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saúde e da vida · 3 Depoimento no mesmo artigo da cientista SOFFER Olga. O sexo forte. Artigo da Revista Veja, 1999, p. 110-115. O sexo forte. Artigo da Revista Veja, 1999, p. 110-115

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AMTR-SUL

2008

Mulheres camponesasem defesa da

saúde e da vida

Mulheres camponesasem defesa da

saúde e da vida

Publicação daASSOCIAÇÃO DE MULHERES TRABALHADORAS RURAISDA REGIÃO SUL DO BRASIL

Abril de 2008

Organizadoras:Vanderléia L. P. DaronZenaide Collet

Contribuição:Luciana PiovesanJustina CimaSalete Girardi

Ilustrações:Márcia B. Aliprandini

Projeto Gráfico:MDA Comunicação Integrada

Impressão:Gráfica Passografic

Apoio:Convênio 060/2005

Secretaria da AMTR-SULRua Sete de Setembro, 2070Bairro Distrito Presidente Médice89.806-150 - Chapecó - Sc

www.mmcbrasil.com.br

3

com alegria que o Movimento de Mulheres Camponesas – MMC publica mais um instrumento de apoio à reflexão e estudo para as dirigentes e militantes sobre a saúde. Este material apresenta uma síntese dos muitos debates que vem acontecendo no MMC sobre a saúde e suas relações com o projeto de agricultura camponesa, as plantas medicinais, as sementes crioulas, a alimentação saudável e a

reeducação alimentar.

Todo este esforço tem por objetivo partilhar informações e experiências que estão sendo realizadas pelas mulheres camponesas e contribuir na unificação e aprofundamento dos temas que por ora perpassam a vida do MMC, acreditando que: “quem faz já sabe, mas quem pensa sobre o que faz, faz melhor”.

Temos consciência de nossa contribuição na luta pela emancipação da mu-lher que vem acompanhada com a luta pela transformação da sociedade. Por este compromisso estamos todas convocadas a fortalecer e ampliar novos grupos de mulheres para debater sobre a necessidade de saúde e vida.

Assim fortalecemos nossas lutas através de uma história aonde cada mulher camponesa vai descobrindo que tem um papel fundamental na mudança das rela-ções e na construção da nova sociedade tendo como princípio a vida, a justiça e o bem estar de todas e todos.

Fortalecer a luta em defesa da vida.

Todos os dias!

Coordenação Nacional do MMC

Abril de 2008

Apresentação

É

4

"Cada pessoa brilha com luz própria entre

todas as outras. Não existem duas fogueiras

iguais. Existem fogueiras grandes e fogueiras

pequenas e fogueiras de todas as cores.

Existe gente de fogo sereno, que nem percebe

o vento e gente de fogo louco que enche o

ar de chispas. Alguns fogos, fogos bobos,

não alumiam nem queimam: mas outros

incendeiam a vida com tamanha vontade que

é impossível olhar para eles sem pestanejar e

quem chegar perto pega fogo".

Eduardo Galeano

5

1. Mulheres: histórias de dor, resistência e emancipação................................................... 7

1.1. As mulheres na história........................................................................................7

1.2. Influência da cultura grega e romana sobre nossas vidas e aslutas de resistência das mulheres......................................................................10

1.3. Feminismo e a luta das mulheres camponesas...................................................15

2. A situação de vida e saúde das mulheres camponesas no Brasile a luta por saúde...........................................................................................................17

3. Mulheres camponesas, saúde e construção do projeto popular de agricultura.............29

4. Saúde: direito de todas(os) e dever do estado...............................................................33

4.1. A política pública de saúde no Brasil:entre as necessidades do povo e os interesses do capital.................................33

4.2. O Sistema Único de Saúde: luta, conquista e desafio.........................................37

4.3. Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde..........................................................40

4.4. Passos para garantir os direitos no Sistema Único de Saúde (SUS).....................41

5. Saúde integral, defesa da vida e emancipação - experiências do MMC..........................43

5.1. Plantando Saúde.................................................................................................46

5.2. Recuperação de sementes crioulas de hortaliças...............................................48

5.3. Alimentação saudável: necessidade vital............................................................50

6. Referências......................................................................................................................55

Sumário

6

O passo seguinte

O passo seguinte não é o próximoO passo seguinte é o necessário,

Para termos a certezaDe que continuaremos caminhando juntas (os),

Unidas (os) pelos mesmos ideais de luta,Pelos mesmos sentimentos de liberdade

Pelo mesmo compromisso de transformação!

Fragmentos do poema de Edmundo Colen

7s mulheres são a maioria da população brasileira e são as que mais buscam os serviços públicos de saúde através do SUS, para seu próprio atendi-mento, mas principalmente

acompanhando crianças, familiares, idosos, pessoas com deficiências, amigos e vizinhos. São cuidadoras que, muitas vezes cuidam mais dos outros do que de si próprias.

O processo de saúde-adoecimento está intrinsecamente relacionado com as condi-ções de vida das pessoas, com o trabalho, o ambiente, ou seja, há um conjunto de ques-tões que determinam e/ou condicionam os processos de saúde e de adoecimento das pessoas. No caso específico das mulheres e da população negra e indígena, além disto, pesa as marcas da opressão, dominação, ex-ploração e violência que foi sendo imposta pela sociedade de classes e sustentada pela cultura racista e patriarcal.

Por isto, que para refletir sobre a saú-de das mulheres camponesas é preciso fazer uma breve recuperação da trajetória históri-ca e do papel das mulheres.

1.1. As mulheres na históriaUm dos elementos fundamentais para

entender as relações humanas, em especial, o papel que a mulher desempenha na famí-lia, no trabalho, nos espaços de decisão têm sido a análise histórica social e cultural.

Quando oriundo de um contexto de luta pela emancipação humana e social, o papel da mulher tem sido fundamental para o avan-ço não só das relações compreendidas entre

o masculino e o feminino, mas, sobretudo, para a transformação da sociedade patriarcal, capitalista e neoliberal, sinalizando para as possibilidades reais contidas no sonho por um mundo mais justo, igualitário e digno.

Entretanto, “ainda é forte na humani-dade, tal ‘superioridade’ do homem frente à suposta ‘inferioridade da mulher’, histori-camente construída, produzida e imposta às gerações como um modelo ‘natural’ da vida em sociedade”. Tais idéias são reforçadas, reafirmadas e agradam ao modelo patriarcal e capitalista em que vivemos, que encontra sobretudo na dupla face da opressão/explo-ração a perpetuação de uma humanidade “sem rumo” e sem perspectivas. Um “mode-lo” de sociedade que se legitima conduzindo a massa dos humanos à base da dependência, da falta de autonomia, da violência, seja ela institucionalizada ou não. Compreender essa construção histórica é uma necessidade das dirigentes e lideranças do Movimento de Mu-lheres Camponesas - MMC, pois acreditamos na possibilidade de novas relações sociais de gênero, classe, raça, etnia e com a natureza.

A história da humanidade é marcada pela atuação de mulheres e homens no desen-volvimento do ser humano. O TRABALHO é um dos elementos fundamentais que diferencia a espécie humana dos animais e que produz as riquezas que deveriam ser partilhadas entre todos. Vamos conhecer um pouco das mar-cas dessa história, levantando apenas algumas questões motivadoras, a fim de que possamos em nossa disciplina militante encontrar algu-mas referências e motivações para um estudo mais aprofundado, ao qual estão todas convo-cadas a fazer, para melhor compreender a di-nâmica da vida humana e da sociedade.

Mulheres:

de dor, resistência e emancipaçãohistórias

A

1

8

Mais ou menos 125 mil anos antes de Cristo, a este período da história, foi dado o nome de paleolítico1 médio. As pessoas se or-ganizavam em clãs também chamadas de co-munidades primitivas, ou tribos, eram nôma-des, ou seja, não tinham lugar fixo para morar, construíam abrigos temporários nas cavernas para se protegerem e se defenderem dos ou-tros animais. Aos poucos aprenderam a utili-zar pedaços de madeira para derrubar o fruto da árvore e arrancar as raízes. Assim foram or-ganizando pequenos instrumentos de traba-lho que os auxiliavam na coleta dos alimentos e, ao mesmo tempo, serviam de auto defesa no ataque de animais. O trabalho da mulher e do homem era igual. No estudo dos sítios ar-queológicos no sul da África constatou-se que 70% da alimentação das comunidades primiti-vas vinham das coletas de vegetais2.

Aos poucos foram descobrindo vários instrumentos que auxiliavam na busca de alimentos. As redes foram criadas para faci-litar a caça de pequenos animais. As caçadas eram comunitárias, delas participam mulhe-res, homens e crianças, “o problema é que as redes resistem menos aos efeitos do tempo do que as lanças e pedras afiadas3”.

Essas informações, embora pouco divul-gadas, mostram como a mulher sempre traba-lhou e desempenhou um papel relevante no desenvolvimento e no auto-sustento da hu-manidade. A sobrevivência das comunidades

primitivas só foi possível devido às relações de entre - ajuda e solidariedade existentes neste período. Assim como os trabalhos da sobrevi-vência era tarefa de todos, da mesma forma, a defesa, a proteção, o cuidado com as crianças era responsabilidade de todos.

Neste período, o aprendiza-do vinha da observação onde, ao mesmo tempo em que a mulher observa as mudanças que ocorrem em seu corpo como à menstruação, a ges-tação, a amamentação, entre outras; ela percebe a repro-dução das sementes e dos animais. Assim, começa a se-

mear desenvolvendo lentamente a primitiva técnica agrícola. O plantio das sementes foi garantindo a alimentação fazendo com que as comunidades primitivas permanecessem mais tempo no mesmo lugar. Juntamente com o plantio das sementes ocorre também a domesticação de pequenos animais, como: o cachorro, a galinha, o porco, a ovelha, a ca-bra, entre outros. A terra, a alimentação, as ferramentas pertenciam ao coletivo.

O cuidado com a vida era muito forte e havia uma relação estreita entre cuidar da vida, da saúde com a natureza, utilizando as plantas medicinais e com a dimensão da es-piritualidade. A mulher era portadora de uma sabedoria imensa a este respeito e sabia como

Vamos levantar alguns elementos a partir dos modos de produçãonas diferentes sociedades, vejamos:

1 Um período é o tempo que transcorre entre um fato histórico e outro, que altera a estrutura social. Cada cultura tem estabelecido, graças a seus historiadores, os diferentes períodos históricos de sua sociedade. A cultura oci-dental, ou melhor, a européia, que é determinante no meio de nós, estabeleceu dois períodos a Pré-história e a História.

2 ZILHMAN Adrienne e TANNER Nancy (cientistas). O sexo forte. Artigo da Revista Veja, 1999, p. 110-115.3 Depoimento no mesmo artigo da cientista SOFFER Olga. O sexo forte. Artigo da Revista Veja, 1999, p. 110-115.

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É interessante observar que nestas disputas o grupo dominado se tornava escravo do outro.

Já em outras sociedades, entre elas al-guns povos da América pré-colombiana possu-íam uma organização mais igualitária entre ho-mens e mulheres sem diferenças hierárquicas.

Porém, a organização da sociedade criou estruturas e formas com características bem distintas. Entre o povo da Babilônia, no século VII antes de Cristo, a inferioridade da mulher era concebida como inspiração divi-na, conforme consta no Código Hamurábi:

Isto também era reforçado pelo Alcorão, livro sagrado dos Muçulmanos recitado por Alá a Maomé no século VI. Na cultura persa, os filósofos reforçavam a submissão das mulheres. Na cultura grega vale destacar os diferentes papéis desempe-nhados pelas mulheres, citamos três exemplos:

a) A mulher na sociedade minóica4 era li-vre, podia adquirir propriedades e ser independente, além de ter um papel de destaque no culto.

b) A mulher espartana5 se destacava pela força militar. A educação da mulher era quase igual à dos homens, participan-do de exercícios físicos, de torneios e atividades desportivas. O objetivo era

lidar com o cuidado, com os mistérios da vida e com a espiritualidade.

Este período na história é conhecido como o fim do período paleolítico e início do período neolítico, ou seja, mais ou menos 12 a 10 mil anos antes de Cristo.

Esta relação com a terra faz surgir à técni-ca da cerâmica inventando a panela e, com isso, melhorando as condições de cozimento, os po-tes auxiliando no armazenamento dos alimen-tos, bem como, a construção de casa de barro oferecendo mais segurança à comunidade.

Estes são exemplos de como a mulher ocupava papel determinante na sociedade e na economia, ou seja, a descoberta da agri-cultura, com o plantio das sementes; a cria-ção das cerâmicas que permitiu guardar e proteger os grãos e alimentos, criando con-dições de sobrevivência dos grupos que an-tes eram nômades e estavam vulneráveis as condições do clima, ao ataque de animais e à falta de alimentos.

A descoberta de metais como o cobre, o ferro e o bronze favoreceram a invenção de

novas ferramentas, como a charrua (tipo de arado primitivo), foi-

ce, enxada, ma-chados, pilão, lanças, arpões...

Com isso, a agricultura toma um

novo impulso e passa dos quintais para áre-as maiores exigindo mais trabalho e proteção das plantações, pois outros grupos nômades que ainda não tinham descoberto a técnica do plantio buscavam os alimentos nas plantações. Essa disputa primitiva originou as guerras, a propriedade privada e a divisão do trabalho.

Pilão de pedra

4 A civilização minóica foi uma civilização que se desenvolveu na ilha de Creta, a maior ilha do mar Egeu, entre 2700 a.C. e 1450 a.C. Teve como principal centro a cidade de Cnossos. O termo “minóico” deriva de Minos, título dado ao rei de Creta.Os minóicos foram uma civilização pré-helênica da idade do bronze, em Creta, no mar Egeu. Baseando-se em descrições da arte minóica, essa cultura é freqüentemente descrita como uma sociedade matriarcal voltada para o culto à deusa.

5 A sociedade espartana era fortemente estratificada, sem qualquer possibilidade de mobilidade entre os três grupos existentes: os Esparciatas (filhos de pai e mãe espartanos, sendo os únicos que possuíam direitos políticos. As muheres podiam herdar o klêros, (lotes de terra), mas só no caso de não ter existido descendência masculina e com o objetivo de o transmitirem. Os espartanos não podiam exercer o comércio.), os Periecos (habitantes da periferia, eram integrados no estado espartano ao qual pagavam impostos. Apesar de serem livres, não tinham direitos políti-cos e dependiam dos Espartanos em matéria de política externa. Estavam obrigados à participação na guerra,) e os Hilotas. (Eram os servos, que pertencendo ao estado espartano, trabalhavam nos kleros, entregando metade das colheitas ao Espartano e eram duramente explorados. Deveriam cultivar essa terra a vida inteira e não podiam ser expulsos de seu lugar. Levavam uma vida muito dura, sujeita a humilhações constantes.)

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dotá-las de um corpo forte e saudável para gerar filhos sadios e vigorosos res-saltando o papel de reprodutora, pois os filhos eram sinal de vitalidade. Co-mandavam o lar e eram respeitadas, mas não tinham direitos políticos. Já a mulher escrava era subjugada e usada como objeto de prazer.

c) A mulher ateniense quando era casada vivia a maior parte do tempo confina-da às paredes de sua casa, exercendo funções domésticas, estando submissa a um regime de quase reclusão, com a função de procriar e cuidar da família. Mesmo a jovem não podia encontrar-se livremente com rapazes, visto que viviam fechadas nos aposentos desti-nados às mulheres onde deviam per-manecer separadas dos homens.

A inferioridade da mulher começa a ga-nhar força com o avanço da política e da filoso-fia grega. Aristóteles escreve justificando como virtude e graça natural o silêncio da mulher, significava, portanto, efetivamente, o mesmo que excluí-la inteiramente da cidadania. Essas idéias se expandem e são incorporadas pelo império romano quando domina a Grécia.

Isto nos leva imediatamente de volta à nature-za da alma: nesta, há por natureza uma parte que comanda e uma parte que é comandada, às quais atribuímos qualidades diferentes, ou seja, a qualidade do racional e a do irracional. (...) o mesmo princípio se aplica aos outros casos de comandante e comandado. Logo, há por natureza várias classes de comandantes e comandados, pois de maneiras diferentes o homem livre comanda o escravo, o macho co-manda a fêmea e o homem comanda a criança. Todos possuem as diferentes partes da alma, mas possuem-nas diferentemente, pois o es-cravo não possui de forma alguma a faculdade

de deliberar, enquanto a mulher a possui, mas sem autoridade plena, e a criança a tem, pos-to que ainda em formação. Devemos, então, dizer que todas aquelas pessoas têm suas qualidades próprias, como o poeta (Sófocles, Ájax, vv.405-408) disse das mulheres: "O silên-cio dá graça às mulheres, embora isto em nada se aplique ao homem” (Aristóteles, Política, I,

1260 a-b, pp. 32e 33)6.

É a partir deste contexto e destas re-lações, acima mencionadas que vai sendo originada a sociedade de classe e a cultura patriarcal. Ou seja, a divisão entre senhores e escravos, entre os que plantavam o alimen-to e os grupos nômades, entre os que tinham ferramentas e os que não possuíam. Esta di-visão começa a aparecer também na relação entre o homem e mulher.

Mas é fundamental lembrar que este fato não atingiu toda a humanidade em uma só vez e muito menos em todas as comunidades, mas que com o tempo foi incorporando outros aspectos de dominação, como a dominação ét-nico-racial tão forte no período da colonização e que ainda se reproduz. Esta divisão se desen-volveu principalmente na Europa e veio para as Américas através da colonização.

1.2. Influência da cultura grega e romana sobre nossas vidas e as lutas de resistência das mulheres

Do ano 476 d.C. com a desintegração do Império Romano no Ocidente até o ano 1.453 com a queda de Constantinopla, a Eu-ropa viveu o modo de produção feudalista7. Este modo de produção tinha clara divisão social entre senhor feudal e servo. O senhor

6 TÔRRES. Moisés Romanazzi Considerações sobre a condição da mulher na Grécia Clássica (sécs. V e IV a.C.) Revista Mirabilia 1, acessado em 8 de abril de 2008.

7 O feudalismo foi um modo de organização social e político baseado nas relações servo-contratuais (servis). Tem suas origens na decadência do Império Romano. Predominou na Europa durante a Idade Média. Segundo o teórico escocês do iluminismo, Lord Kames, o feudalismo é geralmente precedido pelo nomadismo e em certas zonas do mundo pode ser sucedido pelo capitalismo. Os senhores feudais conseguiam as terras porque o rei dava-as para eles. Os camponeses cuidavam da agropecuária dos feudos e em troca recebiam o direito à um pedaço de terra para morar e também estavam protegidos dos bárbaros. Quando os servos iam para o manso senhorial, atravessando a ponte, tinham que pagar um pedágio, exceto quando iam cuidar das terras do Senhor Feudal. Com a decadência e a destruição do Império Romano do Ocidente, por volta do século V d.C. (de 401 a 500), como conseqüência das inúmeras invasões dos povos do oriente, chamados povos bárbaros e das más políticas econômicas dos imperadores, várias regiões da Europa passaram a apresentar baixa densidade populacional e baixo desenvolvimento urbano. Isso ocorria devido às mortes provocadas pelas guerras, às doenças e à insegurança existentes logo após o fim do Império Romano. A partir do século V d.C., entra-se na chamada Idade Média, mas o sistema feudal (Feudalismo) somente passa a vigorar em alguns países da Europa Ocidental a partir do século IX d.C., aproximadamente.

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feudal era latifundiário dono da terra, da produção, do exército, e os servos deviam trabalhar a terra, fazer limpeza e manuten-ção do castelo, das estradas, das pontes e em épocas de guerra tinha que compor o exérci-to para defender o senhor.

O camponês neste período não tinha terra. Tinha uma parceria desigual com o proprietário, com o dever de cultivar a terra, devolver a maior parte, além de pagar impostos, zelar pela propriedade e defender o senhor em situações de guerra.

Nesta sociedade a mulher camponesa era explorada igual ao homem em relação à força de trabalho porque ambos eram prati-camente despojados dos bens, não tinham propriedade a proteger. As camponesas tra-balhavam muito: cultivavam as terras, fiavam e teciam a lã, geravam e cuidavam das crian-ças, que seriam os braços para produzir e de-fender o senhor feudal e suas propriedades.

A esposa e a filha do senhor feudal tam-bém eram subordinadas, não participavam das decisões, não tinham o direito de escolher ho-mem para casar, mas devia aceitar aquele que o pai escolhesse, pois o objetivo do casamento era assegurar a propriedade privada. Quando era esposa não podia vender nem hipotecar seus bens sem a autoridade e consentimento do seu marido. Devia ser fiel e dar filhos legí-timos para garantir a herança, além de cuidar das crianças doentes e das tarefas da casa.

É importante dizer que o casamento como nós conhecemos hoje foi instituído pela igreja católica no século XI. A partir daí come-ça se reforçar e exaltar a idéia de que o papel da mulher é de boa esposa, impondo papéis e tarefas que são para os homens e outras tarefas que são para as mulheres. Em muitas culturas, as mulheres carregam a responsabili-dade principal de cuidar das filhas (os), do tra-balho doméstico que implica em (limpar, pas-sar, cozinhar, cuidar de doentes...), enquanto os homens, tradicionalmente, nascem com a responsabilidade de chefiar a família.

Com o casamento a mulher estaria res-trita a um só parceiro, que ela devia obedi-ência, fidelidade e respeito. Durante a Idade Média (de 476 a 1.453), a falta de conheci-mento sobre a natureza feminina causava medo e insegurança aos homens. A igreja que tinha o poder e o controle sobre as pes-soas fundamentava a inferiorização da mu-lher frente ao homem. O discurso mais co-nhecido é o pecado de Adão e Eva onde Eva, a mulher é a pecadora e a responsável por seduzir Adão para o pecado original.

Além disso, Maria, mãe de Jesus é co-locada em nosso universo simbólico religioso como a mulher virgem, obediente e sempre a serviço dos outros.

Estas idéias expressam e reproduzem a cultura patriarcal, contrariando aquilo que diz na Bíblia, no Magnificat - Canto de Maria, no evangelho de Lucas 1,46-55, que profetiza a ação do Messias. São versos fortes como este: “Todas as gerações, de agora em dian-te, me chamarão feliz...” “Ele mostrou a força de seu braço: dispersou os que tem planos orgulhosos no coração”.[...] “Encheu de bens os famintos, e mandou embora os ricos de mãos vazias”. Este exemplo nos ajuda a en-tender como muitas idéias sobre as mulheres e seu papel são construídas historicamente pela religião, pelo Estado, pela Escola, pela Família e outras instituições, na tentativa de naturalizar as desigualdades. Se estas idéias foram criadas, podem também serem trans-formadas na sociedade.

Todas as sociedades passaram por mui-tas mudanças, mas na organização da socie-dade romana a divisão entre patrícios e ple-beus eram bem distinta. O titulo de cidadão romano era muito valorizado, mas era conce-dido apenas para os homens brancos e ricos. Como os plebeus: trabalhadores, escravos, estrangeiros, mulheres não participavam do processo político não tinham titulo de cidadã/cidadão romana. A organização em comuni-dade baseava-se em comunidades gentílicas. O regime gentílico se estruturava em torno dos gens, que reuniam famílias identificadas por laços de consangüinidade e religião. Não havia a propriedade privada da terra.

A terra pertencia à comunidade onde a autoridade máxima de cada grupo era exercida

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pelo “pater familias” (o pai-chefe familiar). Com a expansão do comércio, aumenta a população, crescem as cidades e, ao mesmo tempo, intensifica-se o processo de desagre-gação das comunidades. Roma tornou-se um grande centro urbano com muita desigualda-de social. A divisão do trabalho deu origem ao processo de apropriação privada da terra por parte dos chefes das famílias gentílicas – os "pater". Os agregados em torno dos "pa-ter" mantinham seu nome e suas tradições, formando a aristocracia romana.

Será que estes modos de vida deram origem ao patriarcado? O patriarcado é uma palavra grega = pater. Referindo-se a um ter-ritório governado por uma autoridade reli-giosa chamada de patriarca que tem poder sobre todos que lhe estão subordinados. Com o tempo, se constituiu uma ideologia com base na hierarquia e na desigualdade impondo concepções que naturalizam e jus-tificam a manutenção de privilégio status de superioridade para o homem, e status infe-rioridade, serviçal e obediente para a mu-lher. Para manter a subordinação da mulher foram usados vários métodos como: proibi-ção, violência, exclusão, discriminação.

Ao mesmo tempo, houve mulheres que resistiram e contestaram essa ideologia, como é a escritora francesa Chiristine de Pi-zan (1364 à1430) autora do livro "A Cidade das Mulheres" no qual defende a igualdade entre os sexos. Chiristine pode ser considera-da uma das primeiras feministas por apresen-tar um discurso em favor da igualdade entre os sexos defendendo uma educação idêntica às meninas e meninos.

Outro exemplo é da camponesa Joana D’Arc, que ainda criança vê seus familiares mortos na Guerra dos cem anos entre França e Inglaterra. Muito jovem comanda exército francês expulsando os ingleses. Por este ato é acusada de feiticeira, bruxa, presa e conde-nada à morte na fogueira em maio de 1431. Na verdade, Joana D’Arc marcou seu tempo com sua liderança, autonomia e decisão ques-tionando as instituições conservadoras que, para não serem desestabilizados condenavam todos os que contestavam a ordem estabele-cida. O exemplo disso é a caça às bruxas pri-meiramente iniciada pela igreja do século XV.

Com a desestruturação do modo de pro-dução feudal e o início do modo de produção capitalista, o trabalho livre passa a ser valori-zado e comercializado. Surge uma série de re-trocessos na condição da mulher na sociedade ocidental. Muitas delas deixam de freqüentar universidades, perdem o direito à propriedade e herança, entre outros. Embora precisamos ter presente que a formação de uma sociedade é uma complexidade muito grande.

O modo de produção capitalista é de-finido como um sistema de organização de sociedade baseado na propriedade privada dos meios de produção, na divisão de classe social (burguesia e trabalhadores), na explo-ração da força de trabalho, na comercializa-ção das mercadorias gerando cada vez mais lucros concentrando riqueza nas mãos de poucos visando sempre mais lucros.

No século XVII, na França, a burguesia, classe que estava em ascensão formada prin-cipalmente por comerciantes ricos, descon-tentes com os nobres que detinham o poder político se organiza com o objetivo de tomar o poder. No lema: “liberdade, fraternidade e igualdade”, os artesãos, aprendizes, proletá-rios, servos e camponeses semi ou livres se sentem representados e se juntam para der-rubar a monarquia francesa. Ao assumir o controle do Estado a burguesia exclui o povo e usa o Estado para garantir a propriedade pri-vada dos meios de produção, ou seja, o poder dos senhores feudais, da nobreza é substituí-do pelo poder da burguesia, do capital.

Para o povo só muda e se aperfeiçoa as formas

de exploração. Antes eram explorados pelos

senhores feudais e agora são explorados pela

burguesia capitalista. Antes eram servos e agora são

proletários.

A situação da mulher no capitalismo passa a ser atrelada aos destinos da proprie-dade privada. Como esposa ela garante os fi-lhos legítimos que vão herdar a propriedade; se a mulher é herdeira garante o aumento do

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capital do marido. Quando é proletária, vai garantir os operários, ou seja, mão de obra para as indústrias capitalistas.

As mulheres burguesas são apenas re-flexos/esposa de seus maridos. São modifi-cadas e adequadas conforme a necessidade de seus donos. As mulheres trabalhadoras do campo e da cidade são como animais de carga, enfrentam uma tripla jornada de tra-balho penoso e difícil.

Quando o modo de produção capitalis-ta passou a industrializar as tarefas domésti-cas como a fabricação de roupas, de alimen-tos as mulheres tiveram que concorrer ao mercado de trabalho. O trabalho que faziam antes que era fonte de renda como a costura, bordado, conservas, chimias, entre outras, passa a ser produzido pela indústria e com máquinas mais aperfeiçoadas. Para as mu-lheres terem a renda restou oferecer/vender a força de trabalho ao industrial.

Mas isto não alterou a forma de divisão do trabalho doméstico. Muito pelo contrário: Permaneceu com a responsabilidade lavar, cozinha, limpar, passar, cuidar de filhos... re-forçando ainda mais a tripla jornada de tra-balho. Além disto, a mulher ao vender a for-ça de trabalho recebe salário menor que os homens. Essa relação desigual interessou ao capitalista, pois é mais uma forma de man-ter a mesma produção sobrando mais lucro. Para manter esta desigualdade é necessário difundir a idéia de que o trabalho da mulher é inferior e, portanto, de menor valor. Dá para concordar com essas idéias?

Em todas as partes do mundo, em todos os espaços

há mulheres que se organizam, resistem, lutam, enfrentam

buscando romper com os padrões estabelecidos.

É fundamental entendermos que o mo-delo de funcionamento da sociedade capita-lista não acontece de forma mecânica, mas é garantido pelo Estado que por sua vez utiliza as instituições: escola, família, meios de comu-nicação, exército, igreja, repas-sando uma ideologia com ob-jetivo de manter o controle sobre a sociedade.

Aos poucos a mulher vem adqui-rindo consciência crítica de si mes-ma como pessoa e da socieda-de. Se organiza, questiona, luta, denuncia... Va-mos apenas citar alguns exemplos da luta das mulheres no Bra-sil enfrentando a opressão e a exploração.

Primeiramente, vamos lembrar a do-minação que os colonizadores brancos, eu-ropeus impuseram sobre os povos nativos justificando que não tinham cultura, não trabalhavam e não tinham alma. Portanto, poderiam ser explorados. Mas este povo sempre resistiu e lutou na defesa de sua identidade, sua terra e seu modo de vida. Entre outras, lembramos a luta das mulheres guaranis e tupiniquins no Espírito Santo na luta de enfrentamento contra o monocultivo e o domínio das transnacionais e a defesa de seus territórios.

Já em 1597, homens e mulheres negras enfren-tam a escravidão, o poder de seus senhores, o casti-go..., resistem e lutam pela liberdade. Constroem entre outras a experiência dos Quilombos dos Palmares – Terra livre, tendo várias

Dandara

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líderes, dentre as quais podemos relembrar de Dandara (companheira de Zumbi de Pal-mares), Anastácia, Aqualtume e outras. A luta de resistência deste povo e destas mu-lheres continua nas comunidades tradicio-nais, quilombolas e de remanescentes de Quilombos.

No início do século XX, as mulheres operárias se organizam reivindicando melhores condições de trabalho na indústria: redução da jornada de trabalho, direito a férias remuneradas, fim do trabalho infantil, igualdade salarial, educação, entre outros.

As primeiras Ligas Camponesas8 surgi-ram no Brasil, em 1945, depois da ditadura do presidente Getúlio Vargas. O movimento tinha como objetivos básicos lutar pela refor-ma agrária e pela posse da terra. Neste movi-mento havia as ligas femininas, mas com raro registro histórico.

É possível encontrarmos diversas ten-tativas de escritos feitos por mulheres, mos-trando como a opressão/exploração das mu-lheres é fruto de um processo histórico de construção. Portanto possível de ser muda-do. Vejamos:

A escritora Simone de Beauvoir es-creve o livro O Segundo Sexo em (1949), ela começa a defender que a hierarquia entre os sexos não é uma fatalidade bio-lógica e sim uma construção social. Para além da luta pela igualdade de direitos, incorpora o questionamento das raízes culturais das desigualdades, afirma: “não se nasce mulher, se faz mulher”. Para nós, feministas, marxistas, faz-se mulher em um determinado tempo his-tórico, em um tipo de sociedade deter-minada por formas de relações entre as

classes, incluindo aí também raça/etnia, gênero, geração e orientação sexual. Ou seja, fazer-se mulher em cada tempo e período de realização de um sistema so-cial ganha conotações particulares cores e matizes próprias e diversas.

Elizabeth Lobo no livro: A Classe Ope-rária tem dois sexos, trabalho, domina-ção e resistência (1991), mostra o mas-culino e o feminino, e não apenas um, como parece sugerir os estudos clássicos e o discurso sindical dominante. Esse é o ponto de partida de uma reflexão apai-xonada sobre as relações entre gênero e classe social, gênero e ação política.

Ivone Gebara (2001), fala da neces-sidade de uma reapropriação de poder roubado, sendo que, este poder que falta às mulheres, as coloca em desvantagem em todos os aspectos com relação aos ho-mens.

Apesar dos avanços que as mulheres fizeram em muitos países, as diferenças de gênero continuam servindo de fun-damento para as desigualdades sociais, de gênero e étnico-raciais.

As mulheres camponesas no de-correr da história entenderam que a opressão de gênero e a exploração de classe não servem para a humanidade. Perceberam também que a ideologia de dominação dos ricos sobre os pobres, dos brancos sobre os negros e índios, dos homens sobre as mulheres serve ao interesse de manter a relação dominan-te. Isso também se dá na relação com a natureza onde os humanos dominam e exploram os bens naturais em vista da concentração de riquezas.

Assim entendemos como a ideologia dominante impede de ver, ou seja, vela e encobre a realidade, naturaliza e justifica

as relações desiguais na esfera econômica, política, social, cultural, de gênero, étnico-

racial e com a natureza.

8 No Brasil, as ligas camponesas são conhecidas como a associação de trabalhadores rurais que se iniciou no Engenho Galiléia, no Estado de Pernambuco, em 1955, a partir da reivindicação de caixões para os camponeses mortos. O te-mor dos grandes proprietários acabou por hostilizar o movimento que, junto ao advogado e político Francisco Julião, tornou-se um movimento de amplitude nacional pelos direitos à terra, em defesa da Reforma Agrária.

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Precisamos de uma consciência crítica que nos permita ver a realidade e os fenômenos sociais, políticos, econômicos e culturais e, assim, pensar formas de superação desta realidade e de construção de uma nova sociedade.

Por isso, a importância da organização das mulheres camponesas em um movimen-to autônomo, o MMC, tendo como missão a libertação e emancipação da mulher, a construção do projeto popular de agricultu-ra a partir dos princípios da agroecologia e a transformação da sociedade, na perspectiva feminista e socialista.

1.3. Feminismo e a luta das mulheres camponesas

“Sempre que penso nas mulheres, me vem à imagem de um rio enorme e caudaloso que temos que atravessar. Umas apenas molham os pés e desistem, outras nadam até a metade e voltam, temendo que lhe faltem as forças. Mas há aquelas que resolvem alcançar a outra margem custe o que custar. Da travessia, vão largando pedaços de carne, pedaços delas mesmas. E pode parecer aos outros que do lado de lá vai chegar um trapo humano, uma mulher estraçalhada. Mas o que ficou pelo caminho é tão somente a pele velha. Na outra margem chega uma nova mulher...”Zuleica Alambert

A forma poética acima expressa como tem sido a trajetória de luta das mulheres. No processo de libertação dos povos, as mu-lheres sempre estiveram presentes nas lutas por transformação da sociedade, se por um lado foram ocultadas dos escritos, por outro marcaram a trajetória histórica, tendo parti-cipação ativa em greves, guerras, revoluções e nas lutas por direitos. Também tiveram um papel de destaque na produção da sobrevi-vência como alimentação, saúde, educação e

pelo fim da violência, pela autonomia políti-ca e do corpo, entre tantas outras. Nunca se conformaram com a condição de opressão, exploração, discriminação e violência que foi sendo um dos pilares de sustentação do es-cravismo, depois do feudalismo e hoje do ca-pitalismo. Inclusive em algumas experiências do socialismo real, as mulheres batalharam muito para a busca de emancipação.

No mundo, os movimentos de mulheres continuam resistindo e articulando a luta de classe, popular e feminista. Mas, por muito tempo foram se formando pré-conceitos so-bre a luta feminista tanto na sociedade, quan-to nos movimentos sociais. Isto aconteceu porque o feminismo, além de ser uma atitu-de política que analisa as relações de gênero, étnico-raciais e de classe, realiza o enfrenta-mento ao patriarcado e busca a construção de uma sociedade igualitária com a socialização do poder, das riquezas e do saber.

O feminismo é uma referência históri-ca de análise das relações sociais de gênero, étnico-raciais e de classe, expressos na luta de dor, de resistência, de sangue, de valori-zação, de libertação e de emancipação das mulheres no mundo.

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O Movimento de Mulheres Campone-sas afirma a luta feminista, popular na pers-pectiva socialista e agroecológica, construin-do uma nova sociedade com novas relações. Estas novas relações supõem compartilhar o poder, as riquezas e o saber, superando a dominação, a opressão, a exploração e a vio-lência, cultivando o respeito e preservação entre os seres humanos e deste com a biodi-versidade, a natureza.

Neste sentido, o feminismo se consti-tui numa forma de pensar o mundo, a socie-dade, o ser humano e as suas relações, afir-mando as mulheres como protagonistas da história, junto com todos os sujeitos sociais e não apenas os homens, brancos, ricos, hete-rossexuais,... como impõe a cultura patriar-cal, racista e a sociedade capitalista.

Além disto, o feminismo se constitui também como uma teoria sociológica, ou seja, uma forma de ver, analisar, refletir sobre o mundo, a sociedade e as relações humanas que traz como contribuição fundamental, a reflexão de que todas as relações humanas são relações de poder. E que estas relações de poder podem ser de reciprocidade, res-peito, pluralidade e policultura ou podem ser de opressão, dominação, monocultura.

Ao trazer este elemento para análise, as vertentes feministas também questio-nam todas as formas de naturalização das desigualdades econômicas, sociais, políticas e culturais que são impostas na sociedade. Também contribuem para o desvelamen-to (tirar o véu que esconde a realidade) e o rompimento da alienação que a sociedade capitalista produz, onde os seres humanos já não se reconhecem mais naquilo que produ-zem pela exploração que vivem.

Por isto, o feminismo na perspectiva popular e socialista é uma ferramenta polí-tica de afirmação das mulheres como pro-tagonistas da sociedade. Constitui-se como uma teoria sociológica que, aliada ao ma-terialismo histórico-dialético, contribui para ver, desvelar, compreender o mundo, a so-ciedade, o ser humano e suas relações, bem como, produzir consciência crítica de classe e construir parâmetros, princípios e bases para a construção de uma nova sociedade.

Por fim, cabe destacar que ao refletir sobre a emancipação das mulheres é preciso

considerar:

8 A discriminação que as mulheres enfren-tam em todos os aspectos da sociedade humana e a indignação frente à realida-de em que vivem marcadas pela sobre-carga de trabalho, dominação, explora-ção, discriminação e violência, geradora de sofrimento, doenças e morte.

8 A importância da dimensão política e a prática das mulheres de movimentos e organizações sociais, as quais vêm des-crevendo cenários de transformações e mudanças efetivas na realidade em que estão inseridas.

8 A inserção das mulheres nestes movi-mentos e organizações decorre de fa-tores relacionados com as necessida-des econômicas, como também, fazem parte de uma opção consciente de lutar pela implantação de um projeto de so-ciedade que está em construção.

8 As mulheres camponesas que se iden-tificam com a vida, a terra, a biodiversi-dade e sua preservação; tomam posição e expressam sua indignação frente às formas de destruição da vida buscando romper com a concepção de naturaliza-ção dos fenômenos sócio-culturais, dos papéis e relações sociais de classe, gê-nero, étnico-raciais.

Por isto, afirmamos:

sem feminismonão há socialismo!

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ara analisar a situação de saúde das mulheres camponesas no Brasil, é preciso analisar as con-dições de vida e cidadania den-tro de determinado contexto,

identificando os impactos disso na saúde das mulheres trabalhadoras rurais. Daí resulta a necessidade de perceber que a igualdade de direitos vem sendo historicamente negada às mulheres, constituindo-se num fator de discri-minação, evidenciado em relações desiguais de poder tanto na família quanto no mundo do trabalho e na sociedade em geral.

Esse processo vem associado à dinâmi-ca geral da sociedade, visto que a riqueza se

concentra cada vez mais nos países mais ricos9. Como a distribuição da riqueza se dá de forma injusta, de-sencadeia processos desiguais na economia, na política e na cultu-ra. Pela opção das elites mundiais e dos governos aliados, ao capital em sua fase neoliberal, ou seja, o “projeto da modernidade”10, pelo qual a construção das relações se dá em função do lucro, e não da promoção da vida em todas as suas dimensões, vêm se agravan-do as desigualdades entre ricos e pobres, entre homens e mulhe-res, entre os países desenvolvidos e os em desenvolvimento, e vem

sendo destruída a cadeia ecológica dos seres vivos. Cada vez mais se consagra o poder do capital sobre o trabalho, transformando a vida em “mercadoria”, negando os direitos humanos e de vida, solapando a democracia e agravando a dependência externa dos paí-ses pobres frente aos direitos fundamentais, como a questão da soberania alimentar, das sementes, da água, das plantas medicinais, colocando todos na lógica do mercado.

No caso específico da agricultura no Brasil, desde a década de 1960, o setor agropecuário e extrativista da economia nacional vem sendo sistematicamente des-nacionalizado em nome de diversas moder-nizações. A chamada “Revolução Verde”11

A situação da vida e saúde

e a luta por saúdedas mulheres camponesas no Brasil

* Esta reflexão tem como base parte da dissertação de mestrado “Educação, Cultura Popular e Saúde: experiências de mulheres trabalhadoras rurais” de Vanderléia Daron, 2003.

“Em muitas mulheres trabalhadoras rurais,a vida começa correndo na frente do corpo.Antes mesmo da fêmea se revelar nele,elas desempenham as funções de mães,mão de obra, costureiras, esteio da casa,professora da família. No campo a mulher faz-se adultaantes de ser criança.Cria filhos sem ter peito,embala o irmão em lugar de boneca,brinca de casinha em fogão de verdade.Vigorosas como os brotos depois da chuva,crescem feitos rebento, abrindo passagem”.Gislene Silva

P

9 Fazem parte dos países mais ricos os Estados Unidos, Canadá, Japão, Inglaterra, França, Alemanha, Itália.10 Importante e profunda reflexão acerca do projeto da modernidade encontra-se em PALUDO. Educação popular

em busca de alternativas: uma leitura desde o campo democrático e popular.Porto Alegre, Camp e Tomo Edito-rial, 2001.

11 Nas décadas de 1940 e de 1950, as fundações Rockefeller, Funcações Ford e Kellog, com apoio financeiro do Banco Mundial e da ONU, introduziram pesquisas no campo das sementes de milho, arroz e trigo e de insumos no México Filipinas e Índia. Esse processo de modernização foi denominado de “Revolução Verde”.

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foi consolidando a agricultura industrial de base química no mundo. No Brasil, os gover-nos militares, bem como, os que se sucede-ram, deram continuidade a esse modelo de modernização. Desde então, a agricultura brasileira vem sendo submetida a diferentes processos que a subordinam aos interesses do grande capital industrial de base norte-americana. Contribui nesta análise Carvalho, afirmando que a agricultura brasileira

vivenciou fases de mudanças tecnológicas em que predominavam objetivos como o aumento da produtividade, uniformida-de e processamento; o deslocamento das sementes não híbridas pelas híbridas; a introdução de patentes de germoplasma e, mais recentemente, os organismos ge-neticamente modificados. Essas mudanças estavam e estão sob direção intelectual (geração científica e tecnológica e políticas públicas) dos intelectuais orgânicos dos capitais multinacionais. Como conseqüên-cia desses processos deu-se a ascendente concentração e centralização oligopolista das empresas privadas de sementes, a pre-sença do capital multinacional na pesquisa científica e tecnológica relacionadas com as sementes e a pressão dessas empresas na definição da legislação sobre a matéria.

(CARVALHO, 2002, p. 6).

Nesse sentido, o autor ressalta que os governos brasileiros apoiaram essas medidas de diversas formas, que vão desde as políticas de subsídios agrícolas, à criação de instituições públicas de pesquisa e assistência técnica, com o objetivo de atuarem na consolidação das mudanças tecnológicas induzidas pelas multi-nacionais. Como resultado desse processo há o monopólio de empresas multinacionais nos ramos de sementes, agrotóxicos, fertilizantes químicos e de produção de fármacos. Os da-dos estatísticos ilustram esse quadro:

As 10 maiores empresas de cada ramo controlam 84% do mercado mundial de agro-químicos, 60% do mercado mundial veterinário, 48% do mercado mundial far-macêutico e 30% do mercado mundial de sementes. Cinco dessas grandes corpora-ções estão presentes simultaneamente nos quatro ramos assinalados: Phamacia (antes a Monsanto); Syngenta (fusão da Novartis e Astra-Seneca); Dupont; Dow Chemicals e Aventis. Essas cinco empresas controlam 100% das sementes transgênicas do mun-do e somente a Monsanto vendeu 94% das sementes transgênicas plantadas em 2001. (CARVALHO, 2002, p. 6).

Este processo de uso indiscri-minado de agrotóxicos vem provo-cando sérios riscos à saúde humana, animal e ao ambiente como um todo. Pesquisa realizada durante sete anos num hospital de Passo Fundo12 analisou seiscen-tos casos de crianças e levantou a hipótese de que, em decorrência do uso de agrotó-xicos, nasceram com deformações ósseas, hidrocefalia, anencefalia, entre outras; mui-tas dessas nem sobreviveram; e a cada 1000 crianças, 4,5 nascem com anomalias.

Além disso, conforme Anvisa (2003, p.3), num estudo científico sobre o impacto da cultura do tabaco no ecossistema e na saúde humana da região de Santa Cruz/RS, iniciado em agosto de 1999 e concluído em novem-bro de 2001, pesquisadores da Universidade de Santa Cruz do Sul, (Unisc), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Universi-dade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) con-cluíram que “as mulheres são mais afetadas por distúrbios nervosos do que os homens”. A pesquisa aponta uma série de elementos e dados preocupantes comprovando que os agrotóxicos, entre eles, os organofosforados e os ditiocarbamatos, são produtos neurotó-xicos que afetam o sistema nervoso por cau-sa do seu elevado índice de toxidade. Dos casos analisados, as maiores vítimas são as mulheres. Ainda segundo a Anvisa (2003, p. 3), “outro dado preocupante é que 138 (44%) dos entrevistados demonstraram um forte grau de suspeição de morbidade psiquiátri-ca, sendo que a freqüência dos casos suspei-tos foi maior em mulheres (60%) do que em homens (31,6%)”.

Assim, a implantação desta lógica capi-talista no campo ameaça os pequenos agricul-tores, sobretudo o trabalho das mulheres, sob pressão das grandes indústrias de alimentos, de sementes, de insumos agrícolas e de in-tegrados. Dessa forma, colocam em perigo a saúde e a segurança dos alimentos, a autono-mia dos camponeses (as) e favorecem a pri-vatização de bens coletivos, como a saúde, a educação e o saneamento, entre outros.

12 A enfermeira Mara Taggliari realizou sete anos de estudo num hospital em Passo Fundo RS - região que tem alto índice de uso de agrotóxicos. Infor-mações extraídas do Documento: Projeto de Se-mentes crioulas do MMA/SC.

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Este modelo de consumo capitalista que a sociedade foi incorporando com base na ex-ploração dos bens naturais e na produção de mercadorias descartáveis e não duráveis trou-xe muitos prejuízos a saúde humana e am-biental. A cada dia percebemos o aumento de doenças, empobrecimento do solo, a falta de água, a perda da biodiversidade entre outras, devido ao uso exagerado de agrotóxicos, mo-nocultivos, desmatamentos, a poluição das indústrias, lixo, enfim... o planeta não agüenta mais esta forma de vida e reage com catás-trofes, secas, enchentes, ciclones, doenças, epidemias,..., provocado pelo aquecimento global e pela destruição da natureza.

Para esta lógica de desenvolvimento capitalista neoliberal continuar acumulando riquezas, a América Latina deverá fornecer para os países ricos matérias primas agríco-las e matérias primas minerais (ferro, gás, petróleo, etanol). Por isso, a estratégia das empresas transnacionais do agronegócio ganha força e incentivo político e financeiro nos países da América Latina, especialmente o Brasil.

O agro-combustível é uma aliança de três grandes matrizes do capital transnacional13

imperialista do mundo que controlam as se-mentes, petróleo, maquinários e carros for-mando uma rede de grandes lucros. a) Na agricultura - ADM, Cargil, Monsanto, Bunge, Sinngenta, Bayer e Dupont através da enge-nharia genética, transgênicos... controlam o comércio das sementes; b) no setor energé-tico as transnacionais: Shell, Total e Bristish Petroleum... controlam o petróleo; c) nas indústrias automotoras, como: Volkswagen, Peugeot, Citroen, Renault e Saab a fabrica-ção de maquinários e automóveis com eta-nol e agro-combustível.

Essas três matrizes formam atualmen-te uma parceria inédita transnacional com o discurso de garantir energia para o consumo exagerado dos países ricos. Este processo acelera o desmatamento, o desaparecimen-to de espécies nativas, a perda das proprie-dades físicas e químicas do solo com os mo-nocultivos da soja, cana-de-açúcar, mamona, canola. Se acentua o desrespeito aos direi-tos humanos, trabalho escravo, mortes por exaustão (excesso de trabalho), como tam-bém, a falta de alimentação e o aumento da fome no mundo.

Por outro lado, estas empresas trans-nacionais impõem uma forma de integra-ção dos pequenos agricultores neste mode-lo, através dos chamados “integrados” (de frango, suínos, fumo), onde cerca de 70% da produção brasileira de aves e suínos provém de estabelecimentos com menos de 50 hec-tares14. Desta maneira, o trabalho e a pro-dução dos camponeses estão cada vez mais dependentes e com poucas possibilidades de buscar outras alternativas.

As empresas de celulose estão fechan-do suas fábricas nos Estados Unidos e na Europa e se instalando na América Latina. Aqui encontram muita terra, água, clima fa-vorável, mão de obra barata e governos dis-postos atenderem seus interesses. Mais de 90% da celulose produzida no Brasil é para a exportação.

13 Eric Holt Gimenez, coordenador da organização Food First,14 MENEGHELLO, Geri E., KOHLS, Volnei K., BARUM, Alexandre O., BEZERRA, Antônio J. A.., RIGAT-

TO, Paulo SISTEMAS INTEGRADOS DE FRANGOS E SUÍNOS: UMA VISÃO DOS PRODUTORES Rev. Bras. de AGROCIÊNCIA, v.5 no 2, 166-170. mai-ago,1999

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A empresa transnacional, sueco fin-landesa, a Stora Enso está invadindo nosso território comprando de forma ilegal e/ou no nome de outros, chamados “laranjas15” áre-as no Rio Grande do Sul, próximo à fronteira com o Uruguai para plantar eucaliptos, pinos para indústria de celulose e exportar para os países ricos. Desrespeitando o artigo 20, parágrafo 2 da Constituição Federal que diz: estrangeiros não podem adquirir terras em uma faixa de 150 Km da fronteira do Brasil com outros países a fim de garantir a sobe-rania nacional. Além de ameaçar a soberania do país estão destruindo as riquezas naturais como o aqüífero guarani e o Bioma Pampa, expressão da biodiversidade nesta região para atender a demanda de consumo de seus países.

Atualmente a Aracruz Celulose S. A. é a maior produtora de celulose branqueada de eucalipto no mundo, representa 35% da pro-dução mundial, produz cerca de 2,4 milhões de toneladas/ano. Utiliza exclusivamente plantio de eucalipto para produzir celulose de fibra curta de alta qualidade, como papel para imprimir e escrever. A mesma empresa possui 263 mil hectares de terra própria no Espírito Santo, além de mais 81 mil hectares consorciados com agricultores/as. Mais a unidade de Guaíba/RS, outra na fazenda Bar-ba Negra, em Barra do Ribeiro/RS.

Outra empresa de celulose é a Voto-rantin Celulose e Papel – VCP, que está in-vestindo na área florestal, adquirindo terras para o plantio de eucalipto no Estado de São Paulo, em regiões próximas às fábricas e a implantação de uma nova reserva florestal da VCP no Sul do Estado do Rio Grande do Sul podendo eventualmente incluir o norte do Uruguai, com a compra já efetuada de 66 mil hectares de terras.

Todas nós sabemos do potencial de re-cursos naturais estratégicos: água doce, bio-diversidade, madeira, minérios entre outros que compõe o bioma da Amazônia: Também sabemos da ofensiva das transnacionais na

exploração da madeira, dos minérios, do alumínio e agora na exploração dos recursos hídricos para a construção de hidroelétricas e a exploração da biodiversidade como ma-téria prima básica para fármacos, transgenia e nanotecnologias. Só no ano de 2007, foram destruídos 7 mil km2 da mata amazônica para a criação de gado, já que em outras regi-ões do Brasil avança os monocultivos de soja, cana-de-açúcar para a produção de etanol e agro-combustível.

Outra questão que preocupa os povos da Amazônia é a medida provisória número 422 de março de 2008, que legaliza as terras públicas griladas até 1500 hectares. Até mar-ço de 2008, o Incra podia dar títulos aos pos-seiros que tivesse posse comprovada até 100 hectares. A gravidade desta medida é que ela rompe com o princípio de posse de estar mo-rando e trabalhado na terra, além do latifún-dio poder regularizar as terras griladas.

Também o presidente revogou a por-taria do Incra que tinha poderes de regu-larizar áreas quilombolas. Assim que uma comunidade apresentava requerimento ao Incra, este designava peritos para análise. Ao se comprovar, o Incra encaminhava a posse coletiva da terra direito garantido na Cons-tituição Federal, às comunidades indígenas e quilombolas. Mais uma vez o governo tira

15 Inicialmente, a Stora Enso adquiriu as terras em nome da Empresa Derflin, que é o braço da multinacional para produzir matérias-prima. Como a Derflin também é estrangeira, não conseguiu legalizar as áreas. Por isso, a Strora Enso criou uma empresa laranja: a Agropecuária Azenglever, de propriedade de dois brasileiros:João Fernando Borges e Otávio Pontes (diretor florestal e vice presidente da Stora Enso para a América Latina, respectivamente).Eles são atualmente os maiores latifundiário do RS.

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direito e favorece as multinacionais. No Es-tado do Pará estão 50% de todas as áreas de remanescentes quilombolas e muitas dessas áreas estão griladas por grandes empresas como Aracruz e a Vale.

O semi-árido brasileiro é uma área que abrange oito Estados do Nordeste, onde mo-ram 36 milhões de pessoas. É um bioma com características próprias, onde chove entre 300mm a 800mm/ano. A caatinga, a mata branca dos nativos Tapuias guarda uma bio-diversidade maravilhosa. É uma espécie de planta milenar que há 12 mil anos enfrenta sabiamente as mudanças climáticas adap-tando-se e enfrentando vigorosa e firme até os dias atuais a brutalidade e violência dos modelos de desenvolvimento econômico. 75% das áreas do planeta são de climas se-mi-árido ou árido. O semi-árido brasileiro é o mais populoso e é onde chove mais.

O maior problema no armazenamento de água no semi-árido é protegê-la da evaporização e garantir sua qualidade.

As grandes empresas no intuito de ganhar dinheiro retomam um projeto ainda do tempo do imperador D. Pedro II de fazer a transposição do Rio São Francisco. De lá para cá a engenharia, aperfeiçoando as téc-nicas de transporte de água a longa distância, aprimora formas de exploração da natureza e do povo a serviço dos interesses do grande capital transnacional. Grandes obras favore-cem a grandes empresas onde 70% da água devem ser destinadas a projeto de irrigação, 26% para o abastecimento urbano e 4% para as populações rurais. Quem mesmo irá se beneficiar com este projeto?

De outro lado, o povo dosemi-árido desenvolveu cisternas adaptadas às famílias e sua realidade de trabalho.

Em Brasília na Câmara dos Deputados e no Senado tramitam vários projetos de in-teresses das transacionais, vejam alguns a seguir:

1. Projeto 6424/05, propondo a redução da reserva legal obrigatória na Amazônia passando de 80% para 50%, ainda permi-te que a área de reserva seja também de monocultivos de árvores exóticas como: eucaliptos, palma de dendê entre ou-tros;

2. O Projeto de Lei nº. 2.335 de 2007, que propõe Alteração da Lei de Cultivares. Este projeto vai restringir os direitos dos agricultores de guardar parte de sua co-lheita para usar como semente para o plantio no ano seguinte. Também impe-dirá que o produto seja comercializado sem autorização do dono da proprieda-de intelectual da semente ou muda, ou seja, para comercializar seu produto o agricultor(a) terá que pagar uma taxa ao dono da variedade (royalty).

3. Alteração da Lei de Biossegurança que permitir a utilização, registro, patentea-mento e licenciamento das Tecnologias Genéticas de Restrição de Uso, popu-larmente conhecidas como sementes Terminator, através do PL 268/2007. Se o uso destas tecnologias for liberado no Brasil, as empresas poderão produzir e comercializar sementes de plantas trans-gênicas estéreis. Os riscos a saúde e ao meio ambiente destas tecnologias ainda são pouco conhecidos, o que torna muito arriscada a sua utilização.

4. Flexibilização dos critérios de importação e simplificação dos procedimentos de re-gistro dos agrotóxicos no Brasil. Existem grandes pressões no Senado e na Câmara por parte das empresas químicas no sen-tido de facilitar o registro de novos agro-tóxicos e promover a circulação destes produtos nos países do Mercosul. O go-verno já autorizou o registro de produtos por equivalência. Isto quer dizer, se o pro-duto for considerado semelhante a um produto que já está registrado, não pre-cisará passar por uma série de testes que

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medem os impactos da utilização deste produto para a saúde e o ambiente.

5. Projeto de alteração dos Direitos previ-denciários. O governo aprovou a Medida Provisória 410/2008, que vai para discus-são e votação no Senado Federal e passa a se chamar Projeto de Lei de Conversão – PLC 08/2008. Ressaltamos os principais pontos que nos preocupam e com os quais não concordamos na Medida Pro-visória: 1) Artigo 48 § 3º - Mudança de idade para aposentadoria: a Constituição de 1988 no Art. 201 inciso II garante ao/a segurado/a especial a aposentadoria aos 55 anos para a mulher e de 60 anos para o homem. Chamamos atenção para a gra-vidade e inconstitucionalidade da Medi-da Provisória que aprovou que para o/a trabalhador/a rural que não comprove consecutivamente 15 anos de atividade rural, a mulher se aposentará com 60 anos e o homem com 65 anos de idade. A medida também trata de contratos de curta duração sem obrigação de carteira assinada. Ainda no Artigo 25 § 11 trata de pagamento do IPI dos produtos artesa-nais e industrializados, isto é uma ame-aça, pois, se o agricultor/a comercializar produto que esteja sujeito à cobrança de IPI, ele perde a condição de segurado/a especial. Entre outros pontos que levam o trabalhador (a) rural perder direitos. Além disso, esta medida carimba recurso do crédito rural para habitação, nós de-fendemos que o governo fortaleça uma política específica para a habitação rural.

Esses e outros projetos que tramitam na Câmara Federal e no Senado vêm com-prometer a vida e o trabalho das camponesas (es). Vão beneficiar o agronegócio e o grande capital transnacional. Precisamos tomar cui-dado, pois através dos meios de comunica-ção são apresentados como ação inovadora, tecnologia, avanço científico..., mas a serviço de quem? Quem irá se beneficiar com esses projetos? Quais serão as conseqüências na vida cotidiana?

“Depois de a última árvore sem frutos, o último rio envenenado,

o homem perceberá que dinheiro não se come.”

Gustavo de Assis

Além da pobreza, dos milhões de fa-mintos, crescem as desigualdades salariais, as péssimas condições de trabalho, o traba-lho não reconhecido e/ou não remunerado, a comercialização do corpo das mulheres e a violência sobre as mulheres e crianças. Esta-tísticas internacionais indicam que uma em cada três mulheres é ou já foi agredida pelo parceiro. No Brasil, estudos baseados nos boletins de ocorrência emitidos pelas dele-gacias apontam que cerca de 25% da popula-ção feminina é vítima de violência.

Segundo documentos da ONU, a vio-lência contra as mulheres está fortemente enraizada no mundo inteiro, pois a discrimi-nação atinge as mulheres do berço ao túmu-lo. Conforme o documento, além de sofrer violência física, as mulheres são discrimina-das no acesso à saúde, à educação, ao mer-cado de trabalho, ao título de posse da terra, entre outros.

De outro lado, as grandes forças econô-micas mundiais, representadas por empresas dos Estados Unidos, para manter seu poder econômico, político e cultural, vêm mostran-do que não há limites para sua ação quando suas políticas são ameaçadas; se necessário, usam da guerra para destruir os que resistem ou enfrentam suas políticas, como é o caso da guerra contra o Iraque.

Ao mesmo tempo, cresce a pobreza no campo, com a exclusão das classes popula-res e a discriminação de mulheres, negros, índios, idosos e crianças. O acesso dessas pessoas aos serviços de saúde e educação e às necessidades básicas, inclusive a alimen-tação, fica, muitas vezes, situado no embate entre os interesses do lucro, de um lado, e, de outro, a necessidade de garantia desses direitos preconizados na Constituição. No entanto, para as elites capitalistas no Brasil e governos aliados às suas políticas, a saída apresentada para o campo foi políticas com-pensatórias, a exemplo do Banco da Terra, uma solução de “mercado” para um enorme

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problema social que só pode ser resolvido através de uma profunda reforma agrária.

No âmbito de Brasil, segundo Melo16, com base num recorte de gênero,

a estrutura de mercado de trabalho brasi-leiro, no qüinqüênio de 1993/1998, obser-va-se uma taxa de participação em dobro de mulheres que trabalham sem remune-ração. Esta taxa chega a ser escandalosa quando se observa o caso das mulheres ru-rais, onde 815 delas trabalham sem remu-neração; isto de um lado desnuda a ques-tão da invisibilidade do trabalho feminino, de outro explica a pobreza que ronda os lares rurais. (MELLO, 2002, p. 10).

Percebe-se que a pobreza tem, cada vez mais, a expressão das mulheres. A própria Organização das Nações Unidas atesta que as mulheres representam 70% da população que vive em estado de miséria. As mulhe-res camponesas, que, além de enfrentarem a dureza das conseqüências desse modelo como todos os trabalhadores rurais, acabam sentindo na pele as marcas da sobrecarga de trabalho de sol a sol na roça, do cuidado com a casa, comida, roupas, animais, pomar, hor-ta, entre outras tarefas cotidianas, da opres-são, da discriminação e violência, marcas desse modelo de sociedade que determinam seu caráter perverso e desumano17.

Na esfera da economia, especifica-mente na produção, as mulheres enfrentam o centro da lógica neoliberal, que é acabar com a soberania alimentar dos povos, pois são as mulheres que, historicamente, vêm cumprindo essa função na propriedade. Além disso, o fato de elas sempre terem tra-balhado ao lado dos homens na roça, o re-conhecimento da profissão de trabalhadora rural só foi conquistado com muita luta das mulheres em 1988, sem, contudo, ter havido mudanças na administração dos bens produ-zidos coletivamente. Ainda, a par disso, pelo fato de serem as geradoras da vida humana, as mulheres acabam assumindo o conjunto das responsabilidades (no espaço privado) pelos cuidados, proteção e educação dos fi-lhos (as), reproduzindo a força de trabalho

que sustenta o próprio sistema.

Na esfera da política, encontra-se quase que em todos os espaços a mulher ocupando as funções de serviços e de representação. No entanto, os espaços de decisão ainda pre-valecem como lógica prioritária dos homens. Certamente, é esse um processo histórico e que exige atuação das mulheres, de um lado, e, de outro, mecanismos de democratização e incentivo à participação dentro das famí-lias, nas comunidades rurais, nas entidades (movimentos, sindicatos, cooperativas, par-tidos etc.). Também requer condições para que as mulheres possam participar, como a divisão das tarefas domésticas, rodízios de participação em mobilizações, solidarieda-de, entre outras, que precisam ser constru-ídas para que a participação não fique só no discurso, mas se efetive.

Na esfera da cultura, a opressão e a discriminação sobre as mulheres sustentam-se pela ideologia burguesa machista, que, quando não consegue a hegemonia pelo convencimento das mulheres de que sua condição é esta e que deve ser assim, vale-se da repressão e da violência para oprimi-las. Neste campo, percebe-se um crescimento de músicas que discriminam e colocam a mulher numa condição inferior à do homem, como veiculando a idéia de que apanhar faz bem (como a música “um tapinha não dói”, e “ajo-elha e chora”), bem como, reforço a formas de comportamento que consideram a mu-lher numa posição inferior; em propagandas que utilizam o corpo da mulher como objeto. Além disso, a educação ainda é sexista, ou seja, educam-se as mulheres para a reprodu-ção e os homens para a produção, reforçan-do comportamentos discriminatórios.

No I Fórum Internacional em Defesa da Saúde dos Povos, realizado em Porto Alegre durante o II Fórum Social Mundial, em ja-neiro de 2002, afirmou-se a necessidade de denunciar os efeitos das macropolíticas de ajuste sobre a saúde dos povos e de agir no sentido de mudar a direção do processo he-gemônico em curso:

16 Hildete Pereira de Melo é professora da Faculdade de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF). 17 Esta análise baseia-se no texto “A afirmação da cidadania na luta das mulheres trabalhadoras rurais” na obra

Direitos humanos no Brasil: diagnóstico e perspectivas”, de DARON, V.L.P.; GUADAGNIN, I. Rio de Ja-neiro: Ceris, 2003. p. 130-134.

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Queremos denunciar ao mundo os efeitos devastadores das políticas de ajuste macro-econômico e da militarização das relações internacionais, sobre a possibilidade e a qualidade de vida dos povos, e afirmar que esses efeitos não são acidentes excepcio-nais das políticas econômicas neoliberais, mas sim a própria essência de uma lógica que objetiva a maximização do lucro, a des-truição da capacidade de seguridade social dos Estados e da própria identidade dos estados nacionais, dividindo o mundo atra-vés de um imenso apartheid social, onde regiões, países e continentes são relegados à condição de expectadores da monstruo-sa acumulação de capitais internacionais. Disto resulta a face mais impiedosa da cha-mada globalização econômica ou mundia-lização do capital: a profunda iniqüidade que se estabelece com uma lógica perpetu-adora da injustiça social, tornando os ricos cada vez mais ricos e os pobres desespera-damente mais pobres, com a fragilização da vida infantil e da terceira idade e a fe-minilização da pobreza. (...) A saúde como expressão complexa das determinações econômicas e sociais sobre as condições de vida, é um campo de luta pelo pleno respeito aos direitos sociais, econômicos e culturais dos povos. A saúde é um direito humano essencial, direito fundamental de cidadania e um bem público. È dever do Estado, ao qual desejamos como defensor do interesse público, defendendo esses in-teresses na arena do mercado, evitando a mercantilização da saúde. (FSM, 2002).

Esse contexto demonstra o quanto o respeito à vida, aos direitos humanos e à saú-de das classes populares e, especialmente, das mulheres camponesas ainda está longe de ser efetivado. Como conseqüência desse processo, a vida das mulheres

é marcada pela baixa auto-estima, pela falta de poder, discriminação, pelo medo e pela dependência [...]. Por outro lado, a atual situação dos homens também não é nem confortável, nem saudável. [...] O custo da negação de parte de si mesmos em favor da cultura de masculinidade e do exercício deste tipo de poder traz sérias conseqü-ências para a saúde dos homens. (COSTA, 2000, p. 12).

Cabe ressaltar que as mulheres sen-tem com mais intensidade essas marcas e, por isso, são as que mais utilizam os serviços de saúde (em busca de atendimento para si e para seus familiares), que mais consomem remédios e que mais têm depressão. Ao pro-curar os serviços de saúde, entretanto, aca-bam não resolvendo seus problemas, porque a forma como se encara a saúde da mulher não enfrenta as causas verdadeiras que inci-dem sobre o processo saúde-doença viven-ciado por elas.

A estória contada por uma médica psiquiátrica18 caracteriza um pouco o que ocorre com uma mulher ao buscar atenção à sua saúde. Ilustrativamente a personagem é chamada de “Maria com vergonha de ser mulher”:

Vamos acompanhar a trajetória de uma mu-lher que vamos chamar “Maria com vergo-nha de ser mulher” no serviço de saúde à procura de alívio para seu sofrimento. Ela tem em geral de 30 a 45 anos de idade, mas com aparência de muito mais, quase não consegue mais trabalhar fora, mas em casa a jornada continua a mesma. E, quando che-ga à médica de loucos, já passou por vários especialistas: neurologista, ginecologista, cardiologista... As suas queixas são vagas: dor de cabeça, irritabilidade com as crianças, histeria, desinteresse pela vida, desinteresse

18 Assuncion Caputti é uma médica psiquiatra femi-nista. A história apresentada foi relatada durante a Oficina Estadual do MMTR sobre a Saúde da Mul-her, realizada em Passo Fundo em julho de 2000; foi uma homenagem especial feita às mulheres da 1ª Conferência Municipal da Mulher de Bom Jesus/RS – abril de 2000.

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por seus afazeres, sensação de vazio na ca-beça, dormência no coração, sem prazer nas relações sexuais, choro sem motivo, palpita-ções, entre outras. Mas já tem o rótulo: É só nervos! Mas não tem solução. O único jeito é tomar uns medicamentos - “todos fraqui-nhos” (Lexotam, Diempax, etc.), receitados por aqueles que não sabem o que fazer com suas queixas e lembram que as mulheres são as que mais consomem medicamentos. Nas consultas seguintes, refazemos com “Maria com vergonha de ser mulher”, um caminho de desconhecimento e silêncio sobre seu cor-po e de submissão ao que se convencionou ser mulher. Mas ela sente um desconforto, um mal-estar com este papel, essa situação que não consegue expressar em palavras, que lhe foram cassadas ao longo do tempo, só através de sintomas físicos ou emocionais que os profissionais de saúde, em geral, não aprenderam a decifrar e que tentam abafar com a medicação. Tentamos então, ajudar a “Maria com vergonha de ser Mulher” a recuperar sua voz, sua auto-estima, abrir a “caixa de Pandora”19 e entender seu silêncio. Ao abrir esta caixa, percebe-se que: a) ainda menina foi molestada sexualmente por um adulto em quem confiara e que a usou seja por ameaça ou porque não acreditaram nela; b) vendo sua mãe apanhar todo dia do pai, pensou que era natural; c) ao se tornar mãe, ainda adolescente, perambulou sozinha pe-los hospitais atrás de uma vaga, porque afinal ela não se cuidou, porque ser mãe é padecer no paraíso; d)na 20ª vez que não se cuidou apareceu o parceiro e exigiu que abortasse, mas como é proibido, deu um jeito sozinha e foi parar na emergência do hospital, onde a deixaram sangrar quase até morrer porque tinha cometido um crime; e) aos 35 anos de idade começou a se sentir meio esquisita an-tes de menstruar, estava com TPM (Tensão Pré Menstrual); f) aos 37 anos, como san-grava demais, tiraram seu útero e limparam tudo, afinal, já tinha quatro filhos. Ela queria tratar e conservar seu útero, sua mãe mens-truou até os 52 anos, mas mais uma cruz ca-lou e submeteu-se e pensou “que bom que tenho um calmante senão enlouqueço”. Mas tudo veio à tona quando sua filha de 14 anos falou (porque ela ainda tinha voz) que o pa-drasto alcoolizado tentara molestá-la sexual-mente. Dona Maria achou que era a hora de resgatar sua voz na voz da filha. Não podia ser conivente com o silêncio com o que tinha acontecido. Precisava resgatar sua auto-esti-ma e tornar-se “Maria Sem Vergonha de Ser Mulher”.

A estória transcrita traduz na vida de uma mulher um conjunto de situações coti-dianas que ela enfrenta e a que se submete, acabando muitas vezes sem força de reação, doente; faz refletir sobre as imagens da mu-lher construídas historicamente e que inci-dem em seu processo de saúde/doença e na forma como ela é tratada. Por muito tempo, a mulher foi vista como “fábrica de bebês”, de modo que bastava cuidar do útero e ma-mas em seu corpo; por conta disso, pensar a saúde da mulher era o mesmo que pensar o processo reprodutivo. Ademais, a mulher é a “cuidadora”, mas ninguém pergunta o por-quê dela ser a cuidadora e o porquê de nin-guém cuida da cuidadora.

Buscando compreender um pouco mais o que se passa com as mulheres, a es-tória procura trazer à tona alguns aspectos assustadores Os sintomas de doenças mui-tas vezes é o desgaste do seu dia-a-dia onde ninguém ouve seus planos, seus desejos, sua sexualidade. A tripla jornada que a mulher enfrenta, o trabalho doméstico não reco-nhecido, a dependência econômica, a não autonomia sobre seu corpo, o sentimento de culpa, inferioridade, gera um conjunto de

19 Conforme o mito de Pandora, havia uma caixa cheia de segredos que ninguém poderia tocar.

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situações onde a deixa sem forças de enfren-tar e mudar as relações anulando sua partici-pação no processo de decisão.

Esse cotidiano faz parte do universo das mulheres brasileiras, especialmente das trabalhadoras rurais e urbanas, apesar de não ser exclusividade das mulheres das classes populares, pois a discriminação de gênero perpassa as classes sociais.

No entanto, as possibilidades que se colocam para as mulheres das classes popu-lares são diferentes das que estão na classe dominante, pois as relações de gênero e clas-se se entrelaçam. A estória transcrita traz elementos do processo de saúde/doença que envolve o indivíduo nas questões objeti-vas, subjetivas e intersubjetivas, com o meio em que vivem, as relações que estabelecem com as pessoas, com a natureza e as relações sociais no espaço da produção e na esfera da reprodução, do poder e da cultura. São as-pectos que na maioria das vezes os profissio-nais de saúde sequer consideram na relação que estabelecem com as pessoas que procu-ram os serviços de saúde. Os processos de atenção às doenças, construídos pela medi-cina moderna, não dão conta da complexida-de que é pensar a saúde, cujo centro deveria ser a compreensão da “teia da vida”, e não somente as doenças como são hegemonica-mente tratadas atualmente.

Por outro lado, a estória traduz a possi-bilidade da busca e do processo de transfor-mação de uma mulher com vergonha, culpa, submissão, medo e resignação para uma mu-lher sem vergonha, liberta, que aprendeu a ter voz e fazer valer seus direitos, que exige que os profissionais de saúde a escutem, que se coloca enquanto sujeito ativa, construtora da história. Levanta a necessidade de a vio-lência ser encarada como problema de saúde pública; de que o sistema público de saúde (SUS e dentro dele o PAISM) se implemente como uma nova forma de pensar a atenção integral à saúde de todos e das mulheres, com participação popular e controle social,

com o respeito às diferenças, o acolhimento às queixas das mulheres em espaços de es-cuta e de educação em saúde.

Esta reflexão encontra espaço nas reuni-ões de mulheres. Num dos grupos de mulheres camponesas estava o nome de várias mulheres mortas e os comentários feitos foram:

“Estas foram companheiras que morreram por causa do machismo e escravidão, agro-tóxicos e medicamentos químicos. Uma delas, o marido era tão egoísta e machista que, como ele sabia que tinha câncer de intestino e ia morrer logo, enquanto teve forças, matou a mulher a pauladas e depois se matou, para não dividi-la com os filhos e com o grupo de mulheres”.

Depoimentos, cartas, histórias conta-das pelas mulheres nos encontros, nos gru-pos de mulheres camponesas demonstram o quanto essa condição produz medo, ansie-dade, angústia, sentimento de culpa e impo-tência diante da realidade. As mulheres vão desvelando essa face oculta à medida que vão participando do Movimento de Mulhe-res, que vem se constituindo num espaço de acolhimento, de valorização, de reconheci-mento da mulher como ser humano e sujeito político e social.

Ao perguntar às mulheres quais as maio-res dificuldades que enfrentam em sua orga-nização no MMC o que mais aparece é a difi-culdade de participarem, ou seja, de saírem de casa, de perderem o medo e a vergonha, de conseguirem se libertar dentro do espaço fami-liar na sua relação com o marido, onde muitas são estupradas, pisadas e não ouvidas.

Por isso, a dura realidade vivenciada pelas mulheres camponesas constitui-se na matriz da emergência da luta por saúde no MMC. Essa condição é que leva as mulheres se organizarem e buscando, através da luta por saúde e de outras lutas mais gerais, um novo modo de viver e de se relacionar.

Ademais, vale trazer presente também que a lógica com que se tratou a saúde da mulher historicamente fez-se a partir de uma visão dualista de corpo, a idéia do corpo como uma máquina, da intervenção do homem so-bre o corpo da mulher, a tecnologia pensada pelos homens sobre as mulheres e uma vi-são religiosa e teológica calcada num Deus

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para o meio rural ele ainda é insuficiente e o que existe não está ligado à realidade de quem vive, mora e trabalha na roça. Além disso, os profissionais de saúde não estão preparados para trabalhar com essa realidade20.

Assim, a experiência que vem sendo desenvolvida pelas mulheres camponesas através das lutas, ações

e organização no MMC tem como bases estruturantes:

a) A realidade marcada pela opressão, dis-criminação, sobrecarga e violência, uma realidade dura, segregadora, desigual e excludente, produtora de uma dinâmica de doença e morte das pessoas como sujeitos sociais e políticos. O núcleo duro dessa realidade vivenciada e experimen-tada pelas mulheres camponesas como ser individual e, de forma coletiva, como classe e gênero, constitui-se como ma-triz da emergência da luta por saúde no Movimento de Mulheres Camponesas;

b) Vida, libertação/emancipação: sentido profundo da luta por saúde no MMC, por caracterizar-se como uma práxis portadora de uma dinâmica educativa popular e de uma mística de libertação como mulher, gênero, classe e enquan-to nação;

c) A construção da saúde integral pela práxis das mulheres camponesas é um dos pilares da luta por saúde. Aqui, vale salientar a concepção popular de saúde subjacente a essa experiência;

d) O sentimento de pertença ao movimen-to como forma determinante para re-sistir e se construir como gente, tendo mais vida, saúde e dignidade, ou seja, de

masculino que controla as ações da mulher. As duras marcas dessa realidade segregadora e discriminadora constituem o núcleo estru-turante da resistência popular das mulheres camponesas frente a essa condição que não está aí por acaso, mas dentro de um modelo que se impõe mundialmente.

Por outro lado, é preciso construir polí-ticas e ações de atenção integral à saúde das camponesas e de toda a população do cam-po e da floresta. São milhões de camponeses (as), ribeirinhas, sem terra, assentados pe-quenos (as) agricultores (as) populações que residem em comunidades remanescentes de quilombos, reservas extrativistas e comuni-dades tradicionais e indígenas, que precisam ter atenção à saúde com o respeito à realida-de, necessidades, cultura e modos de vida. Isso porque o campo da implantação de po-líticas de saúde, apesar da conquista consti-tucional da saúde como direito e das leis que regulamentam o Sistema Único de Saúde,

20 Interessante analisar como de fato o SUS no meio rural ainda é insuficiente em sua implantação. As várias reivindicações apresentadas ao Ministério da Saúde pelos movimentos do campo evidenciam a fragilidade desse sistema, que tem dificuldades de funcionamento no meio rural; ao mesmo tempo, denotam a necessidade de repensar políticas tanto para o sistema de saúde quanto para o redirecionamento da lógica do desenvolvi-mento rural e urbano brasileiro. São sinais de que a população rural, composta de uma diversidade de sujeitos como os sem-terras, as mulheres camponesas, as quebradeiras de coco, as populações ribeirinhas, remanes-centes de quilombos, pequenos agricultores, atingidos por barragens, jovens, idosos, crianças, indígenas, entre outros, está completamente excluída dos processos de desenvolvimento e das ações e políticas de saúde. Essa caracterização provocou o surgimento do “grupo da terra” dentro do governo para pensar políticas capazes de responder às necessidades e demandas apresentadas pelos movimentos do campo. De qualquer maneira, apesar de um passo significativo, isso ainda é insuficiente se pensarmos os limites que têm as políticas públicas numa sociedade subordinada aos interesses do capital internacional.

A

B

C

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sair da lógica da exclusão na sociedade, evidenciando a relevância da dimensão política enquanto ser humano;

e) A potencialidade e as possibilidades que a luta e o trabalho em saúde pro-porcionam para as mulheres, suas fa-mílias, comunidades; o potencial das relações que a saúde estabelece com o cotidiano, com a vida, com a natureza, com a produção, com o corpo, com o ser mulher, com a cultura popular, com a fé e a religiosidade, com o desenvol-vimento, com a política pública, com o enfrentamento das causas da fome, mi-séria e doença.

Articuladas às bases que dão solidez a luta por saúde, está a relação com a mudan-ça da realidade e a construção de um novo projeto de sociedade.

O jeito próprio de fazer saúde apre-senta aspectos fundamentais para a análise sobre os modos de cuidar da saúde, promo-vendo, protegendo e curando; evidenciando uma dimensão educativa da luta por saúde no MMC a partir da educação popular.

Como afirma uma dirigente do movi-mento: “Lutar por saúde exige se contrapor ao projeto neoliberal, do lucro e da morte de milhões de pessoas, como conseqüência de um modelo centrado no lucro e não na saú-de”. Há um entendimento comum no movi-mento acerca do tipo de enfrentamento que é feito ao lutar por saúde, cujos interesses em jogo são pesados e poderosos, porque se contrapõe o projeto de vida com o modelo da doença em vista do lucro para alguns, que colocam a vida à mercê dos interesses eco-nômicos hegemônicos.

E

Vem...,Que somos mulheres gerando a vida,gerando guerreirose guerreiras de cabeças erguidas! Marchando, lutando,com força, com brio,construindo com garra,com força que ampara a utopia,o sonho de um novo Brasil!

Fragmentos do poema de Daniel Salvador

A distância entre pobres e ricos

- Não tema querida! Quando nos alcançarem,estarão todos derretidos pelo aquecimento global!

29o estudar a agricultura campo-nesa vimos que ela ao longo dos tempos foi se constituindo como um modo de vida com valores princípios e limites. Ali

o trabalho familiar procura garantir a pro-dução diversificada de auto-sustento e ren-da. Possui uma ciência de combinar a produ-ção vegetal e a criação animal o ano todo. Na agricultura camponesa o ambiente: terra, água, sementes, plantas, animais fazem par-te das relações de convivência e de trabalho, assim como o sol, a lua, a chuva, a geada, as estações do ano, os ciclos da natureza expres-sam esperança, morte, transformação e vida. Elas sabem organizar o quintal combinando variedades de flores, plantas medicinais, po-mar privilegiando perto da casa a sombra para acolher amigas (os), as vizinhas (os). A comunidade também é um espaço significa-tivo onde todos se conhecem, se encontram para a celebração, a festa, o jogo, muitas ve-zes ali se dá organização, os conflitos, a troca de experiências, entre outras.

Mas também a agricultura camponesa reproduziu padrões e limites da cultura patriar-cal de opressão da mulher, do modelo capita-lista de exploração da classe trabalhadora. Por muito tempo, a dominação de gênero e a ex-ploração de classe atuaram fazendo da mulher um ser inferior, menos preparada, invizibilizan-do seu trabalho e suas potencialidades.

Em todos os tempos houve mulheres que reagiram, enfrentaram os limites, rom-pendo padrões e forjando novas relações. Também é verdade que muitas mulheres aceitaram a subordinação, no entanto, nas atividades do Movimento de Mulheres Cam-ponesas encontramos muitas experiências

de mulheres camponesas valorosas e esper-tas que resistiram e continuam batalhando pela própria emancipação.

Lutam pela valorização e reconheci-mento de seu trabalho. Cultivam seu roça-do. Criam pequenos animais. Plantam de tudo para o consumo da família e também para a comercialização, como: batatinha, amendoim, pipoca, arroz, cana-de-açúcar, plantas medicinais, flores, verduras, pêsse-go, laranja, uva, banana, abacate, entre ou-tras. Participam da comunidade, organizam o Movimento autônomo envolvendo outras mulheres. Buscam se apropriar do estudo, do conhecimento participando de cursos e outros espaços de capacitação, enfim são

Mulheres camponesas,

Popular de Agriculturasaúde e construção do Projeto

A

3

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mulheres agentes de profundas transforma-ções na sociedade. Pois, fazer agricultura camponesa não se trata de voltar ao passa-do, mas sim ressignificar valores da cultura camponesa de autonomia, de diversificação da produção, de cuidado com ambiente, de novas relações sociais.

Essa mudança exige opção pessoal, familiar, comunitária e um profundo desejo e disposição de repensar a maneira de agir. Neste sentido o Movimento de Mulheres Camponesas – MMC defende e luta pela construção de um projeto popular de agricul-tura camponesa, promotor de saúde e vida, a partir dos princípios da agroecologia tendo a compreensão e a necessidade:

De preservar o ambiente como condição de viver. Entendemos como o es-paço de estabelecer novas relações sociais e ambientais. Incorporar o valor do cuidado, respeitar todas as formas de vida. “Os recur-sos naturais (terra, água, ar, biodiversidade, energia...) são bens comuns, patrimônio dos povos a serviço da humanidade”.

Da produção e economia campo-nesa. Defendemos que a produção cam-ponesa deve ser agroecológica, que venha proporcionar a autonomia das famílias no auto-sustento e renda integrando campo e cidade. Para isso é preciso pensar o acesso e controle dos meios de produção (terra, equi-pamentos, tecnologia), que possa garantir a segurança e a soberania alimentar, a recupe-ração das sementes crioulas ou tradicionais, respeitando a biodiversidade local e regional. Distribuir renda inclusive para as mulheres camponesas significa valorizar e reconhecer o trabalho da mulher na produção de ali-mentos diversificados e saudáveis.

De nova compreensão do trabalho. Somos os únicos seres capazes de projetar e refletir sobre o que fazemos e porque fa-zemos. O trabalho pode possibilitar nossa humanização, ou a nossa desumanização. Sendo o trabalho que gera toda a riqueza os poderosos sempre se apropriaram da força de trabalho dos povos e especialmente das mulheres e dos jovens para enriquecer, por isso é necessário abolir a compra da força de trabalho. O desafio é ressignificar o tra-balho como identidade, realização e cresci-mento de mulheres e homens. É necessário

desenvolver tecnologias simples, acessíveis e adequadas que tornem o trabalho no cam-po menos penoso, mais leve e gratificante. É pelo trabalho que realizamos a solidarieda-de, a entre-ajuda, seja na produção, na orga-nização da casa, na busca do conhecimento, no cuidado dos filhos e filhas, no embeleza-mento, enfim, em todas as dimensões que envolvem a vida.

De construir novas relações combi-nando o projeto de vida e o projeto de socie-dade, onde o relacionamento com as pessoas e com o ambiente seja pautado nos valores de vida, alegria, no respeito à diversidade étnico-racial, de gênero, econômica, política, cultu-ral, ecológica, valorizando todas as gerações.

De valorizar a cultura camponesa e feminista entendida como um modo de vida que implica no modo de ser, de se relacionar socialmente no campo, valorizando o trabalho na terra, o cuidado com a biodiversidade e a defesa da vida. Além disto, precisa respeitar e fortalecer a arte e a cultura camponesa atra-vés de crenças, rezas, rituais, visitas, pratos tí-picos, mutirões de trabalho, danças, rodas de viola, mateadas, literatura de cordel, repente, trovas, festas típicas, cirandas, entre outras.

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Da participação das mulheres como protagonistas em todos os espaços de deci-são sobre a produção, o patrimônio, o dinhei-ro, as relações humanas, políticas e comuni-tárias, de maneira a garantir a manutenção e o avanço do campesinato.

De garantir Políticas Públicas para viabilizar, potencializar, facilitar, ampliar e ga-rantir os direitos das trabalhadoras e traba-lhadores no campo. As pessoas que moram no campo precisam de:

8 Reforma Agrária com o acesso a terra e produção de alimentos saudáveis;

8 Previdência Pública Universal e Solidá-ria e a garantia da condição de seguradas especiais e dos direitos adquiridos (salá-rio maternidade, aposentadoria, auxílio doença, acidente de trabalho, auxílio re-clusão), bem como, sua ampliação.

8 Saúde pública de qualidade, integral, humanizada e com efetiva participação popular e funcionamento do Sistema Único de Saúde - SUS.

8 Subsídio público para investimento na agricultura camponesa, garantido as mu-lheres o acesso e autonomia na adminis-tração. E seguro agrícola para a reposi-ção nas perdas dos produtos atingidos por intempéries.

8 Documentação pessoal e profissional às camponesas e camponeses facilitan-do o acesso aos benefícios e o reconhe-cimento de sua profissão.

8 Moradia digna, saneamento, luz e es-tradas para facilitar as condições de vida no campo, e lazer, com direito ao acesso de atividades culturais nas comunidades rurais (cinema, teatro esportes...).

8 Investimento público na pesquisa, ci-ência e tecnologias a serviço da vida, adequadas às necessidades da agricul-tura camponesa agroecológica e que ve-nha facilitar o trabalho no campo, bem como, de acesso a todos.

8 Políticas públicas de combate à violên-cia e proteção de mulheres e crianças.

8 Política de comercialização e aquisição direta de alimentos e produtos da agri-cultura camponesa, para os trabalhado-res da cidade e entidades públicas (esco-las, creches, hospitais...).

8 Educação popular do campo com o princípio da educação popular, constru-ção da consciência emancipatória, valo-rizando e incentivando o saber popular.

Diante da real situação do campo para potencializar e melhorar a vida destas famílias é necessário investimento público, com recursos e políticas adequadas. A agricultura campone-sa produz 70% de toda a produção diversifica-da de alimentos que vai a mesa, diariamente, do povo brasileiro. Diante do que representa a agricultura camponesa é que precisamos fortalecer nosso Movimento, articular nossas lutas para que o dinheiro público seja investi-do na produção de alimentos saudáveis, uma vez que a maior parte do investimento público é destinada para o agronegócio. Não se trata apenas de inverter esta lógica, mas de assumir um projeto de agricultura fundamentado em princípios de justiça, equilíbrio e vida.

O campo não é o lugar de quem não teve oportunidade na vida. Estar no campo hoje é acima de tudo uma opção e uma missão

de produzir alimentos saudáveis, preservando os bens naturais comprometidos com a vida, a saúde e a justiça para todos.

Como começar?

Para começo de conversa não há uma receita para construir o projeto popular de agricultura camponesa a partir dos princípios da agroecologia. Todos têm algo a fazer. Se você tem um quintal, terreno, lavrado, gleba, fundo de pasto ou roçado, você pode come-çar cuidando e preservando deste espaço. A seguir teremos algumas idéias para você co-meçar pensar, avaliar, propor e praticar.

1. O primeiro ponto é ter a convicção de que precisa mudar a forma de produzir. Normalmente esta iniciativa num primei-ro momento é pessoal, mas aos poucos o diálogo vai motivando a família. O des-pertar para a mudança pode vir da troca de experiências, de estudos reuniões, de-bates, intercâmbio, entre outros.

2. Com a tomada de decisão pela mudan-ça precisa fazer um estudo organizado do que possuem, ou seja, um levantamento

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das potencialidades de seu quintal ou de sua unidade de produção: tipo de terreno, quantidade de água, plantas, biodiversida-de, ventos, mata nativa, animais...

3. Analisar se o que deseja produzir é com-patível com o solo, o clima, bem como, o que já possuem, ou precisam adquirir e que recursos disponibilizam.

4. Planejar a produção de forma que garan-ta a diversidade de produção vegetal e animal, necessária para o auto–sustento. Mas também a produção que será dispo-nibilizada para renda e onde e como irão comercializar.

5. Analisar a disponibilidade da força de trabalho

6. Organizar o controle financeiro em rela-ção ao investimento e a renda para ava-liar a viabilidade da produção.

7. É importante que todos os membros da fa-mília busquem o estudo, à formação e ca-pacitação. Precisamos ter consciência de que o projeto popular de agricultura está sendo construído, por mãos de mulheres e homens, jovens, idosos e crianças todos têm algo a contribuir e precisa de muito estudo, reflexão, conscientização.

8. Organizar o processo de recuperação e manejo do solo. Você sabia que uma co-lher de chá de solo agrícola contém: 200 nematóides, 218 mil algas, 288 mil ame-bas, 400 mil fungos, 1 bilhão de actinomi-cetos e 1.000 bilhões de bactérias? Todos esses microorganismos são úteis e neces-sários para o equilíbrio do solo e conse-qüentemente a produção saudável.

9. Precisa livrar-se dos agrotóxicos, fertili-zantes, adubos químicos, sementes hí-bridas ou transgênicas. A autonomia vem da capacidade de recuperar, melhorar, produzir e controlar sementes e mudas crioulas. Organizar na unidade de produ-ção ou quintal a diversificação de grãos, frutas, flores, tubérculos, hortaliças, com-binando a criação animal com agricultura faz parte da cultura camponesa.

10. Nossa soberania alimentar começa em casa produzindo a própria alimentação saudável.

11. O pomar diversificado garante uma grande biodiversidade: animal e vegetal.

Contribui com a alimentação equilibrada, saudável e de qualidade.

12. As árvores e matas são fundamentais para o equilíbrio ecológico. O controle de animais ajuda manter a umidade, regular o clima e as chuvas. Pode ser utilizado em sistemas de agro-floresta, combinando a produção de frutas, ou madeira para le-nha, consumo doméstico e outras neces-sidades com a produção de animais, leite, mel e outros.

13. Outra questão que precisa pensar é so-bre as possibilidades de geração de ener-gia. Ela é indispensável para facilitar a vida cotidiana.

14. Cuidar da água! Preservar e proteger rios, fontes, córregos mananciais... Co-letar água das chuvas. Fazer pequenos açudes. Criar peixes. Ter água boa para o consumo familiar e em abundância para os animais, hortaliças e outros cultivos.

15. Cada pessoa precisa tornar-se cientis-ta de sua própria profissão, aprendendo com a natureza, com o comportamento das plantas, dos animais e do meio am-biente, sem dispensar o acesso ao estudo, qualificação, formação, política e técnica.

16. Exercitar a criatividade, o envolvimen-to das pessoas para decidir, arriscar, de-safiar, propor, experimentar e construir o projeto popular de agricultura campo-nesa repartindo o poder e criando novas relações de co-responsabilidade.

17. Participar e envolver-se na luta da classe trabalhadora pelos direitos (previdência, saúde, educação, cisternas, créditos, re-forma agrária e outros) e na luta de trans-formação da sociedade.

18. Exercitar a troca e partilha de sementes e a entre ajuda em períodos de plantio e colheita.

19. Criar novas relações de envolvimento e participação nas decisões, bem como, novo relacionamento com o ambiente.

Convidamos a todos e especialmente a você mulher camponesa para com cora-gem inteligência e perseverança, buscar

através da agroecologia construir um mundo melhor para viver!

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nicialmente, cabe destacar, que, ao analisar a saúde no Brasil, é preciso considerar que as políticas e insti-tuições de saúde desempenharam um papel histórico inegável para a

constituição e estabilização da ordem socioe-conômica brasileira; ajudaram a modelar cer-tos traços estruturais dessa ordem, entre os quais a tendência de concentração de poder e a exclusão das classes populares dos circuitos de decisão econômica, política e cultural do país. Segundo Vasconcelos (2001)22,

a relação entre os serviços de saúde e a po-pulação é condicionada por dimensões es-truturais complexas, que requerem a análise histórica, pois se inserem nos processos so-ciais, os quais dependem de dinâmicas cultu-rais, políticas e econômicas que acontecem fora dos serviços de saúde. Daí a importân-cia de analisar as políticas sociais e, no caso específico, a da saúde, não com base numa análise intrínseca a ela nem como ideal a ser alcançado pela sociedade, “mas a partir da compreensão da base material e das rela-ções objetivas e subjetivas em que ocorre-ram ou ocorrem”. (VASCONCELOS, 2001)

Assim, cabe analisar, mesmo que de forma breve, como esse processo se deu no

Brasil, evidenciando a forma como as classes populares eram consideradas em cada mo-mento histórico, na perspectiva de análise de que as políticas sociais vêm sendo, em algum grau, vinculadas à acumulação capitalista23.

O período de desenvolvimento agro-exportador, especialmente no Brasil Império, Vasconcelos (2001, p. 74) caracteriza como da “ausência do ator popular na cena política”, de-monstrando que os escravos (grande maioria da população), como não tinham nenhum reco-nhecimento social e político, não possuíam ne-nhum tipo de direito. As condições de vida e de saúde dos (as) trabalhadores (as), especialmen-te dos escravos, eram extremamente precárias. Nesse sentido, há estimativas de que o índice de mortalidade era superior ao da natalidade24.

O controle do Estado sobre a socieda-de é uma das características do pensamento mercantilista, no qual o bem-estar da socie-dade identificado com o bem-estar do Esta-do, típico do período monarquista no Brasil: um Estado centralizado, com forte aparato jurídico-legal, portador do poder de decisão e de execução; um Estado intervencionista, no qual a sociedade deve servir ao mesmo.

Saúde:

e dever do Estadodireito de todas(os)

I

21 Daron, Vanderléia. Esta parte tem como base a dissertação de mestrado. 22 Vasconcelos, Eymard Mourão, é médico e atua na área da saúde na perspectiva da educação popular. Tomo

como referência de análise a obra A saúde nas palavras e nos gestos: reflexões da rede de educação popular e saúde.São Paulo: Hucitec, 2001, capítulo 3: “Participação popular e educação nos primórdios da saúde pública brasileira”.

23 Para aprofundar essa abordagem histórica desde o processo de urbanização, que ocorreu a partir da primeira Revolução Industrial na Inglaterra do que emergiram os problemas de ordem sanitária, educacional, habita-cional e de segurança, recomenda-se a leitura de Rizzotto em sua tese de doutorado sobre O banco mundial e as políticas de saúde no Brasil nos anos 90: um projeto de desmonte do SUS. Campinas, 2000.

24 Conforme análise feita por Vasconcelos (p.77, 2001), a partir dos dados do primeiro censo de 1872, analisados por Celso Furtado.

4.1. A política pública de saúde no Brasil: entre as necessidades do povo e os interesses do capital21

4

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Essa análise histórica pode ser feita tam-bém considerando as políticas e instituições de saúde no Brasil a partir de longos períodos e principais momentos da conjuntura da his-tória, como a proclamação da República em 1889, passando pela restauração dos direitos políticos e civis cassados no pós-1964 e a partir da década de 1980, posteriormente passando pela Nova República e culminando com o pro-cesso de políticas neoliberais da Era Collor e de Fernando Henrique Cardoso (1994-2002).

Assim, entre 1889 e 1930, o modelo de saúde criado era concentrado em nível na-cional e o sistema, organizado e implemen-tado em instituições públicas. Caracterizava-se por campanhas sanitaristas, destinadas a combater epidemias urbanas e, mais tarde, endemias rurais. Nesse período, doenças como febre amarela, varíola, cólera e tuber-culose levaram a população portadora a sen-tir vergonha, o que se agravava com a falta de atendimento médico de caráter público. A população pobre só dispunha de atendi-mento filantrópico nos hospitais de caridade mantidos pela Igreja. As campanhas sani-taristas eram organizadas como campanhas militares, dividindo em distritos as cidades ou locais, encarcerando os doentes de mo-léstias contagiosas e obrigando-os a práticas sanitárias pela força, ou seja, eram tratados como caso de polícia25.

Em 1923 foram criadas e organizadas em Lei as Caixas de Aposentadoria e Pensões (Caps), com as quais, pela primeira vez, o Esta-do interferiu para criar mecanismo destinado a garantir ao trabalhador algum tipo de assis-tência. É claro que isso se deu pelo processo de pressão que vinha sendo feito por meio de greves pelos trabalhadores no início do proces-so de industrialização do Brasil; por conta disso, só tinham direito trabalhadores ligados a em-presas marítimas e ferroviárias, onde o nível de organização de trabalhadores era maior.

O período seguinte, entre 1930 e 1950, pode ser considerado clientelista-populista pela forma de intervenção do Estado na economia, observando-se a criação de institutos de segu-ridade social (institutos de aposentadorias e pensões), organizados por categorias profissio-

nais. Esses institutos favoreciam as categorias de trabalhadores urbanos, que já esboçavam algum nível de organização ou eram funda-mentais para a economia agro-exportadora do-minante. Os recursos para esse fim eram pro-venientes de contribuições dos trabalhadores, empresários e governos, no entanto eram uti-lizados para financiar o processo de industria-lização do país e só tinha direito à assistência quem pagasse. Mais uma vez, a grande maioria do povo não tinha acesso a esses direitos.

A ação do Estado na saúde dividiu-se em dois ramos: o da saúde pública de caráter preventivo, desenvolvido através de campa-nhas, e a assistência médica de caráter cura-tivo, que se desenvolvia através da ação da Previdência Social.

É interessante destacar que no período anterior, especialmente a partir de 1808, com a criação da Faculdade de Medicina na Bahia, os problemas de saúde eram justificados como causados pelo fato da população ser da raça negra, evidenciando uma visão discrimi-natória com relação aos negros e mestiços.

Somente a partir da década de 1930, sob a influência de uma nova vertente advin-da da Faculdade de Medicina do Rio de Ja-neiro, que enfatizava as condições de higiene e sanitarismo, e utilizando o instrumento da psicanálise que chegava ao Brasil, começou a ser admitido que os problemas de saúde enfrentados pela população pobre não se davam por causa da degeneração racial, mas pelas condições miseráveis de vida que en-frentavam, bem como, levantou-se a possi-bilidade de explicar as diferenças culturais existentes e de dar importância à educação como aliada aos processos de saúde.

Nesse contexto, havia a necessidade de dar resposta ao grave problema pobreza/doença. Desenvolveu-se, então, uma nova forma de compreensão e prática na relação do Estado com a sociedade, que enfatiza-va a capacidade da comunidade de se unir, de se organizar, de se esforçar e participar em ações simplificadas nos serviços e em ações sobre o meio ambiente. Os proble-mas, nessa visão, eram de ordem técnica e nunca resultado de opções por modelos de

25 Uma boa análise desse processo é feita pelo filme História da Saúde Pública no Brasil, editado pela Fiocruz, Rio de Janeiro, 2000.

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desenvolvimento, razão pela qual a comuni-dade envolvia-se em ações compensatórias do Estado, mas não se dava conta de que as causas dos problemas estavam no modelo de desenvolvimento e nas políticas do Estado.

Somente em 1950 foi criado o Ministé-rio da Saúde, que priorizou as ações de saúde com ênfase na assistência médica individual. Todavia, paralelamente a esse processo, pas-saram a ser investidos recursos na construção de grandes hospitais e centros de atendimen-to médico, equipamentos e medicamentos. Nesse período, fortaleceu-se o modelo norte-americano de atenção à saúde26.

Entre 1960 e 1963, na luta por reformas de base, que constituía uma das referências do período, a questão da saúde estava pre-sente no sentido de garantir acesso ao povo. As resoluções da 3ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1963, já apontavam para uma reforma sanitária no país de base muni-cipalista, com uma visão mais ampliada de saúde, indicando a necessidade de articular a saúde aos projetos de desenvolvimento27. O discurso do então presidente do Brasil na sessão inaugural afirmava:

A saúde, sabem os senhores mais do que eu, é um índice global, resultante de um conjunto de condições – boa alimentação, habitação higiênica, roupas adequadas, saudável regime de trabalho, educação, assistência médico-sanitária, diversões e ainda outros fatores que só podem ser con-seguidos em conseqüência do desenvolvi-mento econômico da nação e da distribui-ção eqüitativa de suas riquezas (NITERÓI, 1992, p.24).

Com o golpe militar de 1964, entretan-to, ocorreu uma abertura expressiva ao capi-tal internacional. No que se refere à saúde, foi o período em que houve sucateamento da

saúde pública, ênfase na saúde e previdência privadas; como conseqüência, tanto dessas políticas quanto do próprio modelo de desen-volvimento geral do país, assistiu-se a uma de-terioração das condições de saúde das classes populares. Em 1966, houve a unificação de recursos dos fundos de pensões e aposenta-doria no INPS, financiadas a fundo perdido.

Esses fundos financiaram, em grande parte, os hospitais, que passaram a receber do Estado para prestar assistência à popu-lação. Além disso, na década de 1970, parte dos recursos do INPS foi destinada a pagar obras como a Transamazônica, Itaipu, Ponte Rio-Niterói, grandes usinas, empresas e hos-pitais, por serem recursos desvinculados do Orçamento da União. Nesse período, tam-bém foi criado o Funrural como extensão da previdência aos rurais28. Na época foram criadas várias siglas, entre as quais INPS, Ia-pas, Inamps e INSS. Então, o Estado militaris-ta, que compreende os vinte anos de ditadu-ra militar, reorganizou a saúde com base no modelo sanitarista, em forma de campanhas, e do modelo curativo de atenção médico-previdenciária29 do período populista.

Como esse modelo não dava conta das necessidades de atenção à saúde, surgiram, a partir da década de 1960, os movimentos sociais urbanos, exigindo do Estado políticas que assegurassem ao povo excluído o aces-so aos bens e serviços e melhores condições de vida. Tais melhorias só poderiam ser con-quistadas através da luta, da pressão e mo-bilização do povo organizado em movimen-to. A organização popular voltou-se para o enfrentamento com o Estado e o sentido da participação era acumular forças para a bata-lha permanente pela mudança geral do mo-delo de sociedade existente.

26 Nesse período instalou-se no Brasil a indústria farmacêutica e, com ela, houve o avanço dos interesses do capital multinacional.

27 A lei nº 378 de janeiro de 1927determinou que, com intervalos nunca superiores a dois anos, seja convocada pelo presidente da República uma Conferência Nacional de Saúde. No entanto, a primeira foi realizada em 1942, a segunda em 1950 e a terceira em 1963. Após, aconteceram várias conferências nacionais de saúde, mas a 8ª Conferência Nacional foi a que demarcou as bases e os parâmetros para a Constituição Federal de 1988 e as leis que regulamentam o SUS. A 12ª Conferência Nacional de Saúde realizou-se em 2003, com o tema “Saúde: um direito de todos e dever do Estado. A saúde que temos, o SUS que queremos”.

28 Na realidade, significou uma forma de arrecadar recursos dos rurais para a Previdência, mas não representou benefícios para os trabalhadores rurais. Nesse período, tinha atendimento médico somente quem contribuísse e a aposentadoria só era concedida ao homem com mais de 65 anos de idade.

29 Previdenciária: forma de atendimento que só oferecia os serviços de saúde aos trabalhadores com carteira de trabalho assinada.

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Madel Luz (1991), destaca que, no final da década de 1970 e início da 1980, o contexto da saúde foi marcado pelos movimentos po-pulares e pela luta por reformas das políticas sociais e de saúde, que havia atingido níveis críticos de condições. O povo brasileiro vinha se deparando com a falta de políticas públicas de saúde. Como exemplo dos questionamen-tos que vinham sendo feitos no período está a seguinte afirmação de Jorge Amado:

Se não fossem a bexiga, o tifo, a malária, o analfabetismo, a lepra, a doença de Chagas, a xistossomose, outras tantas meritórias pragas soltas no campo, como manter e am-pliar os limites das fazendas do tamanho de países, como cultivar o medo, impor o res-peito e explorar o povo devidamente? Sem a desenteria, o crupe, o tétano, a fome pro-priamente dita, já se imaginou o mundo de crianças a crescer, a virar adultos, alugados, trabalhadores, meeiros, imensos batalhões de cangaceiros - não esses ralos bandos de jagunços se acabando nas estradas ao som das buzinas dos caminhões-a tomar as terras e a dividi-las? Pestes necessárias e beneméri-tas, sem elas seria impossível a indústria das secas, tão rendosa; sem elas, como manter a sociedade constituída e conter o povo, de todas as pragas a pior? Imagine, meu velho, essa gente com saúde e sabendo ler, que pe-rigo medonho! (AMADO. J. 1978).

Assim, a luta pela Reforma Sanitária iniciou-se nessa fase, através da conjugação de forças incluindo profissionais de saúde e gestores comprometidos com a saúde das classes subalternas e movimentos popula-res, que culminou com as deliberações da 8ª Conferência Nacional de Saúde e foi respon-sável pela luta e formulação do conjunto das conquistas obtidas na Constituição de 1988.

A partir da reorganização do país em busca da construção do regime democrático, desenvolveram-se, com divergências e até an-tagonismos, as disputas por políticas públicas de saúde, o que permitiu certas práticas insti-tucionais o surgimento de outras nos domínios da participação popular em serviço de saúde e de descentralização institucional. Diferen-temente do que ocorreu nos países que opta-ram pelo “Estado de bem-estar social”, onde a ampliação e extensão de políticas sociais se deram no processo de incorporação do plane-

jamento na ótica keinesiana, no Brasil, as polí-ticas sociais, dentre as quais a da saúde, surgi-ram e se implementaram unicamente a partir de demandas e pressões sociais imediatas. Daí oscilarem “ora o caráter de compensação, em face de reivindicações dos trabalhadores, ora com a marca da benevolência, quando se trata da população mais carente, que se en-contra excluída do processo produtivo ou in-tegrada a ele de forma marginal e sem poder de pressão”. (RIZZOTTO, 2000, p. 37).

A autora afirma que, nos países periféri-cos30, as políticas sociais não são progressivas nem acompanham o crescimento econômico, marcado por um caráter compensatório e res-trito, próprio do modo como o capitalismo se desenvolveu e se consolidou nesses países.

No campo da saúde, as políticas ado-tadas pelos governos de caráter burguês e a resposta às reivindicações dos movimentos sociais foram através de políticas compen-satórias, ações pulverizadas e fragmentadas para silenciar suas pressões ou ações de ca-ráter campanhista, não se constituindo em políticas públicas de caráter permanente. Isso não ocorreu por acaso, mas associado ao tipo de Estado burguês, cuja marca cen-tral foi um Estado desenvolvimentista, con-servador, centralizador e autoritário, com o objetivo de manter a ordem econômica capi-talista do Brasil no cenário mundial.

30 A autora considera os países periféricos como os países em desenvolvimento ou empobrecidos, ou seja, aque-les que estão marginalizados e/ou subordinados aos países do centro ou os desenvolvidos e ricos.

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Segundo Bacelar (1995, p.56), o Estado desempenhava a função de promover a acu-mulação privada na esfera produtiva e o essen-cial das políticas públicas estava voltado para promover o crescimento econômico, aceleran-do o processo de industrialização, implantando um projeto industrial sem alterar as relações de propriedade da terra e, muito menos, o ob-jetivo de proteção social ao conjunto da socie-dade. O Estado assumiu o papel de realizador mais que de regulador e nas políticas macro-econômicas teve papel importante dentro da lógica de patrocinar a industrialização.

Adentrando mais nessa questão, Paludo (2001, p. 39 - 40) afirma que o Estado que se conformou com o projeto da modernidade teve como desdobramentos: a consolidação

do modo capitalista de produção e sua ideolo-gia, o papel coercitivo nos momentos em que o projeto capitalista poderia sofrer algum tipo de mudança, o caráter instrumental, particu-lar, subordinado e transitório, com um discur-so de universalidade que não se concretiza.

É dentro dessa perspectiva que se situ-am a saúde e os avanços conquistados pela luta popular da Reforma Sanitária31, a qual permitiu que o povo brasileiro conquistasse na lei um sistema público e universal de saú-de, através do Sistema Único de Saúde.

Entretanto, a conquista em Lei não sig-nificou a efetivação do acesso ao direito à saúde, pois este continua na disputa com os interesses do capital que vem aceleradamen-te mercantilizando a saúde.

31A Reforma Sanitária é um movimento da década de 1970 no Brasil levado a cabo por profissionais de saúde, trabalhadores, acadêmicos e pesquisadores da saúde, gestores comprometidos com a saúde pública e os movi-mentos populares que exigiam reformas profundas na área da saúde.

4.2. Sistema Único de Saúde: luta, conquista e desafio

SUS que todos conhecemos faz parte da luta da população brasileira pela cidadania e re-presenta uma conquista no que diz respeito ao direito à saúde.

É a participação da sociedade na política de saúde que aproxima cada vez mais o SUS da democracia participativa e da justiça social, principalmente se a gente considerar que tem como princípios:

1. garantir para toda a população o aces-so aos serviços de saúde;

2. o direito de ser atendido em todas suas necessidades e situações, desde a parti-cipação nos grupos, às vacinas e consul-tas nos postos de saúde até os problemas mais complicados nos grandes hospitais;

3. igualdade na assistência a qualquer cida-dão independente de sua condição social, econômica, orientação sexual e etnia.

A concepção de saúde como um “bem público” foi assegurada em 1988 quando da aprovação da nova Constituição, que, em seu artigo 196, afirma a saúde como direito de to-dos e dever do Estado, garantido através de po-líticas sociais e econômicas, o que revela uma concepção de desenvolvimento com qualidade

de vida. Assim preconiza a Constituição Fede-ral em seu artigo 196: “A Saúde é um direito de todos e um dever do Estado, garantido me-diante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agra-vos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recu-peração”. (BRASIL, 1988, p.133).

No entanto, a partir da década de 1990, com as novas tendências e o reordenamento na economia mundial, sob a hegemonia neoli-beral, através da internacionalização do capital, especialmente o financeiro e da reestruturação produtiva, aliada à opção neoliberal dos gover-nos brasileiros ao cumprirem a agenda neolibe-ral estabelecida pelo Fundo Monetário Interna-cional (FMI), deixou-se de investir recursos para o financiamento da saúde pública brasileira. De outro lado, um conjunto de elementos combi-nados vem acarretando que o SUS concreto não seja aquele preconizado em lei.

Dentre os vários fatores, podem-se destacar a ineficácia da proposta de mudan-ça da visão saúde-doença com o enfoque nos problemas e o escamoteamento das causas, a lógica assistencialista; os serviços de saú-de insuficientes e os que existem ineficien-tes por não uso, ou uso equivocado; recursos

O1

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3

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humanos insatisfeitos, desassistidos, muitos despreparados técnica e humanamente e, mesmo, descomprometidos com a sociedade; o controle social incipiente; a atenção centra-da no hospital, no médico, nos medicamen-tos e equipamentos; a relação com o privado permeada pelos trinta anos de terceirização sem controle e oscilando entre a exploração e a benevolência conivente; o financiamento insuficiente com risco de privatização. Coloca-se a necessidade de efetivar a dignidade das pessoas com a humanização no atendimento, a solidariedade, a cidadania, o controle popu-lar sobre o Estado, a justiça e a eqüidade.

Essa realidade de desmonte do SUS não acontece por acaso, pois, a partir da década de 1990, o Banco Mundial tem se convertido no maior financiador externo de atividades de saúde nos países em desenvolvimento e uma voz importante nos debates sobre po-líticas de saúde. O Banco Mundial atua em quatro áreas: empréstimos e créditos, subsí-dios para o desenvolvimento, assessoramen-to em políticas e investigação.

O assessoramento em políticas tem sido um dos caminhos pelo qual o banco mais tem atuado, aliadas às demais áreas, re-alizando estudos e orientando as políticas de saúde nos países no sentido de fortalecer a estratégia neoliberal, abrindo as portas para a privatização desta área social tão importan-te tanto nos países da América Latina quan-to do Leste europeu – países ex-socialistas (BEYER, 2000, p. 91-113).

Cabe assinalar também que outra estra-tégia de domínio dos Estados Unidos sobre os países vem se dando no campo da tecnologia agrícola, ou seja, a questão dos agrotóxicos (que vieram no pacote agrícola americano na chamada “Revolução Verde”, pelo qual se construíram as bases da dependência e exclu-são dos camponeses ao mercado internacio-nal) e, mais recentemente, através dos trans-gênicos. O verdadeiro interesse que está por trás do monopólio e da imposição das semen-tes transgênicas é o controle sobre os alimen-tos e as sementes no mundo. A utilização das sementes geneticamente modificadas fere a soberania alimentar das nações de todo o mundo já que os agricultores não podem pro-duzir suas próprias sementes e são obrigados a consumir os insumos agrícolas das empresas

produtoras dos transgênicos. Quem não tiver o direito de produzir e multiplicar sementes, jamais poderá produzir os alimentos de que sua comunidade e seu povo necessitam.

Diante dessa realidade é que ganha força o papel dos movimentos sociais popu-lares e da sociedade civil organizada em suas lutas pela defesa da igualdade dos direitos fundamentais: individuais, sociais e políticos, do acesso à vida e à saúde de todos como condição de vida e de cidadania e da cons-trução de modos de atenção à saúde de for-ma integral para o conjunto da população.

Para isso, é necessário avançar na ação intersetorial, na ótica integrada de saúde e doença, na integralidade da atenção à saú-de, procurando formas que diminuam o uso indiscriminado de medicamentos, democra-tizando o saber em saúde. Outra questão e a tecnologia e os equipamentos em saúde sob o controle social, buscando formas de proto-colização de condutas, constituindo o usuá-rio enquanto sujeito ativo e não cliente pas-sivo. Além disso, precisa enfrentar a questão do financiamento da saúde; fortalecendo o controle social e a participação popular na definição, no gerenciamento, na fiscalização, no atendimento, no processo de cura, garan-tindo a universalidade do acesso, a igualdade do direito e a eqüidade na atenção.

Regulamentado pelas Leis 8080 e 8142 de 1990, o SUS é definido como um sistema público, único em cada esfera de governo, descentralizado e com a participação da so-ciedade exercendo o controle social sobre a política nas Conferências e nos Conselhos de Saúde, onde participam os atores do campo da saúde: gestores, os trabalhadores, os pro-dutores dos serviços e os usuários.

Mas como toda política é desafio, a luta continua. Pois uma coisa é ter as leis e as normas que orientam a implantação da polí-tica, e outra coisa é ver essas leis serem cum-pridas de fato. Dessa forma a implantação e o desenvolvimento do SUS vêm acontecendo entre duas forças: de um lado a existência de políticas neoliberais que visam diminuir o pa-pel do Estado como responsável pela inclu-são social de grande parte da sociedade bra-sileira e a presença de grupos que pensam a saúde como objeto de lucro econômico e político; e, do outro lado, as forças populares

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que procuram garantir na prática as idéias que vinham sendo construídas, ou seja, um SUS universal, participativo, que resolva os problemas que lhe competem de forma hu-manizada, integrada, equitativa e que pro-mova a saúde da população.

Assim, a implantação do SUS foi acon-tecendo orientada por Normas Operacionais que, durante toda a década de 90, regularam o funcionamento do sistema, garantindo, de certa forma, avanços no SUS, mas caminha-ram no rumo contrário a uma real descen-tralização, dependendo de portarias ministe-riais, transformando os recursos financeiros em mecanismos de centralização. Estas nor-mas diziam respeito desde o tipo de atendi-mento que devia ser feito, quem devia fazer e como seria financiado, definidos no nível central, sem a discussão e negociação com os níveis estaduais e municipais.

O financiamento, muito mais conheci-do como repasse de recursos fragmentados que dependiam da adesão dos municípios a programas, contribuiu muito para que os conselhos de saúde passassem a ser somente fiscalizadores das inúmeras contas, rubricas e despesas, impedindo a autonomia dos muni-cípios diante da necessidade de resolver pro-blemas que não faziam parte das caixinhas.

As Conferências Nacionais de Saúde vem afirmando a necessidade de implanta-ção efetiva do SUS. O documento-base da 12ª Conferência Nacional de Saúde, cujo tema foi “Saúde: um direito de todos e um dever do Estado – a saúde que temos e o SUS que queremos”, apontou os impasses, os avanços e os desafios para a saúde do povo brasileiro. A abordagem expressa neste documento, sa-lienta os avanços obtidos e as dificuldades ou impasses para a implantação de uma política pública de saúde com caráter universal num contexto de hegemonia mundial neoliberal, ao mesmo tempo em que reafirma os princípios e diretrizes. Um dos aspectos abordados no documento explicita: A efetivação do direito à saúde depende do provimento de políticas sociais e econômicas que assegurem o desen-volvimento econômico sustentável e distribui-ção de renda, cabendo especificamente ao SUS a promoção, proteção e recuperação da saúde dos indivíduos e das coletividades de forma eqüitativa. (BRASIL, 2003, p.29).

Assim, entre os anos de 2003 a 2006, o Ministério da Saúde junto a representação das secretarias estaduais (CONASS) e munici-pais (CONASEMS) foi construindo um proces-so de negociação e compromissos da opera-cionalização do SUS entre os gestores das três esferas de governo, na perspectiva de superar dificuldades burocráticas/administrativas que dificultam a participação mais efetiva dos mu-nicípios na gestão do SUS, contribuindo para a efetivação e consolidação de suas diretrizes constitucionais. O resultado disto é PACTO PELA SAÚDE aprovado por unanimidade pelo Conselho Nacional de Saúde e publicado em PORTARIA Nº 399/GM de 22 de fevereiro de 2006, que tem por finalidade maior promo-ver a melhoria na quantidade e qualidade dos serviços ofertados à população e a garantia do acesso a esses serviços, tornando possível ações de cooperação técnicas e solidárias en-tre SES, SMS e MS na construção de novos ins-trumentos que ampliam e qualificam a gestão pública dos sistemas e serviços de saúde.

O Pacto pela Saúde é um acordo assumido entre os

responsáveis pela implementação do Sistema Único de Saúde, ou

seja, as secretarias municipais, estaduais, do Distrito Federal e

o Ministério da Saúde a fim de garantir avanços na política e na

organização do SUS.

• O PACTO PELA VIDA estabelece compro-missos entre os gestores do SUS com prio-ridades que apresentem impactos sobre a situação de vida da população brasileira.

• O PACTO EM DEFESA DO SUS estabelece compromissos políticos entre os gestores a fim de consolidar a efetivação do processo da Reforma Sanitária Brasileira, expressa em princípios na Constituição Federal.

• O PACTO DE GESTÃO define as responsa-bilidades sanitárias de cada gestor municipal, estadual e federal para a gestão do SUS nos aspectos da descentralização, regionalização, financiamento, planejamento, programação pactuada e integrada, regulação das ações e serviços, participação e controle social e ges-tão do trabalho e da educação na saúde.

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No contexto atual, os desafios centrais caminham na direção da luta pela efetivação concreta do acesso do direito à saúde com consolidação do SUS como uma política so-cial, pública, de caráter universal, em defe-sa da vida e da saúde individual e coletiva e promotora da cidadania com participação popular, ao mesmo tempo, em que precisa ser reinventado considerando as necessida-des da população brasileira. Essa perspecti-va vem sendo apontada pelas resoluções de conferências de saúde e das plenárias nacio-nais e estaduais de conselhos de saúde.

O que se coloca como desafio é a própria reinvenção do SUS, mantendo seus princípios e diretrizes, mas repensando os modos de atenção à saúde, priorizando recursos e ações de promoção e proteção à saúde, sem abandonar a assistência, com re-solutividade, com equipes multiprofissionais de atenção à saúde que se sintam sujeitos técnicos e pedagógicos na relação e valoriza-ção da pessoa humana em seu compromisso ético com a vida. Além disso, coloca-se como fundamental repensar a gestão da política pú-

blica de saúde através da gestão participativa, com a co-responsabilidade do poder público nos níveis municipal, estadual e federal, bem como, o fortalecimento das diversas formas organizativas populares na área da saúde para fazer frente à hegemonia neoliberal.

Há um conjunto de Políticas de Saúde que precisamos conhecer me-lhor para exigir sua implantação no SUS. Assim tem a Política Nacional de Aten-ção Integral à Saúde da Mulher, a Política Nacional de Plantas Medicinais, a Política Nacional de Práticas Integrativas e Comple-mentares no SUS, a Política Nacional de Saú-de da População do Campo e da Floresta, a Política Nacional da População Negra, entre outras. Cabe à sociedade civil, especialmente aos movimentos sociais populares e organi-zações, avançar nas lutas cotidianas para que o direito à saúde e às condições dignas de vida seja efetivado na prática. Essa luta assu-me caráter estratégico no contexto mundial de desmonte do Estado e de políticas sociais e de avanço da mercantilização da vida e dos direitos fundamentais dos seres humanos.

4.3. Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde32

m dos instrumentos importan-tes para cada cidadã e cidadão brasileiro lutar no dia-a-dia pela efetivação do direito à saúde é a Carta dos Direitos dos Usuários

da saúde, publicada pelo Ministério da saú-de em 2006.

Esta carta baseia-se em seis princípios básicos de cidadania. Juntos, eles asseguram ao cidadão o direito básico ao ingresso digno nos sistemas de saúde, sejam eles públicos ou privados. A carta é também uma impor-tante ferramenta para que cada cidadã e ci-dadão conheça seus direitos e possa ajudar o Brasil a ter um sistema de saúde com muito mais qualidade. Esta carta serve para você conhecer alguns de seus direitos na hora de procurar atendimento de saúde. Estes direi-tos estão assegurados por lei desde 1990.

U

32 Esta carta foi feita com a participação dos governos federal, estaduais e municipais e do Conselho Nacional de Saúde. Em caso de dúvida, procure a Secretaria de Saúde do seu município. Esta Carta foi publicada pelo Ministério da Saúde Brasil. Ministério da Saúde.Carta dos direitos dos usuários da saúde / Ministério da Saúde. – Brasília:Ministério da Saúde, 2006.8 p. (Série E. Legislação -4de Saúde)

Princípios da carta dos direitosdos usuários da saúde

Todo cidadão tem direito a ser atendido com ordem e organização

Quem estiver em estado grave e/ou maior sofri-mento precisa ser atendido primeiro. É garantido a todos o fácil acesso aos postos de saúde, espe-cialmente para portadores de deficiência, gestan-

tes e idosos.

Todo cidadão tem direito a ter um atendimento com qualidade

Você tem o direito de receber informações claras sobre o seu estado de saúde. Seus parentes tam-bém têm o direito de receber informações sobre seu estado. Também tem o direito a anestesia e a remédios para aliviar a dor e o sofrimento quando for preciso. Toda receita médica deve ser escrita

de modo claro e que permita sua leitura.

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Todo cidadão tem direito a um tratamento humanizado e sem

nenhuma discriminaçãoVocê tem direito a um atendimento sem nenhum preconceito de raça, cor, idade, orientação sexual, estado de saúde ou nível social. Todo cidadão tem direito

ao atendimento humanizado, acolhedor e livre de qualquer discriminação. Os

médicos, enfermeiros e demais profissio-nais de saúde devem ter os nomes bem visíveis no crachá para que você possa

saber identificá-los. Quem está cuidando de você deve respeitar seu corpo, sua intimidade, sua cultura e religião, seus

segredos, suas emoções e sua segurança.

Todo cidadão deve ter respeita-dos os seus direitos de pacienteVocê tem direito a pedir para ver seu

prontuário sempre que quiser. Tem tam-bém a liberdade de permitir ou recusar qualquer procedimento médico, assu-

mindo a responsabilidade por isso. E não pode ser submetido a nenhum exame sem saber. O SUS possui espaços de

escuta e participação para receber suas sugestões e críticas, como as Ouvidorias

e os Conselhos Gestores e de Saúde. Todo cidadão tem direito a atendimento que respeite a sua pessoa, seus valores e

seus direitos.

Todo cidadão também tem deve-res na hora de buscar atendimen-

to de saúdeVocê nunca deve mentir ou dar informa-ções erradas sobre seu estado de saúde.

Deve também tratar com respeito os profissionais de saúde. E ter disponíveis documentos e exames sempre que for pedido. Todo cidadão também tem res-ponsabilidades para que seu tratamento

aconteça da forma adequada.

Todos devem cumprir o que diz a carta dos direitos dos usuários da

saúdeOs representantes do governo federal, estadual e municipal devem se empe-nhar para que os direitos do cidadão

sejam respeitados. Todo cidadão tem di-reito ao comprometimento dos gestores da saúde para que os princípios anterio-

res sejam cumpridos.

Passos para garantir os direitos no Sistema Único de Saúde (SUS)

O Sistema Único de Saúde – SUS é o con-junto de ações e serviços de saúde prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais ou por entidades a ele vinculadas. O SUS foi conquistado pelo povo brasileiro e está consolidado na Constituição, garantindo atendi-mento universal, igualitário e integral a todas as pessoas, seja nas unidades de saúde, ambulató-rios, laboratórios, clínicas, hospitais, instituições privadas contratadas... sem que nada seja cobra-do. Esse atendimento já foi pago pela cidadã e cidadão, através das contribuições sociais e dos impostos arrecadados pelo governo.

O que fazer para garantir o atendimento

Sempre que você ou alguém de sua família necessitar de atendimento, procure o primeiro posto de saúde mais próximo. Neste local você não deve pagar nada pelo atendimento presta-do. Em caso de emergência, vá ao Pronto Socorro mais próximo de seu município. Ali você deverá ser atendida(o) pelo médico de plantão.

Todo hospital conveniado com o SUS deve ter Pronto Socorro ou atendimento de Emergência, com plantão 24 horas, sem cobrar nada do usu-ário. O médico que você for consultar é respon-sável pela solicitação de exames ou qualquer ou-tra necessidade. Você não deve pagar nada por qualquer procedimento solicitado pelo médico: exame de sangue, urina, fezes, ultra-sonografia, raios-X, tomografia,... enfim, tudo o que o mé-dico solicitar, você deve levar para a Secretaria de Saúde providenciar. Após a solicitação pelo médico, a Secretaria Municipal de Saúde é res-ponsável pela autorização, encaminhamento e pagamento.

Se você precisar de um atendimento no hos-pital e necessitar ficar em observação, você tem o direito de ser atendida (o) pela ficha verde (BAU – Boletim de Atendimento de Urgência), sem pa-gar nada. Caso necessite de internação, ficará na enfermaria ou quarto coletivo. Esta é a acomoda-ção garantida pelo SUS. Todo atendimento deve ser pela AIH (Autorização de Internação Hospita-lar) e você não pagará nada. Mesmo quando não houver leito na enfermaria, o hospital é respon-sável por internar o paciente, sem a necessidade de pagamento de qualquer diferença (Portaria 113 de 01 de setembro de 1997).

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• Consiga uma testemunha (não pode ser alguém da família)

• Não aceite pressão do tipo prender recei-tas ou documentos

• Quando você tiver dúvidas ou for obri-gado (a) a pagar, faça o pagamento com cheque pré-datado e nominal

• Em qualquer situação, exija recibo que conste o tipo de procedimento que foi prestado. Não aceite recibo que diga que é doação ou contribuição espontânea

• O procedimento seguinte é fazer a denún-cia, se possível por escrito, ao Promotor

• Se a cobrança for feita em município de Gestão Plena no Sistema Municipal, de-nuncie na diretoria de Controle, Avaliação e Auditoria do município em que aconte-ceu a cobrança

• Se for em município da Gestão Plena da atenção Básica, denuncie no Centro de Auditoria e Controle de sua região.

• Você pode fazer a denúncia no disque Saúde

Ligação Gratuíta: 0800 61 1997Fax: 61- 3448 8923 e 61-3448 8926Caixa Postal 6216 CEP 70740-971www.saude.gov.br

Se o paciente necessitar de um trata-mento especializado, que não tem no mu-nicípio, seja hospitalar ou não, os profissio-nais e a Secretaria de Saúde tem obrigação de encaminhar para um hospital regional, acompanhado da AIH. A Secretaria da Saú-de também e responsável pelo transporte.

Nos Hospitais conveniados com o SUS, toda gestante em processo de parto tem direito de acompanhante, sem pagar nada. (Lei Federal 11.108 de 07 de abril de 2005).

O que fazer quando houver dificuldades de atendimento

Se o hospital, médico (a) ou outro pro-fissional da saúde recusar atendimento, de-vemos ir até a Delegacia de Polícia ou Pro-motoria, junto com algumas testemunhas, e fazer uma denúncia de omissão de socorro.

É importante você saber que quem as-sina o convênio com o SUS é o hospital e a Secretaria Municipal de Saúde. Portanto, todos os profissionais que ali trabalham, in-clusive o médico e anestesista, não podem cobrar pelo atendimento prestado.

Se você for vítima de cobranças ilegais ou qualquer outra irregularidade saiba como se defender e denunciar:

43MMC vem desenvolvendo lutas pela garantia do acesso à saúde pública, combinadas com o for-talecimento do controle social,

trazendo um conjunto de elementos revela-dores de um novo jeito de cuidar da saúde, pensado a partir do paradigma da saúde e não da doença, que tem como elemento central o “cuidado” enquanto essência do humano (BOFF, 1999). As mulheres trazem o “cuida-do” como princípio norteador da vida e das relações. Cuidar significa valorizar, respeitar, ouvir, zelar pelo outro enquanto pessoa que se faz revelar e que, na relação humana, se dignifica. A esse propósito, “saúde é acolher e amar a vida assim como se apresenta, ale-gre e trabalhosa, saudável e doentia, limi-tada e aberta ao ilimitado que virá além da morte” (BOFF, 1999).

O jeito feminista de tratar a saúde im-plica cuidar da vida, do conjunto das relações com a realidade circundante. Relações essas que passam pela higiene, pela alimentação, pelo ar que se respira, pela terra onde se planta e se vive, pela maneira como organi-za a casa, a vida e os espaços coletivos. Passa também pela forma como cada um se situa dentro de um determinado espaço ecológico. Esse cuidado reforça a identidade como ser de relações, buscando um equilíbrio e visando à integralidade e à totalidade do ser humano.

Assim, a integralidade da saúde tem uma interface determinante com a dimen-são histórica do ser humano enquanto sujei-to individual e coletivo da construção social, cultural, econômica e política da sociedade. Aliado a isso, o MMC adotou como princípio o ressignificar a sabedoria popular e a fertili-dade da terra e da vida como um todo. Esse trabalho vem no sentido de enfrentar um dos

problemas centrais do mundo atual, onde tudo virou mercadoria, até mesmo o essen-cial, como a própria vida humana.

Para que tudo isso realmente aconte-ça na prática, o movimento realiza as ações educativas na área da promoção à saúde da mulher e da família camponesa, articulando a construção do ser humano integral; a agroe-cologia, as plantas medicinais; a alimentação saudável; o uso de terapias complementares na atenção à saúde e a luta para a garantia de acesso do povo ao direito de ter atenção integral à saúde pública, através do SUS.

Neste sentido precisam ser considerados três elementos básicos:

8 O primeiro estabelece uma relação entre o conceito de promoção à saúde com o Pro-jeto de Sociedade que se quer construir. A saúde está vinculada diretamente ao modo como vivemos, aos princípios que defende-mos, ao alimento que comemos, ao ar que respiramos, as amizades e relações inter-pessoais e sociais que cultivamos.

8 O segundo mostra que não podemos se-parar o trabalho de promoção à saúde da conscientização, na perspectiva da forma-ção política; da luta pelos direitos como a moradia, terra, saneamento básico, edu-cação e do engajamento nas lutas gerais por mudanças estruturais do sistema capi-talista neoliberal.

8 O terceiro tem a ver com o conceito de saúde integral, ou seja, a concepção de integralidade da atenção à saúde que tem como pressupostos:

a) Uma visão de ser humano integral, como sujeito social e portador de direitos de vida, dignidade e cidadania;

Saúde integral,

experiências do MMC

defesa da vidae emancipação

O

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b) O compromisso ético com a vida - sua defesa, preservação e qualificação em todas as suas dimensões;

c) Um projeto de desenvolvimento da so-ciedade entendido como processo de construção de vida digna a todas as pes-soas, que integra as várias dimensões e princípios da vida e da saúde e não da lógica do capital;

d) A saúde como direito de todos e dever do Estado, através da efetiva implanta-ção do SUS, com o caráter de relevância pública da saúde, e, portanto, colocada sob o controle social e a participação popular, conforme a Constituição Fede-ral e suas leis complementares;

e) A incorporação da concepção de Educação Popular nas práticas junto com as mulhe-res e famílias, compreendendo que o pro-cesso e as relações construídas no campo da saúde também são educativos;

f) O entendimento de que Saúde é um as-pecto integral da vida diária, não se li-mitando apenas em ficar bem depois de uma doença.

Nessa perspectiva é que o MMC, com a marca “Plantando Saúde”, vem desenvolvendo ações educativas, lutas concretas e desenvolvimento de experiências buscando construir esse novo modo de viver e ter saúde na roça.

Com base nas experiências que vêm sendo realizadas pelas mulheres, as quais receberam o nome de “multiplicadoras” de sabedoria, de vida, de saúde, de esperan-ça, o movimento vai dando continuidade ao processo formativo, organizativo, de luta e ao trabalho de educação e promoção à saú-de da mulher e da família rural a cada ano, redefinindo os processos e o tipo de ações, conforme a avaliação do trabalho realizado e as exigências que a conjuntura apresenta.

Esse tipo de trabalho também vem tra-zendo elementos acerca da integralidade da atenção à saúde, do acolhimento das pesso-as, do vínculo que as mulheres têm com as famílias, com o modo de tratar a saúde, que

merecem uma análise mais aprofundada e evidenciam o quanto o cuidado à saúde re-quer que se compreenda a complexidade da teia da vida. Essa experiência tem como fio condutor as relações de gênero, classe e pro-jeto popular, que constituem a identidade do próprio movimento, ou seja, a libertação das mulheres, a transformação da sociedade e a construção de uma nova sociedade e de novas relações sociais de gênero, de raça e ecológicas.

Assim, a luta por saúde tem como eixos norteadores que se articulam entre si: a) o direito à saúde pública atuando na área das políticas públicas gerais e da saúde, b) o eixo da promoção da saúde da mulher e da famí-lia camponesa sendo a saúde como um novo modo de vida.

Dessa forma, as mulheres camponesas desenvolvem esse trabalho intervindo no cotidiano de suas vidas na propriedade, no espaço da produção (produzindo sem agro-tóxicos e transgênicos, optando pela agroe-cologia), nas relações familiares (dividindo as tarefas domésticas, construindo um jeito coletivo de cuidar-se no núcleo familiar – dialogando, entendendo, cuidando, curando, protegendo, estabelecendo limites e respon-sabilidades individuais e coletivas), com o grupo de mulheres (dialogando, trocando sa-beres e práticas, fazendo os remédios juntas, refletindo, organizando e se formando) e com as comunidades (acompanhando as pessoas que precisam de apoio e atendimento, com a “farmacinha”, conversando, escutando, par-ticipando da vida comunitária,...).

Além disso, desenvolvem todo um pro-cesso de formação, organização e conscienti-zação das mulheres e realizam uma série de ações, lutas e mobilizações de enfrentamento das questões específicas que dizem respeito à saúde da mulher e da família rural, assim como, junto com outras organizações nas demais lu-tas por melhores condições de vida e saúde, enfrentam o próprio sistema capitalista.

Nesse processo de organização, forma-ção, luta e desenvolvimento de experiências de promoção à saúde da mulher e da família, as mulheres camponesas, vinculadas ao MMC estabelecem uma relação entre a saúde e a previdência: “O tripé da Seguridade Social, a saúde, a previdência e a assistência social, nos

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mostram a grande relação que deve existir para que as pessoas possam viver com segu-rança e felizes. Por isso, devem ser públicas, de caráter universal e de qualidade garantidas mediante um conjunto de outras políticas”.

Esse trabalho tem uma relação muito forte com o cotidiano de vida das mulheres e famílias camponesas, como já foi abordado, com a dimensão da fé e da espiritualidade, que é muito forte na cultura das famílias rurais. Os símbolos e os rituais religiosos ligados à vida e à saúde são ressignificados a partir da mística li-bertadora, ganhando um sentido mais profun-do e encarnado no cotidiano das mulheres.

Nesse processo, as mulheres enfren-tam muitas dificuldades no desenvolvimento do trabalho de base; mostram as dificuldades que às vezes enfrentam em socializar o que aprendem as distâncias para poderem parti-cipar, a condição de empobrecimento e do público no meio rural ser praticamente cons-tituído de idosos. Mas as dificuldades maio-res referem-se à participação das mulheres em momentos de luta fora de sua região e de permanecerem mais de um dia fora de casa por conta das exigências de trabalho no meio rural, pois muitas vezes os homens não dão conta das tarefas que historicamente foram delegadas às mulheres.

Por outro lado, essa práxis já vem produzindo um conjunto de resultados no cotidiano de vida das mulheres que denota sinais vagarosos, mas firmes de mudança. Dentre os

vários aspectos apresentados pelas mulheres, podem-se destacar:

• A conquista de direitos, como o reconheci-mento da profissão, a aposentadoria, o salá-rio maternidade, saúde, alfabetização e docu-mentação para as mulheres, entre outros. O que chama a atenção é que todas as mulheres entendem o movimento como instrumento de luta que garantiu, por meio de mobilizações, esses resultados, os quais incidiram positiva-mente sobre suas vidas;

• O início de mudança na produção, que as mu-lheres afirmam: “a gente planta na lavoura de tudo, planta verduras, mandioca, feijão, arroz, banana”. “Nós aqui começamos a mudar com o trabalho da agroecologia”;

• Construção de novas relações: percebe-se mu-dança na relação com o ambiente, nas relações familiares e no papel das mulheres, como se pode ver nas falas: “a gente foi dividindo as tarefas em casa, sobrando mais tempo para todos participarem das lutas também. “Uma vez a mulher era só em casa. Hoje a gente é da casa, da família, da comunidade e da luta”. “Tem mulheres com mais participação, organi-zação, mais saúde, solidariedade e entre-ajuda e as mulheres estão aprendendo a cuidar de si e da saúde da família”. “As pessoas não estão mais precisando tomar antidepressivos, por-que estão bem e encontraram razão pra viver.”

• O fortalecimento da organização do movimen-to é outro aspecto bastante salientado pelas mulheres, como resultado de todo o trabalho que vem sendo desenvolvido e do respeito que “as mulheres vêm conquistando e exercendo a cidadania, se organizando e exigindo seus di-reitos, cobrando dos responsáveis”. “A consci-ência que temos para o enfrentamento a tudo o que vem destruindo a vida e a saúde”. “Mu-

lheres mais livres para falar e participar”;

• Uma companheira mostra o processo e os re-sultados que vêm ocorrendo com a condição enquanto mulher:

“Mas quando a mulher toma consciência da condição, não consegue conviver com a con-tradição/opressão e aí precisa dar passo para enfrentar e se libertar. É uma constante, todas nós passamos por este processo. É um proces-so, se avaliando, porque não se dá num passe de mágica, tem a ver contigo, com a sociedade e com as pessoas que te rodeiam. Aí ninguém mais segura, vão para a luta. Quando acredita em alguma coisa, e tem claro onde quer che-gar ninguém segura. O movimento tem sido espaço para as mulheres participarem e terem a dimensão mais ampla do Brasil e do mundo. O movimento dá oportunidade da mulher ver o mundo com uma visão maior das coisas. Es-paço privilegiado e paralelo a esta sociedade que diz que não é possível, nós mostramos que é possível. Isto é o que vai dando sentido para a vida dela e da comunidade do MMC. Assim, depois que supera o conflito inicial que dá, a família muda, a propriedade muda, a forma de produzir, de planejar, de rever juntos. É um im-

pacto muito forte”.

O processo de mudança que cada mu-lher vai construindo à medida que participa do movimento desvela o fetiche de sua condição feminina imposta histórico-culturalmente, en-frenta os conflitos e contradições, vai fazendo emergir o seu “ser mais” como ser humano e como mulher. Esse resultado não se mede e muitas vezes não se visualiza num passe de mágica, mas precisa ser observado como pro-cesso de luta por valorização, participação, ci-dadania, libertação e emancipação.

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desenvolvendo com as especificidades e exigências de forma diferenciada e peculiar em cada momen-to e em cada território. Assim, teve uma fase mais voltada à saúde da mulher, nos direitos sexuais e reprodutivos, passou para o debate da saúde da família até o momento de repensar o processo de produção e os modos de vida na agricultura e as relações humanas e com a natureza como formas de promoção e proteção à saúde.

Esta construção vem sempre permeada por um processo formativo junto com as mulheres camponesas que desencadeiam ações formativas junto aos seus grupos, famílias e comunidades. Esta formação contempla a reflexão acerca do “ser mulher” e do “ser humano”; da promoção à saú-de da mulher no seu ‘ser integral”; da história da medicina e dos cuidados em saúde, da saúde e da agricultura camponesa agroecológica, das plantas medicinais, da alimentação saudável; da história da mulher na humanidade; da saúde ambiental, das práticas tradicionais e integrativas de saúde, do Sistema Único de Saúde e das várias políticas de atenção integral à saúde, entre outras temáti-cas apresentadas pelas próprias mulheres.

Ao refletir sobre o ser mulher parte-se do pres-suposto que somos um todo no universo composto das várias formas de vida. Daí a importância do res-peito à biodiversidade e de compreender o ser hu-mano dentro desta complexidade e não como ser exclusivo. Além disto, as relações humanas precisam ser reconstruídas com base no poder partilhado e na reciprocidade, superando o patriarcado e todas as formas de opressão, dominação, discriminação e

5.1. Plantando saúde

O Movimento de Mulheres Camponesas entende a promoção à saúde como uma das formas de resistência e de continuidade da vida na agricultura.

A saúde é uma das lutas que acompanha a trajetória de organização das mulheres cam-ponesas no Brasil. De um lado, lutando para que o direito à saúde seja efetivado e, de outro, para viabilizar experiências de educação, promoção e cuidado à saúde das famílias rurais onde o MMC atua. Estas formas de educar, promover, prote-ger e cuidar da vida e da saúde das mulheres e das famílias camponesas traz no seu bojo a sa-bedoria milenar que as mulheres têm de cuidar utilizando a natureza, as plantas medicinais, os alimentos, as orações, a espiritualidade e a mís-tica acolhedora, cuidadora e transformadora da vida e das relações.

Esta experiência vem ganhando visibili-dade com o nome “Plantando Saúde” que tem por objetivos:

8 desenvolver o ser humano de forma integral na perspectiva de construir novas relações de gênero e étnico-raciais no campo, permeadas pela igualdade e reciprocidade;

8 fortalecer a produção de alimentos saudáveis e a agroecologia a fim de construir um projeto de agricultura camponesa promotor de vida, saú-de e cidadania das mulheres e de todos os que vivem e trabalham na agricultura;

8 conhecer e fortalecer o uso adequado de plantas medicinais no cotidiano de vida, cul-tura e identidade das mulheres e famílias camponesas;

8 potencializar a alimentação saudável e modos de vida promotores de saúde individual, fami-liar e comunitária no meio rural;

8 incentivar e valorizar o saber popular na saúde.

Para realizar este tipo de trabalho, o Movimento fez várias reivindicações junto aos governos federal e estaduais. No caso do Rio Grande do Sul, em 2001 foi conquistado equi-pamentos básicos para a utilização adequada de plantas medicinais e a promoção da alimen-tação saudável articulados a um processo for-mativo junto aos grupos de mulheres campo-nesas organizadas pelo Movimento.

Neste sentido, este trabalho educativo, de promoção, proteção e cuidado popular em saúde, chamado de “Plantando Saúde” vem se

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violência. Desta forma, para ter boa saúde, é preciso construir o projeto de vida articulado com um proje-to de sociedade justa, democrática e solidária.

Entretanto, para que isto aconteça, é pre-ciso enfrentar os conflitos diários, tendo posição própria e sentindo feliz pelo que se é como mulher e pelo que se faz.

Assim, promover a saúde diz respeito a en-frentar as barreiras que esta sociedade impôs cultu-ralmente sobre mulheres e homens, criando muitas limitações, preconceitos, pessimismos, culpas, me-dos, inseguranças, sentimentos de inferioridade, especialmente sobre as mulheres. Isso tudo vem causando frustrações, angústias e doença. Entre-tanto, juntas e organizadas, é possível superar estas dificuldades, enfrentar os desafios e construir no-vos caminhos de saúde, vida e libertação.

Por isto, para o MMC, promover a saúde é construir um modo digno e saudável de vida. Este modo de vida está fundamentado nas novas rela-ções entre mulheres e homens, no cuidado com o corpo, a mente, o espírito e o ambiente. Pro-mover saúde tem a ver também com a alegria, o bom humor, a respiração, o sono, as caminhadas, os exercícios físicos, o lazer saudável, a conversa, o diálogo, o carinho e o afeto para com os outros; enfim, ter equilíbrio em nossa vida cotidiana.

Para isso, é preciso conhecer a história das mulheres, da humanidade e da ciência para saber e se posicionar diante das situações diárias e não ter vergonha de mostrar o conhecimento acumu-lado nas vivências e experiências que temos e aprendemos do saber popular junto ao povo com o qual convivemos.

Para ter saúde do corpo e do ambiente é fundamental saber como produzir o alimento sau-dável e saber como se alimentar de maneira nutri-tiva. Por isso, o MMC vem construindo a reflexão e a prática de implementação do projeto de agri-cultura camponesa com os princípios agroecológi-cos, aliados à luta para ter acesso e permanência à terra, o cuidado com o ambiente e a garantia de condições básicas de vida (moradia, alimentação, terra, direitos sociais). Tudo isso é indispensável para o bem estar das pessoas que vivem no campo e, ao mesmo tempo, todas sabem que para con-seguir isso é necessário muita luta e organização, muita garra, coragem e ousadia.

Sabemos que o ser humano e todos os ani-mais desde sua origem até hoje sempre usaram e dispuseram das plantas como base alimentar (ali-mento nutritivo do corpo, curando as necessidades causadas pelo desgaste diário do trabalho humano) e terapêutica (prevenir e tratar de doenças). Esta

sabedoria vem passando de geração em geração, através das crenças, costumes, saberes e práticas. junto à população como herança da humanida-de. As mulheres contribuíram muito na multipli-cação e preservação destes saberes e costumes em todos os espaços onde participaram e parti-cipam. Por isso, o MMC defende e orienta o uso das plantas medicinais na promoção, proteção e no cuidado à saúde das pessoas e também dos animais, como fruto da identidade e compromis-so em defesa da vida e da natureza.

Acreditamos que ampliar o conhecimento sobre as plantas medicinais é uma forma de resistir e fortalecer a luta das mulheres camponesas na construção do Projeto de Agricultura Camponesa na perspectiva agroecológica e feminista.

Isto porque a natureza tem uma diversidade rica e variada de plantas medicinais e é ali onde os humanos encontram seu equilíbrio energético e curativo. As plantas têm a virtude de expelir as to-xinas do organismo, purificando-o e suprimindo a falta de certos elementos nutritivos. Elas oferecem uma grande quantidade de princípios ativos que podem ser utilizados na preparação de remédios.

Assim, desta relação histórica com a natu-reza, as mulheres camponesas vem partilhando e utilizando as plantas medicinais na arte da cura e do alimento para amenizar dores e problemas de saúde do corpo, para fortalecer, energizar e embelezar o corpo e o ambiente. Arte herdada das mulheres bruxas, curandeiras, benzedeiras, cozinheiras... Este dom é preservado através do respeito (humildade), de reverência (adoração), do reconhecimento (gratidão), da partilha e da solidariedade diante das plantas medicinais e do que a natureza oferece aos seres humanos.

Assim, é preciso que o saber popular so-bre o uso das plantas medicinais e sobre os cui-dados com a vida e a saúde sejam multiplicados através de valores materiais e simbólicos como rituais, cantos, danças, chás, tinturas, caldos, banhos, inalações, gargarejos, entre outros, alia-dos com a solidariedade e a missão consciente das mulheres temperada com ternura e paixão.

As plantas medicinais são encontradas em florestas nativas, hortas, capoeiras, jardins... com grande diversidade. O conhecimento e reconhe-cimento da composição das plantas medicinais

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acontecem através dos sentidos: o tato (tocar, sentir), o olfato (cheirar), a visão (olhar), a audi-ção (ouvir) e o paladar (mastigar, saborear). Atra-vés dos sentidos é que as mulheres vem identi-ficando a planta, de que forma deve utilizá-la e qual sua função para o organismo. São inúmeros os “remédios” desenvolvidos a partir de uso das plantas, desde o surgimento dos humanos e ani-mais. Esses saberes vem sendo partilhados his-toricamente e até hoje ajudam no cuidado das pessoas, animais e do ambiente camponês.

Assim, o MMC vem trabalhando, interca-lando as etapas de formação, atividades práticas relacionadas às plantas medicinais e à agricultu-ra, como: preparação do horto medicinal, caldas, biofertilizantes, secagem das plantas medicinais, estudos, bem como, mobilizações, reuniões pro-dução de materiais (cartazes, folders, cartilha, lo-gotipo, rótulos). Também acontecem festas, cele-brações, rituais, caminhadas, danças envolvendo as mulheres camponesas dos grupos de base.

Este trabalho tem uma mística libertadora profunda que envolve todas as mulheres. As ofici-nas teóricas (estudo, dinâmicas, trabalho em gru-po, cochicho) e práticas permanentes e integradas a cada momento (misturas de tinturas, de elixires e pomadas, sucos, xaropes, alguns alimentos); debates sobre o projeto de agricultura, as lutas, as trocas de conhecimento, de mudas, semen-tes, receitas, identificação das plantas medicinais, exercícios físicos e muito diálogo e alegria nos mo-mentos de encontro das mulheres.

O acompanhamento deste processo é feito por mulheres técnicas agropecuárias ecológicas ligadas ao movimento que tem conhecimento so-bre esta temática articulada com a saúde.

Este trabalho vem construindo um novo modo de fazer e pensar a saúde, de construir o desenvolvimento no campo. Um desenvolvimen-to que valoriza as famílias camponesas e promove vida, cidadania e contribui para que o campo seja um lugar bom de viver e de ser feliz.

5.2. Recuperação de sementes crioulas de hortaliças

O MMC entende que as sementes representam para a humanidade a continuidade da vida e preocupado com as conseqüências do modelo de agricultura capitalista: agrotóxicos, sementes transgênicas, adubos químicos, esgotamento do solo, perda da biodiversidade, doenças, entre outros, assume a luta em defesa das sementes crioulas patrimônio da humanidade.

No final da década de 1990, o MMC/SC, na medida em que fazia o debate sobre que proje-to de agricultura precisamos para termos vida e dignidade iniciou algumas práticas de produ-ção agroecológica. Este tema norteou a refle-xão da Assembléia Estadual, de 2001, onde foi deliberado que o MMC deve construir um novo projeto de agricultura agroecológica voltado para a transformação da sociedade e capaz de garantir condições de vida para todos.

Foi intensificado a motivação que o mo-vimento já fazia anteriormente relativa à im-portância de produzir em suas unidades de produção uma alimentação de qualidade. E nesta Assembléia as mulheres camponesas já

trouxeram experiências de produção orgânica que estavam desenvolvendo e apresentaram na assembléia, como: produção de sementes de ba-tatinha crioula, radichi, feijão, fermento de pão caseiro, iogurte e produção de mel de abelha jataí, entre outras. As mulheres reafirmaram o compromisso de ressignificar a sabedoria popu-lar, as experiências herdadas de nossos ancestrais e ousar mais na produção agroecológica.

Esta decisão levou o MMC a planejar um programa de recuperação, produção e melhora-mento de sementes crioulas de hortaliças, capaz de responder os anseios e os desafios das mulheres camponesas. Constituiu-se uma equipe onde parti-cipou dirigentes do MMC e técnicas(os) identifica-dos com e pelo MMC que já vinham trabalhando com uma concepção fundamentada na agroecolo-gia, para elaborar a proposta inicial do programa, que posteriormente, foi aprovada pela direção. Os inúmeros momentos de estudo, reflexão e debates com as mulheres contribuíram neste processo.

Objetivo geral4 Construir com as Mulheres Camponesas a ex-

periência prática e teórica de recuperação, pro-dução e melhoramento de sementes crioulas de hortaliças, como ação concreta das mulhe-res na construção do projeto popular de agri-cultura camponesa a partir dos princípios da agroecologia.

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Objetivos específicos4 Trabalhar as novas relações de gênero na fa-

mília, no trabalho, na produção e na relação com o ambiente;

4 Oportunizar as mulheres camponesas o aperfeiçoamento político e técnico na recu-peração, produção, uso de sementes crioulas de hortaliças, a partir das práticas acumula-das pelas mulheres;

4 Incentivar as mulheres camponesas para a produção de alimentos em sua unidade de produção ou no seu grupo, bem como, recu-perar sementes crioulas de hortaliças, culti-vando o sentimento de novos valores a serem compartilhados com as futuras gerações;

4 Denunciar o modelo capitalista transna-cional e alertar sobre as conseqüências dos alimentos transgênicos e as tecnologias que destroem a vida;

4 Elevar a auto-estima e valorização da profis-são de Trabalhadora Rural capaz de produzir, criar e recriar participando ativamente na pro-dução e reprodução da vida;

4 Criar as condições para que as mulheres cam-ponesas participem das oficinas e sejam agen-tes de um novo projeto de agricultura campo-nesa a partir dos princípios de agroecologia.

As práticas de recuperação, produção e melhoramento de sementes crioulas de horta-liças destinam-se às mulheres camponesas dos grupos de base do MMC/SC, que desejam estu-dar e desenvolver as experiências em suas uni-dades de produção e grupos.

Esta atividade desenvolve-se através de oficinas, observando os princípios da educação popular: “quem faz já sabe. Quem pensa sobre o que faz, faz melhor” e que a gente “aprende fazer, fazendo”. Assim o estudo parte do conheci-mento de cada mulher presente, que com a aju-da da monitora o assunto é aprofundado, avalia-do buscando agregar outros elementos políticos e técnicos, contribuindo para que cada mulher se aproprie do saber.

Num primeiro momento foram realizados encontros de sensibilização apresentando a pro-posta do programa e também construído alguns critérios para a participação, pois não se tratava de um curso apenas, mas de uma opção de vida e de projeto de sociedade e para isso necessitava de disposição para realizar a mudança, na forma de trabalho e na produção. As coordenadoras do MMC no município fazem à inscrição das mulhe-res camponesas que desejam iniciar as experiên-cias observando os critérios de participação:

• Desejo inicial de continuidade e persistência,

• Desenvolver o espírito de troca, partilha, entre-ajuda e compromisso com a vida.

• Vontade de lutar para mudar o modelo atu-al e construir um projeto popular de agricul-tura agroecológica e de sociedade

• Assumir o compromisso de praticar o que aprende na unidade de produção e grupo;

• Produzir sementes para compartilhar.

As oficinas são desenvolvidas com acom-panhamento da coordenação e monitoras do Movimento de Mulheres Camponesas e de técnicas(os) que prestam assessoria e aprofun-damento teórico e político.

Após a realização de três oficinas re-gionais, curso e seminários com as monito-ras, realizou-se um seminário estadual com a participação das mulheres, de técnicas(os) e a coordenação do MMC/SC para avaliação, apro-fundamento e sugestões para a continuidade e agenda de trabalho.

Filhas da terra alimentando sonhos de libertação

No dia 8 de março de 2003, foi realiza-do o seminário estadual em Curitibanos/SC, com a presença de 800 mulheres, represen-tando dos grupos, onde apresentaram suas experiências, prepararam sementes para fa-zer a partilha: cenoura, tomate, alface, cebo-la, pepino, radiche, feijão-de-vagem, melão, melancia, pimentão, orégano, salsa, batati-nha, chicória, rúcula, mostarda, quiabo, chu-chu, couve, alho, morango, gila, melancia de porco, ervilha, gengibre, fava e batata cará.

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Também criaram o desenho, ou seja, o logotipo das experiências, músicas, poe-sias, entre outras produções. O lema escolhi-do foi: filhas da terra produzindo sementes crioulas de hortaliças, alimentando sonhos de libertação.

No seminário foi deliberada a continui-dade, ampliação e qualificação das práticas de recuperação de sementes crioulas de hor-taliças nos municípios para facilitar e ampliar a participação das mulheres. Constatou-se o avanço no processo, mas o desafio está em garantir um grupo de mulheres que priorize a recuperação, produção e melhoramento de sementes crioulas de hortaliças constituindo-se um grupo referência neste trabalho.

Para as oficinas de sementes temos um grupo de monitoras populares com conhe-cimento técnico, político-pedagógico que

acompanham os 70 grupos com diferentes experiências. Neste espaço, diferentes temá-ticas são trabalhadas, entre elas: desenvolvi-mento da agricultura, formação e manejo do solo, modelo químico de agricultura e suas conseqüências para a saúde, agroecologia, desenvolvimento sustentável, recuperação, produção, colheita, secagem e armazena-mento de sementes crioulas, reeducação ali-mentar, soberania alimentar.

É necessário elevar o nível de consci-ência de que sem uma ambiente saudável, livre os agrotóxicos, transgênicos, ou qual-quer outro poluente, é impossível produzir sementes crioulas. Este é um desafio local, mas também global, pois para ter saúde é preciso entender a relação da produção até o preparo dos alimentos para as refeições. Recuperar as sementes é preservar a vida!

5.3. Alimentação saudável: necessidade vital

Falar sobre alimentação é falar sobre uma necessidade vital de todo ser humano, animal e vegetal. A saúde depende do consumo de alimentos saudáveis, bem como, das relações sociais de igualdade no local de trabalho, na família, na comunidade, enfim do ambiente por onde vivemos.

O alimento com seus nutrientes: pro-teínas, hidratos de carbono, lipídios, vitami-nas e sais minerais, que depois de digerido é metabolizado33 e transportado, através do sangue para as células e tecidos sustentando e dando energia vital ao organismo. O que não serve (bagaço) é eliminado através das fezes, urina, suor e respiração.

Nos últimos 20, 30 anos aconteceram muitas mudanças no modo de vida alimen-tar ocorrida a partir da imposição do mode-lo químico agrícola. É comum observar em muitas famílias camponesas a troca do açú-

car mascavo pelo açúcar branco; do limão ou da laranja pelo refrigerante; do plantio de produtos do auto-sustento pela aquisição no super mercado..., enfim os alimentos indus-trializados, fabricados com conservantes, co-rantes, aditivos químicos, entre outros foram tomando conta do cotidiano.

É neste sentido que não dá para pensar em uma alimentação saudável sem que pen-semos no processo de produção e de prepa-ração. Nós do MMC temos claro que a saúde esta intimamente ligada com a produção e por isso, lutamos por um projeto de agricul-tura baseado na agroecologia34. Há muito tempo o médico grego Hipócrates que viveu entre o ano 460 a 377 antes de Cristo ensinou: "Que o teu alimento seja o teu medicamento e que o teu medicamento seja o teu alimen-to". E disse também: "Deixa de lado a droga, se puderes curar o paciente com alimento". É no alimento que encontramos a saúde e a cura do corpo. Diante da importância da alimentação para a saúde, se faz necessário

33 Metabolismo (do grego metabolismo, significa “mudança”, troca) é o conjunto de transformações que as sub-stancias químicas sofrem no interior dos organismos vivos. O termo “metabolismo celular” é usado em refer-ência ao conjunto de todas as reações químicas que ocorrem nas células. Estas reações são responsáveis pelos processos de síntese e degradação dos nutrientes na célula e constituem a base da vida, permitindo o crescimento e reprodução das células, mantendo as suas estruturas e adequando respostas aos seus ambientes.

34 Referimo-nos à agroecologia como a forma de produção que traz em si uma resistência ao modelo de agricultura química moderna, permeada de participação, descentralização, diversidade, tendo com um dos pressupostos o conhecimento das mulheres camponesas e dos agricultores.

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perguntar-se: Como é preparado o solo para o plantio das sementes? Quem produziu? De onde vem? Que qualidade tem as sementes, mudas..., que são utilizadas para o plantio? De modo geral há diferenças a serem consi-deradas no objetivo da agricultura química e da agricultura agroecológica?

O feijão, arroz, milho, café, pão, batati-nha, alface, laranja, banana enfim, produzida com adubos, fertilizantes, agrotóxicos terá seus nutrientes alterados, bem diferentes daquela produzida de forma agroecológica. Desta forma uma alimentação saudável de-pende da qualidade dos produtos, ou seja, como são cultivados. Não há dúvidas de que, a forma de fazer agricultura interfere direta-mente na alimentação.

As transnacionais através da propagan-da influenciam diretamente na organização das pequenas unidades de produção campo-nesa, alterando o modo de viver, de trabalhar e organizar a lavoura, a casa, a ornamenta-ção e jeito de fazer a alimentação. Em outras palavras a industrialização da agricultura tem provocado mudanças na maneira de Ser e de Pensar, condicionando as pessoas à adesão ao mercado, constituindo-se na maioria das vezes defensoras do modelo de agricultura capitalista.

Aos poucos a reorganização da cadeia agroalimentar, proposta pelo agronegócio passa a ser incorporada na vida cotidiana de quem vive no campo e as conseqüências são irreparáveis a saúde humana, animal e am-biental. O alimento deixa de ser um bem co-mum, passa a ser uma mercadoria, ter dono e seu principal objetivo é o lucro. À medida que a humanidade se envolve com modelo de agricultura química, cresce o ritmo de elimi-nação das espécies. Segundo ZANBERLAM, J; FRONCHETI, A. (1994), de 1500 a 1850 se ex-tinguia uma espécie de vida a cada 10 anos; de 1850 a 1950 era extinta uma espécie por ano, de 1950 a 1990 foram extintas 10 espé-cies por ano. As estimativas eram de que até 2005, seria extinta uma espécie por hora.

Os impactos do modelo de agricultura química implantada através do programa da Revolução Verde são evidentes. Em se tratan-do de alimentação precisa considerar que ao eliminar o número de espécies, conseqüen-temente a humanidade reduz as variedades em seu cardápio diário. Isto empobrece a base alimentar trazendo graves prejuízos à saúde. Conforme estudos35 realizados apro-ximadamente 150 anos atrás, á humanidade se alimentava utilizando em torno de três mil espécies de vegetais. 90% desta produção eram consumidas pelas populações locais.

35 MACHADO, Luiz Carlos Pinheiro, FILHO, Luiz Carlos Pinheiro Machado, RIBAS, Clarinton D. E. C. Sementes, Direito natural dos Povos. Org. CARVALHO, Horacio Martins de. Sementes Patrimônio dão Povo a serviço da Humanidade. Ed. Expressão Popular, 1. edição, São Paulo – SP, 2003, p. 246.

36 Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre - milho37 http://www2.correioweb.com.br/hotsites/alimentos/abobora/alimentos.htm38 Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre – mandioca

O milho36 tem suas origens nos planaltos do México, em solo centro-americano cul-tivado há aproximadamente 7000 anos pelos povos astecas. O milho é especial-mente rico em carboidratos, ou seja, açú-cares, por isso é um alimento energético. Possui também algumas vitaminas como B1, a B2, vitamina E o ácido pantatênico, além de alguns minerais, principalmente o fósforo e o potássio.

A abóbora37 tem muitas variedades. É uma cultura muito difundida no Brasil. Originá-ria da América era à base da alimentação dos povos Asteca, Inca e Maia. Pertence à família Cucurbitácea, a mesma da me-

lancia, do melão, do chuchu e do pepino. A abóbora é um fruto rico em vitamina A. Também fornece vitaminas do complexo B, cálcio e fósforo. Tem poucas calorias e é de fácil digestão.

A mandioca38 é um arbusto que, teria tido sua origem mais remota no oeste do Bra-sil (sudoeste da Amazônia) e que, antes da chegada dos europeus à América, já estaria disseminado como cultivo alimen-tar até o México. No Brasil possui muitos sinônimos, diferentes em cada região, tais como: pau-farinha, macaxeira e outros. Foi cultivada por várias nações indígenas que consumiam suas raízes, tendo sido

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exportada para outros pontos do planeta, principalmente para a África onde cons-titui em muitos casos, a base da dieta alimentar. A mandioca é excelente fonte de carboidratos, cálcio e fósforo. Possui também uma boa quantidade de vitami-na C. A folha de mandioca é rica em pro-teína, vitamina A, ferro, cálcio, vitamina C e fósforo. Mas precisa de cuidado no preparo das folhas para não correr risco à saúde, pois conforme o preparo pode intoxicar.

O Feijão. São muitas as variedades originá-rias da África, do Antigo Egito e da Grécia. Os povos cultivavam o feijão como símbo-lo de resistência e vida. No feijão encon-tramos: calorias, glicídios, proteínas, lipí-dios, vitaminas B1, B2, B3, cálcio, fósforo, ferro, sódio, potássio.

O abacate é conhecido mais de 500 varie-dades, de três origens diferentes: a gua-temalteca, a antilhana e a mexicana. Uma fruta rica em vitamina A, acido fólico, e potássio, o abacate tem mais proteína que qualquer outra fruta, cerca de 2g para cada porção de 110g. Possui, ainda, quan-tidades úteis de ferro, magnésio e vitami-nas C, E e B6.

O girassol39 é uma planta originária das Américas domesticadas por volta do ano mil antes de Cristo pelos povos Incas. As sementes de girassol são ricas em Vitami-nas E, D e complexo B, e o óleo de semen-te de girassol é bastante popular.

A batata-doce40 é a quarta hortaliça mais consumida no Brasil. É uma cultura tipica-mente tropical e subtropical, rústica, de fácil manutenção, boa resistência contra a seca e ampla adaptação. Originária das Américas Central e do Sul , sendo encon-trada desde a Península de Yucatam, no México, até a Colômbia. Tem mais de 1000 espécies. Cultivada pelos povos Maias, Incas e Astecas. A batata-doce é rica em carboidratos, vitamina A, B1 e B5, e sais minerais como Cálcio, Fósforo e Ferro.

A batata41 é rica em carboidratos. Contêm sais minerais, vitamina C e, em pequenas quantidades, vitaminas do Complexo B para não perder os nutrientes lava-se as batatas para retirar a terra, sem descascá-las e nem cortá-las leva-se ao fogo com água suficiente para cobri-las, até cozi-nharem completamente. A batata crua ou o suco em jejum combate dores e gastrite estômacal e enfermidades do intestino.

Se vamos perguntar para nossas avós como era preparado o café da manhã, elas logo vão lembrar do cuscuz, tapioca, broa de milho, pão de queijo, polenta e outros. Hoje percebemos que esses alimentos foram substituímos pelo pão de trigo42, biscoitos, massas, margarina e outros. Com isso nosso corpo esta mais saudável? Qual é a razão de tanta mudança em pouco tempo? Se parar-mos para analisar, perceberemos que estas mudanças são planejadas, pensadas e orga-nizadas pelos poderosos, donos das grandes empresas multinacionais que controlam a produção agrícola, industrial e o consumo.

Como vimos inicialmente, muitas famílias camponesas enganadas pela propaganda das

indústrias começaram a buscar no supermer-cado e levar para sua mesa o azeite, o ki-suco, a mortadela, as bolachas, salsichas, e outros embutidos, enlatados. Aos poucos deixam de ensinar as filhas e filhos como se faz a mantei-ga, o queijo, a chimia, o salame, o suco, como plantar o feijão, arroz mandioca, amendoim... e criar pequenos animais. De vez em quando nos deparamos com camponesas(es) que preferem comprar o repolho, batatinha, tomate, arroz e outros, sob o argumento de que não tem tem-po ou não produz. De fato, muitas vezes não produz por causa do esgotamento do solo, do uso exagerado dos agrotóxicos, das estiagens... isso é uma grave constatação que implica na continuidade da vida das futuras gerações e que nos desafia a uma ação afirmativa.

39 http://pt.wikipedia.org/wiki/Girassol40 http://www.cnph.embrapa.br/cultivares/bat-doce.htm41 http://www.vitaminasecia.hpg.ig.com.br/batataorientacao.htm42 GIOVANNI, Julia Di Agricultura na Sociedade de Mercado. As mulheres dizem não á tirania do livre mer-

cado. Sof. 2006 : p. 24).

53Esta prática que aparentemente

é cômoda e fácil adquirir no supermer-cado produtos que até pouco tempo cultivávamos na horta, nos leva além de uma vida menos saudável, mas so-bretudo a perda da autonomia. Muitas camponesas estão perdendo o costu-me, a técnica de produzir, conservar e garantir os alimentos.

Esta cultura camponesa herança milenar de nossos ancestrais vem sendo substituída pelo processo de globaliza-ção e internacionalização das mercado-rias padronizando as ofertas de gêneros alimentícios em todos os supermerca-dos de norte a sul do país. 70% dos pro-dutos industrializados são derivados de cinco culturas: milho, trigo, arroz, soja e batatinha. E quinze espécies respondem por 90% dos alimentos vegetais43 consu-mido pela humanidade.

A padronização da alimentação afeta os processos vitais do ser humano, não respeita a cultura, idade, origem, variedades, e muito menos o clima, solo,...provoca a falta de re-sistência, fraquezas, doenças, desequilíbrios e até mortes, pois se trata de um processo de extinção das espécies e variedades importan-tes para a formação de todos os órgãos do cor-po, bem como, garantir as resistências contra vírus e doenças. É um mecanismo de produ-ção perigoso que ameaça a continuidade da vida do planeta inclusive da espécie humana. A preservação do solo, a diversidade de espé-cies é vital para o equilíbrio e vida saudável.

Estudos recentes demonstraram que na produção agroecológica num

solo rico em matéria orgânica as plantas crescem de forma natural produzindo alimentos com alto teor de vitaminas e minerais. Desta forma entendemos

a inter-relação que tem entre o solo – produção – alimentação – saúde.

Em uma área de monocultivo, ou seja, plan-tio sucessivo de uma única cultura retira do solo sempre o mesmo nutriente, provocando o esgo-tamento e enfraquecimento do solo e diminuição das espécies. Por exemplo: em uma área de terra onde se planta repetidas vezes milho, por conse-qüência vai faltar nitrogênio no solo. Isso se agra-va com as freqüentes aplicações de fertilizantes, agrotóxicos e semente híbrida ou transgênicas.

Este processo desequilibra o solo causando uma espécie de “ferida” trazendo conse-qüências e doenças incontroláveis como: a ferrugem na soja, a sigatoka negra na banana, cancro cítrico na laranja, além de nascer plantas de forma descontrola-da prejudicando a produção. Se isso não bastasse às conseqüências aparecem também nos animais, como: a gripe aviá-ria nas aves, a vaca louca e outros.

Voltamos afirmar que a monocultu-ra produz alimentos pobres em nutrien-tes. Na tabela ao lado observe a diferença entre alguns alimentos de produção agro-ecológica comparando com os alimen-tos produzidos de forma convencional,

43 MACHADO, Luiz Carlos Pinheiro, FILHO, Luiz Carlos Pinheiro Machado, RIBAS, Clarinton D. E. C. Sementes, Direito natural dos Povos. Org. CARVALHO, Horacio Martins de. Sementes Patrimônio dão Povo a serviço da Humanidade. Ed. Expressão Popular, 1. edição, São Paulo – SP, 2003, p. 246.

Benefícios nutritivos de verduras biológicas

FONTE: Estudio Realizados por la Rutgers University (Miliequivalentes de minerales por 100 gramas) Fonte: Boletin de la asociacion VIDA SANA, verno del 2002. pg. 10-12. Cientificamente lãs alimentos biológicos son más seguros y mas nutritivos!

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quer dizer usando agrotóxicos e produtos químicos.

O modelo de agricultura química além de destruir as espécies de vegetais e animais os alimentos são de baixo valor nutritivo. É comum ouvir mães se queixar que seus filhos(as) têm deficiência de ferro. Confor-me a tabela, vemos que o feijão produzido a partir da agricultura química/convencio-nal quase não tem ferro. Daí a importância de analisar a qualidade da alimentação que ingerimos e, ao mesmo tempo, de produzir alimentos agroecológicos.

As inúmeras experiências agroecológica que vem sendo desenvolvidas têm mostrado uma grande capacidade na recuperação das variedades de vegetais animais, aumentado biodiversidade, melhorando a qualidade nutricional e a saúde.

Mais do que nunca é necessário assu-mir a Campanha da alimentação saudável. Ela nos ajuda a perceber que somos parte do ambiente e precisamos dar atenção à quali-dade dos alimentos, da água, do sol, do ar, ao mesmo tempo, cuidar do ambiente de trabalho, descanso, higiene, repouso. A ali-mentação também influencia na defesa e re-sistência do organismo, no comportamento, disposição física e sexual, humor, memória, inteligência, mente, enfim no corpo todo e nas relações com as pessoas e o ambiente.

As mulheres camponesas organizadas em movimento recuperam a luta milenar com ações de proteção, preservação e cui-dado das sementes, das florestas, das plan-tas medicinais e ornamentais, da mata, dos pequenos animais, entre outros. Elas ensi-nam e ao mesmo tempo, detém a capacida-de de garantir a biodiversidade, a soberania alimentar respeitando e integrando as múl-tiplas formas de vida. É neste contexto his-tórico que, as mulheres camponesas organi-zadas no movimento autônomo incorporam em suas lutas, a perspectiva de construção de um projeto popular de agricultura a partir dos princípios da agroecologia, capaz de ga-rantir a soberania alimentar.

A conservação do solo, o cuidado com a produção de alimentos saudável, combinada com a luta

pela transformação da sociedade é fundamental para que se tenha um corpo belo, forte,

capaz de gerar VIDA!

A conservação do solo, o cuidado com a produção de alimentos saudável, combinada com a luta

pela transformação da sociedade é fundamental para que se tenha um corpo belo, forte,

capaz de gerar VIDA!

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