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 O NOVO PENSAMENTO DE FRANZ ROSENZWEIG: UMA SÍNTESE [1] Ricardo Timm de Souza Muito pouco conhecido entre nós é o pensamento do filósofo alemão Franz Rosenzweig,  por inscrever-se, na verdade, em uma fundamental encruzilhada da cultura do século XX em  suas misérias e grandezas – uma encruzilhada, sem dúvida, menos compreendida do que  mereceria por suas condições de elemento essencial para a compreensão de nossa era.  Rosenzweig acompanhou acontecimentos decisivos de sua época com argúcia inigualável; sua  obra se cons tit ui em um es foo imenso de ntese fil osófica que, levando em conta os  abismos que a avizinhavam, aponta à possibilidade do futuro com uma pertinácia intelectual  para nós, hoje, quase inacreditável [2]. Esse pequeno texto constitui-se em não mais do que uma breve introdução a alguns  temas centrais do pensamento do autor , acompanhado de al gumas de su as intui ções  fundame nt ais e ten do como horizont e de referência exat amente a si tuação de visc er al  conflitividade histórico-espiritual que marca a sua vida e produções intelectuais, e sem as quais  estas não são compreensíveis. O difícil itinerário de Rosenzweig Em bem mais do que um sentido aparecem ao leitor de hoje as extremas dificuldades que marcaram a ímpar trajetória humana e intelectual de Franz Rosenzweig. É necessário, em primeiro lugar, que se atente para alguns aspectos biográficos-intelectuais do pensador. O autor nasce no dia de Natal de 1886, no seio de uma família de burguesia judaic o-alemã  bem-es tab elecida e assimilada. Debater-s e-á por lon go te mpo  co m a indecisão entre a  conversão ao Cristianismo – o caminho óbvio no processo de assimilação da pré-Primeira  Guerra Mundial – (camin ho seguido por alguns de seus amigos – como Euge n Rosensto ck –  e par ent es, como Rudolf e Hans Ehr enb erg) e ao Jud aísmo, tardiamente redescoberto e  as su mido ap ós não pe qu ena luta interior, a me sma luta que atinge , consciente ou  inconscientemente, tantos de seus contemporâneos ilustres e que se expressará, em cada um,  de forma tão diversa. Filho único, mereceu as atenções devotadas de seu pai, Georg Rosenzweig, comerciante  bem-sucedido e de sua mãe, Adele Asberg-Rosenzweig, a qual, “aberta a todas as dimensões  

Rozenzweig_O Novo Pensamento de Franz Rozenzwig

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Rozenzweig_O Novo Pensamento de Franz Rozenzwig

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  • ONOVOPENSAMENTODEFRANZROSENZWEIG:UMASNTESE[1]RicardoTimmdeSouza

    Muito pouco conhecido entre ns o pensamento do filsofo alemo Franz Rosenzweig, por inscreverse, na verdade, em uma fundamental encruzilhada da cultura do sculo XX em suas misrias e grandezas uma encruzilhada, sem dvida, menos compreendida do que mereceria por suas condies de elemento essencial para a compreenso de nossa era. Rosenzweig acompanhou acontecimentos decisivos de sua poca com argcia inigualvel sua obra se constitui em um esforo imenso de sntese filosfica que, levando em conta os abismos que a avizinhavam, aponta possibilidade do futuro com uma pertincia intelectual parans,hoje,quaseinacreditvel[2].

    Esse pequeno texto constituise em no mais do que uma breve introduo a alguns

    temas centrais do pensamento do autor, acompanhado de algumas de suas intuies

    fundamentais e tendo como horizonte de referncia exatamente a situao de visceral

    conflitividade histricoespiritual que marca a sua vida e produes intelectuais, e sem as quais

    estasnosocompreensveis.

    OdifcilitinerriodeRosenzweig

    EmbemmaisdoqueumsentidoaparecemaoleitordehojeasextremasdificuldadesquemarcaramampartrajetriahumanaeintelectualdeFranzRosenzweig.necessrio,emprimeirolugar,queseatenteparaalgunsaspectosbiogrficosintelectuaisdopensador.

    O autor nasce no dia de Natal de 1886, no seio de uma famlia de burguesia judaicoalem

    bemestabelecida e assimilada. Debaterse por longo tempo com a indeciso entre a

    converso ao Cristianismo o caminho bvio no processo de assimilao da prPrimeira

    Guerra Mundial (caminho j seguido por alguns de seus amigos como Eugen Rosenstock

    e parentes, como Rudolf e Hans Ehrenberg) e ao Judasmo, tardiamente redescoberto e

    assumido aps no pequena luta interior, a mesma luta que atinge, consciente ou

    inconscientemente, tantos de seus contemporneos ilustres e que se expressar, em cada um,

    deformatodiversa.

    Filho nico, mereceu as atenes devotadas de seu pai, Georg Rosenzweig, comerciante

    bemsucedido e de sua me, Adele AsbergRosenzweig, a qual, aberta a todas as dimenses

  • da artisticidade, era a alma e o ponto de referncia do liberal lar da famlia, lar este que

    reproduzia a atmosfera burguesa da poca e que cercava o futuro filsofo de amor, beleza e

    conhecimento. Do cabedal espiritual do Judasmo de origem j fora quase tudo esquecido a

    assimilao j conseguida emprestava famlia segurana e independncia e se sentiam em

    todasasdimensesafetossculturasalemeclssicacristocidental.

    Aps o perodo escolar, decidese o futuro filsofo, entusiasta da msica, pintura e

    literatura, pelo estudo da Medicina, a fim de contentar o pai muda logo de idia. Porm, em

    1905, vem a descobrir, na Histria, o seu verdadeiro campo de interesse, cujo estudo, todavia,

    vem iniciar apenas em 1907, juntamente com a Filosofia. De 1908 a 1912, estuda em Freiburg,

    com exceo de um ano passado em Berlim. Tem como professores prediletos o filsofo

    Heinrich Rickert e o historiador Friedrich Meinecke. (As principais influncias diretas no

    pensamento de Rosenzweig provm de Meinecke, Schelling e Hermann Cohen). sob a

    direo de Meinecke que inicia seu doutoramento, que versar sobre a Teoria do Estado, de

    Hegel e que somente ser publicado, de forma ampliada, aps a Primeira Guerra Mundial, sob o

    ttulo: Hegel und der Staat Hegel e o Estado. Essa obra, de grande complexidade, significa

    uma espcie de adeus ao idealismo, executado no s pressas, ou sem profundos

    conhecimentos do mesmo, mas, antes, aps o exame acurado de suas razes profundas em

    verdade, Rosenzweig j possua em plena disponibilidade intelectual o conjunto da herana

    histricoespiritualdaEuropa.

    Nesse entremeio, porm, estourar a Primeira Guerra Mundial. O soldado Rosenzweig

    no se limitar a exercer tarefas militares (semelhante a seu contemporneo Wittgenstein no

    Front que estuda e redige textos que se convertero em trabalhos importantes): tambm como

    soldado lia e aprendia incansavelmente, entre outras coisas aramaico e rabe, o Novo

    Testamento e Patrstica dava aulas sobre a histria das guerras, planejava o futuro e escrevia

    muito [...]. Essa variedade de ocupaes intelectuais como que preparava a futura dedicao

    pratica do ensino no em uma ctedra universitria, como pensavam muitos de seus

    contemporneos, mas na humilde Casa Livre de Estudos Judaicos (Freies Jdischen

    Lehrlaus), por ele fundada em Frankfurt, para onde se mudou no vero de 1920, aps seu

    casamento com Edith Hahn. Pois, aps a redao da Estrela da redeno, o filsofo, em 1919,

    participa a seus amigos que desejava no escrever mais nenhum livro pelo menos em

    termos de tratado de Filosofia a idia , agora, dedicarse fundamentalmente prtica do

    ensino, ao dilogo interhumano, abertura do esprito, cultivada desde os portes de sua

  • prpria casa. Seguese um curto perodo de paz e intensa produtividade docente, que culmina

    com a redao, a partir dos seminrios que conduz, do Bchlein des gesunden und kranken

    Menschenverstandes (Livrinho do entendimento humano sadio e doente), terminado em janeiro

    de 1922. Esse livrinho irreverente ltima obra do Rosenzweig ainda saudvel no seno a

    explicitao clara e direta do esprito da primeira parte da Estrela da redeno. Foi pensado

    para um crculo relativamente estreito de leitores, mais interessados no contedo do

    pensamento do que na elegncia da exposio, e no pertencia originalmente ao grupo de

    obrasqueseuautorgostariadeveracessvelaumpblicomaisamplo.

    Mas a paz no durar muito. Logo aps o trmino da redao do Livrinho, manifestase

    uma esclerose lateral amiotrfica, a qual conduzir rapidamente a uma paralisia cmpleta. A

    partir do vero de 1922, o filsofo no deixar mais a casa em outubro do mesmo ano, passa a

    Rudolf Hallo a direo da Casa de Estudos. A partir de dezembro, no consegue mais escrever

    e,emmaiode1923,perdeacapacidadedefalar.

    apenas com o apoio incansvel de sua mulher e de seus amigos prximos e distantes

    queagrandeenergiadeseuespritopdesedesdobrar.

    Nosprimeirosanos,aindaconseguia,deformaextremamenterdua,escreverletrasisoladasemumamquinaespecialmenteconstrudalogodepois,tambmessacapacidadefoiperdida.SuamulherEdithmostravaaRosenzweig,emumquadro,asletrasdoalfabeto,umadepoisdaoutra,eeledesignava,atravsdeummovimentodasplpebras,qualletradeveriaserlevadaaopapel.Eusei,dificilmenteconcebvel,mas,dessaforma,conseguiuRosenzweigparticipardeconversasetrazertona,ainda,umaconsidervelproduoliterria.

    Rosenzweig retorna atividade literria cartas, artigos (entre os quais o famoso Das

    neue Denken) em 1923 e 1924, tambm tradues do poeta Jehuda Halevi (10831140). A

    partir de 1924, tem ainda energias para iniciar, com Martin Buber, a famosa Verdeutschung der

    Schrift (Alemanizao da Escritura), trabalho que se prolongar at pouco antes de sua morte,

    ocorrida alguns dias antes de seu quadragsimo terceiro aniversrio, a 10 de dezembro de

    1929.

    Extinguiase, assim, prematuramente, a voz ativa de um dos mais vigorosos espritos da

    entrada do presente sculo. O filsofo no pde acompanhar o ressoar de sua obra como um

    todo mesmo no caso daEstrela, no se pode dizer que tenha podido perceber claramente um

    acolhimento considervel de suas produes e isso em crculos bastante restritos de leitores

  • quanto mais no fosse pelo clima que se estabelecia de forma cada vez mais inequvoca na

    Alemanha de ento o que parece ter sido pressentido pelo autor j em 1916, quando disse:

    Meu verdadeiro (eigentliches) livro (ir) aparecer somente como opusposthumum [...], eu no

    poderei defendlo nem vivenciar seu efeito (Wirkung). O essencial de seu trabalho mergulha,

    ento, no olvido forado e no desconhecimento de um crculo mais amplo de leitores, at o

    renascimentodointeresse,emritmocrescente,emboradeformalenta,apsaguerra.

    Sua obra que o inscreve definitivamente na constelao dos pensadores mais

    importantes deste sculo um imenso e ainda demasiadamente pouco explorado legado ao

    futuro.

    Aintuiooriginal

    Apsela(afilosofia)haverrecolhidotudoemsi[...]oserhumanodescobre

    subitamentequeele[...]aindaestaqui[...].eu,pecinzas,euaindaestouaqui.

    Em resposta oferta prvia de Friedrich Meinecke no sentido de uma habilitao

    Universidade de Berlim, escrevia Franz Rosenzweig em 1919: Para mim, no qualquer

    questo que digna de ser questionada. A curiosidade cientfica, como a esttica [...] no mais

    me contentam (fllen) hoje em dia. Eu questiono apenas l onde eu sou questionado. Por

    pessoassouquestionado,noporsbios,nopelacincia.

    No fim desde sculo conturbado, neste fimdesculo em que as essncias tendem a se

    esvanecer em imagens fugazes da abstrao, atropeladas pela facticidade frentica e pelas

    energias do movimento e da velocidade, cumpre certamente Filosofia a reconsiderao

    radical exatamente do essencial. Essa a condio de sua sobrevivncia, mas no apenas

    condio de sobrevivncia dela, a Filosofia, mas, antes de tudo, o que lhe deu origem, da vida e

    do ser humano como intrprete da existncia vida, existncia e humanidade ameaadas por

    aquilo que se poderia chamar de o grande paradoxo da falsa finitude. Esse paradoxo se

    compreende a partir da percepo de que se vive e sobrevive em um mundo que age como se

    fosse infinito e dispusesse de infinitos recursos quando, na verdade, os limites de seu trofismo

  • e seu correspondente delrio encontramse, h muito, vista de seus olhos. Para uma tradio

    que tudo sacrifica em nome de uma racionalidade especfica coletiva, tais indicativos no so

    sintomas de grande sade antes indicam que a racionalidade exercida provm de outras fontes

    do que daquelas sugeridas pelo otimismo ingnuo a saber, provm de um impulso original de

    totalizao absoluta do Ser forte em sua solido e na obsesso pela resoluo final daquilo que

    se pode chamar e que temos chamado de a frmula original do Ocidente, a frmula de

    equalizao do diferente [x=y] : [x=x]. Os impasses aos quais a humanidade se conduziu, esse

    impulso francamente suicida que simplesmente o resultado de um acmulo constante de

    patologias e de sacrificialismos eternidade de um presente aprisionado em si mesmo

    simbolizam, simplesmente, a antropofagia e a autofagia da solido, da verdade e do Ser

    totalizantes, aquele ser em que os filsofos tm quase sempre hipotecado sua confiana

    ilimitada. No apenas uma cultura que est prestes a desabar, mas todo um paradigma

    civilizatrio poderseia pensar em um paradigma lgicolingstico , de essncia, no fundo,

    atemporal e esttica, que j no se suporta, ou antes, que no mais suportado seja pela mera

    possibilidade de pensar o futuro efetivamente temporalizado, seja pelo externo, pelo diferente,

    pelo irregular, peloNoser, pelo Outro. No o outro ajaezado de exotismos culturalistas, mas

    aquele Outro que tantas correntes de pensamento tanto tm investido no sentido de reduzilo ao

    p, no bastassem todos os esforos da Histria, nesse sentido, pois se trata da mais pura

    expresso dos limites de um mundo completo, mas um mundo completo repetimos que j

    no se suporta sendo esta insuportabilidade sua face presente mais visvel. A alteridade

    dse, fundamentalmente, como subverso do meramente ftico enquanto processo

    eterno,intemporal notemporal de autolegitimao. Possibilidade de subverso completa

    dos tempos autofgicos: inaugurao de um tempo em que a palavra subverso deixar de ser

    perigosa.

    , nesse contexto, que se insere a obra de Franz Rosenzweig. A sua intuio

    fundamental, a intuio que habita cada recndito de seu pensamento nas mais diferentes

    rbitas e campos, a convico de que uma das conseqncias inevitveis da Solido

    enquanto expresso de Verdade, de Mundo, de Ser, o autodevorarse, alimentarse

    finalmente de si mesmo como se alimenta do que no ele. Em outros termos: o bloco da

    Totalidade, habitado pelo Ser enquanto Unidade de Sentido na qual tudo o que diferente acaba

    de uma ou de outra forma finalmente subsumido expressa, no a leitura e a determinao pura

    e simples da realidade como tal, mas apenas uma dessas leituras e no a mais tolerante

  • para com as aspiraes profundas do ser humano. Compreende o Ser no como necessidade

    absoluta, mas como possibilidade e potencialidade radicais desinstalandoo de seu eterno

    presente lgico e o confrontando com sua prpria insuficincia em termos de sntese

    absoluta:eisumatarefagigantescaqueperpassaoconjuntodaobradeRosenzweig.

    Qual , ento, a intuio primeira, aquela que, sempre vista, sustenta em ltima anlise,

    todo o amplo edifcio desse pensamento? Tratase de perceber a possibilidade da deteno do

    processo trfico de unificao das dimenses da realidade ou das diferentes realidades em

    uma realidade nica, congelada pelo sopro definitivo da intemporalidade conceitual, em termos

    lgicos, em seu presente eterno no qual toda a virtualidade do passado e toda a possibilidade

    do futuro se contraem uma realidade, por sua vez, frentica em termos ontolgicos, em seu

    impulso violento e totalizante. Tratase de opor (no atravs de um ato demirgico, mas atravs

    de um extremo esforo de escuta e sntese) razo solitria uma razo para no creditar a ela,

    razo solitria, todas e absolutamente todas as esperanas de chegar ao real. Em contraponto

    razo nica, Rosenzweig descobre uma razo plural ex origine (a pluralidade no se refere a

    fragmentos de uma razo nicadesconstruda ou implodida em seu roar com a Histria: no

    se trata da razo nica que se desarticula em microrrazes individuais e parciais, mas de uma

    pluralidade de razes com igual dignidade e igual antiguidade, constitudas em seu mago

    exatamente como pluralidades). Melhor expresso, de uma verdade que no subsume em si

    toda e qualquer possibilidade de o real ser verdadeiro e sim, antes, encontrase com outra

    verdade ao fim e ao cabo, aps todas as circunvolaes racionais, outra verdade to verdadeira

    quantoelamesma,dando,assim,origemaosentidodoreal.

    A histria do pensamento de Rosenzweig a histria do encontro com essa pluralidade, a

    qual abre racionalidade, atravs do dramtico encontro com a morte enquanto barreira final ao

    trofismo heterofgico da Totalidade, as dimenses reais da temporalidade e da espacialidade

    para alm de um tempo e um espao monolticos e autoreferentes. Pressupe o

    descoplamento radical (e no meramente lgico) entre o ser e o pensar. A teia de seus

    conceitos se constri a partir do desdobramento, em diversas instncias, dessa pluralidade.

    apenas desde a perspectiva originria e originante dessa pluralidade que tal pensamento pode

    ser compreendido se tal intuio original no levada em conta, tornase intil o mergulho na

    enorme e intrincada teia que compe a obra do filsofo de Kassel: a parcializao no substitui

    a multiplicidade, pois essa intuio constituise no corao dessa obra, ainda que assumindo

    asmaisdiversasperspectivasesedesdobrandonosmaisinusitadossentidos.

  • Amorteeaorigemdaexperincia

    A Estrela da redeno (obra principal de Rosenzweig, desdobramento do que ele chama

    de novo pensamento) tem, como ponto de partida, como origem existencial, uma reflexo sobre

    a morte e a incapacidade de a Filosofia nulificla enquanto experincia radical, irredutvel de

    cada vivente. Por mais que o idealismo reduza a morte a um conceito, ao fim e ao termo todo

    mortal est sozinho e, nesse contexto existencial , a morte no oferece por si mesma, a

    cada um que morre para si mesmo, na circunscrio estrita de sua solido, nenhum tipo de

    sentido. Ali, toda filosofia cessa seu otimismo por mais que os sistemas sejam

    bemconstrudos, exatamente nesse ponto extremo, no que diz respeito a cada um, o ser

    humano deve viver com o medo inato quilo que terreno (irdisch) ele deve permanecer no

    temordamorte.

    Mas uma filosofia ao contrrio est to distante da experincia real da morte quanto as

    construes idealizantes pois, relembrese, ao fim das contas , a morte verdadeiramente

    no o que parece, no Nada, mas sim, um inexorvel [...] algo pois o Nada no nada,

    Algo, e esse Nada est j contaminado de Ser, trai a si mesmo em sua prpria promulgao.

    Talvez fosse cmodo, para alguma filosofia, remeter o inapreensvel por ela a essa categoria

    que, quanto mais fosse preenchida, mais vazia restaria: nada mas a experincia irredutvel da

    prpria morte tira do pensador a possibilidade de se subsumir nessa categoria vazia,

    exatamente porque essa categoria no vazia, mas algo. No algo meramente concebvel

    intelectualmente, mas que o pensamento ainda no esgotou: sinal de realidade, pertinncia ao

    fundamentodorealnamedidaemqueno,meramente,irreal.

    E, em sendo real, em sendo Algo, algo diferente do Nada, como algo diferente da

    Filosofia e do filsofo. E algo em multiplicidade, e no sntese de muitos algos no passado

    obscuro do mundo permanecem, como fundamento inesgotvel (da realidade) deste mundo,

    milhares de mortes, em vez de um Nada que nada fosse, milhares de Nadas (Nichtse) que,

    exatamenteporseremmuitos,soAlgo.

    precisamente essa multiplicidade original, dinmica, mutante, assustadora do real, de

    Algo, que prova a incompetncia de um pensamento que pretenda chegar, por alguma forma de

    sntese conceitual, ao conhecimento do Todo, pois nesse Todo faltaria ao menos algo, esse

  • Algo em multiplicidade em que a morte multiplicadamente experenciada, real, verdadeiramente

    se constitui. Algo , assim, capaz de reduzir o Idealismo e qualquer outro sistema totalizante

    da realidade s suas reais dimenses, ou seja, ao desencontro entre sua promulgao de

    Totalidade e sua efetividade que falha enquanto no pode compor esta Totalidade. Tratase

    dafalha bsica de todo sistema fechado e do fulcro onde o filosofar da existncia real

    propriamenteditapodeiniciar.

    Eis a, portanto, a multiplicidade e uma multiplicidade no meramente pensada como

    anterioridade a todo poder de sntese que possa ser realizado a posteriori por qualquer filosofia:

    primeiro anncio da irredutibilidade da Alteridade razo que a pensa. E a conseqncia prtica

    desse fato ao pensar: se a morte algo, nenhuma filosofia pode, com a desculpa que ela

    nada, desviar dela sua ateno. Se existe a Alteridade que inicia exatamente onde o

    pensamento acaba, ou seja, exatamente na fronteira do racional e no anncio do fticoreal,

    ento que esse fato seja, ao menos, levado a srio pela Filosofia pois suficiente que

    apenas uma realidade seja descoberta em sua condio de anterioridade com relao ao

    pensamento , para que o postulado de totalidade de cada filosofia seja colocado em questo.

    Quando o pensamento no ocupa mais o primeiro, mas sim, o segundo lugar na ordem da

    existncia,entonosedeixamaispostularaunidadedotodo.

    O que est sendo ento proposto por Rosenzweig se o quiser, em nveis profundamente

    especulativos e em consonncia com o clima filosficocultural caracterstico de sua poca

    histrica a desarticulao do sonho ancestral monistaidealistade identificao do Pensar

    com o Ser, fundamento de toda Totalidade pensada e expresso mais tradicional da potncia

    filosfica do passado desarticulao esta que se prope, em ltima anlise, atravs da

    intromisso, como se ver, imponderabilidade humana no jogo de ponderveis inteligveis que

    constituiaestruturabsicadossistemasfilosficostradicionais.

    Mas como se processa positivamente essa desarticulao? Que dimenso de realidade

    poderia vir a sustentar o impondervel sem retornar a um nvel prracional de compreenso do

    real?

  • Otempoeonovo:atemporalidadecomofundamentoradicaldaexperinciadoreal

    Precisardetemposignifica:nadapoderdispensarterdeesperarportudo,ser,comoPrprio,

    dependentedooutro

    nesse contexto que a famosa citao tem lugar: No se passa no tempo o que

    acontece, mas o tempo mesmo que acontece (Nicht in ihr geschieht, was geschieht, sondern

    sie, sie selber geschieht). (Grifo nosso). E o tempo prenhe de novidade, e no se entrega aos

    convites da intemporalidade idntica a si mesma. O novo pensamento aquele que leva

    realmenteasrioatemporalidadedoreal.

    Assim, para Rosenzweig, se por exemplo a Filosofia antiga prope a alternativa

    DeterminismoIndeterminismo, a nova segue o caminho que, levando em conta os

    condicionamentos do carter dos motivos, desemboca em momento luminoso: a escolha em

    um Dever (Mssen) alm de toda liberdade e que ultrapassa as oscilaes da alternativa

    original (que reduz o ser humano a uma mera parcela do Mundo, ou a um Deus disfarado) pela

    intensidade da facticidade real do momento em que tal se d e exatamente como se d, sem

    novas teorizaes e sem a possibilidade de uma postergao. o tempo, o temporalizarse, o

    amadurecer, aculminncia do instante que conduz o processo, e no sua paralisao

    essencial a temporalidade Zeitigung que circunscreve e fundamenta as atitudes, e no

    suaexplanaoterica.

    Essa filosofia feita decorrer consciente da temporalidade, essa transformao do sadio

    entendimento humano em mtodo do pensamento cientfico, opese, enquanto modelo,

    Filosofia antiga enquanto esta se constitui em uma filosofia da admirao (Staunen), aquela

    filosofia em que admirao significa quedarseparado, paralisarse (de admirao) (Stillstehen),

    ao tempo em que se aferra a alguma coisa e no mais gostaria de livrla enquanto no a

    contivesse totalmente. O filsofo do novo pensamento age de outra forma: ele pode esperar,

  • ele pode continuar a viver, no tem nenhuma idia fixa, pois sabe que, com o tempo, chega o

    verdadeiro (kommt Zeit, kommt Rat), (ditado alemo). Essa filosofia , em proximidade com

    Goethe,acompreensonotempocerto.

    Pois o Novo Pensamento sabe, to bem como o mais sadio e elementar conhecimento

    humano, que nada pode vir a conhecer fora do tempo, ou seja, independentemente da realidade

    temporal,

    [...]oqueseria,paraaFilosofiaatagora,omaisaltottulodehonra.Poisassimcomonosepodeiniciarumaconversapeloseufimouumaguerraporumatratadodepaz[...]ouavidacomamorte,mas,antes,necessrioque,pormaiscustosoqueissoseja,aprenderaesperaromomentocertosemignorarnenhummomento,assimtambmoconhecimento,emcadainstante,ligadoexatamenteaestemomentoenopodefazerdesaparecernemseupassado,nemseufuturo[...].Istovlidoparaodiaadia[...]cadaumsabeque,paraummdicoquetratadealgum,otratamentoopresente,adoena,opassadoeconstataodamorte,ofuturo,esabetambmqueomdiconopode[...]desassociardodiagnsticooconhecimentoeaexperincia,daterapia,acoragemeahabilidadeedoprognstico,otemoreaesperana.

    Chegase, dessa forma, dimenso de profundidade da realidade que se apresenta ao

    presente. Desta forma, to inconfundveis, so os tempos da realidade. Assim como cada

    acontecimento isolado tem seu presente, seu passado, seu futuro, sem os quais ele no pode

    ser reconhecido ou somente o pode ser de forma destorcida, tambm a realidade como um

    todotemseupassadoeseufuturo,umcontnuopassadoeumeternofuturo.

    VIDA

    Ograndepoderdoserhumanoquetudoqueelenecessitaparaserhumanoelejtem

    eletemoinstante.

  • Vse, assim, que a obra de Rosenzweig tem como nascedouro a superao do

    Idealismo, o que a aproxima, da uma forma ou de outra (e no apenas linearmente, no sentido

    de uma pretensa herana intelectual), daquelas de Kierkegaard, Nietzsche, Schopenhauer,

    entre outros. Mas suas caractersticas principais so afeitas a uma desinstalao mais

    contempornea (poderseia at arriscar a dizer: espantosamente contempornea) e que leva

    em conta, alm da desarticulao do sentido de um determinado sistema idealista, seja ele qual

    for, a percepo da ruptura irreparvel da idia de unidade de sentido que habita qualquer

    construo puramente intelectual e que poderia, ainda que teoricamente, vir a sustentar a

    univocidade de conceitos intelectuais enquanto ns, de uma teia apesar de tudo ainda

    reconhecvel como inequvoca e autoreferente, buscamos uma ruptura que constitui a

    essncia da possibilidade de pensar a verdade comodiversidade, mas diversidade, pluralidade

    original,anterioraindaunidadesintticadologosemsuadinmicadeidentificao.

    Porm, essa verdade plural, tripartida, desfusionada de uma unidade de sentido, essa

    pluralidade original que d origem a todo pensamento, permanece ainda excessivamente

    terica para o correr real da temporalidade em seu acontecer tratase, meramente, de uma

    referncia, de um ponto de partida, e no de um ponto de chegada da reflexo, pois a reflexo,

    propriamente dita, nem ao menos comeou: iniciar apenas no momento em que o tempo a

    invadir definitivamente no momento em que se fizer temporalidade propriamente dita, sem

    coagulao no presente da sntese e nenhuma essncia nenhuma esttica determinao de

    Serpermanecernelamesma,aferradasuasolidoautoreferente.

    Como fica, agora, a questo primordial da Verdade psreflexiva, e no do pensamento,

    da multiplicidade e no da inequivocidade de uma essncia? Obviamente, como j evidenciado,

    no meramente no mbito de uma determinada e gloriosa descoberta de algo anteriormente

    velado, oculto aos poderes do intelecto, nem no sentido de uma adequao de um mundo a um

    intelecto ou de um intelecto ao mundo. Essas formas de conceber a questo da verdade, alm

    de serem irremedivel e dolorosamente solitrias, pretendem ter paralisado o tempo em seu

    xtase essencial e definitivo, pertencem ao mbito do pensamento e de sua lgica, de seu

    encontro sempre reiterado consigo mesmo. No servem ao ser humano experencial, plural, a

    servio da linguagem e do encontro, levado de instante a instante a se reencontrar e a se perder

    de seu presente para um maisalm no tempo para este, o tempo chega ao tempo certo. Ele

    no necessita aguardar at que a verdade seja alada desde profundos fundamentos. Ela se d

    de forma prxima e ampla, sua frente, em sua boca e em seu corao, e d s suas mos a

  • oportunidade de construla. Em suma, para Rosenzweig, a verdade uma questo

    fundamentalmente tica, da prxis tica construtora da realidade enquanto essa prxis tica

    tem como definio, justamente, a construo compartilhada do futuro. Todo o resto, todo o

    sentido do humano desemboca nessa necessidade as etapas anteriores no so seno

    esteios para que tal idia se torne realmente inteligvel e transborde dela mesma, inaugurando o

    processodeconstruodosentido.

    Rosenzweig, morto sem ver a maior crise do sculo e o desabar de infinitas crenas

    (embora as antevendo, certamente), prope uma estrutura de superao no s do status de

    desesperana que se lhe seguiu e que, de certa forma, ainda o nosso, mas, tambm, de todo

    luto e nusea que invadem o ser que se descobre finito e que nessa finitude, permanece fixado,

    sem perceber que ela , justamente, uma condio fundamental para a construo do sentido.

    Prope, pelo assumir da realidade funcional da tica (pluralidade ativa, convivncia de tempos

    diversos), o impedir da deteno do tempo na tautologia e na violncia pela crena na vida,

    arriscar os instantes finitos e preciosos que acontecem quando a linguagem inaugurada e a

    multiplicidade vivificada pelo assumir real do encontro na temporalidade reconduz a vida

    compartilhada condio de esteio mximo do real: Mas para onde abrese a porta? Tu no

    sabes?vida.