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SUBVERSA FRED ROCHA | FABÍOLA WEYKAMP RAFAEL DIAS CANHESTRO | BOMQUEIROZ HEITOR LIMA | VINÍCIUS MAHIER | ANA LUIZ ANDREI RIBAS | CAROLINE POLICARPO Vol. 4 | n.º 04 | março de 2016 ISSN 2359-5817 Ilustração | BIANCA LANA

Revista subversa vol 4 nº4 mar2016

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Subversa das águas de março fechando o verão

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Page 1: Revista subversa vol 4 nº4 mar2016

SUBVERSA

FRED ROCHA | FABÍOLA WEYKAMP

RAFAEL DIAS CANHESTRO | BOMQUEIROZ

HEITOR LIMA | VINÍCIUS MAHIER | ANA LUIZ

ANDREI RIBAS | CAROLINE POLICARPO

Vol. 4 | n.º 04 |

março de 2016

ISSN 2359-5817

Ilustração | BIANCA LANA

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Subversa | literatura luso-brasileira |

V. 4 | n.º 04

© originalmente publicado em 01 de março de 2016 sob o título de

Subversa ©

Edição e Revisão:

Morgana Rech e Tânia Ardito

Ilustrações

BIANCA LANA| BLOG | FACEBOOK | INSTAGRAM | CANAL NO YOUTUBE

Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados

como autores desta obra.

Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos

textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem

com a realida

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ANA LUIZ | GANHA-PÃO | 6

ANDREI RIBAS | RECEPTÁCULO | 10

BOMQUEIROZ | HISTÓRIA | 13

CAROLINE POLICARPO | SOU | 15

FABÍOLA WEYKAMP | POEMA 33 | 17

FABÍOLA WEYKAMP | ENQUANTO DELEUZE NO CAFÉ DA

MANHÃ | 18

FRED ROCHA | ENCOSTE A PORTA, POR FAVOR | 20

HEITOR LIMA | JARDIM| 24

RAFAEL DIAS CANHESTRO | ESPELHO EM BRANCO | 26

VINÍCIUS MAHIER | ÓCULOS | 34

SOBRE BIANCA LANA | 37

SUBVERSA

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EDITORIAL DAS PERGUNTAS

“Eu definiria o efeito poético como capacidade que um texto oferece de

continuar a gerar diferentes leituras, sem nunca se consumir de todo”.

Umberto Eco

O que você enxerga a cada vez que abre um livro?

A cada vez que constrói um personagem, o que vê?

Quando um livro nasce, em quantos mililitros de lago de Narciso o autor

teve de entrar?

E quando um livro entra na sociedade, o que ele, de fato, pode refletir?

Quando fica lá parado, o que realmente está fazendo?

O que o livro quer dizer e por que ele não dá as respostas todas prontas

da vida?

Qual o ângulo ideal de abertura dos olhos para não enxergar apenas o

óbvio?

E para viver feliz, quanto dos olhos é preciso fechar?

A literatura sabe me dar essas respostas? Se eu ler muito, vou saber?

Existe alguma doença que dá por enxergar demais?

Você cansa de dar respostas?

Dar respostas é mais cansativo do que fazer perguntas?

Por que as obras da Bianca Lana possuem um olhar questionador?

Os olhares das obras da Bianca Lana também têm perguntas a fazer?

Você saberia adivinhar?

Uma revista literária que pede para os leitores responderem pesquisas e

mais pesquisas pode apresentar um editorial com ainda mais

perguntas?

As editoras

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ANA LUIZ | Lisboa, Portugal.

As teclas pulsavam leves, contrariando teimosamente o

movimento que lhes era imposto e fazendo os dedos saltar como num

trampolim. Por entre elas libertava-se um ritmo, uma cadência vibrante.

Escutava-se o compasso marcado dos dedos conhecedores, que

viajavam na planície de botões e que como déspotas subjugavam uns

para libertar outros.

O proprietário dos dedos deixava-se invadir por esse ritmo apesar

de nada no seu corpo o denunciar. Olhava o vazio em frente

mantendo as linhas do rosto inalteráveis, como que hipnotizado. Os

únicos sinais que denunciavam a vigília daquele humano eram os

GANHA-PÃO

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movimentos das mãos. Até o peito se movimentava como o de alguém

que adormecera.

Mas ele não repousava. Viajava. O som e o ritmo das teclas

levavam-no a navegar a memória. As recordações de um passado

venturoso assaltavam-no, vívidas e aconchegadoras. O homem não

invocara estas memórias mas recebia-as com deleite. Eram tantas que

ele tentava retardá-las, prendê-las no tempo. Mas elas iam e vinham

sem se deterem ou obedecerem a nenhuma autoridade. Deixou então

de tentar exercer qualquer tipo de poderio e deixou-se avassalar,

subjugando a sua mente àquela viagem ao passado.

Da memória regressaram em primeiro lugar os instrumentos de

plástico colorido. Eram acordéons e “ticarras” como ele lhe chamara

em tempos, pendurados por fios em tendas de feira. As crianças

contavam os dias, expectantes, entre feiras. A expectativa era sempre

enorme, mas enquanto os outros antecipavam carrosséis, pipocas e

algodão doce, ele sonhava com a sua “ticarra” ou acordéon novo.

Sabia que a avó lhe compraria um e que nem seria necessário pedir.

Bastar-lhe-ia escolher.

Recordou a primeira “guitarra a sério” que tivera, à qual já

conseguira dar o nome correto. Lembrou como a colocava em

bandoleira, pulando ao som do “She´s In Love With You”, imitando Suzi

Quatro. Lembrou igualmente como se sentava no chão, com a guitarra

demasiado grande para o colo, tentando acompanhar todos os discos

da mãe que punha a tocar no gira-disco Sharp.

Recordou o primeiro casamento a que foi, e como deixara

abruptamente de brincar quando a banda começara a tocar. Com o

início dos primeiros sons, transformou-se no menino das alianças mais

bem comportado de sempre. Não se conseguiu mover mais e de

queixo descaído, observara maravilhado aqueles instrumentos que

nunca tinha visto e ouvia os novos sons, que despertavam dentro de si

sensações que ele não sabia existirem.

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Recordou o gigantesco acordéon vermelho, o primeiro que o pai

lhe comprara. O velho professor que ia a casa ensiná-lo, com paciência

e dedicação. As horas passadas a ensaiar com o seu pai, o seu maior fã

e crítico sempre na primeira plateia. À memória regressou também uma

guitarra de péssima qualidade que o pai lhe trouxera de Espanha. Mais

tarde teria uma linda e brilhante guitarra preta comprada em Setúbal,

numa viagem especial com o pai, compensação por ser tão dedicado

às aulas. Adorava as aulas. As de guitarra clássica com o padre da

paróquia, de guitarra rítmica com o professor de música de cabelos

compridos, e de órgão e acordéon na escola de música lá da terra.

Tudo isto o invadia agora. Recordava o que sentira ao tocar ao

vivo nos bailes dos emigrantes, e mais tarde com a sua banda de

covers em bares. Sentimento indescritível que o elevara e transportara

para um mundo em que tudo fazia sentido. Regressou também ao

primeiro concerto de música clássica. Um outro sentimento para o qual

não se inventaram ainda palavras. O som que o enchia e que lhe fazia

explodir o coração em lágrimas. E aquele momento. O momento da

sua vida. Aquele em que observou os prodigiosos culpados de tamanha

explosão de sentimento, vestidos de preto, neutros na amálgama de

corpos e instrumentos da qual brotava a perfeição. Aquele momento

em que desejou ser aquela peça, ínfima, insignificante, de algo tão

maior que ele, tão maior que tudo. Em que encontrara a sua vocação,

e decidira segui-la.

- Então puto?! – a voz viera acompanhada por uma pancada nas

costas, e afastou-o dos seus pensamentos. – Estás lá!!!... – deste-lhe

bem, hã? Isso é que foi trabalhar! – disse a voz, que olhava páginas e

páginas de código recém digitado. Ele não compreendia o entusiasmo

do colega. Tratava-se apenas mais de um projeto informático dos

muitos que lhe permitiam “ganhar o pão de cada dia”. Já lhes perdera

a conta ao longo dos anos. – Vá lá, deixa lá isso agora…vamos embora!

Amanhã há mais!

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Ele tinha sido arrancado da “zona”. Aquele lugar de

concentração especial em que tudo flui. Olhou o écran e sentiu-se oco.

As recordações que antes o haviam preenchido pareciam ter fugido

em debandada. Tinham voltado para o seu lugar. Arrumadinhas.

Arrumou também os seus objectos pessoais e atirou o portátil para

dentro da mochila. Pelo caminho até ao carro, voltou a lembrar os

instrumentos que tinha em casa e que mais não serviam agora, senão

para ganhar pó. Fez planos para tocar quando chegasse a casa. Sabia

no entanto que não os iria cumprir, porque as mãos lhe doíam demais

para as apertar contra a alma.

ANA LUIZ nasceu em Portugal em 1974. Possui formação superior em Psicologia

e em Informática, e é apaixonada pelas letras. Sempre escreveu, mas só em

2013 começou a publicar. É autora do livro “O Quebra-Montras” e participou

em diversas colectâneas, antologias e revistas. Alguns dos seus contos foram

também distinguidos em concursos literários. Tudo sobre a autora pode ser

visto no site da autora e em sua página no facebook.

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ANDREI RIBAS | Santa Rosa, RS.

com olhos verdes vítreos de boneca

venha doença querida

venha logo e logo se aconchegue

mas não queira que te peça clemência

- sabe o quanto dá transtorno

a existência?

não vou dizer-te que quero

ver os filhos que nem tenho

crescendo, isso é bobagem

vão se tornar, se já não são no recôndito do meu saco,

piores do que eu, nem vou

RECEPTÁCULO

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pedir-te que aja com calma

ao revés, se viável prossiga

na imediatidade dum tiro,

de um carro a mil que colhe o pedestre na faixa

de qualquer rua ou avenida Borges de Medeiros

porque qualquer cidade tem

uma rua ou avenida Borges de Medeiros

com faixa pra pedestre na qual ele é atropelado

não vou te alertar de parentes que sentirão falta;

a falta ameniza muito com as não muitas posses deixadas

venha logo e logo se assente

no meu sistema circulatório

na minha cabeça turva

livra-me dos sorrisos e apertos de mãos

forçados nos andaimes

da inconsistência do ramo empregatício

ou do quem-pode-manda-mais

das amizades banhadas pelas conveniências

do enfeitar finito camuflando esqueleto e carnes lascados

livra-me dos amores fadados

a terminar carcomidos dali adiante

e da rememoração dos que assim já foram

sem esquecer dos que perfizeram somente atos de encaixe

daquilo que chamam esperança

sem ver a real definição: atraso

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some comigo porque minha

covardia é tão inútil tão estática tão arredia –

usa a escrita pra impedir que me retire pedaços todos os dias

ANDREI RIBAS é autor dos livros O monstro (All Print, 2007) e Animais

loucos, suspeitos ou lascivos (Multifoco, 2013). Possui trabalhos

reproduzidos nas revistas eletrônicas Plural, Flaubert, R.Nott,

Pessoa, Mallamargens, jornal Relevo, entre outras publicações. Escreve

resenhas/críticas literárias para os sites Amálgama e Homo Literatus. |

[email protected]

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BOMQUEIROZ | Uruguaiana, RS.

A dor é uma reflexão do é ante o grão. Uma perspectiva do

ser frente a força. Meu sofrimento é sutil: custo a crer: sou o

que ela já esqueceu. O passo a passo é passado, avante

HISTÓRIA

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prosseguimos… Não há presentes para mim! Sangro meu

último ventre, talvez aquele que pudesse dar sombra à última

centelha de vida… Mas não, descanso! De todos os meus

tempos possíveis, nunca abriria mão daquele em que. Sou de

raça alguma, eis-me agora parte inescrutável da religião

Humana. Justiçado, insepulto, morro aos prantos, e morto

minhas lágrimas forjam memórias vazias. É sobre o futuro que

verseja a história, é sobre o tempo desconhecido e o amor,

substantivo que não possui imagem! E calcados na escrita,

evadimos zilhões e zilhões de sonhos. Meu coração é

pequeno e terno e vermelho como a tragédia dos homens! O

pretérito do instante é resíduo do que serei, o momento exato

em que o relógio quebra: átimo de um beijo quântico!

Sozinho e bem acompanhado pergunto-me, será intrínseco à

alma a vontade de morrer eternamente?

BOMQUEIROZ é de Uruguaiana (RS, Brasil) e nasceu embaixo de uma

bergamoteira. | [email protected]

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CAROLINE POLICARPO | São Paulo, SP.

sou a bruxa na floresta a feiticeira a alquimista sou a

dançarina a arqueira a que cai a que corre a que voa e ri

SOU

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demais e chora demais e grita e sussurra maldições e versos

sou a que observa a noite no meio das árvores no alto das

nuvens na praia deserta sou a que mergulha e se afoga mas

sobrevive a que despenca a que se ergue a que continua e

sobrevive sou debaixo da chuva e do sol escaldante e do

céu branco meio cinza e das estrelas também nas noites sem

lua visões e/ou sonhos e/ou miragens promessas e

lembranças não é possível mas sou inclusive as chamas que

me devoram sou e posso ser cada pedra cada riacho cada

folha cada coisa e ser sou solidão mas também plenitude em

cada por-onde ou debaixo eu estou estou em cada

hesitação em cada pensamento em cada palavra mágica e

sim também nos desejos estou aqui sobrevivendo estou ali aí

de passagem chegando indo estou espalhada sou

cartógrafa arqueóloga e linguista sou astrônoma curandeira

contorcionista poetisa sou humana finita me rendo às vezes

me canso às vezes mas sobrevivo sou caminhos passagens

por-ondes sou perguntas absurdas sou som cheio de sentido

escorrendo errante pelas linhas poesia sou sou sou e reafirmo:

sou

CAROLINE POLICARPO VELOSO é estudante de Letras e autora do livro de

poemas Palavras Andarilhas, publicado em 2015 pela Penalux. Participou de

várias coletâneas de contos, incluindo Sonhos Lúcidos, Utopia, Ponto Reverso e

King Edgar Hotel. Também tem publicações nas revistas Trasgo e Friday. É

fascinada por astronomia, aspirante a desbravadora de universos (inclusive

os inventados) e escreve por necessidade existencial. |

[email protected]

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FABÍOLA WEYKAMP | Pelotas, RS.

meus pés de vento

têm ímãs no caminhar

FABÍOLA WEYKAMP é mestranda em Literatura Comparada (UFPel), tem seu

primeiro livro de poemas "Resenhas da solidão --um livro de poesia e dor

cotidiana", publicado pela Editora LiteraCidade, Belém/PA, 2015; obra

ganhadora do Prêmio LiteraCidade Jovem, 2014. |

[email protected]

POEMA 33

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FABÍOLA WEYKAMP| Pelotas, RS.

cada coisa junta tem um valor diferente da coisa toda separada

a cor do oceano reflete o azul da coisa em conjunto

daquela porção única no horizonte infinito das percepções

separado o punhado daquela mesma porção e

transportada para um recipiente incolor

tudo ganha novo sentido e significado:

a cor já não é mais cor

o azul ficou no antes de agora

aquele punhado de água retirada do meio do oceano

faz parte do mundo novo de outra comunidade

outro valor outro significado outra sensação

ENQUANTO DELEUZE NO CAFÉ DA MANHÃ

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/possivelmente que não a mesma de infinitude

a referência de agora é outra

e o que está ao redor acontece a partir disto: que acontece

nesse instante em que a coisa, o punhado de água do oceano,

entrou em contato com um meio que não era seu

e o que está ao redor dele acontece

acontece a partir disso e independente disso

a coisa toda sempre flui em conjunto ou individualmente

de formas sutis ou nãos: mas únicas em sua percepção e afeto

FABÍOLA WEYKAMP é mestranda em Literatura Comparada (UFPel), tem seu

primeiro livro de poemas "Resenhas da solidão --um livro de poesia e dor

cotidiana", publicado pela Editora LiteraCidade, Belém/PA, 2015; obra

ganhadora do Prêmio LiteraCidade Jovem, 2014. |

[email protected]

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FRED ROCHA | São Gonçalo, RJ.

Coincidências são bem interessantes... E um início de inverno

pode vir a ser algo pressago. Henrique hora está a mirar-se no espelho.

Quem o vê se barbear, assim, com arte, – resignado –, sequer supõe

que se havia postergado de si mesmo. Comia mal, dormia pouco,

isolou-se. Acabrunhado e apático, de todo. Afundara-se em vícios e em

versos, e o versejar fora talvez o pior deles. É outro, no entanto, ou quase

outro, que não pôde deixar de ser o mesmo. Tem hora a cara lisa e bem

fresca, e embora traços de mágoa e desengano. Enxuga o rosto como

ENCOSTE A PORTA, POR FAVOR.

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a “enxutar-se” do passado, vertido em lágrimas, suspiros e lamentos. A

entrevista será às oito em ponto.

Levantara-se às seis; as seis e quinze despertou; aprontou-se em

dois quartos de hora. Seria dar um grande passo em sua vida: tocá-la

adiante e já então com um novo emprego. E não menor que o passo,

era a expectativa. Fremia de ansiedade e apreensão. E pode até ser

que fosse medo: que os traumas são os mais temíveis dos temores...

Respirou profundamente... uma e outra vez e ainda outra. Vez em

quando, suspirava... Foi-se enfim. Trânsito tranquilo neste horário. Bem

mais ínvias eram as vias da memória... Inevitável era pensar naquele

inverno. Não ia a sós no assento, embora fosse. Consigo iam suas

lembranças, e com elas, as más reminiscências – ia ela...

E, bem, uma grande negativa como abre um precedente a

tantas mais decepções. E senão o é na prática, é ao menos o que

sente o coração... O Henrique sabe disso e muito bem. E não na teoria

ou de oitiva, como muitos redatores de “autoajuda”; o seu

conhecimento, certamente, era de um sevo empirismo. Porém as portas

do inferno são sorriso: um sorriso aberto e encantador, senão quando

inseguro e acanhado... E era difícil para o amigo acreditar, que após

tantos desenganos, deparava-se com o aceno de um sonho. O quanto

houvera sido humilhado... o quanto abrira mão do próprio orgulho... e

por baixar a guarda aos punhais do algoz a quem julgava benfeitor –

um grande e fidedigno amor...

Leitores há que o taxarão de um vão dramático, outros, até

mesmo de patético. E isto porque quase todos nós, – hipócritas nem

sempre assumidos – corajosamente acovardados –, acabamos por

vender nossos valores ao preço do que hoje é mais em voga, ou do que

nos é mais lucrativo. E sempre esperamos (quase sempre) dos outros o

que já não possuímos, ou o que somos incapazes de ofertar. Pois, bem;

o nosso Henrique era inda, sim, capaz de amar – de peito aberto, corpo

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e alma, e de verdade! Fez-se até poeta e versejava. Alfim, se riu de seus

poemas – apostatou-se da poesia. Convertia-se a musa em Medusa...

Henrique se fez petrificado... Apeou do seu corcel, largou da

espada, deu um tapa às ancas da cavalgadura, e mandou-a pastar,

bem como o sonho. Que fazer se a princesa, por sinal, pretere mesmo o

príncipe ao dragão? Lembrou-se então do Antigo Testamento, porém,

pôs na boca de Sansão o verbo percursor de Jeremias: “Maldito o

homem que confia “na mulher”...” – era ajustar a profecia às

circunstâncias. Todavia, restava-lhe inda um naco de esperança.

Demais que, até então, as boas lembranças sobrepujavam suas rivais.

Porquanto deu sua outra face. Igual efeito? Não, pior: u'a punhalada...

A boa-fé se transmutou em desconfiança; a desconfiança, em

malícia; esta, em perversão e amargura. O Henrique, assim, descreu do

ser humano, mas não antes de descrer do próprio ente: vencia, por um

lado, a insegurança, e, por outro, não mais que a indiferença. De

poeta, resvalou a depravado; e nisto, já toda e qualquer musa seria u'a

Dalila em potencial. Capitolinas? Todas pérfidas adúlteras! dignas do

mais longínquo exílio... Mesmo em Maria’s via incastas Madalena’s – e

sem lágrimas e arrependimentos. Converteu o santuário maternal num

altar pagão pleno de vícios. Contudo, aí, sentia-se ele próprio ultrajado:

prostituía – mais que a carne – a sua alma; e inda mais até: seus ideais...

De musas a ninfas, não obstante, deparou u'a ninfeta. Enamorou-

se de sua ingênua petulância, de sua presunçosa inocência; e,

sobretudo, de um coração ainda, assim, tão maleável... Ela o queria só

pra si e ninguém mais! E ele, muito embora relutante, e apesar de toda

a sua desconfiança, decidiu dar o seu braço a torcer: era apostar sua

última ficha na exceção. Mas e quando a exceção se faz a regra...? A

mesma espada em punho, outro corcel, e a princesinha, esta, – Bem!

Obrigado –, trepada ao dorso de um dragão alado... E o nosso

Henrique, então desempregado, valia pouco mais que um mequetrefe.

Que um homem vale, ao que parece, tanto quanto (ou menos) o valor

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que se atribui ao seu status; ou meramente o quanto abarca o seu

bolso...

O Henrique ama agora a boa carreira. Ei-lo aqui, sentado,

empertigado, aspirando o amor dos “bem-aventurados”... A boca seca,

mas ia bem a entrevista. Indagado sobre o porquê devia ser o

contratado, rebrilharam os seus olhos. Disse “dedicar-se pelo que ama e

acredita”. Esboçou-se lhe um sorriso aprovador. Dispensado, por fim,

ouviu esta frase: — Encoste a porta, por favor. Assim, despedira-se do

amor, em hospedar – a contragosto – a solidão.

FRED ROCHA (Niterói, 1985) é romancista, contista e poeta, inspirado

especialmente em obras clássicas, particularmente em Camões e Machado

de Assis. Escreveu o romance juvenil Ao Filho das Estrelas (entre os céus e a

Terra), a seleção de contos d'Outros Rasgos, dentre outras obras. Tem alguns

projetos literários em andamento e, no momento, além de contos e poemas

eventuais, trabalha em um romance. Até o momento, contemplado em

quatro concursos literários. Integra quatro antologias, entre contos, poemas e

afins. Tem alguns textos publicados em revistas e blogs literários, como no

conceituado Literatura sem fronteiras, então criado e editado pelo escritor

Nilto Maciel (1945-2014). (Até então sob o pseudônimo Rocha Oliveira). Visite o

site do autor. | [email protected]

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HEITOR LIMA | Fortaleza, CE.

Jardim apenas, pétalas, presságio

em meu jardim os espinhos, como queira Borges, estão em todas as vias.

e como eu não quisesse los senderos que se bifurcan (antes fosse) no

meio das gotas de sangue, quereria em ti. tens olhos diáfanos peito de

lírio rosto de assombro. “meu bem, teus ossos” disse-me um dia “não

estão de bem com a vida”.

o que não sei é se as pétalas são menos formosas, se é o cheiro

imperativo. não sei. e é de não saber, dadas as circunstâncias, que o

jardim não é nem aziago nem prodígio. “meu bem, não leio jornal e

nem me aborreço com augúrios cotidianos. costumo olhar o véu

JARDIM

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cerúleo quando manchado, cheiro as flores menos candentes e roubo

os brotos antes da corola.”

quero entrar no jardim sem projeções, sem Édipos, e reconhecer-me no

espelho. quantas almas no locus das inflorescências e além são galhos

de Narciso. procuro em mim qualquer Vênus e tuas coxas são as

conchas do nascimento. meu bem, nem te conheço. e te sinto como

flor negra mais cálida entre os órgãos, te sinto resina e névoa, forma e

pó. parte do que germina é Fausto, ou antes a gargalhada da roseira

que me enche de baba.

“as veredas são tortas em meu jardim são antes as páginas e antes

ainda as tripas o núcleo fermentando o ano da mãe os cabelos loiros

do pai não vejo as borboletas amarelas de Márquez a náusea da flor o

sopro da lida não encaixo a prosa em nada quero o nome anterior à

gramática anterior ao teu próprio nome anterior ao signo.” Quero,

todavia, teu rosto que volta à superfície, rápido como o ocaso da

palavra. onde à noite os sonhos desabrocham lívidos e te molham a

face que é a minha, te cingem a mão que toca meu ombro e os corpos

se destilam. o tempo é espectro e ninguém nunca sabe os próprios

olhos. tens uma flor no cabelo.

HEITOR DE LIMA rabisca em versos desde os 9 anos de idade, espera que o

mundo escolha a poesia, mesmo que inconsciente. Vive a heterogeneidade

de ser quem é. | [email protected]

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RAFAEL DIAS CANHESTRO | Belo Horizonte, MG.

1

Faz uma semana que tem a mesma sensação. Anda pelas ruas da

cidade em alerta, olhos ressabiados que vagam irrequietos pelas

ESPELHO EM BRANCO

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imediações. Um cão feroz que não morde! Passos, a buzina dos carros,

tudo alto demais e ele fugindo das aglomerações, sentindo aquela

estranha pressão na nuca, como se um dedo invisível a pressionasse

com pretensões de arrancar seus miolos e deles fazer uma massa

cinzenta no asfalto.

As sombras o perseguem. Volta e meia o homem olha a sua com

desconfiança, por um momento convencido de que ela tem vida e se

agarra desesperada às suas pernas. Julga-se louco! Como pode? É um

sujeito normal. Tem algumas manias, esquisitices inofensivas, que vão de

assobios no meio da rua, a danças bizarras debaixo do chuveiro

quando se lembra de uma boa música. Mas não passa disso. Quando

jovem, ele fora ao psicólogo por causa da timidez, mas o parecer da

doutora fora positivo. “Um rapaz deslocado no tempo e lugar. Não se

encaixa, mas vai se encaixar. Só precisa de um hobby, algo que lhe dê

identidade...”

Na escola era assim. Andava pelo pátio ressabiado, sentindo-se no

centro do palco, sempre afetado por dores de barriga, nervoso, pálido.

Os olhares eram dardos venenosos e ele cambaleava ferido pelos

corredores, antevendo o gosto de punhos e de palavras ferinas. Era um

estranho em uma terra estranha, mas a doutora o salvara daquele

pesadelo. “É uma peça que não se encaixa, mas vai se encaixar. O

tempo vai te ajudar. As coisas se ajeitam.”, dizia a mulher risonha, e ele

balançava a cabeça. Era a única coisa que restava a quem estava

perdido; segurar-se nos ombros do guia e segui-lo, torcendo para que

não houvesse um buraco no caminho.

Olhos fixos que queimam, um rosto hostil de vietcongue que deseja

banir o homem que não devia estar ali. Ele desvia de um e logo vem

outro, e o cerco se fecha. Recua até a fachada de uma loja e entra. Se

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esconde por trás de prateleiras de livros, mas o cheiro do medo não é

dispersado pela natureza morta, nem pelos ventiladores que giram

preguiçosos no teto negro de sujeira. É um convite e a fera vem em seu

encalço, as presas de fora, agudas como navalhas. Ele se embrenha no

labirinto e marca o seu caminho pela posição dos sóis artificiais, mas são

todos iguais e o homem se confunde e reprime um grito; o mais leve

ruído é pista que atrai o predador.

Liberdade! Os olhos piscam na luminosidade e ele foge dela, se

esgueirando por debaixo de toldos, onde as sombras viram uma e a

perseguição cessa. Os rostos o fitam de longe e o corpo repudia o

reflexo que lhe encara de vidraças. Espelhos! Não ousa virar o pescoço

para vê-los. Tem medo! O sonho do visitante é constante e neles os

pedaços são arrancados e o branco cresce de tamanho. Cada vez

que o branco aumenta o vazio se alastra e ele se pega acordado no

quarto, sem saber o que há e onde está. Então se levanta e vai

trabalhar.

Para diante da fachada do prédio, em cujas entranhas teclados batem

e vozes berram algoritmos. Fica ali, o peito doendo, deslocado no

espaço e no tempo. “Preciso de um hobby.”, ele pensa, e decide que

fará algo com o cair da noite. Algo diferente do que fizera na semana

passada. Não quer levantar-se de uma mesa de bar lotado e correr ao

banheiro para vomitar; aqueles olhares pesados nas suas costas, quase

o derrubando no chão de linóleo no meio de pernas e sombras. Quer

novidades. Preto no branco, para variar um pouco. Antes que o branco

predomine e ele...

Quando volta a si, ele está na mesa e os dedos maquinam como de

costume. A montanha de papel cresce na sua frente e ele solta um

suspiro que morre no cubículo. Ali há só a sua sombra, quieta debaixo

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de seus pés, mansa, a rebeldia contida pela imobilidade. Assim ele

gosta! Parado na frente da tela luminosa, na companhia de números

frios e das vozes que bradam algoritmos, completamente esquecido da

urbanidade. Os pensamentos são branco sem preto, mas o corpo está

vivo, pelo tempo que o trabalho durar.

E depois a perseguição terá novos capítulos.

2

A boca fala e o homem a observa. É toda dentes brancos e

vermelhidão de batom, e nela piscam sorrisos frequentes, de flerte. Ele

come pouco. Não sente fome; nem de comida, tampouco de assunto.

Só a mulher fala e é impressionante como não se cansa. O fôlego é

gasto em palavras e o frango deve ter gosto de saliva. O homem sente-

se incomodado. A psicóloga é um fantasma que rompe o silêncio da

sua cabeça, entoando a ladainha das peças que se encaixam, mas ele

se sente uma engrenagem roída, que não serve para compor uma

maquinaria.

Bebe da cerveja, enquanto os lábios sustentam a farsa. O gosto da

cevada é estranho; não sacia. As luzes brilham demais e ele só pensa

na casa amortecida e no seu corpo jogado sem vida na cama, o morto

que ouve e não se importa. Branco no preto. O preto não vigora. Não

pode. É melhor não ser e nem sentir, apenas ficar lá, até que a última luz

do quarteirão se apague e ele durma e sonhe... Para perder outro

pedaço.

Ela pergunta o que há. A boca está seca, um pouco do vermelho

desbotado, os dentes exageradamente brancos contra a luz. Não é o

branco que ele quer. A mulher não parece feliz. Quer pedaços do

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homem. Todos querem. Ela se oferece e se sente no direito de ter um

pouco dele. Mas ele não pode dar nada. Tem alguém para alimentar, o

visitante noturno que vem e o deixa cada vez mais inconsciente,

alguém que anda e não olha para os lados. Sequer para trás. O branco

verdadeiro, predominante.

A mulher se cansa. Sorriso enterrado no desgosto, o frango

abandonado. O garçom vem e deixa a conta. Dedos puxam notas e

duas silhuetas andam lado a lado na calçada. As sombras duelam sob

as luzes noturnas, e ele sente que a hora está próxima. Quer ir embora,

mas os lábios vermelhos não querem que vá. “Precisa relaxar. Deixa

rolar. Sabe quando um quebra cabeça é montado? Não é bonito?

Deixa acontecer que tudo se acerta. Relaxa.”. Era a ressurreição

daquela que jazia enterrada. Ele é uma peça, mas não pode mais se

encaixar. Não ali; não mais.

Escapole, a sua sombra solitária, o homem alucinado sob os holofotes

de uma cidade. A mulher chama pelo seu nome, e ele não a ouve. Está

esquecido e fazer força para trazer à tona é inútil. Nada do menino que

fugia por corredores. Nada de nada. Branco no preto? Só o branco,

mundo vazio, povoado pela batida ininterrupta do teclado, e as cifras

correndo na tela feito sangue. Quer a cama, o refúgio, o encontro com

aquele que vem para cobrar o seu preço. Quer o lugar onde a

perseguição termina, e a sombra, a alma refletida, desista de salvá-lo

do inevitável.

O branco... Cresceria. Continuaria crescendo. O homem não seria mais

o preto no branco. Nenhuma nesga de preto; um ponto ou linha de

escuridão. Nada.

3

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31

A cama é um santuário e nele a carne se regozija. Luzes apagadas pela

casa, as sombras aniquiladas. Ele aniquilado. Espera pelo sono, as

pálpebras pesadas, embaladas pela monotonia de um silêncio que

parece inquebrável. O mundo pode estar morto. As paredes não falam

pelas vozes dos vizinhos, e lá fora, onde organismos correm almejando a

vitória, nada se ouve. É como estar em um cemitério, na companhia de

criptas frias. A única voz é a da brisa, mas ela é tímida, pouco se

pronuncia. Vive de uma única opinião; o assobiar consistente que faz

um homem pensar em imensidão.

Ele dorme. Lentamente as formas se perdem no vazio e se unem ao

branco absoluto, a cor que predomina nas distâncias desconhecidas,

que levantam especulações e abriga horrores noturnos combatidos

com a Bíblia. A cor daquilo que não se define, do vazio esperando para

ser preenchido. Branco que massacra o preto. Eis que surge dessa

predominância o homem sem rosto. Sempre de costas na beirada da

cama, resmungando as palavras que ferem os ouvidos da criança, do

menino, daquele que fugia nos corredores da escola e não encontrou

paz nos conselhos da psicóloga. “Vai se encaixar...” Ah, vã ilusão que

ignora a alma! Mas o fim está próximo, não só para o homem, mas para

todos os que respiram. Todo mundo tem a sua hora.

Ele sente os fragmentos sendo arrancados, como dentes roubados de

uma boca que um dia fora bonita. A dor... era terrível em um passado

não tão distante, mas agora é uma lembrança que pouco lhe importa.

É quase o fim, e talvez, se assim for da sua vontade, um recomeço. Por

isso ele não ousa levantar-se da cama, ou negar o sonho que o carrega

nos braços. Fica parado, estático, enquanto o homem sem rosto, o

visitante noturno, murmura os fatos perdidos e estilhaçados, as mentiras

desferidas por línguas que se julgavam sábias. Como poderiam

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entender... O julgamento precipitado, os homens que querem ser Deus.

Nunca entendeu e nem vai entender. O tempo é curto... Curto.

O último pedaço se agarra ao músculo como se fosse ele, mas o

homem sem rosto não se engana com o teatro e puxa, repuxa, ri da

atrocidade. A forma que dorme na cama estreme durante o sono, e um

gemido, que era para ser grito, morre estagnado por debaixo da língua,

cheio de saliva. No sonho e na realidade a vítima se debate, os lençóis

atirados como insetos detestáveis no piso, os punhos batendo na

madeira, as unhas arrancando tinta. Não para. É tarde. A fantasia já

não serve e fere. O momento é chegado e ele sabe que não pode ser

adiado. Coragem. Entrega. Ele espera.

Termina, e não há sangue ou vísceras, apenas um espaço sem

ambições, expectativas. O homem sem rosto ri. O martírio está

terminado e ele agora pode ser feliz. Ou tentar. Levanta-se da beirada

da cama, e pela primeira vez em meses, anos, quem sabe séculos, o

homem encara o criador na cama. A máscara pende da face do

visitante noturno como um pedaço obsceno de carne, um bife cru que

não adere ao osso, ao formato. Mas ele ri. É terrível, um monstro gerado

pelas esperanças de outros, mas é o que há, aquilo que sobra depois

da festa. Está satisfeito e assim parte para fora do quarto, a máscara

balançando no rosto, a identidade sem uniformidade, que de tão

usada ficara gasta demais e incapaz de servir para enganar. Como se

eles já não soubessem.

Acorda. O sol brilha lá fora e é estranho como o medo já não faz parte

da sua unidade. Unidade. Não parece um bom termo para o homem,

que nunca a conhecera de verdade. Ele levanta-se da cama para

arrumar-se para o trabalho. A psicóloga está calada e enterrada no

fundo da mente, e o assobio que sai da boca é tranquilo; dele, que

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agora não foge ao espelho, a nada que possa refletir uma forma. Para

diante da pia como um fiel que presta respeito ao altar da sua

ideologia, e fita o rosto; sem preto, apenas branco. Uma brancura que

não tem fim ou começo, é ela, toda ela, esperando para ser

preenchida.

Suspira e escova os dentes, a sombra se espalhando nos ladrilhos do

banheiro, imóvel. A perseguição termina, até que o homem se

desencontre e busque por um novo recomeço. O ciclo é contínuo. O

alívio dele é saber que está fadado a mortalidade.

RAFAEL DIAS CANHESTRO possui dois contos publicados em antologias: "A

menina e a banheira", pela antologia Horas sombrias da Andross editora, e

"Cadáver", publicado mediante resultado de concurso pela editora

AMCGuedes. também tenho um livro, "A casa", publicado pela editora

Multifoco. Escreve desde que se conhece por gente | RAFA-

[email protected]

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34

VINÍCIUS MAHIER | São João del-Rei, MG.

o primeiro arranhão

mínimo

no óculos novo

até então límpido

risonho

como um hino nacional

agora

insuportavelmente turvo

ÓCULOS

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turvo turvo turvo

turvo

a tal ponto

de quebrar fronteira

e atingir a lente

esquerda

pelo olhar do outro

olho

turvo

à turva vista

que do óculos precisa

igual um miserável

necessita de um visto

pra entrar em um país sem vista

para o mar (só pra aviões)

e

não conseguindo

precisa tatear com as mãos

a angústia de sobreviver

no quase escuro

do deslocamento

do desfocamento

insuportavelmente turvo

como

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se essa mesma vista

que do óculos precisa

mais

que da imagem

não tivesse

um arranhãozinho

sequer.

VINÍCIUS MAHIER, 21 anos, natural de Campo Belo / Minas Gerais, é graduando

em Letras pela Universidade Federal de São João del-Rei. Fora disso sou doido,

com todo direito a sê-lo. Com todo direito a sê-lo, ouviram? (Álvaro de

Campos) | [email protected]

Page 37: Revista subversa vol 4 nº4 mar2016

37

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[email protected]

Bianca Bernardes Trazzi é de Ribeirão Preto, São Paulo. Iniciou nas

artes plásticas na infância, quando criava ilustrações para os livros que

escrevia, tendo ilustrado o primeiro livro infantil aos onze anos. Como

técnica, utiliza predominantemente aquarela e tinta Nankin, além de

outras técnicas como manchas de aquarela, tinta a óleo ou desenho

digital. Tem como principais influências os trabalhos de Agnes Cecile,

Paula Bonet, Kerby Rosanes, Van Gogh, Goya e os grandes mestres

renascentistas Da Vinci e Botticelli. Bianca disponibiliza pôsters para a

venda pela internet.

SOBRE BIANCA LANA

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PARCEIROS:

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Edição e Revisão:

Morgana Rech e Tânia Ardito

Recepção de originais:

[email protected]