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Introduo ao filosofarA-filosofia um ramo do conhecimento que tem a fama de ser para grande parte das pessoas. tornaram-se to bastante abstrato e de difcil compreenso De fato, nos ltimos cem anos os textos filosficos entend-Ios. tcnicos e complexos que, muitas vezes, apenas especialistas conseguem Mas nem sempre foi assim, nem precisa s-lo. Veremos, no nenhum bicho de sete cabeas e nesta unidade, que a filosofia

que filosofar algo no apenas muito til, mas tambm prazeroso. Seus objetos bsicos de estudo so esses temas to comuns e fundamentais da existncia humana, como a vida, a morte, a - o filosofar - pode (de uma felicidade, a liberdade, o bem e o mal, a verdade e a mentira, o amor, o desejo, o poder etc. Por isso a atividade filosfica ser algo to simples como pensar a vida e viver o pensamento maneira profunda e radical, claro), segundo o filsofo francs contemporneo interpretaes Andr Comte-Sponville. para penetrar nesse mundo fascinante das que o ser humano formulou sobre si mesmo e sobre o Prepare-se, portanto,

universo e para dar os passos iniciais na experincia filosfica.

CAPTULO

A felicidadeA atividade filosfica uma "experincia" do pensamento que tem suas peculiaridades. Trata-se de uma maneira um pouco diferente de pensar sobre as coisas, que foge rotina, ao automtico. a todos. Voc provavelmente, em algum Mesmo assim, acessvel

momento, j deu os primeiros passos na experincia filosfica e nem se deu conta disso. Quer saber como? o que veremos em seguida. Comecemos com uma historieta que

aborda um tema muito sensvel para todos ns e"bastante importante filosofia - a felicidade. para a

Questes filosficasO que felicidade? Quais so as fontes da felicidade? Como viver bem? Como devo agir para ser feliz?

Conceitos-chaveexperincia filosfica, filosofar, dilogo, estranhamento, questionamento, felicidade, fontes da felicidade, sabedoria, tica, finalidade ltima

o caminho para a felicidade est em voc mesmo (1999) - Carl W. Rhrig.

Situao filosficaConta-se a seguinte experincia, vivida por um grande mdico paulista, muitos anos atrs. Durante o perodo em que trabalhou entre os ndios xavantes, no Mato Grosso, ele fez amizade com um dos nativos, Rupawe, que o acompanhava frequentemente e lhe contava diversas histrias de sua tribo. Numa trrida tarde dessa regio central do Brasil, os dois decidiram refrescar-se no rio das Garas. Nadaram durante quase uma hora e depois se sentaram beira das guas para descansar e apreciar a bela paisagem. A agradvel sensao da brisa tocando seus corpos pareceu despertar no mdico pensamentos mais sutis, resultando neste curto dilogo: - Voc feliz, Rupawe? - Sim - respondeu prontamente o nativo. - E voc sabe o que felicidade? - No.

Analisando a situao Primeiramente, analisemos juntos essa anedota ou historieta, que constitui nossa primeira situao filosfica. Isso nos ajudar a percorrer os distintos passos de uma experincia filosfica. (E v se acostumando com esse procedimento, pois o filosofar comea, de modo geral, com uma anlise.)

respirando ar puro e nadar em um rio no poludo, cercado de bela e silvestre paisagem. Essa experincia fez com que o mdico refletisse sobre sua vida e a de Rupawe? O dilogo nos faz crer que sim, que ele comeou a pensar sobre a diferena entre sua vida e a do nativo. Isso se pode deduzir das perguntas que fez, as quais refletem preocupaes como: "Trariam felicidade modos de vida to distintos?", "Seria Rupawe feliz?"; "Serei eu feliz?", "Se ambos somos felizes vivendo de maneiras to distintas, o que toma uma vida feliz?" e assim por diante. Qual a principal questo filosfica expressa nessa conversao? Podemos concluir do dilogo que a questo que envolve o conceito de felicidade, isto , "o que felicidade?". A narrativa apresenta alguma resposta para essa questo? No, ao menos de forma explcita. A narrativa se interrompe com a resposta negativa do indgena questo. Voc concorda com a anlise acima? Reflita bem. Todo texto pode ser analisado de diferentes maneiras. Tudo depende de seus objetivos ao realizar uma anlise. Voc proporia alguma outra pergunta para completar essa anlise? Voc responderia a alguma questo de maneira distinta?

Anlise - diviso do todo em partes, para examinar cada uma delas e, depois, poder entender e explicar o todo composto dessas partes (sntese).

De onde era o mdico? De So Paulo, uma grande cidade. Ele se encontrava em seu meio social e cultural, de todos os dias? No. A partir da narrativa apresentada, podemos concluir que o mdico passava por uma experincia diferente, deslocada de seu cotidiano, porque: a) estava trabalhando em um outro espao fsico-geogrfico, estranho para ele (o Mato Grosso); b) estava convivendo com uma comunidade indgena, ou seja, com um grupo humano que possua uma cultura distinta da sua; e c) estava desenvolvendo atividades que no poderia realizar em uma metrpole como So Paulo, entre elas passear

Unidade 1 Introduo ao filosofar

112processo de questionamento (interno e externo) sobre o tema que lhe chamou a ateno. Foi o que expressou o mdico, em suas perguntas ao nativo: a primeira, com enfoque particular C'voc feliz?"), cuja resposta corresponde apenas a esse indivduo; a segunda, de enfoque universal ("o que felicidade?"), cuja resposta deveria valer para todos os seres humanos. Certamente voc j passou, em algum momento, por uma experincia parecida, aps algum acontecimento marcante em sua vida. Pode ter sido durante uma viagem ao estrangeiro, na morte de um ser querido, em uma grande decepo amorosa, ou em muitas outras circunstncias distintas. E a comeou a se questionar, mesmo que superficial e brevemente, sobre sua vida e a existncia em geral. Pois, ento, voc estava tendo uma experincia filosfica, ainda que rudimentar. Estava dando os primeiros passos no filosofar.

FELICIDADE O bem que todos desejam8:--

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Domnio sobre pensamentos e paixesCom base nesse raciocnio, os estoicos procuraram orientar a conduta das pessoas estabelecendo a seguinte distino entre as coisas: boas - so aquelas que dependem de ns e que devemos querer e buscar durante a vida para sermos felizes. Trata-se das virtudes, como ser prudente, justo, corajoso; ms - so as coisas que dependem de ns mas que, ao contrrio, devemos evitar durante a vida se queremos ser felizes. Trata-se dos vcios e das paixes, como ser imprudente, injusto, covarde, guloso, raivoso; indiferentes - so as que no dependem de ns e com as quais no devemos nos preocupar, sob pena de gerar infelicidade. o caso da morte, do poder, da sade ou doena, da riqueza ou pobreza, entre outras.

moes equivocadas sobre os acontecimentos e o consequente despertar de paixes (isto , de uma coisa m). Por esse raciocnio, podemos concluir que a paixo o resultado do uso inadequado da razo, enquanto a virtude consiste na ao que se desenvolve conforme a razo (ou seja, conforme a natureza, pois a natureza, como vimos, logos, razo). Assim, dominar as paixes o objetivo principal da tica estoica. Para isso, o esforo em controlar os pensamentos ser fundamental, pois o pensamento equivocado que gera as condies para o aflorar das paixes. Veja o conselho de um pensador estoico grego, Epiteto (55-135), que foi escravo em Roma durante a maior parte de sua vida:Lembra-te que no nem aquele que te diz injrias, nem aquele que te bate, quem te ultraja, mas sim a opinio que tens deles, e que te faz olh-Ios como gente por quem s ultrajado. Quando algum te magoa ou te irrita, saiba que no aquele homem que te irrita, mas sim tua opinio. Esfora-te, portanto, acima de tudo, para no te deixar levar por tua imaginao. (EplTETo, Manuel. Citado em BOSCH, A filosofia e a felicidade, p. 103).

A infelicidade ocorre, portanto, segundo os estoicos, quando no conduzimos corretamente nossos pensamentos e no evitamos as chamadas coisas ms. Ou quando nos preocupamos com as tais coisas indiferentes (algo muito frequente), o que conduz formulao de juzos errneos ou opi-

Unidade 1 Introduo ao filosofar

124ser tomada como um acontecimento bom, no sentido de que faz parte da ordem universal. Por isso, para o estoicismo, uma pessoa no deve revoltar-se por ter nascido com uma deficincia fsica, ou porque feia, pobre ou escrava. Isso no depende dela. Deve' no apenas aceitar sua condio, mas tambm querer o que , o que tem ou o que vive. Deve, enfim, ter amor por seu destino (amor jati) , que faz parte da totalidade. Somente ento ela poder ser feliz.CONEXES

O sbio, portanto, seria aquele que pensa corretamente, de acordo com as exigncias da razo universal (ou seja, conforme a natureza), controla seus pensamentos e evita as iluses das paixes. Desse modo, atinge a apatia (eliminao de paixes) e a ataraxia (imperturbabilidade da alma). E quem imperturbvel no tem tristeza, e sem tristeza se feliz.

Amor fatiO domnio sobre os pensamentos e as paixes seria, portanto, a via negativa para atingir a felicidade. Diz-se "negativa" porque se d pela negao das paixes, pela negao das causas da infelicidade. Mas h tambm um percurso positivo, o do amor fati, expresso latina que significa "amor aos fatos, aos acontecimentos, ao prprio destino". Vejamos. Se tudo animado pelos princpios raconais que governam o universo - os quais visam a ordem e o bem da totalidade -, tudo o que acontece e no depende de mim necessrio e bom. o caso, por exemplo, da morte de um ente querido, que deve

8. Hoje, na cultura ocidental contempornea, inaceitvel a ideia estoica de que uma pessoa deve amar sua condio miservel ou de escravo. Portanto:

a) como voc explicaria, em termos histricos, essa viso dos antigos estoicos? b) fazendo uso dos prprios conceitos do pensamento estoico, voc seria capaz de descobrir em que eles "erraram", mas validando o restante de suas concepes?

Parbola do velho do forte "Um velho vivia com seu filho em um forte abandonado, no alto de um monte, e um dia perdeu um cavalo. Os vizinhos vieram-lhe expressar seu pesar por esse infortnio, e o velho perguntou: - Como sabeis que m sorte? Poucos dias mais tarde voltou seu cavalo com um bando de cavalos selvagens, e vieram os vizinhos felicit-10 por sua boa sorte, e o velho respondeu: - Como sabeis que boa sorte? Com tantas montarias a seu alcance, comeou o filho a cavalg-Ias, e um dia quebrou uma perna. Vieram os vizinhos apresentar-Ihes condolncias, e o velho respondeu: - Como sabeis que m sorte? No ano seguinte houve uma guerra, e como o filho do velho era agora invlido, no teve de ir para a frente."LIN YUTANG,

A importncia de viver, p. 154.

CONEXES

Taoistadoutrina

- relativo mstico-filos-

9. A autoria dessa parbola atribuda ao filsofo chins Lieh-ts (e. 300 a.Cj. que pertencia escola filosfica taoista. Podemos perceber que sua mensagem guarda certa semelhana com aspectos da viso estoica a respeito dos acontecimentos e de como se conduz a pessoa sbia. Voc concorda com essa afirmao? Justifique.

fica chinesa formulada por Lao-Ts no sculo VI a.C, que enfatiza a integrao do ser humano realidade csmica primordial.

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Captulo 1 A felicidade

Anlise e entendimentoConhecimento e bondade (Plato) Prazer, com moderao (Epicuro) 11. Como Epicuro concebia a realidade? Para ele tudo matria? Como ~ua concepo da realidade determina seu entendimento do que ser feliz? 12. Em que sentido se afirma que a concepo de felicidade de Epicuro contrapem-se de Aristteles e, especialmente, de Plato?

5. Como Plato concebia a realidade? Para eletudo era matria?

6. Por que a tese de Plato sobre a alma humana to importante para entender sua doutrina a respeito da felicidade?

7. Explique a frmula conhecimentoplatnico. Vidas terica e prtica (Aristteles)

=

bondade

= felicidade, tendo como referncia o sistema

13. Em que aspectos o caminho epicurista da felicidade parece dar uma guinada intelectualista ou racionalista? Amor ao destino (estoicismo) 14. Como o estoico concebe a realidade?

8. Explique o conceito de virtude em Aristtelese crie exemplos novos.

9. Para Aristteles, a felicidade uma combinao de vida dedicada contemplao terica, aliada prtica das outras virtudes humanas e sustentada pelo bem-estar material e social. Analise essa afirmao. 10. Como se vincula a metfora "uma andorinha no faz vero" ao caminho aristotlico da felicidade?

15. Qual a importncia da cosmologia estoicana determinao de sua tica sobre a felicidade? Tudo matria para o estoico? 16. Explique o papel da vontade e do controle sobre os pensamentos na tica estoica.

17. Como a felicidade que se alcana pela via do

omor toti?

Conversa filosfica3. Experincia filosfica Conhecer o que pensaram filsofos de outras pocas e pensar com eles pode ser algo interessante e fecundo para voc. Reflita sobre essa afirmao, aps esse primeiro contato com o pensamento dos filsofos da Antiguidade. Voc descobriu novas perspectivas sobre a vida? Gostou mais de algum caminho que de outros? Vivenciou uma experincia filosfica? Exponha suas percepes e razes. 4. Proposta platnica Plato afirmou: "l ... 1 ao fundarmos a cidade, no tnhamos em vista tornar uma nica classe eminentemente feliz, mas, tanto quanto possvel, toda a cidade". Voc acredita que a organizao social que ele props favorecia o cumprimento de seu desejo de trazer a mxima felicidade para todos? Por qu? Debata com os/as colegas, tendo em mente os seguintes passos: a) primeiro, tenha bem claro qual era essa organizao, nos termos propostos pelo filsofo; b) depois, procure elementos implcitos a essa organizao, no to visveis, como o contexto histrico e biogrfico do filsofo; c) por ltimo, de maneira fundamentada, expresse sua opinio a respeito da questo proposta. 5. Crenas religiosas Discuta com os colegas a posio de Epicuro em relao s crenas religiosas e s supersties. Em que se fundamenta essa posio? Voc concorda com ela? Em um pas com tanta religiosidade como o nosso, voc entende que as religies contribuem mais para aumentar ou diminuir as angstias e infelicidade de muitas pessoas? Fundamente suas respostas. 6. Caminho ideal Qual dos caminhos propostos pelos filsofos estudados voc considera o mais til para que uma pessoa construa uma vida feliz em nossos dias? Por qu? Ou o caminho ideal, para voc, seria uma combinao de elementos dessas doutrinas? Quais seriam esses elementos? Exponha suas reflexes aos/s colegas, escute o que dizem, argumente e contra-argumente. Enfim, troque ideias de maneira inteligente e respeitosa, como em uma conversa filosfica.

Unidade 1 Introduo ao filosofar

126felicidade e do que causa sofrimento, para uma reflexo posterior. A maioria dos problemas com os quais se preocuparam esses filsofos que estudamos ainda ecoa nos consultrios de psicologia, onde especialistas procuram aliviar o sofrimento de pessoas de todas as idades e apoi-Ias para que construam uma vida mais feliz. E boa parte desses problemas ainda merece ateno especial como temas ticos e sociais importantes (tanto assim, que voltaremos a eles ao longo do livro).

COMO ANDA NOSSA FELICIDADE'?

O que dizem a histria e a etencra li

No breve percurso que fizemos por essas concepes de vida feliz, voc pde aprender um pouco mais sobre como se filosofa. E teve a oportunidade de reunir algumas ideias a respeito daquilo que traz

Estudo de jovem para a obra Sonho de felicidade (1 81 9) Pierre-Pau I Prud' hon.

Felicidade na histriaNos sculos seguintes Antiguidade, diversos pensadores voltaram s doutrinas gregas, reformulando-as nos termos de sua poca e de sua perspectiva particular. Por isso costuma-se dizer que a filosofia uma conversao que nunca acaba. Muda o mundo, modificam-se as pessoas. Surgem novas percepes, novos valores, novas necessidades. Isso quer dizer que, quando filosofamos, devemos tambm considerar nosso objeto de estudo (neste caso, a felicidade) no tempo e no espao, isto , na histria. Devemos sempre nos perguntar: o que permaneceu e o que mudou com o passar do tempo e as transformaes sociais e culturais de cada poca?

Segundo alguns estudiosos, trs ideais ou valores foram ganhando importncia ao longo da histria nas sociedades ocidentais e so, hoje, considerados elementos fundamentais da felicidade individual e coletiva: amor ao prximo - com o surgimento do cristianismo, o amor, que havia sido em parte relegado a um segundo plano pelos gregos, ganhou o estatuto ou condio de mandamento: amar a Deus sobre todas as coisas e amar o prximo como a si mesmo (cf. MATEUS, 34 a 40). Disseminou-se ento, 22, progressivamente, a noo de igualdade entre todos os seres humanos, pois o Deus cristo os teria criado a todos para reinarem sobre a Terra e os amaria igualmente, impondo o respeito por toda a humanidade. Com mais amor e menos egosmo, as pessoas deveriam se sentir mais felizes;

271 liberdade - no perodo do Iluminismo (sculo XVIII), ganhou especial relevncia o tema da liberdade em seus diversos sentidos: a liberdade de ser (diferente de ou contra a natureza), a liberdade de pensar por si prprio (liberdade de conscincia), a liberdade de querer e agir (liberdade poltica e autonomia). Desde ento, tornou-se impossvel pensar que uma pessoa possa ser feliz sem ser livre; bem comum - a ideia de felicidade como bem comum (isto , para toda a sociedade) j existia, conforme vimos, em Plato. A felicidade no pode ser apenas minha; tem de ser de todos. Mas a partir do Ilurninismo - e da assimilao da noo de amor ao prximo pelas sociedades fundadas em valores cristos - que esse ideal passou a ser amplamente defendido. Tanto assim que se tornou um dos princpios fundamentais do mundo ocidental contemporneo, junto com a liberdade, como se expressa no segundo pargrafo da Declarao de Independncia dos Estados Unidos: "Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens so criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienveis, que entre estes esto a vida, a liberdade e a procura da felicidade". (Disponvel em: -chttp.z/memoriavirtual. net/tag/washington/. Acesso em: 13 dez. 2007).

Captulo

1 A felicidade

Como o ser humano multidimensional, preciso aborda-lo a partir das diversas dimenses que o constituem e procurar uma viso totalizadora - e a filosofia especialista nisso, como voc ir perceber ao longo do livro. Vejamos, ento, algumas dessas abordagens (trata-se do resumo de alguns conceitos contidos em LAYARD, La felicidad: lecciones de una nueva ciencia),

CONEXES

10. Pense em situaes nas quais voc observa(ou observou) que falta amor fraternal entre as pessoas, que h ausncia de liberdades individuais ou que os bens e direitos no so iguais para todos. O que voc sente? Depois, elabore uma reflexo sobre o tema da felicidade, relacionando-o com suas observaes e sentimentos.

Homem pratica tai chi chuan em Pequim, China. O velho ideal grego de equilbrio entre a mente e o corpo ficou clebre nas palavras do poeta latino Juvenal (e. 60-128): "mente s em corpo so" (em latim, mens sana in corpore sano).

Plano fsicoA felicidade parece ter mesmo uma dimenso fsica, que pode ser identificada e medida em termos de ondas cerebrais (os epicuristas adorariam saber disso). Estudos de neurofisiologia realizados nos ltimos anos em pessoas de todas as idades, inclusive bebs, apontam que a atividade de certa parte do crebro aumenta quando a pessoa experimenta sensaes ou sentimentos agradveis ou se expressa de maneira positiva, como ao sorrir. Tambm h evidncias cientficas de que algumas substncias produzidas pelo nosso corpo esto relacionadas com as sensaes de paz, prazer e bem-estar de um indivduo. Alguns estudos nos fazem igualmente supor que possa existir um fator de predisposiO gentica para experimentar a vida de maneira mais positiva que outras. Gmeos idnticos (que tm material gentico idntico) mostraram um grau de feli-

Felicidade nas cinciasAlm da histria, para realizar uma boa investigao filosfica no podemos deixar de considerar o que as diversas cincias esto dizendo a respeito de nosso objeto de estudo e reflexo, seja ele qual for. No caso da felicidade, resultados de pesquisas cientficas realizadas em diversas reas, como psicologia, medicina, sociologia e economia, podem lanar novas luzes sobre nossa investigao e ajudar-nos a desfazer alguns mitos sobre esse tema.

Unidade 1 Introduo ao filosofar

128construo de uma existncia feliz ou infeliz (quase toda a filosofia grega aplaudiria em p essa concluso). Muitas vezes, o que se chama de "sorte" no outra coisa seno o resultado de um estado de nimo mais aberto e propcio para perceber e aproveitar as oportunidades que surgem na vida. Da a importncia do autoconhecimento.

cidade bastante similar, mesmo quando criados em lares distintos, o que no ocorre com os no idnticos (em que apenas metade dos genes idntica). Essa uma questo complexa, que deve ser tratada com muito cuidado. A sade fsica tambm um fator importante para nossa felicidade. No entanto, mesmo em condies desfavorveis de sade, como demonstram algumas investigaes, as pessoas, depois de algum tempo, tendem a se adaptar s limitaes fsicas surgidas durante suas vidas, podendo manter um bom nvel de satisfao a partir de ento. A relao sade-felicidade pode seguir, porm, direo inversa: resultados de pesquisas recentes revelam que a pessoa feliz tende a ser mais saudvel, a ter um sistema imunolgico mais forte e a viver mais anos. Ou seja, em vez de ser o fsico que determina o psquico; o psquico que determina o fsico, o que parece inverter a lgica at h pouco predominante nas cincias.! Conforme veremos ao longo deste livro, a relao corpo-mente uma questo bastante polmica na histria da filosofia.

Plano psicolgicoDesde o surgimento da psicanlise, com Sigmund Freud (pensador que estudaremos no captulo 4), entende-se que os primeiros anos de vida so fundamentais para o modo como uma pessoa ir experimentar sua existncia. Episdios traumticos, dolorosos podem limitar suas possibilidades de desenvolver vivncias felizes. Por outro lado, tambm se considera que os modelos psicolgicos e de conduta que a pessoa encontra em seu meio familiar imprimem-se em sua psique (ou em seu crebro) e tendem a ser repetidos durante toda a sua vida. Portanto, se esses modelos so negativos, limitantes, existe maior probabilidade de que ela desenvolva uma existncia infeliz, se no for consciente desses padres e no puder retrabalh-los.Psique - estrutura mental ou psicolgica de uma pessoa, geralmente entendida como parte distinta do corpo material.

Ovo feliz entre ovos contrariados ou tristes: uma metfora de como a dimenso interior pode determinar a maneira como vivemos cada situao.

Plano econmicoExiste tambm uma tendncia em acreditar que a melhora no nvel de renda torna uma pessoa mais feliz. Em outras palavras, o dinheiro traria felicidade. Trata-se de uma viso economicista do tema. Essa noo, no entanto, tem sido relativizada a partir dos resultados de certos estudos.Economicista um tema. - que supervaloriza os aspectos econmicos de

De fato, vrios estudos no campo da psicologia tm confirmado que saber administrar os prprios pensamentos e sentimentos fator crucial para a felicidade de um indivduo. A dimenso interior - o conjunto de crenas, valores, estados de nimo, maneira de ver a vida - influi de forma contundente na

O que se sabe, sem dvida, que h maior dificuldade em levar uma vida digna e, portanto, feliz quando se est na misria. Em contrapartida, quando os rendimentos so superiores a determinado patamar, pesquisadores tm observado que o incremento da percepo de felicidade no proporcional ao enriquecimento das pessoas. o que tem

291ocorrido nos pases ricos, onde, embora o nvel de renda tenha aumentado significativamente nos ltimos 50 anos, a percepo da prpria felicidade no se elevou, ou subiu bem menos. O trabalho outro fator fundamental na composio global de felicidade. Fonte do sustento material e meio de realizao individual, a atividade profissional que um indivduo desempenha representa, ao mesmo tempo, sua contribuio para os entes queridos e para a sociedade em geral. Por isso o desemprego causa tanta infelicidade: no apenas pela perda econmica que representa, mas tambm porque afeta substancialmente a autoestima das pessoas e suas relaes sociais.

Captulo 1 A felicidade

mais ou melhor, fico feliz. Parece que a vida seria muito melhor se no houvesse tanta necessidade de afirmao pessoal e de competio. O individualismo - a defesa exagerada dos interesses pessoais em detrimento dos interesses do outro tende a gerar um mal-estar social. De acordo com estudos nos campos da psicologia, da antropologia e da biologia, a cooperao (ou um equilbrio entre competio e cooperao) costuma trazer melhores resultados, tanto para o indivduo como para o todo. Algumas pesquisas tambm indicam que, quando as pessoas se preocupam mais com o bem dos outros, expressando menos ansiedade em relao ao benefcio prprio, elas so mais felizes.CONEXES 11. A partir de sua vivncia pessoal, voc concorda com alguns desses resultados vindos das cincias? Ou discorda deles? Qual (ou quaisl? Por qu?

Plano socialSomos seres profundamente sociais. Estudos confirmam que tanto a vida familiar e conjugal bem como o convvio com os amigos e a relao com a comunidade so muito importantes para a constituio de nossa identidade pessoal e do sentido de nossas vidas. Esses dois ingredientes definem em grande medida a forma com que nos posicionamos em relao ao mundo e nossas possibilidades de sermos felizes. No entanto, pesquisas indicam que boa parte da insatisfao que um indivduo tem consigo mesmo ou com sua vida vem da comparao social. As pessoas no param de se comparar entre si, e isso gera muita infelicidade. Se o outro tem mais ou melhor em algo, fico triste, deprimido; se sou eu quem tem

ConclusoPronto. J temos uma boa quantidade de elementos para formar uma ideia, mesmo que provisria, sobre os dois temas bsicos tratados neste captulo: a filosofia e a felicidade. Com relao filosofia e ao filosofar, voltaremos a eles no prximo captulo. Quanto felicidade, cabe aqui uma reflexo final.

o bom

samaritano

- Antonio Zanchi (Sotheby's Institute of Art, Londres, Reino Unido). difci I ser fel iz quando outros ao nosso lado sofrem ou sentem dor.

Unidade 1 Introduo ao filosofar

130ingls Jeremy Bentham (1748-1832) certamente concordaria com isso, como atesta esta bela mensagem que ele enviou a uma jovem na data de seu aniversrio:

A busca desenfreada de felicidade individual na sociedade contempornea sinal de que grande parte das pessoas tomou um rumo equivocado. Concordamos - ns, os autores deste livro com o economista ingls Richard Layard (1934-) quando ele diz que uma sociedade no pode prosperar sem certa sensao de compartilhar objetivos, de bem comum. Quando a nica meta das pessoas alcanar o melhor apenas para si mesmas, a vida torna-se estressante demais, solitria demais, pobre demais, e abre espao para a entrada da infelicidade. Na mesma direo, o filsofo francs Andr Comte-Sponville (1952-) costuma recomendar s pessoas que se preocupem menos com a prpria felicidade e um pouco mais com a dos outros; que esperem um pouco menos e amem um pouco mais .

o pensador

Crie toda a felicidade que possas; suprima toda a infelicidade que consigas. Cada dia te dar a oportunidade de agregar algo ao bem-estar dos demais ou de mitigar um pouco suas dores. E cada gro de felicidade que semeies no peito alheio germinar em teu prprio peito, ao passo que cada dor que arranques dos pensamentos e sentimentos de teus semelhantes ser substituda pela paz e alegria mais belas do santurio de tua alma (Citadoem LAYARD, La felicidad: leccionesde una nueva ciencia, p. 230; traduo dos autores).

.,

. ,.

Os momentos de quebra ou ruptura nos levam a pensar, indagar, duvidar .

18. Aps a Antiguidade,

que valores foram assumindo historicamente maior importncia na concepo de felicidade? Em que contexto histrico surgiram? O que significam?

ou reveladoras (pelo menos trs). O que elas significam? Que ensinamento trazem para a construo da felicidade de cada um? 20. Analise a ltima citao do captulo, de Jeremy Bentham. Como ela se relaciona com a busca desenfreada de felicidade individual, tendncia to comum na sociedade contempornea?

19. Entre as concluses a que vm chegando estudos cientficos a respeito da felicidade, destaque as que voc considera mais instigantes

311

Captulo

1 A felicidade

7.

Sade da alma "Nunca se protele o filosofar quando se jovem, nem canse o faz-Io quando se velho, pois que ningum jamais pouco maduro nem demasiado maduro para conquistar a sade da alma. E quem diz que a hora de filosofar ainda no chegou ou j passou assemelha-se ao que diz que ainda no chegou ou j passou a hora de ser feliz." (EplcuRo, ntologia de textos, p.13.). A Medite sobre essa afirmao. Segundo ela, que papel pode ter a reflexo filosfica na vida de uma pessoa? Essa reflexo deve ser desenvolvida durante a vida toda ou apenas em determinada idade? Por qu? Voc concorda com ela? Depois, exponha sua meditao aos/s colegas, escute o que dizem, argumente e contra-argumente. Enfim, troque ideias de maneira filosfica.

8.

Felicidade individual e coletiva Aps tudo o que estudamos neste captulo, voc acha que possvel ser plenamente feliz quando se busca apenas a felicidade individual? a) Se voc entende que no, junte-se queles que pensam como voc para elaborar um conjunto de argumentos a favor de sua posio. Um orador representando o grupo ir expor essa posio e defend-Ia com os argumentos reunidos. b) Se voc considera que sim, forme outro grupo e siga o procedimento anterior. c) Em seguida, os dois oradores, cada qual com o apoio de seus grupos para consultas, devem desenvolver uma conversao filosfica, como nos exerccios precedentes.

A festa de Babette (1987, Dinamarca, direo de Gabriel Axel) Histria situada no sculo XIX. Mulher francesa vai viver em vilarejo dinamarqus, de costumes muito austeros e religiosos. L prepara uma surpresa para seus habitantes, ligada a um dos maiores prazeres do ser humano: a comida. Fahrenheit 451 (1966, Reino Unido, direo de Franois Truffaut) Fico cientfica baseada em livro homnimo de Ray Bradbury. Em uma sociedade futura, de regime totalitrio, os livros so proibidos, porque se acredita que a leitura perda de tempo e impede as pessoas de serem felizes. Alguns passam a ler escondido. O fabuloso destino de Amlie Poulain (2001, Frana, direo de Jean-Pierre Jeunet) Comdia tocante sobre moa que acha uma caixa e busca seu dono at encontr-Io. A felicidade que este demonstra ao rever seus objetos contagia a jovem e muda sua viso de mundo.