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SABINO, Fernando - Deixa o Alfredo Falar

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DO AUTOR

OS GRILOS NÃO CANTAM MAIS, contos, 1941; 3ª ed., 1984. A MARCA, novela, 1944; 3ª ed., 1984. A CIDADE VAZIA, crônicas e histórias de Nova York, 1950; 8ª ed., 1984,

acrescida deMedo em Nova York, 1979. A VIDA REAL, novelas, 1952; 8ª edição, 1984.LUGARES-COMUNS, dicionário, 1952; 3ª ed., 1984.O ENCONTRO MARCADO, romance, 1956; 46ª edição, 1985. Editora Livro do

Brasil, Portugal, 1959. J.P. Bachem Verlag, Alemanha, 1962. DuFontein,Holanda, 1963. Luis de Caralt Editor, Espanha, 1964. Souvenir Press,

Inglaterra, 1967. Panther Books, Inglaterra, 1968. O HOMEM NU, contos e crônicas, 1960; Círculo do Livro, 1978; 25ª edição,

1985. A MULHER DO VIZINHO, crônicas, 1962; 14ª edição, 1984. A COMPANHEIRA DE VIAGEM, contos e crônicas, 1965; Círculo do Livro,

1977; 8ª edição, 1984. A INGLESA DESLUMBRADA, crônicas e histórias da Inglaterra e do Brasil,

1967; 9ª edição, 1984. GENTE I e GENTE II, crônicas e reminiscências, 1975.DEIXA O ALFREDO FALAR!, crônicas e histórias curtas, 1976; 11ª edição,

1985. O ENCONTRO DAS ÁGUAS, crônica irreverente de uma cidade tropical, 1977;

4ª edição, 1984. GENTE, crônicas e reminiscência, 1979; 3ª ed., 1984.

O GRANDE MENTECAPTO, romance, 1979; 24ª edição, 1985. A FALTA QUE ELA ME FAZ, contos e crônicas, 1980; 13ª edição, 1985. O MENINO NO ESPELHO, romance, 1982. Edição especial, limitada e fora

do comércio para MPM Propaganda, 1982.O MENINO NO ESPELHO, romance, 1982; 19ª edição, 1985.O GATO SOU EU, contos e crônicas, 1983; 14ª edição, 1984.MACACOS ME MORDAM, contos infantil, 1984 (coleção Abre-te Sésamo)

A FACA DE DOIS GUMES, novelas, 1985; 5ª edição, 1985.

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FERNANDO SABINO

DEIXA O ALFREDO FALAR!

11ª EDIÇÃO

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Capa:Gian Calvi

FICHA CATALOGRÁFICA(Preparada pelo Centro de Catalogação-na-fonte

do Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ)

Sabino, Fernando, 1923S121d Deixa o Alfredo Falar! Rio de Janeiro, Record. 11ª edição. 1985. 215p.

21cm.1. Crônicas brasileiras. 1. Título.

76-0385 CDD — 869.93CDU — 869.(81)-94

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DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S.A.Rua Argentina 171 — 20921 Rio de Janeiro, RJ — Tel.: 580-3668

Proibida reprodução integral ou parcial em livro dequalquer espécie ou outra forma de publicação sem

autorização expressa do autor.

Copyright © 1976 by Fernando SabinoImpresso no Brasil

PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTALCaixa Postal 23.052 — Rio de Janeiro, RJ — 20922

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CCCCCCCC OOOOOOOO NNNNNNNN TTTTTTTT RRRRRRRR AAAAAAAA CCCCCCCC AAAAAAAA PPPPPPPP AAAAAAAA

Iniciando-se ainda na adolescência com um livro de contos, Fernando Sabinochamou a atenção para o seu nome em 1944 com uma novela, A Marca . Em 1948,

voltando dos Estados Unidos, onde viveu cerca de 3 anos, fez sucesso com um livro decrônicas, A Cidade Vazia . Em 1952 publicou um livro de novelas, A Vida Real , ondeexercita a sua técnica em novas experiências literárias. ComO Encontro Marcado, seuprimeiro romance, em 1956 o escritor mineiro abriu à sua carreira um caminho novodentro da literatura nacional. Os livros de contos, crônicas e histórias curtas que sesucederam,O Homem Nu (1960), A Mulher do Vizinho (1962), A Companheira de Viagem (1965), A Inglesa Deslumbrada (1967),Gente I e II (1975),Deixa o Alfredo Falar! (1976) eO

Encontro das Águas (1977) vieram reafirmar as suas qualidades de prosador, capaz deexplorar com fino senso de humor o lado pitoresco ou poético do dia-a-dia, colhendode fatos cotidianos e personagens obscuros, verdadeiras lições de vida, graça e beleza.Em 1979 publicou seu segundo romance,O Grande Mentecapto, que imediatamenteconquistou verdadeira consagração nacional, aclamado pela crítica e pelo público.Lançou ainda novo livro de crônicas e pequenas histórias em 1981, A Falta que Ela meFaz . No fim de 1982 publicou seu terceiro romance , O Menino no Espelho, com

ilustrações de Carlos Scliar, que logo ultrapassou a casa dos 100.000 exemplares. Em1983 publicou com igual sucesso a coletânea de crônicas e históriasO Gato Sou Eu . Em1985 provocou verdadeiro impacto com o seu surpreendente livro A Faca de DoisGumes, uma trilogia de amor, intriga e mistério.

OOOOOOOO RRRRRRRR EEEEEEEE LLLLLLLL HHHHHHHH AAAAAAAA SSSSSSSS DDDDDDDD OOOOOOOO LLLLLLLL IIIIIIIIVVVVVVVV RRRRRRRR OOOOOOOO

DEIXA O ALFREDO FALAR! Fernando Sabino melhor do que nunca: leve, divertido, irônico, mas , acima de

tudo, descobrindo a verdade das pessoas e das coisas que acontecem todos os dias eque poucos sabem perceber.

Um anjo que pede carona. O mistério entre dois retratos. A rainha e o crioulodoido. Os que têm medo de avião e os que fingem não ter.

O mundo das gafes, distrações, esquecimentos e equívocos em que se mete o

autor.Um consultório sentimental à porta da cozinha. Como deixar de ser fumante sem

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deixar de fumar. A arte de ser inglês, a arte de bater papo e a arte de beber.Um marido que não voltou, oshippiesque estão voltando, o filho que nascerá no

Natal. Assalto no meio da noite, fantasmas em Minas, sangue de touro em Madri.Uma mulher completamente vestida, um cineasta improvisado, caretas do autor

ao espelho fazendo autocrítica.Estas e outras histórias, reminiscências, casos e episódios da vida cotidiana: um

gênero de crônica hoje identificado com Fernando Sabino, que dele se tornou ummestre.

Obras de Fernando Sabino • Cidade Vazia• A Vida Real• Lugares-Comuns• O Encontro Marcado• O Homem Nu• A Companheira de Viagem

• Gente• Deixa o Alfredo Falar!• O Encontro das Águas• O Grande Mentecapto• A Falta que Ela me Faz• O Menino no Espelho• O Gato Sou Eu• A Faca de Dois Gumes• As Melhores Histórias• A Mulher do Vizinho• Macacos me Mordam

(Coleção Infantil “Abre-te Sésamo”)

Foto do Autor: Márcia Ramalho

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ÍNDICE

O ENVIADO DE DEUS / 9O RETRATO / 11

UM POUCO DISTRAÍDO / 13O FALSO CORONEL / 15

CONVERSA DE BOTEQUIM / 17

DEIXA O ALFREDO FALAR! / 19 VALENTIA / 22

O RÁDIO, ESSE MISTÉRIO / 24 A ÚLTIMA VIAGEM / 26

NAS ASAS DO MEDO / 28 AO BOM BEBEDOR MEIA GARRAFA BASTA / 30

A IRONIA DO DESTINO / 34

OCASIÕES DE FICAR CALADO / 36ROTEIRO DE HONG-KONG / 38

O DIAMANTE / 40EM LONDRES, COMO OS INGLESES / 42

AFLIÇÕES DE UM NOIVO / 52COM O MUNDO NAS MÃOS / 54

SEM TIRAR PATENTE / 56

MAIS INVENÇÕES / 58FUMAR SEM SER FUMANTE / 61

PELA ESCADA / 65COMO MELHORAR A MEMÓRIA/ 68

A SELVA DO ASFALTO / 70O IMPROVÁVEL RETORNO / 72

A MULHER VESTIDA / 75

A VOLTA DOS HIPPIES / 77 A VINDA DO FILHO / 80

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O RICOCHETE TELEFÔNICO / 82O PREÇO DA ADMISSÃO / 86

VINTE PENOSOS ANOS DEPOIS / 91FANTASMAS DE MINAS / 95

ELEGÂNCIA / 99PRIMEIRO ANDAR / 101

ASSALTO NUMA NOITE DE VERÃO / 104SANGUE DE TOURO EM MADRI / 108

COMÉDIA HUMANA / 110MINHA (IN)EXPERIÊNCIA DE CINEMA / 112

INFRAÇÕES / 119 ANO NOVO / 122

DIANTE DO ESPELHO / 124

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O ENVIADO DE DEUS

FAZIA um dia lindo. O ar ao longo da praia era desses de lavar a alma. O meu fuscadeslizava dócil no asfalto, eu ia para a cidade feliz da vida. Tomara o meu banho, fizeraa barba e, metido além do mais num terno novo, saíra para enfrentar com otimismo aúnica perspectiva sombria naquela manhã de cristal: a da hora marcada no dentista.

Mas eis que o sinal se fecha na Avenida Princesa Isabel e um rapazinho humildese aproxima de meu carro.

— Moço, me dá uma carona até a cidade?O que mais me impressionou foi a espontaneidade com que respondi: — Eu não vou até a cidade, meu filho.Havia no meu tom algo de paternal e compassivo, mas que suficiência na minha

voz! Que segurança no meu destino! Mal tive tempo de olhar o rapazinho e o sinal seabria, o carro arrancava em meio aos outros, a caminho da cidade.

Logo uma voz que não era a minha saltou dentro de mim: — Por que você mentiu? Tentei vagamente justificar-me, alegando ser imprudente, tantos casos de assalto... — Assalto? A esta hora? Neste lugar? Com aquele jeito humilde? Ora, não seja

ridículo.Protestei contra a voz, mandando que se calasse: eu não admitia impertinência. E

nem bem entrara no túnel, já concluía que fizera muito bem, por que diabo ele nãopodia tomar um ônibus? Que fosse pedir a outro, certamente seria atendido.

Mas a voz insistia: eu bem vira pelo espelho retrovisor que alguém mais, atrás demim, também havia recusado, despachando-o com um gesto displicente. Nem aomenos dera uma desculpa qualquer, como eu. Não contaria com ninguém, o pobrediabo. Como os mais afortunados podem ser assim insensíveis! Era óbvio que ele nãodispunha de dinheiro para o ônibus e ficaria ali o dia todo.

E eu no meu carro, de corpo e alma lavada, todo feliz no meu terninho novo.Comecei a aborrecer o terno, já me parecia mesmo ligeiramente apertado. Dentro do

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túnel a voz agora ganhara o eco da própria voz de Deus: — Não custava nada levá-lo.Não, Deus não podia ser tão chato: que importância tinha conceder ou negar uma

simples carona? Ah, sim? Pois então eu ficasse sabendo que aquele era simplesmente o teste, o

Grande Teste da minha existência de homem. Se eu pensava que Deus iria me esperarnuma esquina da vida para me oferecer solenemente numa bandeja a minhaoportunidade de Salvação, eu estava muitíssimo enganado: ali é que Ele decidia o meudestino. Pusera aquele sujeitinho no meu caminho para me submeter à prova definitiva.Era um enviado Seu, e a humildade do pedido fora só para disfarçar — Deus é muitodisfarçado.

Agora o terno novo me apertava, a gravata me estrangulava, e eu seguiadiretamente para as profundas do inferno, deixando lá atrás o último Mensageiro, comoum anjo abandonado. Ao meu lado, no carro, só havia lugar para o demônio.

— Não tem dúvida: aquele cara me estragou o dia — resmunguei, aborrecido,acelerando mais o carro a caminho da cidade.

Quando dei por mim, já em Botafogo, entrava no primeiro retorno à esquerda,sem saber por quê, de volta em direção ao túnel.

Imediatamente me revoltei contra aquela tolice, que apenas me faria perder odentista — o que, aliás, não seria mau. Mas era tarde, e o fluxo do tráfego agora meobrigaria a refazer todo o percurso.

Como explicar-lhe, sem perda de dignidade, que havia mentido e voltara parabuscá-lo? Certamente ele nem estaria mais lá.

Estava. Foi só fazer a volta na praia, e pude vê-lo no mesmo lugar, aindapostulando condução. Detive o carro a seu lado. Justificando meu regresso, gaguejeiuma desculpa qualquer, que ele mal escutou. Aceitou logo a carona que eu lhe oferecia:sentou-se a meu lado como se fosse a coisa mais natural do mundo eu ter voltado parabuscá-lo.

Era mesmo alguém que pedia condução simplesmente porque não tinha dinheiropara o ônibus. Desempregado, ia para a cidade por não saber mais para onde ir — oque já é outra história.

Só não me pareceu que fosse um enviado de Deus: não perdi o dentista e, aindapor cima, Deus houve por bem distinguir-me com um nervo exposto.

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O RETRATO

TANTO reclamaram, que acabei telefonando ao Arnaldo: que diabo de retrato é esseque vocês foram me arranjar? Ele achou graça, disse que não tinha encontrado coisamais recente, mas eu ficasse descansado: ia dar nova busca no arquivo, tratar desubstituí-lo. E sugeriu que eu tirasse outro, acrescentando — o meu bom Arnaldo! —num assomo de otimismo: um retrato novo, porreta!

Porreta que fosse — desde que me deixo seduzir por este belo adjetivo com ar depalavrão: retrato novo é mesmo este aqui, que acompanha regularmente a minhacrônica na revista.

Olho-o pela primeira vez com atenção, num número atrasado. Para falar comfranqueza, podia ser até do Marechal Dutra, eu pouco estaria me incomodando: a caranão tem nada a ver com o que se escreve, quem vê cara não vê coração. Mas a verdadeé que a reclamação dos conhecidos tem cabimento, a minha não é mais esta.

Vejo um jovem de nariz fino e olhar assustado, com ar de quem vai se erguer deum momento para outro e começar a viver. O meu nariz continua fino e cada vez maistorto, talvez de tanto se meter onde não é chamado. Mas a vida já não assusta os olhosde quem dela recebeu mais do que esperava.

É fotografia tirada há bem uns vinte anos, daí para mais. Em vinte anos muitaágua correu debaixo da ponte. Mudei de casa, de hábitos, de profissão e de mulher.Continuei escrevendo, mas não escrevi o que devia. Ganhei e perdi tempo, amigos eilusões. (Mais um pouco e sairia para uma letra de samba.) No entanto, tudo bempensado e medido, nada me aconteceu.

A esta altura paro, e o leitor comigo, para me perguntar: a que vem esta conversa?Estamos habituados, um escrevendo e outro lendo, a casos pitorescos ou triviais,colhidos na vida cotidiana. Onde está o caso de hoje, a propósito ou não de velhasfotografias?

Pois aqui vai ele:Era um fotógrafo de rua, desses que fingem fotografar e, depois de aceito e pago

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o talão, saem correndo para bater a chapa. Estávamos na Avenida Rio Branco, era detarde, meu amigo e eu resolvemos documentar o acontecimento de sermos amigos eestarmos juntos numa tarde qualquer, na Avenida Rio Branco. Dois anos depois, nãodigo que o mesmo fotógrafo, mas na mesma Avenida Rio Branco, e em companhia domesmo amigo, sou de novo fotografado. Não haveria nada de especial no fato determos aceitado esta nova fotografia de rua, se não me ocorresse um dia compará-lacom a anterior. Éramos praticamente os mesmos dois amigos — dois anos não haviamfeito em nós grande estrago. Mas, para meu assombro, um sujeitinho baixo, magro e debigode, que numa das fotos nos seguia na rua a poucos passos, era também o mesmoque na outra caminhava atrás de nós.

A coincidência era impressionante. Mas o que me perturbou mesmo foi a suspeitade estar sendo seguido pelo tal sujeito, já que ele não poderia ter ficado andando à toapela Avenida Rio Branco durante dois anos. Neste caso, teria de aceitar a sugestão doBorjalo, a quem contei o caso, de tratar-se de um tira de polícia ou outra espéciequalquer de malfeitor; um anjo-da-guarda de bigode era coisa que eu não podia admitir.

A mesma sensação me vem agora, ao olhar este retrato que encima a minhacrônica, por exigências de moderna paginação. Estou sendo seguido. Este jovem mepersegue. Já foi flagrado mais de uma vez, caminhando atrás de mim. Não sou eu, maseu fui assim. E cheguei quase a ficar assim! Nem graças ao elixir de inhame eu hoje seriaassim. O Arnaldo prometeu arranjar outra mais recente no arquivo. Como escrevo comuma semana de antecedência, não sei se já fui atendido. Espero que tenha encontradouma bem porreta.

Mas espero também que ao morrer, queira Deus que velho, bem velho — se o talsujeito que me segue não tiver antes dado cabo de mim — possa dizer, olhando oretrato deste jovem num recorte antigo, entre meus guardados: nada me aconteceu; emtudo que ele acreditava eu continuo acreditando.

E senti-lo morrer comigo, só então senti-lo morrer dentro de mim.

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UM POUCO DISTRAÍDO

ANDO um pouco distraído, ultimamente. Alguns amigos mais velhos sorriem,complacentes, e dizem que é isso mesmo, costuma acontecer com a idade, não édistração: é memória fraca mesmo, insuficiência de fosfato.

O diabo é que me lembro cada vez mais de coisas que deveria esquecer: dadosinúteis, nomes sem significado, frases idiotas, circunstâncias ridículas, detalhes semimportância. Em compensação, troco o nome das pessoas, confundo fisionomias,ignoro conhecidos, cumprimento desafetos. Nunca sei onde largo objetos de uso e cadasaída minha de casa representa meia hora de atraso em aflitiva procura: quede minhaschaves? meus cigarros? meu isqueiro? minha caneta?

Estou convencido de que tais objetos, embora inanimados, têm um pacto secretocom o demônio, para me atormentar:eles se escondem.

Recentemente descobri a maneira infalível de derrotá-los. Ainda há pouco quisacender um cigarro, dei por falta do isqueiro. Em vez de procurá-lo freneticamente,como já fiz tantas vezes, abrindo e fechando gavetas, revirando a casa feito doido, paraacabar plantado no meio da sala apalpando os bolsos vazios como um tarado, levantei-me com naturalidade sem olhar para lugar nenhum e fui olimpicamente à cozinhaapanhar uma caixa de fósforos.

Ao voltar — eu sabia! — dei com o bichinho ali mesmo, na ponta da mesa, bemdiante do meu nariz, a olhar-me desapontado. Tenho a certeza de que ele saiu de seuesconderijo para me espiar.

Até agora estou vencendo: quando eles se escondem, saio de casa sem chaves ebato na porta ao voltar; compro outro maço de cigarros na esquina, uma nova caneta,mais um par de óculos escuros; e não telefono para ninguém até que minha cadernetaresolva aparecer. É uma guerra sem tréguas, mas hei de sair vitorioso.

Daí para me considerar um distraído, vai um grande passo. Esse passo quase deioutro dia, ao abrir a porta do quarto e ganhar calmamente o corredor. A empregada meolhava espavorida, mas logo pude considerar justificável a sua estranha reação, dado

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que me esquecera de vestir as calças. Alarmado, confidenciei a um amigo este e outros pequenos lapsos que me têm

ocorrido, mas ele me consolou de pronto, contando as distrações de um tio seu, pertodo qual não passo de mero principiante.

Trata-se de um desses que põem o guarda-chuva na cama e se dependuram nocabide, como manda a anedota. Já saiu à rua com o chapéu da esposa na cabeça. Jácumprimentou o trocador do ônibus quando este lhe estendeu a mão para cobrar apassagem. Já deu parabéns à viúva na hora do velório do marido. Certa noite,recebendo em sua casa uma visita de cerimônia, despertou de um rápido cochilo e seergueu logo, dizendo para sua mulher: “Vamos, meu bem, que já está ficando tarde.” Ocontrário se deu quando, recentemente, errou de porta e entrou em casa alheia, estirou-se na poltrona, abriu o jornal e tirou os sapatos, estranhando a empregada que o olhavaestupefata: “Empregada nova, hein? Avise à patroa que já cheguei. E traga meuschinelos.”

Contou-me ainda o sobrinho do monstro que sair com um sapato diferente emcada pé, tomar ônibus errado, esquecer dinheiro em casa, são coisas que ele faz quasetodos os dias. A mulher fica aflita, temendo que um dia ele esqueça definitivamente ocaminho de casa. Perde, em média, um par de óculos por semana e nunca trouxe de volta o mesmo guarda-chuva com que saiu. Já lhe aconteceu tanto se esquecer dealmoçar como almoçar duas vezes. Outro dia arranjou para o sobrinho um empregonum escritório de advocacia, para que fosse praticando, enquanto estudante.

— Você sabe — me conta o sobrinho: — O que eu estudo é medicina...Não, eu não sabia: para dizer a verdade, só agora o estava identificando. Mas não

passei recibo — faz parte de minha nova estratégia, para não acabar como o tio dele:dar o dito por não dito, não falar mais no assunto, acender um cigarro. É o que fareiagora. Isto é, se achar o cigarro.

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O FALSO CORONEL

SONHEI que ia por uma estrada sob a luz da lua, quando, a uma curva do caminho,dou com um casarão estranho, ares de mal-assombrado. No andar inferior podia-se veratravés das janelas o que se passava lá dentro. A princípio me pareceu a mais desvairadaorgia: corpos semidespidos ou completamente nus que se misturavam numa dançafrenética, ou que rolavam pelo chão, engalfinhados. Logo percebi que eram loucosfuriosos, aprisionados num hospício. Parecia uma visão medonha do próprio inferno. Apavorado, eu já ia tratando de me afastar, quando surge à minha frente um sujeitoenorme, que mais parecia um gorila: olhos dilatados; cabelos revoltos, mãos crispadas,braços estendidos para a frente como se estivesse para se abater sobre mim. Era,certamente, um louco fugido daquele hospício. Antes que ele me agredisse, todavia,ocorreu-me a idéia salvadora:

— Enquadre-se! — ordenei, numa voz de comando que não admitia vacilações: — Apresente-se ao comandante de sua unidade!

O louco imediatamente se perfilou, fazendo-me continência: — Pois não, meu coronel.Fiz-lhe também uma continência, já contendo o riso, e o vi dar meia-volta, para

logo se recolher ao hospício de onde fugira. Não resisti mais e abri numa gargalhada. Aessa altura minha mulher me acordou, assustada, perguntando o que se passava, poisme vira fazer dormindo uma continência e depois começar a rir ruidosamente, comoum idiota.

Contei mais tarde o sonho a meu amigo Hélio Pellegrino e pedi que me desse,como psicanalista, uma interpretação. Ele não vacilou:

— Quer dizer simplesmente isto: o doido que existe em você é trazido num verdadeiro regime de disciplina militar, com exercícios de ordem unida e tudo mais. Odiabo vai ser o dia em que ele descobrir que você não é coronel.

O doido que existe em mim. Em todos nós — inclusive no Hélio Pellegrino, noentanto mais sensato e equilibrado que muito coronel. O ser humano ainda não

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conquistou um mínimo de equilíbrio mental que justifique a sua pretensão de civilizado — nem sequer de ser racional, feito à imagem e semelhança de Deus. Perdeu no pecadoa divina condição de sua origem. Perdeu tudo, menos a razão, como na célebredefinição de Chesterton. Não passa de rei dos animais, com desdouro para o leão, nasua autêntica e incontrastável realeza. Basta um olhar ao redor, para nos certificarmosque é tudo tantã — como dizia aquele doido do programa de televisão. O únicohomem equilibrado e perfeito que jamais existiu na face da terra foi Jesus Cristo — eesse, como sensatamente dizia aquele outro doido, olhem só o fim que ele teve.

Basta observar este ser dos mais puros, na flor da sua inocência, que é umacriança. Se a criança é mesmo o pai do homem, então estamos bem servidos, porquemenino e doido é a mesma coisa. Menino fala sozinho, rasga dinheiro, bota fogo nacasa e acha sempre que tem um jacaré debaixo da cama

O pior é que às vezes tem.Pois então deixa eu dizer que o doido que existe em mim é o responsável pelas

emoções mais puras que a vida me deu. Foi ele, este monstro oligofrênico de olhoscintilantes e cabelos desgrenhados, que um dia saltou dentro de mim e gritou basta!num momento em que meu ser civilizado, bem penteado, bem vestido e ponderadodizia sim a uma injustiça. Foi ele quem amou e se apaixonou e possuiu a mulher e lhefez filhos. Foi ele quem sofreu quando jovem a emoção de um desencanto, e chorouquando menino a perda de um brinquedo, debatendo-se na camisa de força com que osmais velhos procuram conter o seu protesto. E é ele que dorme dentro de mim o seusono cheio de pesadelos, pronto a despertar a qualquer momento para reivindicar odireito de ir aonde levem os seus passos e fazer ouvir o som inarticulado de suas pala- vras. Este ser engasgado, contido, subjugado pela ordem iníqua dos racionais é o verdadeiro fulcro da minha verdadeira natureza, é o cerne da minha condição dehomem, herói e pobre-diabo, pária, negro, judeu, santo e débil mental, soldado rasosubmetido ou beneficiado pela hierarquia dos privilégios, escravizado à férrea disciplinadas conveniências, mas que um dia há de rebelar-se, enfim liberto, poderoso na suafragilidade, terrível na pureza da sua loucura ao descobrir enfim que nunca fui nem sereicoronel.

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CONVERSA DE BOTEQUIM

— ESSA rainha da Inglaterra vai acabar entrando pelo cano. — Por quê? — Vir no Brasil uma hora dessas? Pau comendo solto por aí... — Tem polícia pra proteger ela, que é que há? — Polícia? A polícia mesmo é que está baixando o pau, armando bochincho... — Psiu, fala baixo, crioulo. Tá querendo ir em cana? Meu chapa! Solta mais uma,

bem gelada! — Vi o retrato dela na capa duma revista: até que é uma coroa bem apanhada.

Nós vamos tomar mais uma? — Vamos. Te agüenta aí que quem paga sou eu. Hoje estou com o tutu. — O rei também vem? — Que rei? — Marido da rainha. — Tu é mesmo crioulo doido: o marido dela não é rei, é príncipe. — Quem te disse isso? — Vai por mim. — Essa não! Marido de rainha só pode ser rei. Príncipe é filho. — Pois o dela é príncipe. Deixa pra lá, tu não entende disso: é coisa de inglês. — Um cara aí me disse que ela vai inaugurar a ponte Rio—Niterói. — Só se for nadando: a ponte ainda nem começou! — Diz também que ela quer ver o Pelé jogar. — Cariocas e paulistas. Eu tou nessa boca. — A gente devia ter uma também, até que seria bacana. — Uma o quê? — Uma rainha. — Tu tá com essa rainha na cabeça, que é que há? — Por que é que não pode ter?

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— Porque aqui não é reinado, é presidência, só por isso. Essa já não tá tão gelada. — Uma rainha era capaz de consertar essa joça. Pra te falar a verdade... Posso

falar a verdade? — Pode. Mas fala baixo, crioulo, que não tou pra entrar em fria. Olha o doutor aí

na outra mesa ouvindo a gente. Acaba essa e vamos pedir outra mais gelada. — E daí? Tou falando o que todo mundo sabe: que esse país tá uma joça. E tá

mesmo. — Pronto, começou a ignorância. Continua assim, que eu vou puxando. — Só uma rainha pra dar jeito nessa gente, botar respeito. Enquadrar essa polícia,

esses milicos. — Com essa eu me mando. Garotão! Suspende a brama, traz a nota! Tu ainda vai

se dar mal, crioulo. — Pera aí! Não tou falando nada demais. Só tou falando que uma rainha mesmo

de verdade ficava no trono até morrer, todo mundo respeitava ela, não tinha essenegócio de toda hora tirar o presidente e botar outro. Tou certo ou não tou?

— Tu tá é no fogo, olha aí: entornou a lourinha. — No tempo do Getúlio não tinha dessas coisas: Getúlio era feito uma rainha. — Não tinha? E o fim que ele teve? Pára com essa conversa de comunista,

crioulo, que tu ainda vai ver o sol nascer quadrado. A gente já não tivemos rainha?Princesa Isabel, Pedro II, essas coisas? E deu certo? Me diga se deu certo.

— Pede outra cerveja pra gente chulear a conversa. — Então muda de assunto. Pára de falar nessa rainha, que já tá enchendo. — Então no que é que a gente vai falar? — Sei lá. Melhor ficar calado do que ficar falando besteira. — Mas tu concorda que nem conversa boa a gente pode ter mais. — Ah, isso eu concordo. Olha aí, essa tá que é uma beleza de gelada.

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DEIXA O ALFREDO FALAR!

A ARTE brasileira da conversa não é de fácil aprendizado. Como toda arte, exige antesde mais nada uma verdadeira vocação. E essa vocação se aprimora ao longo docaminho que vai da inocência à experiência. Como em toda arte.

Para princípio de conversa, distinga-se: quando falo emconversa,não estou mereferindo à lábia, à astúcia, à solércia do brasileiro no passar a bicaria e vender o seu

peixe. Falo precisamente no bate-papo, erigido numa das mais requintadas instituiçõesnacionais.

Mas por que artebrasileira?Os outros povos acaso não batem papo? A própriaexpressão, brasileiríssima, corresponde em inglês exatamente ao verbo “to chat”, naacepção que lhe dá o dicionário: “to converse in an easy or gossipy manner; talkfamiliarly.” Até os ingleses, meu Deus, os ingleses têm também o seu papo: um deles,na mesa do bar, olha para fora e diz que vai chover; meia hora depois outro diz que não

vai chover; meia hora depois o terceiro se retira dizendo que não gosta de discussão. Afalta de graça desta velha anedota não está em ser velha, mas na finalidade útil que fezmichar o papo. Este não deve ter finalidade alguma, senão a de matar o tempo damelhor maneira possível. É coisa de latino em geral e de brasileiro em particular: fazerda conversa não um meio, mas um fim em si mesmo. Se não me engano, essa é adistância que separa a ciência da arte.

No papo bem batido, a discussão não passa de uma motivação, sem intuito deconvencer ninguém, nem de provar que se tem razão. Os que nela se envolvem devemestar sempre prontos a reconhecer, no íntimo, que poderiam muito bem passar adefender o ponto-de-vista oposto, desde que os que o defendem fizessem o mesmo. Ostemas devem ser de uma apaixonante gratuidade, a ponto de permitir que, nodesenrolar da conversa, de súbito ninguém mais saiba o que se está discutindo. Mesmonas eternas discussões sobre mulher, religião ou futebol, para que se constituam embate-papo, longas digressões hão de ser admitidas, desde que pertinentes.

Esta última observação, aliás, é pertinente ela própria, já que falei em futebol,

quando se trata de papo acalorado como o que batiam aqueles dois amigos, paradosnuma esquina, violando o silêncio da rua adormecida:

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— Se o último jogo do Campeonato fosse do Botafogo contra o Fluminense... — Ora, Alfredo, pra cima de mim! Ia ser de goleada. — Você não me deixou terminar, Dagoberto. Eu queria dizer que o Botafogo...

— Que Botafogo que nada! Com o Vasco diziam a mesma coisa... — Dagoberto, você não me deixa falar! — ... e no entanto ele acabou entrando bem. Essa não, Alfredo. — Não estou falando no Vasco. Eu disse que o Botafogo... — E no ano passado, que foi que o Botafogo fez? Me diga só o que ele fez. — Você não me deixa falar, Dagoberto. — Desde o princípio todo mundo sabia que o Fluminense... — Você não me deixa falar! A essa altura abriu-se uma janela no edifício da esquina e surgiu um indivíduo

estremunhado: — Ô Dagoberto! Deixa o Alfredo falar!

A boa conversa implica sempre em deixar o Alfredo falar. Além disso a discussão,ainda que gratuita, pode exaurir o papo diante de uma impossível opção, como a de

saber qual é o melhor, Tolstoi ou Dostoievski, Corcel ou Opala, Caetano ou Chico. Amenos que ocorra ao discutidor o recurso daquele outro, hábil em conduzir o papo, queteve de se calar quando, no melhor de sua argumentação sobre energia atômica, soubeque estava discutindo com um professor de física nuclear:

— Você é presidencialista ou parlamentarista? — perguntou então. — Presidencialista. — Pois eu sou parlamentarista.E recomeçaram a discutir.Mais ardente praticante do que estes, só mesmo o que um dia se intrometeu na

nossa roda, interrompendo animadíssima conversa: — Posso dar minha opinião? Todos se calaram para ouvi-lo. E ele, muito sério: — Qual é o assunto?Mas percebo que me perdi em discussões, polêmicas, argumentos e desaguisados,

afastando-me do verdadeiro espírito que deve presidir o culto dessa arte. De

preferência, que ela seja praticada apenas a dois — como diz o mineiro, mais de dois écomício. E entre estes dois, bom será que reine amável concordância, para que,

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VALENTIA

ELE entrou num botequim da Rua Barata Ribeiro e pediu à moça atrás do balcão ummisto quente:

— E um suco de laranja — arrematou. — Só temos laranjada — a mulatinha, mirrada e assustadiça, olhou para o vaso de

plástico embaçado onde o líquido amarelo borbulhava gelado: — O senhor quer sucomesmo?

— Se for possível.Ela se dispôs a espremer umas laranjas ali à mão. Em pouco colocava à sua frente

o suco de laranja e o sanduíche. — Muito obrigado. Quanto é? As despesas ali eram pagas antecipadamente na caixa, e os pedidos feitos

mediante a ficha — era o que ele podia observar agora, enquanto comia, reparando oprocedimento dos outros fregueses. A mocinha passou a atender um e outro. Eleacabou de comer, sorveu um último gole do suco de laranja:

— Quanto é? — repetiu, limpando a boca no guardanapo de papel.Ela se deteve diante dele, acabou se voltando para a caixa: — Seu Manuel, quanto é um suco de laranja?O homem fez que não ouviu, ela teve de repetir a pergunta. De súbito ele se

desdobrou por detrás da caixa, e era enorme assim de pé, o peito estufado dentro dacamisa encardida, a gravata de laço frouxo no colarinho desabotoado, o rosto crispadonuma careta de raiva que a barba por fazer ainda mais acentuava:

— Quem lhe deu ordem de fazer suco de laranja?Sua voz carregada de sotaque era tão poderosa e autoritária que se fez no

botequim um respeitoso silêncio, todos os olhares se voltaram. — Esse moço aqui... — balbuciou ela.Suas palavras mal foram ouvidas, logo esmagadas pelas do patrão: — Quem manda aqui sou eu. Ele não podia mandar você fazer coisa nenhuma.

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Pois agora quem vai pagar é você! A mocinha, aterrada, olhou para o freguês. O freguês não olhou para ninguém:

limitou-se a beber o que havia ainda de suco de laranja no fundo do copo e limpar aboca, desta vez com as costas da mão. Ninguém dizia nada, e todos esperavam. Ele se voltou enfim para o homem lá da caixa e perguntou com delicadeza:

— O que foi que o senhor disse?O homem se adiantou um passo em sua direção: — Não se meta nisso. Estou falando com aquela parva.Pequenino, ele parecia um menino ao aproximar-se lentamente da figura

agigantada do outro. O silêncio no botequim agora era pesado e cheio de expectativa.E, estupefatos, todos viram quando o homenzarrão se inclinou, carrancudo, para ouvirmelhor o que o pequenino lhe dizia quase num sussurro :

— Eu vou te matar, seu cachorro ordinário. Aqui. E agora. Eu vou te matar,entendeu? Diga se entendeu.

— Entendi sim senhor — gaguejou o homem, de súbito apavorado, embora ooutro não fizesse o menor gesto ameaçador nem sugerisse possuir nenhuma arma.

— Então diga quanto lhe devo.O homem balbuciou uma quantia qualquer, indo refugiar-se atrás da caixa.

Depois de pagar e guardar calmamente o troco, ele se voltou para a mocinha lá nobalcão, que continuava imóvel como uma estátua:

— Olha, minha filha: eu moro aqui perto e vou passar aqui todos os dias. Se essecafajeste lhe fizer alguma coisa, basta me falar que eu me entendo com ele, está bem?

A mocinha, estarrecida, concordou com a cabeça, o próprio cafajeste quaseconcordou também com a cabeça. O freguês deu-lhe ainda um último olhar e depoissaiu, palitando os dentes com um pau de fósforo.

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O RÁDIO, ESSE MISTÉRIO

MODÉSTIA à parte, também tenho lá a minha experiência de rádio. Quando eramenino, em Belo Horizonte, fui locutor do programa “Gurilândia” da Rádio Guarani.Não me pagavam nada, a Rádio Guarani não passando de pretexto para namorar umamenina que morava nas imediações. Mas ainda assim, bem que eu deitava no ar a minhaeloqüência cheia de efes e erres, como era moda na época. Quase me iniciei nastransmissões esportivas, incitado pelo saudoso Babaró, que era o grande mestre deentão, mas não deu pé: eu não conseguia guardar o nome dos jogadores.

Em compensação, minha irmã Berenice me estimulando a inspiração, usei eabusei do direito de escrever besteiras, mandando crônicas sobre assuntos radiofônicospara a revista “Carioca”. “O Que Pensam os Rádio-ouvintes”, era o nome do concursopermanente. Com o quê, tornei-me entendido em Orlando Silva, Carmem Miranda,César Ladeira, Sílvio Caldas, Bando da Lua, Assis Valente, Ary Barroso, e tudo quantoera cantor, locutor ou compositor de sucesso naquele tempo.

Rádio é mesmo uma coisa misteriosa. Começou fazendo sucesso na sala de visitas, acabou na cozinha. Cedeu lugar à televisão, que já vai pelo mesmo caminho.Ninguém que se preze, além das cozinheiras e dos motoristas de caminhão, temcoragem de se dizer ouvinte de rádio — a não ser de pilha, colado ao ouvido, quandoapanhado na rua em dia de futebol. Mas a verdade é que tem quem ouça. Ainda melembro que Francisco Alves morreu num fim de semana, sem que a notícia de suamorte apanhasse nenhum jornal antes do enterro: bastou ser divulgada pelo rádio, e foiaquela apoteose que se viu.

Todo mundo afirma que jamais ouve rádio, e põe a culpa no vizinho, emborareconhecendo que deve ter uma grande penetração, “principalmente no interior”. Osouvintes, é claro, são sempre os outros.

Mas estou hoje pensando no mistério que é o rádio, porque de repente meocorreu ter vivido uma experiência para cujas conseqüências não encontro a menorexplicação, e que foram as de não ter conseqüência nenhuma.

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Todo mundo sabe que a BBC de Londres é uma das mais poderosas e bemorganizadas estações radiofônicas do mundo. Seus programas para o estrangeiro, pelomenos desde a última guerra, se notabilizaram como o que há de mais completo e efi-ciente. Entre eles, o que é dedicado ao Brasil até parece merecer da famosatransmissora uma atenção especial: são excelentes seus locutores, redatores efuncionários, entre os quais já constaram nomes ilustres, como os de Antonio Callado eCaio de Freitas. Alguns nomes estrangeiros como, pela ordem, os de Tate, Mulholland ePallaus, na realidade brasileiros, pelo menos por adoção, tornaram-se os responsáveispela qualidade das transmissões dedicadas ao nosso pais. E a eles devo a especialdeferência de ter sido convidado para integrar a equipe brasileira da BBC durante minhapermanência em Londres. Ao longo de dois anos e meio, chovesse ou nevasse, fizessefrio ou gelasse, compareci semanalmente aos estúdios do austero edifício da BushHouse em Aldwich, para gravar uma crônica, transmitida toda terça-feira exatamente às8 e 15 da noite, hora de Brasília, ou zero hora e quinze de quarta-feira, conforme o Big-Ben. Eram em torno de dez minutos de texto que eu recitava como Deus é servido,seguro de estar sendo ouvido por todo o Brasil, “principalmente no interior”. Eimaginava minha voz chegando a cada cidade, a cada fazenda, a cada lugarejo perdidona vastidão da pátria amada. Nas próprias capitais, não era difícil escutar na minhaimaginação alguns milhares de ouvintes dizendo “está na hora da crônica do Sabino”, epassando da onda-longa à onda-curta, depois de ter ouvido com unção a “Hora doBrasil”.

Pois bem — e aí está o mistério que me intriga: sei de fonte limpa que osprogramas da BBC têm no Brasil esses milhares de ouvintes. No entanto, nuncaencontrei alguém que me tivesse escutado: nem um comentário, uma palavra, umacarta, ainda que desfavorável — nada. A impressão é de que passei todo esse tempofalando literalmente para o éter, sem que nenhum ouvido humano me escutasse.

Não cheguei a acreditar que os ouvintes, caso eu morresse, acorreriam de todosos lados, como para o enterro de Francisco Alves, nem que, compadecidos, memandassem um dinheirinho, como para a Campanha da Boa Vontade do Zarur. Mascontava ao menos comaquele — ouaquela — ouvinte, para quem uma palavra basta,que dirá dez minutos de falação! E nada. Desiludido, dei por encerrada a minha carreiraradiofônica.

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A ÚLTIMA VIAGEM

ENTÃO, quando fazia a barba, um verso me saltou à cabeça, cortante como a próprialâmina de barbear:

“Acordo para a morte.”Era o poema do Drummond: “Barbeio-me, visto-me, calço-me. É o meu último

dia”...O vôo estava marcado para as duas da tarde, e ainda eram onze da manhã. A

verdade é que até então viajara sempre de avião com o mais leviano destemor.Só que aquele era o meu dia.Fui para a cidade com o Otto. Acabei lhe confiando meu pressentimento: — Você acha que esse avião vai cair?Ele sábia de cor o poema. Como se não bastasse, a primeira pessoa com quem

esbarramos, ali na Esplanada, foi o próprio poeta. Otto lhe expôs sem rodeios o meuproblema:

— Ele vai hoje para Belo Horizonte de avião e está com pressentimento de que oavião vai cair. Você, que entende dessas coisas, que é que acha? Vai cair?

O autor dos macabros versos passou a mão pelo rosto: — Por que não vai de trem?Nada me impediria de ir de trem — era o que eu pensava agora, já caminhando

para o foro, onde trabalhava, para despachar o expediente antes de morrer. Abandonarameus dois amigos numa esquina rindo-se à minha custa — eles que ficariam em terrafirme. Otto chegara mesmo a despedir-se de mim num comovido abraço,recomendando que desse lembranças a Jayme Ovalle. No momento nem me ocorreuque Jayme Ovalle, além de não morar em Belo Horizonte, já havia morrido. Meucoração palpitava de aflição, antecipando a terrível sensação da queda. Ou não sentirianada? Se fosse de trem, evidentemente não.

Mas eu não iria desistir do avião e tomar um trem só por conta de umpressentimento idiota.

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E a lembrança dos tais versos admiráveis (para quem anda com os pés no chão),sempre me perseguindo. Antes de chegar à Rua Dom Manuel eu já formulava umaprece desconexa: que Deus me desse apenas alguma espécie de sinal.

E lá ia eu meio apatetado atravessando a rua, imerso na minha dúvida, quandouma buzina estridente me apanha pelo ouvido levando o pânico à minha alma, mal tivetempo de dar um pulo para trás.

Aturdido, olhei para o caminhão que já se afastava em disparada, e vi. Vi que ele transportava um imenso motor de avião, todo chamuscado, sujo de

terra, a hélice retorcida.Que é que eu queria mais? Só um cego poderia esperar dos céus sinal mais

evidente. No entanto, já instalado à minha mesa, eu via a hora da partida do aviãoaproximar-se e ainda não havia decidido o meu destino em favor do trem. Minha mãotremia ao assinar a papelada, mal conseguia segurar a caneta. Pois então era verdade —e o suor me escorria pela testa: acordara mesmo para a morte. O poeta tinha razão. Ocoração parecia querer sair pela boca: não, eu não desistiria. Que seria de mim dali pordiante, sujeito a obedecer a qualquer premonição cretina - que me passasse pela cabeça?E já me via no trem, pedindo a Deus um sinal de que não haveria nenhumdescarrilamento.

Depois de deixar num envelope, dentro da gaveta, as minhas últimasrecomendações, despedi-me do escrevente com um olhar de condenado. Já noaeroporto, enquanto aguardava a convocação de embarque desta para melhor, acendi omeu último cigarro. Entrei no avião depois de um último olhar de despedida para a baíade Guanabara, o Pão de Açúcar, a Cidade Maravilhosa, o mundo maravilhoso.

Não sei se morri. Sei que foi uma viagem também maravilhosa.

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NAS ASAS DO MEDO

OS HOMENS se dividem em duas espécies: os que têm medo de viajar de avião e osque fingem que não têm.

Sei da existência de quem até goste quando o avião entra numa nuvem e começa ajogar. Mas não me refiro aos doidos. Falo nos que, por mais indiferentes que sejam,guardam no fundo da consciência um resto de sensatez que lhes permite pensar: émuito seguro, não tem perigo nenhum, as estatísticas provam — mas a verdade é quese essa joça cai eu estou perdido.

Num pequeno avião, o sentimento de segurança pode ser completo. Foi o queaconteceu comigo, há pouco tempo, ao viajar num dos táxis aéreos da Líder. Asensação de intimidade com o espaço me dava a certeza de estar mesmo voando:éramos leves, éramos pássaros, as asas nos sustentavam, o milagre de voar era possível.Mas nos gigantescos aviões de carreira, pode a viagem ser perfeita e tranqüila como senem tivéssemos saído do chão: continuará sendo a realização do impossível, que vem aser algo chamado de “vôo do mais pesado que o ar”.

As estatísticas provam. .. Quem acredita haver chegado a sua vez está se danandopara as estatísticas: elas também provam que é insignificante o número dos que morremcomidos por leão, e nem por isso alguém vai se meter numa jaula de leão.

E o avião passa a ser um imenso caixão de alumínio do qual sairemos noaeroporto de destino como ressuscitados. Convém não se distrair durante o vôo, nãopodemos ser apanhados desprevidos. E o olho se desvia do jornal (há sempre umanotícia de desastre aéreo) para os motores lá fora. A hélice girando normalmente nãonos tranqüiliza de todo: se ela se desprega, corta o avião em dois. E aquele barulho desúbito diferente, o piloto terá notado? O motor sendo a jato, tanto pior: como saberque parou, se não há barulho algum?

Aquela vibração esquisita na asa, umas gotinhas de óleo tremendo, só pode ser vazamento. Não é por falar, mas há no ar um cheiro qualquer de queimado, umafumacinha, estará pegando fogo? Este sujeito ali ao lado, cigarro aceso, esquecido do

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cinzeiro, positivamente um irresponsável, não adianta olhá-lo com ódio: vai deixar abrasa cair no chão. De súbito acende-se a aviso: “use cintos”. Pronto, estamos fritos.Inútil o aviso, para quem jamais deixou de usar o cinto momento algum. O piloto acabade chamar o comissário de bordo. Não há de ser para lhe levar um cafezinho, pois odesgraçado fechou a porta atrás de si. Estão lá dentro confabulando, surgiu umproblema qualquer. Agora ele sai e vai de poltrona em poltrona dizendo alguma coisaao ouvido dos passageiros. Nada mais a fazer, chegou a hora.

Millôr Fernandes conta que viajava para Buenos Aires quando ouviu com pavor ocomissário sussurrar a cada um dos passageiros à sua frente: “Estamos caindo no mar.” Ao chegar a sua vez, o homem teve tanta pena, diante de sua fisionomia agoniada, queresolveu mudar a frase e perguntou apenas: “O que o senhor quer tomar?”

Alguns, mais práticos, escolhem invariavelmente as poltronas da cauda, napresunção de que são as únicas com chance de escapar, em caso de desastre —presunção, aliás, bastante sábia, que só não é seguida por todos porque infelizmente umavião não pode ter apenas cauda.

Outros se agarram com força aos braços da poltrona, convencidos de que de suacontribuição pessoal depende a sustentação do monstro no ar. Outros ainda se agarrammas é ao santo de sua devoção e encomendam a alma a Deus. Sei de uma senhora cujaprimeira providência ao instalar-se no avião é retirar da bolsa dois rosários e estenderum ao marido, ordenando:

— Reza pelo motor esquerdo, que eu rezo pelo direito.E o azar? Há os que descrêem da sorte ante mudanças forçadas de horário e

desistem do avião em favor do ônibus ou do trem. E ainda há os que não gostam de ver padres na fila de embarque — o que é uma insensatez, pois lá em cima eles é quetêm prestígio. Outros chegam a afirmar que não se deve nem tocar no assunto, omelhor é confiar em Deus, que ninguém morre de véspera.

Estou com estes: mudemos de assunto, enquanto estamos aqui por baixo, emterra firme. E se alguém acaso me ler a bordo de um avião, em pleno ar, não se assuste:saiba que sou de dar sorte, meu santo é forte — e esta lhe será a melhor garantia deuma excelente viagem.

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AO BOM BEBEDOR MEIA GARRAFA BASTA

A PRIMEIRA vez que provei bebida alcoólica foi aos 11 anos. Estávamos acantonadosnos galpões vazios da antiga Feira de Amostras, ali onde é hoje o Aeroporto SantosDumont. Havia latas de doce vazias, invólucros sem conteúdo, rótulos sem produto —restos da última exposição: nada que satisfizesse a nossa gula. Em companhia de outropivete (que acabaria regenerado tornando-se hoje um competente cirurgião), arrombei ajanela de um galpão que supúnhamos cheio de comedorias, para acabarmos apanhadosem pleno malfeito pelo vigia do lugar. (O que nos valeu um esculacho pouco digno danossa condição de escoteiros.) Até que alguém mais esperto descobriu num desvão daantiga feira um depósito de garrafas cheias.

Cheias de que? Só vim a saber quando vi os mais velhos fazendo correr umagarrafa de mão em mão, e bebendo pequenos goles furtivos entre risinhos de malícia.Fui buscar meu caneco de folha e pedi que me dessem um pouco. Tanto insisti queacabaram se enchendo, e encheram o caneco para se verem livres de mim. Euimaginava que aquilo tivesse o gosto delicioso de alguma soda limonada, groselha ouguaraná. E virei tudo de uma vez só.

Era cachaça pura.Só não morri ali mesmo porque quis Deus me experimentar ao longo da vida,

propiciando-me generosamente outras espécies de bebida. Mas passei a noite delirando,depois de haver vomitado a própria alma até o rabo. Hoje sinto náuseas ao mais levecheiro de cachaça.

Enquanto escrevo, entre um gole e outro de uísque, penso se serei capaz de merevestir da seriedade que o assunto exige. A sabedoria, que faz de beber uma arte, talvezrepouse nos mesmos princípios de proporção, equilíbrio e harmonia que regem asoutras artes. E que estabelecem o primado da qualidade sobre a quantidade. Beba beme viva melhor — seria osloganque eu proporia a uma campanha publicitária de apologia

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da bebida. A essa altura já ouço o leitor abstêmio comentar, indignado: — Apologia da bebida. Esse cretino ousa sugerir publicidade para um dos mais

terríveis males que afligem a humanidade.Ouso sugerir que a humanidade é afligida não pelo álcool, mas pelo alcoolismo. A

arte de bem beber se contrapõe justamente ao vício de beber mal. O álcool em si não ébom nem mau, e existe desde que o homem é homem. Todas as civilizações conhecidasproduziram alguma espécie de bebida alcoólica. O mal não está no que entra no ho-mem, mas no que dele sai, como afirmou Cristo. Ele próprio não consagrou a água, oleite ou a coca-cola: consagrou o pão e o vinho, como alimentos do corpo e do espírito.É preciso respeitar a bebida — não saber beber é que constitui um dos mais terríveismales que afligem a humanidade.

Esta é uma lição que eu gostaria de saber de cor antes de beber e não na manhãseguinte, como geralmente me acontece.

Um cientista sueco, por sinal que Prêmio Nobel, descobriu recentemente umasubstância capaz de neutralizar a toxidez do álcool, impedindo sua metabolização noorganismo, sem impedir seus agradáveis efeitos no cérebro. Esta descoberta terá, emrelação à bebida, o mesmo impacto que a pílula teve em relação ao sexo: agora é que euquero ver o que será da humanidade, bebendo sem parar, e se sentindo fisicamente cada vez melhor.

Aos 15 anos tomei o primeiro grande pileque de minha vida. De gim, que até hojeme sabe a loucura e tem o gosto de conseqüências fatais. Na manhã seguinte fui curarminha ressaca enfrentando a ressaca ainda mais poderosa do mar no Posto Dois. Senão morri de beber na véspera, poderia ter morrido afogado. Mas eu era jovem, e comotodo jovem, imortal.

Até que chegou o momento, com alguns chopes de permeio, de finalmente meiniciar no uísque, a que permaneci fiel. Era um baile no Automóvel Clube, em BeloHorizonte, e o uísque da moda era Old Parr. Tomado com guaraná! Entrei no uísquecomo se fosse refrigerante, e entrei bem. Meu irmão me encontrou em coma alcoólicadebaixo do chuveiro aberto, ainda vestido no elegantedinner-jacketda minha primeirafesta a rigor — rigorosamente ensopado e vomitado.

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Com tantos fracassos sucessivos, não sei como não caí na mais intransigente dasabstinências. É que em pouco surgia a hora da verdade, no grupo de quatro amigos jácomposto para a vida inteira. Encharcados de chope e literatura, enchíamos de desvarioa silenciosa noite de Minas, convertendo a bebida em indispensável combustível denossa rebeldia. Rebeldia contra que? Contra tudo. Tínhamos de beber para justificar aembriaguez da mocidade em que vivíamos.

Deixemos que falem os entendidos — no caso, os mestres Luís Lobo e Leopoldo Adour da Câmara. Assim se expressam eles no seu admirável receituário “A Arte doRabo de Galo”, um “breve discurso em torno de copos e garrafas”:

“Não há motivo para criticar a bebida em razão dos que se embriagam. Comoninguém critica a comida simplesmente porque há gente capaz de comer até morrer deindigestão.”

Falou. Ou melhor, falaram — e está falado: como a comida, assim a bebida, emquantidade razoável, é perfeitamente inofensiva, tendo o efeito de estimular o apetite,ajudar a digestão, relaxar os nervos e tornar a vida mais agradável.

Mas, aqui entre nós, onde ficam os limites do razoável?Não será, certamente, na primeira dose. Esta apenas prepara o caminho para a

segunda. E a segunda dose... Já dizia o prefeito de Rochester a Henrique Savile (doisindivíduos de quem eu nunca ouvira falar, mas competentes, desde que citados pelosautores acima mencionados): “Oh, aquela segunda dose; é o mais sincero, o mais sábio,o mais imparcial amigo nosso; diz a verdade sobre nós mesmos e força-nos a dizer a verdade sobre os outros. Barra a lisonja das nossas bocas e a desconfiança dos nossoscorações; coloca-nos acima da política dos preconceitos de cortesia, os quais nos fazemmentir de dia com receio de sermos traídos à noite.”

E a terceira dose? A partir da terceira dose, reconheço, as coisas se complicam um pouco. Se a

humanidade está atrasada de três uísques, como dizia Humphrey Bogart, ao recuperar oatraso a gente se vê de súbito, copo vazio na mão, ante o dilema de tomar mais um ouse dar por satisfeito com a recuperação. E é aí que intervém a já referida sabedoria dadupla Lobo e da Câmara, afirmando:

“Um bom conselho em relação à quantidade é parar de beber quando sentir que

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dá para beber mais um, porque dois será demais. Este um provavelmente também oserá.”

Por isso é que um velho amigo meu, conhecido pelo hábito de sempre tomarmais um, afirmava outro dia num bar que, de sua parte, jamais passava de três uísques. Ante o protesto geral, insistiu, com a mais cínica das convicções: “Eu só tomo três;depois do terceiro me transformo noutro sujeito, e este sim, bebe como gente grande.”

Fiquemos, pois, no terceiro. Ainda que a contagem varie de bebedor parabebedor, podendo começar a partir do terceiro, ou mesmo ser regressiva, como nolançamento de foguetes.

Por falar em foguetes: e a ressaca? Entendidos de lado, falo de experiênciaprópria: não há cura mais eficiente do que evitá-la. Como se sabe, (ou não se sabe?) —a ressaca começa pelo cigarro fumado. Mesmo pelos que não fumam: quatro horas depermanência num ambiente fechado e cheio de fumaça pode corresponder até a vintecigarros fumados. Há outras causas, é óbvio — a partir da bebida de má qualidade. Éincrível como tantos que se dizem bons bebedores são capazes de aceitar como bebidalegítima as mais grosseiras falsificações. No entanto, um mínimo de atenção e cuidadoao beber seria o suficiente para denunciá-las. O bom uísque, por exemplo, não morde agente: cai bem, sem causar estranheza, sem chamar atenção sobre a língua, redondodentro da boca, sem arestas, sem azinhavre nas bordas, sem largar ferrugem ao longoda garganta, sem deixar gosto de lápis no esôfago, sem levantar poeira no estômago. Obom uísque, enfim, é aquele sobre o qual não resta a menor dúvida.

Falou.

Falei — e não disse. Ao fim de minhas digressões, vejo que não cheguei a sair doprincípio, ou seja, sinto que mal cheguei a entrar no assunto. Agora é tarde: só me restatomar mais um e dar por atingido o meu propósito (ou despropósito, se preferirem) deenaltecer a bebida como fator de bom entendimento entre os homens. Ou, pelo menos,do homem consigo mesmo.

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A IRONIA DO DESTINO

— VAMOS tomar um refresco.Nunca fui muito assíduo às aulas e mal me lembrava dele. Mas já me pegava pelo

braço e me arrastava com intimidade a uma confeitaria, depois de apresentar-me àesposa:

— Ele só aparecia nas provas. Hoje é escritor.Era uma criatura de franja, olhos negros e esquivos, rosto de menina. Na

confeitaria não deu uma palavra, enquanto o marido continuava relembrando umtempo que significava tão pouco para mim:

— E aquela prova de Constitucional?Eu tomava rapidamente o refresco, para abreviar o encontro. — Você não sabia que eu tinha me casado?De repente eu me lembrava: seu namoro com uma colega nossa durante todo o

curso, ficara noivo no último ano. Houvera até uma celebração entre os alunos... Masnão era aquela.

— Se você soubesse por que desmanchei o primeiro noivado...E provou o refresco, para ganhar tempo. A mulher com rosto de menina mexeu-

se na cadeira, constrangida. Ele percebeu, fez um gesto, disse que não tinhaimportância: eu era escritor, sabia compreender essas coisas.

E passou a contar por que desmanchara o noivado. O que a outra significava paraele: namorados desde meninos. Os pais haviam resolvido celebrar de uma vez onoivado, antes que as coisas se agravassem. O casamento seria assim que terminassem ocurso. Ela com enxoval preparado, ele já com emprego garantido, o apartamentoalugado, a mobília comprada. Foi então que alguém lhe sugeriu a idéia maldita: examepré-nupcial. O médico o chamou a um canto para dizer que quanto ao mais tudonormal com ele, mas jamais teria filhos.

Olhei discretamente a mulher. Ela se distraía com o canudo do refresco, alheia atudo.

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— Eu disse que quanto ao mais tudo normal ...Endireitou-se na cadeira para contar que procurou a noiva e deu-lhe a notícia.

Que se havia de fazer? Podiam futuramente adotar uma criança. Essas coisas... Achouesquisita a reação dela: ficou séria, pediu prazo para pensar. E findo o prazo, veio dizerque sendo assim, sentia muito, mas preferia não se casar com ele.

— Fiquei arrasado. Nunca mais quis ouvir falar dela. Dela nem de mulhernenhuma. Pouco tempo depois soube que ela havia se casado com outro. Sete anos sepassaram, veja a ironia do destino: sete anos se passaram e até hoje ela não teve um sófilho. Ao passo que eu...

A mulher o interrompeu pela primeira vez: — Meu bem, acho que está na hora de irmos. — Ao passo que eu... — continuou ele, sem ouvir — ... um dia conheci esta aqui.Contou como havia conhecido aquela ali. E como ficou de novo apaixonado,

depois de sete anos! Mas dessa vez tinha sido mais prudente: — Não procurei médico nenhum, não contei nada sobre o exame. Não foi isso

mesmo, meu bem? — Vamos, não é? — pediu ela, um pouco ansiosa: — Já está ficando tarde. — E veja você como são esses médicos — prosseguiu ele. — Vivi sozinho esses

anos todos, desiludido de mulher e de tudo mais só por causa do vigarista de ummédico. Jamais teria filhos! Pois muito bem: me casei assim mesmo, não tem nem doisanos, e ela já está esperando um filho meu.

Sorriu, vitorioso, Voltando-se para a mulher. Senti que ela me dava um rápidoolhar de expectativa. Como eu, imperturbável, não dissesse nada, abaixoumodestamente os olhos.

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OCASIÕES DE FICAR CALADO

— COMO vai indo seu marido, que há tanto tempo não vejo? — Meu marido morreu há dois anos, o senhor não sabia?Cumprida a primeira parte da gafe, saio impávido para a segunda: — Que coisa terrível, eu não sabia! Me desculpe, mas andei viajando...E não tendo mais o que dizer, repito para o cavalheiro que a acompanha: — Terrível, não acha?Mas ele não pensa assim: — Não acho não: sou o atual marido dela. A consciência de que a gafe em geral se compõe de duas partes distintas. Ficar

sempre na primeira, jamais tentar consertar. Ao contrário da Loteria Federal, nãoinsista, desista! Eis o que eu, empedernido praticante, tenho a aconselhar aos meuscompanheiros de infortúnio. A gafe é vertiginosa e se faz anteceder de uma espécie deaviso, antecipa-se na sensação de que caminhamos no ar, como num desenho animado:

— Como foi bom encontrar você! Eu já estava achando esta festa chatíssima. Vamos embora daqui?

— Não posso, sou a dona da casa.Ou esta outra, mais comum ainda: — Com aquela mulher ali eu não dormia nem de graça. — Aquela mulher ali é a minha esposa.Se o infeliz acrescentar que neste caso dormia sim, não estará apenas caindo de

quatro: estará se precipitando no abismo da mais imperdoável inconveniência, que vema ser a repetição literal de uma velha anedota.

São gafes tradicionais, decorrentes em geral das relações de parentesco ou dosencontros de circunstância, a que os mais insensatos como eu raramente escapam. Nãohá como resistir ao poder magnético dos assuntos traiçoeiros, que vão espalhandoarmadilhas a cada passo, e nos levam sempre a falar em corda justamente na casa do en-forcado.

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Se sabemos que a gafe é irreversível, por que tentamos teimosamente remendá-la,afundando-nos cada vez mais?

É que ela nem ao menos é sincera. Fôssemos autênticos e verazes na convivência,a gafe se desarmaria ao peso de sua própria legitimidade. E deixaria de ser gafe.

Foi essa, pelo menos, a solução encontrada por um amigo meu, vítima tambémdessa maldita sina, e que ontem me dizia ter-se conformado, passando a praticá-ladeliberadamente.

— Você é parente dele? Que horror! — Morreu? Meus parabéns. — Não sei como você, tão simpática, pode ter um marido tão chato. — Fui cair logo ao seu lado neste banquete, mas veja só que azar o meu. — Aliás, pelo que eu soube, a senhora não é tão velha quanto parece. — Não agüentei ler até o fim. Ah, foi o senhor que escreveu? E ainda tem

coragem de confessar?Com isso, ele passou a ser considerado homem do mais fino espírito —

excêntrico, desconcertante, é verdade — mas de esmerada educação. Apesar de tudo,outro dia recebeu o troco que lhe era devido, funcionando desta vez como receptor deuma gafe, ao dizer a uma jovem, que está escrevendo um romance: a história de ummau-caráter. E ela, inocentemente:

— Autobiográfico?

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ROTEIRO DE HONG-KONG

A PRINCÍPIO, foi apenas certo desânimo. Depois, o tédio universal diante de todas ascoisas. Finalmente o que Unamuno chamava desentimiento trágico de la vida.De súbitominha cabeça explodiu.

Dor de cabeça, dor no corpo, nas juntas. Tosse. Nariz entupido, tosse, calafrios. Vertigem. Enjôo, astenia (tosse), sonolência, pesadelo. Na boca, gosto de ferrugem, de

azinhavre. De sono velho, já dormido, cabo de guarda-chuva. Comprimidos, injeções,bulas de remédio, barba crescida, olhos ardentes, tosse, tosse, tosse.

Espicho-me na cama, o peito arfante, olhos esbugalhados para o teto, e aguardoos acontecimentos. Diminuí de tamanho, sou um menino magrinho na minha cama degrades, aguardando a chegada do médico. O médico da família entrando no quarto, atoalha alvíssima de bordado, só para essas ocasiões, estendida no peito do menino. Acabeça do médico reclinada auscultando, aquele cheiro de cabelos penteados, já meio

ralos ali no meio. E o relógio de ouro com corrente, na hora de tomar o pulso. E aspancadinhas com o dedo sobre outros dois dedos ao longo das costas, respire fundo,torne a respirar. A penumbra do quarto com a faixa de sol onde a poeira dança,faiscante como milhões de estrelas. A caneta riscando o silêncio ao passar a receita namesa da sala. Perspectiva de alguns dias sem colégio ainda afogada em mal-estar. E oritmo a que tudo passa a obedecer, lento, implacável, hora certa do remédio, o mistérioda vida quase desvendado ao mais tênue sopro da morte. E a mãe se engrandecendo,onipresente, deslizando silenciosa e protetora, anjo da guarda, rainha do lar, absolutaem seu reinado.

Meu corpo vai pegar fogo, estou nadando em suor. Já não sou menino, mascontinuo na casa onde nasci, perambulando pelos quartos. Em vez de encontrarpessoas de minha família, encontro chineses acampados por tudo quanto é canto.Moços, velhos, crianças, mulheres, tudo com olho rasgado e aquele sorriso de chinês,sacudindo a cabeça à minha passagem. Transformaram minha casa em hospedaria deimigrantes — é o que concluo, abrindo caminho entre chineses silenciosos. Devem ter

vindo todos de Hong-Kong. Pergunto a uma mulher com um menino às costas quem éque manda por aqui. Ela me indica com o olhar um chinês velho e decrépito de bigodes

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compridos, cabeceando a um canto. Dirijo-me a ele: sei que venderam minha casa, maslhe pediria licença para ficar aqui ao menos esta noite... Uma velha toda enrugadaresmunga do outro lado: fazer tanta questão de ficar numa casa destas, caindo aos

pedaços... Não fale mal da casa onde eu nasci! — protesto, avançando para ela, massorrindo logo em seguida, porque me lembrei que para os chineses o sorriso é umaespécie de senha, que altera o sentido das coisas. E quando as atenções da chinesada se voltam para mim, declaro solenemente:

— É verdade: esta casa não foi a melhor de todas em que eu morei. Antes de memudar para aqui é que eu morava numa casa magnífica, confortável, como jamaisexistiu outra no mundo.

Faço uma pausa e acrescento — em inglês, para impressioná-los mais: — My mother’s womb.Como ninguém diz nada e nem parece ter entendido, saio correndo porta afora:

vou para meu apartamento no Rio, que bobagem é essa...

Salto da cama e olho o relógio: sete horas da manhã. Estou curado! Foi-se a febree a cabeça descansa leve sobre os ombros. Dou dois passinhos lépidos, para

experimentar: não sinto nada. Acendo um cigarro: voltou a ter gosto de cigarro. Omonstro que fui esses dias me espia, barbado e descabe-lado, de dentro do espelho. Tomo banho, faço a barba, visto-me e saio para a rua. O sol me entontece um pouco,mas aceito o desafio e vou em frente. Detenho-me no botequim da esquina para umcafezinho, enquanto inspeciono o ambiente aqui pelo bairro. Aparentemente tudo vaiindo em ordem: na praça, as empregadas empurram carrinhos, meninos brincam,passam ônibus meio vazios. Na banca de jornais compro uma revista e vou andando.Sento-me num banco e deixo-me ficar, revista esquecida ao colo, pensando em como éestranho ainda haver hoje em dia manhãs como esta. De dentro de mim mesmo, daescuridão em que trabalham as minhas vísceras, vem nascendo uma sensaçãoinquietante como a expectativa de uma dor... Mas eu estou curado! — procuroconvencer-me, apreensivo.

Estou curado apenas de uma gripe. É pouco, para quem um dia vai morrer.E me encolho dentro de meu corpo, como num ventre.

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O DIAMANTE

EM 1933 Jovelino, garimpeiro no interior da Bahia, concluiu que ali não havia maisnada a garimpar. Os filhos viviam da mão pra boca, Jovelino já não via jeito deconseguir com que prover o sustento da família. E resolveu se mandar para Goiás,onde Anápolis, a nova terra da promissão, atraía a cobiça dos garimpeiros de tudoquanto era parte, com seus diamantes reluzindo à flor da terra. Jovelino reuniu afilharada, e com a mulher, o genro, dois cunhados, meteu o pé na estrada.

Longa era a estrada que levava ao Eldorado de Jovelino: quase um ano consumiuele em andança com a sua tribo, pernoitando em paióis de fazendas, em ranchos debeira caminho, em chiqueiros e currais, onde quer que lhe dessem pasto e pousada.

Vai daí Jovelino chegou aos arredores de Anápolis depois de muitas luas e ali seestabeleceu, firme no cabo da enxada, cavando a terra e encontrando pedras que nãoeram diamantes. Daqui para ali, dali para lá, ano vai, ano vem, Jovelino existia denômade com seu povinho cada vez mais minguando de fome. Comia como podia — enão podia. Vivia ao deus-dará — e Deus não dava. Quem me conta é o filho dofazendeiro de quem Jovelino se tornou empregado:

— Ao fim de dez anos ele concluiu que não encontraria diamante nenhum, eresolveu voltar com sua família para a Bahia onde a vida, segundo diziam, agora eramelhorzinha. Não dava diamantenão,mas o governo prometia emprego seguro a quemquisesse trabalhar.

Jovelino reuniu a família e botou pé na estrada, de volta à terra de nascença, ondehaveria de morrer. Mais um ano palmilhado palmo a palmo em terra batida, vivendo defavor, Jovelino e sua obrigação, de vez em quando perdendo um, que isso de filho écriação que morre muito. Foi nos idos de 43:

— Chegou lá e se instalou no mesmo lugar de onde havia saído. Governo deuemprego não. Plantou sua rocinha e foi se agüentando. Até que um dia...

Até que um dia de noite Jovelino teve um sonho. Sonhou que amanhava a terra ede repente, numa enxadada certeira, a terra escorreu... A terra escorreu e aos seus olhos

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brilhou, reluziu, faiscou, resplandeceu um diamante soberbo, deslumbrante como umaimensa estrela no céu — como uma estrela no céu? Como o próprio olho de Deus! Jovelino olhou ao redor de seu sonho e viu que estava em Anápolis, no mesmo sítio emque tinha desenterrado a sua desilusão.

E para lá partiu, dia seguinte mesmo, arrastando sua cambada. Levou nisso umentreano, repetindo pernoites revividos, tome estrada! Deu por si em terra de novogoiana. Quem me conta é o filho do fazendeiro:

— Você precisava de ver o furor com que Jovelino procurou o diamante de seusonho. A terra de Goiás ficou para sempre revolvida, graças à enxada dele. De vez emquando desmoronava, Jovelino ia ver, não era um diamante, era um calhau. Até que umdia...

— Encontrou? — perguntei, já aflito. — Encontrou nada! Empregou-se na fazenda de meu pai, o tempo passou, os

filhos crescidos lhe deram netos, a mulher já morta e enterrada, livre dos cunhados, osgenros bem arranjados na vida. Um deles é coletor em Goiânia.

O próprio Jovelino, entrado em anos, era agora um velho sacudido e bemdisposto, que tinha mais o que fazer do que cuidar de garimpagens. Mas um dia nãoresistiu: passou a mão na sua enxada, e sem avisar ninguém, o olhar reluzente deesperança, partiu à procura do impossível, do irreal, do inexistente diamante de seusonho.

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EM LONDRES, COMO OS INGLESES

QUANDO cheguei a Londres, fui acolhido pelo frio mais miserável. Andava pelas ruasdebaixo de um grosso sobretudo, mas um vento gelado penetrava pelas mangas ecorria-me pelo corpo. Dentro de casa, pouco adiantavam os recursos mecânicos comque se tenta contrariar a natureza: o sistema de aquecimento, quando funcionava,funcionava demais, esquentando como um forno, e eu ficava vermelho de calor comoum peru, olhos irritados pela fumaça do cigarro. Era só botar o pé na rua, lá estava o vento à minha espera. Traiçoeiro, violento como um insulto. Me atravessava de lado alado, fazendo gelar as minhas melhores disposições. Mas logo comecei a notar que seme queixava da inclemência do tempo, os ingleses sorriam: o último inverno, aquelesim, realmente frio, mas agora? A primavera estava chegando...

Primavera! Subitamente ela chegou. O telefone do hotel me acordou às 7 horas damanhã como num alarme de incêndio. Atendi, estremunhado, uma voz entusiasmadaaos meus ouvidos:

— Good morning, sir! It is a gorgeous day, just have a look at it.Nunca me detive para verificar a significação exata de gorgeous,ou pelo menos a

palavra correspondente em português. Prefiro continuar imaginando que se refira a algode alegre, esfuziante, colorido como um anúncio de Coca-Cola, vagamente relacionadoa gorjeios de passarinhos. Mas por que diabo o porteiro do hotel me acordava paraadmirar a beleza do dia? Saltei da cama e fui até a janela. Pude perceber entre as nuvensuma claridade baça, um sol pálido e frio como um prato de louça. Era a primavera.

E, pelas ruas, e expressão de todos, banhada por minguados raios de sol, era a damais pura felicidade. Que belo dia! — diziam uns aos outros. Ao que eu confirmava,sacudindo a cabeça:

— Realmente, it is a gorgeous day.E travava então com o primeiro inglês no meu caminho o clássico diálogo: — Lindo dia, o senhor não acha? — Isto mesmo: um dos mais lindos dos últimos tempos.

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— Espero que continue assim. — Eu também. Não creio que tenhamos chuva. — Nem eu. É realmente um lindo dia.E assim por diante. Entre dois transeuntes, dois passageiros de ônibus, o leiteiro e

a dona-de-casa, o caixeiro e o freguês, o porteiro e o hóspede, o patrão e o empregado,o passageiro e o motorista — em toda parte da Inglaterra. Uma espécie de senhabritânica para o exercício cortês da convivência, para a prática do respeito mútuo nasrelações humanas, para o cerimonial de um generoso entendimento entre os homens.Nunca tantos elogiaram tanto a natureza por tão pouco.

E de súbito, de tanto se falar no tempo, o próprio tempo parece reagir. O solacaba mesmo surgindo das nuvens, como numa paisagem de folhinha — é o sonhado gorgeous dayque o inglês persegue através de previsões de tempo, pesquisas climáticas,sondagens atmosféricas, análises cartográficas, com obstinação de maníaco. Por todaparte a natureza finalmente corresponde aos vaticínios. Londres em flor! E eu que meacostumei a imaginar Londres cinzenta e opaca o ano inteiro. Influência talvez daliteratura, especialmente policial. Londres para mim sempre foi aquela cidade que jamaispôde ser vista: com fognão se vê nada, sem fognão é Londres.

Pois agora vou caminhando entre flores. Saio da estação subterrânea e o vendedor, em vez de me oferecer jornais do dia, oferece um punhado de cravos. Logoadiante uma vitrine exibe tulipas tão belas que parecem de matéria plástica. Nos parquese jardins, quase a cada esquina, as cores se multiplicam em milhares de flores de todaespécie, espalhando excitação. Agora sim, é a primavera, vamos tomar um pouco de sol!E o inglês, de paletó e gravata, às vezes até de sobretudo, se estende ali mesmo, nagrama do parque, braços abertos como um urubu, para gozar um pouco da cálidaalegria de viver, tão geladamente conquistada.

Suportei em Londres dois tenebrosos invernos, ali vivi quase três anos. Osuficiente para saber que em Londres acontecem coisas.

Que espécie de coisas?Naquela época uma revista americana lançou sobre Londres uma reportagem que

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logo se alastrou pelas demais revistas do mundo como imposição da moda, afirmandoque ali grandes coisas estavam acontecendo. O próprio londrino passou a interrogar-se,estupefato: que coisas eram essas? O que Londres tem é pudor de ver denunciadas,assim de público, as coisas que ali sempre aconteceram. Coisas às quais nunca deu amenor importância. Em verdade, Londres não é de dar importância a ninguém. Nadamais londrino que aquela confissão de Caio de Freitas no seu livro sobre a Inglaterra“Um Canal Separa o Mundo”: olhando a cidade de outro lado do Tâmisa, ele foi levadoa reconhecer que sua raiva era apenas uma paixão não correspondida. Londres é aquelamulher solitária no fundo do salão, ignorada pelos que se deslumbram com outras deencantos mais fáceis. Até que de súbito ela se impõe como a mais bela e desejada,justamente no momento em que resolve sair, sem aceitar a companhia de ninguém,indiferente à perturbação que deixa atrás de si. Os que então passam a despreza-la, emfavor das outras, não fazem senão repetir o eterno apaixonado, que chama de ordináriae de mulher de vida fácil o objeto de sua paixão. Em suma: Londres sempre foi verdecomo os frutos da fábula. E os interesses da moda a estavam colocando ao alcance detodos, madura e desfrutável, isso o londrino não pode perdoar.

Mas Londres se esquiva, escondendo seus encantos, como uma solteirona dointerior. Para surpreendê-los é preciso ver além das aparências. Londres não é a cidadedos rapazes cabeludos de Piccadilly Circus ou Trafalgar Square, nem a das roupasexóticas de Carnaby Street ou King’s Road. Uma caminhada ao longo de Bond Street,por exemplo, à primeira vista, parecerá simples passagem por uma rua comercialqualquer. Distraídos com as vitrines, não chegaremos talvez a perceber que acabamosde cruzar com um célebre pintor, um campeão de boxe, uma famosa bailarina, umcostureiro, um escroque internacional, um sultão das Arábias, um caçador africano, umcassado brasileiro, um espião russo, um almirante bátavo.

Não é apenas a clássica mistura de raças, tipos ou categorias sociais: é oajuntamento de indivíduos cujo modo de vida nada tem a ver com as normastradicionais. E se espiarmos além da fachada dos edifícios, começaremos a descobrir osrecantos secretos onde Londres se oculta. Os becos georgianos, os pubs vitorianos, osmercados de antiguidades ou de hortaliças, as cavalariças de outrora transformadas emapartamentos de luxo, os parques em cuja grama os namorados se estendem abraçados.E os clubes atrás de velhas paredes, com seus imensos salões, suas paredes de madeiraantiga, seus garçons de libré, suas mesas de jogo por onde correm milhares de libras.

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Mas Londres entrou na moda. Esgotando Paris, Roma, Nova York ou as praiasda Riviera como atração turística, o interesse publicitário das grandes revistas tentouapresentá-la como a cidade do momento. E sua atração se concentrou nos jovenslondrinos que estavam revolucionando os costumes e desafiando as convenções, comseus cabelos compridos e suas roupas extravagantes. Lisonjeados, os jovens londrinosse organizaram em torno desta nova convenção, passaram mesmo a revolucionar oscostumes e desafiar as convenções. Com isso procuravam corresponder ao que osfotógrafos estrangeiros esperavam deles. E King’s Road se tornou para Londres o quefoi no passado Montmartre para Paris, a Broadway para Nova York, a Via Veneto paraRoma.

Enquanto isso, a velha Londres esperava indiferente. Quando passasse a novaonda da pop arte do iê-iê-iê, como passou a do iô-iô e a do bilboquê, continuaria amesma cidade antiga, a defender encantos milenares que deslumbraram Dickens ou Johnson, resistindo aos ataques dos novos conquistadores como resistiu às bombas deHitler, para, ao final dos tempos, morrer majestosamente, como uma velha rainha,

Numa cidade com mais de oito milhões de habitantes há de tudo que se podeimaginar. Aos poucos, fui fazendo minhas descobertas.

Descobri, por exemplo, uma lavanderia que lava e passa um terno em minutos,enquanto o freguês espera em cuecas, lendo jornal. Sei onde alugar um esqueleto apreço tentador. E sei de um alfaiate especializado em confeccionar coletes a prova debalas. Por outro lado, sei onde adquirir um “boomerang”, fabricado pelos aboríginesaustralianos.

Há mais: há uma loja cujas caixas de rapé, de todos os tipos, são famosas desde oséculo XII. Outra vende exclusivamente peças de xadrez. E sei também onde comprarguarda-chuva com espada dentro, ou daqueles grandes, usados pelos chefes das tribosafricanas. Posso, se quiser, alugar uma réplica das jóias da Coroa, ou um uniforme com-pleto de polícia londrina, desde que não tenha a intenção de ridicularizar a corporação.Compro um avião pelo telefone e arranjo uma noiva no Bureau de Casamentos, desdeque sejam boas as minhas intenções. Obtenho, também pelo telefone, o escore atual deuma partida de críquete que se esteja realizando no momento. E fico sabendo de todosos acontecimentos públicos das próximas 24 horas, em inglês, alemão, francês e

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espanhol. A hora certa, a previsão do tempo e a condição das estradas me serão dadascom precisão, se eu discar determinado número. Posso também usar pelo telefone oserviço receptor de recados. E se ligar o número equivalente às letras w-h-i-s-k-e-y,estarei falando com o representante de um dos melhores uísques escoceses, queimediatamente fará chegar à minha casa uma garrafa, a qualquer hora do dia (ou danoite).

Posso alugar por um dia um escritório com mesa, cadeira, máquina de escrever,telefone e secretária particular, na melhor zona comercial de Londres. Posso obter umaacompanhante para as compras, para o teatro ou mesmo para o jantar numa boate, embases estritamente profissionais, e nem por isso menos atraentes (aos olhos dosdemais). Alugo um policial no aeroporto para tomar conta de mim e uma escolta até àcidade, se quiser fazer uma entrada triunfal. Sei de um barbeiro especialista em barbeardefuntos, e se a vovozinha de um amigo está para chegar à estação de Victoria, seicomo mandar alguém atencioso e amável esperá-la e despachá-la a seu destino. Alugoum Rolls-Royce, com chofer de luvas e boné, e chego à recepção no meu fraquetambém alugado, como se fosse um membro da Família Real. Posso encomendar pelotelefone um jantar até de 100 talheres, e darei em minha casa, com louça, cristais,pratarias e garçons, um banquete digno de um primeiro-ministro.

Sei como encontrar um arrombador de cadeados ou de cofres a qualquer hora dodia ou da noite. Onde obter informações sobre a autoria de qualquer verso da línguainglesa que acaso me venha à cabeça. Onde reparar uma dentadura na hora, inclusivenos domingos e feriados. E onde empalhar aves ou animais, de um rouxinol a umelefante. Onde consertar em minutos uma raquete de tênis. Onde alugar um vestido denoiva (para qualquer tamanho). Onde encontrar um alfaiate com 48 anos de prática emalterar o tamanho do terno, se o defunto era maior. E, se perder um botão, seráimpossível não achar outro igual, numa loja que se orgulha de ter a maior e mais variadacoleção do mundo.

Se estiver pensando em me suicidar, devo antes discar determinado número aotelefone, e imediatamente surgirá alguém para me dissuadir do tresloucado gesto. Possoinstalar em menos de 24 horas uma piscina no meu quintal. Sei onde comprar taças etroféus, caso deseje patrocinar algum campeonato esportivo. Consigo a preço módicoum parceiro para o bilhar, para o pingue-pongue ou mesmo para a conversa fiada,quando quiser com isso matar o tédio das tardes de domingo — ou companhia mais

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interessante. E consigo, absolutamente gratuito, o parecer de um advogado sobrequestões legais, como: pode o senhorio me proibir de ter companhias maisinteressantes?

E assim por diante. Posso comprar a bandeira de qualquer país do mundo — sónão posso hasteá-la em minha casa, sem consultar antes o tal advogado. Consigo umtraje completo de cosmonauta ou de pescador submarino, em coisa de poucos minutos,e máscara de oxigênio, se me der mal. Disfarço-me com toda espécie de barbas postiçasou de fantasias, pois sei onde encontrá-las.

Sei onde encontrar também o melhor coçador manual de costas que jamais foifabricado. Outra loja me venderá quase toda espécie de bicho existente, incluindomacacos, abelhas, jacarés, pererecas, cobras e lagartos. Ou um cisne branco, quandobem entender. Ou uma cegonha, para quando chegar a hora. E em matéria de peixes...

Chega. Tudo isso se pode fazer ou adquirir em Londres, havendo dinheiro. Nãome perguntem como fiquei sabendo: sei como ficar sabendo. Há, é verdade, certascoisas que o dinheiro não compra. (Mas sempre ajuda.)

Gente esquisita para morar, esses ingleses. Na sua grande maioria, cada casa oumaisonette,embora não tendo mais que uns quatro metros de frente, é composta dequatro ou cinco andares. No porão, a cozinha e a sala de jantar. No primeiro andar, aonível da rua: a porta de entrada, um corredor, a escada, umlivingcom janelinhas parafora. No segundo, o banheiro. No terceiro, um ou dois quartos de dormir. No quartoandar, outro banheiro. No quinto, outra sala... A impressão que se tem é que osmoradores passam o dia inteiro subindo e descendo quatro andares de escada. Puroengano: a disposição das dependências em sentido vertical obedece a uma lógicainflexível, pela qual se pauta a vida dos que nelas vivem. Assim, a cozinheira tem desubir só um lance de escada para abrir a porta ao visitante, e dois para servir as re-feições. O visitante, por sua vez, terá de subir apenas dois para chegar aoliving,e descerum, se for convidado para jantar. Os moradores descerão apenas um, do quarto aoliving,para fazer as honras da casa, e dois, se quiserem comer. Dividindo a sua atividadedoméstica em estágios, correspondentes aos pavimentes de sua moradia, o inglês seencontra dentro de casa sempre eqüidistante dos extremos, — ideal de virtudearistotélica que o conduz vida afora, em todas as atividades, como característica do

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temperamento britânico. Subindo ou descendo a escada, ele se faz adepto da filosofiadaquele ascensorista, quando lhe perguntei como ia passando:

— Como o senhor vê: às vezes em cima, às vezes embaixo.

Ele não tem pressa. A paciência é a virtude capital. A sua impassibilidade diantedo tempo chega a dar a impressão de que somos eternos.

Recebi em Londres muito convite para jantar com um, dois meses deantecedência. A cadernetinha de bolso de cada inglês é um rosário de encontros, visitas,jantares, viagens, planos para o ano inteiro e às vezes para o ano seguinte. Um brasileirojá iniciado me preveniu quando cheguei:

— Eles marcam na cadernetinha com antecedência de dois meses até para dormircom a mulher. E assim mesmo, quando for a própria. Sendo outra, no mínimo seismeses.

Não creio que cheguem a tanto (eu diria no máximo quinze dias). Mas aquilo meperturbava: até lá estarei vivo? acaso serei o mesmo? E, tomando nota na minha própriacadernetinha, percebia estar lavrando a minha sentença. Como um condenado, via àminha frente uma série de convites aceitos por distração ou de encontros que pordelicadeza eu próprio havia sugerido. Pessoas que mal conhecia atendiam logo àsugestão de nos vermos qualquer dia desses — e puxavam lápis e cadernetinha paraanotar a data, hora e local. Foi assim que me vi tomando uma cerveja com o mensa-geiro da Western, foi assim que recebi em minha casa para um drinque o agente deautomóveis que me vendeu um carro. Eu não podia conceder um gesto, uma palavra dedelicadeza, e logo um inglês me pegava ao pé da letra numa delicadeza igual. Não podiamorrer, nem ao menos adoecer, nem sequer me distrair pelo caminho: na esquina decada dia, de cada semana, de cada mês, havia sempre um atencioso inglês à minhaespera, relógio na mão, contando os minutos.

Não foi fácil me acostumar à troca de rapapés e salamaleques a que o inglês nossubmete:

— Bom dia, senhor. Belo dia de sol, não acha? — Bom dia. É verdade, um belo dia.

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Monstros de delicadeza! Mas de ironia também. Dá para desconfiar: essa genteestá me gozando. Logo nos convencemos de que o inglês leva tudo a sério, a fleumabritânica! Não é de gozar ninguém. Pois então, cuidado! Deve haver algum engano.Estão me confundindo com algum general. Mas ao fim de alguns meses de polidaconvivência, rasgos de elegância e gestos fidalgos, eis a suspeita, tão ofensiva quantoimprocedente: essa gente é meio boba. Que excelente povo para se passar a perna! Quefacilidade para cair numa conversa! Que paraíso para um vigarista!

Já acostumados, passamos a admirar o óbvio — que vem a ser a sabedoria de viver de um povo civilizado. E que verdadeiros bugres somos nós, brasileiros! Quegente mais subdesenvolvida! Quanta grosseria! Que falta de civilidade! Que espantosaavacalhação! Até que um dia o ciclo se completa, e um incidente qualquer nos atiradiante daquilo que originalmente pensávamos: além das fronteiras da boa educação,para lá do senso ético nas relações, por detrás da finura no trato e da polidez deconduta, onde a vista já não alcança — no fundo, bem no fundo da alma inglesa, reina amais gloriosa das gozações.

Resta saber a quem o inglês está gozando — já que nos sentimos imunes, comoestrangeiros: se um ao outro, se a si mesmo. E tudo passa a ser bem gozado.

Abre-se a porta do pube vejo entrar um inglês. A figura que vejo entrarsimplesmente não existe. É a quinta-essência da excentricidade britânica. E não temnem chapéu-coco, nem guarda-chuva, nem cachimbo, nem bigodão. Mas tem ummonóculo. E chapéu-panamá desabado. E cabelos compridos na nuca. E paletozinhoabotoado, apertado, curtíssimo, dando quase pela cintura. E calça xadrez. É umautênticodandy,saído de um figurino de moda masculina do princípio do século. O barestá cheio a esta hora, mas o recém-chegado, avançando até o balcão num passinho deMonsieur Hulot em férias, não chama a atenção de ninguém além de mim. Todospermanecem sérios, compenetrados, diante de seus copos de cerveja. De súbito, ofreguês a meu lado dá uma estranha ordem ao garçom:

— Diga ali ao cavalheiro que acaba de entrar que a bebida é por minha conta. Ao notar que eu ouvi, dá uma piscadinha para mim. Só então reparo que o bar

inteiro aguarda, fingindo não ver, em silenciosa cumplicidade, como na iminência deuma cena cômica. O recém-chegado se volta de longe para o autor da gentileza, retira ochapéu, faz uma mesura exagerada de fidalgo e põe-se a beber a cerveja que lhe foioferecida. Ao terminar, outra mesura, e parte como chegou. Somente então o bar

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— E acontece que tem um sujeito lá no prédio onde trabalha minha noiva queestá se fazendo de engraçado com ela. O que é que eu faço?

E essa, agora? Propor-lhe que baixasse o braço no tal sujeito, sobre violentarmeus princípios de sagrado repúdio à violência, seria uma insensatez: via-se que eu sófaria humilhá-lo, era magrinho e mirrado, não agüentava uma gata pelo rabo. Quandomuito seria capaz de surrar a própria noiva, partindo da suposição de conivência delacom as graças do outro, desde que tomasse como provocação feminina o fato de elaprópria as haver denunciado. Foi, pelo menos, o que ele logo confirmou:

— Toda noite ela vem com essa história: ora é uma piadinha que ele disse, ora éum papo furado pra cima dela. Ontem a coisa engrossou: teve o descaramento de dizerpra minha noiva que me largasse de banda e se mandasse com ele. Como é que euposso dormir com um troço desses na cabeça, doutor? Tenho que tomar uma atitude,que diabo.

Aconselhei-o como pude: que tomasse uma atitude, sim, mas que tivesse calma,não perdesse a cabeça, para a coisa não dar em desgraça. Quem sabe se pedisse aooutro com jeito, que parasse de chatear? Sem que se humilhasse, hein? Com calma, mascom energia, sendo preciso usasse uma ameaça velada, já de longe, como por exemplo aexpressão “de homem para homem”... Hein? Afinal de contas, que diabo, a noiva dele vai ver que estava exagerando, só para fazer ciúme, convinha apurar primeiro, não fossepartindo logo para a ignorância.

— É isso mesmo, doutor, é isso mesmo — ele concordava sério. Ao fim, para surpresa minha, falou que, pensando bem, o melhor era acabar com

aquele noivado logo de uma vez, não ia “dar mesmo em nada” E para provar queaproveitara bem o adjutório, aproveitou também a ocasião, e, de homem para homem,me pediu cem cruzeiros emprestados.

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COM O MUNDO NAS MÃOS

BERNARDO tem 5 anos mas já sabe da existência do Japão. E aponta para o céu como dedo:

— É atrás daquele teto azul que fica o Japão? Tenho de explicar-lhe que aquilo é o céu, não é teto nenhum. — Mas então o céu não é o teto do mundo? — Não: o céu é o céu. O mundo não tem teto. O azul do céu é o próprio ar. O

Japão fica é lá embaixo — e apontei para o chão: — O mundo é redondo feito umabola. Lá para cima não tem país mais nenhum não, só o céu mesmo, mais nada.

Ele fez uma carinha aborrecida, um gesto de desilusão: — Então este Brasil é mesmo o fim do mundo. Daqui pra lá não tem mais nada...Difícil de lhe explicar o que até mesmo a mim parece meio esquisito: o mundo ser

redondo, o Japão estar lá em baixo, os japoneses de cabeça pra baixo, como é que nãocaem? Às vezes, andando na rua e olhando para cima, eu mesmo tenho medo de cair.

Na primeira oportunidade compro e trago para casa um mapa-múndi: um dessesglobos terrestres modernos, aliás de fabricação japonesa, feitos de matéria plástica e quese enchem de ar, como os balões. O menino não lhe deu muita importância, quandoapontei nele o Japão e a Inglaterra, o Brasil, os países todos. Limitou-se a fazê-lo girardoidamente, aos tapas, até que se desprendesse do suporte de metal. Logo se dispôs asair jogando futebol com ele, não deixei. Consegui convencê-lo a ir destruir outrobrinquedo, o secador de cabelo da mãe, por exemplo, que faz um ventinho engraçado — e assim que me vi só, tranquei-me no escritório para apreciar devidamente a minhanova aquisição.

Com o mundo nas mãos, descobri coisas de espantar. Descobri que a Coréia émuito mais lá para cima do que eu imaginava — uma espécie de penduricalho da China,ali mesmo no costado do Japão. O que é que os Estados Unidos tinham de se meter ali,tão longe de casa? O Vietnã nem me fale: uma tripinha de terra ao longo do Laos e doCamboja. Aliás, a confusão de países por ali, eu vou te contar. Tem a Tailândia e tem

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SEM TIRAR PATENTE

ESTOU convencido de que errei de profissão, ao escolher a literatura. O que eu soumesmo é inventor. E um grande inventor. Com o auxílio de minha filha Mariana, querima com bacana, inventei o telefone portátil, a televisão de bolso, o rádio de pulso e abicicleta voadora. Só não inventei o pó de pirlimpimpim.

Antes que esta crônica entre em colapso, num delírio de paranóia, e eu me digainventor da luz elétrica e Pai da Aviação (embora não negue que tenha parte nainvenção do zepelim), deixa eu dizer que minha inventiva não voa a tais alturas, nemsustento ter-me chamado Edson, Marconi ou Santos Dumont, noutras encarnações. Apenas lamento que invenções um pouco menos espetaculares, como as que citei,custem tanto a ser produzidas.

Outras já o foram, antecipando-se à patente que delas eu deveria ter tirado. Háanos, por exemplo, que amaldiçôo essa invenção diabólica usada para tirar cópia,chamada papel carbono: amarrota-se com facilidade, suja a ponta dos dedos e as demaisfolhas de papel em branco, resiste ao uso da borracha, acaba produzindo cópiasmanchadas ou ilegíveis. Não se falando na sua intolerável propensão a colocar-seinvertida entre as folhas de papel, produzindo ao fim uma belíssima cópia, mas para serlida ao espelho, nas costas do original. Sempre desejei que existisse um carbonoresistente, com tinta indelével como a das próprias fitas de máquina.

Pois finalmente aqui está o carbono de plástico, que dá cópias iguais ao original, eque alguém chamado Burroughs patenteou antes de mim, sob o n.° 876.854.

Em compensação, e ainda nos domínios da máquina de escrever, continuoesperando que industrializem o dispositivo que inventei para corrigir no papel os errosdatilográficos. Um espertinho quis se antecipar e me apareceu no mercado com umatirinha de papel carbono branco, do tamanho de umband-aid(extraordinária invenção!),a ser inserida entre a fita e o papel, para apagar as letras erradas, batendo-as novamente.O processo, em si, é correto, mas minha invenção é melhor. E aqui a ofereçogratuitamente ao primeiro aventureiro que quiser lançar mão dela, o tal Burroughs, por

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exemplo: a própria fita da máquina deveria ter uma faixa de tinta branca, sobre a qualreescreveríamos o que deve ser apagado.

Outras invenções me fazem ferver a cuca, e vivo encafifado pelo fato de não virem logo à luz do dia. As que me inspiram os objetos de dar corda, como os antigosfonógrafos, por exemplo: se existem relógios e brinquedos de corda, por que não po-dem existir, baseados em igual sistema, motores de verdade, até mesmo de automóvel? Antes que acabe descobrindo o moto-contínuo, detenho-me diante daquele menino daanedota, que dizia aos pais ter descoberto numa loja de antigüidades uma vitrolamaravilhosa, que funcionava sem corrente elétrica, sem pilha, sem nada.

E está certo o diabo do menino. Nada mais prático foi até hoje inventado, pararesolver o problema infernal de um automóvel com bateria descarregada, que aqueleferro torto com o qual se punha antigamente o motor em funcionamento, e que sechamava manícula. Manícula! Com nome tão fabuloso, só podia ser mesmo uma grandeinvenção.

Outras grandes invenções, como a caneta esferográfica, o saca-rolhas de arcomprimido ou a sandália japonesa, enchem-me de inveja por não terem nascido antesde minha poderosa imaginação criadora. Tão poderosa, que já concebeu a simbiose dobidê e do vaso sanitário, com chuveirinho regulável, e descobriu que a serra de pão é omelhor instrumento para descascar abacaxi.

Não se falando no aperfeiçoamento introduzido numa das mais prodigiosascriações de nosso tempo, que reconheço não ter sido minha, e a cujo inventor rendoaqui minhas homenagens: o fecho eclair. Para ser perfeito, sem risco de enguiçar a todomomento ou, quando na roupa, beliscar a pele do freguês, não deveria ser de dentes demetal, mas de trilhos de plásticos fechados sob pressão. Quando vi pela primeira eúnica vez a moderna versão que inventei, no fecho de uma pasta que a Varig me deu,entre as lembranças que costuma oferecer aos seus passageiros em viagem interna-cional, maravilhado exclamei: o que é a Natureza! E vi reafirmada a minha crença noprogresso da Humanidade.

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MAIS INVENÇÕES

OUTRO DIA falei nos meus dotes geniais de inventor. Esgotei o assunto? De formaalguma. Meus inventos se multiplicam, e ainda esta semana ouvi em mim o borbulhardo gênio: num rasgo de espetacular inventiva, entupigaitei com meu engenho omecânico que aqui esteve para consertar o aparelho de ar condicionado.

Para começo de conversa, o aparelho de ar condicionado ainda está para serinventado. Muitos outros inventos de nosso tempo, aliás, não passam de contrafaçõesgrosseiras daquilo que minha imaginação já criou com todos os requisitos de perfeição:uma televisão que fosse mesmo verdadeiro cinema em miniatura, por exemplo, semrisquinhos nem distorções; um helicóptero que fosse mágico como um tapete voador,sem aquelas assustadoras pás que têm de girar o tempo todo, sob pena de despingolar-se do ar a caranguejola e esborrachar-se no chão.

Voltando ao ar condicionado: não posso crer que aquele cubo de aço gigantesco,cheio de hélices e gradinhas, seja a última palavra da ciência para diminuir o calor dosambientes interiores. Não passa de um ventilador disfarçado, girando dentro de umageladeira sem porta e sem lugar para guardar os alimentos. Na era dos motores a jato, jápodiam ter inventado coisa mais jeitosa.

Pois o dito mecânico, a certa altura, para justificar o mau funcionamento do meuaparelho de refrigeração, alegou que eu o fazia funcionar na velocidade máxima, tirandodele menor proveito:

— Em alta velocidade, o exaustor puxa com mais força aqui por baixo o ar frioque vai entrando aqui por cima.

E como que para provar o que dizia, largou junto ao que chamava de exaustor umpapelzinho, que ficou pregado na grade protetora:

— Por aqui vai-se embora o ar quente, mas parte do ar frio também —

arrematou.

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Um tijolo de burrice me baixou na cabeça, diante de semelhante raciocínio. Acabei concluindo que quanto mais aparelhos houvesse na sala, mais exaustoreshaveria, jogando para fora o ar frio produzido, e a temperatura continuaria na mesma.O cara concordou, todo sabidão. Então é que me ocorreu a solução, aventada pelasapiência do tal mecânico, antes que ele me provasse que a melhor maneira de refrigerara sala era manter o aparelho desligado: por que não separá-lo em dois aparelhos,distantes um do outro, como os alto-falantes de som estereofônico? De um lado o quejogava ar frio para dentro, do outro o que jogava ar quente para fora — sugestão queofereço aqui, gratuitamente, ao Admirai, ao General Electric, e outras altas patentes daindústria eletrodoméstica.

Poderia oferecer aos industriais desta praça outras invenções de minha lavra, maismodestas mas não menos sinceras: tampa de mola para os dentifrícios, como aquela doslança-perfumes, evitando que ela caia no ralo da pia, e tenha de ser retirada, comprodígios de paciência, mediante uma pinça ou mesmo aquele grampo enferrujado quepode ser sempre encontrado debaixo da saboneteira; rede protetora para aparar osobjetos que fatalmente tombam do armário do banheiro, quando se abre a portinha deespelho; fechaduras à altura dos olhos, para evitar a ridícula postura assumida por quemolha pelo buraco; papel higiênico com pensamentos de folhinha, conselhos úteis, fasesda Lua, máximas do Barão de Paranapiacaba e do Marquês de Maricá; sabonete comorifício para se enfiar o dedo e não escapar da mão; e outras, mil outras invençõesgeniais nascidas da minha cachimônia. E olhem que hoje praticamente não saí do ba-nheiro.

Rubem Braga tem a veleidade de reclamar primazia da invenção de uma torneiraexterna nas geladeiras, para água gelada — idéia que já me havia ocorrido muito antes eque até hoje, ao que me conste, não foi ainda aproveitada. Um americano patenteou,antes de mim, o disco silencioso — invento que se destina não somente a fazer algunsminutos de silêncio para quem detesta a música das vitrolas automáticas dos bares, mastambém a ensinar aos papagaios e às mulheres a não falar. Um italiano, ao que meconsta, resolveu industrializar, como se fosse dele, a minha invenção do cigarro jáfumado: uma ampola de plástico, como aquela de fluido para isqueiros, contendo afumaça comprimida de vinte cigarros, e que se atarracha numa piteira, para uma

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fumadinha de vez em quando; dispensa fósforos e isqueiros, não oferece perigo de in-cêndio, não larga cinza no tapete e (consta) não provoca o câncer. Só que o tal italianoconfessou, meio encabulado, que depois de umas tragadas no seu (nosso) invento, nãoresiste e acaba acendendo um cigarrinho.

Certa ocasião, resolvi inventar uma proteção efetiva contra a chuva: uma espéciede saco de plástico transparente, sob o qual andaríamos pela rua sem perigo de nosmolharmos. Tive, porém, de abrir orifícios para os braços e, a fim de que estes tambémnão se molhassem, protegê-los com mangas. Emprestando maior facilidade ao uso danova indumentária, acabei abrindo-a na frente, de alto a baixo, e guarnecendo-a combotões. Abri também a proteção sobre a face, de resto dispensável, para facilitar arespiração. Restou a da cabeça, como um capuz. Eu havia inventado a capa de chuva.

Então, desapontado, rendi um preito de homenagem ao guarda-chuva — essainvenção extraordinária que jamais teria me ocorrido, imutável através dos séculos,objeto surrealista cuja origem se perde na noite dos tempos, obra de arte cuja perfeiçãoé o testemunho do gênio criativo do homem.

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Estou proibido de citar a velha frase atribuída a Mark Twain, a Bernard Shaw, aChurchill: nada mais fácil — já deixaram umas vinte vezes.

Pois aqui está o homem que deixou o cigarro. Mais um dia sem fumar! — diz ele,satisfeito, se olhando ao espelho antes de ir dormir. Sabe a data precisa: desde o diaonze de outubro de mil novecentos e setenta e dois (às três e trinta e cinco da manhã).Com isso exatamente nove meses. Está para nascer, de um momento para outro. Estápara nascer o homem novo, sem sarro nos dentes ou nos dedos, e sem úlcera deestômago, distúrbio das coronárias, enfisema pulmonar. Vai até a janela e respira fundoo ar puro da noite, batendo com as mãos espalmadas no peito. Vem-lhe a lembrançados tempos em que a essa hora fumava ali na janela o último cigarrinho antes de semeter na cama — lembrança que ele afasta como fumaça, sacudindo a mão no ar. Nofundo sabe que nunca mais será o mesmo, sente-se vagamente viúvo. Há nele qualquercoisa de ex-presidiário ou dedéfroqué:o cigarro o estigmatizou para sempre. “Mas pelomenos não morrerei de câncer” — conclui ele.

“Fumar é morrer um pouco” — diz um artigo que tenho diante dos olhos: “osfumantes têm uma probabilidade duas vezes maior de morrer na meia-idade do que osque não fumam”.

Sou um homem de meia-idade; e, como deixei de fumar há coisa de meia horaatrás, a minha probabilidade de morrer neste instante ficou reduzida à metade. Resta aoutra metade, ou seja, a morte em decorrência de outras causas. Quanto a estas, nãocreio que haja nada a fazer. Não há outros vícios que eu posso abandonar, a não ser ode viver.

Viver faz tanto mal à saúde quanto fumar. Viver também é morrer um pouco. Fazcair os cabelos e os dentes. Provoca rugas na pele, flacidez nos músculos e artrite nosossos. Enfraquece a cabeça, combale o organismo e ataca o coração. É o própriosuicídio preconizado pelos que não têm pressa.

E o pior é que os fumantes nem ao menos têm o consolo de saber que estãoafugentando a morte quando abandonam o fumo, pois diz aqui o tal artigo: “somenteao fim de dez anos de abstinência tabágica as possibilidades de falecer em conseqüênciado hábito são iguais às das pessoas que não fumam”.

Dez anos? Sei de um que não fuma há nove — portanto durante um ano estarásujeito a morrer por ter fumado. E até hoje ainda sonha que está fumando, acordaengasgado com a fumaça.

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Na adolescência cheguei uma ou outra vez a dependurar um cigarro na boca, massó para parecer que já era homem e não ser barrado no cabaré. Comecei a fumar de verdade aos 20 anos, corrompido por meu amigo Hélio Pellegrino (que hoje não fuma).Desde então me entreguei alegremente ao vício abominável. Fazer boca para o cigarroera um eufemismo que transcendia o simples cafezinho, para estender-se à própria vidaaté seu último instante. Pouco importava que fosse reduzida à metade, e daí? Fumar atéo momento final, como um condenado — dar a última tragada e enfrentar impávido opelotão de fuzilamento.

Como um condenado, me vi um dia sem um só cigarro em casa — era demadrugada e chovia. Ainda assim saí à rua para comprar, não poderia dormir semfumar. Andei como uma alma penada pelas ruas escuras e molhadas de meu bairro,nem um botequim aberto. Já me dispunha a tomar um táxi e mandar seguir para oquinto dos infernos, onde quer que houvesse cigarros à venda. De súbito percebi aescravidão que aquilo significava. Chovia cada vez mais, relâmpagos cortavam a noite.Nunca mais hei de fumar! — bradei para as potestades dos céus.

No dia seguinte me agarrei com ferocidade à surpreendente decisão, fumando atodo momento um cigarro imaginário. Ao segundo dia meu propósito se robusteceu —eu tinha vencido: em breve estaria respirando melhor, sem corizas e pigarros. E aoterceiro dia enlouqueci.

Não sei como não me internaram. Passei a ter ímpetos homicidas dentro de casa,crianças fugindo espavoridas como galinhas. Agarrava-me com todas as forças ao novo vício: o de não fumar. Só falava nisso, só vivia para isso. Depois do primeiro mês acoisa se tornou mais fácil, mas eu vivia triste como se tivesse perdido algum parentepróximo e querido. As pessoas me olhavam como quem diz:essehomem esquisito quenão sabe onde põe as mãos positivamente já não é o mesmo.

E sentado num sofá, vendo os outros fumarem, eu me sentia sem braços comoum cavalo.

Com o correr do tempo me acostumei. E para provar que eu deixara mesmo deser fumante, aceitei com naturalidade o cigarro que me ofereciam, depois de um jantar.

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Foi então que descobri a verdadeira e única fórmula de vencer o vício do fumo:deixar de fumar sem abandonar o cigarro. Um cigarro como complemento dasrefeições não faz mal a ninguém. Ou depois de um bom cafezinho — sejam quantasforem as xícaras tomadas diariamente. Um cigarrinho aqui, outro ali — podem mesmoser tantos quantos os de antigamente, mas com uma diferença: na boca de alguém que,por convicção, deixou de ser fumante. Tudo nesta vida é pura questão de convicção

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entrando outros, grandes e pequenos: mais uma velha, um mensageiro com um enormepacote debaixo do braço, mais outro, outro ainda, e o carinha de canivete contando, em voz alta: nove, dez, onze, doze, basta! Vamos subir. Subir! Mas a capacidade não é denove? Com a autoridade que lhe confere seu macacão de mecânico, ele extirpa de narizfino qualquer dúvida:

— Estamos em experiência.Fecha-se a porta e o elevador não sobe. — Sai um — ordena ele, tornando a abrir a porta.Ninguém quer sair, no primeiro instante. O homenzinho insiste, e o mensageiro,

por muito humilde, acaba saindo, pacote e tudo, embora não tenha sido o último aentrar. E o elevador, nem confiança, quando a porta de novo se fechou. Abre-se maisuma vez: sai outro! Um dos que estavam à entrada sai sob protestos, pois isso significaque terá de tomar o último lugar na fila do outro elevador. É agora! O elevadorfinalmente se mexe, faz que vai, mas, em vez de subir, solta um suspiro de desalento edesce ao poço.

Não desceu muito: menos de meio metro. Tanto bastou para que o velhoinchasse mais a barriga, iniciando a reação:

— Que diabo de experiência besta é essa? — Meu Deus, e agora? — uma mulher ao fundo tenta erguer os braços,

empurrando os demais: — Sofro de claustrofobia! — Se só agüenta nove, como é que deixou entrar dez? — reclama o crioulo. — Ele agüenta até quinze — retrucou o mecânico: — Mas não do seu tamanho.Desta o crioulo não gostou: — Não sei onde estou que não lhe prego uma bolacha. — Prega! — desafiou o Nariz Fino: — Então prega!O que era um contra-senso de ambos, pois um sabia muito bem onde estava:

num elevador enguiçado, braços tolhidos no aperto geral; e o outro sabia que naquelascircunstâncias ninguém lhe poderia pregar bolacha nenhuma. E eu ali firme, sem memexer: não fosse o crioulão pensar que estava querendo bolinar a sua cabrocha. A velhinha já encolhida sob meu paletó, quieta como múmia, aguardando osacontecimentos. E a mulher ao fundo a se agitar, tentando abrir espaço:

— Façam alguma coisa! Sofro de claustro-fobia.Carinhas curiosas surgiam na vigia gradeada da porta, que dali se podia ver,

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olhando para baixo. O mecânico entrou em brios e pediu auxílio: — Chamem seu Adelino! Digam pra ele ir lá em cima na casa de máquinas!Seu Adelino era o zelador, e entendia do riscado: atendeu ao apelo, foi lá em cima

como sugerira o outro — pela escada, levou uma eternidade. Deve ter tocado algumamanivela manual, pois ao fim de animada espera — estou com claustrofobia! uma coisadessas! arreda pra lá! se sabia que não agüentava! calma, minha gente! vai ser mecânicono inferno! — o elevador começou a subir devagarinho, sacolejando. Abriu-se a porta etodo mundo, incontido, quis sair ao mesmo tempo. Eu mesmo me esgueirei de fininho,entre a barriga do velho e os braços da claustrófoba, que finalmente conseguira erguê-los. Naturalmente, todos nós nos julgamos com direito adquirido à cabeça da fila diantedo outro elevador. A exigüidade do espaço impediu que a operação se fizesse emperfeita ordem.

O que, de resto, seria inútil: logo se abria à nossa frente um cubículo escuro e ocabineiro abandonava seu posto, sem dar confiança a ninguém, para comunicar aomecânico que o outro elevador também havia enguiçado.

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humanidade: não creio que em toda a minha vida tenha guardado corretamente sessentanomes na cabeça. O pior é que me vem sempre a insopitável cretinice de designaralguém que conheço por um nome semelhante ao seu, ou mesmo completamentediferente, sem nenhuma procedência, aumentando a confusão. É fácil perceber por queo Esmaragdo para mim é Maraschino, o Vinícius é Demetrius e o Josué é Samuel. Maspor que diabo chamo o Paulo Mendes Campos de Nicodemus e o Pedro Gomes deRamon?

Pois encontrei no tal livro um capítulo especialmente dedicado ao meu caso.Propõe um método prático e infalível de ligar para sempre uma fisionomia ao seu verdadeiro nome, evitando confusões futuras e as distorções que fazem surgir na minhamente uma floresta de apelidos. Consiste simplesmente no seguinte: primeirodestacamos no rosto da pessoa que não queremos esquecer um detalhe qualquer — obigode, por exemplo; depois ligamos o indivíduo em questão ao lugar em que oencontramos — vamos dizer a Praça General Osório; finalmente, juntamos seu nome — digamos Carlos Penteado — aos dois dados anteriores, numa frase que ficará parasempre na memória, representando simbolicamente a pessoa da qual não queremos nosesquecer. Assim: o General Osório penteou o bigode do Carlos. Ou então: o penteadodo Carlos Osório foi feito pelo general de bigode.

Fácil, como se vê. Diz o livro que então a presença da referida pessoa fará logosaltar-nos na mente a frase que compusemos, e nosso único trabalho será traduzir.Como medida de precaução, devemos sempre que possível anotá-la num caderninho,para não esquecer.

Outra coisa que o livro ensina, e que não me saiu mais da cabeça, é que nãoadianta quebrá-la, tentando arrancar dela aquilo que a gente esqueceu. Esta lição, pelomenos, imediatamente aprendi: deixei de fazer força para me lembrar do que quer queseja, e continuo vivendo como sempre, sem me lembrar de nada, mas pelo menos semme aborrecer mais com isso. Ainda há pouco me veio à lembrança um sugestivoexemplo com que ilustrar o meu progresso em matéria de memória, e que serviria debrilhante fecho a esta crônica. Como veio, foi — pouco importa: fecho-a assim mesmo.

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A SELVA DO ASFALTO

DESISTI de tomar aquele ônibus ali na Avenida Rio Branco, e bem andei, pois eu nãoiria longe: logo ao arrancar, esbarrou no pára-choque de um fusca verde à sua frente. Otrocador desceu para espiar. O dono do fusca verde, um homem já de cabelos brancos,saltou vermelho de raiva:

— Se é para arrebentar, arrebenta logo.Como resposta, o motorista fez o ônibus avançar, empurrando o fusca. — Você não faça isso de novo que eu lhe arrebento a cara! — ameaçou o outro,

plantado em plena rua, junto à janela do ônibus. — Cara que mamãe beijou? — e o motorista se abriu num sorriso de desafio;

tornou a movimentar o ônibus.Desta vez o fusca levou por trás uma boa traulitada, saiu rodando uns vinte

metros. A jovem ia cruzando a rua e deu um pulo de susto ao ver que ia sendoatropelada por um carro sem chofer. O fusca se voltou para a calçada e a fila ao longodo meio-fio se espalhou em pânico. O dono do fusca ergueu o punho para o motorista:

— Desce daí se você é homem! Te levo já pro distrito. — Então leva — respondeu o chofer, sem sair do lugar.E o trânsito paralisado. O povo se juntava para assistir à cena, alguns rindo,

outros dando palpites, outros protestando. O ambiente de modo geral era hostil aochofer do ônibus, que achou mais prudente se mandar dali. Atirou seu carro blindadocontra o povo, espalhando-o como formigueiro pisado, e acelerou — mas o fez tãorápido que deixou para trás o trocador.

O trocador resolveu comprar a briga: caiu em cima do homem aos socos epescoções. O homem era valente, apesar dos cabelos brancos: agarrou o trocador numa violenta gravata, que quase o troca em miúdos.

A esta altura o motorista do ônibus dera por falta do seu trocador. Abandonandoo carro superlotado no meio da Avenida, voltou como um gladiador, seguido de dois

escudeiros, que, solidários, também haviam deixado os respectivos ônibus:

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— Quede o homem? — Vamos dar um ensino nele. — Vamos é pro distrito! — insistia o dono do fusca. A multidão parecia prestigiá-

lo: — Prende! — Pro distrito! — Não respeitam nada.Esta judiciosa observação foi feita por mim. O trocador, mal refeito da gravata

que sofrera e tentando endireitar a sua, não mais que um trapo negro dependurado aopescoço, voltou-se pára mim:

— Ele me deu um pontapé. — Quem? Ele te deu um pontapé, meu irmão? — um crioulo desenroscou-se à

minha frente. Era um dos motoristas. — Não... — falei, conciliador: — Eu estava dizendo...Ele não parecia muito interessado em saber o que eu estava dizendo.

Prudentemente resolvi recolher-me à minha insignificância, fui tratando de dar o fora.O povo se fechava ao redor dos ases do volante, já ameaçando linchá-los. Eles agorareconsideravam sua disposição, buscando uma saída digna:

— O homem não é de nada. — Deixa pra lá. — Viemos só buscar o trocador. Quede o trocador? O boné do trocador?Recolheram o trocador, recolheram o boné do trocador e se afastaram, como

uma patrulha inimiga depois de cumprida a missão, cada um para o seu ônibus. O povofoi-se dispersando, entre comentários. O homem de cabelos brancos voltou para o seufusca verde.

Mas — ó bestas do tráfego! ó selva do asfalto! — havia um táxi à sua frente. Alguém lhe disse: “Pode ir. Pode ir que já dá.” Ele foi mesmo e não dava. Seu pára-choque enganchou-se no do táxi. Lá vem o chofer do táxi: “Que negócio é esse? É paraarrebentar?” O homem saltou do carro. “Vai começar tudo de novo”, pensei. E fui-meembora a pé.

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O IMPROVÁVEL RETORNO

— VOCÊ vai sair? — perguntava ela, apreensiva, ao vê-lo apanhar o paletó depois dojantar.

— Sair um pouco, dar uma volta. — Mal acabou de chegar... — Vou encontrar um amigo, conversar um pouco. — Por que não traz seu amigo para conversar aqui?Ele saía sem responder. Uma noite, afinal, ela protestou: — Hoje não quero que você saia. — Por quê? — espantou-se ele. — Porque toda noite é isso, eu não agüento mais! — e ela começou a chorar: —

Não agüento mais, fico com saudade de você. — Mas que bobagem é essa — e ele procurava acalmá-la, com um gesto de

carinho: — Dou uma volta para espairecer, tomo um café, volto logo para casa. Que éque tem isso de mais?

— Hoje eu não quero — insistiu ela: Hoje você não sai.Ele sorriu, condescendente, e se dirigiu para a porta — ela cortou-lhe os passos: — Eu vou com você. — Você nem está vestida para sair, vai se demorar... Daqui a pouco estou de

volta, que diabo.Como resposta, ela torceu a chave da porta e retirou-a: — Neste caso, você também não sai. — Deixa de bobagem e me dá essa chave. — Não dou. — Me dá essa chave — repetiu ele, já trêmulo de raiva.Ela se esquivou, vitoriosa, foi estender-se no sofá. — Olha — insistiu ele, procurando se conter: — Se você não abrir esta porta, vai

se arrepender. Eu saio de casa e nunca mais volto, entendeu?

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— Não abro. Quero ver você sair. — Ah, quer ver?Ele se voltou, caminhou com decisão até a janela, subiu no parapeito. Olhou-a

ainda uma vez, fez um gesto de adeus e saltou na escuridão.Ela deu um grito de horror e se precipitou também até a janela, olhou para a rua,

alguns metros abaixo. Teve tempo de vê-lo se erguer com dificuldade e afastar-searrastando a perna até dobrar a esquina.

Os dias se passavam e ela não tinha dele a menor notícia. Como ele não voltasse,pôs luto fechado, nunca mais saiu. Dias, meses, anos — envelhecia ali, sozinha naquelacasa, e não tolerava que se mudasse nada de lugar, que se mexesse nas coisas dele. Ossobrinhos iam visitá-la, ficavam impressionados:

— Titia, a senhora vivendo aqui tão sozinha, por que não vem morar conosco? — Quero que ele me encontre aqui quando voltar.Os amigos e parentes concordavam que o tio sempre fora meio esquisito,

esquivo, caladão, jamais voltaria. Se ainda estivesse vivo já se teria arranjado por aínoutro lugar, com outra mulher.

Cinco anos, dez, vinte — vinte e cinco anos! Ela acabara de completar cinqüenta,quando um dia teve afinal a primeira notícia dele. Notícia vaga, imprecisa, mas notícia:alguém que chegara do Rio Grande do Sul lhe falou de um fazendeiro com o mesmonome — falou casualmente, sem saber da história, e ela se acendeu: só podia ser ele, onome não era tão comum assim. Ficou sabendo que ele tinha ido para o Uruguai,casara-se, tivera filhos, enviuvara e afinal viera terminar com uma fazenda de gado nafronteira. Ela se pôs a escrever cartas sigilosas a quem quer que lhe desse, naquelaregião, maiores informações. Escreveu-lhe diretamente, ele não respondeu. Tornou aescrever — mandava-lhe cartões no seu aniversário, no Natal.

Chegou enfim uma resposta — algumas linhas lacônicas, porém amigas. Depoisde mais alguma troca de cartas, ficou estabelecido que ele voltaria.

E voltou. Calado, envelhecido, arrastando a perna que fraturara na queda vinte ecinco anos antes, reinstalou-se na casa como se dali jamais houvesse saído. Ela seenfeitara toda para recebê-lo — discretamente os dois procuravam ignorar as marcasque o tempo lhes impusera. A princípio ela o tratou com silencioso desvelo, buscandocativá-lo pela discrição com que aceitava o silêncio dele sobre tantos anos de ausência.

E agora ele já não fazia tanta questão de sair à noite — em geral, depois do jantar

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ficava no sofá fumando cachimbo e vendo televisão. Ela tricotava feliz — de vez emquando levantava os olhos e o olhava com amor.

Dois meses se passaram, até que uma noite ela se arriscou a perguntarmansamente, desta vez sem levantar os olhos:

— Ela era bonita? — Ela quem? — estranhou ele. — Sua mulher. Eu soube que você se casou com outra, teve filhos, enviuvou...Ele não respondeu. Mas a essa se seguiram outras perguntas — até que um dia

ele, inesperadamente, tornou a sair de casa (pela porta) para nunca mais voltar.Ela tornou a vestir luto e, a casa sempre arrumada, continua obstinadamente a

esperar a sua volta.

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A MULHER VESTIDA

EU ESTAVA num centro comercial de Copacabana e era sábado, pouco depois domeio-dia. Às tantas, comecei a ouvir uma martelação de ensurdecer. O dono de umalojinha de sapatos para senhoras chegou-se à porta, assustado:

— Que será isso?E saiu pelo corredor a investigar. Caminhávamos na mesma direção e logo

descobrimos que o ruído vinha de uma sala fechada, um curso de ginástica. Batiamdesesperadamente na porta, lá dentro — com um halteres, no mínimo.

— Que está acontecendo? — o sapateiro gritou do lado de cá.Uma voz chorosa de mulher explicou que a porta estava trancada, ela não podia

sair. — Quede a chave? — berrou o homem. — O professor levou — respondeu a voz.

— Que professor? — O professor de ginástica. — Espere, que eu vou chamar o zelador — arrematou o homem, solícito.E se voltou para mim: — O senhor podia fazer o favor de procurar o zelador para soltar a mulher? Não

posso abandonar a minha loja sem ninguém. Assim, ele ia tirar a castanha com a mão do gato. Não tive outro jeito senão sair à

procura do zelador.Encontrei-o à porta do prédio chupando uma tangerina. Era um pau-de-arara

delicado e solícito, mas infelizmente não podia fazer nada: não tinha a chave da sala. Voltei ao corredor, vencendo a tentação de cair fora de uma vez, deixar que a

mulher se arranjasse. A bateção recomeçara, ela parecia disposta a botar a porta abaixo: — Abre essa porta! Pelo amor de Deus! — Calma, minha senhora — berrei do lado de cá: — Vamos ver se a gente dá um

jeito.

No corredor ia-se juntando gente, e várias sugestões eram aventadas: abrir umburaco na parede, chamar o Corpo de Bombeiros, retirá-la pela janela.

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— Deve ser uma mulher forte pra chuchu. — Eu se fosse ela aproveitava e quebrava tudo lá dentro.Pensei em transferir a alguém mais a tarefa que o sapateiro me confiara, não

encontrei ninguém que parecesse disposto a aceitar a responsabilidade: todos selimitavam a fazer comentários jocosos, estavam é se divertindo com o incidente. Desúbito me ocorreu perguntar à mulher o número do telefone do professor. Foi umcusto fazê-la cantar de lá a resposta, algarismo por algarismo. Saí para a rua à procurade um telefone — tive de andar um quarteirão inteiro até uma farmácia, onde fiqueiaguardando na fila. Chegou afinal a minha vez. Atendeu-me uma voz de criança, certa-mente filha do professor. Que ainda não havia chegado em casa, pelo que pudeentender:

— Escuta, meu benzinho, diga para o papai que tem uma mulher trancada na salalá do curso dele, está me entendendo? Repete comigo: uma mulher trancada...

Não havendo mais nada a fazer, resolvi tomar o caminho de casa — mas acuriosidade me arrastou mais uma vez até o centro comercial, para uma última olhadasem compromisso.

O interesse conquistara todo o andar, espalhava-se aos demais, ganhava a rua:gente se acotovelava diante do prédio, agora era uma multidão de verdade que

acompanhava os acontecimentos: — Por que não arrombam a porta de uma vez? — O que é que a mulher está fazendo lá dentro? — Dizem que ela está nua. A palavra mágica correu logo entre a multidão: nua, uma mulher nua! e cada vez

juntava mais gente, ameaçando interromper o tráfego: — Mulher nua! Mulher nua! — gritavam os moleques.Dois soldados da polícia militar passaram correndo, cassetete em riste, sem saber

para onde se dirigir. A multidão se abriu, precavidamente. Um homem de ar decididopedia licença e ia entrando pelo centro comercial a dentro, como quem vai resolver oproblema. Devia ser algum comissário de polícia.

Era o professor, que comparecia com a chave, não sei se mercê do meu recado.Em pouco a porta do curso de ginástica se abriu e a mulher saiu, ressabiada —completamente vestida. Era baixinha e meio gorda, estava mesmo precisando deginástica.

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A VOLTA DOS HIPPIES

“Três coisas me são difíceis de entender e uma quartaeu ignoro: o caminho da águia no ar, da serpente sobrea pedra, da nau no meio do mar e o caminho dohomem na mocidade.” (Provérbios, 30-19)

SÃO namorados. Companheiros, como preferem dizer. Ele tem 22 anos e veio doCeará. Família tradicional no Nordeste, pai proprietário rural, cinco irmãos. Ela tem 21anos, do Rio mesmo, pais desquitados, três irmãos, morando todos com a mãe. Doisanos atrás, cada um por si, resolveram largar tudo e se mandar. Ele trabalhava numaagência de publicidade, ordenado razoável, mas não tinha jeito para a coisa. Elaestudava Comunicação, achava o ensino péssimo, os professores incapazes: ficar quatroanos na escola por um diploma? Bem, não era propriamente isso o que ela queria da vida. Então o que você queria? Sei lá, diz ela: viver. E ele também: eu queria curtir a vida, saca? Resolveram trocar uma situação segura por um salto no escuro. E ganharamo mundo.

“O homem, quando jovem, é só, apesar de suasmúltiplas experiências. Ele pretende, nessa época, conformar arealidade com suas mãos, servindo-se dela, pois acredita que ganhando o mundo, conseguirá ganhar-se a si próprio.”

(Hélio Pellegrino)

A fase de contestação política tinha sido rápida: manifestos, passeatas, comícios,tudo isso de súbito também já era. Preferiram ficar na deles. A princípio a gente sóestava a fim de curtir um som, entende? Respondem sempre assim, um falando emnome de ambos, nunca na primeira do singular, mas numa forma vagamente coletiva

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que dá a impressão de estarem falando em nome de uma comunidade a que pertencemchamada gente.Pois a gente passava o dia inteiro tirando um som, era legal; sempre tinhaum que curtia um violão, uma flauta doce... E os discos: Areta Franklin, Jane Joplin, Jimmy Hendrix, o pessoal todo da pesada, Pink Floyd. Como ouvir música sem puxarum fumo? Foi a fase em que todo aquele que não fumava maconha era careta. Ou, piorainda, se, como eu, preferia um uísque: biriteiro.

Desprezo? Sem esta, bicho: a gente não despreza ninguém, pelo contrário: obarato é justamente estar ligado, saca? a gente se sentindo bem com todo mundo, semgrilo, cada um na sua. Tão legal que até fica sendo pouco e alguns vão mais longe,muito pirados: bolinha, ácido, cheiro, pico.

Viagem sem volta: dependência, tráfico, chantagem, prostituição, loucura, morte.

“Oisive jeunesse A tout asservie” Arthur Rimbaud

Eles dois não foram’ apanhados na escalada infernal. Tiravam um sarro de vez emquando, mas sem aquela da dimensão mística, de fundo religioso ou coisa parecida.Para eles, “toda experiência, mesmo negativa, é sempre positiva”. Então saíram por aí:Parati, Búzios, carnaval na Bahia. Ela já de vestido longo e cabeleira frisada à moda deGal ou Bethânia; ele de túnica branca, calças boca-de-sino, cabelos pelos ombros. Nãosabiam o que queriam: justamente para ficar sabendo é que saíram de casa.

Pois agora os hippies estão voltando. Estes dois, pelo menos, estão de torna- viagem: passaram pela fase da vida primitiva em meio a pescadores; pela defesa danatureza contra a poluição do mundo civilizado, a fase ecológica; pela macrobiótica, ameditação transcendental, Herman Hesse, filosofias orientais, zen-budismo. Estão de volta, e, coisa espantosa: pensando em se casar.

“Oh juventude louca, amor insaciável!” Mário de Andrade

Acreditam que o casamento até que tem lá a sua graça, principalmente paraalguém como eles: pretendem montar casa, morar juntos e, quem sabe? até mesmo ter

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filho. Casando direitinho a família ajuda. Estão dispostos a trabalhar, se for preciso:trabalho humilde, não precisarão de muito para viver felizes: artesanato, para vender naPraça General Osório. Já sabem o que querem: fazer alguma coisa de útil e viver empaz.

Sem perceber, eles correm o risco de acabar descobrindo que hoje em dia o legalé ser legal.

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A VINDA DO FILHO

JOSÉ conhecia bem o caminho: mesmo na escuridão subiu o morro com facilidade, aspernas ágeis galgando a trilha estreita e tortuosa. Nem chegou a entrar no barraco — daporta mesmo chamou a mulher:

— Vamos, Maria, tá na hora. A negra, que já o esperava, agarrou a trouxa, apagou o lampião e se juntou a ele. — Eu trouxe o que pude — informou, como a se desculpar.Foram descendo a ladeira, ele na frente, ela um pouco atrás, penosamente. O

ventre enorme lhe dificultava os movimentos. Em pouco arfava, detendo-se a cadainstante:

— Não posso mais. — Vamos mulher — ele insistia: — A batida começa duma hora pra outra. — Pra onde a gente vai?Ela não esperava obter resposta. Sabia já o que para ela ia começar de uma hora

para outra.Ele só se deteve quando chegou ao nível da rua. Ficou olhando de um lado para

outro, indeciso. A luz do poste na esquina iluminava seu rosto carregado depreocupação. Era um crioulo forte e desempenado, ainda jovem, mas o momento deemoção que vivia o tornava mais velho.

— Não sei: por aí — respondeu inesperadamente, e pôs-se a caminhar.Ela o seguiu, submissa. Sentia já as primeiras dores. Para aumentar sua aflição,

começou a chover. — Para onde nós vamos? — ela perguntou novamente, desta vez com decisão:

— Melhor a gente voltar... — Voltar? Você está ficando doida? — e ele parou, irritado, de novo olhando ao

redor.De novo foram caminhando, agora sob a chuva cada vez mais forte. Logo se

viram diante da imensa armação de cimento do viaduto em construção.

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— Ali — apontou ele com decisão.Chegaram a sorrir quando, molhados e ofegantes, se viram já ao abrigo da chuva,

agachados naquela espécie de nicho, sob o viaduto, entre pedaços de tábua e montes deentulho.

— Eu tenho dinheiro aqui — disse ele apalpando o bolso: — O doutor me pagouhoje o conserto naquele armário.

— Que é que adianta? — ela resmungou, num gemido, já sentada no chão, pernasestendidas, mãos sobre o ventre. — A gente tem de se esconder.

— Vão prender todo mundo — ele retrucou. — Que culpa que a gente tem? — Nenhuma.Carrancudo, ele parecia ter dado o assunto por encerrado. Ficaram calados algum

tempo, dispostos a passar a noite ali. Ela aos poucos começou a contar, em meiaspalavras, o sonho que tivera na noite anterior: um homem estranho lhe dizia que seu fi-lho ia ser muito importante e que ia nascer na noite de Natal, era para ela botar nele onome de Jesus. Ele ouvia espantado, tanto mais que, descobria agora, estavam na noitede Natal. Ela ia contando o que o homem dissera.

(O homem só não dissera que um dia o filho ia morrer, não numa cruz, mascrivado de balas numa estrada do Estado do Rio, liquidado pelo Esquadrão da Morte.)

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— Aquela linha boba que não pára? — Defeito no equipamento. O jeito é tentar outra. — Chamada que não se completa? — Sobrecarga. — Número errado o tempo todo? — Defeito.Quando não é sobrecarga, é defeito. E aquele sinal de ocupado que vem depois

que a gente liga, pensa que me enganam? Aquele sinal é falso, não está ocupado coisanenhuma.

— Só nas novas estações acontece isso. — E nas outras? — Não acontece nada.Estou falando com um representante da Companhia Telefônica Brasileira, da

seção de Relações Públicas, para esclarecer umas tantas coisas. Pelo telefone, depois demeia hora de tentativas. Ele não falou propriamente assim, estou resumindo: foiamável, interessado e convincente, Quando soube que eu pretendia escrever sobre oassunto, se dispôs logo a colaborar. Disse que a CTB não estava tentando livrar a cara,pelo contrário: é a primeira a reconhecer que o sistema é deficiente e está procurandomelhorá-lo. Por exemplo: este ano vão inaugurar novas estações, a partir de abril —uma por mês. O que quer dizer que haverá menos sobrecarga. Outras providências queestão tomando reduzirão os defeitos.

Mantivemos uma instrutiva conversa de quase uma hora, durante a qual nãoaconteceu nada: nem linhas cruzadas, nem ruídos (ou música, como costumaacontecer), nem queda de ligação, como se diz hoje em dia, quando a chamada pifa. Aofim, eu estava satisfeito: conseguira falar ao telefone. Agradeci e desliguei.

Não sem antes defender uma velha tese minha, segundo a qual uma das maneirasmais eficientes de melhorar os serviços telefônicos seria incentivar a utilização dosCorreios e Telégrafos.

“Telefonavas, telefonavas”Manuel Bandeira

Reconheço publicamente que sofro da síndrome de Graham Bell. Doença terrível

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no Rio de hoje — a dos maníacos como eu, que não podem passar sem um telefone:tornei-me sério candidato a uma temporada de cura e repouso no Pinel.

— E a linha cruzada? — Contato nos cabos. Quando chove penetra umidade no cabo, e dá linha

cruzada.É o serviço telefônico mais barato do mundo: permite participar da conversa de

uma porção de gente ao mesmo tempo e pelo mesmo preço. — Quantos telefones tem no Rio? — Tem 12 aparelhos para cada 100 pessoas. Não pode se comparar a

Washington, por exemplo, que tem 98, ou Nova York, que tem 60.Não estou comparando, estou só perguntando: — E quantos entre estes cem podem falar ao mesmo tempo? — Vinte e cinco.Considerando-se que estarão falando com outros 25, já são 50 — nada mal. — Que acontece se os cem resolvem falar ao mesmo tempo? — O sistema entra em colapso.Como costuma acontecer quase toda tarde. (Dizem que a culpa é do jogo do

bicho.) Tenho um amigo que conseguiu se livrar dos que o importunavam pelotelefone, pedindo que o chamem sempre entre cinco e sete da tarde.

“Meu telefone agora vive mudo E o dela sempre em comunicação.”

Fox-canção de Orestes Barbosa

— E os macetes que o carioca inventou para conseguir ligação? — Não adiantam nada. Bater no gancho para conseguir linha é sair do princípio

de uma fila e entrar no último lugar. Prender o disco, forçar a sua volta, discar devagarou depressa, acrescentar mais um algarismo — nada disso adianta. Tem gente queacredita até em discar com a mão esquerda para dar sorte. Ou com o dedo mindinho,sei lá.

— Conseguir telefonar ainda é uma questão de sorte? — Mais ou menos: aumentou o número de usuários de maneira assustadora,

fazendo com que o problema continue grave, apesar das melhorias.

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Quer dizer que, tudo considerado, o serviço piorou porque o sistema melhorou. — Para terminar, uma última pergunta: por que será que basta discar um número

errado para que atenda sistematicamente uma alemã malcriada, de sotaque carregado?

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O PREÇO DA ADMISSÃO

DE UM velho escritor, procurando incentivar outro ainda jovem: — O escritor é um homem que passa a vida conversando consigo mesmo. Só há

uma verdadeira vantagem em envelhecer: é que, com o correr do tempo, a conversa vaificando cada vez mais interessante.

De um comentário do “Time” sobre Hemingway:“O segredo da autenticidade de tudo que escrevia estava em que sabia olhar a

verdadeira face da vida, testemunhando o que acontecia ao seu redor como se fossepela última vez, ou seja: como se fosse morrer no dia seguinte.”

E foi o que o matou: devia olhar o que acontecia ao seu redor como se fosse pelaprimeira vez, ou seja: como se tivesse acabado de nascer.

Porque só devemos escrever sobre aquilo que (ainda) não sabemos.Conselho do próprio Hemingway a um jovem escritor:“Procure lembrar-se dos ruídos e do que eles lhe diziam. Descubra aquilo que lhe

causou emoção, a ação que o excitou. Então escreva tudo isso, da maneira mais clarapossível, para que o leitor veja também e tenha o mesmo sentimento que vocêexperimentou. E não se esqueça: prosa é arquitetura e não decoração interior. Obarroco já passou.”

O barroco já passou, mas prosa não é nem arquitetura nem decoração interior. Éprosa mesmo — e tudo mais é literatura.

De uma entrevista de William Faulkner, pouco antes de sua morte:“O fracasso faz bem à gente. Se somos bem sucedidos durante muito tempo,

alguma coisa morre, seca e sucumbimos sob nosso próprio peso, como aconteceu atantos impérios e dinastias.”

E ainda:“Acho que o tema, a história, cria seu próprio estilo. Se a gente perde muito

tempo se preocupando com o estilo, acaba não sobrando nada além do estilo.”O que, em última análise, quer dizer que ter estilo é escrever sem estilo algum.

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Ou, segundo Jules Renard: “O estilo, este esquecimento de todos os estilos.”Nem com isso o problema do escritor deixa de ser fundamentalmente um

problema literário — e eis onde reside o sofisma de seu destino, do qual ele procurainutilmente escapar.

“Quando se possui a idéia, a palavra jamais há de faltar.” De uma carta deFlaubert a George Sand. Desmentido por Jules Renard, cujo medo era de “acabar nãopassando de um Flaubert de salão, inofensivo”: “Percebo que serei atormentado pelafrase. Dia chegará em que não serei capaz de escrever uma só palavra.”

De Paulo Mendes Campos: “Quem tem facilidade de escrever, não é escritor: éorador.”

De Sinclair Lewis, sobre a dificuldade de colocar-se na postura psicológica (efísica) de quem vai escrever:

“Escrever é a arte de sentar o traseiro numa cadeira.”E por último, o conselho de Carlos Drummond de Andrade a um jovem escritor:“Só escreva quando de todo não puder deixar de fazê-lo. E sempre se pode

deixar.”

Há muita vocação de escritor por aí, mas ainda maior é o número dos quepensam que para escrever basta aprender a ler. Por isso é que no Brasil há maisescritores que alfabetizados.

As cartas de leitores que recebo, na sua maioria, se não vêm logo acompanhadasde uma produção literária qualquer, revelam uma pretensão de escritor em perspectiva,tentando originalidade, ou querendo parecernatural.Os poucos que se salvam damediocridade valem mais pelas qualidades humanas que por uma vocação para aliteratura. A estes, eu diria que para se realizar integralmente como homem, ninguémprecisa serartista,e muito menos escritor.

Quem puder fugir, que fuja — se for possível não escrever, siga o conselho deDrummond, não escreva. A vocação certamente estará noutra atividade e pode serespoliada para sempre.

Ainda agora recebo duas cartas de leitores que se viram estimulados a tambémescrever crônicas. A crônica parece o gênero mais fácil, e realmente é, para os que nãoousam ou não merecem tentar uma experiência literária mais duradoura. (O verdadeiro

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escritor em geral busca nela apenas um meio de vida que se oferece, mas conscientemuitas vezes de estar trocando em miúdos as exigências de sua vocação.) Um dosmissivistas chegou mesmo a dizer que interrompeu o curso de medicina para “tentar asletras”. Pelo que escreveu, estou certo de que daria um excelente médico.

Não direi isto a ele, em verdade não lhe direi nada: se for mesmo um escritor,continuará escrevendo, a despeito do que eu lhe disser ou deixar de dizer. Se não for,não há de ser conselho meu que o salvará do equívoco.

E é uma pena, porque o Brasil anda precisando tanto de médicos.

Não é a primeira vez que me vêm às mãos originais desta espécie. Trata-se, agora,de uma senhora que “nasceu para fazer alguma coisa”, conforme teve ocasião de medeclarar. Sabendo-a casada, ocorreu-me aconselhar que fizesse filhos — mas já os tinha,e neste caso melhor fora que deles cuidasse. Estou certo de que, se canalizasse para osafazeres do lar e a vida em família o esforço despendido com a sua veleidade literária,realizaria uma obra-prima. Não sei se me entendeu. Não chegou a dizer-me o quepretende, escrevendo um romance — se acaso me perguntasse o que pretendoescrevendo o meu, não saberia responder-lhe; seja como for, os problemas quecertamente a afligem não se solucionam com a vaidade de escrever e publicar um livro,por mais sucesso que o mesmo faça. E este, não tenho a menor dúvida de que não fará.

É um trabalho que não penetra nem os mais longínquos subúrbios da literatura.Fosse uma tentativa de principiante na carreira literária, e os defeitos mais evidentes lheserviriam de referência para o aprimoramento na arte de escrever. O que acontece,porém, é que ela, sem necessidade alguma de exprimir-se literariamente, busca afirmar-se numa atividade artística que transcenda às limitações de sua vida cotidiana. E escolhea literatura, como poderia ter escolhido o bordado ou a culinária.

A verdade é que ninguém se mete a projetar e executar um edifício sem serarquiteto, como não se prestaria sequer a idealizar um monumento sem conhecimentoalgum no campo da escultura. É exatamente pelo fato de lidarmos na vida diária com oinstrumento peculiar à literatura, a linguagem escrita, que tantos embarcam na ilusão deque escrever dispensa iniciação, aprendizado e disciplina de suas aptidões. Sem ummínimo de noção do que seja a literatura, e até mesmo do que seja sintaxe ou or-tografia, o diletante sai a todo vapor para começar por onde os outros acabam. E o

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resultado é a eclosão, aqui e ali, das mais desastrosas improvisações.Mas pode acontecer — e tem acontecido — que a tentativa frustrada não seja

senão um passo em falso no caminho de decepções, renúncias e sacrifícios que levarãodolorosamente o autor à sua realização artística, pela exigência feroz de uma vocação.Não creio que este seja o caso que tenho em mãos, como tantos outros. Se for,consola-me a certeza de que essa vocação se realizará, a despeito da opinião de quemquer que seja, contra tudo e contra todos.

Daí a sabedoria de Manuel Bandeira, respondendo a uma jovem que lheperguntou qual o conselho que ele daria a quem quisesse iniciar-se na literatura:

— Apenas este: não pedir conselho a ninguém.

Escrevo diariamente desde os quinze anos de idade. Bem ou mal, já gasteitoneladas de papel e meus dedos até parecem mais curtos de tanto martelar as teclas damáquina. Posso dizer que passei a vida alinhando palavras, teimoso como um jumento,na tentativa de me exprimir literariamente. E se continuo insatisfeito, pelo menos mesatisfaço com a impressão de que estou sempre começando e cada vez há mais aaprender.

Por isso me espanta que alguém busque se iniciar na literatura sem mais nemmenos, pouco ou quase nada querendo dar de si. E omitindo o essencial a alguém quese inicia: a sua própria experiência oferecida em sacrifício.

Não estou me referindo ao que se profissionaliza na prática da atividade literáriacomo meio de vida. Falo naquele que se dá um destino, cujo noviciado exige estaespécie de provação. É o primeiro passo — o espetáculo de si mesmo que o escritortem a oferecer, expondo-se à curiosidade ou mesmo à execração pública — sem o qualos outros passos não virão. Talvez seja a isso que Machado de Assis queria se referir,quando disse que “alguma coisa temos de sacrificar”.

Numa carta de Scott Fitzgerald encontro alguns conselhos a um jovem escritor,que nos falam exatamente no sacrifício exigido:

“Você tem de vender seu coração, suas reações mais poderosas, e não apenas aspequenas coisas que o tocaram ligeiramente, as pequenas experiências que você poderácontar ao jantar. Isso é especialmente verdadeiro quando você começa a escrever,quando não desenvolveu ainda os recursos com que prender os outros ao papel,

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quando nada tem da técnica que leva tempo para aprender. Quando, em suma, vocêtem apenas emoções para vender. O amador, vendo que o profissional, depois deaprender tudo que podia em matéria de escrever, consegue pegar um assunto trivial,como as reações mais superficiais de três moças comuns, por exemplo, e dar-lheencanto e graça — o amador pensa que ele ou ela pode fazer o mesmo. Mas o amadorsó consegue realizar sua habilidade de transferir emoções a outra pessoa através doexpediente desesperado e radical de arrancar do coração a trágica história de seuprimeiro amor, e expô-la nas páginas para que os outros vejam. Este, de qualquerforma, é o preço da admissão.”

Era o que Mário de Andrade procurava dizer-me, afirmando apenas que“Beethoven compôs primeiro aHeróicapara depois compor aPastoral”.Fitzgerald vaimais longe:

“Alguém disse certa vez: um escritor que consegue olhar um pouco maisprofundamente a sua própria alma e a alma dos outros, encontrando ali, graças a seutalento, coisas que ninguém jamais viu ou ousou dizer, aumenta com isso o âmbito da vida humana. Eis porque o escritor jovem, quando chega à encruzilhada do que dizer edo que não dizer, no que se refere a caráter e sentimento, é tentado a se deixar levarpelo já conhecido, admirado e aceito correntemente, pois escuta uma voz sussurrandodentro de si mesmo: ninguém se interessaria por este meu sentimento, este ato semimportância — portanto deve ser apenas peculiar a mim, não deve ser universal, neminteressante, nem mesmo certo. Mas se suas qualidades são poderosas — ou se ele temsorte, como preferir — outra voz nessa encruzilhada o fará escrever tais coisas apa-rentemente insólitas e sem importância, e isso, nada mais, é o seu estilo, suapersonalidade — eventualmente todo ele como artista. Aquilo que tentou jogar fora, ouque muito freqüentemente jogou mesmo fora, vem a ser o toque de graça que o salva-ria. Gertrude Stein tentou exprimir pensamento semelhante ao dizer — referindo-semais à vida que às letras — que lutamos contra as nossas qualidades mais excepcionaisaté cerca dos quarenta anos, quando então descobrimos, tarde demais, que elascompunham o nosso verdadeiro ser. Eram a parte mais íntima de nós mesmos, quedevíamos ter nutrido e acalentado.”

E isso é tanto mais expressivo, se referido por alguém que, por dever de ofício,tem-se limitado tantas vezes a escrever sobre “as coisas que o tocaram ligeiramente, aspequenas experiências que poderia contar ao jantar”.

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VINTE PENOSOS ANOS DEPOIS

UMA tarde de maio de 1944 um jovem de 20 anos aguardava sua noiva numaconfeitaria da moda na Cinelândia. Ela telefonara para o seu novo emprego, marcandoum encontro por motivo da maior importância, que lhe diria pessoalmente.

Que poderia ser? Ele fazia mil conjecturas enquanto esperava, desistindo dosorvete que preferiria tomar, em favor de um vermute, que lhe daria um ar mais adulto,como certamente a ocasião exigia.

— Uma audiência com o Presidente — ela foi informando logo. — Paraagradecer a nomeação.

Ir ao Presidente agradecer algo que não lhe pedira significava para ele umaabdicação. A nomeação para o rendoso cargo surgira como uma in-junção docasamento — por isso havia concordado. Mas agradecer ao ditador, que ele repudiava?(Além do mais o cargo nem tão rendoso era assim, como já tivera ocasião de verificar.)Nem por isso seus ideais democráticos de estudante haviam morrido, continuava a terlá as suas convicções.

Ele seguia de cara amarrada no carro oficial, ao lado da moça: ela o havia vencido,mas não o convencera. Ganharam a Rua Paissandu em direção ao Palácio Guanabara,residência presidencial naquele tempo. De súbito ele se inclinou para a frente e ordenouao motorista que parasse:

— Você vai sozinha — disse, já abrindo a porta. — Te espero na praia.Estavam quase transpondo os portões do palácio quando ele saltou e se afastou

rapidamente sem olhar para trás. Ouviu o carro dando partida e foi caminhando emdireção à praia. Mal vencera a segunda quadra, o carro voltava, detendo-se a seu lado:

— Mandaram buscar o senhor — e o motorista já saltava para abrir-lhe a porta. Apanhado de surpresa, deu consigo já dentro do carro, que seguia de volta ao

palácio. Na portaria um oficial de gabinete à sua espera o introduziu numa saleta onde anoiva o aguardava.

— Que aconteceu? — perguntou, intrigado.

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— O Presidente mandou te buscar. Ele te viu da janela.

A primeira vez que vi Getúlio Vargas de perto (em Belo Horizonte, 1943) euusava uma farda de gala (emprestada) de oficial do Exército. A indumentária seimpusera por duas razões: queria não deixar dúvidas de que havia terminado meu cursono CPOR, e não tinha casaca, que a ocasião exigia: tratava-se de casamento de umacontraparente, da qual o Presidente era padrinho.

— Pronto para a guerra, tenente? — disse ele com um sorriso, quando lhe fuiapresentado.

O sorriso me pareceu estereotipado como o de uma máscara. Este mesmo sorrisosurpreendo agora em várias seqüências de um filme sobre a sua vida, atualmente emexibição. Trata-se de um documentário com precioso material de pesquisa e cheio deinteresse — mas nem por isso saio do cinema menos acabrunhado. A direção, emborarevelando competência e sensibilidade, pareceu-me ter cometido, com a melhor dasintenções, a falta de Jorge Ileli noutro excelente filme sobre o mesmo assunto que vi hátempos numa exibição particular. Ambos praticamente esqueceram a ditadura de Vargas e passaram como gato sobre brasas pelas verdadeiras razões de seu suicídio.Com isso contribuem para perpetuar um mito em que eles próprios parecem acreditar.

E saio acabrunhado do cinema porque o que eu pude ver foi a evocação de umatriste fase de nossa História: a vaidade, a ambição, o cinismo paternalista, o culto àpersonalidade, as presepadas cívicas, as fanfarrices do Poder, as diversões mundanas domundo oficial — todo esse caldo de cultura que nos restou de uma época inspirada nohomem cuja única preocupação foi sempre a de perpetuar-se no Poder.

Depois de uma das noites mais agitadas de nossa História, a manhã se firmousobre a cidade, mas o silêncio continuou nos salões do Palácio do Catete. De repente seouviu um tiro, vindo dos aposentos presidenciais. Eram exatamente 8 horas e 35minutos do dia 24 de agosto de 1954.

Durante 10 anos acreditei que esse disparo marcasse realmente um momento degrandeza na vida pública do homem que sempre ignorou as torpezas praticadas à suasombra: as da ditadura que brutalizou o país de 1937 a 1945 e as que o levaram à morteem 1954. Hoje acredito que ele estava apenas saindo da vida para entrar na História,como disse em sua famosa carta-testamento. A ser ela autêntica — do que, aliás, nunca

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— Já — e, irresistível, só lhe vinha como resposta a lembrança de uma dasanedotas a ele atribuídas: — Mas ainda não recebi os atrasados.

O Presidente meneava a cabeça, ar complacente, como quem concorda semprestar atenção. Mais algumas palavras de cortesia trocadas com a moça e se despediu,desaparecendo atrás da cortina. O rapaz estava perplexo: a audiência não durara trêsminutos. Desde então, nunca mais o viu.

E até hoje não entendeu por que ele fez questão de mandar buscá-lo.

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FANTASMAS DE MINAS

ASSIM que ele soube que eu e ela pretendíamos passar o carnaval em Ouro Preto e nãoconseguíamos hotel, amavelmente ofereceu-nos sua casa. É uma linda casa, informoucom ar matreiro.

Tão matreiro que dava até para desconfiar. Mas eu já ouvira falar na casa, dotempo em que Marchette morava lá e passava o dia pintando seus belos quadros defundo verde-escuro. O próprio Scliar retratou recentemente, numa sucessão múltipla delindos quadros, 180 graus da paisagem de Ouro Preto vista da janela da casa. E eu sabiaque Vinícius, entre outros, costumava passar longas temporadas hospedado lá. Umacasa de artistas, portanto. Não havia por quê desconfiar.

E lá fomos nós, serpenteando pelas longas estradas de Minas. Passamos Juiz deFora, Barbacena, Santos Dumont — quando dei por mim Belo Horizonte já estavapintando e nada de Ouro Preto. Paramos num posto de gasolina.

— Pode nos informar se já passamos a estrada de Ouro Preto?O mineiro coçou a cabeça, cauteloso: — É conforme, moço: de que lado ocês tão vindo?

Minha primeira desconfiança surgiu diante do portão: enorme, enferrujado comoo de um cemitério do interior, fechado a cadeado com duas correntes, sinistro dentroda noite que baixara. E atrás dele não havia casa alguma.

— Pula o muro — sugeriu um menino, morador nas vizinhanças. — É assim queo caseiro faz.

O muro de pedra era realmente baixo e fácil de ser pulado. Então para que oportão? — me perguntei, depois de seguir a recomendação do menino.

Não tive tempo de me perguntar mais nada: de súbito me vi despingolandopirambeira abaixo, tropeçando no calçamento de pedras irregulares, mergulhando naescuridão como nas profundas dos infernos. Consegui afinal frear o corpo diante de

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uma pontezinha de madeira envolta em sombras — e divisei a casa, do outro lado,encravada no meio da encosta, portas e janelas fechadas. Tudo às escuras, sem o menorsinal de vida. O caseiro, onde estaria o caseiro? Pelo sim pelo não, resolvi voltar e voltarcorrendo, escarpa acima, antes que as sombras me engolissem. Cheguei ao portãobotando o coração pela boca, entrei no carro:

— Não tem ninguém lá — informei, quando recuperei a fala.O mesmo menino nos ensinou onde morava o caseiro — e em pouco a mulher

do caseiro vinha abrir a casa para que nos instalássemos. Pairava nos quartos fechadosum ar de cinco meses atrás. Preferimos os de cima, instintivamente recusando asugestão da caseira, segundo a qual Vinícius costumava ficar nos de baixo: o acesso aeles se fazia por uma escada apertada e lúgubre como as que levam às masmorras de umcastelo.

— Não deixem de trancar bem as portas — recomendou a mulher. E nosentregou à nossa própria sorte.

Nessa primeira noite atribuí o sussurro de vozes no porão ao vento que sopravalá fora; o ruído de portas que se abriam e se fechavam a estalos de madeira velha; ospassos no corredor aos excessos de minha mórbida imaginação. Não disse palavrasobre o assunto — mesmo porque não teria voz para tanto. Preferi fingir que dormia, ea manhã veio me encontrar insone, mas lépido e fagueiro como um ressuscitado: a luzdo dia reintegrava a casa em seu contexto, harmoniosamente recomposta na paisagemde Ouro Preto, como me haviam antecipado: realmente uma bela casa antiga.

Talvez um pouco mais antiga do que eu desejaria.Mas o que não é antigo na antiga Vila Rica? O Pouso de Chico Rei, por exemplo,

onde fomos recebidos de maneira fidalga com um excelente almoço, é um modelo debom gosto em matéria de antiguidade. Lá encontramos toda uma equipe de cinema,empenhada na filmagem daquela história de Drummond sobre a moça que recolhe umaflor num sepulcro e à noite recebe telefonemas sepulcrais.

Por causa do carnaval, os guardas impedem a passagem dos carros nas ruas docentro, o jeito é mesmo ir a pé. E tome ladeira. Há quem sugira que a melhor maneirade subir é de costas, para se ter a ilusão de estar descendo. E o carnaval comendo soltona cidade, com bumbos e zabumbas tocando zé-pereira noite adentro. Só que isso nãotem nada a ver com Ouro Preto.

Então nos recolhemos à nossa tebaida. Transpomos o pesado portão de ferro e

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Em Congonhas o que há é a igreja sob a guarda de seus doze Profetas. Dozefantasmas? Em vôo lento, um urubu risca o azul do céu. Tudo quieto aqui embaixo,parado, em suspenso. Até aqui não chega a confusão do mundo. Saímos do mundo. Otempo parou. Projetados contra o céu, eles são, como afirmou o poeta, “magníficos,terríveis, graves e ternos” “nesta reunião fantástica, batida pelos ares de Minas”.

E em Belo Horizonte o fantasma sou eu próprio. Procuro nestas ruas mal-assombradas a cidade invisível onde vivi até a juventude. Ao dobrar uma esquina,esbarro com o fantasma de um jovem de 20 anos.

Ao regressar ao Rio, sentimos que alguma coisa nos acompanha: alguma coisafeita de ar e imaginação, que não é propriamente um fantasma, mas o espírito de Minasa impregnar-nos de passado e de eternidade. E aceleramos alegremente em direção aofuturo.

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ELEGÂNCIA

QUANDO eu era rapazinho achava muito elegante ser elegante. Tinha pinta debonifrate, todo gamenho e casquilho: sempre com terninhos modelo Max Baercomprados na Casa Guanabara, ou então aqueles paletós em moda na época, cintadosatrás e com umas pregas nas costas. Usava meia três-quartos para neutralizar um poucoo vexame das calças curtas que a idade me impunha. E dava-me ao desplante de passar

cuidadosamente ao pescoço o cachecol de seda de meu pai, antes de sair à rua, muitoalmofadinha, para ver as meninas na Praça da Liberdade. É vergonhoso confessar maso faço como penitência ante juventude tão frivolamente desperdiçada: conversava comoutros pilantrinhas da época sobre moda masculina, discutia o modelo de um casaco, aqualidade de uma casimira, a vacilação ante o dilema entre usar cintos ou suspensórios.

Estavam em moda, então, aquelas calças à altura do peito, lançadas por GeorgeRaft. Calça clara e paletó escuro era de bom tom; camisa azul-marinho com fecho eclair

uma nota de fino gosto, e aquelas calças de flanela que deixavam entrever, na sua meiatransparência, a barra da cueca, o supra-sumo da elegância displicente. O sapato brancoe marrom era muito recomendável, especialmente para a tarde, à saída da matinê — esó o superava em apuro o de crepe-sola ou o famoso “tressé”. Mais do que o relógio depulso com corrente de níquel, era o máximo de requinte entre os jovens peraltas aquelaestranha pulseira de couro com duas fivelas, que quase todos procuravam usar, muitoapertadas no pulso, feitas sob medida no sapateiro, embora nunca se tivesse chegado asaber para que diabo elas serviam.

Até na lembrança já se havia perdido essa minha juvenil preocupação com aaparência. Ao corrente da moda, abria-me à vocação uma brilhante carreira deperalvilho, graças a Deus cedo desviada para a ambição de conquistas bem maisdiscretas, no terreno das emoções literárias, ou mesmo sentimentais. Eis que agorapessoa que mais estimo me dá de presente um corte de casimira — coisa para muito

luxo e que me enche de brios, trazendo-me à memória o esquecido esmero de então.Ocorre-me, ante o gesto cativante, dar-lhe em retribuição a minha própria figura, toda

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catita e chibante, metida em farpeia nova. Para isso, como é óbvio, penso logo em levara referida casimira ao meu atual alfaiate.

Descubro então, estupefato, que há muito não tenho alfaiate. O último que tive

era o da Camisaria Cambridge; que escondia por trás desse impressivo nome, a sugestãode uma elegância britânica.Levado pela mão de Joel Silveira, abri lá uma conta, depois de ouvir dele uma

minuciosa exposição sobre a ética da casa: não era preciso pagar tudo de uma vez, nemmuito de cada vez: apenas não passar muito tempo sumido, ou seja: devagar e sempre.E se o dono costumava perguntar-me pelo Joel, assim com ar desinteressado de quemnão quer nada, forçoso é confessar que eu costumava receber do próprio Joel unstelegramas sugestivos que diziam “Cambridge morrendo de saudades”, quando passavamais tempo sem aparecer.

Antes disso Rubem Braga me confiara às hábeis mãos de um seu Manuel lá daRua Acre. Fiz alguns ternos pela sua tesoura, e só o deixei de mão quando o próprioRubem, tempos depois, me perguntou, olhando-me de alto a baixo com desprezo: ondediabo você anda fazendo essas roupas? Havia-me traído, o janota, passando-se paraoutro melhor.

Passei, de minha parte, a suprir-me de roupas feitas. Sou freguês da Exposição econgêneres — e ninguém levantará suspeição, farejando aqui publicidade disfarçada, seacrescentar que vou com os ternos mas eles positivamente não vão comigo: lá docabide me esperam como se cada um pertencesse a pessoa diferente. Todavia, só oconforto de poder entrar na loja e sair vestido num 48-longo — infelizmente um poucolongo, reconheço — sem o transtorno das sucessivas provas a que nos submete oalfaiate, já me consola dessa minha familiar sensação de que o defunto era maior,devido à qual até hoje ninguém se lembrou de incluir-me na lista dos dez maiselegantes.

Pois agora, um corte de casimira debaixo do braço, saibam todos quanto esta virem, que marcho impávido para um novo alfaiate. Dizem que este é a última palavra,a tesoura mágica, o rei da moda — e por um preço bem razoavelzinho. Atenção, pois,elegantes! Abram alas, que eu quero passar.

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escassa. Acabara se afeiçoando ao porteiro: um ratinho assustado que deslizava semruído pelos corredores, e de quem sabia desenterrar velhos casos do hotel, ainda nosseus bons tempos. Já pensara até em dedicar-lhe um samba.

— Olha aí — mostrou-lhe a garrafa: — Já acabou.Fora o único que se lembrara dele no último Natal, tivera a suprema delicadeza de

lhe trazer aquele conhaque — nacional, mas dos melhores. — Como é: vamos jantar?De vez em quando jantavam juntos num restaurante da Lapa, cada um pagava o

seu. Mais de uma vez, porém, o homenzinho lhe emprestara dinheiro. — O senhor, com essa sua saúde, não devia ficar bebendo não. — Essa é boa: foi você mesmo quem me deu! — Sabe? O senhor, assim doente, morando aqui... Via-se que ele queria dizer alguma coisa, não sabia como: — Já sei: você acha que eu devia me internar. — Não! Eu acho é que o senhor devia se mudar para o primeiro andar. — Primeiro andar? Mas se eu preciso é justamente de ar fresco... Devia me mudar

é para o andar de cima. — Não, não! — fez o homenzinho, cada vez mais aflito: — O senhor não está

me entendendo: um quarto no primeiro andar seria melhor. — Os do primeiro andar são tão ruins como este, meu velho. — É, mas aqui tem esse elevador que não cabe nada dentro.Olhou-o, intrigado: — Onde é que você quer chegar com essa conversa? Fale de uma vez, homem. — O senhor por favor não me leve a mal. É que se acontecer alguma coisa... vai

criar um problema para mim. Já imaginou? A dificuldade?Só então, estupefato, entendeu o que o outro, na sua aflição, não tinha coragem

de dizer. Sua primeira reação foi achar graça: — Você acha que eu estou tão mal assim, é? — Quem, eu? Não, longe de mim. Ê que o médico disse... — Eu não seria o primeiro a morrer neste hotel, que é que há? — riu-se ele. — O senhor está rindo? Deus me livre que aconteça uma coisa dessas, mas

imagine minha situação se acontece. O senhor é muito comprido, olha só o tamanhodas suas pernas. E o elevador...

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— Desce pela escada — sugeriu. — Não dá — o outro atalhou com intensidade: — Já estive estudando a situação.

Não dá de jeito nenhum. É muito apertadinha, cheia de curvas.Resolveu interessar-se pelo problema: — Como é que não dá? Vamos até ali fora para ver.Saíram os dois do quarto e junto à escada puseram-se de frente um para o outro,

curvados, como se transportassem uma coisa pesada. — Assim. Agora vai virando devagar. Olha aí, eu não dizia? Chegando aqui tem

uma quina, não passa de jeito nenhum. — E são cinco andares... — Para o senhor ver. — Pela janela? — Ah, isso então nem é bom pensar. Calaram-se, ficando olhando um para o

outro. — Está bem — encerrou ele: Eu me mudo. Agora, por favor esquece isso e

vamos jantar.Foram jantar, e no dia seguinte ele se mudava para o primeiro andar.Morreu dois meses depois. Na rua.

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tirar dele os olhos. Ele se aprumou, revólver em riste: vai, vai — e brandia a arma juntoao meu nariz, sempre dizendo que estava engatilhada, pronta a atirar. Sua pressa eratanta que parecia precisar do carro apenas para fugir. Fui-me afastando, sempre de cos-tas, com a sensação desagradável de que acabaria esbarrando no cano de outro revólveratrás de mim.

Não cheguei a ver se havia outros: ele entrou rápido no carro, cujo motor ficarafuncionando. Falei qualquer coisa sobre deixar mesmo o carro na rua, ele retrucou:

— Nada de polícia, hein? — Se possível na Zona Sul! — gritei ainda, não sei se chegou a ouvir: o carro já

partia em disparada.Não haviam decorrido trinta segundos desde que nos detivéramos ali. Até agora

não sei se cheguei a acender aquele cigarro.

Assaltos como esse se multiplicam — não há quem não tenha conhecimento deum caso pessoal a contar, e alguns bem dramáticos. O meu constitui quase umaexceção: só teve como conseqüência me deixar a pé.

Conseqüência natural a que se expõe quem tem pernas. Já me dou por satisfeitopor ter nascido com apenas duas: em verdade nasci nu, e como diz o outro, se metirarem a roupa do corpo, estarei no capital. Ainda assim, bem triste é a condição de pe-destre. Principalmente de um casal de súbito despojado do carro e caminhandoapatetadamente pela rua, já devolvido à desconsertante realidade: fôramos assaltados,eis tudo. Embora a aparência frágil do assaltante — um pobre negro de vinte e poucosanos com ar de caricatura do jogador Paulo César — a arma de fogo que eleempunhava era mais do que convincente e persuasiva: nos despojaríamos até da roupa,se ele assim ordenasse.

E de repente, ao aproximar-nos do bar que era o nosso destino, foi-se a pateticeda calma apenas aparente em que eu ficara: e se ele tivesse ordenado, como eu temia,“você desce e ela fica”? É o que muitas vezes tem acontecido, segundo dizem. Entãoera chegada a minha hora e vez: já não estaria ali para contar a história. A simples idéiame fazia tremer, e ao contar a experiência os amigos no bar, tive de me fazer entenderaos balbucios. Marcos Vasconcelos gentilmente se dispôs a levar-me até o distrito paradar queixa.

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E foi assim que comecei por quebrar o compromisso assumido tacitamente como assaltante.

No que bem andei — pois dez minutos depois chegava à delegacia um guardacom o número de meu carro (anotado na palma da mão): já haviam assaltado com eleum posto de gasolina na Lagoa. O rapaz do posto o acompanhava, mal-humorado:

— O segundo assalto hoje. Três crioulos. Todo o dinheiro da caixa. Aindaencheram o tanque. Sem pagar, é lógico. Logo hoje, que é dia do meu aniversário.

— Meus parabéns — cumprimentei-o idiota-mente. — Obrigado — respondeu ele, muito digno.Então havia mais dois, que o Paulo César provavelmente recolhera pelo caminho.

Naquela mesma noite, fiquei sabendo depois, nada menos que 23 carros foram furtados(e roubados) somente no Rio. Esta deve ser a média diária de furtos (e roubos) deautomóveis. Porque há uma diferença, fiquei sabendo também: carro furtado é o que éroubado sem a presença do dono e carro roubado o que é furtado ao próprio dono sobameaça. Diferença semântica que, de resto, o léxico acusa e que deveria ser óbvia paraum escritor que se preza. Na pragmática policial, porém, suas conseqüências nãodeixaram de me levar a certa confusão: eu não sabia que, além do distrito em que se deuo roubo (ou furto), os carros furtados estão afetos à Delegacia de Furtos de Automóveis, enquanto os carros roubados estão afetos à Delegacia de Roubos (eFurtos). Geralmente os primeiros se destinam à revenda, os segundos a assaltos. Estescostumam ser logo abandonados.

Em assim sendo, a palavra do meu assaltante talvez fizesse fé.

Alguém me advertiu que carro abandonado na rua, como seria o caso do meu,acaba recolhido ao depósito, sem que a polícia chegue a tomar conhecimento. O meumedo é que, abandonado pelo assaltante, conforme o costume, acabasse mudando decategoria e fosse furtado para revenda.

Durante vários dias percorri tudo quanto é depósito de carros existentes nacidade: abandonados, furtados, acidentados. No do Fundão, me vi perdido numcemitério de automóveis, uns sobre os outros, em pilhas de quatro ou cinco, eprocurando algum que se parecesse com o meu. Não encontrei.

Dezessete dias se passaram, e eu já convencido de que os assaltantes desta praça

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não têm palavra. Até que hoje de manhã... Bem, devo dizer que, de minha parte, deixeide cumprir o trato reportando-me à polícia, porque assalto é assalto e brincadeira temhora. Mas confiava em que o crioulo fosse compreensivo sobre este particular e nãodeixasse de cumprir sua palavra.

E não confiei em vão: hoje de manhã alguém telefonou para dizer que meu carro,absolutamente intacto, estava há dezessete dias abandonado na rua. Uma rua da ZonaSul.

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COMÉDIA HUMANA

— ESTOU numa situação meio complicada.Levantei os olhos: eu acabara de entrar na livraria, e do outro lado de uma pilha

de livros um rapazinho de ar modesto conversava com um senhor bem vestido. — Situação complicada como? Que foi que aconteceu com você? — O senhor não pode imaginar. — Nem que eu quisesse não poderia. Conte logo, rapaz. — Estão me acusando de roubo.O outro ficou calado, mas como o rapaz também se calasse, repetiu, sacudindo a

cabeça: — Sim. Estão te acusando de roubo. E daí? — De roubo — tornou o rapaz, mais veemente agora: — Veja o senhor que

situação. — E que foi que você roubou? — Eu não roubei nada! O senhor acha que eu era capaz? — Não acho nada. Estou só perguntando. Você mesmo é que disse. — Eu disse que estãome acusandode ter roubado — o rapaz reagiu com firmeza. — Muito bem. Estão te acusando de ter roubado o quê? — Um relógio. — Um relógio? Conte essa história direito. — Foi num trem da Central. Eu ia para Madureira, onde moro. Quando saltei na

estação um sujeito passou correndo e largou qualquer coisa na minha mão: era orelógio.

— Que relógio? — O relógio roubado do pulso de um sujeito que estava cochilando. Só falou

assim: segura isso, meu chapa — e saiu correndo. — Meu o quê? — Meu chapa. Foi o que ele disse. Era um crioulo alto, assim do tamanho do

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MINHA (IN)EXPERIÊNCIA DE CINEMA

OS TEXTOS tinham de ser convencionais, cheios de lugares-comuns, pois os clientesnão aceitariam qualquer inovação ou ousadia de linguagem. Cheguei mesmo a comporuma lista de palavras e expressões comoarrancada para o progresso, esforço titânico, movimentociclópico, desafio do futuro,e por aí afora, para os momentos de aperto. Difícil arte essa, ade escrever para não dizer nada, em que são mestres os editorialistas de jornal.

Eram narrativas do cinema comercial, em que me iniciei pela mão de PauloMendes Campos. Aquilo não tinha um mínimo de qualidade literária que me permitisseassinar o nome, mas era um meio de vida honesto como outro qualquer. Eu melembrava sempre do que disse, creio que Sérgio Porto, quando recusaram um texto seupara televisão, porque não estava como queriam:

— Vocês me desculpem, mas pior do que isso não sei fazer.Houve exceções, é lógico: num filme sobre a Sudene, por exemplo, que Paulo e

eu fizemos a quatro mãos, conseguimos que aprovassem um texto bem razoavelzinho.Pelo menos na primeira parte, em preto e branco, sobre a miséria do Nordeste (asegunda parte, em cores, é que era sobre o esforço titânico da Sudene). É verdade quecontamos com um colaborador de grande sabedoria: o Rei Salomão. O texto era todocomposto de versículos bíblicos doLivro de Provérbios.Fomos muito cumprimentados:

— Vocês estão escrevendo bem à beça.

Por essa época havíamos resolvido juntar nossos talentos, achando que seria maisfácil assim. Quando ambos tínhamos encomendas, escrevíamos juntos as duas.Escrever não é propriamente o termo: lucubrar talvez vá melhor. O escasso materialque nos davam como fonte de consulta vinha acompanhado de uma decupagem dofilme em planos e seqüências, com o respectivo tempo de duração. Cada linhadatilografada correspondia a 5 segundos. Era tudo medido e calculado, quase que pala- vra por palavra. Parecíamos dois malucos:

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— Me arranja aí três palavras. Estou precisando de alguma coisa assim: parará,pa-pá, pa-pá.

— Deixa eu ver. Por que você não põe só pá, pá e pá?Foram pelo menos uns cinqüenta filmes, que se não me deram experiência de

cinema, pelo menos me familiarizaram com alguns aspectos práticos da produção: tinhade ver os copiões, às vezes acompanhar a montagem e sugerir modificações — chegueimesmo a elaborar roteiros, para facilitar a redação posterior do texto.

O que era pouco, reconheço, para que eu passasse a me considerar um cineasta — coisa que não pretendia, e continuo não pretendendo ser. Mas deu para ver de pertoo trabalho que é fazer um filme. Mesmo como aqueles, que estavam para o cinema-artecomo um anúncio das Casas da Banha está para aDivina Comédia.

De filmes que nunca foram feitos, meu inferno está cheio. Não foram poucos oscineastas meus amigos (e digo de passagem: é tudo boa gente) que em diferentesocasiões me encomendaram argumentos ou sugeriram que nos associássemos parafazer um filme. A princípio, seduzido pela perspectiva de experimentar um novo meio,eu levava a sério e me punha a trabalhar. Cheguei a escrever todo o roteiro de umsemidocumentário do Rio de Janeiro visto por um chofer de táxi — encomenda de Alberto Cavalcanti, que depois se foi para a Europa e me deixou de roteiro na mão.Para Carlos Thiré, escrevi uma comédia passada no carnaval, que não chegou a serfilmada porque ao fim fiquei sabendo que em vez de receber pelo meu trabalho, eu teriaque assumir uma das quotas de financiamento da produção — e éramos só nós dois,por enquanto. Mais tarde, já macaco velho, continuei me associando a vários amigos docinema, mas só em longas (e excelentes) conversas de bar. Tenho até hoje filmes emprojeto com vários deles, de Luís Carlos Barreto a José Medeiros, de Hugo Carvana aDomingos de Oliveira. Com este, cheguei a descolar um financiamento na Columbia e,entusiasmados, marcamos encontro com Tom Jobim e Chico Buarque, que seriam osatores de nosso filme. Chico não apareceu e Tom não pôde levar a idéia a sério porquena época tinha problemas com um dente da frente.

Vários produtores já tinham querido antes comprar a história do homem nu para

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transformá-la num filme. Silveira Sampaio fora um deles, e seria engraçado vê-lo na telainterpretando pelado o papel que já representara (vestido) numsketchpara televisão.Hugo Christiensen insistia em fazer do homem nu uma das suas “crônicas da cidadeamada”.

Até que surgiu um produtor disposto a realizar o filme como eu queria. O diretorme parecia capaz, pelo sucesso obtido com outro filme seu — o qual não cheguei a ver,mas que todos me asseguravam ser muito bom.

Ficou decidido que minha colaboração não se limitaria a escrever o roteiro e osdiálogos, mas me caberia também acompanhar o diretor em todas as fases de realizaçãodo filme, da escolha dos atores e locações às filmagens propriamente ditas, damontagem ao lançamento de estréia. Com isso eu me assegurava finalmente umainiciação no cinema, e pela mão de um mestre. Discutimos longamente a história,chegamos a um acordo, e escrevi a primeira versão, que ele me devolveu com algumassugestões. Fiz a segunda, que não passava ainda de um esboço mais desenvolvido, efiquei aguardando que ele me respondesse lá de São Paulo. Enquanto isso,sacramentava em contrato com a companhia produtora a minha participação no filme,que incluía também uma participação no faturamento. E fiquei aguardando.

Até que um dia uma das crianças chega em casa correndo, excitada: — Estão filmando um homem nu lá na praia.Intrigado, vou até a praia e dou com o Paulo José correndo pela areia diante de

uma câmera. Não estava propriamente nu, mas com uma tanguinha da cor da pele. Odiretor dava instruções à sua equipe, e quando finalmente me viu entre os curiosos queacompanhavam a filmagem, sorriu meio de lado:

— Pois é, estamos filmando...Deixei então que filmassem e fui para casa. Não cheguei a ver o filme senão

quando já estava sendo exibido no meu bairro, para uma platéia de meia dúzia de gatospingados. Pouco depois, a companhia produtora falia e também não cheguei mais a vera cor do dinheiro.

Com isso eu dava por encerrada a minha experiência no cinema, antes de iniciá-la — quando me surgiu David Neves.

Se David Neves não existisse, teríamos de inventá-lo — como dizia Dostoievski

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de Deus e outros dizem do diabo. Deixa correr frouxo! — me dizia ele próprio, quandonos tornamos amigos e eu insistia em que iniciássemos o nosso primeiro projeto aquatro mãos. Essa sugestão de tranqüilidade, esse convite à descontração e aodescompromisso no trabalho quase chegou a se tornar uma espécie de lema da novafirma produtora: Bem-te-vi Filmes Ltda., fundada com o mesmo espírito que inspirara asua antecessora no campo da literatura, a Editora Sabiá. Vamos trabalhar nos divertindoque ninguém é de ferro, se possível fazendo alguma coisa que preste, e se ganharmosum dinheirinho tanto melhor. Por que sabiá e depois bem-te-vi? Porque Rubem Bragagosta de passarinho, e elenãopodia ficar de fora. Dele partira a idéia de fazer uns filmessobre escritores brasileiros. . .

Mas o sabiá da crônica não quis saber mais de cinema, quando viu o filme que fizsobre ele próprio em super-8, para experimentar. Foi um trabalhão dos diabos, quemobilizou outros amadores das vizinhanças, como Roberto Brancher e AdolphoPortella, que eram os donos das câmeras, o assistente Mosquito (Luiz Cláudio Franco) eainda Romeu Tonini Filho, erigido em técnico de som, por possuir um excelentegravador. Baden Powell entrou com a música sem saber, e o texto era tirado de crônicasdo próprio Braga na voz deste seu criado, já que ele se recusou a falar. Mas DavidNeves gostou:

— Você leva jeito.E fomos juntos para Hollywood.

Ele queria assistir a um festival de cinema e eu queria fugir ao festival deequívocos que era então a minha vida. Para darmos à viagem alguma motivaçãoprofissional (e alguma sustentação econômica), faríamos uma série de crônicas filmadas,ou minifilmes, ou lá o que fosse, sobre a vida em Hollywood.

Acabamos filmando Alfred Hitchcock em seu escritório nos estúdios daUniversal. Assim que o velho bruxo permitiu que o filmássemos, e com um barbeiro alhe cortar o cabelo, “para ficar mais pitoresco” como ele próprio sugeriu, David pôs-sea empurrar móveis, remover objetos, transformando o elegante escritório do mestre nacasa da mãe-joana. Por causa da pouca luz, ainda me fez segurar um imenso abajur emcima da cabeça do velho. E a cena da despedida, já à porta da rua, o próprio Hitchcockresolveu orientar e dirigir. Fui dirigido por Hitchcock! O que me deixou tão confuso

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que, ao vê-lo me estender a mão dizendo adeus e entrar, em vez de ir embora acabeientrando atrás.

Valeu a experiência de ver David Neves em ação: — Vai, David: quando eu atravessar a rua você filma. Tratava-se agora de mostrar como os motoristas americanos respeitam os

pedestres. Só não fui atropelado porque Deus, que é brasileiro, respeitou a minhainsensatez.

Filmamos o túmulo de Rodolpho Valentino e o de Marilyn Monroe, a calçada dafama e a casa de Carmem Miranda — uma Hollywood que não existe mais. Depoisfomos parar no México e voltamos para o Brasil, com escala no Panamá e na Gua-temala. Mal chegando, nos associamos para fazer um filme sobre o Paraguai.

David me avisou logo, prevenindo-se a respeito das exigências de trabalho danossa sociedade:

— Quando estou em casa eu não atendo telefone.Não pude deixar de perguntar, com toda seriedade: — E quando não está? A série de dez filmes sobre escritores se tornou possível graças ao Banco

Nacional. Os diretores do Banco nem pestanejaram quando lhes expus o plano e pedique o patrocinassem assumindo o custo da produção. Aprovaram tudo de mão beijada:

— Pode ir em frente.Começamos por Carlos Drummond de Andrade, que havia visto o filminho sobre

o Rubem e havia gostado. Mal começáramos e meu sócio se manda para um festival naPolônia com ar de vou ali e volto já:

— Quinze dias, no máximo.Dois meses depois me telefonava (do México), dizendo que estava a caminho.

Nesse meio tempo me deixou nas boas mãos de Roberto Neumann, que até se deitarno meio da rua se deitou, para filmar o poeta. Fomos parar em Belo Horizonte, Itabira,Ouro Preto e Congonhas, à procura das raízes de Minas na sua poesia. Eu queria filmarum boi —a solidão do boi do campo — e a todo momento parávamos o carro na estrada:

— Olha ali um boi pastando. — É uma vaca. Acabamos filmando dezenas de Tutu Caramujo na porta da venda, a meditar na

derrota incomparável. Depois, no Rio, o poeta na Avenida Rio Branco, na livraria, no

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café e sendo abordado por uma linda admiradora que hoje vem a ser minha mulher. Noônibus, tivemos de isolar no fim da linha meia dúzia de bancos, com a concordância domotorista, meio desconfiado, para enchê-los com a comparsaria:

— Quais são os nossos amigos que têm cara de passageiro de ônibus? —perguntou David, já de volta, reassumindo seu lugar atrás da câmera.

Recrutamos meia dúzia — entre eles Marco Aurélio Matos e minha filha Virgínia. — Minha senhora, isto é uma filmagem, se incomodava de passar para o outro

banco? — Daqui não saio. Daqui ninguém me tira. A velha tinha ido se sentar justamente no lugar reservado ao poeta, que ia entrar

na próxima parada. — Este filme está meio chato — disse ele, já à entrada do Ministério da

Educação: — Vamos fazer umas brincadeiras. Eu me escondo atrás daquela coluna eponho a cara de fora.

Depois foi a vez de nosso querido Érico Veríssimo em Porto Alegre. Eu nãopodia imaginar então que em breve o filme se tornaria um comovente documento vivodeste que foi, como disse Drummond de Milton Campos, o homem que todos gos-taríamos de ter sido.

Pedro Nava, por sua vez, se portou como verdadeiro ator. Seguiu à risca asmarcações, fez, falou e aconteceu. O grande memorialista, que por si só justificava a suainclusão na série, teve lances do mais fino humor também na sua qualidade de médico:

— Quando me dizem que reumatismo não tem cura, eu digo: tem tratamento.Nada mais incurável que um sujeito sem perna, não é isso mesmo? Pois pode usar umaperna-de-pau — é um tratamento.

Afonso Arinos nos surpreendeu com a sua verve, logo ao princípio do filme,contando uma história de pintassilgos e bicudos, junto à gaiola de um canário. Issonuma produção Bem-te-vi!Era muito passarinho junto — sugeri que no fim do filme eleacabasse soltando o canário da gaiola.

— Soltar meu canarinho? Isso nunca.Um periquito amarelo, que era mais barato, com jeito passaria por um canário.

Compramos dois, e foi bom, porque Afonso Arinos, bicado na mão pelo primeirodeles, soltou-o antes da hora. Prudente de Moraes, neto, que assistia à cena, meio cético(já havia participado de outra), sugeriu:

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— Acho melhor soltar o próprio diretor desse filme. José Américo, filmado em João Pessoa, não nos deu trabalho algum. Ao contrário

de Jorge Amado, em Salvador, que não parava quieto, queria que todos os seus amigosaparecessem, e a cada momento aparecia ele próprio com uma camisa diferente, cadauma mais colorida que a outra. Umas dez ou doze camisas, num filme de dez minutos!Não havia continuidade possível: abria a porta com uma e surgia na sala com outra.

Mas a esta altura eu já contava com novo sócio, Mair Tavares. Aquele índiocalado e discreto, concentrado em frente à moviola, para quem tudo menos que aperfeição é uma droga, na realidade vinha a ser um extraordinário montador. Com ele,durante dois anos a fio, aprendi finalmente alguma coisa sobre o delicado e fascinanteofício do cinema: um filme se faz na moviola.

Quando os amigos perguntavam por mim, que andava sumido, Rubem Bragadizia, como de alguém entregue ao vício:

— Ele hoje vive na moviola. Aprendi alguma coisa mais, e a isso talvez se reduza a minha experiência: a

indústria cinematográfica no Brasil está com 20 anos de atraso — no estágio em que seencontrava, por exemplo, há 20 anos, a indústria editorial. Não vou falar na insu-ficiência de recursos técnicos, na escassez de material e equipamento, na deficiência doslaboratórios, no estrangulamento da distribuição, na concorrência estrangeira, naprecariedade geral de uma infra-estrutura ainda nos moldes artesanais. Direi apenas queo cineasta brasileiro que consegue terminar um filme e exibi-lo num cinema é para mimum herói.

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INFRAÇÕES

O GUARDINHA foi chegando, fez uma cara compenetrada e disse que ia levar meucarro. Levar meu carro? que é que eu fiz, se estou aqui parado, não é proibidoestacionar neste lugar, que diabo de infração eu cometi? Então, com a cara mais sériadeste mundo, ele disse que meu selo tinha sido violado. Violado? Violado por quem,minha Nossa Senhora?

— Só pode ter sido pelo senhor.Pois é isso: ali estava eu, um reles violador. — Vamos devagar: me explique essa história direito.Então ele me explicou: a placa tinha aquele araminho, não tinha? Pois o araminho

era preso com um selinho de chumbo e o selinho de chumbo estava violadinho, quemia preso era eu. Tudo muito engraçadinho, mas como disse um amigo meu em situaçãoidêntica:

— Não vem com esse negócio de está preso que eu vou-me embora.Ele disse que ia chamar o reboque.Eu disse pois então chama.Ele perguntou aonde é que estava minha carteira.Eu perguntei a de dinheiro?Era a outra que ele queria, pois então está aqui, toma, e mostrei a carteira. Aí então vai e ele tomou a minha carteira. Agora o senhor tem de ir na inspetoria e pagar duzentos cruzeiros para botar

outro selo, que ele disse. Vamos resolver isso na base de uma cervejinha, eu propus então. Tinha de ir

embora e estava ali de conversa com guarda no meio da rua onde é que já se viu? Agoraele vai se queimar, eu pensei.

Pois não se queimou não: sorriu e disse o senhor está cheio de infrações, foiexatamente o que ele disse com a cara de quem está com muita sede. E já de mãozinhade papagaio para empalmar o dinheiro da cervejinha em troca da carteira. Tudo por

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causa de um chumbinho, onde é que você foi perder o tal chumbinho, ó grande violador? Se botassem um arame de cobre resistente ele é lógico que resistia, não ia sercomido de maresia, quantos violadores de selos deve haver por aí em Copacabanaprincipalmente! Mas eles não podem botar arame de cobre simplesmente porque oarame de cobre não se enferruja com maresia e assim não podiam cobrar duzentoscruzeiros toda a vez que o selo se perde. E foi isso exatamente o que pensei ali na hora,só não disse isso para não sugerir ao guarda uma quantia maior do que a que lhepretendia dar. Mas é isso mesmo e desde então tenho sabido de gente que já seaborreceu muitíssimo com essa história de selo violado, dizem que é para a gente nãoroubar o carro da gente mesmo positivamente é isso que eles dizem, lá o pessoal dainspetoria de veículos. Pois me vendo ali tão pensante o guarda foi e falou como é?chamo o reboque? que ele já não podia de sede. Minha licença já tinha sido legalizada?Era de Minas, tinha de ser legalizada, mais duzentos cruzeiros, na certa. Vem com essapara cá, seu guarda, pois se ela é NACIONAL de Habilitação, tirei em Minas e tenhomuito orgulho disso, então não posso com ela dirigir no Rio? Depois a gente fala dessessenadores aí de cócoras no Senado enquanto as autoridades violam nossos sagrados di-reitos CONSTITUCIONAIS. Vou legalizar coisa nenhuma, cadê o preceito legal queme obriga? Além do mais a licença para dirigir já está velha toda rasgada e isso tambémé infração, ponderou o guarda com um sorriso de Benevolência de quem sendoautoridade tem autoridade para chatear quem quer que seja no meio da rua e multa eprende e acontece mas também pode RELEVAR a falta cometida, desde que.. . Quantoé que eu vou dar para esse homem? E lá me vem de novo o diabo do almocreve deBrás Cubas. Não sei mais a quantas anda uma cervejinha e eu falei foi em cervejinha.Me dói deixar esse pilantra ir saindo assim de liso depois de vir inventar novidadeenquanto eu não coçava a carteira. Minha vontade era sair dali e ir direto no diretor dereboque mesmo se fosse o caso e dizer veja só diretor que culpa tenho eu do talaraminho? Sei lá quem violou o selo de meu carro nunca soubenemque meu carro tinhaselo quanto mais violado sempre pensei que esse arame aí fosse para segurar a placa porfalta de parafuso na inspetoria tenha paciência diretor mas um carro já dá tantaaporrinhação e o senhor ainda fica infernizando a vida da gente com bobagens...

— Pois então suponha que o carro do senhor seja roubado: sem o selo qualquerum pode trocar a placa.

— Mas um selinho de nada, seu diretor, então o ladrão não pode trocar o selo

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também? — Poder pode, mas sempre é mais uma garantia.Pois aí está: ainda por cima sempre é mais uma garantia. E durma-se com um

barulho desses. O guarda ali rente, esperando que eu acabasse minha conversa nacabeça com o diretor. Muito vivo, esse guardinha — cem pratas? Não, cem pratas eramuito. Vontade de dizer sabe com quem eu estive conversando? com seu chefe.Imagine se ele sabe que você está aqui me enchendo os ouvidos com essa história deselo violado só para me levar vinte pratas. Não, vinte era pouco. Dou cem mesmo, quebobagem. O almocreve daria dez. Então dá quarenta. Uma cervejinha é eufemismo, dácem logo, homem de Deus.

Dei cinqüenta.E fui-me embora.Essa é que é a verdade: fui-me embora fagueiro.Cheio de infrações e tudo, me deixou ir.Pois é o que lhe digo, seu diretor.E digo mais: era isso mesmo que seu sapo queria.Depois vá a gente confiar nessa gente.Um selinho aqui, outro selinho ali...Esta, a confissão do grande violador. Mas não dou fé. Não sustento nada, sou

maluco? Depois inventam de me prender por suborno. Nada mais digo, e, espero, nemme será perguntado.

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ANO NOVO

A SER VERDADE o que afirmou Jules Renard, o homem começa realmente aenvelhecer no dia em que exclama pela primeira vez: nunca me senti tão jovem comohoje. Pois mais um ano passou, e aqui me vejo desmentindo o pessimismo do escritorfrancês, ao concluir jovialmente que nunca me senti tão velho como hoje. E nem porisso fico mais jovem.

Ultimamente têm passado muitos anos — reconheceu outro grande escritor,desta vez o velho Braga, ao que eu acrescentaria: e cada um mais depressa que o outro.

Este último, por exemplo, não durou mais do que alguns dias e pronto, lá se foi.Nem tive tempo de fazer um exame de consciência sobre o que ele foi ou deixou de serpara mim, e já o novo ano segue em marcha batida para o seu termo. Mas recolho nopróprio Jules Renard alguns trechos de exame semelhante que ele fez em 1895, e que eupoderia endossar sem nenhum esforço:

“Saído pouco: é preciso ver os outros, para colocá-los no lugar que merecem.Desprezado muito o jornalismo, os pequenos aborrecimentos, os azares da sorte. Lidopouca literatura grega e latina. Pouca esgrima e bicicleta: praticar até enfarar. O trabalhointelectual parecerá, então, uma espécie de salvação num convento onde se podemorrer.”

“Comido muito, dormido muito, muito medo de tempestade. Gasto muito: trata-se denãoganhar mais dinheiro, mas de gastar menos.”

“Desprezado muito o conselho dos outros em questões importantes, consultadooutros em questões frívolas. Devo sair com este sobretudo? Usar este chapéu? Vaichover, mas não levarei meu guarda-chuva, porque tenho uma linda bengala e queroque a vejam.”

“Lido muitos jornais para encontrar meu nome citado. Enviado e dedicadomuitos livros, perdoando aos críticos, por uma súbita ternura, o bem que eles mefizeram não dizendo nem bem nem mal de mim.”

“Amado muito as crianças, posando de bom pai, ostentando muito a indiferença

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de meu coração relativamente à minha família. Muito enternecimento em relação aospobres, a quem não dou nada com a desculpa de que nunca se sabe.”

“Não passo de um miserável, sei disso. Não sou orgulhoso mais. Sei disso, econtinuarei.”

“E bato no peito, e, ao fim digo a mim mesmo: “Entre!” e me recebo muito bem,já perdoado.”

Eis aí: entre minhas faltas, conto também esta — a de me dispensar de enumerá-las, usando como pretexto uma citação literária. E no entanto, cada vez mais cansadoda literatura. Certa tendência para escrever sem pensar — as idéias, mal nascidas e nemainda formuladas, já sendo jogadas no papel. Certas palavras, melhor fora não dizê-las.Encontros a que não compareci. Aquele telefonema que eu deveria ter dado, aquelapergunta que ficou sem resposta, aquele gesto brusco. Cartas que deixei de escrever. Às vezes, bastaria um sorriso, um aperto de mão, uma palavra... Aquele silêncio, em meioàs palavras.

Por que não me retirei logo naquela noite? Que fiquei esperando? Antes nãotivesse ouvido. Às vezes é melhor esquecer. Aprender a esquecer. As lembrançastambém respiram, vivem, crescem e nos devoram.

Novos encontros. Outros que se foram — um que morreu, um que se casou, umque simplesmente não conheço mais. Que é que ele quis dizer com aquilo? Essemenino como cresceu! Não havia aquele edifício ali. Gente nova que veio não se sabede onde, fazer não se sabe o quê. E a leitura desse livro para sempre interrompida. Olivro que não escrevi. Saber alemão, ler Goethe no original! Ao dentista tenho idosemanalmente.

Viajado por aí, pretextos fúteis, o regresso sempre o mesmo. Frases. Soube que você andou fora... Longe de mim tal idéia. Mas não tem dúvida alguma. Se vocêsoubesse... Pois então não se fala mais nisso. Não me leve a mal, por favor. O prazer étodo meu. Tempo de começar. Saber viver. Tirar do nada. Ver. Mostrar. Resolver. Agora ou nunca. Antes que seja tarde. Esquecer e dormir. Ano novo, vida nova: planos,recompor, continuar, insistir, recomeçar.

Renascer.

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DIANTE DO ESPELHO

SÃO onze horas da noite. Uma noite quente, está fazendo um calor insuportável. Vouaté a janela, fico a olhar o edifício fronteiro. Posso ver uma mulher gorda e de camisolase preparando para dormir. Em outras janelas vejo vários moradores, conversando,fumando, lendo jornal, olhando televisão ou simplesmente se deixando viver. Umamoça, no terceiro andar, solta os cabelos em frente ao espelho e depois vai à cozinha,de onde volta chupando uma laranja. No andar superior, um velho e um menino. Omenino lê uma revista. O velho, só de calça de pijama, está estirado num sofá, mãosatrás da cabeça, a olhar pateticamente o teto. Em que estará pensando? Fazendo, talvez,a sua autocrítica? É um edifício imenso, cheio de gente em seus cubículos, gente detoda espécie, e de todas as idades. A quantidade de buracos negros ou iluminados quedaqui posso ver, habitados por tantos seres humanos como eu, acaba por me deprimir,trazendo-me certa sensação de angústia.

Volto-me, caminho até o centro do quarto. Aqui, debaixo da luz, chegou a minha vez de ser visto. Agora, quem quer que olhe de sua janela poderá assistir comindiferença ao espetáculo banal de um homem nem velho nem moço, nem alto nembaixo, nem gordo nem magro, nem alegre nem triste, pela décima vez se sentandodiante da máquina para tentar a inquietante aventura de escrever sobre si mesmo.

Em verdade, não tenho tentado outra coisa na vida. No entanto, em tudo queescrevo ultimamente, da crônica mais feliz ao caso mais chulo, não vejo senão umatentativa de adiar o momento de me revelar aos meus próprios olhos, orientar-me emmeio ao cipoal de minhas contradições. Por quê? Não sou o personagem de mimmesmo, como escritor? Não sou a própria Madame Bovary?

Pois agora aqui estou. É hora de saber um pouco sobre este desconhecido quemora em mim desde que nasci. O que eu realmente sou — o que eu penso ser — o queos outros pensam que eu seja. A coexistência desses três indivíduos num só passa a ser

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o objeto dessa estranha elucubração. A experiência me fataliza, sinto medo. Aquelemesmo medo que me deu ainda há pouco, ao olhar pela janela a vida alheia, e tentandodesvendar, num só golpe de vista, o mistério destilado pelos menores gestos íntimos deum ser humano.

Fujo mais uma vez da máquina de escrever, vou até a cozinha. Como resposta àoutra com a sua laranja na janela fronteira, volto comendo uma banana. Depois medistraio esgravatando os tipos da máquina com um grampo destorcido; há letras en-tupidas de tinta, quero um original bem limpo e caprichado. Como sempre, a palavraescrita me aborrece no momento de começar. Gostaria de escrever palavras bemsimples, diretas, exatas, curtas e grossas, como esta que me surpreendo agora dirigindoao meu próprio rosto no espelho do banheiro, onde vim parar:

— Bobo.O que realmente sou: vejo é uma cara de bobo, olhar de pateta como de um

menino pilhado em flagrante. Mas percebo de repente um brilho de esperteza no fundodesse olhar: deixa de ser bobo, ninguém te observa, pode se abrir nesse sorriso desimpatia para com você mesmo. A simpatia indulgente com que nos olhamos aoespelho, posando para nós próprios. O que penso ser: a fisionomia bem composta, aexpressão acomodada num ar de condescendência. Desfaço a ilusão desgrenhando oscabelos e, olhos arregalados, rosto crispado numa careta, língua dependurada como a deum enforcado, olho-me finalmente como aquele que devo ser para os outros: umacaricatura do homem que vim tentando laboriosamente compor ao longo dos anos.

É muito fácil criticar os outros segundo a vaidade e o egoísmo — defeitosinerentes à própria individualidade do ser, deformações de uma natural consciência desi mesmo. Este aqui é assim, porque no fundo é vaidoso, aquele lá é assado, porque nãopassa de um egoísta. Mas quando chega a nossa vez, a coisa muda de figura. E isso étanto mais verdadeiro, quando se trata de alguém com pretensões a artista ou, no meucaso, alguém que, por bem ou por mal, encontrou em si uma vocação de escritor. A vaidade de ser lido, conhecido, apreciado. Sentimento até certo ponto justificável, comodizia Mário de Andrade, se nascido de um legítimo desejo de sucesso: “aquela justa,

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digna, equilibrada e necessária vontade elevada de ser amado e aplaudido, sem a qualnão existe artista verdadeiro.”

Pois começo por me conceder a primeira e talvez única indulgência: ao que eusaiba, se a vaidade literária se conta entre meus pecados, será principalmente dessaespécie. A não ser também a de vir aqui me vangloriar disto. Gosto do sucesso e o pioré que não acredito que corresponda, em qualidade, ao que espero de mim. Aocontrário, tenho sempre a vaga impressão de estar havendo algum equívoco.

Muitas vezes é equívoco mesmo: estou cansado de receber elogios devido acrônicas escritas por Rubem Braga ou Paulo Mendes Campos. O que, de resto, tambémnão deixa de ser lisonjeiro. O maior admirador declarado que já encontrei em minha vida foi aquele compositor que me botou nas nuvens por causa de um conto meu quehavia lido — nada mais que eu fizera prestava, podia jogar o resto fora, diante daquela verdadeira obra-prima, que por si me assegurava um lugar definitivo na literaturabrasileira. Pois o conto nem brasileiro era — de Jules Supervielle: eu apenas haviatraduzido.

Em geral, sei que não passa de simples lisonja, amabilidade de circunstância, poismuito obrigado, bondade sua. Ou fruto da distração do leitor, que me felicita pelo meuexcelente artigo no Diário de Notícias, quando ele leu foi uma notícia sobre livro meuno Jornal do Brasil. Além do mais, comecei a perceber que a admiração de algunsleitores, cuja opinião prezo, vai-se transferindo para suas esposas, dessas para os filhos,com sorridente desfaçatez, como a dizer: quanto a mim, você sabe, não tenho tempo aperder lendo essas bobagens... Do jeito que as coisas vão, acabam me atirando na li-teratura infantil.

Aqui, vaidade de lado, já é tempo de descer mais fundo, além dos fúteissentimentos de ocasião, lá onde se escondem os verdadeiros defeitos dos quais apreguiça talvez não seja o menor. Não a preguiça física, sonolência que reclama rede emnoites quentes como a de hoje, e que já cheguei mesmo a enumerar um dia entre as virtudes teologais. Esta, quisera ser menos inquieto e agitado para merecê-la. Refiro-meà preguiça mental, aquela que pavimenta o caminho do meu inferno cheio de boasintenções. A morna negligência que me faz abandonar um livro ou um estudo em meio,sob o fundamento de que é muito cacete, não vale a pena, não há quem agüente. Em

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verdade, nunca estudei com verdadeira perseverança, a não ser em vésperas de exame, eo que aprendi, via de regra, não me ficou na cabeça nem cinco minutos depois de me ver aprovado.

A não ser aos onze anos, durante o curso de admissão. Dona Benvinda, a melhormestra do mundo, me enfiou na cabeça, onde se encontra até hoje, a lista de todas aspreposições, o nome de todas as ilhas do Japão e todo o “Cerco de Leide”, da Antologia de Cláudio Brandão. De nada me serviu, aliás, ter aprendido tanto, a não seragora, para ser citado aqui como a súmula de meus conhecimentos. Apesar de mineiro,não estudei em colégio de padre, sou incapaz de uma só citação em latim. Estudavacomo um fanático era a língua portuguesa, porque até os 17 anos eu pretendia sergramático, e ai de quem, diante de mim, começasse uma oração com pronome oblíquo!Pois não guardei nem a décima parte do que os livros e os professores me ensinaram.

Quanto ao mais, não tenho senão vagas noções de Geografia, vaguíssimas noçõesde História, nenhuma noção das outras matérias que constituem o currículo normal deum estudante secundário. Formei-me em Direito sem nada ter guardado dos estudosaté o 3.° ano e sem ter freqüentado uma só aula nos dois últimos — razão pela qual atéhoje não ousei sequer ir à faculdade buscar meu diploma. A simples enunciação deciências em moda hoje em dia, que se constituem em fusão de outras, comoGeopolítica, Geografia Econômica, Economia Social, Sociologia Política e outras dogênero, é de dar arrepios na minha comovente ignorância.

Se não sou masoquista, por que enumerar tamanha lista de buracos na minhaformação cultural? Para tirar dela um uso particular: sabendo o que não sei, sempre ficosabendo alguma coisa. E torno-a pública, como sugestão aos que se virem em igualcontingência: façam o mesmo, que só terão a aprender. É o mínimo que se deve exigirde um intelectual que se preza — como, aliás, se anunciava na contracapa daquele livrochamado OUniverso de Dr. Einstein:“o mínimo que um intelectual que se preza deveentender sobre teoria da relatividade”. Li de cabo a rabo e, para surpresa minha, entenditudo, eu era um intelectual que se prezava. Só que hoje já não me lembro de mais nada,a não ser a afirmação peremptória do autor, segundo a qual tudo é luz.

Falta de memória? Dou a isso outro nome: preguiça mental. E vou mais longe:como me dizia de si recentemente um amigo, acho que eu também tenho na mente umlado impermeável, espesso, opaco, que me faz esquecer as coisas, trocar o nome daspessoas, misturar alhos com bugalhos, confundir zé-germano com gênero humano.

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Uma zona fechada a qualquer entendimento mais sutil ou raciocínio muito enfeitado,uma área infensa às verdadeiras abstrações.

A essa espécie de burrice, confesso, devo talvez a minha incontrolável tendênciapara onon sense,as brincadeiras, os disparates, as cabriolas e molecagens com quedistraio o espírito, às vezes nos momentos mais sérios e graves. Não posso ouvir umdiscurso, por exemplo, que imediatamente me ocorre um aparte e tenho de lutar contrao impulso de começar também a discursar. Nessa área lúdica é que encontro a origemdas minhas amizades mais antigas e preciosas.

O diabo é que venho notando, apreensivo, que este lado gaiato ou simplesmenteirresponsável de minha mente, como o de meu amigo, com o correr do tempo se temfeito cada vez mais presente em qualquer espécie de atividade mental. Vou pensando,pensando, e de repente... entendo tudo, na constatação inapelável de que já não estouentendendo mais nada. Um entendimento em bloco, por assim dizer, que se oferece àminha perplexidade e depois vai-se embora, deixando-me mais ignorante do que antes. Às vezes se deixa ficar, tornando-me algum tempo incapaz para o pensamento lógicode prosa, mas me concedendo alguma sensibilidade poética que me faz voltar aospoemas mais amados de Carlos Drummond ou Manuel Bandeira. No entanto, devodizer que jamais fui capaz de conceber um só verso que prestasse, nem mesmo aos vinte anos. Aos vinte anos, essa zona de opacidade do pensamento não era mais do queum pequenino fio de sombra, remanescente da escuridão da adolescência e logoofuscado pelos deslumbramentos da mocidade.

Mas aos vinte anos eu ainda pensava que era gênio. Depois, aos trinta, me percebihomem feito, capaz de conceder a uma salutar burrice boa parte do meu territóriomental. Foi quando aceitei definitivamente que, tendo jeito para música, jamaisaprenderia a tocar qualquer instrumento — nem mesmo bateria de jazz, que cheguei acastigar sofrivelmente. Convenci-me de que jamais aprenderia a falar francês, emboraconseguisse ler com razoável dificuldade, como de resto continuo falando mal o inglês,mesmo depois de ter vivido dois anos nos Estados Unidos e quase três na Inglaterra.Hoje, já havendo entrado em passo firme na idade da razão, foi-se-me, como diria JânioQuadros, qualquer veleidade de acreditar quela luz del entendimiento me hace ser muicomedido — verso de Lorca que me ficou na cabeça de tanto ouvi-lo resmungado porRubem Braga. Agora, a falta de entendimento é que modera prudentemente os meusimpulsos. As maravilhas do conhecimento humano positivamente não são para o meu

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bestunto.Isso a que chamei de burrice, à falta de outro nome, poderia até me santificar —

uma santa burrice — na humilde aceitação de sua definitiva existência, que às vezesparece mesmo inspirar um ou outro lampejo na minha pequena zona de luz. Mas éinegável que se manifesta quase sempre de maneira a mais desastrosa: a dos gestosinadequados, das palavras inconvenientes, das gafes irretratáveis, dos movimentosirresolutos, dos atos falhados, das decisões impensadas, das chegadas inoportunas, dassaídas intempestivas. Dou sempre a impressão a meu interlocutor que estou indo paraum lugar que não é ali, para me encontrar com alguém que não é ele.

O frustrado, evidentemente, não sou eu. Que eu saiba, não sofro daquelafrustração que leva ao ressentimento, nem do ressentimento que leva ao rancor. E meesqueço às vezes que os outros costumam descer por essa escadinha. Me considero demuita sorte, não tenho de que me queixar: sou otimista porque, como diz meu irmãoGerson, o otimista também erra, mas sofre menos. E isso me empresta certo ararrogante, certo impulso de me impor e sobrepor, dizer a última palavra, ganhar dequalquer maneira a discussão. Às vezes há quem não me perdoe: conquisto sem saberum inimigo, pela omissão de um cumprimento ou de uma palavra amável, peladesatenção, por uma observação irrefletida ou mesmo uma brincadeira levada a sério.

Talvez no fundo haja timidez, é possível. Todo mundo gosta de se dizer tímidono fundo, eu também. Indecisão, eis a palavra. Me sinto dividido dramaticamente emdois, ante qualquer alternativa. Já fui apelidado de Hamlet telefônico, pela minhaincapacidade de resolver qualquer assunto mediante apenas um primeiro telefonema.De repente me precipito e subverto os princípios que erigi em regras de conduta: falomais do que devia, dou passo maior do que as pernas, tento cruzar a ponte antes dechegar nela. Foi-se a luz do entendimento, ouço aquela famosa asa da imbecilidaderuflar aos meus ouvidos, e começo a rir, feliz como um idiota, diante de qualquer tolice — como, por exemplo, a repetição, em voz gutural, do tal verso de Garcia Lorca.

Mas, e a literatura? Aqui, a tal burrice poderia converter-se, como por milagre, emforça criadora — não fosse ela apenas uma caricatura da inocência. Passei a vida mepreparando para me tornar um romancista. Seria ridículo negar que aprendi algumacoisa do meu ofício de escritor. Posso dizer que consegui dominar razoavelmente meu

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instrumento de trabalho, do qual, aliás, tiro a máxima parte do meu sustento. Sou bomdatilógrafo, sei ainda aquele resto de gramática, alguma coisa de ortografia. Gasteiresmas e resmas de papel escrevendo o que quer que fosse que me ensinasse a meexprimir através da palavra escrita, desde o caso mais gaiato à novela maispretensiosamente literária. Com isso não fiz propriamente uma obra, senão algumashistórias curtas, ditas crônicas, cujo maior mérito será talvez o de uma delas poder virum dia a figurar em antologias ao lado de “O Plebiscito”, de Artur de Azevedo — oque não chega a ser uma grande pretensão. O romance que escrevi foi uma tentativa desaber com que eu contava para poder começar. Aos 30 anos, achei que devia pagar essepreço, para merecer o ingresso no mundo da criação literária: o de oferecer ao público,ainda que em termos de ficção, a história de uma experiência pessoal arrancada docoração. Eu tinha de jogar tudo para abrir estrada larga e franca, como me aconselhavagravemente Mário de Andrade em uma de suas cartas: não ter contemplações paracomigo mesmo, não escorregar apenas, mas cair de quatro, quebrar a cabeça. Ir até oextremo de mim mesmo, não blefar, ser exatamente do meu tamanho — nem maior,nem menor. Para isso, não bastava apenas ser sincero ou espontâneo: teria de adquirir,nas palavras de Mário, “pelo sofrimento perfeito da vida, uma coisa muito mais nobredo que a espontaneidade e muito mais espiritual que a sinceridade: uma convicção”.

Às vezes alguém me pergunta pelo meu novo romance. Calo-me, ou disfarço,digo que estou escrevendo, chego mesmo a confessar que tenho o romance todo nacabeça, só me falta a primeira frase. A verdade é que eu sabia o que queria dizer, não sa-bia como dizer. E meu novo romance se desintegrou antes de nascido. Porque oromancista só escreve sobre o que não sabe, exatamente para ficar sabendo. Oromancista é um inocente — e nisso reside o segredo de sua capacidade criadora: é asua sabedoria. Em vez de conquistá-la, tornei-me esperto, ou experto, para usar umapalavra da moda: sou bem espertinho, isso não nego. Sei distinguir o que é ruim do queé bom. Me dêem um original e eu saberei apontar nele qualidades e defeitos, encher otexto de marquinhas e anotações, tira isto, corta aqui, melhora aquilo, está uma droga. Eme divirto com isso, tenho também o meu lado sádico. Sei, enfim, achar num romancealheio o caminho de casa, desenhar o mapa da mina. Aprendi os truques e perdi ainocência, saí roubado: até o que eu não tinha me tiraram. E quem nada tem, até isso

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lhe será tirado. Li as novelas de Henry James de ponta a ponta, para um dia acabardescobrindo, nas obras maiores, que o gênio do romance moderno era um chato.Outro gênio do romance me derrotou: não consegui ler “Ulysses”, apesar de trêsobstinadas tentativas, que me levaram tão-somente até aquela impenetrável discussãosobre Hamlet na biblioteca. E, como os demais que me afirmam ter lido o livro todo, enão somente o monólogo final, não preciso ir até o fim para saber que se trata de umainsuportável obra-prima. Escrever romance para que, depois de Dostoievski? Para serlido por quem?

O melhor livro que já li na minha vida continua mesmo sendo“Winnetou”de KarlMay: jamais romance algum me deslumbrará tanto como, aos 11 anos, essa fabulosahistória de aventuras. Hoje, para dizer a verdade, o que eu gosto mesmo é de um bomlivro de aventuras reais de guerra: já li no mínimo uns cem — e nem em Saint-Exupéryencontrei tão boa literatura como no livro de Richard Hillary, por exemplo. Até já meesqueci que Gide existiu: o que me impressiona hoje é um bom documentário jor-nalístico sobre a situação na Argélia, a revolução cubana, a guerra do Vietnã, a vida deChurchill, o fenômeno Hitler, a santidade de João XXIII, o assassinato de Kennedy, ofundo do mar na visão de Jacques Cousteau. O que significa isso? Que o romancetradicional estará definitivamente ultrapassado, como gênero literário?

Talvez para mim, que sou filho ingrato. Mas permanecerá para sempre vivo naspáginas de Faulkner, Proust e outros grandes, cuja leitura jamais cheguei a terminar,para não falar em Dickens, Balzac e outros ancestrais, cuja leitura nem sequer iniciei.Eu, um literato, um escritor, um romancista em potencial: que em certa época de pa-ranóia literária me pretendi umscholare disparei a ler toda uma biblioteca sobre ofenômeno da literatura como meio de expressão, de I. A. Richards a C. M. Bowra! Ora,rapaz, dizia um tio meu: você não passa mesmo de um poeta...

É possível que, depois de Kafka, as coisas tenham se complicado um pouco. Épossível que o cinema seja mesmo o meio de expressão de nosso tempo, ainda em seusprimeiros passos. Pelo menos, vejo em filmes como “A Noite” de Antonioni, ou “Doce Vida” e “Oito e Meio” de Fellini, uma expressão romanesca muito maior do que a demuito romance hoje em dia. A possibilidade de uma obra de autoria de muitos, aindaque sob o orientação de um só, me parece muito mais condizente com as exigênciascoletivas de nosso tempo. Pelo menos mais respeitável, por se integrar no fenômenosocial de nossa época, devido às condições industriais a que se subordina, e ao campo

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mais vasto, tanto de sua temática como de sua divulgação.Por isso o cinema seria capaz de seduzir-me, se talvez já não fosse tão tarde —

como, de resto, me seduziria a realização de outra veleidade, a de uma frustrada vocação para músico de jazz: pelo apelo irresistível de um ato de criação em que maisde um participe, numa estreita e íntima comunhão de sensibilidade e inspiração, comonum ato de amor, que tem de ser praticado a dois. Escrever simplesmente um romancepara mim mesmo num quarto fechado, a essa altura dos acontecimentos, tem qualquercoisa de vício solitário.

A menos que...

Uma convicção. A menos que tudo que seja escrito, a partir da primeira palavra — aquela que me falta — já venha informado de uma convicção. A consciência literáriaé gratuita, o dom de escrever não se adquire, mas uma convicção é conquistada. Tereicaído de quatro? Quebrado a cabeça? Ou conquistado uma convicção? Gostaria quefosse simplesmente esta: a da necessidade de uma justiça social que ao mesmo temporespeite os direitos fundamentais do homem. Sou, pois, um idealista — acredito aindanuma revolução. Porque a verdadeira revolução de nosso tempo não foi a da Rússia,nem a da China, e muito menos a de Cuba, que chegou a me despertar ilusões: será a daIgreja — uma revolução espiritual? É muito desejar — certamente não viverei até lá.

Cinco horas da manhã. Daqui a pouco o dia começa a clarear. Levanto-me damáquina, o corpo dormente, espreguiço-me, vou até a janela. Todas as luzes do edifíciofronteiro apagadas, os moradores estão dormindo na santa paz do Senhor — todoseles, como eu, pobres criaturas de Deus. Foi-se o medo de surpreender o mistério dessagente. Quisera agora comunicar-me com eles, saber de seus desejos e problemas,conhecê-los de perto, escrever sobre eles, quem sabe, talvez um romance, o meu ro-mance.

8/13/2019 SABINO, Fernando - Deixa o Alfredo Falar

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