscalização da produção, transporte, guarda e utilização de substâncias e produtos psicoativos, tóxicos e radioativos; colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho (BRASIL, 1988, art. 200).

Seguindo as diretrizes previstas no art. 198, da Constituição Federal, a Lei Orgânica da Saúde (Lei 8.808/90) elencou uma série de princípios dos quais se destacam: universalidade, integralidade e igualdade. A universidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência pressupõe que todas as pessoas, sem exceção, são destinatárias das políticas públicas, devendo receber assistência necessária à prevenção e à recuperação da saúde; o que inclui o acesso a medicamentos. Diz-se universal aquilo que é comum a todos (MAPELLI JÚNIOR; COIMBRA; MATOS, 2012, p. 24).

A integralidade informa que deve haver “um conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema” (BRASIL, 1990, art. 7º, II). A esse respeito, Fernando Aith pontua:

[...] sempre que houver uma pessoa doente, caberá ao Estado fornecer o tratamento terapêutico para a recuperação da saúde dessa pessoa de acordo com as possibilidades oferecidas pelo desenvolvimento científico. Assim, não importa o nível de complexidade exigido, a diretriz do atendimento integral obriga o Estado a fornecer todos os recursos que estiverem ao seu alcance para a recuperação da saúde de uma pessoa, desde o atendimento ambulatorial até os transplantes mais complexos (AITH, 2007, p. 357).

A igualdade pressupõe a distribuição igualitária das ações e serviços de saúde a todos que necessitarem do atendimento do Estado, sem discriminação de qualquer natureza e sem proporcionar privilégios de ordem subjetiva (MAPELLI JÚNIOR; COIMBRA; MATOS, 2012, p. 26).

Evidencia-se que os objetivos do Sistema Único de Saúde: a identificação e divulgação dos fatores condicionantes e determinantes da saúde; a formulação de política de saúde; a assistência às pessoas por intermédio de ações de promoção, proteção e recuperação da saúde, com a realização integrada das ações assistenciais e das atividades preventivas (BRASIL, 1990, art. 5º).

Compete ao Sistema Único de Saúde as seguinte atribuições: atuar na promoção de saúde por meio da vigilância epidemiológica, da vigilância sanitária, da saúde do trabalhador, da saúde ambiental da vigilância nutricional, da fiscalização de produtos, da atenção primária; e ainda, atuar na assistência médica propriamente dita, valendo-se do recursos tecnológicos mais apropriados, de política de saúde e hemoderivados e de política de medicamentos (CRUZ, 2009, p.

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39-40)

Assistência farmacêutica O direito à saúde e o direito a medicamentos estão intimamente ligados.

É impossível pensar em saúde ou doença sem pensar em medicamentos. Os medicamentos não são um produto qualquer. Eles podem amenizar o sofrimento e salvar vidas, de forma que é imprescindível a implementação de uma política pública de medicamentos.

A assistência farmacêutica diz respeito ao conjunto de atividades relacionadas ao acesso a medicamentos e a outros insumos destinados a propiciar a saúde dos indivíduos, seja pela cura de patologias, seja pela simples melhora da qualidade de vida do paciente (MAPELLI JÚNIOR; COIMBRA; MATOS, 2012, p. 99). O Brasil é considerado pioneiro na formulação de políticas de medicamentos essenciais ao estabelecer, desde 1964, a Relação Básica e Prioritária de Produtos Biológicos e Matérias para uso Farmacêutico Humano e Veterinário (Decreto n. 53.612/1964). Com o objetivo de desenvolver um planejamento, organização e aquisição de medicamentos, o governo, em 1971, por meio do Decreto nº. 68.806, criou a Central de Medicamentos (CEME), que centralizava a atribuição. Em 1997, a CEME foi extinta (OLIVEIRA; LABRA; BERMUDEZ; 2006, p. 2.383).

Posteriormente, o grande marco da política pública de medicamentos foi a Política Nacional de Medicamentos, aprovada pela Portaria nº. 3.916, de 30 de outubro de 1998, do Ministério da Saúde, que lança o processo de descentralização da assistência farmacêutica, com o fito de efetivar os princípios e diretrizes constitucionais do Sistema Único de Saúde (SUS).

O propósito do referido instrumento normativo é “garantir a necessária segurança, eficácia e qualidade dos medicamentos, a promoção do uso racional e o acesso da população àqueles considerados essenciais” (BRASIL, 1998). Ademais, estabelece que a assistência farmacêutica “englobará as atividades de seleção, programação, aquisição, armazenamento e distribuição, controle da qualidade e utilização – nesta compreendida a prescrição e a dispensação – o que deverá favorecer a permanente disponibilidade dos produtos segundo as necessidades da população, identificadas com base em critérios epidemiológicos” (BRASIL, 1998).

Foram incluídas orientações para atuação dos gestores do Sistema Único de Saúde, a saber: adoção de relação de medicamentos essenciais; regulamentação sanitária de medicamentos, com ênfase à promoção do uso de medicamentos genéricos; reorientação da assistência farmacêutica, que deverá se fundamentar na descentralização da gestão, na promoção do uso racional dos medicamentos, na otimização e na eficácia do sistema de distribuição no setor público, no desenvolvimento de iniciativas que possibilitem a redução de preços dos produtos; promoção do uso racional de medicamentos; desenvolvimento científico e tecnológico; promoção da produção de medicamentos; garantia de segurança, eficácia e qualidade dos medicamentos; desenvolvimento e capacitação de recursos humanos (BRASIL, 1998).

A Política Nacional de Medicamentos determina a distribuição das

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responsabilidades entre os entes federativos no âmbito do SUS. Sucintamente, cabe ao Ministério da Saúde definir políticas gerais e incentivar a pesquisa e aos gestores estaduais e municipais do SUS compete a distribuição de medicamentos na maior parte dos casos.

Importante destacar a Resolução - MS/CNS nº. 338, de 06 de maio de 2004, que se destina fundamentalmente às ações da Assistência Farmacêutica no âmbito do SUS. Com a promulgação da Portaria MS/GM n. 339, de 22 de fevereiro de 2006, foram instituídos os pactos Pacto pela Vida, em defesa do SUS e da Gestão. No Pacto de Gestão, pactuou-se que o seu financiamento relativo à Assistência Farmacêutica é de responsabilidade dos três gestores do SUS, devendo agregar a aquisição de medicamentos e insumos e a organização das ações de assistência farmacêutica necessárias, em conformidade com a organização dos serviços de saúde. A Portaria MS/GM nº. 204, de 29 de janeiro de 2007, regulamentou o bloco de financiamento da Assistência Farmacêutica, em três componentes: o componente básico, o componente estratégico e o componente de medicamentos de dispensação excepcional. Este último componente passa a ser denominado Componente Especializado da Assistência Farmacêutica com a edição da Portaria GM/MS nº. 2.981, de 26 de novembro de 2009 (FIOCRUZ, introdução).

O componente básico da assistência farmacêutica destina-se ao fornecimento de medicamentos e insumos da assistência farmacêutica no âmbito da atenção básica, baseado no elenco de referência nacional para o tratamento de agravos mais prevalentes no país, ou no âmbito de agravos e programas de saúde específicos (LIMA). Refere-se, em síntese, dos medicamentos que constituem a RENAME com os acréscimos de cada município em sua REMUME; o que será analisado no próximo tópico.

O componente estratégico da assistência farmacêutica diz respeito aos medicamentos que se destinam ao tratamento de doenças com perfil endêmico como, por exemplo, DST/AIDS, cólera, hanseníase, tuberculose, meningite, dengue, doença de chagas, filariose, hanseníase, lúpus eritematoso sistêmico, malária, mieloma múltiplo, tracoma; e que tenham impacto socioeconômico e compreendam autênticos problemas de saúde pública. Os medicamentos estratégicos são adquiridos pelo Mistério da Saúde e distribuídos aos estados, os quais são incumbidos de armazená-los e distribuí-los aos municípios e às regionais de saúde (MAPELLI JÚNIOR; COIMBRA; MATOS, 2012, p. 109).

O componente especializado de assistência farmacêutica refere-se aos medicamentos de “alto custo”, seja porque seu valor unitário é alto, seja porque, embora tenha valor unitário baixo, o tratamento torna-se custoso por ser prolongado. (FIGUEIREDO).

De acordo com a Portaria GM/MS n. 2.981/09, os medicamentos especializados são divididos em três grupos com características, responsabilidades e formas de organização distintas. O grupo 1 é de responsabilidade da União; o grupo 2, dos Estados e Distrito Federal; e o grupo 3, dos Municípios e Distrito Federal (BRASIL, 2009, art. 9º).

O grupo 1 é formado por medicamentos que se inserem nos seguintes

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critérios: maior complexidade da doença a ser tratada ambulatorialmente; refratariedade ou intolerância a primeira e/ou a segunda linha de tratamento; medicamentos que representam elevado impacto financeiros para o Componente e medicamentos incluídos em ações de desenvolvimento produtivo no complexo industrial da saúde. O grupo 2 abrange medicamentos que apresentam os critérios: menor complexidade da doença a ser tratada ambulatorialmente em relação aos elencados no Grupo 1 e; refratariedade ou intolerância à primeira linha de tratamento. O grupo 3 compreende os fármacos constantes na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais vigente e indicados pelos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas, publicados na versão final pelo Ministério da Saúde, como a primeira linha de cuidado para o tratamento das doenças contempladas neste Componente (BRASIL, 2009).

O elenco de medicamentos em cada grupo está descrito nos anexos da Portaria 2.981/09 (BRASIL, 2009).

Listas oficiais de medicamentos

A Organização Mundial de Saúde (OMS), desde a década de 1970, recomenda a formulação de listas de medicamentos essenciais nos seguintes termos:

Medicamentos essenciais são aqueles que satisfazem as necessidades prioritárias de saúde da população. Eles são selecionados de acordo com sua relevância em saúde pública, segundo evidencias de sua eficácia e segurança e em conformidade com a melhor relação custo-efetividade. Medicamentos essenciais devem estar sempre disponíveis para atender às necessidades dos sistemas de saúde, nas proporções e dosagens adequadas, com qualidade assegurada e informação adequada, e a um preço que os indivíduos e as comunidades possam pagar (OMS, 2002).

Seguindo a recomendação da OMS, a Política Nacional de Medicamentos estipulou como diretriz a manutenção da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME), como também, a sua constante atualização. Conforme dados do Ministério da Saúde, a primeira lista de medicamentos foi elaborada em 1964 e até o presente momento passou por nove atualizações (MAPELLI JÚNIOR; COIMBRA; MATOS, 2012, p. 107).

A RENAME é a lista de medicamentos de caráter nacional e figura como parâmetro dos Estados, Distrito Federal e Municípios para a elaboração de suas respectivas listas, que devem levar em consideração os dados epidemiológicos regionais e o perfil de sua população. Cada município deve elaborar a sua lista de medicamentos essenciais - REMUME (MAPELLI JÚNIOR; COIMBRA; MATOS, 2012, p. 107).

As listas de medicamentos essenciais são de suma importância, uma vez que facilitam a sua aquisição, dispensação e prescrição, bem como propiciam a racionalização de recursos. A atualização dessas listas se revela necessária para garantir que permaneça em consonância com as necessidades epidemiológicas

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específicas da população e com os avanços científicos e tecnológicos. Entretanto, a existência da lista de medicamentos essenciais não se presta a restringir o acesso integral do indivíduo aos tratamentos que se revelarem necessários à manutenção de sua saúde. A lista de medicamentos essenciais é um instrumento para assegurar garantias mínimas à população. É importante que, para o pedido administrativo ou ainda para uma eventual ação judicial, haja evidência científica da necessidade do produto fármaco ou do insumo terapêutico (MAPELLI JÚNIOR; COIMBRA; MATOS, 2012, p. 107).

O custo dos direitos Como direito social, a saúde depende da implementação de complexas

políticas públicas, que demandam vultosos recursos públicos. Essa constatação repercute diretamente nas demandas judiciais que buscam o fornecimento de medicamentos, haja vista que as decisões criam novas despesas para os cofres públicos. Conforme Fernando Scaff, essas decisões são denominadas “sentenças aditivas”, ou seja, essas decisões constituem um aumento de gastos pelo Erário, obrigando-o ao reconhecimento de um direito social não previsto no orçamento do Poder Público anteriormente. Assim, toda decisão que envolver gastos ao Estado e tiver por objeto direitos sociais se enquadra na definição de “sentença aditiva” (SCAFF, 2008, p. 149-150).

De acordo com Fernando Scaff, as “sentenças aditivas” geram alguns problemas, tendo em vista as complexidades sociais, econômicas e jurídicas, existentes no Brasil. Tais decisões são pontuais, privilegiando um pequeno grupo de indivíduos, implicando na dificuldade e, até mesmo, na impossibilidade de extensão de seus efeitos a todas as pessoas que se encontram em idêntica situação de carência. Além disso, as “sentenças aditivas” transformam o Judiciário em verdadeiros “ordenadores de despesas públicas”, prejudicando demasiadamente o planejamento governamental pelo Executivo e pelo Legislativo no que se refere às políticas públicas aprovadas por lei, e com recursos direcionados à sua implementação por meio do sistema orçamentário (SCAFF, 2008, p. 151-152).

O referido autor aponta alguns desconfortos que as “sentenças aditivas” provocam:

[...] não há como fazer planejamento financeiro em caso de ordens judiciais para imediato desembolso de valores sem que haja um mínimo de previsão orçamentária para isso. A fórmula brasileira para pagamento de despesas de pequeno valor, em caso de precatórios, é uma solução inventiva, justa e adequada, que resolveu um problema real através de uma lei. A fórmula de bloqueio judicial de valores, ‘na boca do caixa’, não me parece ser a melhor solução, embora venha sendo aplicada para este tipo de decisão judicial com efeito de desembolso imediato de valores por parte do Poder Público, que usualmente ocorrem em face de decisões liminares, e não definitivas de mérito (SCAFF, 2008, p. 159).

Nesse sentido, é importante explicitar alguns dados apresentados pelo Promotor de Justiça, Chefe de gabinete da Secretaria da Saúde do Estado de São

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Paulo, Reynaldo Mapelli Júnior, em palestra proferida no dia 15 de junho de 2012, no Fórum Regional Itinerante “Judicialização do Direito à Saúde”, evento promovido pela Escola Paulista da Magistratura, em parceria com o Jornal da Justiça. Segundo Mapelli, baseado no sistema S-CODES, no ano de 2011, havia a quantidade de 25.184 de ações judiciais em atendimento junto à Secretaria do Estado de São Paulo, as quais englobavam as seguintes categorias: materiais, medicamentos e nutrição. O custo estimado para o atendimento dessas ações judiciais totalizava o valor de R$ 32.073.011,13. Desse valor, R$ 26.367.310,60, ou seja, 82,21% era referente ao custo para o atendimento das ações judiciais, cuja matéria discutida relacionava-se a medicamentos. Esse tipo de análise deve ser levada em consideração pelos julgadores, na medida em que suas decisões trazem consequências econômicas e influem consideravelmente na gestão das políticas públicas em saúde.

A atuação judicial que privilegie um grupo de pessoas pode prejudicar os esforços de um planejamento de política pública que beneficie a generalidade da população a longo prazo. O magistrado determina qual a melhor maneira de aplicar os escassos recursos, mesmo sem ter o pleno conhecimento da política pública em questão e a capacidade de gasto do Estado, ou ainda no que se refere a outros problemas sociais sujeitos à ação governamental. Não existe um exame dos custos de oportunidade. O magistrado somente olha quem ganha, mas não quem perde (SUSTEIN; HOLMES, 1999, p. 95).

Críticas à judicialização da política pública de assistência farmacêuticaFalta de conhecimento técnico dos juízes para alocarem recursos públicos em matéria de assistência farmacêutica

Chama a atenção a quantidade de decisões proferidas por juízes, que ao se colocarem diante de causas que versam sobre direitos sociais, notadamente o direito à saúde e ao acesso a medicamentos, ignoram a sistemática operativa das políticas públicas da matéria em questão, deferindo o pedido sem o cuidado de adequar a decisão às peculiaridades das ações governamentais existentes.

Em uma pesquisa empírica realizada por alunos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, foram analisadas todas as decisões proferidas pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo sobre concessão de medicamentos para tratamento da AIDS, no período de 1997 a junho de 2004. Os pesquisadores concluíram que em 85% dos casos os medicamentos pleiteados eram concedidos. Ademais, tanto com relação aos casos de concessão, quanto aos casos de não concessão do medicamento, foi examinada a avaliação pelo julgador da necessidade de uma política pública prévia ao reconhecimento do direito à saúde. Em 66,7% das decisões de não concessão, os julgadores reconheceram que a efetivação do direito à saúde se dá a partir da implementação de políticas públicas. Já nos casos de concessão, somente 28,5% fizeram esta consideração. Verificou-se que embora alguns acórdãos tenham reconhecido a existência de políticas públicas específicas para DST/AIDS, nenhum deles abordou pormenorizadamente o desenho institucional da política pública praticada pelo Estado (FERREIRA et al, 2004, p. 387-431).

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Essa pesquisa é interessante uma vez que mostra a que passo anda a concepção dos operadores do direito no que ser refere à judicialização da política pública de assistência farmacêutica. A pesquisa revela que além dos juízes ignorem a sistemática operativa das políticas públicas da matéria em questão, deferindo o pedido sem o cuidado de adequar a decisão às peculiaridades das ações governamentais existentes; fica evidente que tendem a não levar em consideração as consequências econômicas e sociais das suas decisões. Nota-se ainda que quando os magistrados levam em consideração os impactos financeiros e sociais nas políticas públicas, a possibilidade deferimento da pretensão tende a ser significativamente menor do que quando esses aspectos são menosprezados.

O casuísmo da jurisprudência tem revelado que os magistrados concedem medicamentos não incluídos nas listas oficiais do SUS; com comercialização não autorizada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA); ou inexistentes no Brasil.

Enfatiza-se que a quantidade de conhecimento e informação para gerir uma política pública é muito grande e nossos juízes estão longe do conhecimento e informação necessários para alocarem recursos públicos.

Se atentarmos para a política de distribuição de medicamentos, ela inicia-se com a seleção dos medicamentos que irão compor a lista daqueles a serem distribuídos na rede pública. Essa lista é elaborada, pautando pelos seguintes critérios: melhor evidência farmacológica-clínica; perfil dos usuários dos medicamentos; eficácia, segurança e efetividade; requisitos de qualidade dos fármacos; comodidade posológica; no custo; e na disponibilidade no mercado. Em seguida, adentra-se no processo de suprimento, que começa com a programação, que deve quantificar o que será comprado, elaborando-se especificações para os medicamentos selecionados, com base em: definição de prioridades; orçamento disponível; condições estruturais do serviço; especificidades administrativas que facilitem ou constranjam o processo de suprimento; dados epidemiológicos atualizados; e consumo histórico (OLIVEIRA; BERMUDEZ; OSORIO-DE-CASTRO, 2007, p. 15-16).

Em síntese, uma política de distribuição de medicamentos em um sistema público de saúde é pautada em três pilares: lista de medicamentos selecionados, legislação vigente e orçamento disponível. A realidade é que os recursos são escassos, de modo que é necessário buscar critérios médico-cientifícos e financeiros para decidir acerca da alocação de recursos (OLIVEIRA; BERMUDEZ; OSORIO-DE-CASTRO, 2007, p. 23).

Diante da infinidade de questões que os gestores públicos de saúde devem levar em consideração para viabilizar uma política de medicamentos, fica difícil justificar a possibilidade do Judiciário de estabelecer a maneira pela qual parte do orçamento público deve ser gasta, suplantando-se as decisões tomadas pelos gestores públicos.

Falta de legitimidade do Poder Judiciário para alocar recursos escassosA outra crítica à judicialização da saúde se refere à falta de legitimidade

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do Poder Judiciário para alocar recursos escassos, uma vez que, em um Estado democrático, essas decisões devem ser tomadas em processos que garantam a participação e a contestação pública (WANG, 2009, p. 15). A participação e contestação são importantes para legitimar as decisões governamentais em geral e essenciais quando se trata de questões de política pública e justiça distributiva, visto que propiciam a apropriação por alguns de bens financiados por toda a sociedade (LOPES, 2006, p. 171).

Dessa forma, a competência para tomar decisões acerca da alocação de recursos, cuja natureza é eminentemente política e distributiva, seria do Executivo e do Legislativo, representantes do povo e, portanto, legitimados a decidir por todos sobre a viabilização da política pública (WANG, 2009, p. 16).

Como os membros do Poder Judiciário, não são eleitos democraticamente pela maioria, não teriam legitimidade democrática para determinar como parcela dos recursos públicos deve ser gasto, em detrimento das prioridades já definidas pelos poderes democraticamente eleitos. Assim, o magistrado que concede um medicamento, estaria suplantando sua vontade em relação à vontade da maioria, caracterizando um verdadeiro ponto de veto das decisões tomadas pelos representantes democraticamente eleitos (WANG, 2009, p. 16).

Nessa perspectiva, as decisões que envolvam a alocação de recurso em matéria da saúde, devem ficar no âmbito dos poderes políticos, ou seja, o Executivo e o Legislativo, pois são eleitos pelo povo para tomarem decisões de caráter precipuamente político. Decidir quem terá seus direitos protegidos e em que intensidade é função dos arranjos políticos na democracia. Essas decisões são complexas, pois há diversos critérios que devem ser analisados, de forma que elas apresentam um jaez nitidamente discricionário e político (WANG, 2009, p. 16-17).

Portanto, a alocação de recurso nas políticas públicas deve ser feita pelo Legislativo e pelo Executivo e seu controle deve ser político, com a participação e contestação da sociedade. Nessa esteira, de acordo com Virgílio Afonso da Silva, da mesma maneira como se deu com os direitos sociais e políticos, a implementação dos direitos sociais deve ser uma conquista da sociedade civil realizada por meios políticos (SILVA, s.p.). Para José Joaquim Gomes Canotilho, a concretização dos direitos sociais decorre da intensa participação democrática nas políticas públicas. Para o referido autor, judicialização direito à saúde pode levar “a dissolução potencial da ação política-democrática numa ‘curta’ mentalidade de pretensões subjetivas, judicialmente acionáveis” (CANOTILHO, 1983, p. 377).

Necessidade de diálogo institucionalEm que pese os aspectos negativos da judicialização da saúde, é necessário

ter cautela na análise da atuação judicial nessa matéria, uma vez que há espaço para que o Judiciário atue contra as deficiências do processo político, corrigindo desigualdades e salvaguardando o direito à saúde. Nesse ponto, para a obtenção da efetiva fruição do direito à saúde, é necessário que haja um diálogo institucional. Muitas vezes, o processo deliberativo democrático apresenta falhas na sua regulamentação, na apreciação do impacto das decisões tomadas e na acomodação

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de interesses e prioridades. Além disso, pode haver uma inércia por parte da Administração na implementação das políticas públicas (FERREIRA, 2011, p. 249).

De sorte que, havendo um diálogo institucional, o Judiciário não é chamado a intervir somente no caso de erro evidente ou patente irracionalidade por parte do Legislativo ou do Executivo no concernente ao alcance e à prioridade que deve ser dada para a concretização dos direitos sociais, notadamente do direito à da saúde. Nesse viés, o Judiciário pode intervir, tanto coercitivamente, quanto comunicativamente, em situações em que há falhas discutíveis de previsão, de perspectiva, de acomodação de interesses ou de resposta (FERREIRA, 2011, p. 250).

Ademais, a teoria do diálogo estimula a participação da comunidade por meio, por exemplo, de audiências públicas que aprimoram a deliberação democrática e o impacto das decisões. Esses mecanismos de diálogo resolveriam os problemas dos juízes com o conhecimento técnico para encontrar e implementar soluções, vez que as essas devem ser elaboradas com alguma ingerência dos diversos setores envolvidos, tais como, autoridades públicas, líderes e membros da população beneficiada, especialistas de universidades, organizações da sociedade civil. O diálogo institucional propicia o desbloqueio de processos políticos, a coordenação entre diferentes órgãos estatais e a criação de políticas públicas moldadas segundo uma linguagem de direitos (FERREIRA, 2011, p. 250).

Considerações finais O Judiciário vem assumindo um novo papel na concretização dos direitos

sociais, notadamente dos direitos à saúde e ao acesso a medicamentos. Nota-se que os cidadãos têm recorrido às vias judiciais para a efetivação desses direitos, por ser mais célere e impositiva. Todavia, a visão de que a atividade judicial nas políticas públicas é sempre positiva deve ser desmistificada.

Com efeito, o trabalho se preocupou em levantar objeções no tocante à judiciacialização da política pública de assistência farmacêutica. A primeira objeção se refere à falta de informação e conhecimento dos juízes para alocar recursos escassos. Chama a atenção o fato dos juízes não se atentarem para a sistemática operativa das políticas públicas, concedendo medicamentos não incluídos nas listas oficiais do SUS, com comercialização não autorizada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária ou inexistentes no Brasil. A segunda objeção trata do déficit de legitimidade do Poder Judiciário para alocar os recursos escassos, uma vez que somente os poderes políticos, Executivo e Legislativo, cujos representantes são eleitos pelo povo, teriam a legitimidade de decidirem a forma que os recursos devem ser gastos.

Além disso, no mais das vezes os magistrados não avaliam as consequências econômicas e financeiras das suas decisões ao concederem medicamentos, uma vez que acabam beneficiando um grupo de indivíduos em detrimento da generalidade da população; o que acaba gerando injustiças.

O fato é que, embora essas objeções sejam relevantes, elas não são suficientes para impedir a atuação do Judiciário frente ao direito à saúde. É certo que em alguns casos a intervenção judicial se mostra essencial para corrigir desigualdades.

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Os problemas apontados podem ser solucionados através do diálogo entre os órgãos e instituições acerca da implementação de políticas públicas. A saúde é um direito em constante construção e, para sua concretização, é necessária a atuação conjunta dos órgãos públicos e a sociedade.

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A NOVA MORFOLOGIA DO TRABALHO

RICARDO ANTUNES 1

Na história da atividade humana, o trabalho tem sido vital, uma vez que sua efetivação é resultado de uma atividade essencialmente humana. Esse fazer humano tornou a história do ser social um ponto de partida essencial para a constituição do ser social.

Mas, por outro lado, se a vida humana se resumisse exclusivamente ao trabalho, seria a efetivação de um esforço penoso, aprisionando o ser social em uma unidimensionalidade, colhedora da capacidade multidimensional que conforma a humanidade.

Esse é o primeiro elemento vital quando se estuda os sentidos do trabalho: seus elementos de positividade e de negatividade estão em constante embate e movimento. Vamos, então, explorar esta contradição presente no processo de trabalho, para, em seguida, desenhar a sua nova morfologia.

É célebre a distinção, feita por Marx, entre o “pior arquiteto e a melhor abelha”: o primeiro concebe previamente o trabalho que vai realizar, enquanto a abelha labora instintivamente (Marx, 1971).

Dissemos acima que o trabalho, em sua realização cotidiana, possibilitou que o ser social se diferenciasse de todas as formas pré-humanas. Os homens e mulheres que trabalham são dotados de consciência, uma vez que concebem previamente o desenho e a forma que querem dar ao objeto do seu trabalho.

Foi por isso que Lukács afirmou que o “trabalho é um ato de por consciente e, portanto, pressupõe um conhecimento concreto, ainda que jamais perfeito, de determinadas finalidades e de determinados meios” (Lukács, 1978: 8). E outro grande autor, Gramsci, acrescentou que em qualquer forma de trabalho, mesmo no trabalho mais manual, há sempre uma clara dimensão intelectual.

Anteriormente, Marx havia demonstrado que o trabalho é fundamental na vida humana porque é condição para sua existência social: “Como criador de valores de uso, como trabalho útil, é o trabalho, por isso, uma condição de existência do homem, independentemente de todas as formas de sociedade, eterna necessidade natural de mediação do metabolismo entre homem e natureza e, portanto, vida humana” (Marx, 1971: 50). E, ao mesmo tempo em que os indivíduos transformam a natureza externa, alteram também a sua própria natureza humana, num processo de transformação recíproca que converte o trabalho social num elemento central do desenvolvimento da sociabilidade humana.

Mas, se por um lado, podemos considerar o trabalho como um momento

1 Professor Titular em Sociologia do Trabalho na Universidade de Campinas (UNICAMP). Foi “Visiting Research Fellow” junto à School of European Studies da Universidade de SUSSEX. Autor de Os Sentidos do Trabalho, (Boitempo); Adeus ao Trabalho? (Cortez), os dois publicados em várias edições no exterior e Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil, Vol. II (Boitempo, 2013). Coordena as Coleções Mundo do Trabalho (Boitempo) e Trabalho e Emancipação (Expressão Popular). Este texto á parte de nossa pesquisa de Bolsa produtividade junto ao CNPq.

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fundante da vida humana‚ ponto de partida no processo de humanização, por outro lado, a sociedade capitalista o transformou em trabalho assalariado, alienado, fetichizado. O que era uma finalidade central do ser social converte-se em meio de subsistência. A força de trabalho torna-se uma mercadoria, ainda que especial, cuja finalidade é criar novas mercadorias e valorizar o capital. Converte-se em meio e não primeira necessidade de realização humana.

Por isso Marx vai afirmar, nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, que o trabalhador decai a uma mercadoria, torna-se um ser estranho, um meio da sua existência individual. O que deveria ser fonte de humanidade se converte desrealização do ser social, alienação e estranhamento dos homens e mulheres que trabalham. E esse processo de alienação do trabalho não se efetiva apenas no resultado na perda do objeto, do produto do trabalho, mas também o próprio ato de produção, resultado da atividade produtiva já alienada. O que significa dizer que, sob o capitalismo, o trabalhador não se satisfaz no trabalho, mas se degrada; não se reconhece, mas se desumaniza no trabalho (Marx, 2004).

O trabalho como atividade vital se configura então como trabalho estranhado, expressão de uma relação social fundada na propriedade privada, no capital e no dinheiro. Estranhado frente ao produto do seu trabalho e frente ao próprio ato de produção da vida material, o ser social torna-se um ser estranho frente a ele mesmo: o homem estranha-se em relação ao próprio homem, tornando-se estranho em relação ao gênero humano (idem).

Portanto, com o advento do capitalismo houve uma transformação essencial que alterou e complexificou o trabalho humano. Essa dupla dimensão presente no processo de trabalho que, ao mesmo tempo cria e subordina, emancipa e aliena, humaniza e degrada, oferece autonomia, mas gera sujeição, libera e escraviza, impede que o estudo do trabalho humano seja unilateralizado ou tratado de modo binário e dual.

A desconsideração desta complexa e contraditória relação permitiu que muitos autores, equivocadamente, defendessem a desconstrução ou mesmo o fim da atividade laborativa. Mas, por outro lado, não foram poucas as mutações que o capitalismo introduziu no mundo da produção e do trabalho nas últimas décadas. Vamos, então, indicar a seguir algumas destas tendências.

A Crise e a precarização estrutural do trabalhoSabemos que a partir dos inícios dos anos 1970, o capital implementou

um processo de reestruturação em escala global, visando tanto a recuperação do seu padrão de acumulação, quanto procurando repor a hegemonia que vinha perdendo, no interior do espaço produtivo, desde as explosões do final da década de 1960 onde se desencadeou um monumental ciclo de greves e lutas sociais.

Foi nesse contexto que o capital, em escala global, redesenhou novas e velhas modalidades de trabalho, com o objetivo de recuperar as formas econômicas, políticas e ideológicas da dominação burguesa.

Proliferaram, a partir de então, as distintas formas de “empresa enxuta”, “empreendedorismo”, “cooperativismo”, “trabalho voluntário”, etc., dentre as

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mais distintas formas alternativas de trabalho precarizado. E os capitais utilizaram-se de expressões que de certo modo estiveram presentes nas lutas sociais dos anos 1960, como autonomia, participação social, para dar-lhes outras configurações, muito distintas, de modo a incorporar elementos do discurso operário, porém sob clara concepção burguesa. O exemplo das cooperativas talvez seja o mais eloqüente, uma vez que, em sua origem, as cooperativas eram reais instrumentos de luta e defesa dos trabalhadores contra a precarização do trabalho e o desemprego.

O que vem fazendo os capitais em escala global: criando cooperativas falsas, como forma de precarizar (e destruir) ainda mais os direitos do trabalho.

Sabemos que as cooperativas originais, criadas autonomamente pelos trabalhadores, têm um sentido coletivo, em oposição ao despotismo fabril e ao planejamento gerencial, sendo por isso um real instrumento de luta e ação contra o desemprego estrutural, consistindo também num efetivo embrião de exercício autônomo da produção coletiva dos trabalhadores.

Na fase capitalista das megafusões, os capitais denominam como “cooperativas” verdadeiros empreendimentos patronais para destruir direitos sociais do trabalho. Muito diferentes das experiências de cooperativas feitas pelo Movimento dos Trabalhadores Sem-terra (MST) no Brasil, por exemplo, que são esforços autênticos dos trabalhadores e das trabalhadoras rurais para buscar sua sobrevivência e reprodução fora dos marcos dominantes do capitalismo.

Outro exemplo forte desse processo de ocultamento das novas modalidades de exploração do trabalho é o chamado “empreendedorismo”. Luciano Vasapollo caracteriza este processo de modo claro: “As novas figuras do mercado de trabalho, os novos fenômenos do empreendedorismo, cada vez mais se configuram em formas ocultas de trabalho assalariado, subordinado, precarizado, instável, trabalho “autônomo” de última geração, que mascara a dura realidade da redução do ciclo produtivo. Na verdade, trata-se de uma nova marginalização social e não de um novo empresariado” (Vasapollo, 2006 e Vasapollo e Ariola, 2005).

O mesmo quadro de precarização se pode presenciar quando se analisam as diversas modalidades de “flexibilização” do trabalho, que sempre acabam trazendo, de modo embutido, diferentes formas de precarização.

Ainda segundo o autor: “A nova condição de trabalho está sempre perdendo mais direitos e garantias sociais. Tudo se converte em precariedade, sem qualquer garantia de continuidade: ‘O trabalhador precarizado se encontra, ademais, em uma fronteira incerta entre ocupação e não-ocupação e também em um não menos incerto reconhecimento jurídico diante das garantias sociais. Flexibilização, desregulação da relação de trabalho, ausência de direitos. Aqui a flexibilização não é riqueza. A flexibilização, por parte do contratante mais frágil, a força de trabalho, é um fator de risco e a ausência de garantias aumenta essa debilidade. Nessa guerra de desgaste, a força de trabalho é deixada completamente descoberta, seja em relação ao próprio trabalho atual, para o qual não possui garantias, seja em relação ao futuro, seja em relação à renda, já que ninguém o assegura nos momentos de não-ocupação” (idem).

Dentre as distintas formas de flexibilização – em verdade precarização –

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podemos destacar a salarial, de horário, funcional ou organizativa, dentre outros exemplos. A flexibilização pode ser entendida como “liberdade da empresa” para desempregar trabalhadores; sem penalidades, quando a produção e as vendas diminuem; liberdade, sempre para a empresa, para reduzir o horário de trabalho ou de recorrer a mais horas de trabalho; possibilidade de pagar salários reais mais baixos do que a paridade de trabalho exige; possibilidade de subdividir a jornada de trabalho em dia e semana segundo as conveniências das empresas, mudando os horários e as características do trabalho (por turno, por escala, em tempo parcial, horário flexível etc.), dentre tantas outras formas de precarização da força de trabalho.

Uma conclusão se impõe: “A flexibilização, definitivamente, não é solução para aumentar os índices de ocupação. Ao contrário, é uma imposição à força de trabalho para que sejam aceitos salários reais mais baixos e em piores condições. É nesse contexto que estão sendo reforçadas as novas ofertas de trabalho, por meio do denominado mercado ilegal, no qual está sendo difundido o trabalho irregular, precário e sem garantias. Com o pós-fordismo e a mundialização econômico-produtiva, o trabalho ilegal vem assumindo dimensões gigantescas, também porque os países industrializados deslocaram suas produções para além dos limites nacionais e, sobretudo, vêm investindo em países nos quais as garantias trabalhistas são mínimas e é alta a especialização do trabalho, conseguindo, assim, custos fundamentalmente mais baixos e aumentando a competitividade (...). “A globalização neoliberal e a internacionalização dos processos produtivos estão acompanhadas da realidade de centenas e centenas de milhões de trabalhadores desempregados e precarizados no mundo inteiro. O sistema fordista nos havia acostumado ao trabalho pleno e de duração indeterminada. Agora, ao contrário, um grande número de trabalhadores tem um contrato de curta duração ou de meio expediente; os novos trabalhadores podem ser alugados por algumas poucas horas ao dia, por cinco dias da semana ou por poucas horas em dois ou três dias da semana” (Vasapollo, idem).

Esboçando a nova morfologia do trabalhoEsse conjunto de metamorfoses alterou em alguma medida a forma de ser

da classe trabalhadora. Quais são, então, os contornos mais gerais, que configuram o que estamos denominando como nova morfologia do trabalho?

Desde logo é preciso indicar que a classe trabalhadora compreende a totalidade dos assalariados, homens e mulheres que vivem da venda da sua força de trabalho, a classe-que-vive-do-trabalho e que são despossuídos dos meios de produção. Podemos, então, enumerar algumas das principais tendências:

1) Desde o início da reestruturação produtiva do capital vem ocorrendo uma redução do proletariado industrial, fabril, tradicional, manual, estável e especializado, herdeiro da era da indústria verticalizada de tipo taylorista e fordista. Este proletariado vinculado aos ramos mais tradicionais vem dando lugar a formas mais desregulamentadas de trabalho, reduzindo fortemente o conjunto de trabalhadores estáveis que se estruturavam através de empregos formais,

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herança da fase taylorista/fordista. 2) Há, entretanto, outra tendência muito significativa e que se caracteriza

pelo aumento do novo proletariado fabril e de serviços, em escala mundial, presente nas diversas modalidades de trabalho precarizado. São os terceirizados, subcontratados, part-time, entre tantas outras formas assemelhadas, que se expandem em escala global. Com a desestruturação crescente do Welfare State nos países do Norte e aumento da desregulamentação do trabalho nos países do Sul, acrescidos da ampliação do desemprego estrutural, os capitais implementam alternativas de trabalho crescentemente “informais”, de que são exemplo as distintas formas de terceirização. No Brasil, aproximadamente 50% da população economicamente ativa encontra-se em situação próxima da informalidade.

3) Há um aumento significativo do trabalho feminino em diversos países avançados e também na América Latina, onde também foi expressivo o processo de feminização do trabalho. Esta expansão tem, entretanto, um movimento inverso quando se trata da temática salarial, onde os níveis de remuneração das mulheres são em média inferiores àqueles recebidos pelos trabalhadores, o mesmo ocorrendo em relação aos direitos sociais e do trabalho, que também são desiguais. No Brasil, o salário médio das mulheres está em torno de 60% a 70% do salário dos trabalhadores (Nogueira, 2004).

4) É perceptível também, particularmente nas últimas décadas do Século XX, uma significativa expansão dos assalariados médios no “setor de serviços”, que inicialmente incorporou parcelas significativas de trabalhadores expulsos do mundo produtivo industrial, como resultado do amplo processo de reestruturação produtiva, das políticas neoliberais e do cenário de desindustrialização e privatização. Se, entretanto, inicialmente deu-se uma forte absorção, pelo setor de serviços, daqueles/as que se desempregavam do mundo industrial, é necessário acrescentar também que as mutações organizacionais, tecnológicas e de gestão também afetaram fortemente o mundo do trabalho nos serviços, que cada vez mais se submetem à racionalidade do capital e à lógica dos mercados. Com a inter-relação crescente entre mundo produtivo e setor de serviços, vale enfatizar que várias atividades neste setor, anteriormente consideradas improdutivas, tornaram-se diretamente produtivas, subordinadas à lógica exclusiva da racionalidade econômica e da valorização do capital.

5) Outra tendência presente no mundo do trabalho é a crescente exclusão dos jovens, que atingiram a idade de ingresso no mercado de trabalho e que, sem perspectiva de emprego, acabam muitas vezes engrossando as fileiras dos trabalhos precários, dos desempregados, sem perspectivas de trabalho, dada a vigência da sociedade do desemprego estrutural.

6) Paralelamente à exclusão dos jovens vem ocorrendo também a exclusão dos trabalhadores considerados “idosos” pelo capital, com idade próxima de 40 anos e que, uma vez excluídos do trabalho, dificilmente conseguem reingressar no mercado de trabalho. Somam-se, desse modo, aos contingentes do chamado trabalho informal, aos desempregados, aos “trabalhos voluntários etc. O mundo do trabalho atual tem recusado os trabalhadores herdeiros da “cultura fordista”,

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fortemente especializados, que são substituídos pelos trabalhadores “polivalentes e multifuncionais” da era toyotista.

7) Além da exclusão dos “idosos” e jovens em idade pós-escolar, o mundo do trabalho, nas mais diversas partes do mundo, tem se utilizado da inclusão precoce e criminosa de crianças no mercado de trabalho, nas mais diversas atividades produtivas.

8) Como desdobramento destas tendências acima apontadas, vem se desenvolvendo no mundo do trabalho uma crescente expansão do trabalho no chamado “Terceiro Setor”, assumindo uma forma alternativa de ocupação, através de empresas de perfil mais comunitários, motivadas predominantemente por formas de trabalho voluntário, abarcando um amplo leque de atividades, onde predominam aquelas de caráter assistencial, sem fins diretamente mercantis ou lucrativos e que se desenvolvem relativamente à margem do mercado.

A expansão desse segmento é um desdobramento direto da retração do mercado de trabalho industrial e de serviços, num quadro de desemprego estrutural. Esta forma de atividade social, movida predominantemente por valores não-mercantis, tem tido certa expansão, através de trabalhos realizados no interior das ONGs e outros organismos ou associações similares. Trata-se, entretanto, de uma alternativa extremamente limitada para compensar o desemprego estrutural, não se constituindo, em nosso entendimento, numa alternativa efetiva e duradoura contra o mercado de trabalho capitalista e, conforme indicamos anteriormente, frequentemente mascaram formas precarizadas de trabalho. .

9) Outra tendência que gostaríamos de apontar é a da expansão do trabalho à domicílio, permitida pela desconcentração do processo produtivo, pela expansão de pequenas e médias unidades produtivas. Através da telemática e das tecnologias de informação, com o avanço da horizontalização do capital, o trabalho produtivo doméstico vem presenciando formas de expansão em várias partes do mundo. Desse modo, o trabalho produtivo a domicílio mescla-se com o trabalho reprodutivo doméstico, aumentando as formas de exploração do contingente feminino (Nogueira, 2006).

Quando se pensa, portanto, na classe trabalhadora hoje, é preciso reconhecer esse desenho compósito, heterogêneo e multifacetado que caracteriza a nova morfologia: além das clivagens entre os trabalhadores estáveis e precários, homens e mulheres, jovens e idosos, nacionais e imigrantes, brancos e negros, qualificados e desqualificados, empregados e desempregados, temos também as estratificações e fragmentações que se acentuam em função do processo crescente de internacionalização do capital.

O que nos obriga a elaborar uma concepção ampliada de trabalho, que engloba a totalidade dos assalariados que vivem da venda da sua força de trabalho, não se restringindo aos trabalhadores manuais diretos, mas incluindo também o enorme leque que compreende aqueles que vendem sua força de trabalho como mercadoria em troca de salário.

No plano mais analítico, podemos acrescentar que a classe-que-vive-do-trabalho incorpora tanto o núcleo central do proletariado industrial, os trabalhadores

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produtivos que participam diretamente do processo de criação de mais valia e da valorização do capital que hoje transcende em muito as atividades industriais, dada a ampliação dos setores produtivos nos serviços, como abarca também os trabalhadores improdutivos, que não criam diretamente mais valia, uma vez que são utilizados como serviço, seja ara uso público, como os serviços públicos, seja para uso capitalista. Isso porque os trabalhadores improdutivos, criadores de anti-valor no processo de trabalho, vivenciam situações muito aproximadas com aquelas experimentadas pelo conjunto dos trabalhadores produtivos.

A classe trabalhadora hoje, também incorpora o proletariado rural, que vende a sua força de trabalho para o capital, de que são exemplos os assalariados das regiões agro-industriais e incorpora também o proletariado precarizado, o proletariado moderno, fabril e de serviços, part time, que se caracteriza pelo vínculo de trabalho temporário, pelo trabalho precarizado, em expansão na totalidade do mundo produtivo. Inclui, também aqueles que exercem formas do trabalho imaterial. E abarcam, ainda, a totalidade dos trabalhadores desempregados.

Não fazem parte da classe trabalhadora moderna, em nosso entendimento, os gestores, pelo papel central que exercem no controle, gestão e sistema de mando do capital. Estão excluídos também os pequenos empresários, a pequena burguesia urbana e rural que é proprietária e detentora, ainda que em pequena escala, dos meios de sua produção. E estão excluídos também aqueles que vivem de juros e da especulação.

O Século XXI apresenta, portanto, um cenário profundamente contraditório e agudamente crítico: se o trabalho ainda é central para a criação do valor - reiterando seu sentido de perenidade - estampa, em patamares assustadores, seu traço de superfluidade, da qual são exemplos os precarizados, flexibilizados, temporários, além do enorme exército de desempregados e desempregadas que se esparramam pelo mundo. Mais de um bilhão de homens e mulheres padecem as vicissitudes do trabalho precarizado, instável, temporário, terceirizado, dos quais centenas de milhões têm seu cotidiano moldado pelo desemprego estrutural. Se contabilizados os dados da Índia e China, a conta se avoluma ainda mais.

Há, então, um movimento pendular que caracteriza a classe trabalhadora: por um lado, cada vez menos homens e mulheres trabalham muito, em ritmo e intensidade que se assemelham à fase pretérita do capitalismo, na gênese da Revolução Industrial, configurando uma redução do trabalho estável, herança da fase industrial que conformou o capitalismo do século XX. Como, entretanto, os capitais não podem eliminar completamente o trabalho vivo, consegue reduzi-lo em várias áreas e ampliá-lo em outras, como se vê pela crescente apropriação da dimensão cognitiva do trabalho. Aqui encontramos, então, o traço de perenidade do trabalho (Antunes, 2005).

No outro lado do pêndulo, cada vez mais homens e mulheres trabalhadores encontram menos trabalho, esparramando-se pelo mundo em busca qualquer labor, configurando uma crescente tendência de precarização do trabalho em escala global, sendo que a ampliação do desemprego estrutural é sua manifestação mais virulenta.

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Contrariamente, entretanto, às teses que advogam o fim do trabalho, estamos desafiados a compreender o que venho denominando como a nova polissemia do trabalho, a sua nova morfologia, isto é, sua forma de ser (para pensarmos em termos ontológicos), cujo elemento mais visível é o seu desenho multifacetado, resultado das fortes mutações que abalaram o mundo produtivo do capital nas últimas décadas. Nova morfologia que compreende desde o operariado industrial e rural clássicos, em processo de mutação, até os novos proletários do mundo, os novos contingentes de homens e mulheres terceirizados, subcontratados, temporários que se ampliam em escala global.

Nova morfologia que pode presenciar, simultaneamente, a retração do operariado industrial de base tayloriano-fordista e, por outro lado, a ampliação, segundo a lógica da flexibilidade-toyotizada, das trabalhadoras de telemarketing e call center, dos motoboys que morrem nas ruas e avenidas, dos digitalizadores que laboram (e se lesionam) nos bancos, dos assalariados do fast food, dos trabalhadores dos hipermercados etc.

Na China, por exemplo, país que cresceu em um ritmo estonteante, dadas as tantas peculiaridades de seu processo de industrialização hipertardia - que combina força de trabalho sobrante e hiper-explorada com maquinário industrial-informacional em lépido e explosivo desenvolvimento - também lá o contingente mais proletário vem se precarizando intensamente, sofrendo forte redução, em decorrência das mutações em curso naquele país. Não é por outro motivo que o PC Chinês e seu governo estão assustados também com o salto dos protestos sociais, que decuplicaram nos últimos anos. Processo assemelhado ocorre também na Índia e em tantas outras partes do mundo.

Dentro desta contextualidade, pode-se constatar uma nítida ampliação de modalidades de trabalho mais desregulamentadas, distantes da legislação trabalhista, gerando uma massa de trabalhadores que passam da condição de assalariados regulamentados para trabalhadores desregulamentados. Se nos anos 1980 era relativamente pequeno o número de empresas de terceirização, locadoras de força de trabalho de perfil temporário, nas décadas seguintes esse número aumentou significativamente, para atender à grande demanda por trabalhadores temporários, sem vínculo empregatício, sem registro formalizado.

Ou seja, em plena era da informatização do trabalho, do mundo maquinal e digital, estamos conhecendo a época da informalização do trabalho, dos terceirizados, precarizados, subcontratados, flexibilizados, trabalhadores em tempo parcial, do cyberproletariado, conforme a sugestiva indicação de Ursula Huws (2003).

Desemprego ampliado, precarização exacerbada, rebaixamento salarial acentuado, perda crescente de direitos, esse é o desenho mais freqüente da nossa classe trabalhadora. Resultante do processo de liofilização organizacional (Castillo, 1996) que permeia o mundo empresarial, onde as substâncias vivas são eliminadas, como o trabalho vivo, sendo substituídas pelo maquinário técno-informacional-digital presente no trabalho morto. E, nessa empresa liofilizada, é necessário um “novo tipo de trabalho”, que os capitais denominam, de modo mistificado, como “colaborador”.

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Quais são os contornos desse “novo tipo de trabalho”? Ele deve ser mais “polivalente”, “multifuncional”, diverso do trabalhador que se desenvolveu na empresa taylorista e fordista. O trabalho que cada vez mais as empresas buscam, não é mais aquele fundamentado na especialização taylorista e fordista, mas o que se gestou na fase da “desespecialização multifuncional”, do “trabalho polivalente”, que em verdade expressa a enorme intensificação dos ritmos, tempos e processos de trabalho. (Bernardo, 2004)

Além de operar através de várias máquinas, no mundo do trabalho hoje presenciamos também a ampliação do que Marx chamou de trabalho imaterial, realizado nas esferas da comunicação e informação, próprias da sociedade do logos, da marca, do simbólico, do involucral e do supérfluo. É o que o discurso empresarial chama de “sociedade do conhecimento” e que são resultado do labor imaterial, presente nas tecnologias de informação que, articulado e inserido ao trabalho material, expressam as formas contemporâneas do valor.

Os serviços públicos, como saúde, energia, educação, telecomunicações, previdência etc., também sofreram, como não poderia deixar de ser, um significativo processo de reestruturação, subordinando-se à máxima da mercadorização, que vem afetando fortemente os trabalhadores do setor estatal e público.

O resultado parece evidente: intensificam-se as formas de extração de trabalho, ampliam-se as terceirizações, a noção de tempo e de espaço também são metamorfoseadas e tudo isso muda muito o modo do capital produzir as mercadorias, sejam elas materiais ou imateriais, corpóreas ou simbólicas. Onde havia uma empresa concentrada pode-se substituí-la por várias pequenas unidades interligadas pela rede, com número muito mais reduzido de trabalhadores e produzindo muitas vezes mais. As repercussões no plano organizativo, valorativo, subjetivo e ideo-político são por demais evidentes.

E neste quadro, caracterizado por um processo de precarização estrutural do trabalho que os capitais globais estão exigindo também o desmonte da legislação social protetora do trabalho. E flexibilizar a legislação social do trabalho significa, não é possível ter nenhuma ilusão sobre isso, aumentar ainda mais os mecanismos de extração do sobretrabalho, ampliar as formas de precarização e destruição dos direitos sociais que foram arduamente conquistados pela classe trabalhadora, desde o início da Revolução Industrial, na Inglaterra.

Ampliou-se, então, o desenho compósito, heterogêneo e multifacetado que caracteriza a classe trabalhadora. Além das clivagens entre os trabalhadores estáveis e precários, de gênero, dos cortes geracionais entre jovens e idosos, entre nacionais e imigrantes, brancos e negros, qualificados e desqualificados, empregados e desempregados, temos ainda as estratificações e fragmentações que se acentuam em função do processo crescente de internacionalização do capital.

Essa nova morfologia do trabalho, que aqui tão somente indicamos alguns pontos centrais, não poderia deixar de afetar os organismos de representação dos trabalhadores. Daí a enorme crise dos sindicatos, para ficar somente neste exemplo. Se muitos analistas diagnosticaram um caráter terminal neste organismo de representação de classe, esse não é o nosso entendimento. Aqui queremos tão

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somente registrar que a nova morfologia do trabalho significa também um novo desenho das formas de representação das forças sociais do trabalho. Se a indústria taylorista e fordista é parte mais do passado do que do presente (ao menos enquanto tendência), como imaginar que um sindicalismo verticalizado possa representar esse novo e compósito mundo do trabalho?

Uma conclusão se impõe, à guisa de provocação: hoje devemos reconhecer (e mesmo saudar) a desierarquização dos organismos de classe. A velha máxima de que primeiro vinham os partidos, depois os sindicatos e, por fim, os demais movimentos sociais, não encontram mais respaldo no mundo real e em suas lutas sociais. O mais importante, hoje, é aquele movimento social, sindical ou partidário que consegue chegar as raízes das nossas mazelas e engrenagens sociais, tocando suas questões vitais. E, para fazê-lo, é imprescindível conhecer a nova (e ampla) morfologia do trabalho, bem como as complexas engrenagens do capital.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASANTUNES, Ricardo. O Caracol e sua Concha: Ensaios sobre a Nova Morfologia do Trabalho, Ed. Boitempo, São Paulo, 2005.BERNARDO, João. Democracia Totalitária: Teoria e Prática da Empresa Soberana, Ed. Cortez, São Paulo, 2004.CASTILLO, Juan J. Sociologia del Trabajo, CIS, Madri, 1996. HUWS, Ursula. The Making of a Cybertariat (Virtual Work in a Real World), Monthly Review Press/The Merlin Press, Nova Iorque/Londres, 2003.LUKÁCS. G. Lukács. As Bases Ontológicas do Pensamento e da Atividade do Homem, in Temas de Ciências Humanas, São Paulo, Ed. Ciências Humanas, no. 4, 1978.MARX, Karl. O Capital, Vol. 1/1, Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1971.____________. Manuscritos Econômico-Filosóficos, Boitempo Editorial, São Paulo, 2004.NOGUEIRA, Claudia. O Trabalho Duplicado, Ed. Expressão Popular, São Paulo, 2006. _________________. A Feminização no Mundo do Trabalho, Ed. Autores Associados, Campinas, 2004.VASAPOLLO, L. e ARIOLA. J. L’uomo precario nel disordine globale, Jaca Book, Milão, 2005.VASAPOLLO, L. O Trabalho Atípico e a Precariedade, Ed. Expressão Popular, São Paulo, 2005.

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A CONCEPÇÃO HUMANISTA DO DIREITO AGRÁRIO E A PRESERVAÇÃO DO MEIO

AMBIENTE

TAISA CINTRA DOSSO 1

ResumoA evolução da vertente humanista do direito agrário coloca o homem no centro de seu estudo. A preservação do meio ambiente está intimamente ligada à concepção do direito agrário voltado aos direitos humanos. Não se pode falar em atividade agrária dissociada da proteção da flora e da fauna. O ordenamento jurídico brasileiro reconhece essa relação, ao preceituar que a propriedade atenderá sua função social. No caso da propriedade rural, essa função social será atendida quando, dentre outros requisitos, houver preservação ambiental. A exploração econômica da terra deve ser realizada de forma ambientalmente equilibrada. O meio ambiente está tão estreitamente vinculado às questões agrárias que há quem defenda a existência de um direito agroambiental. Nesse contexto, o presente artigo visa analisar a concepção humanista da disciplina jusagrarista voltada à preservação ambiental, denotando relevante preocupação com os direitos inerentes à condição humana.PALAVRAS-CHAVE: Direito agrário; Direitos humanos; Propriedade rural; Meio ambiente.

O direito agrário tem a importante incumbência de regrar as atividades relacionadas, direta ou indiretamente, com a produção dos alimentos, necessidade vital do homem. A preocupação crescente com os direitos humanos se reflete no direito agrário, que coloca o homem no centro da disciplina.

A preservação do meio ambiente nas atividades agrárias é fruto da concepção humanista da disciplina jusagrarista. O fundamento da relação entre meio ambiente e direito agrário é extraído do princípio da função social da propriedade, cujo conteúdo, no caso da propriedade rural, está previsto no artigo 186 da Constituição Federal.

Surge, nesse contexto, o conceito de desenvolvimento sustentável, que visa compatibilizar desenvolvimento econômico, social e proteção do meio ambiente, aplicável, também, na utilização da propriedade rural no Brasil. A sustentabilidade é o atributo que caracteriza esse tipo de desenvolvimento. Ou seja, é necessário que uma sociedade possua recursos naturais aptos a suportar as ações empreendedoras, bem como tenha capacidade de se organizar através de atividades sociais, políticas e econômicas. Apenas assim estar-se-á diante do desenvolvimento equilibrado, equânime, sustentável, porém não menos eficiente.

E nesse contexto, o desenvolvimento deste artigo dar-se-á da seguinte forma: primeiramente, será analisada a relação entre o direito agrário, os direitos humanos e o meio ambiente. Após, será abordada a discussão acerca da existência de um

1 Graduada e Mestre em Direito pela UNESP, Especialista em Direito Processual Civil, Procuradora do Município de Ribeirão Preto/SP. Endereço eletrônico: [email protected].

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novo ramo do direito decorrente desta relação, qual seja, o direito agroambiental.

Direito agrário, direitos humanos e meio ambiente O direito agrário, como ramo autônomo do direito, está, assim como todos

os demais ramos jurídicos, intimamente ligado aos chamados direitos humanos. A preocupação crescente dos povos com o respeito aos direitos inerentes à condição do ser humano reclama uma análise da disciplina jusagrarista sob uma perspectiva humanista.

A doutrina da função social da propriedade reflete a concepção humanista do direito agrário. Conforme leciona José Diniz de Moraes (1999, p. 111), a função social da propriedade

[...] não é senão o concreto modo de funcionar da propriedade, seja como exercício do direito de propriedade ou não, exigido pelo ordenamento jurídico, direta ou indiretamente, por meio de imposição de obrigações, encargos, limitações, restrições, estímulos ou ameaças, para satisfação de uma necessidade social, temporal e espacialmente considerada.

A ideia de que o direito de propriedade não é absoluto, devendo ser exercido de modo a atender aos anseios sociais, encontra fundamento nos direitos humanos. A relação entre o direito agrário e os direitos humanos encontra-se na essência de cada uma das disciplinas e vem sendo objeto de importantes estudos, como o realizado por Ricardo Zeledón Zeledón (2002) em sua obra “Derecho Agrario y Derechos Humanos”.

Buscando estabelecer a relação entre as referidas disciplinas, o autor leciona que sempre foi dito que o direito agrário tem dois fortes pilares, quais sejam, um de caráter econômico e outro de caráter social, e sob essas bases suas normas vêm sendo desenvolvidas, e sob esses critérios tem-se orientado suas reflexões científicas. Em razão disso, a relação do direito agrário com os direitos humanos pode oferecer à ciência jusagrarista uma possibilidade certa para encontrar uma filosofia, assim como novas fontes jurídicas inspiradoras e, em concreto, uma explicação e razão de ser, enfim, sua alma (ZELEDÓN ZELEDÓN, 2002, p. 22).

Por outro lado, diz o autor que os direitos humanos poderão encontrar no direito agrário, talvez tanto ou mais que em outros ramos jurídicos, um corpo normativo em virtude do qual seus postulados deixam de ser enunciados programáticos, o produto de um desejo regional ou universal sem elementos de obrigatoriedade ou cumprimento imediato, para ganhar vida dentro de complexas realidades, não apenas como mecanismo para regulamentar essa realidade, mas também como uma bandeira portadora de liberdades nos âmbitos econômico e social, visando construir uma sociedade baseada no respeito à dignidade humana e na justiça social (ZELEDÓN ZELEDÓN, 2002).

Assim, o direito agrário encontra nos direitos humanos sua própria razão de ser, seu fundamento, porque esses direitos identificam na disciplina jusagrarista um grande campo de efetiva atuação e aplicação de seus postulados. A autonomia do direito agrário, portanto, encontra respaldo na sua relação com

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os direitos humanos. Oriundo da incapacidade do direito privado para resolver os problemas da agricultura, o direito agrário apenas adquire alma própria para exigir sua autonomia quando se relaciona, se identifica com os direitos humanos de natureza econômica e social (ZELEDÓN ZELEDÓN, 2002, p. 26).

É inegável, pois, a perfeita simbiose que existe entre a disciplina jusagrarista e os direitos do homem2. Trata-se de uma realidade que não pode ser desconsiderada, visto que ressalta a necessidade de se acolher o direito agrário com uma nova concepção, uma concepção mais humanista. Um direito agrário voltado, sobretudo, aos anseios mais imprescindíveis do ser humano.

E quais seriam esses anseios do ser humano? Nesse momento, é importante que se proceda a breves considerações acerca dos direitos humanos.

O núcleo da construção da noção de direitos humanos3 reside na dignidade da pessoa humana. Seu reconhecimento foi realizado, ao longo da história, graças a diversos documentos históricos, como as Declarações Internacionais4. João Baptista Herkenhoff (1994, p. 30-31) os conceitua como:

[...] aqueles direitos fundamentais que o homem possui pelo fato de ser homem, por sua própria natureza humana, pela dignidade que a ela é inerente. São direitos que não resultam de uma concessão da sociedade política. Pelo contrário, são direitos que a sociedade política tem o dever de consagrar e garantir.

Sobre o respeito aos direitos humanos, Herkenhoff (1994, p. 183-184) assim observa:

Os Direitos Humanos expressam-se de forma diferente, no evolver da História. Os Direitos Humanos localizam-se em tempos históricos certos e em culturas determinadas. Aspectos particulares diferenciam-se. Porém, com o espírito desarmado, sem preconceitos, chegamos à maravilhosa e bela conclusão de que há um núcleo comum de Direitos Humanos, há divergências na aparência e identidade na essência. Esta constatação aponta para um futuro em que será possível haver respeito entre todos os seres humanos, entre todos os Povos e Nações da Terra. Existem condições históricas, psicológicas e culturais para que isso se realize. Os Direitos Humanos, construção universal de uma utopia, muitas vozes expressando uma só ideia, podem tornar-se realidade concreta para toda a Humanidade.

Norberto Bobbio (1992, p. 67 et seq.) em seu livro “A Era dos Direitos”, elenca os direitos humanos em gerações. Em linhas gerais, a primeira geração refere-se aos direitos civis e políticos e expressam a necessidade do homem em 2 A respeito, ressalta Dyrceu Aguiar Dias Cintra Júnior que: “o conceito de função social da propriedade vai se incorporando ao direito, pela via do Direito Internacional dos Direitos Humanos, a partir da luta histórica dos povos”. (CINTRA JÚNIOR, 2000. p. 294).3 Diversas expressões se referem aos direitos humanos: direitos do homem, direitos inerentes ou essenciais à pessoa humana, direitos fundamen-tais, etc. A expressão direitos fundamentais refere-se aos direitos naturais expressos nas Declarações Internacionais que são positivados interna-mente em um determinado ordenamento jurídico (ROBERT; SÉGUIN, 2000. p. 6).4 O primeiro documento a cuidar dos direitos humanos foi a Magna Carta, outorgada em 1215 por João Sem Terra. Ao longo da história, destaca-se a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, proclamada em 1789 pela Assembleia Nacional francesa, e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948.

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garantir seus direitos diante da atuação do Estado, denotando o valor liberdade. A segunda geração dos direitos humanos cuida dos direitos econômicos,

sociais e culturais, e expressa um compromisso socioideológico do Estado em busca da justiça social, do valor igualdade. A terceira geração, por sua vez, compreende os direitos coletivos e difusos, tais como o meio ambiente. Representa valores considerados importantes para a vida em sociedade e materializa o ideal de fraternidade e solidariedade da Revolução Francesa.

Ainda, considerando os avanços dos diversos ramos do conhecimento científico, surgem novas gerações de direito representativas dos chamados novos direitos, tais como os direitos do patrimônio genético e os direitos virtuais (BOBBIO, 1992, p. 67 et seq.).

Vale ressaltar que a classificação dos direitos humanos em gerações não é pacífica. Antônio Augusto Cançado Trindade (1992, p. 29-31, destaque do autor) discorda desse critério, sustentando que:

Entre as distintas ‘categorias’ de direitos – individuais e sociais ou coletivos – só pode haver complementariedade e não antinomia, - o que revela a artificialidade da noção simplista da chamada ‘terceira geração’ de direitos humanos: os chamados direitos de solidariedade, historicamente mais recentes, em nosso entender interagem com os direitos individuais e sociais, e não os ‘substituem’, distintamente do que a invocação inadequada da imagem do suceder das gerações pretenderia ou pareceria insinuar. Além disso, a analogia da ‘sucessão generacional’ de direitos, do ponto de vista da evolução do direito internacional nesta área, sequer parece historicamente correta; tudo indica haver um certo descompasso entre a evolução da matéria no direito interno e no direito internacional, evolução esta que aqui não se deu pari passu.

A Segunda Guerra Mundial teve grande impacto na concepção jurídica dos direitos humanos. Em 10 de dezembro de 1948 foi aprovada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, marco maior de sua reconstrução (PIOVESAN, 2005). Nesse momento foi delineada a concepção contemporânea de direitos humanos, marcada pela universalidade. A condição de pessoa é o requisito único para a dignidade e titularidade de direitos. Outro atributo reconhecido foi o de indivisibilidade, segundo o qual a garantia dos direitos civis e políticos é condição para a observância dos direitos sociais, econômicos e culturais, e vice-versa.

Carlos Weis cita ainda a inerência, a interdependência e a transnacionalidade, como características da concepção contemporânea dos direitos humanos. Pela inerência, entende-se que os direitos humanos são inerentes a cada pessoa, pelo simples fato de existir. Já a interdependência diz respeito aos direitos humanos considerados em espécie, ao se entender que um certo direito não alcança a eficácia plena sem a realização simultânea de alguns ou de todos os outros direitos humanos. Por fim, são transnacionais porque não dependem da nacionalidade ou cidadania, sendo assegurados a qualquer pessoa (WEIS, 2006, p. 109 et seq.).

O período contemporâneo propiciou a internacionalização dos direitos

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humanos. Divididos em gerações ou não, são os valores mais fundamentais, mais imprescindíveis, assecuratórios de uma existência plena e digna do ser humano. O direito agrário vem contribuir, e muito, para a concretização de tais anseios. A respeito, vale transcrever as ponderações de Ricardo Zeledón Zeledón (2002, p. 247-255):

La mayor aspiración del Derecho agrario es la de contribuir a la consolidación de la paz entre los seres humanos y los pueblos. Convertirse en un verdadero derecho para la paz. Llevarla a las complejas relaciones de convivencia económica y social dentro de la actividad agrícola. [...] El derecho agrario, como toda obra humana, debe contribuir al desarrollo y la plena realización del ser humano dentro de la sociedad. [...] El agrario, como todas las otras ramas jurídicas lleva en su seno la aspiración de satisfacer principios de igualdad, justicia y paz. [...] La fundación de un derecho agrario como derecho para la paz tiene una justificada explicación doctrinaria por la estrecha vinculación de esta disciplina con los derechos humanos. Porque precisamente desde el origen mismo del derecho agrario, incluso pasando por su formación y desarrollo, siempre ha existido una marcada interdependencia con el iushumanismo. 5

Dentro dessa perspectiva humanista do direito agrário, a preservação do meio ambiente se torna instrumento indispensável na compreensão de uma nova concepção jusagrarista. O direito ao meio ambiente é um direito inerente à condição humana e, no âmbito do direito agrário, é evidente a relação existente entre o elemento ambiental e a atividade agrária. O direito agrário, desde sua origem, preocupou-se com o meio ambiente. Tanto que para justificar sua especialidade e autonomia valeu-se do solo, da água e, sobretudo, da terra (ZELEDÓN ZELEDÓN, 2002, p. 124).

A teoria da agrariedade desenvolvida por Antonio Carrozza sinaliza a preocupação com o meio ambiente nas questões agrárias. A preservação dos recursos naturais não constitui o objeto do direito agrário, que são a atividade agrária, a empresa agrária e a agrariedade. O direito agrário, no entanto, não está alheio ao meio ambiente, uma vez que, centrado na noção de agricultura e baseado no substrato de um solo, insere-se em um dado território integrante do ambiente, um conceito maior. Ademais, o ciclo biológico da natureza é elemento essencial da atividade agrária e da agrariedade, conceito este expressivo da relação entre o homem e o ambiente no campo (CARROZZA apud GODOY, 1999, p. 71 et seq.).

Fernando Brebbia e Nancy Malanos (1997, p. 34), ao tratarem da teoria de Carrozza, observam que:

[...] con arreglo a esta idea, Carrozza considera que en su íntima esencia la

5 Tradução livre: “A maior aspiração do direito agrário é contribuir para a consolidação da paz entre os seres humanos e os povos. Tornar-se em um verdadeiro direito para a paz. Levá-la às complexas relações de convivência econômica e social dentro da atividade agrícola. [...] O direito agrário, como toda obra humana, deve contribuir para o desenvolvimento e para a plena realização do ser humano dentro da sociedade.] [...] O agrário, como todos os outros ramos jurídicos, leva em seu cerne a aspiração de satisfazer os princípios de igualdade, justiça e paz. [...] A fundação de um direito agrário como direito para a paz tem uma justificada explicação doutrinária pela estreita relação desta disciplina com os direitos humanos. Porque, precisamente, desde a origem do direito agrário, inclusive passando por sua formação e desenvolvimento, sempre existiu uma marcada interdependência com o humanismo”.

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actividad productiva agraria consiste en el desarrollo de un ciclo biológico, vegetal o animal, ligado directa o indirectamente al disfrute de las fuerzas y de los recursos naturales que se resuelve económicamente en la obtención de frutos, vegetales o animales, destinados al consumo directo, o bien previa una o múltiples transformaciones. [...] Las fuerzas naturales a que están sometidas las actividades que dependen de un ciclo biológico, a veces pueden ser influenciables y dirigidas por el hombre, como ocurre, por ejemplo, en los cultivos en invernadero y en los hidropónicos, basados en el cultivo de plantas inmersas en un sustituto inerte del terreno, en locales cubiertos y con temperatura y luz que pueden ser reguladas. En uno y otro caso se trata de cultivos – dice Carrozza - que podrían llamarse ‘artificiales’ para distinguirlos de los tradicionales [...].6

Rodolfo Ricardo Carrera, com sua teoria agrobiológica do direito agrário, também insere o elemento ambiental no estudo do direito agrário. Segundo o autor argentino, dois elementos distinguem a atividade agrária das demais: a natureza e a vida, que correspondem, no direito agrário, a terra e ao processo agrobiológico. Desses dois elementos decorrem todos os demais, tais como chuva, seca etc. (CARRERA, 1978, p. 4-7).

A doutrina7, ainda que indiretamente, sempre relacionou a questão ambiental no estudo do direito agrário. Tal fato foi consolidado depois de 1992, quando foi definitivamente reconhecida a importância do meio ambiente em todas as áreas do conhecimento humano.

A preocupação com a questão ambiental foi crescendo ao longo dos tempos. Dois documentos internacionais contribuíram sobremaneira para a reflexão dos problemas ambientais. O primeiro foi a Declaração de Estocolmo de 1972 e, vinte anos depois, a Declaração do Rio de Janeiro de 1992, em que foi extraída a Agenda 21, um documento com metas a serem cumpridas pelos países signatários, com relação às questões ambientais.

Mas em que consiste o meio ambiente? O legislador brasileiro definiu o que seja o meio ambiente na Lei nº 6.938/81,

que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, em seu artigo 3º, inciso I, como: “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem química, física e biológica que permite, obriga e rege a vida em todas as suas formas” (BRASIL, 1981).

A Constituição Federal, vigente em seu artigo 225, caput, dispõe que: “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

Marcelo Abelha Rodrigues (2002, p. 52-53), analisando os dispositivos

6 Tradução livre: [...] De acordo com essa idéia, Carrozza considera que em sua íntima essência a atividade produtiva agrária consiste no desen-volvimento de um ciclo biológico, vegetal ou animal, ligado direta ou indiretamente ao gozo das forças e dos recursos naturais economicamente resolvidos na obtenção de frutas, vegetais ou animais, destinados ao consumo direto, ou após uma ou várias transformações. [...] As forças natu-rais que estão submetidas as atividades que dependem de um ciclo biológico, às vezes podem ser influenciadas e dirigidas pelo homem, como, por exemplo, com as culturas em estufa e hidropônicos, baseadas no cultivo de plantas que crescem imersas em um substituto de terra inerte, em lugares cobertos e com temperatura e luz que podem ser regulados. Em um e outro caso se trata de culturas - diz Carrozza – que poderiam ser chamadas de “artificiais” para distingui-las das tradicionais [...].7 Outros autores também contribuíram para o desenvolvimento da relação entre o meio ambiente e a atividade agrária, tais como o italiano Gi-angastone Bolla, um dos seus precursores, o espanhol Alberto Ballarin Marial, o latino-americano Casanova e, mais modernamente, Gelsi Bidart e Morales Lamberti, além de diversos autores brasileiros, por exemplo, Giselda Maria Hironaka.

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acima citados, dispõe que:

[...] o conceito de meio ambiente previsto na Lei 6.938/81 tem por finalidade (aspecto teleológico) a proteção, o abrigo e a preservação de todas as formas de vida, sendo que para se chegar a esse desiderato, deve-se resguardar o equilíbrio do ecossistema (conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem química, física e biológica).

Mas ressalta ainda o autor que:

[...] aquela visão deturpada de antropocentrismo, em que o homem seria algo externo à natureza, não mais existe, vindo corroborar o exposto o texto do art. 225 da CF/88, ao considerar o meio ambiente ecologicamente equilibrado como um direito do presente (uso comum do povo) e do futuro (futuras gerações). (RODRIGUES, 2002, p. 53-54).

Ainda segundo o jurista (RODRIGUES, 2002, p. 64-65), o legislador define o bem ambiental, aquilo que será objeto de proteção. De acordo com o texto constitucional, o bem ambiental tutelado é o meio ambiente ecologicamente equilibrado, ou seja, o equilíbrio ecológico. Este, por sua vez, é integrado por fatores ou componentes responsáveis por sua manutenção. A Constituição vigente, de acordo com o ambientalista, considerou o elemento da natureza e da ecologia, ou seja, o meio ambiente natural como elemento do conceito de meio ambiente.

No entanto, é inegável que também contribui para o equilíbrio ecológico o chamado meio ambiente artificial8 ou ecossistema social, por exemplo, os aspectos relacionados ao ambiente no trabalho, à preservação do patrimônio histórico e cultural, ao espaço e à vida urbana, etc.

Assim, o meio ambiente pode ser analisado tanto sob o aspecto da natureza, ou seja, daquilo que não foi construído pelo homem, quanto sob a perspectiva artificial, ou seja, aquilo que foi obra, construção do homem9.

Quanto à sua natureza jurídica, o bem ambiental, nas lições de Marcelo Abelha Rodrigues, constitui-se em bem do povo, em bem de uso comum do povo, nos termos da lei civil. Possui regime jurídico típico de direito público, mas repousa tranquilamente no conceito de bem difuso, porque a sua propriedade não é do Estado, mas res omnium.

O meio ambiente, como bem difuso, deve ser preservado e defendido por todos, conjuntamente. E seu estudo é realizado pelo direito ambiental10. Paulo Affonso Leme Machado (2007, p. 139-140) define o direito ambiental como “um direito sistematizador11, que faz a articulação da legislação, da doutrina e da jurisprudência 8 O meio ambiente artificial visa proteger e manter a qualidade de vida do indivíduo relativamente ao entorno que o cerca (RODRIGUES, 2002, p. 65). 9 Para classificar o meio ambiente, alguns autores, como Celso Antonio Pacheco Fiorillo utilizam a seguinte discriminação: meio ambiente natu-ral; meio ambiente artificial, referindo-se ao espaço urbano construído; meio ambiente cultural e meio ambiente do trabalho (FIORILLO, 2005. p. 20-22). 10 Fala-se também em direito do ambiente, direito ecológico etc.11 Fala-se também em direito de caráter horizontal, tema transversal etc., referindo-se à relação da questão e do direito ambiental com todos os demais ramos do conhecimento humano, inclusive o jurídico.

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concernentes aos elementos que integram o ambiente”. Segundo o autor, o direito ambiental: “não ignora o que cada matéria tem de específico, mas busca interligar estes temas com a argamassa da identidade dos instrumentos jurídicos de prevenção e de reparação, de informação, de monitoramente e de participação”.

O direito ambiental busca interligar todos os ramos do conhecimento humano, jurídico e não jurídico, justamente porque o seu objeto de tutela é a vida e a qualidade de vida. Tanto que um dos princípios norteadores desse ramo jurídico é o princípio da ubiqüidade, justificado nas palavras de Celso Antonio Pacheco Fiorillo (2005, p. 45), in verbis:

Este princípio vem evidenciar que o objeto de proteção do meio ambiente, localizado no epicentro dos direitos humanos, deve ser levado em consideração toda vez que uma política, atuação, legislação sobre qualquer tema, atividade, obra etc. tiver que ser criada e desenvolvida. Isso porque, na medida em que possui como ponto cardeal de tutela constitucional a vida e a qualidade de vida, tudo que se pretende fazer, criar ou desenvolver deve antes passar por uma consulta ambiental, enfim para saber se há ou não a possibilidade de que o meio ambiente seja degradado.

Além do princípio da ubiqüidade, outros princípios informam o direito ambiental, tais como os princípios do desenvolvimento sustentável, do poluidor-pagador, prevenção, participação, dentre outros. O professor francês Michel Prieur (apud MACHADO, 2007, p. 138-139) assevera que o: “direito do ambiente é constituído por um conjunto de regras jurídicas relativas à proteção da natureza e à luta contra as poluições”. Diz ainda o professor que: “o direito do ambiente, mais do que a descrição do Direito existente, é um direito portador de uma mensagem, um direito do futuro e da antecipação, graças ao qual o homem e a natureza encontrarão um relacionamento harmonioso e equilibrado”.

Assim, o meio ambiente, objeto do direito ambiental, deve ser preservado para as presentes e futuras gerações. É imperioso que se tenha consciência da sua importância na própria sobrevivência do homem. É indissociável o estudo do direito agrário e das relações agrárias sem um enfoque, um olhar para a questão ambiental. Ambos os temas estão intimamente relacionados, não sendo outra a lição de Luciano de Souza Godoy (1999, p. 71):

A preocupação do homem com o meio ambiente deriva do próprio sentimento decorrente da lei de conservação da espécie. Esse sentimento mostra-se marcante no Direito Agrário há muito tempo, e não poderia ser de outra forma: o Direito Agrário como ius proprium da agricultura, voltado à terra como elemento essencial para o desenvolvimento de sua atividade, ligado está estreitamente com o meio.

A noção de agrariedade12, por exemplo, consubstancia-se no elemento caracterizador do conteúdo do direito agrário, que o especializa com relação 12 Já referida na página anterior.

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aos demais ramos jurídicos, e está relacionada ao conceito de meio ambiente. A agrariedade reflete as situações preexistentes no campo, como os fenômenos naturais (chuva, seca, etc.), que influem diretamente no desenvolvimento da atividade agrária. Nas palavras de Benedicto Monteiro (1980, p. 111): “é o elemento que, no plano da conservação dos recursos naturais, expressa juridicamente a necessidade e a validade das relações geográficas”.

A preservação do meio ambiente e, consequentemente, a manifestação normal dos fenômenos naturais, revela-se imprescindível para a viabilidade da atividade agrária13. Ou seja, o desenvolvimento regular das atividades rurais, seu sucesso ou fracasso, está diretamente vinculado às manifestações do meio ambiente.

O meio ambiente rural, por seu turno, é a base para a preservação ambiental. Não se pode falar em proteção do meio ambiente sem falar em proteção às águas, a terra, à fauna e à flora, fatores integrantes do setor agrário. Assim, são elementos que agem conjuntamente, são interdependentes. A propósito, conforme já analisado, a conservação dos recursos naturais renováveis é um dos princípios fundamentais do direito agrário. A respeito, ensina Alcir Gursen de Miranda (2003, p. 172) que:

[...] felizmente o homem usa a razão pela razão, e começa a se conscientizar de que está destruindo seu próprio habitat natural e expondo ao perigo sua própria sobrevivência. O homem é parte da natureza; portanto, dela é dependente, tanto no aspecto biológico como psicológico e, mais ainda, dependente também no aspecto econômico. Contudo são poucos os homens que já se conscientizaram da importância da conservação dos recursos naturais.

E desse modo, a estreita ligação entre o elemento agrário e o elemento ambiental encontra fundamento no ordenamento jurídico brasileiro no princípio da função social da propriedade, o qual, no caso da propriedade rural, terá sua função atendida quando, dentre outros requisitos, também houver a preservação ambiental. Trata-se, pois, de uma evolução do direito agrário, que traduz uma vertente humanista, colocando o homem no centro de seu estudo.

Direito agroambientalO meio ambiente, como se vê, está tão estreitamente vinculado às questões

agrárias que há quem defenda a existência de um direito agroambiental14. Juraci Peres Magalhães (1999, p. 693-694), por exemplo, defende a existência de um novo ramo do direito:

Na realidade, toda a legislação que trata da reforma agrária e do meio ambiente nos leva a optar por essa unificação. O Direito Agroambiental seria, assim, o resultado da unificação do Direito Agrário e do Direito

13 Com o advento do Estatuto da Terra e da Constituição Federal de 1988, o vínculo entre a legislação agrária e ambiental é acentuado, como no artigo 186 da Magna Carta.14 A respeito, consultar ALVARENGA, Octavio Mello. Política e direito agroambiental: comentários à nova lei de reforma agrária. (Lei nº. 8.629, de 25 de fevereiro de 1993). Rio de Janeiro: Forense, 1995.

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Ambiental. Constituir-se-á num novo ramo do Direito. [...] Após a Constituição de 1988 e a ECO-92, o Brasil assumiu compromissos internacionais para elaborar um novo modelo de desenvolvimento em que a preservação ambiental é fundamental. Esses fatos demonstram que num futuro próximo o Direito Agrário e o Direito Ambiental cederão lugar ao Direito Agroambiental, Direito que se fortificará com o decorrer do tempo e certamente terá grande importância no sistema jurídico do próximo milênio.

Sobre a autonomia desse novo ramo jurídico, justifica o autor que o Direito, como ciência social está em constante evolução, razão pela qual o Direito é uno, não havendo que se falar em autonomia de nenhum ramo jurídico (MAGALHÃES, 1999, p. 694-695).

Também Antonio José de Mattos Neto (1998, p. 316) defende a existência de um direito agroambiental. Segundo o autor: “é inconteste que o Direito Agrário deixou de ser o direito da agricultura, ou o direito do agricultor, ou o direito do empresário rural, ou, ainda, o direito da reforma agrária, e passou a ser o Direito Alimentário e Direito Agroambiental”.

Isto porque, o Direito Agrário visa a alimentar o homem, mas sem perder a noção de que não deve esgotar os recursos naturais e depredar o meio ambiente ao explorá-los economicamente. Muito pelo contrário, deve preservar e promover a renovação dos ciclos biológico vegetal e animal, a fim de garantir o desenvolvimento sustentável. Esta é a vertente atual do Direito Agrário. (MATTOS NETO, 1998, p. 316).

Na doutrina alienígena, no entanto, Ricardo Zeledón Zeledón (2002) sustenta que não há um novo ramo jurídico. O que há, segundo o autor, é o renascimento, a evolução do Direito agrário, que passa a ser estudado também sob o enfoque ambiental, dentro de uma concepção mais humanista sem, no entanto, ser designado de Direito Agroambiental. Nesse sentido:

[...] el problema ambiental no implica la existencia, o no, de una disciplina autónoma. [...] no significa el nacimiento de una nueva rama ni siquiera una división del derecho agrario, es solamente una derivación, una especialización suya en función del ambiente (ZELEDÓN ZELEDÓN, 2002, p. 136)15.

Segundo o autor, o ambiente não pode ser um mito para os agraristas. Muito pelo contrário. O elemento ambiental passa a ser um novo fundamento do moderno direito agrário, que renasce e não morre, ao lado dos fundamentos econômico e social (ZELEDÓN ZELEDÓN, 2002, p. 277-290). Ricardo Zeledón Zeledón (2002) sustenta que os novos desafios da modernidade fazem o direito agrário renascer, voltado aos anseios humanistas, dentre os quais se destaca a necessidade de preservação do meio ambiente:

15 Tradução livre: “[...] O problema ambiental não implica na existência ou não de uma disciplina autônoma. [...] Não significa o nascimento de um novo ramo nem sequer uma divisão do direito agrário, é apenas uma derivação, uma especialização sua em função do ambiente”.

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En su renacimiento el derecho agrario ha de ser socialmente justo, económicamente desarrollado y ambientalmente sostenible. Al resurgir vencedor con el estandarte de los derechos humanos de solidaridad debe ser instrumento de Paz, de luz y esperanza para las mayorías, especialmente para las más urgidas de Justicia. (ZELEDÓN ZELEDÓN, 2002, p. 296)16.

Parece mais acertado sustentar que o direito agrário renasce, de fato, com uma nova roupagem, mais comprometido com o respeito aos direitos inerentes à condição do homem, por exemplo, a necessidade de preservação do meio ambiente para as presentes e futuras gerações. Abordar a questão ambiental não faz surgir um novo ramo do direito, um direito agroambiental, uma vez que, como tema transversal, interligado a praticamente todos os ramos do conhecimento jurídico e não jurídico, a análise da questão ambiental torna-se imperiosa em todas essas áreas sem, no entanto, descaracterizá-las em sua essência. Sua abordagem representa, sim, uma evolução para o ramo do conhecimento, uma necessidade. No caso do direito agrário, significa a harmonia com os direitos fundamentais do ser humano.

Enfim, seja qual for a posição adotada, infere-se do exposto que não se pode abordar as questões agrárias sem a preocupação com o meio ambiente. Essa nova roupagem jusagrarista, focada na preservação ambiental, denota a valorização do próprio homem e dos direitos inerentes à sua condição.

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16 Tradução livre: “Em seu renascimento o direito agrário deve ser socialmente justo, economicamente desenvolvido e ambientalmente susten-tável. Ao ressurgir vencedor com a bandeira dos direitos humanos de solidariedade deve ser instrumento de Paz, de luz e esperança para as maiorias, especialmente para as mais necessitadas de Justiça.”

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DIREITOS HUMANOS E SUAS PERSPECTIVAS AMBIENTAIS: DIMENSÕES, ASPECTOS

HISTÓRICOS E NATUREZA DIFUSA

RAFAEL COSTA FREIRIA 1

ResumoO artigo, no contexto de contribuir para a melhor compreensão de elementos essenciais da teoria geral dos direitos humanos, tem como objetivos específicos apresentar, de forma introdutória, os principais aspectos históricos dos direitos humanos fundamentais, as características estruturantes das suas dimensões, bem como fazer um direcionamento para a análise da condição de direito humano fundamental e da natureza difusa dos direitos ambientais. A finalidade última do trabalho consiste, por meio do fortalecimento de aspectos teórico-conceituais dos direitos humanos, contribuir para o aprimoramento e maior efetividade desses direitos.PALAVRAS-CHAVE: Direitos Humanos; Direito Ambiental; Dimensões; Natureza Difusa.

[...] ao nos depararmos com a pergunta sobre o que de novo efetivamente revelam os novos direitos fundamentais na era tecnológica, talvez possamos responder que eles nos levam a reconhecer que as antigas dificuldades da humanidade com a problemática de justiça não lograram ser superadas pelo avanço tecnológico e científico, o que gera a necessidade de uma postura ativa e responsável de todos, governantes e governados, no que concerne à afirmação e à efetivação dos direitos fundamentais de todas as dimensões (Ingo Wolfgang Sarlet2).

IntroduçãoParte-se da premissa de análise dos direitos ambientais como dimensões dos

direitos humanos. São, portanto, direitos históricos, dinâmicos, interdependentes, indivisíveis, nascidos em certas circunstâncias, de forma gradual e não linear3. Além de representarem também garantias jurídicas inafastáveis, que constituem conquistas históricas da humanidade contra formas de arbitrariedades e ameaças ao “conteúdo mínimo ético irredutível de cada ser humano”, que compõe sua dignidade (Piovesan, 2009, p. 153).

O reconhecimento dos direitos humanos fundamentais (dentre eles os direitos ambientais), que deve ser compreendido sob a óptica dos condicionantes históricos, políticos, filosóficos, sociais e culturais que os circundam e delimitam,

1 Mestre em Direito pela Universidade Estadual Paulista. Doutor em Meio Ambiente pela Universidade Estadual de Campinas. Pós-doutor em Direito Ambiental e Sustentabilidade pela Universidade de Alicante/Espanha. Pesquisador da Unicamp. Professor de Direito Ambiental e Direi-tos Humanos do UniSEB e Consultor e Advogado Ambiental. E-mail: [email protected] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 62.3 Ver, nesse sentido, BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 05 e ss.

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se fez de forma que fossem consolidadas pelo menos quatro grandes dimensões4 de direitos.

Neste contexto, o presente artigo tem como objetivos apresentar, de forma introdutória, os principais aspectos históricos formativos dos direitos humanos fundamentais, as características estruturantes das suas dimensões, bem como fazer um direcionamento maior para a natureza difusa dos direitos ambientais, enquanto direitos humanos5.

Visando, em última análise, por meio dessas abordagens teórico-conceituais, contribuir para e aprimoramento e a maior efetividade dos direitos humanos fundamentais, grande desafio da sociedade atual. Pois, como coloca Boaventura de Sousa Santos (2010, p. 436): “os direitos humanos aspiram hoje a um reconhecimento mundial e podem mesmo ser considerados como um dos pilares fundamentais de uma emergente política pós-nacional”.

Dimensões e Aspectos Históricos dos Direitos Humanos e a ênfase ambientalOs direitos fundamentais de primeira dimensão apareceram ao longo do

século XVIII, como produto de um cenário histórico marcado pelo pensamento liberal-burguês, pelo racionalismo iluminista e pelas revoluções políticas (revolução norte-americana (1776) e francesa (1789)) (Comparato, 2008). Tratam-se de direitos inerentes à individualidade, vinculados à liberdade, à propriedade, e à resistência às mais diversas formas de opressão.

São direitos, conforme acentua Norberto Bobbio, que possuem um significado histórico-filosófico da inversão, característica da formação do Estado Moderno: passou-se da prioridade dos deveres dos súditos à prioridade dos direitos dos cidadãos, surgindo uma forma diferente de encarar a relação política, não mais de forma preponderante do ângulo do soberano, mas sim sob a óptica do cidadão.

Em outros termos, nessa dimensão são afirmados direitos do indivíduo frente ao Estado, mais especificamente como direitos de defesa, delimitando uma zona de não-intervenção do Estado e o espaço de autonomia individual ante o poder estatal. Desse modo, são direitos negativos, pois são dirigidos a uma abstenção do Estado, em favor da garantia formal dos direitos individuais fundados no princípio da liberdade.

Os direitos fundamentais de segunda dimensão, por outro lado, são produtos dos impactos do processo de industrialização e dos graves problemas socioeconômicos sofridos pela sociedade ocidental no decorrer do século XIX e nas primeiras décadas do século XX.

Na contextualização histórica dos direitos de segunda dimensão, como bem

4 Cabe ressaltar que a moderna teoria constitucional (tratada, por exemplo, nas obras dos autores Ingo Wolfgang Sarlet (2003) e Paulo Bonavides (2001)) tem adotado a substituição dos termos “gerações dos direitos fundamentais” por “dimensões”, visto que, conforme acentuado por Nor-berto Bobbio, os direitos fundamentais não são alterados de forma linear de tempos em tempos, mas resultam sim de um processo complexo e gradual de formação, que condiz mais com a terminologia “dimensões de direitos fundamentais”.5 A presente proposta de discussão consiste na releitura e atualização de fundamentos aprofundados no seguinte trabalho acadêmico: FREIRIA, Rafael Costa. Perspectivas para uma teoria geral dos novos Direitos: uma leitura crítica sobre Biodiversidade e os conhecimentos tradicionais asso-ciados. 2004. 128 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2005.

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ensina Antônio Carlos Wolkmer: “O capitalismo concorrencial evolui para a dinâmica financeira e monopolista, e a crise do modelo liberal de Estado possibilita o nascimento do Estado de Bem-Estar Social, que passa a arbitrar as relações entre o capital e o trabalho6”.

Surgem nesse contexto, em decorrência de movimentos reivindicatórios proletários (dos quais são grandes exemplos as Revoluções Mexicana (1911) e Russa (1917)), direitos de dimensão positiva, não mais direitos de defesa contra o Estado, mas sim direitos que exigem do Estado um comportamento ativo, uma prestação.

É nota característica desses direitos de segunda dimensão, a outorga ao indivíduo do direito a prestações sociais estatais positivas, como a garantia ao acesso à educação, ao trabalho, à saúde, à cultura, todos esses direitos fundados no princípio da igualdade, entendida para essa dimensão de uma forma mais material. Deve-se ressaltar que, apesar dos direitos da segunda dimensão serem tratados como direitos sociais, a titularidade desses direitos continua, como no caso dos direitos de primeira dimensão, identificada como sendo do sujeito de direito individualizado.

Os direitos fundamentais de terceira dimensão consistem nos chamados direitos transindividuais, fundados no princípio da fraternidade ou da solidariedade (Piovesan, 2014, p. 54). A nota distintiva desses direitos de terceira dimensão é o fato de que o seu titular não é mais o homem individualizado, mas são direitos que dizem respeito a coletividades (povo, nação, comunidades locais e internacionais), caracterizando-se, por conta disso, como direitos de titularidade coletiva ou difusa.

Entre os principais direitos fundamentais de terceira dimensão tem-se os direitos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, o direito à conservação do patrimônio histórico e cultural da humanidade. São direitos que emergem, na segunda metade do século XX, num período pós-Segunda Guerra Mundial (1945-1950), como resultado de novas reivindicações da sociedade, geradas fundamentalmente pelo: avanço tecnológico, aumento das relações econômicas em larga escala que passam a romper cada vez mais as fronteiras dos Estados Nacionais, crescimento desordenado das cidades, explosão demográfica e ameaça mundial de catástrofes ecológicas, problemas típicos de uma sociedade de massa.

É nesse contexto que emergem as reivindicações por direitos de proteção ao meio ambiente, que passam a exigir, por sua vez, a reconstrução dos conceitos fundamentais da Teoria Geral do Direito. Como bem ensina José Luis Bolzan de Morais:

Surge o que denominamos interesses transindividuais, isto é, conflitos que escapam da dimensão privatista do modelo jurídico liberal e se caracterizam por uma amplitude não só jurídica em sentido estrito, mas, sobretudo, socioeconômica pois, importam, muitas vezes, desapego, afastamento e/ou negação dos postulados liberais tradicionalmente aceitos como meios de sanabilidade das controvérsias. A variabilidade e

6 WOLKMER; LEITE, 2003, p. 8.

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complexidade destas questões coletivas implicam a adoção de caminhos distintos para a sua resolução, criando expectativas também distintas face a impossibilidade de se determinarem os resultados de forma antecipada7.

Cabe ressaltar que a utilização da terminologia transindividuais, para denominar os direitos de terceira dimensão, se deve ao fato de que a proteção e garantia desses direitos, ao contrário dos direitos individuais de primeira e segunda dimensões, não envolve apenas uma abstenção ou uma ação afirmativa do Estado, mas exigem esforços e responsabilidades de grupos locais, nacionais e até mesmo no âmbito da comunidade internacional, que através de ações integradas com o poder público, geram efeitos na realidade individual de cada cidadão.

Portanto, os direitos de terceira dimensão são transindividuais, pois embora relacionados a pretensões que ultrapassam o indivíduo singularmente definido (pois dependem de ações integradas da sociedade organizada local e transnacional para a sua efetivação), quando reconhecidos, não deixam de perpassar (transitar) de forma individual pretensões de cada componente dessa coletividade8.

Para elucidar essa questão da transindividualidade dos direitos de terceira dimensão, tem-se que a coletividade mundial começa a se dar conta de que os problemas ambientais, decorrentes das complexas relações contemporâneas, não respeitam fronteiras. Para enfrentar esses problemas ambientais, no Brasil, por exemplo, governos locais começam a decretar estado de calamidade pública em decorrência de fortes ondas de calor, estiagens, enchentes e outros impactos de origem climática.

Ocorre que a origem desses problemas locais escapa dos limites territoriais geográficos. A sua origem está no global, em atividades poluidoras de alcance internacional, como indústrias poluentes do solo, do ar e das águas, nos lançamentos de resíduos e esgotos industriais e urbanos nos mananciais de água, especialmente nos rios e mares, acidentes nucleares, entre outros, que comprometem a qualidade de vida de toda a comunidade internacional.

Por exemplo, a queima de combustíveis fósseis, vegetais e minerais para os diversos fins, entre outras fontes de poluição, são responsáveis pela maior parte das emissões de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera terrestre. O dióxido de carbono é um dos grandes responsáveis pela ocorrência do chamado efeito estufa9,

7 MORAIS, 1996, p. 97.8 Importante destacar que o reconhecimento dos direitos ambientais enquanto direitos humanos de terceira geração/dimensão se encontra con-solidado também no posicionamento jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal: “O direito a integridade do meio ambiente — típico direito de terceira geração — constitui prerrogativa jurídica de titularidade coletiva, refletindo, dentro do processo de afirmação dos direitos humanos, a expressão significativa de um poder atribuído, não ao indivíduo identificado em sua singularidade, mas, num sentido verdadeiramente mais abrangente, a própria coletividade social. Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) — que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais — realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais) — que se identificam com as liberdades positivas, reais ou concretas — acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados, en-quanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade.” (MS 22.164, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 17/11/95). No mesmo sentido: RE 134.297, 22/09/95.9 Efeito estufa – mais sobre o assunto, disponível em http://www.mma.gov.br/clima/ciencia-da-mudanca-do-clima/efeito-estufa-e-aquecimen-to-global. Acesso em 19 de março de 2014.

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gerador de graves alterações climáticas em todo o mundo.Isso implica em dizer que as soluções para os problemas locais passam

a depender, também, de políticas globais de preservação ambiental. Em outras palavras, a persecução de uma sadia qualidade de vida no plano local e individual, passa a depender da efetividade das políticas de controle ambiental traçadas pela comunidade internacional.

Da mesma forma como crescem as responsabilidades pela proteção ambiental no âmbito da comunidade internacional, os direitos fundamentais de terceira dimensão passam a exigir novas responsabilidades e esforços de todos os atores sociais: cidadão, associações, comunidades tradicionais, sindicatos, movimentos sociais, Estados Nacionais. Todos, sem distinção, passam a ter o dever com a fiscalização, proteção e realização dos direitos transindividuais. Consiste na chamada responsabilidade compartilhada como condição de efetividade dos direitos fundamentais de terceira dimensão.

Identificam-se, assim, os direitos transindividuais como novos direitos. Apesar de não serem tão recentes na dimensão temporal, tem-se, na terminologia novo, a forma de caracterizar esses direitos que, para a sua efetivação e reconhecimento, não encontram respostas prontas na dogmática tradicional. Integram um processo de fatos sociais atuais e coletivos, que objetivam a construção de uma Teoria Geral do Direito, com conceitos fundamentais mais flexíveis, mais ágeis e mais abrangentes, capazes de regular situações complexas e fenômenos novos10.

Já os direitos fundamentais de quarta dimensão consistem em direitos específicos que tem vinculação direta com a vida humana (Wolkmer, 2003, p. 12). São temas decorrentes das discussões de direitos de quarta dimensão, por exemplo, a inseminação artificial, o aborto, a eutanásia, transplantes de órgãos, clonagens, dentre outros. Representam, portanto, o resultado da necessidade de se estabelecer limites e possibilidades frente aos efeitos e impactos das novas tecnologias à vida humana. São novas necessidades de proteção e regulamentação de direitos humanos tradicionais, como representa o direito à vida. São exemplos: os direitos referentes à biotecnologia, à bioética e a regulação da engenharia genética.

A reflexão sobre bioética, em linhas gerais, está contextualizada na década de 70, no cenário histórico dos avanços das ciências biomédicas e na ocorrência de revoluções tecnológicas no campo da saúde humana, que projetam a necessidade de regulamentação dos limites éticos e jurídicos envolvendo as relações entre Biologia, Medicina e a vida humana.

Portanto, os direitos humanos de quarta dimensão projetam a necessidade de novas legislações regulamentadoras e de novas abordagens da teoria geral dos direitos humanos, capazes de captar as novidades e assegurar a proteção da vida humana (Wolkmer, 2003, p. 14) frente aos novos avanços e intervenções tecnológicas. Isto para que as inovações científicas possam sempre representar a maior efetivação de direitos humanos fundamentais, ao invés de retrocessos.

10 Ver, nesse sentido, WOLKMER; LEITE, 2003, p. 20 e ss.

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Da natureza difusa dos direitos fundamentais ao meio ambiente ecologicamente equilibrado

Conforme colocado no item precedente, no que se refere às características dos direitos humanos de terceira dimensão, num contexto marcado por radicais transformações das relações de produção e por profundas alterações no equilíbrio ecológico do planeta, emergem os direitos transindividuais, que clamam por um rearranjo da teoria jurídica tradicional, até então estruturada para solucionar conflitos de natureza inter-individual.

Os direitos transindividuais surgem como novos direitos que não se enquadram na dicotomia tradicional entre direito público e direito privado, apresentando características próprias que transitam pelos conteúdos dessas duas categorias, e cuja proteção depende da ação integrada da sociedade civil e do poder público. Estes novos direitos transindividuais são identificados ora como direitos coletivos, ora como direitos difusos. Adota-se a terminologia mais abrangente e flexível de Carlos Frederico Marés, segundo a qual:

Entre os direitos coletivos não devem ser incluídos, portanto, aqueles que são mera soma de direitos subjetivos individuais, mas somente aquele pertencente a um grupo de pessoas cuja titularidade é difusa porque não pertence a ninguém em especial, mas cada um pode promover sua defesa que beneficia sempre a todos11.

Com a adoção dessa terminologia mais ampla dos novos direitos de dimensão coletiva, procura-se enfatizar as imperfeições de conceitos fundamentais da dogmática tradicional, que por estarem ligados de forma visceral a valores individualistas, não atendem mais às complexidades inerentes às sociedades de massas, sobretudo no que se refere aos problemas ambientais.

Em outros termos, a terminologia direitos coletivos foi adotada como representativa de novas subjetividades, que por apresentarem uma dimensão coletiva de grande complexidade, escapam do controle e da proteção dos institutos e dos conceitos formais e individualistas da teoria jurídica tradicional, e clamam pela reconstrução de uma nova teoria geral, mais flexível, abrangente, plural e interdisciplinar.

Há que se considerar que esses direitos considerados de forma genérica como direitos humanos de dimensão coletiva, identificados no item precedente como direitos fundamentais transindividuais de terceira dimensão, já se encontram delimitados e especificados pelo ordenamento jurídico e pela doutrina em duas espécies: os coletivos e os difusos.

O delineamento dessas duas espécies do gênero direitos transindividuais,

11 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés. Os direitos invisíveis. In: OLIVEIRA, F.; PAOLI, M. C. (orgs). Os sentidos da democracia: políticas do dissenso e hegemonia global. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 322

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já foi realizado em valiosas obras doutrinárias12, sendo que a principal justificativa da classificação é no sentido de aclarar o conteúdo e os contornos dos interesses em questão. Neste panorama, o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8078/90), estabeleceu de forma expressa a distinção entre as espécies direitos coletivos e direitos difusos. Por conta disso, sem a pretensão de ir a fundo nessa distinção, mas tão somente captar a origem difusa dos direitos ambientais, parece adequado fazer algumas considerações sobre as referidas espécies de direitos transindividuais.

Segundo a expressa previsão do artigo 81, inciso II, do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8078/90):

Interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classes de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica básica.

Pela previsão do Código de Defesa do Consumidor, depreende-se que a caracterização dos direitos coletivos, pressupõe a delimitação do número de interessados com a existência de um vínculo jurídico, para que a titularidade possa ser coletivamente definida. Pelo que se vê, embora coletivos, tais direitos demandam um nível razoável de organização e determinação, sendo que a titularidade é visível como sendo dos integrantes de um determinado grupo, ligados por uma relação jurídica base.

José Luis Bolzan de Morais exemplifica os titulares de direitos coletivos da seguinte forma: “Neste espectro podemos, então, situar, exemplificativamente, a sociedade mercantil, o condomínio, a família, o sindicato, os órgãos profissionais, entre outros, como grupos de indivíduos nos quais expressam-se tais interesses13”.

Em suma, pode-se dizer que os direitos coletivos dizem respeito a interesses comuns no interior, por exemplo, de sindicatos, ou de organizações sociais (projeções da dimensão coorporativa do homem), cuja titularidade desses interesses é determinada, pois pressupõe a existência de uma relação jurídica base ligando os titulares a esses interesses. É certo também que os interesses do grupo apresentam-se de forma indivisível e indisponível, o que impede uma fruição individual que seja excludente de qualquer componente da categoria.

Portanto, a nota característica dos direitos coletivos passa a ser a razoável determinação de seus titulares, traço que não se verifica nos direitos difusos, nos quais, tem-se como característica fundamental da indeterminação dos seus titulares.

Partindo-se da previsão do artigo 81, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8078/90), constata-se que:

12 Sobre esta temática, destacam-se MANCUSO, Rodolfo de Camargo, com as obras Interesses difusos: conceito e legitimação para agir. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000 e Ação civil pública: em defesa do meio ambiente, do patrimônio cultural e dos consumidores. 7.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001; BASTOS, Celso. A tutela dos interesses difusos no Direito Constitucional brasileiro. São Paulo: RT, 1981; MORAIS, José Luis Bolzan de. Do direito social aos interesses transindividuais: o Estado e o direito na ordem contemporânea. 1996; VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Ação civil pública. São Paulo: Atlas, 1997.13 MORAIS, 1996, p. 128.

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Interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais de natureza indivisível de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato.

Como se vê, através da previsão legal do Código de Defesa do Consumidor, o grupo ligado aos direitos difusos apresenta-se de forma absolutamente indeterminável. O liame que une os titulares de um direito difuso, ao invés de ser um liame jurídico (como ocorre nos direitos coletivos) é um liame fático. Segundo José Luis Bolzan de Morais,

A reunião de pessoas em torno de um interesse difuso assenta-se em fatos genéricos, acidentais e mutáveis, como habitar a mesma região, consumir os mesmos produtos, viver sob determinadas condições socioeconômicas, sujeitar-se a determinados empreendimentos, etc.14.

A “referência à “difusidade” indica a complexidade do tema, isto é, a dificuldade em indicar os contornos desses direitos, as formas e circunstâncias de seu exercício” (DIMOULIS e MARTINS, 2012, p. 56).

E os direitos ambientais, assegurados enquanto direitos fundamentais constitucionais, pelo artigo 22515 e todos os seus incisos da Constituição Federal brasileira de 1988, representam o grande exemplo de direitos de natureza difusa.

A situação hipotética de criação, por exemplo, de uma usina hidroelétrica, sem a realização correta da exigência constitucional dos chamados estudos de impactos ambientais16, que traz como consequência a inundação de uma vasta área de cobertura vegetal e altera todo o panorama ecológico de uma região, acarreta a violação de interesse difuso.

Ou seja, os sujeitos prejudicados com essa obra são absolutamente indeterminados, difusos, visto que neste caso são todos aqueles, de gerações presentes e futuras, que tiveram a sua qualidade de vida e meio ambiente afetados por uma obra que não respeitou os critérios ambientais determinados pela legislação e que causou danos a diversidade biológica de toda uma região.

Vê-se que o ponto em comum, aquilo que une os indeterminados titulares dos direitos difusos, nos casos ambientais, é o interesse de se ter um meio ambiente ecologicamente equilibrado e sadio. Interesse este que está visceralmente ligado à preservação da qualidade de vida de cada um dos indivíduos que integram determinada coletividade.

Para Mancuso (2000, p. 84 e SS.) os direitos difusos apresentam as seguintes notas básicas: indeterminação dos sujeitos; indivisibilidade do objeto; intensa conflituosidade; duração efêmera e contingencial.

A indeterminação dos sujeitos de direitos difusos decorre, em boa medida,

14 MORAIS, 1996, p. 138.15 Art. 225 - Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.16 Art. 225 , IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio am-biente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade;

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do fato de inexistir um vínculo jurídico que agregue os sujeitos afetados por esses interesses.

Como se vê com grande relevo nas questões ambientais, os indivíduos encontram-se unificados em torno de um direito difuso por possuírem um denominador fático comum – no caso, a simples ameaça de degradação ambiental.

A indivisibilidade do objeto dos direitos difusos é no sentido de que esses direitos não são suscetíveis de partição de quotas atribuíveis a um indivíduo ou a grupos preestabelecidos.

A satisfação do direito difuso resulta sempre na satisfação de toda uma coletividade, do mesmo modo que a lesão de um direito de natureza difusa implica na afetação de todos indivíduos pertencentes a essa mesma coletividade. Por conta disso, não há como se pensar numa fruição individual desses direitos; a fruição é sempre coletiva e indeterminada.

A intensa litigiosidade interna dos direitos difusos é também decorrente do fato dos mesmos não terem um vínculo jurídico básico. Desse modo, tais direitos apresentam-se soltos, fluidos, dispersos, difusos entre segmentos sociais das mais variadas dimensões. São direitos que escapam da concepção tradicional de relação jurídica (que tem como traço característico a posição bem definida e determinada dos agentes – Exemplos: Credor A versus Devedor B, Tício versus Caio).

Por outros termos, o favorecimento da posição A, quando se fala em direitos difusos, na verdade significa o favorecimento de uma categoria abrangente de indivíduos, não podendo se afirmar com exatidão quem são os beneficiados. Da mesma forma, quando se fala em lesão de direitos difusos não se pode aferir com exatidão a dimensão do dano ocorrido, bem como do número de pessoas afetadas.

Por exemplo, no caso de vazamento de substâncias tóxicas no leito de um rio que seja a fonte de abastecimento de água de dezenas de cidades que o margeiam. Nesse caso, é indeterminado o número de indivíduos que terão o seu acesso à água afetado por esse dano ambiental.

E esses fatores de indeterminação dos sujeitos e de mobilidade e fluidez do objeto dos direitos difusos, ampliam muito o grau de litigiosidade desses direitos.

No caso o controle da poluição que é despejada no leito de qualquer curso d’água, como forma de se assegurar água saudável para a população, normalmente, conflita com o interesse de empresas que não possuem adequado tratamento de esgoto e que fazem uso dos cursos d’água para eliminarem detritos do processo produtivo.

Trata-se de conflitos atuais, que refletem o grande dilema da sociedade contemporânea, em âmbito local e global: ao mesmo tempo em que coloca como pressuposto de uma melhor qualidade de vida a garantia e proteção do exercício de uma atividade econômica, bem como a criação de novos empregos, ela se vê na necessidade inafastável de proteção do meio ambiente (em todas as suas dimensões), para as gerações presentes e futuras, para que um maior bem-estar social possa vir a ser atingido.

Corresponde ao desafio atual da sustentabilidade, que visa atingir a melhor integração e harmonização possível entre desenvolvimento econômico e

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preservação ambiental. Ainda, por não estarem ligados a um vínculo jurídico básico, tem-se que

os direitos difusos apresentam como característica a efemeridade. Neste sentido, os direitos difusos mudam conforme mudam as circunstâncias fáticas a que estão ligados. Cada empreendimento potencialmente causador de impacto ambiental faz surgir novos direitos difusos que precisam ser imediatamente tutelados.

Tal característica demanda uma prestação jurisdicional rápida e eficaz para qualquer tipo de lesão ou ameaça de lesão a direitos difusos, sob pena de irreparabilidade e/ou irreversibilidade do dano ambiental.

Delineando os principais contornos dos direitos difusos, representados pelos direitos ambientais, pode-se fazer a distinção com a espécie direitos coletivos.

A complexidade das características dos direitos difusos, que não possuem um vínculo jurídico que reúna os sujeitos de direitos difusos, faz com que sejam gerados direitos à uma série indeterminada ou de difícil determinação de titulares.

São, portanto, direitos em que os titulares se encontram difusos entre os mais diversos segmentos sociais, sendo certo que a fruição desses direitos será sempre coletiva.

Foram apresentados, portanto, fundamentos cujo o entendimento de seus alcances e decorrências práticas são de suma importância para a maior efetividade dos direitos ambientais: são direitos humanos fundamentais de terceira dimensão/geração e possuem natureza jurídica de direitos difusos.

Considerações FinaisOs aspectos históricos, dimensões e a ênfase da natureza difusa ambiental que

foram apresentados, tem como propósitos contribuir para a melhor compreensão de aspectos da teoria geral dos direitos humanos. Foram apontados traços que são característicos dos direitos humanos e dos direitos ambientais, que clamam por um repensar da teoria geral do direito. Um repensar também em termos difusos, para que, numa projeção para o futuro, esses novos direitos tenham sempre a possibilidade de maior reconhecimento e efetivação.

Entende-se que quanto maior a compreensão dos principais fundamentos da teoria geral dos direitos humanos, maior a potencialidade de efetivação dos mesmos nas situações aplicadas cotidianas.

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OS ESTIGMAS DA PENA E A REINCIDÊNCIA CRIMINAL: A REABILITAÇÃO COMO

INSTRUMENTO DE RESSOCIALIZAÇÃO

PAULO HENRIQUE MIOTTO DONADELI 1

ResumoO presente artigo faz uma abordagem sobre as finalidades da pena: preventiva, retributiva e ressocializadora, mostrando que no Brasil, historicamente, predomina a função retributiva da pena, o que contribui, na nossa visão, para o aumento dos índices de reincidência criminal. É necessário refletir sobre a importância de se reestruturar o sistema penitenciário brasileiro, valorizando a ressocialização do agente criminoso, por meio de políticas públicas adequadas. E nesse sentido, um ponto central da discussão reside na legislação sobre a reabilitação penal, um instituto jurídico criado para tentar amenizar os drásticos efeitos da pena, que estigmatiza o sujeito egresso do sistema penitenciário, impedindo o seu retorno ao convívio social. O atual modelo impõe muitos entraves jurídicos para a obtenção desse benefício legal, o que prejudica a ressocialização do agente. Busca-se um caminho alternativo que amenize os estigmas da pena, numa tentativa de reduzir a reincidência criminal.PALAVRAS-CHAVE: Finalidades da Pena; Estigmas da Pena; Reincidência Criminal; Reabilitação.

IntroduçãoO problema da violência na sociedade brasileira é muito preocupante e

precisa ser objeto de analises e reflexões que busquem alternativas para o atual modelo legislativo e político criminal e para as ações de política pública de segurança, especialmente voltadas ao sistema penitenciário. A sociedade convive diariamente com uma sensação de insegurança, o cidadão bem se tornou refém da ação de criminosos, enquanto que o Estado não consegue dar uma resposta efetiva para conter a onda de violência que arrebata a sociedade e compromete a ordem e a paz social.

A questão da violência e criminalidade é complexa e vai além da necessidade de reformas legais e investimentos públicos em segurança, além do que está intimamente ligada à estrutura social excludente e altamente concentradora de renda, que coloca à margem um gigantesco contingente de pessoas que não tem acesso aos mínimos benefícios sociais, necessários a uma vida digna, fruto de uma ordem econômica capitalista cruel e baseada exclusivamente na acumulação privada em detrimento dos valores humanos.

A sociedade desvia o foco dos debates, pensando que o problema da violência esta nas reformas e mudanças da legislação infanto-juvenil, com a redução da maioridade penal, ou no aumento do rigor punitivo de certos crimes, transformando-os em hediondos. Essas medidas não resolvem o problema da

1 Advogado, Mestre em Direito. Doutorando em História pela UNESP-Franca. Coordenador e Docente do Curso de Direito do UNISEB de Ribeirão Preto.

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violência e da criminalidade enraizada no seio social, criando apenas uma falsa percepção que ilude a população. Não adianta a simples adoção de medidas paliativas, é preciso enfrentar o problema de frente e repensar com seriedade e compromisso a questão da violência e da criminalidade no Brasil. A rigidez penal é uma arma muito utilizada pelo legislador brasileiro, mas nem sempre eficaz, visando gerar na sociedade um temor geral a respeito da conseqüência do crime. Quando um crime ocupa altos índices de ocorrência, o legislador aumenta a pena prevista no tipo penal ou reduz as possibilidades de benefícios na execução penal.

A prevenção do crime não pode ter apenas aspecto intimidatório ou repressivo, como uma questão policial, mas deve atuar na causa do problema, evitando que o cidadão entre para o mundo do crime. A prevenção do crime se faz com uma melhor educação, com investimentos sociais, com melhoria nas condições de vida, com aumento da renda e diminuição das desigualdades. Não obstante, a segurança publica é um direito fundamental de toda a coletividade e um dever do Estado. Cabe ao Estado o dever de manter a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, prestando um serviço de segurança pública através de órgãos especializados, impedindo que os criminosos atuem, por meio de uma polícia eficaz e presente no seio social, com credibilidade e responsabilidade. Da mesma forma, cabe ao Estado, por meio do Poder Judiciário e dos órgãos de persecução penal, investigar e punir os crimes praticados, de forma imparcial e justa.

Mas essas medidas somente funcionarão se o Estado também permitir que os criminosos tenham a oportunidade de refazer seu conceito ético e reconstruir seus valores sociais, por meio da ressocialização, que deve ser feito através de um sistema penitenciário adequado e comprometido com os direitos humanos, pautado no princípio da dignidade humana. O sujeito que não se intimidou com a punição antes de praticar o crime, com certeza não irá se intimidar em ser novamente punido pela pratica de um novo crime. Por isso, o criminoso precisa ser reeducado para que não volte a delinqüir não por ter medo de ser penalizado, mas porque entendeu o verdadeiro sentido da vida coletiva.

É perceptível a existência de uma grave crise na execução penal. Atualmente, a pena não tem favorecido a reabilitação do condenado, em razão de uma série de problemas estruturais vividos pelo sistema carcerário brasileiro. A falta de investimentos e de políticas públicas específicas, a superlotação, a atuação de organizações criminosas dentro das penitenciárias, as condições indignificantes do cárcere, a escassez de programas educacionais e profissionalizantes eficazes, a ociosidade dos encarcerados, entre outras causas, tornam o problema do sistema prisional epidêmico e altamente corrosivo.

A finalidade da ressocialização do agente criminoso está completamente abandonada e longe de ser uma meta a ser concretizada. Esta situação colabora para a sua reincidência criminal. Perante essa constatação, muitos estudiosos passaram a buscar novos rumos para a pena privativa de liberdade, alternativas para romper com este circulo que alimenta a criminalidade e a violência no país. A solução primeira é a necessidade de reformulação do sistema carcerário brasileiro,

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melhorando as condições do cumprimento da pena, mas esta solução precisa de recursos financeiros, e o erário público não têm disponibilidade orçamentária para implantar uma reformulação completa do sistema penitenciário. Muitas das medidas pensadas são metas de médio e de longo prazo.

Na verdade, a questão da privação de liberdade deve ser abordada em função da pena tal como hoje se cumpre e se executa, com os estabelecimentos penitenciários que temos, com a infraestrutura e dotação orçamentária de que dispomos (...) deve-se mergulhar na realidade e abandonar, de uma vez por todas, o terreno dos dogmas, das teorias, do dever-ser e da interpretação das normas.(BITENCOURT, 2011, p. 161).

Nesta perspectiva, surgiram novas modalidades de penas, conhecidas como penas alternativas, que buscam o desencarceramento do sujeito criminoso, de menor potencialidade ofensiva e de baixa periculosidade social, que são menos onerosas na sua aplicação e possibilitam uma mais rápida inserção social. Muitas são as vantagens da penas alternativas, pois representam maior efetividade no cumprimento pelo caráter ressocializador e educativo, e não tem os efeitos estigmatizantes da pena privativa de liberdade. No entanto, não podem ser aplicadas aos criminosos mais graves, que ameaçam a segurança pública.

O presente artigo quer colaborar para esta discussão tão importante no atual contexto social, analisando especificamente a necessidade de se rever os critérios da reabilitação, como meio de se fomentar a ressocialização do criminoso, atacando os efeitos estigmatizantes da pena privativa de liberdade.

O caráter retributivo da pena privativa de liberdade no contexto históricoA primeira função da pena privativa de liberdade, na antiguidade, foi de

servir para o fim de custódia, onde os prisioneiros eram mantidos aguardando o momento de serem torturados e executados. Mas, neste mesmo período histórico da humanidade, têm-se notícias da existência dessa forma punitiva aplicada autonomamente. Na Grécia e em Roma fala-se em prisão por dívidas, na qual o credor se compensava do inadimplemento das obrigações de seus devedores, tendo o poder de aprisioná-los e de escravizá-los. No direito germânico, mais especificamente no edito de Luitprando do rei dos Lombardos (712-744), vê-se outro resquício da pena de prisão, ao estabelecer que cada cidade mantivesse uma prisão para abrigar os ladrões por um ou dois anos. Também, outro exemplo germânico é um capitular de Carlos Magno, do ano de 813, que ordenava que as pessoas boni generi que tivessem delinquido podiam ser aprisionadas pelo rei até que se corrigissem (BITENCOURT, 2011, p. 30).

Na Idade Média, em razão do seu forte misticismo, as penas passaram a ser utilizadas mais como espetáculos públicos de horror do que propriamente retribuições a um mal injusto praticado. Nesse período histórico, mesmo predominando ainda a prisão-custódia, a prisão como pena era aplicada aos inimigos do senhor feudal e aos clérigos rebeldes, esta ultima conhecida como prisão

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eclesiástica. A prisão eclesiástica é o germe das teorias ressocializadoras da pena, e tinha o sentido de penitência e meditação, buscando corrigir o apenado através da meditação, oração, isolamento, fustigações corporais e jejuns (BITENCOURT, 2011, p. 35).

A pena privativa de liberdade como atualmente é compreendida tem seu nascedouro na Idade Moderna, com o surgimento do Estado Nacional Soberano, e com a centralização do poder nas mãos do governante, devendo ser analisada no contexto das mudanças sociais e econômicas dos séculos XVI e XVII, especialmente dentro da realidade da época, onde o cenário de miséria, epidemias, crise econômica, fez aumentar a delinqüência a números alarmantes, ameaçando o poder do Estado. Um dos primeiros locais destinados a recolher mendigos e pequenos criminosos foi o Castelo de Bridwell, na Inglaterra, que em razão do seu êxito fez multiplicar as chamadas houses of correction ou bridwells, destinadas aos crimes de menor gravidade (BITENCOURT, 2011, p. 39).

No período Absolutista, a pena ainda tem um caráter altamente retributivo e de caráter cruel. As penas eram vistas como um castigo aplicado a quem se rebelasse contra o poder do soberano, que era entendido como um poder divino.

O cenário começa a mudar a partir das influências do Iluminismo, de Locke e Rousseau, fundamentadas no contrato social, em que o homem cede apenas parcela de sua liberdade em nome da tutela do Estado. Com base nessas idéias, Beccaria prega a humanização do Direito Penal, por meio da legalidade penal e do combate a todas as formas cruéis de punição.

A pena privativa de liberdade ganha nova conotação com o nascimento do Capitalismo em meados do século XVII, que se apropria desse instrumento de controle social, visando a dominação, sendo que os estabelecimentos prisionais passam a servir de meio de convencimento para que os operários não cometam nenhum delito, e de coercibilidade para que a classe operária aceite pacificamente a hegemonia da classe detentora dos meios de produção. A partir daí várias teorias surgiram para tornar a punição de alguma forma legítima, mesmo que aparente, seja com fundamento na justiça da punição, seja atribuindo à punição uma finalidade socialmente útil (SHECAIRA; CORRÊA JUNIOR, 2002, p. 129).

Mesmo com o surgimento do Estado burguês a pena continua tendo uma finalidade retributiva, mas com novos fundamentos. Para Kant a fundamentação é de ordem moral, ou melhor, a lei penal é vista como um imperativo categórico, uma ação em si mesma, na qual o Direito é uma espécie de moral decadente, restando ao Direito educar àqueles que não encontraram na moral valores que justifiquem a boa conduta. Nesse sentido kantiano, as leis nada mais são do que uma última barreira do justo, que se não obedecidas, tem-se por esgotados os meios educativos do Estado passando-se à retribuição. Diferentemente, Hegel se fundamenta na legalidade, ou seja, a pena é entendida como uma necessidade de restauração da ordem jurídica violada para a preservação do contrato social e da concretização da idéia de justiça, onde “a pena é a negação da negação do Direito” (BITENCOURT, 2011, p. 124, 129).

A pena no Brasil, na contemporaneidade, traz dos tempos passados este

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forte caráter retributivo, que gera um desgastante embate entre Estado e criminoso, submetendo o vencido ao vencedor, que causa um grave rancor no indivíduo, que vê no Estado e na sociedade seus piores inimigos.

Os efeitos estigmatizantes da pena e a reincidência criminal O Estado não tem políticas públicas adequadas para evitar a reincidência

criminal do egresso do sistema carcerário. Muitos criminosos ao sair da penitenciária ficam totalmente desamparados pela família e pelo Estado. O egresso ingressa no núcleo dos excluídos, sem moradia, sem emprego e sem perspectivas. E esta situação é um convite a reincidir, pois o mundo do crime lhe recruta com facilidade para atuar. Sem oportunidades e esperança não lhe resta outro caminho senão voltar para o crime.

A pena tem efeito estigmatizante, pois o sujeito que cumpriu pena é visto com receito pela sociedade. O estima da pena impõe barreiras à ressocialização do agente criminoso, negando as oportunidades de reconstrução de sua vida. O egresso do sistema carcerário tem dificuldade de encontrar um emprego honesto que lhe possa trazer o sustento digno. Por isso, muitos dos egressos voltam para o crime, alimentando os índices de reincidência criminal.

Juridicamente, a reincidência é tratada dentro do Código Penal, nos artigos 63 e 64. O Código Penal não conceituou a reincidência criminal, apenas fixou o momento de sua ocorrência. Reincidir é fazer de novo, repetir um ato anteriormente praticado, executar um ato novamente. Na perspectiva penal, a reincidência criminal é a pratica de um novo crime, após ter uma condenação transitada em julgado pela pratica de um crime anterior no Brasil ou no exterior. Portanto, o sujeito que pratica um crime e logo apos pratica outro sem ter a condenação definitiva do primeiro, não é reincidente. Nesse sentido acertou a lei penal, que teve coerência com seus princípios informadores, especialmente os princípios da inocência penal e da irretroatividade penal in pejus. Também, não será considerado reincidente para efeitos penais se entre o novo crime e o crime anterior tiver transcorrido 5 anos, contados da data da extinção da pena ou da data da concessão do Sursis ou livramento condicional, se não revogados.

O fundamento jurídico da existência da reincidência no Direito Penal é a necessidade de tratar de forma mais rigorosa o sujeito que não entendeu o caráter punitivo da primeira pena e não ressocializou, voltando a delinqüir. A reincidência é uma agravante de pena, impede a substituição da pena privativa de liberdade por pena alternativa, veda a aplicação do sursis, afasta o início da pena nos regimes semi-aberto e aberto, aumenta o prazo para obtenção do livramento condicional, interrompe a prescrição, entre outros efeitos.

Socialmente, a reincidência criminal é um mal que tem preocupado criminalistas, estudiosos do direito penal, gestores da segurança pública, enfim, todos que, direta e indiretamente, lidam com o fenômeno criminal. O caminho para combater a reincidência, se não o único e mais eficaz, é a ressocialização do criminoso. E a ressocialização se faz com uma política de concretização da dignidade do apenado e com a sua reintegração social por meio de políticas de

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egressos que permita amenizar os efeitos estigmatizantes da pena.

A ressocialização e a dignidade do apenadoA ressocialização passa primeiramente pela individualização executória

da pena. A individualização é um princípio constitucional, que abrange desde a fixação da pena pelo juiz em sentença penal, até a classificação e execução penal. A individualização executória se dá quando o juiz de execução promove a correta adequação da pena aos benefícios legais da execução penal, dando ao sujeito em cumprimento de pena a colocação em estabelecimento penal condizente ao seu sexo, a natureza do delito, a sua idade e ao seu comportamento carcerário (NUCCI, 2010, p. 1.013).

Outro aspecto importante da ressocialização é assegurar ao sujeito em cumprimento de pena uma execução dignificante, de acordo com que prescreve o artigo 88 da Lei de Execução Penal, devendo ser alojado em cela individual com pelo menos seis metros quadrados, num ambiente compreendendo dormitório e banheiro, com aeração, isolação e condicionamento térmico adequado a existência humana. Esse dispositivo obedece aos itens 9 a 14 das Regras Mínimas Para o Tratamento de Prisioneiros de 1955, aprovada pela ONU em 1957. Nos estabelecimentos penitenciários femininos, de acordo com o art. 89 da LEP, deverá ter um espaço reservado para gestante e parturiente, além de conter creche.

É impossível ressocializar sem garantir ao apenado seus direitos humanos, que são invioláveis, imprescritíveis e irrenunciáveis. O art. 38 do Código Penal prescreve que: “O preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral”. No mesmo sentido a Constituição Federal de 1988 dispõe: “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral” (art. 5º, inciso XLIX).

A Lei de Execução Criminal, em seu artigo 41, traz uma lista de direitos dos apenados: alimentação suficiente e vestuário; atribuição de trabalho e sua remuneração; previdência social; constituição de pecúlio; proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho, o descanso e a recreação; exercício das atividades profissionais, intelectuais, artísticas e desportivas anteriores, desde que compatíveis com a execução da pena; assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa; proteção contra qualquer forma de sensacionalismo; entrevista pessoal e reservada com o advogado; visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados; chamamento nominal; igualdade de tratamento salvo quanto às exigências da individualização da pena; audiência especial com o diretor do estabelecimento; representação e petição a qualquer autoridade, em defesa de direito; contato com o mundo exterior por meio de correspondência escrita, da leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes; atestado de pena a cumprir, emitido anualmente, sob pena de responsabilidade da autoridade judiciária competente.

Também é muito importante para a ressocialização do agente o trabalho penitenciário, que está previsto nos artigos 28 a 37 da LEP. A Constituição Federal veda expressamente a pena de trabalhos forçados. Embora não sujeito ao regime

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da Consolidação das Leis do Trabalho, o trabalho deve ser remunerado, não podendo ser inferior a três quartos do salário mínimo. O trabalho do preso deverá ser condizente com as aptidões e capacidade do apenado, tendo uma jornada de trabalho não inferior a seis e nem superior a oito horas, com direito de descanso nos finais de semana e feriados. O trabalho prisional tem como objetivo a formação profissional do condenado (art. 34, caput, da LEP), possibilitando que ao retornar para o convívio social possa ter condições de se manter e sobreviver por meio de uma atividade lícita e honesta.

Reabilitação Penal como instrumento de ressocialização e combate os estigmas da pena

Os altos índices da reincidência estão diretamente relacionados aos estigmas da pena. O Código Penal de 1940, ciente dessa realidade, previu o benefício da Reincidência Penal. A reabilitação é a declaração judicial de que o condenado cumpriu a sua condenação, estando apto a viver em sociedade, devendo manter o sigilo os registros dos antecedentes criminais do condenado. Concedida a reabilitação, não constarão da folha corrida, atestados ou certidões fornecidas por autoridade policial ou por auxiliares da Justiça, qualquer notícia ou referência à condenação, salvo para instruir processo pela prática de nova infração penal ou outros casos expressos em lei (MENEZES, 2002, p.10).

A reabilitação esta prevista nos artigos 93 a 95 do Código Penal. Segundo Guilherme de Souza Nucci: “reabilitação é a declaração judicial de reinserção do sentenciado ao gozo de determinados direitos que foram atingidos pela condenação” (NUCCI, 2008, p. 504). A reabilitação tende a devolver ao condenado a capacidade para o exercício de uma vida digna. Ademais, a reabilitação não é causa extintiva da punibilidade. A reabilitação apenas suspende alguns efeitos da sentença penal condenatória, visto que a qualquer tempo, revogada a reabilitação, se restabelece o statu quo ante. A reabilitação é revogada nos casos de o reabilitado for novamente condenado, como reincidente, a pena que não for de multa. A competência para a concessão da reabilitação penal é do juiz da condenação (BITENCOURT, 2006, p.835).

Para a reabilitação é indispensável a presença dos seguintes requisitos: a) o decurso de dois anos, a partir da extinção da pena, incluído o período de prova do sursis e do livramento condicional se não forem revogados; b) domicílio no país durante o prazo de carência para a concessão do benefício; c) demonstração de bom comportamento público e privado, devendo o bom comportamento abranger todo período que mediar à declaração de reabilitação, e não somente os dois anos, se aquela for declarada depois de escoado o referido biênio; d) ressarcimento do dano ou comprovação de sua impossibilidade.

O cumprimento do requisito temporal de 2 anos para o beneficio é exageradamente burocrático, alem de serem rigorosos os requisitos exigidos. No entanto, não se pode esquecer que durante este período de espera o sujeito esta vivendo em sociedade com o peso do estigma da pena. O nosso estudo visa repensar o instituto da reabilitação como um instrumento eficaz para combater a

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reincidência criminal, à medida que impede os efeitos estigmatizantes da pena, chamando a atenção do legislador, juristas e de toda a sociedade, para discutir esta grave questão jurídica e social.

Considerações FinaisMesmo todos os estudiosos estando certos e convencidos de que o atual

modelo da pena privativa de liberdade não atende as expectativas sociais e não recupera o delinquente, estando em crise estrutural, ideológica e social, continua sendo usada como discurso da garantia da paz social e da contensão da impunidade. A superlotação das penitenciárias brasileiras, as péssimas condições de abrigo dos estabelecimentos prisionais, a ociosidade e o efeito criminógeno do ambiente carcerário, são uns dos fatores que impedem a ressocialização. Shecaira (2002, p. 157) assinala que: “um dos fatores que contribuem para a crise da pena de prisão e o descrédito na eficácia de suas finalidades é o efeito-criminógeno deflagrado com o encarceramento e o subsequente convívio com uma nova realidade dentro do ambiente prisional”. Esse ambiente se traduz numa verdadeira escola do crime, que alimenta o crime dentro e fora do estabelecimento prisional, servindo de espaço para a formação e a manutenção de organizações criminosas.

O sistema punitivo atual traz de tempos passados à característica marcante da pena como uma vingança e uma retribuição ao mal praticado pelo criminoso. O cárcere historicamente não tem conseguido concretizar sua finalidade ressocializadora, não passando de um sistema de simples repressão penal, o que comprova o fracasso total da pena privativa de liberdade. A pena privativa de liberdade: “em vez de conter a delinquência, tem lhe servido de estímulo, convertendo-se em instrumento que oportuniza toda espécie de desumanidade”, alimentando no apenado vícios e degradações da sua personalidade (BITENCOURT, 2006, p. 107). Este modelo não deu certo, contribuindo para a insegurança e para o aumento da violência na sociedade.

Predomina na sociedade um sentimento pessimista sobre os efeitos da pena no combate a criminalidade e na reeducação do agente criminoso. A reincidência criminal não se combate com o endurecimento do tratamento penal e nem com o aumento das penas previstas. O caminho para enfrentar os preocupantes efeitos da reincidência criminal em nossa sociedade é a ressocialização humanitária dos egressos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASBITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2006.________________________. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008._______________________. Manual de processo penal e execução penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

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MENEZES, Marco Antônio. A reabilitação criminal no passado e no presente: uma visão histórico-jurídica. São Paulo: Vetor Editora Psico-Pedagógica. Psic v.3 n.1 São Paulo jun. 2002 SHECARIA, Salomão; CORRÊA JUNIOR, Alceu. Teoria da pena: finalidades, direito positivo, jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

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A INFLUÊNCIA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS NAS TRANSFORMAÇÕES JURÍDICAS

BRASILEIRAS

RENATA PUJOL TARDELI 1

ELIZABETE DAVID NOVAES2

ResumoEste trabalho analisa a importância dos movimentos sociais como fonte de desenvolvimento e de transformação em relação às questões jurídicas brasileiras. Recorre-se nesse estudo à compreensão da importância da participação popular em um Estado Democrático de Direito, entendendo que a participação ocasiona um processo construtivo de desenvolvimento lento, gradual e de inúmeros obstáculos, o qual depende continuamente da atuação de seus sujeitos sociais. O artigo enfatiza também a importância da internet como instrumento revolucionário da velha forma de organização e estruturação dos movimentos sociais, evidenciando que, por meio da luta diária por transformação, novos direitos são conquistados.PALAVRAS-CHAVE: Movimentos sociais; participação popular; direito.

IntroduçãoO presente artigo propõe-se a demonstrar a articulação existente entre os

Movimentos Sociais e a ampliação do Direito, entendido em seu sentido estrito e amplo, ou seja, compreendido a partir da necessária articulação entre o direito positivado pelo Estado e o direito produzido a partir das relações sociais cotidianas.

O processo de redemocratização brasileira pode tomar como marco histórico o processo de elaboração da Constituição de 1988. Naquele momento histórico, foi possível observar uma intensa interação entre os parlamentares e os atores extraparlamentares, estes últimos configurados em manifestações de participação popular em defesa de diferentes demandas sociais.

No decorrer da década de 1990, fortaleceu-se a participação política por meio dos Movimentos Sociais, envolvendo ações coletivas em defesa dos interesses de diferentes categorias sociais. Constata-se, assim, como decorrência da história das últimas três décadas, que os instrumentos populares produziram impactos significativos tanto na estrutura político-legislativa, quanto na dinâmica da participação popular, influenciando o alargamento e a elaboração de novos direitos.

A partir de tais pressupostos, coloca-se como objetivo primordial deste trabalho evidenciar a importância dos movimentos sociais como fonte de desenvolvimento e de transformação em relação às questões jurídicas brasileiras. Junto a isto, busca-se levantar algumas das consequências jurídicas causadas pelos

1 Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Uniseb de Ribeirão Preto. [email protected] Doutora em Sociologia pela Unesp de Araraquara; docente do Centro Universitário Uniseb. [email protected]

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movimentos sociais, no que se refere ao desenvolvimento e às modificações do Direito brasileiro. A problemática que move o presente estudo volta-se para a tentativa de responder as seguintes questões: Qual a importância dos movimentos sociais no desenvolvimento do Direito brasileiro? De que maneira os movimentos sociais influenciam nas modificações do Direito brasileiro?

Entende-se que a população brasileira, apesar de ser considerada caracteristicamente pacífica, não é inerte aos fatos e às suas necessidades e, em decorrência disto, observam-se as modificações, ainda que lentas, do Direito brasileiro, promovidas pelos movimentos sociais. Dessa forma percebe-se que a participação dos cidadãos nos movimentos sociais é fator significativo para o desenvolvimento social, bem como para a proteção de seus direitos defendidos através de lutas e reivindicações. Os novos direitos estão a demonstrar que valores ético-sociais são absolutamente imprescindíveis à nova realidade social, e é com tal perspectiva que o presente trabalho se justifica e se desenvolve.

Para a realização da pesquisa, toma-se como procedimento metodológico o levantamento teórico, pautado na revisão bibliográfica sobre o tema. A metodologia de pesquisa baseia-se complementarmente nos métodos histórico e dialético, apresentando os resultados da análise e discussão teórica de forma descritiva.

Cidadania e Participação popularDe acordo com Boaventura Sousa Santos (1995), o mecanismo que regula a

tensão entre sociedade e Estado é a cidadania, vez que por um lado limita os poderes do Estado e, por outro, universaliza as particularidades dos sujeitos. Ocorre, entretanto, que a representação democrática perdeu o contato com os anseios e as necessidades da população representada, fazendo-se refém dos interesses corporativos poderosos. Assim, os cidadãos perdem a forma de participação através da representação e não têm uma nova forma de participação política.

Para Marshal (1999, apud VIEGAS, 2007), a cidadania exige uma liderança diferente, um sentimento de direito de participação numa comunidade baseado numa lealdade a uma civilização como um patrimônio comum. Tal percepção de cidadania compreende a lealdade de homens livres, imbuídos de direitos e protegidos por uma lei comum. Seu desenvolvimento é estimulado tanto pela luta para adquirir direitos, quanto pelo gozo dos mesmos, uma vez adquiridos.

A este respeito, ressalta Evelina Dagnino (2004) que a expressão cidadania está hoje por toda parte. Tal fato, por um lado, coloca-se como positivo, pois indica que o termo ganhou espaço na sociedade. Por outro lado, contudo, evidencia que a palavra acabou ganhando diversas interpretações e seu significado tornou-se difícil de ser delimitado.

Segundo a autora, cidadania significa uma estratégia de construção democrática, de transformação social, que afirma um nexo entre cultura e política. Afirmar a cidadania como estratégia significa enfatizar o seu caráter de construção histórica, definida por interesses concretos, por práticas de luta e pela sua contínua transformação. Significa dizer que não há uma essência única imanente ao conceito de cidadania, que seu conteúdo e seu significado não são universais, mas respondem

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à dinâmica dos conflitos reais, vividos pela sociedade num determinado momento histórico (DAGNINO, 2004). Implica, portanto, que se fale em participação efetiva da sociedade em suas diferentes categorias.

A participação popular é um importante instrumento para o aprofundamento da democracia. Onde a participação é mínima há uma crise de legitimidade e governabilidade. No Brasil, onde se mantém um Estado Democrático de Direito, é imprescindível a efetiva participação popular, a partir da descentralização política, para que haja legitimidade das normas jurídicas e decisões estatais.

De acordo com Carlos Ayres Brito, a participação popular não quebra o monopólio estatal da produção do Direito, mas obriga o Estado a elaborar o direito em parceria com os particulares. Assim, entende-se como sinônimo de Estado Democrático o termo Estado Participativo (apud VIEGAS, 2007).

De acordo com o artigo 14 da Constituição de 1988, os instrumentos formais de participação popular são o referendo, o plebiscito e a iniciativa popular, que são formas de manifestação da soberania da população. Essa participação estabelece parcerias entre Estado e sociedade civil, para que juntos atinjam os objetivos desejados por todos, melhorando as condições de vida da população.

Excluir a maioria da população sobre as questões relevantes da comunidade contraria o princípio da soberania popular, bem como a democracia direta, que são inegavelmente os componentes de um Estado Democrático de Direito (VIEGAS, 2007). É nesse contexto que os movimentos sociais ajudam a constituir legitimamente a base de muitos mecanismos de pressão para o aperfeiçoamento das instituições democráticas.

Sobre os Movimentos SociaisToda e qualquer discussão que envolva o tema movimentos sociais exige

que inicialmente sejam analisadas as diversas interpretações que a expressão traz consigo. Diante da complexidade do assunto observa-se que existem inúmeras abordagens que visam analisar e interpretar a pluralidade de interpretações que a expressão abrange em cada momento histórico. Embora o conceito tenha se desenvolvido, ainda não existe um consenso entre os pesquisadores sobre o seu significado (GOSS; PRUDENCIO, 2004).

Desse modo, Machado (2007) aponta que:

Se tivermos que optar por uma definição do termo ‘movimentos sociais’, considerando as tão variadas abordagens existentes e aceitas, poderíamos dizer que o mesmo se refere a formas de organização e articulação baseadas em um conjunto de interesses e valores comuns, com o objetivo de definir e orientar as formas de atuação social. Tais formas de ação coletiva têm como objetivo, a partir de processos frequentemente não-institucionais de pressão, mudar a ordem social existente, ou parte dela, e influenciar os resultados de processos sociais e políticos que envolvem valores ou comportamentos sociais ou, em última instancia, decisões institucionais de governos e organismos referentes à definição de políticas públicas.

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Durante muito tempo a ideia de movimentos sociais esteve ligada aos movimentos de lutas políticas de caráter revolucionário, evidenciando uma influência teórica e política predominantemente marxista. Até os anos de 1970 era frequente a associação dos movimentos sociais a um suposto quadro de luta de classes no interior das sociedades capitalistas. Os movimentos sociais eram considerados basicamente como um produto da ação histórica da sociedade, ante as contradições do sistema capitalista. Esta interpretação foi tornando-se inadequada a partir do momento em que os movimentos sociais ganharam notável complexidade, passando a lutar pelas mais diversas causas, para além das questões de classe.

Com a ascensão dos movimentos sociais inverte-se consideravelmente a lógica do poder político, uma vez que neste momento as aspirações e demandas das minorias oprimidas começam a ganhar espaço nas discussões de âmbito público, por suas próprias manifestações.

É importante ressaltar que, embora os movimentos sociais sejam de extrema importância, a ponto de influenciarem os rumos políticos, sociais, econômicos e jurídicos do país, nem sempre são capazes de eliminar por completo o problema que buscam combater.

Direito de ProtestarA democracia é um constante processo de reinvenção de direitos, o qual

jamais pode ser erradicado da sociedade. É, sobretudo, com atos e movimentos de protesto que esses conflitos constitutivos do sistema constitucional-democrático são exibidos e exacerbados. Protestos e manifestações geralmente são os sintomas mais claros de violação de direitos fundamentais. Muitas vezes, são eles a única forma encontrada para se fazer ouvir os sujeitos que têm seus direitos sistematicamente negados e violados, privados de condições mínimas e dignas de existência (CHUEIRI; GODOY, 2013).

Segundo Chueiri e Godoy (2013), os direitos nas sociedades contemporâneas, especialmente, no século vinte e um, associam-se a demandas urgentes que se singularizam nas pessoas, individual ou coletivamente. Assim ocorre com o próprio direito ao protesto: seu exercício envolve, ao mesmo tempo e com igual importância, a liberdade de expressão e convicção, a liberdade de reunião e manifestação, a igualdade de respeito e consideração, a igualdade de participação, etc. Não importa o gênero, a cor, a orientação sexual, ou qualquer outra diferença, todos têm o direito de protestar e suas demandas devem ser levadas a sério.

A Constituição Republicana de 1988, em seu artigo 5º, caput, e seus desdobramentos, prescreve que todos devem ser tratados como iguais, independentemente de qualquer distinção. Prescreve, ainda, a vedação de qualquer tratamento desumano ou degradante, como também a redução das desigualdades, a erradicação da pobreza e da marginalização, tendo como fundamento o Estado democrático de Direito (CHUEIRI; GODOY, 2013).

Além disso, o artigo 5º, inciso XVI afirma que todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de

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autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente.

Entretanto, o descumprimento dessas promessas e compromissos, traduzidos nos direitos fundamentais, pode originar movimentos de protesto e resistência. E tais protestos, por sua vez, são verdadeiras janelas para a manifestação da democracia. Somente no dissenso que a democracia é verdadeiramente construída e operada (CHUEIRI; GODOY, 2013).

Segundo a perspectiva de Chueiri e Godoy (2013), se o Direito pretende honrar a promessa de tratar a todos como iguais, deve assegurar então, àqueles que hoje são excluídos, um tratamento mais atencioso. Enquanto isso não acontece, o Direito deve dar especial proteção aos que reclamam, e deve, portanto, proteger e não calar os protestos. De tal modo, o direito ao protesto aparece como o “primeiro direito”, ou seja, o direito de exigir a recuperação dos demais direitos.

De acordo com os autores, protestar não é simplesmente um ato juvenil, de rebeldia, tal qual o senso comum geralmente o identifica. De fato, é o exercício de um direito fundamental, o primeiro direito.

O direito ao protesto renova o compromisso democrático constitucional na articulação entre o livre pensar, a participação aberta a quem queira se expressar das mais diversas formas, articulando os iguais nas suas diferenças, construindo caminhos por meio de aproximações ou consensos provisórios, considerando que no dissenso a democracia e o constitucionalismo estabelecem uma verdadeira comunidade, capaz de questionar a sua própria identidade, estando, portanto, sempre em transformação (CHUEIRI; GODOY, 2013). Desse modo, o direito ao protesto reforça o sentido de autogoverno, na medida da participação dos cidadãos na tomada das decisões que lhes afetam, colocando-se de fato como sujeito de suas próprias decisões políticas e econômicas.

É fundamental, portanto, considerar as dificuldades (formais e materiais) que a maioria dos grupos que realizam protestos tem para se expressar, dado que muitas parcelas da sociedade encontram graves dificuldades para tornar audíveis suas vozes e se fazerem ouvir pelo poder político. Os atos de protesto mostram uma desesperada necessidade de tornar visíveis situações extremas que, aparentemente, não têm visibilidade pública (CHUEIRI; GODOY, 2013).

Um novo instrumento das causas sociais A Internet tem se colocado como um instrumento para os mais diversos fins,

favorecendo novas formas de organização social e de sociabilidade, constituindo o que se passou a chamar de “sociedade em rede” (CASTELLS, 2003). Dado que o tempo, na veiculação de contatos e informações pela internet, ganha uma rapidez extremamente significativa, este se torna um meio de comunicação que permite melhor e maior cooperação, integração, colaboração e troca de experiências entre os mais diversos sujeitos, que se comunicam virtualmente.

A Internet é o coração de um novo paradigma sociotécnico, que constitui na realidade a base material de nossas vidas e de nossas formas de relação, de trabalho e de comunicação. O que a Internet faz é processar

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a virtualidade e transformá-la em nossa realidade, constituindo a sociedade em rede, que é a sociedade em que vivemos (CASTELLS, 2003, p. 287).

Desenvolvida coletivamente, a rede é uma das maiores expressões da diversidade cultural e da criatividade social do século XX. Descentralizada, a internet baseia-se na interatividade e na possibilidade de todos tornarem-se produtores e não apenas consumidores de informação, como ocorre ainda na era das mídias de massa. A “rede” caracteriza-se pela liberdade de criação de conteúdos, de novos formatos midiáticos, de novos programas, de novas tecnologias e de novas redes sociais. É coerente afirmar que a liberdade é a essência da criação e do conhecimento, e está na base do desenvolvimento e da sobrevivência da internet.

Pode-se falar em “rede de redes”, sempre em construção, dado que este espaço virtual apresenta-se como o palco de uma nova cultura humanista que coloca pela primeira vez a humanidade diante dela mesma ao oferecer oportunidades reais de comunicação entre os povos. Sem dúvida, uma realidade com desigualdades regionais, mas universal em seu crescimento.

O uso dos computadores e das redes oferece oportunidades de trabalho, de educação e de lazer a milhares de pessoas. O que se vê na rede é efetivamente troca, colaboração, sociabilidade, produção de informação e ebulição cultural. Assim, vê-se que a internet requalificou as práticas colaborativas, reunificou as artes e as ciências, superando uma divisão erguida no mundo mecânico da era industrial. A internet representa, ainda que sempre em potência, a mais nova expressão da liberdade humana.

Manifestações originadas na internetA globalização e as inovações tecnológicas não influenciaram somente

as áreas políticas e econômicas, mas também os movimentos sociais. Estes incorporaram o que de melhor essas novas tecnologias de informação e comunicação poderiam lhe oferecer (MACHADO, 2004).

Segundo Machado (2004), a rede converteu-se em um espaço público fundamental para o fortalecimento das demandas dos atores da sociedade civil, ampliando o alcance de suas ações e desenvolvendo estratégias de luta mais eficazes. Diante da infraestrutura da rede mundial, dezenas ou até centenas de organizações de diferentes portes e universos culturais e linguísticos conseguem agregar o descontentamento para gerar amplas e complexas sinergias. É um espaço público que possibilita novos caminhos para interação política, social e econômica, principalmente pelo fato de que nela qualquer cidadão pode assumir, ao mesmo tempo, uma variedade enorme de papéis, como cidadão, militante, editor, distribuidor, consumidor, superando as barreiras geográficas.

A rapidez das novas tecnologias permite uma proliferação imediata das organizações e dos coletivos sociais, bem como uma maior integração entre eles, baseada no idealismo e no voluntarismo de seus membros. Com isso, aumentam as formas de mobilização, participação, interação e acesso à informação, a provisão

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de recursos, as afiliações individuais e as ramificações entre os movimentos sociais.Neste novo modelo, as organizações tendem a ser cada vez mais horizontais

e menos hierarquizadas. Caracterizam-se pela flexibilidade e pela intervenção descentralizada e integrada em rede, possuindo, além disso, grande dinamismo, de vez que podem se formar, alcançar certos objetivos, causar impacto, repercussão, expandir-se, ou podem rapidamente surgir, se desmanchar e desaparecer. (MACHADO, 2004).

Ressalta Machado (2004) que os ideais das organizações em redes podem ser universalistas ou particularistas. Podem atender a uma ou a um conjunto de aspirações de coletivos sociais bastante pequenos e específicos (e mesmo geograficamente separados). No entanto, ainda que ligado a uma causa ou tema específico, a luta pode orientar-se a um quadro mais amplo, que diz respeito a princípios de aceitação universal, como desenvolvimento sustentável, direitos humanos, direito à autodeterminação dos povos, combate ao racismo e formas de discriminação, democracia, liberdade de expressão, etc.

As estratégias no espaço dos fluxos buscam ligar identidades, objetivos, ideologias e visões de mundo compartilhadas. Identidade e solidariedade passam a desempenhar papéis fundamentais para a formação de tais redes. Permite a circulação dos militantes nas redes. Um mesmo ativista pode estar envolvido com outras causas, com outros atores coletivos; pode militar em vários movimentos e, também, transmitir suas reivindicações nas diferentes redes de que participa. Como a união de seus membros pode ser apenas específica ou pontual, não é incomum a participação de um mesmo indivíduo em diferentes movimentos sociais, compartilhando um interesse com pessoas que, em outras dimensões da vida social, tem aspirações, valores e crenças bem diferentes (MACHADO, 2004).

Vale ressaltar que o anonimato e a multiplicidade de identidades potencializam as formas de ativismo, mas também por essa razão é cada vez mais difícil tratar de questões identitárias dos movimentos sociais. Os interesses dos indivíduos que os ligam em redes são cada vez mais cruzados. Luta-se ao redor de códigos culturais, valores e objetivos diversos (MACHADO, 2004).

De acordo com Machado (2004), o uso das tecnologias de informação proporcionou a circulação de um enorme fluxo de informações, resultando maior conscientização e uma eficiente articulação de meios, recursos e estratégias para grandes mobilizações a partir de centenas de pequenos coletivos de ativistas. Tais tecnologias têm permitido não apenas a formação, mas também a existência de novos entes políticos no âmbito global. Novos atores sociais surgem e se formam, apoiados em redes e sub-redes menores, espécies de células “dormentes”, que podem ser ativadas a qualquer momento, segundo seus fatores identitários, valores e ideologias. O que chamamos de “forças dormentes” são pessoas conectadas que, ainda que individualmente possam pouco mais do que se indignar diante de uma injustiça, quando organizadas em uma rede, sentem-se encorajadas para participar e desencadear ações. Os movimentos sociais articulados em rede têm o poder de agregar essas “identidades individuais” ativando os elementos identitários de solidariedade.

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Para poder fazer frente a interesses de corporações, governos e autoridades, esses atores sociais têm como o principal recurso a informação. Estrategicamente difundida e aliada como tradicionalmente ocorre em manifestações, protestos e campanhas mundiais, a informação e o conhecimento podem eficientemente desencadear processos de mudança social. Importante ressaltar que o que se chama aqui de informação é apenas uma matéria bruta que pode ser transformada em ideologia. Por isso, os movimentos sociais se orientam cada vez mais em torno dos meios de comunicação, cujo poder de persuasão pode ser, por vezes, o mais poderoso.

Consolida-se também a tendência de que a maior parte dos movimentos sociais através da Rede se oriente por valores universais, como direitos humanos, de minorias, liberdade de expressão, preservação ambiental, entre outros, reivindicando as garantias das leis de um Estado democrático. Tais valores, por serem cada vez mais aceitos, criam fortes identificações que facilitam a integração no plano axiológico e simbólico dos movimentos sociais (MACHADO, 2004).

O que tece tais redes de coletivos sociais são relações, conflitos e processos políticos e sociais que ocorrem na sociedade, cujas causas e consequências se entrelaçam no cotidiano dos atores e são, cada vez mais, compartilhadas entre eles.

A internet e os movimentos sociais recentes no Brasil Alguns dizem que “o gigante acordou”, outros dizem que é apenas o

“retorno da barbárie”. Entretanto, tudo o que está acontecendo recentemente no Brasil, com uma onda maciça de protestos, passeatas e manifestações por todo o país, levando ao menos um milhão de pessoas às ruas, tem sua razão de ser. Em diversas capitais foi possível ver milhares de jovens com camisetas estampando bandas de rock ou mensagens revolucionárias, carregando faixas, bandeiras e cartazes, com os rostos pintados ou usando a máscara de Guy Fawkes, do filme “V, de Vingança”. Tais fatos reacendem o debate sobre o papel dos movimentos sociais e trazem uma série de reflexões que podem levar a múltiplos caminhos e interpretações do que está acontecendo (ALVES, 2013).

As recentes manifestações, que tinham um tema específico relacionado com a diminuição das tarifas de ônibus nas grandes cidades, ampliaram seu leque de reivindicações, passando a ser conhecidas pelo slogan “Não é só pelos R$ 0,20!”. Além do transporte, passaram a fazer parte dos protestos as cobranças populares acerca de melhorias na educação e na saúde, o combate à corrupção, críticas ao desvio de investimentos na Copa do Mundo de 2014, críticas à aprovação pela Comissão de Direitos Humanos do Parlamento de um projeto de lei que defende a “cura gay”, atingindo toda a comunidade GLS, e, finalmente, críticas ao projeto de tramitação de emenda constitucional que suprime o Ministério Público da investigação criminal, conhecida como PEC 37.

Segundo Alves (2013), com relação às redes sociais, os protestos recentes merecem uma observação especial. Muitos pesquisadores ainda analisam o impacto da internet nos processos revolucionários de transformação social no mundo inteiro. No entanto alguns teóricos ainda acham sua influência limitada.

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No Brasil, a chegada da tecnologia, utilizada integralmente por um enorme contingente de jovens e estudantes das camadas médias e mesmo de camadas menos privilegiadas da população, fez com que muitos desses jovens ocupassem as ruas, numa perspectiva de contestação do modelo de governo e mesmo da cultura tradicional vigente, exigindo transformações. O que se espanta é quanto tempo levou para que no Brasil também acontecessem essas mobilizações, tendo em vista que, em países vizinhos da América do Sul, como na Argentina e no Chile, já fazia parte do cotidiano de seus cidadãos a ocorrência periódica de grandes protestos de rua e intensas mobilizações de massa, assim como em países da Europa, em que tais manifestações são bastante frequentes (ALVES, 2013).

Em relação a este novo modelo dos movimentos sociais, o que ocorre atualmente é a existência de um amontoado de pessoas, com interesses diferenciados, todas reunidas num espaço público para protestar. Certamente, não há de se falar de um único movimento, mas de movimentos plurais, que tem um elemento essencial que lhes é próprio, qual seja, a defesa de uma temática específica e conjuntural, que afeta um grande contingente de pessoas. No caso das passagens de ônibus, essa configuração do movimento ficou clara, no momento em que o movimento Passe Livre deixou de ser o principal protagonista das manifestações, e diversos movimentos difusos passaram a se juntar, cobrando diferentes plataformas de reivindicações.

Lembra ainda Alves (2013) que o horizonte ideológico desses movimentos também chamou atenção, tendo em vista que, nos últimos protestos, não era possível discernir se haviam jovens somente de direita ou de esquerda, e sim uma verdadeira aversão a partidos políticos, traduzindo-se em gestos violentos da multidão contra os militantes que apareciam com a bandeira de algum partido.

Embora algumas interpretações defendam que essas manifestações seriam passageiras e ineficazes é preciso reconhecer o seu valor e a sua importância. Um exemplo disso é o caso da PEC 37 que trata da proposta de emenda constitucional, a qual se referia à retirada dos poderes de investigação do Ministério Público (G1, 2013). Depois da pressão dos protestos pelo Brasil, a PEC 37 foi derrubada. Com o arquivamento da proposta, fica mantido o poder de investigação do Ministério Público, que foi estabelecido na constituição de 1988. A derrubada da PEC 37 vinha sendo um pedido constante nos protestos.

Em seguida, a Câmara aprovou o projeto que determina que 75% dos recursos dos royalties do petróleo da união, estados e municípios sejam destinados à educação e 25% à saúde. Diferente do projeto original do governo que previa a aplicação de 100% das receitas em educação (G1, 2013).

Considerações finaisDiante do exposto, conclui-se que a participação popular é um forte e

necessário instrumento capaz de romper as barreiras entre o Estado e a Sociedade, tornando-os cada vez mais próximos. O Estado de Direito garante em sua Constituição de 1988 a cidadania, a dignidade da pessoa humana, o pluralismo político, etc., assim como o exercício dos direitos sociais e individuais. Trata-se de

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uma democracia participativa com proteção e respaldo da própria Lei Maior.O desenvolvimento de um novo espaço político democrático, originado

diante da pluralidade de práticas participativas e atuações coletivas, desenvolvidas pelos atores sociais, permite edificar um novo paradigma de organização da vida social. A participação ocasiona um processo construtivo de desenvolvimento lento, gradual e de inúmeros obstáculos, o qual depende continuamente da atuação de seus sujeitos sociais. Assim, faz-se necessária a ampliação das possibilidades de participação, coletivas e individuais da população, aumentando os instrumentos de atuação nas decisões políticas.

Quanto maior a participação e o aumento das capacidades e habilidades dos atores coletivos, melhor se estruturarão os Movimentos Sociais, e consequentemente, mais efetivos serão suas realizações e conquistas. Além disso, a ação coletiva, efetivada pelos movimentos sociais, parece ser o único meio a se chegar a uma representatividade mais compatível à vontade popular. A participação é vital para a construção de um Estado mais eficiente, democrático e principalmente participativo, pois se constata que nem o Estado, nem a Constituição, se atuarem sozinhos podem solucionar as complexas questões enfrentadas pela sociedade.

A complexidade da atual realidade demonstra a contradição existente entre a existência formal do Estado Democrático de Direito e o que se efetiva materialmente, na realidade concreta. Assim, entende-se que, para reduzir a distância entre a existência formal e material, é preciso perceber que o Estado está em constante processo de construção, ou seja, frequentemente precisa ser lapidado por meio da organização da sociedade civil, do planejamento participativo, da educação básica, entre outros.

Por outro lado, embora se perceba a importância dos movimentos sociais e o quanto influenciaram os rumos políticos, jurídicos e sociais do país, tais manifestações não sanam por completo todos os problemas levantados pelos sujeitos sociais, de modo que persistem ainda inúmeros problemas a serem combatidos.

Na década de 1980, os movimentos sociais sofreram algumas mudanças na estrutura organizacional, tornando-se mais informais, descentralizados, pluridimensionais e heterogêneos. Esses novos movimentos demonstraram uma ampliação em seus temas, pois não mais se limitavam aos assuntos já estabelecidos. Referiam-se a códigos não convencionais, como feminismo, ecologia, pacifismo, emancipação cultural, valorização das liberdades sexuais, defesa dos direitos humanos etc. Também questionavam a opressão política, econômica, social e cultural.

Como se discorre neste estudo, um instrumento importante, que revolucionou a velha forma de organização e estruturação dos movimentos sociais, sem dúvida foi a internet. As novas tecnologias de informação e comunicação trouxeram inúmeras vantagens aos atores sociais. A rede tornou-se um espaço público de extrema relevância, ampliando o alcance das manifestações, permitindo a proliferação imediata das informações e aumentando a integração entre os sujeitos sociais.

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Com relação às transformações jurídicas diante dos movimentos sociais conclui-se que, por muito tempo o pensamento jurídico permaneceu insensível aos novos problemas, preso ao conhecimento formal, hierarquizado e apegado às abordagens dogmáticas. No entanto, as novas necessidades trouxeram uma abertura epistemológica, metodológica e doutrinária.

A revisão do conceito de “sujeito de direito” e o reconhecimento da legitimidade dos movimentos sociais na construção de direitos e no desenvolvimento da história, demonstram que a criação do direito não se limita ao Estado.

Percebe-se que a evolução dos movimentos ocorre pela luta diária por transformação e justiça, e consequentemente, é no desenrolar dessas ações que os direitos são conquistados. Assim, observa-se que, se tais direitos estão nas leis é por conta de uma história de lutas sociais que, posteriormente deu origem a uma determinada legislação. Por conseguinte, os movimentos sociais tentam reduzir a distância entre a realidade “posta” e aquela que se projeta. Em geral, os Movimentos Sociais, buscam a mais profunda afirmação da essência da pessoa humana, bem como a verdadeira ordem, que não se confunde com a ordem imposta.

Observa-se que a própria Constituição protege o direito de protestar. Manifestações e protestos geralmente são os sintomas mais claros de que há violação de direitos fundamentais. Muitas vezes, tais manifestações e protestos são a única forma dos sujeitos sociais serem ouvidos, frente a percepção de seus direitos violados. A maioria dos grupos encontra graves dificuldades para tornarem audíveis suas vozes, bem como para tornarem visíveis situações extremas que, aparentemente não têm visibilidade pública.

Observa-se que se o Direito pretende honrar a promessa de tratar a todos como iguais, assim, deve assegurar àqueles que hoje são excluídos, um tratamento mais atencioso. Enquanto isso não acontece, o Direito deve dar especial proteção aos que se manifestam e deve, portanto, proteger os protestos e não calá-los. Deste modo, o direito ao protesto aparece, como o “primeiro direito”, ou seja, o direito de exigir a recuperação dos demais direitos.

Os direitos sempre refletiram os estágios de desenvolvimento das sociedades, convertendo as necessidades sociais em leis. Diante das transformações do mundo atual, estão sendo produzidos “novos direitos”. Cabe ao Estado regular novas condutas, frente às questões até então nem imaginadas.

Enquanto essas novas situações não são reguladas por normas concretas e específicas, cabe à doutrina e à jurisprudência propor soluções. Toda lei decorre da finalidade de se atender uma necessidade social e, a partir disso, deve ser elaborada, interpretada e aplicada.

Por este caminho, talvez se possa realizar uma mínima (e necessária) harmonização da convivência humana com os princípios sociais.

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CRITÉRIOS DE AFERIÇÃO DE NACIONALIDADE E CONFLITOS DECORRENTES COMO ORIGENS

DA APATRIDIA

NICOLE CARDOSO PAGANINI 1

ResumoO presente artigo possui por objetivo demonstrar como a adoção de diferentes critérios de aferição de nacionalidade pelas nações pode acabar por ocasionar o chamado conflito negativo de nacionalidade, uma das origens da condição de apátrida, negando ao indivíduo o direito básico a uma nacionalidade, tal como este é previsto no artigo 15 da Declaração Universal dos Direitos Humanos.PALAVRAS-CHAVE: Nacionalidade; Apatridia; Direitos Humanos.

IntroduçãoA apatridia representa um grave problema social, e pode ser identificado

através da história da humanidade desde os tempos das sociedades clássicas, na antiguidade. É tratada, aparentemente, como uma doença sem cura, que deixa inúmeros indivíduos à margem da sociedade, sem pleno acesso a direitos básicos como educação, saúde e, até mesmo, o direito de ir e vir. Os poucos tratados internacionais que dissertam sobre o tema possuem dispositivos voltados, em sua maioria, a remediar os sintomas gerados por este fenômeno, mas pouco se prestam a tratar a causa.

Talvez, o grande questionamento a ser considerado seja, afinal, qual é a origem do fenômeno da apatridia.

Da necessidade da aferição de uma nacionalidade para a garantia da proteção aos direitos humanos do indivíduo

Possuir uma nacionalidade faz parte da condição humana, inserida dentro de um contexto social. Trata-se, inclusive, de garantia contida no artigo 15 da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Consiste, objetivamente, no pressuposto inalienável para integral acesso e gozo dos direitos garantidos e protegidos por determinado Estado, ao qual o indivíduo encontra-se vinculado.

Sucintamente, conceitua Pagliarini (2012, p. 3): “nacional de um Estado é quem a este está ligado por uma vinculação jurídica que se chama nacionalidade; por esta razão, quem não for nacional será estrangeiro”.

Ao estrangeiro, aquele que não possui vínculo de nacionalidade com determinado Estado, quando em suas dependências, não é reservado o total descaso, mas sim possuirá tratamento, de certa forma, inferior ou incompleto quando comparado àquele do indivíduo pertencente àquele Estado. Contudo, o

1 Bacharela em Direito pelo Centro Universitário UniSEB, pós-graduanda (MBA) em Direito Tributário das Empresas pelo UniSEB à Distância. Advogada.

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termo “estrangeiro” remete, em regra, à ideia de um indivíduo “nacional de outro país”. Existem, no entanto, indivíduos que não possuem vínculo considerado efetivo com qualquer Estado, sendo completamente privados de qualquer nacionalidade; trata-se, sucintamente falando, da figura do apátrida.

O apátrida é equiparado ao estrangeiro pela disposição inserida no inciso I do artigo 7º da Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas (ONU, 1954): “Article 7: 1. Except where this Convention contains more favourable provisions, a Contracting State shall accord to stateless persons the same treatment as is accorded to aliens generally”2.

Entretanto, nas palavras de Oppenheim (1911, apud DOLIDZE, 2011): “the rules of international law relating to diplomatic protection are based on the view that nationality is the essential condition for securing to the individual the protection of his rights in their international sphere”3. Ou seja, a proteção diplomática internacional dos indivíduos é, em regra, fundada no pressuposto de que ele possua a proteção de, ao menos, um Estado. Assim, em regra, nenhum Estado intervirá para a defesa de um apátrida ou estrangeiro, preferindo garantir a proteção dos direitos de seus nacionais.

Portanto, torna-se imprescindível que a apatridia seja suprida para que os indivíduos desfrutem de mínimas condições de dignidade. De outro modo, restam estes indivíduos indefesos frente a possíveis lesões de seus direitos humanos.

Dos critérios de aferição de nacionalidade mais comumente adotados pelos Estados

Há duas modalidades de nacionalidade que podem ser conferidas a um indivíduo: originária e derivada (SILVA, 2007). No Brasil, especificamente, a nacionalidade originária confere o status de “brasileiro nato”, enquanto que a nacionalidade derivada garante o status de “brasileiro naturalizado”.

Atente-se, ainda, que a Constituição Brasileira (BRASIL, 1988) dispõe, em seu artigo 12, parágrafo 2º, que: “a lei não poderá estabelecer distinção entre brasileiros natos e naturalizados, salvo nos casos previstos nesta Constituição”. Contudo, por tratar-se de regra de direito interno, não se pode assumir que outros Estados adotarão o mesmo posicionamento não-discriminatório entre os nacionais natos e naturalizados.

Nacionalidade origináriaO reconhecimento da nacionalidade originária se dá sem a intervenção

da vontade do adquirente (RALUY, 1955, apud GLASENAPP, 2008). Isto porque não depende de ato voluntário do mesmo, mas sim apenas de critérios objetivos predeterminados pelo Estado ao qual se vincula. O primeiro critério para aferição de nacionalidade originária é o jus soli, o qual atribui a nacionalidade ao indivíduo de acordo com o local de seu nascimento.

2 Artigo 7: 1. Exceto onde esta Convenção contiver provisões mais favoráveis, um Estado Contratante deverá prover aos apátridas o mesmo tratamento que é provido aos estrangeiros em geral (tradução livre).3 As regras de direito internacional relativas à proteção diplomática são baseadas na visão em que a nacionalidade é condição essencial para as-segurar ao indivíduo a proteção de seus direitos na sua esfera internacional (tradução livre).

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Embora possua origens na Idade Média, dentro da sociedade feudal européia, como modo de manter o indivíduo atrelado a terra onde nascera (FLORES, 2012), esse critério, na atualidade, é mais comumente adotado pelos países do chamado “novo mundo”, tendo servido de incentivo à colonização de tais terras (SANTOS, 2009). São exemplos de países que adotam prioritariamente o jus soli o Brasil, o Canadá e os Estados Unidos.

O segundo critério para aferição da nacionalidade originária é o jus sanguinis, o qual descarta completamente o local de nascimento da pessoa, levando em consideração apenas sua descendência, a origem de seus genitores e de sua família. De fato, é um critério tradicional, adotado, prioritariamente, na atualidade pela maioria dos países do chamado “velho mundo” (por exemplo, Itália e Alemanha). Suas origens remontam à antiguidade, em culturas como a greco-romana, a egípcia, a hebraica e a indiana (DEL’OLMO, 2002).

Atualmente, como forma de prevenção à apatridia, a maior parte dos países adota ambos os critérios, no chamado sistema misto ou eclético (DOLINGER, 2008, apud FLORES, 2012). Ensina Mello (2004, apud SANTOS, 2009):

O sistema misto combina os dois sistemas enunciados acima. É o adotado na Colômbia, EUA, etc. Na verdade, o que se pode concluir é que praticamente nenhum Estado adota o jus solis ou o jus sanguinis de modo exclusivo. Todos abrem exceções ao sistema que adotam como regra geral.

Ainda, merece destaque o art. 6º da Convenção Européia sobre Nacionalidade – CEN (CONSELHO DA EUROPA, 1997), ratificada por 20 países (dados de 22/08/2013), onde é claramente sugerida a adoção de tal critério misto (PAGANINI, 2013). O Brasil, por exemplo, embora claramente favoreça o critério do solo, adota subsidiariamente o critério do jus sanguinis, como se aduz ao analisar as alíneas “b” e “c” do artigo 12 da CRFB/88.

Por fim, anote-se que, na maior parte dos países que adotam o sistema do jus sanguinis, de acordo com determinações de direito interno, há um limite geracional para atribuição de nacionalidade segundo este critério. É o caso, por exemplo, como menciona Flores (2012), de Alemanha e França. Tal fato se deve, possivelmente, ao detalhe de que, com o passar do tempo e o transcorrer das gerações, os descendentes dos antigos nacionais destes países tendem a perder contato com os costumes e tradições de seus antepassados. Por conta disto, não faria mais qualquer sentido mantê-los atrelados juridicamente a determinado Estado, com o qual, efetivamente, não mais possuem qualquer vínculo (DEL’OLMO, 2001, apud FLORES, 2012).

Nacionalidade derivadaPor sua vez, a naturalização, ou nacionalidade derivada, trata-se de toda a

forma de aquisição de nacionalidade que não advenha de critérios territoriais ou de sangue (LENZA, 2010) ou, como elucida Tenório (1962, apud FLORES, 2012), consistiria em: “todas as formas que estabelecem os atos aquisitivos de uma nacionalidade

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não originária”. Cabe, ainda, ressaltar o relato de Del’Olmo (2001):

A naturalização consiste na atribuição da nacionalidade de um Estado à pessoa até então detentora da condição de nacional de outro país, ou mesmo sem nacionalidade4. É uma concessão que pode ser usada por quem já formou elos afetivos ou geográficos com o Estado ao qual vai unir-se juridicamente.

Trata-se, em regra, de ato voluntário de determinado indivíduo, que demonstra, com ânimo efetivo, desejar constituir vínculo com determinado Estado. Nem sempre, contudo, a naturalização será voluntária. De acordo com o ordenamento jurídico local, ela poderá ser facultativa ou impositiva ao indivíduo (MARINHO, 1956, apud FLORES, 2012).

A nacionalidade derivada poderá ser, ainda, reconhecida de modo expresso ou tácito (DEL’OLMO; KAKU; SUSKI, 2011). A aferição tácita de nacionalidade derivada não representaria ato voluntário objetivo do indivíduo-objeto, mas sim seria fruto na situação pessoal do indivíduo, como no caso do jus conubii (casamento), ou de mudanças políticas locais (FLORES, 2012); porquanto a naturalização expressa é, em regra, fruto de um processo jurídico ou administrativo, submetido à análise de um Estado, que irá concedê-la ou não de acordo com sua discricionariedade (TENÓRIO, 1962; ANDRADE, 1978, apud FLORES, 2012).

É mister diferenciar os conceitos de naturalização e mudança de nacionalidade. A primeira espécie trata-se da mera aquisição de uma nova nacionalidade, sem que haja necessariamente a perda de outra que o indivíduo eventualmente já possuísse; a segunda modalidade, por sua vez, consiste em efetiva mudança de nacionalidade, onde o indivíduo perde aquela(s) que ora possuísse em prol da aquisição de uma nova (MAZZUOLI, 2011).

Os critérios para aferição da nacionalidade derivada são os mais diversos, variando de acordo com o ordenamento jurídico de cada país. Estados como a Alemanha, Finlândia, Holanda e Peru admitem a naturalização por casamento, o jus matrimonii ou jus conubii. Por sua vez, países como o Haiti, Panamá e Rússia admitem a naturalização pelo critério do jus laboris, ou seja, do local da atividade profissional do indivíduo (VALÉRIO, 2012). Há, ainda, o critério do jus domicilli, pelo qual atribui-se nacionalidade àquele indivíduo que habite determinado local com animus de permanecer por tempo incerto. É o critério predominante de atribuição de nacionalidade no Vaticano (SILVA, 2008, apud FLORES, 2012). Vale ressaltar, ainda, o caso peculiar de Israel, que admite a naturalização pelo critério do simples retorno do imigrante judeu ao país (VALÉRIO, 2012).

No caso específico do Brasil, os critérios de aquisição da nacionalidade derivada estão contidos entre os artigos 110 a 123, da Lei 6.815/80 (Estatuto do Estrangeiro), e no artigo 12, II, “a” e “b” da CRFB/88 (PAGANINI, 2013), e consiste nas espécies “ordinária” e “extraordinária”. Note-se, ainda, que o jus domicilli

4 Grifei.

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é tido, pelo Direito Internacional, como o critério prioritário para a aferição de nacionalidade à pessoa apátrida (MELLO, 2004, apud MOTA, 2002).

Destaque-se, por fim, que, embora a aquisição de nacionalidade derivada seja amplamente admitida no mundo, o Uruguai é o único Estado que a veda (FLORES, 2012). Contudo, levando-se em conta a grande pluralidade de modos de aquisição de nacionalidade, originária ou derivada, verifica-se que podem ocorrer os chamados conflitos de nacionalidades. Nestes conflitos, considerando-se os critérios adotados por dois ou mais países, um indivíduo poderá não ter direito a qualquer nacionalidade, ou poderá ter direito a várias (CUNHA JÚNIOR, 2012).

Dos conflitos de nacionalidadeConforme expresso por Andrade (1978, apud FLORES, 2012): “A diversidade

existente nas legislações ao regulamentarem a aquisição e perda da nacionalidade, gero dois tipos de conflitos: o positivo e o negativo”. A plurinacionalidade, polipatridia ou conflito positivo de nacionalidades se dá quando, em decorrência dos critérios de aferição de nacionalidade adotados pelos países, certo indivíduo fará jus a duas ou mais nacionalidades (MOTTA, 2012). Não necessariamente, contudo, haverá a perda da primeira nacionalidade que o indivíduo possua (MIRANDA, 1935, apud FLORES, 2012).

Verifica-se, por exemplo, a ocorrência do conflito positivo de nacionalidade, no caso de filho de pai coreano nascido no Brasil, posto que a Coréia5 adota, primariamente, o jus sanguinis, e o Brasil dá preferência ao jus soli (JO, 2001). Tal situação verifica-se, também, com alguns brasileiros descendentes de italianos, posto que a Itália prioriza o critério do jus sanguinis, segundo o artigo 1º, “a”, da Lei 91/1992 (PAGANINI, 2013).

Contudo, ao passo que determinado indivíduo poderá possuir mais de uma nacionalidade, ele também poderá, de acordo com os critérios definidos pelos países, ser privado de possuir qualquer nacionalidade. A esta situação, denomina-se conflito negativo de nacionalidade (GUERIOS, 1936). Anote-se, porém, como elucida Batiffol (1949, apud FLORES, 2012), que a questão do conflito negativo não se refere, como ocorre no conflito positivo, a um conflito de leis próprio, mas sim à ausência de tais leis.

O conflito negativo poderá ocorrer quando a pessoa, no transcorrer de sua vida, for privado das nacionalidades que possua (FLORES, 2012). Contudo, a situação mais comum ocorre quando, ao nascer, determinado indivíduo não encontra, em nenhum país, amparo para aquisição de nacionalidade. A título de exemplo podemos citar a hipótese de filhos de pais brasileiros, que não estivessem a serviço do Brasil, que residissem, ainda que legalmente, na Alemanha, por menos de oito anos, entre os anos de 1994 e 2000 (PAGANINI, 2013). Pela Constituição brasileira, à época, vigia a seguinte redação do artigo 12, I, “c”, definida pela emenda constitucional de revisão nº 03/94:

5 “Coréia”, no caso da obra de Hee Moon Jo, refere-se à Coréia do Sul, muito embora a Coréia do Norte também adote o jus sanguinis.

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Art. 12. São brasileiros: I - natos: a) os nascidos na República Federativa do Brasil, ainda que de pais estrangeiros, desde que estes não estejam a serviço de seu país; b) os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que qualquer deles esteja a serviço da República Federativa do Brasil; c) os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que venham a residir na República Federativa do Brasil e optem, em qualquer tempo, pela nacionalidade brasileira6;

A exigência determinada para filho de brasileiros, nascido no exterior, adquirisse a nacionalidade brasileira, seria de retornar ao Brasil, para que então pudesse optar por obter a nacionalidade. Esta situação somente se alterou após a aprovação da emenda constitucional 54/07, que alterou a redação da alínea “c” do artigo 12 da Constituição brasileira, para a que até hoje vigora, qual seja:

Art. 12. São brasileiros:I - natos:c) os nascidos no estrangeiro de pai brasileiro ou de mãe brasileira, desde que sejam registrados em repartição brasileira competente ou venham a residir na República Federativa do Brasil7 e optem, em qualquer tempo, depois de atingida a maioridade, pela nacionalidade brasileira;

Relativamente à legislação vigorante, à época, em território alemão, tratava-se de uma lei datada de 1913, a qual priorizava o critério sanguíneo, quase não levando em consideração o local de nascimento da pessoa. Com efeito, descreve Brubaker (1992, apud HOWARD, 2008), o objetivo desta lei era o de criar uma “comunidade de descendência” na Alemanha, de modo a isolar socialmente os estrangeiros nascidos em solo alemão.

A flexibilização da legislação de nacionalidade alemã veio apenas em 2000, com a atribuição de nova redação à Staatsangehörigkeitsgesetz8. Isto apenas ocorreu devido a movimentos político-sociais, que pressionaram o governo pela reformulação da legislação anterior, absolutamente ultrapassada (PAGANINI, 2013). Desta forma, os filhos de pais brasileiros que não trabalhassem a serviço do Estado brasileiro, nascidos na Alemanha na época destacada, ver-se-iam em uma situação de extrema vulnerabilidade social, haja vista que não encontrariam amparo, por parte da legislação de qualquer dos dois Estados, para aquisição de uma nacionalidade9.

Discorre Del’Olmo (2009):

6 Grifei.7 Grifei.8 Lei de Nacionalidade (tradução livre).9 Casos semelhantes a este foram a origem do famoso movimento dos “Brasileirinhos Apátridas”, criado, sobretudo, por pais de crianças e jovens que, por força da antiga redação do art. 12, I, “c”, da CRFB/88, frente às legislações dos países em que nasceram, encontravam-se completamente desamparados em seu direito à nacionalidade, em flagrante violação ao disposto pelo art. 15 da DUDH.

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A principal fonte da anacionalidade está na existência dos dois sistemas utilizados pelos Estados na atribuição originária da nacionalidade. Assim, criança nascida em país que adota o jus sanguinis, de pais oriundos de Estado que privilegia o jus soli, não terá nacionalidade. Outra fonte é a legislação de países totalitários permitindo a supressão da nacionalidade por motivos políticos ou raciais.

Nas palavras de Hannah Arendt, aqueles muitos indivíduos privados de sua nacionalidade pelo Estado (no caso relatado pela autora, a Alemanha nazista, estado totalitário) acabaram por se ver numa situação jurídica pior do que a de um criminoso, pois não possuíam qualquer direito – sequer, o próprio direito a ter direitos (ARENDT, 1990). Assim, é possível verificar que o conflito negativo de nacionalidades é, primariamente, a origem da figura do anacional, heimatlos, sem-pátria, apólida ou apátrida.

Considerações FinaisConclui-se, por derradeiro, que a figura do apátrida origina-se, basicamente,

nas lacunas de legislações que, em sua elaboração, e em contato com legislações de outros países, não conseguiram abarcar todas as situações onde a possibilidade da concessão de uma nacionalidade se faria necessária.

Caberia, possivelmente, aos organismos internacionais de fiscalização, sobretudo ao ACNUR10, não somente elaborar pactos internacionais para a prevenção e mitigação da anacionalidade, mas também a atuação junto a tais países na ocorrência destas situações, de modo a exercitar o diálogo e sugerir as adaptações necessárias nas legislações para a erradicação ou, ao menos, significativa diminuição nas ocorrências de apatridia.

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REFLEXÕES SOBRE ACESSO À JUSTIÇA NO BRASIL E CONSTRUÇÃO DA PACIFICAÇÃO

SOCIAL

CÉSAR AUGUSTO RIBEIRO NUNES 1

ELIZABETE DAVID NOVAES2

ResumoO presente artigo corresponde a um breve estudo acadêmico de natureza sócio-jurídica, desenvolvido a partir de fontes bibliográficas sobre Direito, Sociedade e Política. Investiga as origens sociais da formação do atual cenário de “crise do poder judiciário” brasileiro, tendo em vista a intrínseca relação existente entre o processo de modernização da sociedade e a contraditória criação de mecanismos formais de acesso à justiça, próprios da natureza de uma sociedade periférica em relação aos países capitalistas dominantes. De maneira estatística, o trabalho ainda recupera os dados determinantes da estruturação sobrecarregada do Poder Judiciário para caracterizar a contradição na adoção de medidas institucionais que se voltam, apenas, para o aumento de estrutura de acesso a esta máquina estatal. Por fim, propõem-se práticas de atendimento mais adequado para a resolução de conflitos de interesse, uma vez que se tornam cada vez mais ineficientes as propostas alheias à perspectiva de mudança cultural voltada para a pacificação social.PALAVRAS-CHAVE: Acesso à justiça; Conflitos; Ordem jurídica justa; Justiça social.

Considerações IniciaisA questão do acesso à justiça no Brasil é frequentemente abordada

enfatizando-se a morosidade do judiciário. Não há dúvidas de que este é um problema a ser enfrentado, tamanha a sobrecarga causada pelo crescimento do número de processos no respectivo Poder Judiciário. Sem dúvidas, esta constatação é uma das consequências mais explícitas do desenvolvimento econômico do país nas últimas duas décadas, somada ao próprio contexto de transformação das relações sociais contemporâneas, considerando-se aqui o seu rápido e cada vez mais complexo modo de se realizar em tempos de globalização econômica e tecnológica. Não obstante, deve-se colocar junto a isto também a questão da eficácia no atendimento das demandas da sociedade, especialmente das camadas socialmente menos favorecidas, evidenciando que a problemática do Acesso à Justiça no Brasil articula-se diretamente à questão da desigualdade social, dado o fato de que existem obstáculos e desigualdades estruturais que separam uma grande parte da população dos instrumentos de acesso à justiça formal.

De acordo com o Relatório da Pesquisa Justiça em Números 2013, publicado recentemente pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ, o número de ações judiciais pendentes de julgamento em todo o território nacional alcançou uma marca alarmante e pouco compatível com o interesse público de 92,2 milhões,

1 Prof. Ms. em Sociologia, docente do Centro Universitário UniSEB. Email: [email protected] Profa. Dra. em Sociologia, docente do Centro Universitário UniSEB. Email: [email protected].

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montante este que representa um aumento de 10,6% se comparado ao ano de 2012. A referida marca de processos novos equivale a um total de 28,2 milhões de ações, um número quase impossível de ser resolvido sem uma mudança estrutural em todo o Poder Público brasileiro (CNJ, 2014).

Não obstante, é importante registrar outro fato agregado ao enorme peso social desta contabilidade preocupante do Poder Judiciário - o fato do crescimento de ações ocorrer ao mesmo tempo em que se percebe uma melhoria na produtividade de magistrados e servidores dos Tribunais nacionais no que diz respeito ao percentual de processos baixados, sentenças e decisões proferidas. Conforme teor do referido documento, no ano de 2012, o número de processos baixados (solucionados) cresceu 7,5% e quase alcançou o valor de novas demandas recebidas no Poder Judiciário. Ademais, o número de sentenças e decisões proferidas foi 4,7% maior do que se comparado ao ano anterior (aproximadamente 24,7 milhões de casos).

Cabe especificar, no entanto, que apesar da melhoria de produtividade ser notável no último ano, o crescimento do percentual de casos novos continua sendo um dos grandes motivos de perda de eficiência do Poder Judiciário, razão pela qual observamos o total de 8,9% processos acrescidos ao volume total de casos no quadriênio pesquisado. Por esse motivo, a chamada Taxa de Congestionamento do Poder Judiciário, cuja criação revela a medição de processos em tramitação que não foram baixados durante o ano, continuou elevada no ano de 2012, na casa dos 69,9%, o que diz que a cada 100 processos que tramitaram apenas 30 foram baixados no período. Por fim, vale recordar que no quadriênio passado essa Taxa cresceu 0,2 ponto percentual.

Obstáculos no Acesso à JustiçaSobre este tema dois grandes teóricos das ciências humanas dedicaram parte

de seus estudos para nos orientar sobre como compreender as barreiras do acesso à justiça: Mauro Cappelletti e Boaventura de Sousa Santos. O primeiro responsável por inaugurar uma perspectiva nova e crítica do problema do acesso à justiça nas sociedades contemporâneas, revelando, por sua vez, os reais obstáculos ainda não completamente superados pelo Estado e pelos Governos ocidentais desde a década de 1970. Nesse sentido, elaborou o autor italiano uma divisão temporal das iniciativas e projetos que se voltavam para a resolução desses obstáculos, denominando-os de ondas de acesso à justiça. Em apertada síntese, refere o teórico (CAPPELLETTI, 2002, p. 12):

Podemos afirmar que a primeira solução para o acesso (...) foi a assistência judiciária; a segunda dizia respeito às reformas tendentes a proporcionar representação jurídica para os interesses difusos (...) e o terceiro – e mais recente – é o que nos propomos a chamar simplesmente ‘enfoque de acesso à justiça’ porque inclui os posicionamentos anteriores, mas vai muito mais além deles.

Boaventura Sousa Santos (1989) já enfatizou em seus estudos que os

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obstáculos à justiça são essencialmente de dois tipos: os obstáculos econômicos, que decorrem do determinante imediato de que a justiça civil é cara; e os obstáculos sociais e culturais, que refletem o fato de que as camadas sociais de menores recursos mantêm uma distância maior para com a administração da justiça. Por consequência, as normas jurídicas não penetram em todos os níveis da sociedade. Deste modo, verifica-se uma realidade em que as camadas populares são fortemente vitimizadas, em decorrência do alto custo econômico; da não efetivação de direitos; da lentidão dos processos; da ignorância de seus direitos e da dificuldade de perceberem seus problemas como questões jurídicas. Além disto, materialmente, vivenciam também uma distância psicológica e também geográfica dos locais físicos da justiça. Ora, esta realidade material expressa uma condição de discriminação social no acesso à justiça, constituída como um fenômeno complexo, envolvendo processos de socialização e de interiorização de valores dominantes difíceis de serem transformados.

Afora isto, constata-se que os tribunais nem sempre se apresentam aptos para lidar com conflitos de classe e transgressões de massa, estando ainda mais preparados a oferecer respostas aos conflitos individuais e apresentando significativa dificuldade em responder as demandas coletivas. Como decorrência, o Sistema de Justiça reflete as contradições entre a ordem legal e a ordem legítima, colocando os sujeitos sociais frente a uma arena de reconhecimento ou de negação das reivindicações sociais, bem como de uma fraca integração da sociedade brasileira, que envolve em seu seio relações condizentes com um capitalismo avançado em oposição a relações patrimonialistas e familiares, reforçando a velha contradição entre interesses públicos e privados. Isto se comprova inclusive com dados estatísticos recentemente publicados pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ, que através do seu Relatório da Pesquisa Justiça em Números 2013, averiguou o número de ações judiciais pendentes de julgamento em todo o território nacional na marca de 92,2 milhões. Este montante representa um aumento de 10,6% se comparado ao ano de 2012. Ademais, a referida marca recorde é constituída com um acréscimo de processos novos, equivalente a um total de 28,2 milhões de ações, um número quase impossível de ser resolvido somente com propostas de Reforma do Poder Judiciário brasileiro.

Os limites do JudiciárioEm um sistema federativo como o que caracteriza o Brasil, os tribunais

exercem uma importante função, colocando-se a julgar conflitos constitucionais, cabendo ao Supremo Tribunal Federal exercer o papel de “guardião da Constituição”. Talvez por consequência deste traço característico brasileiro, as soluções apontadas para combater os obstáculos de acesso à justiça sejam, em geral, centradas no judiciário. Por vezes, o problema da justiça, propriamente dita, é deixado em segundo plano, visto apenas como a possibilidade de entrada e acesso ao Poder Judiciário.

Contudo, um efetivo acesso à justiça implica em que as pessoas demandantes e em defesa sejam muitas, capazes de realizar o processo por diversos caminhos

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que não exclusivamente de uma justiça formal, tradicional e burocrática, tornando-se aptas a exercerem o papel de cidadãos de forma ativa, evidenciando claro posicionamento político na esfera da discussão pública.

Importante considerar, neste diapasão, a questão do desenvolvimento e efetivação de políticas públicas que estejam voltadas para a ampliação do acesso à justiça, capazes de favorecer as populações mais carentes no sentido de obterem melhores condições e possibilidades de reivindicarem seus direitos exercendo de fato a plena cidadania. Não há como separar cidadania e acesso à justiça, de modo que uma só pode avançar simultaneamente com o avanço da outra, sob o risco de não se efetivarem os direitos civis, políticos e sociais, que constituem a condição cidadã.

Enfim, sob tal percepção, poder-se-ia sustentar a defesa do acesso à justiça a partir exclusivamente de um judiciário moroso e sobrecarregado? Caberia a este judiciário o poder de fazer o direito, solitariamente? O acesso à justiça e a uma ordem jurídica justa não passaria também por outras dimensões, voltadas para a pluralidade e complexidade dos grupos sociais, suas demandas e contradições?

Ora, parece-nos fundamental considerar a necessidade de se garantir não somente o acesso aos órgãos judiciais já existentes, mas também, o acesso a uma ordem jurídica justa, e para tanto, é imperativo superar a estrutura hierárquica do poder judiciário, que nega a horizontalidade defendida pelos movimentos sociais e diferentes formas de manifestação dos cidadãos, comprometendo a possibilidade da sociedade manter-se de forma plural e verdadeiramente democrática. Neste sentido, parece essencial enfatizar-se a mediação, a conciliação e a arbitragem como métodos adequados, em muitos casos, de resolução de conflitos, voltados para aquelas demandas que apresentem melhores condições e benefícios mútuos se resolvidas com os acordos ou pré ou extra-judiciais.

Cabe lembrar, neste mesmo diapasão, que a própria Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, inciso XXXV, já elencou o acesso à ordem jurídica justa como um dos Direitos Fundamentais do Cidadão, cabendo ao Estado a responsabilidade de garanti-lo, não só através dos seus serviços prestados no âmbito dos processos judiciais, como também através de outros mecanismos de solução de conflitos, em especial aqueles considerados consensuais. Nesta perspectiva, o acesso à Justiça implica em se garantir que o cidadão possa recorrer ao Judiciário caso seu direito seja violado; recorrer a um Defensor Público para ser ouvido e assistido; bem como implica em se ter acesso a mecanismos pré-processuais, capazes de promoverem conquista ou consciência de direitos. Portanto, acesso à justiça significa a percepção de acesso ao sistema de justiça num sentido pleno, capaz de superar a lentidão e as dificuldades de efetivação da prestação jurisdicional.

No Brasil, essas possibilidades não são mais diretrizes políticas e ações públicas pensadas a médio e longo prazo. Recentemente, no ano de 2010, o Conselho Nacional de Justiça, órgão ligado à estrutura do Supremo Tribunal Federal, editou e promulgou uma das normas mais destacadas e relevantes dos últimos tempos, a denominada Resolução nº. 125, cujo propósito era instituir em nosso país a Política Judiciária Nacional de tratamento dos conflitos de interesses.

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Como fundamentos desta política, ficaram declaradas em seu conteúdo as seguintes estratégias administrativas: promover mais eficiência operacional ao Poder Judiciário e expandir os meios de acesso à Justiça. Já no primeiro artigo, com nova redação a partir de janeiro do presente ano, ficou prevista a obrigação dos órgãos judiciários de oferecer mecanismos de soluções de controvérsias, em especial os chamados meios consensuais, como a mediação e a conciliação.

Em pouco tempo, temos visto se multiplicarem as iniciativas dos Tribunais, em especial o Tribunal de Justiça de São Paulo – TJ/SP, no sentido de aplicar as propostas previstas na Política Pública em debate, com destaque para a criação dos chamados Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania – CEJUSC’s, hoje considerados as principais unidades do Poder Judiciário, responsáveis pela realização das sessões de conciliação e mediação, bem como pelo atendimento e orientação ao cidadão. O destaque dos Centros é merecido, uma vez que em pouco tempo de atividades os resultados observados em seu âmbito de atuação revelam o alcance satisfatório da Política referida, qual seja, a pacificação social e a garantia ao direito de acesso à Justiça, previstos na Constituição Federal.

Este tipo de situação evidencia que a Justiça não envolve apenas uma dimensão política, mas também social. Afinal, quando não se garante o acesso à justiça, muitos sucumbem, conformando-se à exclusão, e outros, inconformados, muitas vezes recorrem a meios extralegais de solução de seus conflitos, que vão desde a agressão física, violações de patrimônio, etc., negando aquilo que o Estado de Direito visa garantir. De forma muito sucinta, podemos considerar que este cenário não acarreta apenas o descrédito da sociedade em relação ao Poder Judiciário e seus profissionais (magistrados, advogados, defensores, etc.), mas também uma preocupante consequência: o incentivo a litigiosidade. Não é por acaso que os conflitos sociais cada vez mais eclodem por vias alternativas à ordem, muitas vezes violentas e inadequadas como a justiça de mão própria, passando por intermediações arbitrárias e de prepotência, para chegar até os “justiceiros”. Sobre o papel dos profissionais do Direito:

(...) não cabe mais ao operador desses processos de resolução de disputas (magistrados, mediadores, advogados ou promotores), se posicionarem atrás de togas escuras e agir sob um manto de tradição para permitir que partes, quando busquem auxílio (do Estado ou de uma instituição que atue sob seus auspícios) para a solução de conflitos recebam tratamento que não seja aquele voltado a estimular maior compreensão recíproca, humanização da disputa, manutenção da relação social e, por consequência, maior realização pessoal, bem como mais vida. (AZEVEDO et al, 2009, p. 237)

Especialmente com o advento da Constituição Federal de 1988, as bases tradicionais do direito formal têm sido abaladas por novas formas de litigiosidade provenientes de conflitos sociais de caráter coletivo, evidenciando uma sociedade dinâmica e marcadamente complexa. Tal realidade demanda novas atividades práticas dos operadores jurídicos, exigindo-lhes novos saberes, que superem o caráter exclusivamente dogmático e jurídico. Faz-se necessário um operador

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jurídico consciente de seu papel transformador, que supere o caráter retórico-legalista e o excessivo formalismo, característicos da formação tradicional do direito.

Não se faz coerente permitir que se mantenha o afastamento histórico entre Judiciário e sociedade, pois já se comprovou que tal afastamento leva à crise de legitimidade do direito oficial. Do mesmo modo, não se justifica que outros operadores do direito mantenham-se desvinculados da comunidade e dos novos conflitos emergentes. Essencial, portanto, a superação do formalismo a que são submetidos os atos processuais, que acaba por agravar os conflitos, em decorrência do acúmulo de processos gerado pela burocratização excessiva.

Os mecanismos de Acesso à justiçaPelo exposto, faz-se essencial ressaltar que o acesso à justiça não se limita

nem se confunde com acesso ao Judiciário, de vez que não se trata somente de permitir os necessitados direcionem suas demandas ao Poder Judiciário, mas fundamentalmente, favorecer a efetiva inclusão dos jurisdicionados, especialmente daqueles que se encontram excluídos do sistema. Assim, acesso à justiça implica em promoção da educação do cidadão no sentido de aprender a acessar a justiça, fomentando a resolução de conflitos por meio de interações eficazes e ações comunicativas.

Vale retomarmos as contribuições de Pierre Clastres (2003), que vê a sociedade sem Estado como detentora de um poder difuso, que não está concentrado na figura do árbitro, e sim, espalhado na sociedade, de modo que o mediador/conciliador (“chefe” indígena) coloca-se como um “fazedor de paz”, um pacificador, cuja obrigação é manter a paz e harmonia na sociedade, devendo apaziguar as disputas e regular as divergências.

O acesso à Justiça é um direito essencial do cidadão, bem como um motor para o desenvolvimento social e econômico. Para tanto, é fundamental uma visão que o perceba no sentido pleno: acesso à justiça como eficácia e celeridade nos julgamentos; acesso à justiça como um sistema prisional que verdadeiramente recupere; acesso à justiça como inclusão de entidades que defendam os cidadãos, e de movimentos sociais respeitados e considerados na construção da democracia. E para que esta realidade seja alcançada, é preciso abrir maiores possibilidades aos indivíduos menos favorecidos, proporcionando-lhes um atendimento mais adequado para a resolução de conflitos, que passe, principalmente, por novos métodos a exemplo do que ocorre na mediação e na conciliação, hoje praticados como uma forma de pacificação da sociedade e não apenas como uma forma de solução de conflitos.

Solução de Conflitos e PacificaçãoSobre o tema exposto, são sempre esclarecedoras as palavras do jurista

Tarso Genro:

(...) o acesso à Justiça deve, sob o prisma da autocomposição, estimular, difundir e educar seu usuário a melhor resolver conflitos por meio

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de ações comunicativas. Passa-se a compreender o usuário do Poder Judiciário como não apenas aquele que, por um motivo ou outro, encontra-se em um dos pólos de uma relação jurídica processual – o usuário do poder judiciário é também todo e qualquer ser humano que possa aprender a melhor resolver seus conflitos, por meio de comunicações eficientes – estimuladas por terceiros, como na mediação ou diretamente, como na negociação. O verdadeiro acesso à Justiça abrange não apenas a prevenção e reparação de direitos, mas a realização de soluções negociadas e o fomento da mobilização da sociedade para que possa participar ativamente dos procedimentos de resolução de disputas como de seus resultados.(GENRO, 2009, p. 13)

Para que a autocomposição seja possível, no entanto, é preciso o reconhecimento de uma premissa fundamental, qual seja: o conflito é um elemento da vida que contém potencial de contribuir positivamente nas relações humanas.

Nesta perspectiva, o conflito não merece ser visto como algo antinatural, pois nem sempre se trata de um fenômeno danoso, mas sim, uma oportunidade de exercício da negociação, do diálogo e da reflexão. A mediação dos conflitos coloca-se como uma forma de administrá-los, buscando estratégias adequadas às suas particularidades. Percebido de forma positiva, o conflito aparece como meio de aprendizagem e exercício da reflexão, da discussão, referente a possíveis frustrações ou desencontros de interesses.

Tomar consciência do conflito e da responsabilidade das partes nele articuladas traz a condição de autonomia para os envolvidos. Vale ressaltar que a pessoa efetivamente autônoma é regida por mecanismos internos de auto-regulamentação, capaz de fazer escolhas justas e seguir princípios nos quais de fato acredita. Por meio de mecanismos de mediação e conciliação, a pacificação pode emergir como resultado do fortalecimento de valores sociais, que supere a condição de sujeitos vitimizados, os quais, por sentirem-se injustiçados busquem de modo retaliativo a solução de conflitos por meio de violência e injustiça. De outro modo, num processo de negociação e diálogo, é possível desenvolver-se a percepção de que regras sociais, que são convencionadas como corretas, podem ser mudadas; mas que princípios não devem ser relativizados.

De acordo com Splenger (2012), a mediação aponta para um modelo de justiça que se distancia da imposição rígida de regras jurídicas, à medida que permite a participação das partes com livre iniciativa, comunicando seus sentimentos e demandas, de modo a buscar muito mais a restauração do dano do que a culpabilização de uma das partes. Ressalta-se a autonomia das partes, seu fortalecimento por meio do exercício ativo que pressupõe a não submissão heterônoma, mas uma atuação autônoma e reflexiva.

A esse respeito ressalta Warat (1998, p. 86):

É Importante considerar que as práticas sociais da mediação se configuram em um instrumento de realização da autonomia, da democracia e da cidadania, na medida em que educam, facilitam e ajudam a produzir diferentes e a realizar tomadas de decisões sem a intervenção de terceiros que decidem afetados por um conflito.

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Observa-se um processo em que nasce uma possibilidade de dar novos significados aos conflitos e discordâncias, proporcionando maior participação social na administração da justiça, e favorecendo a emergência de novas e plurais maneiras de buscar o apaziguamento social.

Dado que a mediação é uma forma de lidar com um conflito por meio da inserção de um terceiro (o mediador ou a mediadora), trata-se de uma estratégia de comunicação que auxilia a negociação entre partes para que possam chegar a um acordo. A mediação favorece as pessoas envolvidas a autoria de suas próprias decisões, de modo que possam ampliar suas alternativas. Implica em desmobilização de posturas e atitudes inflexíveis, de modo a permitir a negociação sem competição e animosidades, para que se construa um acordo mútuo. Portanto, trata-se de um processo complexo, podendo envolver procedimentos como resolução ou gestão de conflitos, procura de acordo, comunicação e possibilidade de transformação.

Colocam-se como fundamentos paradigmáticos para a prática da mediação de conflitos uma justiça restaurativa, voltada para os recursos de diálogo e de autocomposição, os quais permitem uma análise e uma atuação sistêmicas em relação ao conflito, possibilitando que se atue em suas diferentes dimensões e que se produza uma ação social mais ampla.

De tal modo, cabe aos profissionais do Poder Judiciário, assim como a outros que trabalham indiretamente em suas esferas de atuação, que recontextualizem os conceitos pré-formados sobre os efeitos do conflito, passando a concebê-los como um processo passível de ser conduzido propositalmente em direção as construções e as soluções mais justas. Já não há mais dúvidas que, em muitos casos, o conflito se apresenta impossível de ser resolvido somente por abstrata aplicação da técnica de subsunção (aplicação da lei ao caso concreto).

Na perspectiva defendida por Warat (1998, p. 5), pode-se apontar a mediação como uma composição assistida, por meio da qual se expressa:

[...] uma forma ecológica de resolução dos conflitos sociais e jurídicos; uma forma na qual o intuito de satisfação do desejo substitui a aplicação coercitiva e terceirizada de uma sanção legal. A mediação é uma forma alternativa (com o outro) de resolução de conflitos jurídicos, sem que exista a preocupação de dividir a justiça ou de ajustar o acordo às disposições do direito positivo.

Observa-se nestes meios a possibilidade de transformação da estrutura judicial, a desburocratização dos tribunais e dos procedimentos, com mudanças significativas de valores, bem como da mentalidade do operador do direito.

Considerações FinaisSob este panorama teórico, ganham cada vez mais destaque no âmbito do

Poder Judiciário dois métodos de resolução adequada de conflitos, apresentados neste artigo: a conciliação e a mediação. Ainda que existente uma pertinente discussão sobre as diferenças entre ambos os processos de autocomposição, o mais

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importante é referir que eles transformam radicalmente a lógica de solucionar as demandas e os impasses sociais, tradicionalmente levados até a apreciação e a sentença (decisão) de um juiz. Tais modalidades estabelecem condições para que terceiros, neutros aos conflitos e sem interesse na causa, possam auxiliar as partes numa negociação coordenada que irá identificar e compatibilizar as chamadas posições e os, muitas vezes, escondidos interesses.

Respondendo às questões inicialmente propostas, conclui-se que não se pode sustentar a defesa do acesso à justiça exclusivamente a partir do judiciário (marcadamente moroso e sobrecarregado), dado que não cabe a este judiciário o poder de fazer o direito solitariamente. Pelo contrário, fica claro que o acesso à justiça e a uma ordem jurídica justa passa necessariamente por outras dimensões, voltadas para a pluralidade e complexidade dos grupos sociais, suas demandas e contradições.

A impossibilidade de o judiciário gerir sozinho os conflitos sociais evidencia a perda do monopólio jurisdicional, bem como o surgimento de novas formas de regulação dos conflitos. Constata-se portanto, que o Estado não tem sido suficiente no exercício da função pacificadora. Seu processo é formalista, caminhando de forma lenda, demorando a apontar a resolução do litígio, muitas vezes intensificando a insatisfação, a angústia e o sofrimento.

A mediação apresenta-se como prática emancipatória que deixa de ser apenas um procedimento de resolução de conflitos para se tornar um significativo meio de exercício da cidadania, à medida que permite a construção da autonomia, de um direito inclusivo que efetiva o acesso à justiça, viabilizando a consolidação de um direito plural, que envolve a diversidade dos sujeitos sociais, especialmente daqueles provenientes dos setores mais marginalizados e excluídos da sociedade.

Com base em tais pressupostos, defende-se que o instituto da mediação promove o direito fundamental de acesso à justiça, representando um importante instrumento de efetivação da cidadania e da pacificação social. Pode-se apontar que a autocomposição é autônoma enquanto a heterocomposição (jurisdição) possui caráter heterônomo.

Por fim, nesta perspectiva, o que se vê defender são novos valores e uma nova conduta que sejam coerentes com o instituto da conciliação extraprocessual, visto não só como meio alternativo de solução de conflitos utilizado em fase anterior à instauração do processo, mas também como forma de recriar o direito e aprimorar a cidadania através da cultura do diálogo e do exercício da autonomia normativa.

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2003.CNJ - Conselho Nacional de Justiça. Justiça em Números 2013: ano-base 2012. Brasília-DF: CNJ. Disponível em: www.cnj.jus.br/images/pesquisas-judiciarias/Publicacoes/relatorio_jn2013.pdf. Acessado em dezembro de 2013.GENRO, Tarso. Prefácio da primeira edição do Manual de Mediação Judicial. Brasília/DF: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, 2009.SANTOS, Boaventura de Sousa “Introdução à sociologia da administração da justiça” In: FARIA, José Eduardo. (Org) Direito e justiça: a função social do judiciário. São Paulo: Ática, 1989. SPENGLER, Fabiana Marion. A crise do Poder Judiciário Brasileiro e a mediação como alternativa democrática de gestão e resolução de conflitos. In: SPLENGER, Fabiana Marion, SPENGLER NETO, Theobaldo (Orgs.) Mediação enquanto política pública: o conflito, a crise da jurisdição e as práticas mediativas. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2012.WARAT, L.A. Em nome do Acordo: A Mediação no Direito. Buenos Aires/ Florianópolis: ALMED, 1998.

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O DECRETO Nº 7.962/2013 E A BANALIZAÇÃO DO DIREITO DE ARREPENDIMENTO NAS RELAÇÕES

DE COMÉRCIO ELETRÔNICO

LEOPOLDO ROCHA SOARES 1

ResumoO comércio eletrônico já movimenta muito dinheiro, e ainda apresenta acentuada tendência de crescimento. Assim, aumenta também a importância de se precisar a aplicação de mecanismos legais elaborados no seio de um ambiente exclusivamente físico para este ambiente eletrônico. Nesse contexto se analisa a teleologia da norma do artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor para averiguar se é cabível o direito de arrependimento também no âmbito do comércio eletrônico. Isso para revelar, de acordo com o sistema constitucional de proteção e defesa do consumidor, inserido no âmbito da ordem econômica, quais são as restrições impostas à utilização dessa importante prerrogativa posta à disposição do consumidor brasileiro, considerando ainda o Decreto nº 7.962, de 15 de Março de 2013, que regulamenta o Código de Defesa do Consumidor no tocante à contratação no comércio eletrônico.PALAVRAS-CHAVE: Direito do Consumidor; Comércio Eletrônico; Direito de Arrependimento; Decreto nº 7.962/2013.

IntroduçãoNo início do século XXI vimos despontar o cerne de uma verdadeira

revolução, de cunho tecnológico, que em pouco tempo penetrou no seio das relações sociais de forma a marcá-la profundamente. Dotado de inteligência, porém de estrutura física relativamente frágil em vista do local em que habitava, o ser humano sempre buscou aprimorar artefatos que potencializassem a utilização dos recursos de que dispunha e trouxesse maior conforto à sua espécie, destacando-se dos outros animais pela habilidade de se instalar em locais das mais diversas condições, por vezes demasiadamente inóspitos.

Neste contexto, e tendo a inteligência como seu grande dote, o ser humano passou a dar atenção às técnicas e dispositivos que pudessem potencializar o seu raciocínio e auxiliá-lo no trabalho de medir e contar, dentre outros importantes ofícios. E assim desenvolveu o “ábaco, de origem oriental, que o Ocidente conhece desde o século III a. C., e que veio a ser considerado o primeiro computador digital que o gênio inventivo do homem criou” (PAESANI, 2007, p. 5). Estava lançada a semente do que prometia ser uma verdadeira revolução.

Com Norbert Wiener aparecem os primeiros registros de aproximação entre o Direito e a cibernética, síntese dos mecanismos de controle cujo conceito ele próprio auxiliara a desenvolver, como quando afirma, por exemplo, que “a

1 Possui graduação em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP/Franca). Mestrado em Direito Constitu-cional (Proteção e Fundamentos Constitucionais dos Direitos Coletivos) pela Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP). Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). É advogado e docente do Centro Universitário UniSEB, nas disciplinas de “Direito e Internet” e “Direito do Consumidor”.

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lei pode ser definida como o controle ético aplicado à comunicação” (WIENER, 1954, p. 104). A comunicação certamente pressupõe o tráfego de informação, por qualquer meio, porém quando ocorrido no ambiente eletrônico nos revela a ideia de informática.

Cumprindo com sua anunciada proliferação, os elementos de tecnologia e informática hoje permeiam as relações em geral, sustentando a atividade econômica e consumerista, os meios de efetivação e controle dos atos da administração, as formas de divulgação e propaganda de cunho político e cultural, e os instrumentos de comunicação entre as pessoas, suprimindo espaços e distâncias. Em suma, a revolução tecnológica e do processamento eletrônico de dados e informações constitui a base de uma sociedade globalizada, a chamada “sociedade da informação”, que resume uma mudança radical de paradigmas, predizendo a entrada das relações humanas em um novo modelo de produção de valores e riquezas, como outrora fizeram as revoluções agrícola e industrial.

Nesse contexto é que surge o comércio eletrônico, “conjunto de operações de compra e venda de mercadorias ou prestações de serviços por meio eletrônico ou, em outras palavras, as transações com conteúdo econômico realizadas por intermédio de meios digitais” (CASTRO, 2014). O valor total de vendas por meio eletrônico gerou, no ano de 2013, um faturamento de R$ 28 bilhões, revelando uma variação positiva de 24% sobre o já grandioso faturamento do ano de 2012, no valor de R$ 22,5 bilhões2, o que evidencia mais do que um grande volume, o crescimento das operações comerciais realizadas pela rede mundial de computadores.

Tais operações em sua grande maioria perfazem autêntica relação de consumo, e assim carregam toda proteção dispensada ao consumidor, presumidamente vulnerável pelo Código de Defesa do Consumidor. Esta vulnerabilidade decorre da expressa ordem constitucional inaugurada em 1988, cuja Carta Magna afirma deveres positivos ao Estado, que assim deve promover, “na forma da lei, a defesa do consumidor” (CASTRO, 2014). No entanto, para que as relações comerciais sejam sadias, e não se atribua ao comerciante empreendedor o ônus que vá além do risco razoavelmente esperado pela atividade econômica exercida, é importante que se precise os instrumentos de proteção e defesa do consumidor, como o conhecido direito de arrependimento, positivado pelo artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor, e abordado pelo artigo 5º do Decreto nº 7.962/2013.

Com efeito, embora se entenda que a vulnerabilidade do consumidor se potencializa nesse ambiente abstrato, e por vezes ardiloso, da rede mundial de computadores, pelo qual se efetivam as relações de comércio eletrônico, conclui-se que nem sempre o consumidor tem direito a manifestar arrependimento para desfazimento do negócio, restando importante se pensar as circunstâncias da contratação para efeito de aplicação do referido instituto.

2 www.e-commerce.org.br/stats.php. Acesso: 08 jun 2014.

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A aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor às relações eletrônicasO Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078, de 11 de Setembro de 1990)

surgiu quase que concomitantemente à exploração comercial da rede mundial de computadores, o que não foi suficiente para que a legislação abarcasse de forma específica as relações consumeristas havidas no âmbito da internet, provavelmente por conta da novidade que esta representava.

A origem da internet remonta um projeto do Departamento de Defesa dos Estados Unidos da América que, em tempos de guerra fria, procurou estabelecer uma rede segura de comunicação e controle do sistema de defesa nacional. Assim, foram aproveitadas pequenas redes locais, conectadas de modo a formar uma grande rede por todo o país. A ideia de rede advém do fato de que cada um dos computadores estava ligado diretamente a todos os outros, formando uma verdadeira teia eletrônica.

A possibilidade de interligação de pequenas e restritas redes ao redor do mundo logo despertou os mais diversos interesses e, assim, suplantou a seara militar. No final da década de 70 do século XX, o projeto alcançou as universidades, passando por algumas adaptações e pelo desenvolvimento da linguagem multimídia que permitiu a compreensão ao grande público, aguçando ainda mais os interesses econômicos que então propiciaram o implemento da comunicação global dos terminais de processamento eletrônico de dados e informações.

Com efeito, já em decadência a guerra fria, cuja derrocada final restou simbolizada pela queda do muro de Berlim, em 1989, aquele projeto de natureza militar finalmente alcançou a sociedade em geral. Nesse mesmo período estava em discussão o anteprojeto do Código de Defesa do Consumidor, aprovado precisamente em setembro de 1990, que embora não tenha mesmo abarcado especificamente as relações eletrônicas de natureza consumerista tratou de ser bastante abrangente quanto à definição de consumidores e fornecedores. Com efeito, aplica-se a legislação pertinente às relações de consumo todas as vezes em que se fizerem presentes tais figuras (fornecedor e consumidor), independentemente do meio em que se dá a contratação.

Assim, aplica-se o Código de Defesa do Consumidor a todas as operações de compra e venda de bens e prestação de serviços realizados pela internet, desde que de um lado se encontre a “pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços3”, e de outro a “pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final4”.

Aliás, a popularização das contratações feitas pela internet e o consequente agravamento massificação da produção, distribuição e consumo torna o consumidor ainda mais vulnerável:

3 Artigo 3º da Lei nº 8.078, de 11 de Setembro de 1990.4 Artigo 2º da Lei nº 8.078, de 11 de Setembro de 1990.

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Seria uma crise de legitimação ou de confiança que aumenta ainda mais a posição de vulnerabilidade do consumidor, agora que a produção despersonalizou-se totalmente e desterritorializou-se, tornando-se mundial, que as marcas, o marketing e os mercados não conhecem mais fronteiras, onde os limites do público e do privado, do trabalho e do lazer foram quebrados pelo meio virtual, 24 horas no ar, em qualquer lugar, e mesmo na mobilidade dos celulares é possível comprar, enviar mensagens e responder e-mails, o mundo virtual modificou os hábitos de consumo, mudou o tempo do consumo agilizou as informações e expandiu as possibilidades de publicidade, agravando os conflitos de consumo e a própria vulnerabilidade informacional, técnica, fática e jurídica do consumidor (BENJAMIN, 2013, p. 48).

Se em algum momento houve dúvida quanto à aplicação do Código de Defesa do Consumidor, pela especificidade das relações de comércio eletrônico, a condição de vulnerabilidade do consumidor nas contratações remotas que realiza pela internet há muito a dissipou. Independentemente de qualquer dispositivo legal que expressamente o afirme, está pacificado que, caracterizando-se as figuras do consumidor e do fornecedor, está caracterizada a relação de consumo, e assim há inequívoca incidência do Código de Defesa do Consumidor.

O Direito de ArrependimentoO Código de Defesa do Consumidor inovou ao trazer, no artigo 49, o

chamado direito de arrependimento, segundo o qual o consumidor que adquire produto ou contrata serviço fora do estabelecimento comercial tem um prazo de reflexão, de 7 (sete) dias contados da efetivação da contratação ou do recebimento do produto ou serviço, no qual pode manifestar seu arrependimento, mesmo que injustificadamente, para devolver o produto ou recusar o serviço, sendo ressarcido dos valores que pagou, com a devida atualização monetária:

Art. 49. O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 dias a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio.Parágrafo único. Se o consumidor exercitar o direito de arrependimento previsto neste artigo, os valores eventualmente pagos, a qualquer título, durante o prazo de reflexão, serão devolvidos, de imediato, monetariamente atualizados.

Trata-se de mecanismo legal inserido no contexto do sistema de proteção ao consumidor, que reconhece e presume a vulnerabilidade deste, em face da atuação ostensiva do fornecedor, que procura o comprador em seu domicílio para comercializar bens ou serviços.

O Código de Defesa do Consumidor trata expressamente das vendas a domicílio e por telefone como exemplos dessa contratação à distância, realizada fora do estabelecimento comercial. No entanto, as circunstâncias que permitem ao consumidor o arrependimento não se esgotam nestas hipóteses, podendo o

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consumidor manifestá-lo mesmo que a contratação de bens ou serviços tenha se dado de outra forma:

O direito de arrependimento existe quando a contratação se der fora do estabelecimento comercial. Isso pode ocorrer das mais variadas formas. O Código enumerou, de modo exemplificativo, algumas dessas maneiras de contratação: por telefone e em domicílio. O caráter de numerus apertus desse elenco é dado pelo advérbio “especialmente”, constante da norma. Essa expressão indica claramente o propósito da lei de enumerar exemplos e não hipóteses taxativas (NERY JÚNIOR, 2001, p. 495).

Assim, à primeira vista parece que o exercício do direito de arrependimento trazido pelo artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor tem cabimento todas as vezes em que o consumidor contrate o produto ou serviço fora do estabelecimento, o que se extrai da interpretação meramente gramatical da norma em análise. Nesse contexto, para enquadrar o direito de arrependimento também às relações de consumo havidas no ambiente eletrônico teríamos que investigar a abrangência do termo “estabelecimento”, para sabermos se um sítio eletrônico, por meio do qual o fornecedor comercialize um produto ou oferece a contratação de um serviço, se enquadra ou não nesse conceito, e em caso negativo aplicar-se-ia a regra em questão, oferecendo-se ao consumidor o direito de se arrepender.

Foi o entendimento manifestado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em voto proferido pelo Desembargador Sá Duarte, que expressou:

Entretanto, no que toca ao mérito, tenho que assiste razão ao apelante. Isto porque, ainda que se entenda que a compra em duplicidade dos aparelhos celulares ocorreu porque o apelante agiu de forma açodada, tal fato não afasta seu direito de desistir das aquisições, conforme dispõe o artigo 49, do Código de Defesa do Consumidor, tendo em vista que os produtos foram adquiridos fora do estabelecimento comercial da apelada; um dos aparelhos foi adquirido por telefone e o outro, em loja virtual (pela internet). E, consoante restou incontroverso nos autos, o apelante, no dia seguinte ao envio do segundo aparelho celular, solicitou, na reclamação que registrou na ouvidoria da apelada (cf. protocolo n.° 1026952), sua devolução. Desse modo, em face do direito legal de arrependimento por parte do consumidor, aquele aparelho do qual o apelante desistiu da compra deveria ter sido retirado pela apelada, além de devolvidos, de imediato, os valores por ele pagos, conforme determina o disposto no parágrafo único, daquele artigo e diploma citados5.

Contudo, como se já sinaliza o título deste artigo, alguns institutos acabam sendo banalizados, e assim nos parece que o termo estabelecimento foi mal empregado, seja pelo próprio Código de Defesa do Consumidor, seja pela doutrina e jurisprudência que se seguiram a ele. Isso porque todos empregam o termo

5 SÃO PAULO (Estado). Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação nº 992080312615 da 33ª Câmara de Direito Privado, São Paulo, SP, 10 de maio de 2010. Disponível em <http://www.tj.sp.gov.br>. Acesso: 08 jun 2014.

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estabelecimento como sinônimo de espaço físico, ou loja física, sem a preocupação com o fato de que estabelecimento é “todo complexo de bens organizado, para exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade empresária6”, o que pressupõe o conjunto de bens materiais e imateriais, dentre os quais destacamos o nome empresarial, o ponto empresarial, etc.

Nesse aspecto, não há como se afirmar que a contratação feita à distância seja realizada fora do estabelecimento comercial, na medida em que o fornecedor do produto ou serviço, empresário ou sociedade empresária, pode utilizar de meios remotos de contratação para oferecer produto ou serviço no âmbito do conjunto de bens que organizou para a prática da atividade que se denomina empresa.

Ademais, não é recente a observação por parte de alguns comercialistas de que o comércio eletrônico não foge à condição de estabelecimento, o que se mostra razoável na medida em que a internet é meio imaterial de realização da atividade, fazendo emergir a ideia de estabelecimento virtual (COELHO, 2002, p. 98).

É de se pontuar, ainda, que essa imaterialidade do meio eletrônico e da internet não impede que o empresário ocupe um espaço físico, adotando-o como centro de suas negociações. Aliás, com o advento do Decreto nº 7.962/2013, tornou-se obrigatória a indicação de endereço físico pelo empresário ou sociedade empresária que se caracterize como fornecedor no âmbito do comércio eletrônico, ainda que esta seja informal, nos seguintes termos:

Art. 2º Os sítios eletrônicos ou demais meios eletrônicos utilizados para oferta ou conclusão de contrato de consumo devem disponibilizar, em local de destaque e de fácil visualização, as seguintes informações:I - nome empresarial e número de inscrição do fornecedor, quando houver, no Cadastro Nacional de Pessoas Físicas ou no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas do Ministério da Fazenda;II - endereço físico e eletrônico, e demais informações necessárias para sua localização e contato;

Portanto, revela-se difícil a contratação de um produto ou serviço fora do âmbito de um estabelecimento empresarial, ou seja, de um complexo de bens organizados para o exercício da empresa, mesmo quando esta contratação se dá pelo telefone, no domicílio do consumidor ou pela internet.

No entanto, não parece ser essa a razão de inserir-se no Código de Defesa do Consumidor o direito de arrependimento. Como já se disse, a legislação consumerista presume a vulnerabilidade do consumidor, ou seja, reconhece que a relação estabelecida entre consumidor e fornecedor é desequilibrada em sua essência, tratando-se da vulnerabilidade fática, jurídica, técnica e informacional, sobretudo pelo fato de que é o fornecedor quem detém com exclusividade o conhecimento de todos os passos e etapas da cadeia de consumo. Ou seja, é o fornecedor que sabe a forma como o produto foi transportado, por quem ele foi transportado, além da identidade dos produtores e eventuais distribuidores.

6 Artigo 1.142º da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002.

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No caso dos serviços, é o fornecedor que conhece as ferramentas utilizadas, as condições em que o serviço pode ser executado, etc.

Esse é o contexto em que se insere o direito de arrependimento, e o ponto de partida para investigarmos a razão de sua inserção no âmbito do sistema de proteção ao consumidor, especialmente no seio do comércio eletrônico, sob a luz do recente Decreto 7.962/2013.

Da ausência de manuseio do produto como escopo do Direito de ArrependimentoÉ comum a justificação do direito de arrependimento no fato de o

consumidor não ter a oportunidade de manusear o produto nas vendas feitas fora do estabelecimento, pelo menos é o que tem se utilizado para justificar a adoção de tal medida quando a contratação ocorre à distância, fora de uma loja ou de um espaço físico.

Assim, afirma-se que o período de sete dias para reflexão teria o propósito servir ao consumidor como oportunidade de manusear efetivamente o produto e verificar se: 1) atende às expectativas criadas quando da contratação; 2) suas dimensões são aquelas imaginadas ou vistas em catálogo, de modo a amoldar-se ao espaço físico a ser instalado, quando for o caso.

Mais uma vez analisamos julgado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo para ilustrar o posicionamento posto, desta vez pela ementa em julgado relatado pelo Desembargador Luiz Sabbato:

Código de Proteção e Defesa do Consumidor - Inteligência do art. 49 - Arrependimento - Direito de Reflexão - Inocorrência, no caso, em que o produto foi apresentado claramente, sem possibilidade de engano - Escoamento do prazo de sete dias, ademais, para apresentação do pleito de rescisão - Apelação provida para julgar improcedente ação de indenização por dano moral7 (grifo nosso).

O autor Nelson Nery Junior, conhecido processualista e um dos responsáveis pela redação do anteprojeto do Código de Defesa do Consumidor, afirma algo parecido:

Isso porque, na maior parte das vezes, as compras por catálogo ou por telefone são realizadas sem que o consumidor esteja preparado para tanto, e, ainda, sem que tenha podido ter acesso físico ao produto. [...] Além da sujeição do consumidor a essas práticas comerciais agressivas, fica ele vulnerável também ao desconhecimento do produto ou serviço, quando a venda é feita por catálogo, por exemplo. Não tem oportunidade de examinar o produto ou serviço, verificando suas qualidades e defeitos etc. (NERY JÚNIOR, 2001, p. 493-494).

Embora à primeira vista possa parecer razoável tal entendimento, uma

7 SÃO PAULO (Estado). Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação nº 991090776047 da 13ª Câmara de Direito Privado, São Paulo, SP, 15 de abril de 2009. Disponível em <http://www.tj.sp.gov.br>. Acesso em 5 ago 2010.

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análise mais cuidadosa nos impele a afastá-lo, discordando-se das opiniões expostas, com a ressalva de que o professor Nelson Nery Junior apontou, além da negativa de acesso físico ao produto, a ausência de preparação do consumidor na realização do negócio jurídico.

Percebe-se, portanto, que a inconformidade do produto recebido posteriormente pelo consumidor que não o manuseou no ato da contratação não é situação exclusiva das compras feitas fora do estabelecimento. É comum, por exemplo, a aquisição de veículo em uma concessionária que não o tenha em seu estoque, ocasião em que o comprador, na sede do estabelecimento, é atendido com escopo em um catálogo e tenha que aguardar a chegada do veículo para retirá-lo. Tal situação, contudo, não lhe dará o direito de arrependimento.

Confirma ainda essa assertiva a própria prestação de qualquer serviço, pois contratado dentro ou fora do estabelecimento do fornecedor que irá prestá-lo, o serviço só poderá ser medido e valorado após a sua realização, ou seja, o consumidor sempre irá avaliar o serviço depois de efetivado, quando então poderá averiguar a conformidade do mesmo.

Em outras palavras, o serviço nunca poderá ser avaliado pelo consumidor antes de sua realização, mesmo quando contratado no interior do estabelecimento do fornecedor, e tal situação não permite a prerrogativa do prazo de reflexão.

Assim, essa inconformidade ou não cabimento do serviço realizado não dá ao consumidor o direito de arrependimento, embora faculte a reparação se mostrar-se viciado. Com efeito, não se pode utilizar como premissa a sustentar o direito de arrependimento o fato de os produtos ou serviços contratados fora do estabelecimento do fornecedor não atenderem as expectativas do consumidor, pelo fato de não ter podido analisá-los antes da contratação.

Da ausência de necessidade do produto ou serviço e da iniciativa da contratação como escopo do Direito de Arrependimento

Ao que nos parece, o Código de Defesa do Consumidor, ao tratar do direito de arrependimento, não pretendeu abarcar a situação em que o adquirente de um produto ou serviço não tenha a oportunidade de manusear com antecedência o objeto da contratação antes de efetivá-la.

Esta situação, aliás, parece ser bastante corriqueira, mesmo para as contratações feitas na sede do estabelecimento do fornecedor, e de tão consolidada não exigiu tratamento especial por parte do legislador, pelo menos por enquanto, já que o projeto de reforma do Código de Defesa do Consumidor, em tramitação no Congresso Nacional altera o tratamento dado à matéria.

Entretanto, mereceu cuidado especial por parte da legislação consumerista a acentuação da vulnerabilidade do consumidor exposto a vendedores extremamente habilidosos, dotados de alto grau de convencimento, ou meios de comercialização de massa aliados a instrumentos publicitários agressivos, como aqueles verificados no ambiente eletrônico, tais como o conhecido SPAM, as janelas que se abrem repentinamente oferecendo produtos e serviços (pop up’s), a captura de dados por meio dos cookies, etc.

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Assim, são correntes as ocasiões em que o consumidor acaba contratando produto ou serviço sem que de fato necessite deles, e o faz por mero impulso, convencido pelo fornecedor que bate à sua porta ou o contata por telefone, em operação de telemarketing. Ou ainda pela oferta de um produto que se adequa perfeitamente ao seu perfil de consumo, em condições aparentemente vantajosas, o que é muito comum na experiência de navegação pela internet e a utilização de instrumento de captura e tratamento de dados e informações.

Este foi o ensejo da lei para o estabelecimento de um período de reflexão em que poderá o consumidor manifestar seu arrependimento, sem que tenha de expressar qualquer justificativa, porque também não houve justificativa para a contratação, assim como é o ensejo de sua aplicação a determinadas situações de contratação no ambiente eletrônico.

É o que acontece, por exemplo, quando um pintor bate à porta de uma residência e convence o morador de que o imóvel precisa de manutenção, oferecendo seus serviços e o material para pintura, ao passo que espontaneamente o consumidor não se preocuparia em pintar a casa naquele momento, restando razoável que passada ocasião da abordagem do prestador do serviço tenha prazo para reflexão, podendo exprimir arrependimento quanto a cor utilizada ou a técnica empregada, tendo sido iniciada ou não a execução da pintura.

A mesma coisa se dá quando uma prestadora de serviços de telefonia móvel utiliza operadores de telemarketing para oferecer planos com descontos, convencendo o consumidor a migrar da operadora com a qual contratara antes. Independentemente da efetivação dos descontos, da qualidade do sinal e das ligações da nova prestadora, o consumidor poderá arrepender-se no período legal de reflexão, pois espontaneamente não trocaria de operadora de telefonia móvel, restando convencido em uma abordagem que não provocou.

Em suma, o período de reflexão deve ser concedido ao consumidor nas hipóteses em que este não teve a oportunidade de refletir sobre a contratação antes de efetivá-la, e assim tenha agido por impulso ou ficado impossibilitado de efetuar ampla pesquisa de preços e condições junto a eventuais concorrentes do fornecedor hábil e proativo. É imprescindível, portanto, que o fornecedor tenha procurado o consumidor e lhe oferecido o produto ou serviço sem que este tenha refletido sobre suas necessidades e conveniências para que seja aplicável o direito de arrependimento previsto no artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor.

Essa a razão de ter constado da norma em questão as contratações havidas fora do estabelecimento, pressupondo-se que quando a aquisição de bens ou serviços ocorre na sede do fornecedor é porque o consumidor, sentindo necessidade por conta própria, procura espontaneamente por aquele que irá servi-lo, embora seja possível enumerar determinadas hipóteses em que o consumidor adentra a sede do estabelecimento e ali efetiva a contratação de um produto ou serviço sem a necessária reflexão.

Por isso é que não se pode desprezar a criação de necessidades pelas peças publicitárias, o que eventualmente macula a vontade do consumidor, exigindo uma aplicação extensiva da norma que confere o direito de arrependimento. E isso

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porque a disciplina da publicidade enganosa nem sempre abarca todas as situações em que o consumidor age por impulso, motivado pelo teor de um anúncio8.

Contudo, não há que se banalizar o generalizar a aplicação do instituto em questão, sob pena de impingir ao fornecedor ônus maior do que aquele que razoavelmente espera suportar, desequilibrando a relação de consumo na medida em que os fatores de compensação trazidos pelo Código pendam de forma exagerada para o lado do adquirente, destinatário final.

Vê-se que, também em análise sistemática do Código de Defesa do Consumidor, a proteção à liberdade de manifestação de vontade pelo consumidor aponta pela assertiva de que o direito de arrependimento tem cabimento nas ocasiões em que a contratação é de certa forma imposta ao adquirente, sem deixar escapar a regularidade das campanhas publicitárias a que se encontra exposto.

Partindo dessas premissas, cabe-nos doravante enquadrar as relações de consumo consubstanciadas no ambiente eletrônico, em especial por meio da rede mundial de computadores, sem que para isso seja necessária a investigação profunda acerca dos conceitos e características de estabelecimento comercial.

Do Direito de Arrependimento nas relações de comércio eletrônicoAssim como no ambiente físico nem toda operação comercial é de

natureza consumerista, também as relações de comércio eletrônico nem sempre se consubstancia em uma relação de consumo. Portanto, trataremos apenas das relações de comércio eletrônico tidas entre um fornecedor, assim definido pelo artigo 3º da lei consumerista, e o consumidor final, nos termos do artigo 2º do mesmo Código.

Tendo ainda como ponto de partida a constatação feita no tópico anterior, afirmando o cabimento do direito de arrependimento quando o fornecedor é quem de alguma forma procura ou atrai o consumidor para convencê-lo a efetivar a contratação, é preciso um pouco mais de reflexão ao tratar das operações havidas na rede mundial de computadores.

Isso porque é o consumidor/usuário da internet quem inicia o acesso, invariavelmente, o que poderia suscitar a equivocada afirmação de que é ele quem estabelece a iniciativa da relação de consumo, afastando por completo o cabimento do direito de arrependimento e do período de reflexão.

No entanto, a aplicação do benefício legal deve ser averiguada em cada caso concreto, havendo de se perquirir se houve liberdade de escolha pelo consumidor no momento em que efetivou a contratação. Aliás, a liberdade de escolha é tão importante que foi erigida à condição de um direito básico do consumidor, nos termos do artigo 6º, inciso II, do Código de Defesa, e segundo Antônio Herman Benjamin, Cláudia Lima Marques e Leonardo Roscoe Bessa, “já reconhece a importância das novas técnicas de venda, muitas delas agressivas, do marketing e

8 É o caso do consumidor exposto a material publicitário que anuncia a comercialização de produtos com preços a partir de determinado valor, atraindo-o para o interior da loja, aonde estão expostos vários produtos a preços bastante superiores, mas que são adquiridos pelo consumidor, seja pelo possível constrangimento que pensa ter em caso de recusa da contratação ou pelo impulso de adquirir algum objeto de desejo de grande parte das pessoas.

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do contrato como forma de informação do consumidor, protegendo o seu direito de escolha e sua autonomia racional, através do reconhecimento de um direito mais forte de informação (arts. 30, 31, 34, 46, 48 e 54) e um direitos de reflexão (art. 49)” (destaque nosso).

É o caso, por exemplo, da aquisição de passagens aéreas pelo consumidor que tem um evento marcado em uma cidade distante e precisa da locomoção para comparecimento, razão pela qual acessa os sítios eletrônicos de algumas companhias e escolhe a que melhor se amolda às suas necessidades, ponderando horários e preços das passagens. A esse comprador não assiste direito de arrependimento, mesmo que posteriormente encontre passagens aéreas mais baratas ou horários mais convenientes.

Impor à companhia aérea o ônus de se sujeitar ao eventual pedido de cancelamento fundado no direito de arrependimento não nos parece razoável, ainda que seja economicamente suportável pela vultuosidade de suas operações.

Diferente é o caso do usuário de internet que recebe em sua caixa de endereço eletrônico um spam (“propaganda não solicitada recebida por e-mail”) (CASTRO, 2002), pelo qual se veicula uma campanha publicitária que oferece descontos para aquisição de passagens aéreas compradas somente naquele final de semana. Se o usuário gostar da promoção e comprar as passagens, sem que tenha partido dele próprio o impulso primeiro para tanto, poderá ele se arrepender e exigir da companhia aérea o reembolso do valor que pagou, devidamente corrigido, desde que manifeste tal intuito no prazo de sete dias, contados da efetiva contratação ou do recebimento do ticket eletrônico.

Nesse caso, a companhia aérea deve esperar que boa parte dos compradores se digam arrependidos da contratação e procurem cancelá-la, preparando-se para arcar com os ônus de eventual desequilíbrio atuarial.

Outra situação peculiar ao comércio de bens e serviços pela internet é ocasionada pelos chamados cookies:

Cookies são pequenos arquivos de texto oriundos de um web site, que são gravados no disco rígido de determinado computador e utilizados por seu programa navegador. Seu objetivo básico é tornar mais conveniente a utilização da Internet, evitando que certos dados precisem ser fornecidos a cada vez que uma página é visitada, armazenando informações relativas às preferências de um usuário (LEONARDI, 2007, p. 341-342).

É sabido que os cookies, a despeito do propósito facilitador, pode auxiliar o administrador do sítio eletrônico a identificar o perfil, usos e preferências do consumidor/usuário, pois o programa singulariza o computador em que encontra-se instalado, mesmo quando o usuário visita determinados “departamentos” daquela loja eletrônica.

Nesse contexto, o usuário pode acessar o site de determinada loja, que instalara anteriormente um cookie em seu computador, e ver aberto em sua tela um pop up, uma janela pequena de conteúdo específico, contendo a promoção da

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camisa do time de futebol com que ele se afina, instigando o desejo de comprar. Esse usuário também terá o direito de manifestar arrependimento, mesmo reconhecendo-se a dificuldade em se produzir prova dessa natureza, sem prejuízo da hipótese de inversão do ônus, prevista no artigo 6º do Código de Defesa do Consumidor.

Havendo, portanto, a necessidade de se avaliar a cada caso o cabimento do direito de arrependimento, a depender da existência de qualquer mácula na vontade do consumidor em contratar produto ou serviço oferecido pela rede mundial de computadores, afirma-se que a aplicação desta prerrogativa, trazida pelo artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor, é restrita, diferentemente do que se costuma propagar pela doutrina, que ou se define pela aplicação plena (e a grande maioria o faz), ou afirma a não aplicação.

Nesse bojo, cumpre analisar a recente norma trazida pelo Decreto nº 7.962, de 15 de março de 2013, que assim disciplina o direito de arrependimento em seu artigo 5º:

Art. 5º O fornecedor deve informar, de forma clara e ostensiva, os meios adequados e eficazes para o exercício do direito de arrependimento pelo consumidor.§ 1º O consumidor poderá exercer seu direito de arrependimento pela mesma ferramenta utilizada para a contratação, sem prejuízo de outros meios disponibilizados.§ 2º O exercício do direito de arrependimento implica a rescisão dos contratos acessórios, sem qualquer ônus para o consumidor.§ 3º O exercício do direito de arrependimento será comunicado imediatamente pelo fornecedor à instituição financeira ou à administradora do cartão de crédito ou similar, para que:I - a transação não seja lançada na fatura do consumidor; ouII - seja efetivado o estorno do valor, caso o lançamento na fatura já tenha sido realizado.§ 4º O fornecedor deve enviar ao consumidor confirmação imediata do recebimento da manifestação de arrependimento.

Nos parece que a norma em questão não contribuiu em nada com a discussão ora apresentada, deixando de esclarecer a aplicação do direito de arrependimento nas contratações eletrônicas inseridas no âmbito da relação de consumo. A edição de uma norma recente, que pudesse aproveitar as críticas que autores fazem à disciplina do direito de arrependimento, não foi suficiente para superar a questão, talvez pela banalização jurisprudencial do tema, que insiste em anunciar a aplicação do instituto, invariavelmente, nas relações havidas pela internet.

Assim, esta proposição casuística proposta para a aplicação do direito de arrependimento perdura e, ao nosso ver, atende à conclusão que se tem após interpretação teleológica, na medida em que efetivamente equilibra a relação de consumo estabelecida por iniciativa do fornecedor, que por vezes acaba maculando a vontade do consumidor, sem pender demasiadamente contra o fornecedor.

O equilíbrio, portanto, reside na possibilidade que o consumidor tem

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de desistir imotivadamente da contratação, recebendo de volta a quantia que desembolsou, devidamente corrigida, porém somente quando não tiver a oportunidade de reflexão prévia, de modo que terá de se contentar com a contratação e arcar com os ônus de eventual resilição se arrepender-se em outra situação, como após a efetivação de pesquisas de preço, por exemplo.

E, segundo Cláudia Lima Marques, a interpretação teleológica trata-se, em verdade, de um “reequilíbrio de forças nas relações de consumo” (MARQUES, 2006, p. 16), ao que se complementa com a afirmação de que este reequilíbrio não pode ser causa de nova discrepância de forças, fazendo com que o fornecedor arque com os ônus do arrependimento não razoável do consumidor, até como forma de educar-se este último.

Considerações FinaisA despeito das afirmações doutrinárias, e de diversas manifestações

jurisprudenciais, no sentido de afirmar, de forma radical, pela aplicação plena ou total inaplicabilidade do direito de arrependimento trazido pelo artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor às relações de comércio eletrônico, a análise mais acurada desta prerrogativa nos impele à conclusão de que não é propriamente o local da contratação o fator decisivo para subsunção da norma.

A interpretação teleológica, portanto, orienta à análise de cada caso concreto para que se averigue a ocorrência de eventual mácula na manifestação da vontade do consumidor, caso tenha ele sido procurado pelo fornecedor do produto ou serviço contratado, fazendo despertar um desejo ou uma necessidade irreal, que não se manifestaria por si só, razão pela qual o consumidor não teria efetivado a contratação se não fosse essa abordagem “agressiva” sofrida por ele.

Os exemplos corroboram essa assertiva, evidenciando os casos em que o consumidor terá o benefício de expressar o seu arrependimento, recebendo do contratado a quantia que pagou, devidamente corrigida, sem que tenha que fazer qualquer justificativa, até porque, nesse caso, também não terá havido justificativa para a contratação.

O Decreto nº 7.962/2013, a despeito de sua novidade, não contribuiu para qualquer esclarecimento acerca da aplicação do direito de arrependimento, a não ser a conclusão de que se aplica a relação de consumo tida no seio do comércio eletrônico. No entanto, não há clareza quanto à aplicação na totalidade destas relações (com o que discordamos) ou apenas em parte delas, e, nesse caso, qual o critério adequado para a distinção, sobretudo porque a contratação efetivada fora da sede física do estabelecimento empresarial não é o parâmetro adequado.

De qualquer forma, portanto, temos de buscar na razoabilidade e proporcionalidade trazidas pelo princípio do devido processo legal, em sua faceta material, por óbvio, a solução de tal questão, assim como no salutar e festejado princípio da boa-fé, em toda a sua amplitude e abertura, o que, contudo, nos deixa à margem da interpretação daqueles que preferiram banalizar o instituto, esvaziando sua aplicabilidade justa.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASBENJAMIN, Antônio Herman V.; MARQUES, Cláudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor, 5ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de Outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso: 08 jun 2014.BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de Setembro de 1990. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8078.htm>. Acesso: 08 jun 2014.BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso: 08 jun 2014.BRASIL. Decreto nº 7.962, de 15 de março de 2013. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/decreto/d7962.htm>. Acesso: 08 jun 2014.CASTRO, Aldemário Araújo. Informática jurídica e direito da informática. 2002. Disponível em <http://www.aldemario.adv.br/infojur/indiceij.htm>. Acesso: 08 jun 2014.COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, vol. 1, 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 2002.DENARI, Zelmo. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos Autores do Anteprojeto, 7ª ed., São Paulo: Forense Universitária.GARCIA, D. S. Introdução à informática jurídica. 1 ed., São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1976.LEONARDI, Marcel. Responsabilidade civil pela violação do sigilo e privacidade na internet. In: SILVA, R. B. T.; SANTOS, M. J. P (Org.). Responsabilidade civil na internet e nos demais meios de comunicação. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 333-358.LORENZETTI, Ricardo Luis. Comércio eletrônico. Trad. Fabiano Menke. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 5ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.NERY JÚNIOR, Nelson. Da proteção contratual. In: GRINOVER, A. P. [et al.]. Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p. 441-570.PAESANI, Liliana Minardi. Direito de Informática: comercialização e desenvolvimento internacional do software. 6ª ed., São Paulo: Atlas, 2007.WIENER, Norbert. Cibernética e sociedade: o uso humano de seres humanos, 3ª ed., São Paulo: Cultrix,1954.

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POLÍTICA EDITORIAL DA REVISTA JURÍDICA UNISEBA Revista Jurídica UniSEB publica artigos e resenhas sobre as diversas aéreas do

Direito nacional e internacional. Trata-se de publicação aberta a contribuições de juristas e demais profissionais do Direito, as quais devem observar a seguinte linha editorial:

REMESSA DE ARTIGOS E RESENHAS:A remessa dos textos a serem avaliados pelo Conselho Editorial da Revista Jurídica

UniSEB deve ser por meio eletrônico, via e-mail [email protected], ou por correio convencional, com postagem do material em CD para o endereço: Rua Abrahão Issa Halack, 980 – Ribeirânia – CEP: 14096-160 – Ribeirão Preto-SP – A/C Conselho Editorial – Revista Jurídica UniSEB.

PRÉ-REQUISITOS:Todos os trabalhos enviados para publicação na REVISTA JURÍDICA UniSEB

devem ser INÉDITOS, disponibilizados em meios impressos ou eletrônicos, e estarem adequados às normas editoriais estabelecidas. Ademais, não são permitidos envios de trabalhos que possuam apresentação simultânea para avaliação em outro periódico. Por fim, serão aceitos artigos para publicação redigidos em português, espanhol e inglês (limite mínimo de 3.500 palavras e máximo de 5 mil palavras).

APRESENTAÇÃO DOS MANUSCRITOS:A apresentação formal do artigo deverá seguir as normas atualizadas da Associação

Brasileira de Normas Técnicas (ABNT);

Os manuscritos deverão ser redigidos e digitados em programa de texto para computador - Word for Windows – tendo como requisitos: fonte Arial, tamanho 12, espaço entre linhas duplo, em folha formato A4. A numeração das folhas deve iniciar-se a partir da página de rosto, que deverá corresponder à página número 1.

Na folha de rosto deverão estar contidos os seguintes elementos de identificação do trabalho:

1 - Título e subtítulo (quando existir) do artigo, em até duas linhas, no idioma de origem e em inglês;

2 - Nome completo de cada autor, por extenso, seguido por filiação institucional e qualificações profissionais: titulações acadêmicas e cargo(s) que ocupam. Todos os dados da titulação e filiação deverão ser apresentados por extenso, sem nenhuma sigla.

3 - Indicações dos endereços completos das universidades às quais estão vinculados todos os autores;

4 - Indicação de endereço para correspondência com o editor para a tramitação do original (incluindo fax, telefone e endereço eletrônico).

5 - Resumo e palavras-chave (no idioma de origem e em inglês). O resumo deve ter, no máximo, 1 mil caracteres (considerando espaços), sem siglas. Já as palavras-chave, que identificam o conteúdo do artigo, devem ser de no máximo cinco palavras. Para a redação do resumo, observar as orientações da NBR-6028 - Associação Brasileira de Normas

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Técnicas (ABNT).

CITAÇÕES E REFERÊNCIAS:As citações no texto e as referências estão baseadas, respectivamente, nas da NBR’s

10520/ 2002 e 6023/2002 da ABNT;

O sistema adotado pela REVISTA JURÌDICA UniSEB é autor e data;

- Citações diretas ou literais: Toda citação textual desta modalidade deve subordinar-se à forma: (Autor, data e página). Com até três linhas, as citações devem ficar entre aspas e sem itálico. Com mais de três linhas, as citações devem seguir a seguinte regra: recuo de 04 cm na margem, fonte 10, espaço simples, sem aspas e sem itálico.

- Citações indiretas: quando o autor estiver citado na frase, colocar somente autor e ano. Se o sobrenome do autor estiver fora da frase e entre parênteses ficará também em letra inicial maiúscula.

Todas as obras citadas no texto devem, obrigatoriamente, constar das referências bibliográficas apresentadas ao final do texto, em ordem alfabética pelo sobrenome do autor. São os elementos essenciais à identificação de um documento: autor, título, local, editora e data de publicação.

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complementares sobre o autor, como o nome completo, endereço, fone, fax e e-mail.

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AVALIAÇÃO DOS ARTIGOS:A avaliação dos artigos é de responsabilidade do Conselho Editorial da Revista

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Por terem ampla liberdade de opinião e de crítica, cabe aos colaboradores da Revista Jurídica UniSEB a responsabilidade pelas ideias e pelos conceitos emitidos em seus trabalhos.

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