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Se Eu Fechar Os Olhos Agora - Edney Silvestre(1)

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    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutandopor dinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo

    nvel."

  • CIP-Brasil. Catalogao-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

    S593s Silvestre, Edney, 1954-

    2. ed.Se eu fechar os olhos agora

    [recurso eletrnico]: romance /Edney

    Silvestre. 2. ed. Rio de Janeiro:Record, 2011. recurso digital Formato: ePub

    Requisitos do sistema:Adobe Digital Editions

    Modo de acesso: World Wide

  • Web ISBN 978-85-01-09319-6(recurso eletrnico)

    1. Romance brasieliro.2.Livros eletrnicos I. Ttulo.

    10-6403.

    CDD 869.93CDU 821.134.3(81)-3

    09.12.1020.12.10

    023385

    Copyright Edney Silvestre, 2009Capa: Leonardo IaccarinoFoto de capa: Henri Cartier-Bresson/Magnum/LatinstockProjeto de miolo da verso impressa: Regina Ferraz

    Texto revisado segundo o Novo Acordo Ortogrfico da

  • Lngua Portuguesa Todos os direitos reservados. Proibida a reproduo,

    armazenamento outransmisso de partes deste livro, atravs de quaisquer

    meios, sem prviaautorizao por escrito. Direitos exclusivos desta edio reservados pelaEDITORA RECORD LTDA.Rua Argentina 171 Rio de Janeiro, RJ 20921-380 Tel.:

    2585-2000_________________________________________________________

    Produzido no Brasil

  • ISBN 978-85-01-09319-6

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  • Os mortos no ficam onde esto enterrados.

    John Berger, Aqui nos encontramos

  • Se eu fechar os olhos agora, ainda posso sentir o sangue dela grudadonos meus dedos. E era assim: grudava nos meus dedos como tinha grudadonos cabelos louros dela, na testa alta, nas sobrancelhas arqueadas e nosclios negros, nas plpebras, na face, no pescoo, nos braos, na blusabranca rasgada e nos botes que no tinham sido arrancados, no suticortado ao meio, no seio direito, na ponta do bico do seio direito.

    Eu nunca tinha sentido aquele cheiro pungente antes, aquele cheiro queficaria para sempre misturado ao cheiro das outras mulheres, das queconheci na intimidade, que invadiria o cheiro de outras mulheres e que parasempre me levaria de volta a ela. Aquela mistura de perfume doce, carnecortada, suor, sangue e o mais prximo que consegui perceber, at hoje sal. Como se sente quando prximo do mar. Como quando adere pele.No os gros do sal mas a poeira invisvel e olorosa do sal em diasmidos.

    Mas eu tambm no conhecia o mar, naquela poca, eu nunca tinhasentido o cheiro nem visto o mar, ento aquele odor do corpo sobre a lama,nu, eu nunca tinha visto uma mulher nua nem sentira o cheiro de umamulher nua assim to prxima, quer dizer, no que ela estivessecompletamente nua, mas o seio com aquele bico grande e... As coxasestavam abertas, a saia levantada, e eu vi os pelos pretos intrincados noalto delas, das coxas, onde as coxas longas se encontravam, e dali exalava,no, no dali, dela toda, aquele odor de corpo de mulher misturado aosangue e eu acho que tinha se cagado, acho que tinha se borrado, comohoje eu sei que nos acontece a todos, na hora que a vida abandona nossocorpo e ele todo se relaxa, e o esfncter se abre e... Essa tambm era umapalavra que eu nunca tinha ouvido. Nem lido. Esfncter. Eu tinha doze anos epalavras como essa no eram ditas na minha casa. A gente no conheciapalavras assim.

    Ela, ali, morta. Nua. Quase nua.Eu sabia que ela estava morta. Ns dois sabamos. A pele estava fria, a

    pele do brao, que foi a primeira que a gente tocou. A do rosto, to... Plida.Era isso, assim, plida? Era. Estava. Com a boca aberta. Entreaberta. Como

  • se tivesse comeado a sorrir. Os dentes grandes, alvssimos, apenas umaparte deles, brilhando entre os lbios grossos... Inchados? Tinham batidonela? O rosto tinha outras marcas? Tinha. Mas era nos lbios que osangue... Acho que eu toquei os lbios dela. No sei. Sei: toquei. Macios.Vermelhos. De sangue. De sangue ou de batom? De sangue e de batom. Ede lama. Deve ter respingado, na hora que ela caiu. Ou bateu o rosto, entreo capim e o barro? Quando o salto do sapato se prendeu na lama, sequebrou e ela meio que voou sobre o barro e o capim molhado, um ltimovoo, cheio de espanto e tristeza, foi assim? Um voo. Silencioso.Interminvel. Ali, talvez, ela tenha entendido que a fuga acabara. E, talvezse debatendo, talvez se entregando, registrara a derradeira viso do cuazul e a aragem fresca do outono, o grito de um pssaro e o hlito doassassino, enquanto a lmina penetrava repetidamente em sua carne.

    Nem ele nem eu saberamos dizer depois quantas punhaladas foram. Apele, dilacerada em tantos lugares, me lembrou as chagas do Cristo danave central da catedral, os braos abertos na cruz tal como estavam osdela na lama, sob o cu sem nuvens daquela manh de abril.

    Mesmo aqui, hoje, mesmo nesta cidade estrangeira onde vivo de temposem tempos, mesmo hoje, s vezes, quando estou distrado, quando saio dometr, ou quando viro uma esquina formada por prdios harmoniosos quefazem o mundo parecer organizado e lgico, ou saio de um caf ondecomprei cigarros, desavisado, colocando as moedas no bolso do palet ebuscando o isqueiro, eu sinto no rosto aquele mesmo vento frio que soproude repente naquele mesmo dia de abril, s vezes, nem sempre, s vezes, omesmo vento frio que pareceu soprar naquele dia morno, balouando,levemente, de um lado para o outro, suavemente, o capim alto que haviaem volta do lago onde a gente foi se refugiar naquela manh, longe dosadultos, como tnhamos feito durante todo o vero.

    Do topo do morro, quando se chegava, seu contorno irregular mal podiaser vislumbrado l embaixo, rodeado pelos bambuzais altos, onde dezenasde maritacas barulhentas tinham seus ninhos. As maritacas e os bambuzaisque ele recordaria depois, tantas vezes, nas longas cartas melanclicas queme escreveria.

    No sei como o lago era na realidade. Nunca mais voltei l, desde aqueleabril. S tenho a imagem da minha memria. Que o recorda assim:azulssimo, translcido, coruscante a multiplicar os raios do sol que pareciabrilhar sempre naqueles dias daqueles tempos.

  • Era uma tera-feira. Acho que era uma tera-feira. Poderia olhar nocalendrio e ter certeza. No quero. Prefiro a certeza da minha lembrana,que me diz ter sido uma tera.

    Tera-feira, 12 de abril de 1961.No rdio, cedo, um locutor anunciara: um homem tinha ido ao espao. O

    primeiro homem no espao. Um russo.Chamava-se Iuri Gagrin.Ele disse que a Terra era azul e eu pensei, ns dois pensamos, ele e eu,

    a gente conversou na estrada sobre isso, pedalando sem pressa nossasbicicletas, escapando da punio na escola porque nos pegaram com umarevista em quadrinhos de sacanagem, a gente conversou como sempreconversava tudo: ento isso que a gente pode ser, pode ser tambm, umhomem voando no espao sideral.

    Aos doze anos, quando qualquer fantasia faz sentido, o voo do major IuriAlexeyevich Gagrin a bordo da Vostok, uma esfera metlica de doismetros e meio de dimetro, com janelas pouco maiores que um livro, abria,literalmente, o cu para ns.

    Astronauta: outra palavra que eu ainda no conhecia.Astronauta, tambm. Eu poderia me tornar um astronauta. Tudo era

    possvel para quem ainda estava em dvida entre se tornar engenheiro oucaubi, jogador de futebol ou sertanista, aviador, piloto de provas,comerciante, escafandrista, arquelogo ou Tarzan.

    Tarzan tinha sido meu personagem favorito at ento, eu era bom nasbrincadeiras com cip, mas tanto a selva africana do lorde Greystokequanto Oklahoma, onde eu achava que ficava o faroeste de mocinhos ebandidos, comeavam a desbotar o encanto, sem que eu soubesse por qu.Eu tambm gostava da ideia de ser um gnio da cincia e inventarremdios que poderiam curar as piores doenas, talvez uma vacina topoderosa que acabasse com todas as doenas. Ou era ele que queria sercientista. Um de ns achava que poderia se tornar presidente do Brasil eacabar com a seca e a fome no Nordeste. Acho que era ele. Ns doistnhamos, entre tantas ambies que nos pareciam perfeitamente possveis,a de um dia viver no Rio de Janeiro. Braslia tinha sido inaugurada h menosde um ano, mas aquele de ns que virasse presidente levaria a capital devolta ao Rio. Ns tnhamos doze anos. Era um outro pas, aquele. Era umoutro mundo, aquele.

  • 1.As grandes montanhase reas em sombras

    O lago, finalmente.Saram da estrada asfaltada para a trilha sinuosa de terra e saibro.

    Pararam de pedalar. As bicicletas deslizaram com um rudo surdo at acerca de arame farpado ao p do morro, onde desmontaram. Os livros ecadernos foram tirados dos bagageiros e abrigados sob uma touceira. Cadaum levantou o arame para ajudar a passagem do outro.

    A bicicleta do menino moreno, enferrujada e com mossas, tinha apenaso para-lama dianteiro. Fora do pai, quando ainda era tecelo, e do irmo,antes que a trocasse por uma nova. Na do outro menino, comprido, claro emais magro, a marca inglesa ainda era ntida no eixo central, doze anosdepois de cruzar o Atlntico, importada com outros milhares de produtoseuropeus no cmbio favorvel ao dinheiro brasileiro do ps-guerra.

    Empurrando-as atravessaram a plantao de mangueiras, os pneusdeixando sua impresso na terra molhada pela chuva da noite anterior. Ogaroto magro, preocupado em no respingar barro nas calas de brim azul-marinho, enrolou-as at os joelhos. O moreno no se deu ao trabalho.Ningum notaria. O emblema da escola pblica despregava-se do bolso dacamisa encardida. Ambos haviam retirado a gravata preta, de n pronto epresa ao colarinho por gancho de plstico, a parte do uniforme que os doisdetestavam. S a do menino comprido fora dobrada com cuidado antes deser guardada no bolso da cala.

    Passaram por dentro da trilha estreita no bambuzal, sob a algazarra dasmaritacas que sobrevoavam acima deles.

    Falavam sobre assuntos que dois meninos de doze anos falavam,naqueles tempos: coisas terrivelmente importantes sobre si mesmos e

  • sobre o mundo que ainda no entendiam, mas sobre o qual acreditavam terideias precisas, que dali a pouco esqueceriam, porque lhes viriam outras,fabulosas como os sonhos que acalentavam. A vida adulta lhes pareciadistante, cordial e luminosa e no o mundo brutal onde seriam lanadosnaquela manh.

    beira do lago deitaram as bicicletas sobre a relva, um com cuidado, ooutro displicentemente, deixando-a tombar para o lado.

    O menino de pele mais escura livrou-se das roupas em poucosmovimentos, jogou-as sobre a bicicleta, chutou os sapatos para os lados,enquanto o menino plido abria os botes da camisa e a despia,desafivelava o cinto, descia as calas. Tirava cada pea e a dobrava. Aindaguardava as meias enroladas dentro dos sapatos quando o colega correu decuecas para a gua, gil, desafiando-o a alcan-lo e chamando-o demolengo, a molengo, a molengo, antes de mergulhar, sem elegncia, mascom vigor.

    O menino mais claro foi at aos arbustos onde escondiam a cmara dear de pneu usada como boia. Apertou-a. Ainda estava cheia. Levou-a at abeira da gua, lanou-a. Juntou as mos, abaixou a cabea e entrou, quasesem fazer rudo.

    Na gua, morna como o dia, nadaram um tempo.Depois o menino magro deitou-se na boia, braos e pernas abertos,

    deixando-se flutuar. Ouvia os rudos do amigo que mergulhava, emergia,mergulhava de novo, tornava a vir tona, nadava mais um tanto enovamente mergulhava e novamente emergia, veloz, a cada vez falando altoe gritando frases ou fazendo perguntas que ele, de incio, respondeu. Depois,embalado pelas guas clidas, foi se envolvendo nos prprios pensamentos,distraindo-se no meio deles. As vozes e sons exteriores foram-se apagando.

    Sumiram.Boiava no silncio.Tudo o que via era o azul acima.Mas o astronauta russo no tinha dito o contrrio?

    Eu vejo a Terra. Ela maravilhosa. Ela azul.

  • Como assim, azul?, o menino magro se perguntou. A Terra, e no o cu?Por causa dos oceanos? Dos mares? Continentes no so azuis. Montanhasso pretas, matas so verdes, desertos so brancos, no so? assim quevemos aqui de baixo. E nos mapas. Em todos os mapas. Como o astronautapode ter visto um planeta azul, se os prdios de concreto, as pontes, osviadutos, tudo tem cor cinza? E as estradas de terra vermelha e de terramarrom? E as estradas asfaltadas? Mas ele viu isso tudo l de cima. Redesferrovirias, portos, avenidas, pistas de pouso, cidades, a Amaznia, aSibria, o Polo Norte, a Austrlia, a Monglia, o Himalaia e o Saara, tudo. Eleviu. O russo, o astronauta, viu isso c embaixo, hoje de manh, comonenhum homem viu antes dele. E disse: azul. A Terra azul. Ento o que agente aprendeu at agora nas aulas de geografia est errado. Comoestavam errados os mapas antes de Colombo. Naquele tempo diziam que aTerra era plana e terminava em um abismo, no diziam? O que maisaprendemos hoje que daqui a quinhentos anos vai fazer as pessoas rirem dens? Todos os planetas e lugares que a gente conhece vo parecer poucacoisa, como aconteceu com o mundo depois que Pedro lvares Cabralchegou ao Brasil? Ele usou os mapas dos navegadores fencios queestiveram aqui muito antes de 1500. E se estiver acontecendo a mesmacoisa hoje em dia? E se existem segredos que os cientistas sabem e nsnem desconfiamos? Que os governos escondem de ns como os mapas queos navegantes portugueses escondiam dos inimigos? Pode ser que osrussos tenham os mapas verdadeiros do cu. E os americanos? Ser que osamericanos tm os mapas verdadeiros do cu?

    Vejo claramente as grandes montanhas e reas em sombras...

    Se o astronauta russo girou em torno da Terra em uma hora e quarentae oito minutos, como disseram no rdio, o garoto conjeturou, ele viu o dia ea noite, tudo ao mesmo tempo.

    ...as florestas, as ilhas e os litorais.Eu vejo o sol, as nuvens...

  • Se o Japo est vinte e quatro horas na frente da gente, do outro lado daTerra, onde j amanh, ento o russo passou pelo futuro e voltou aopassado. Mas isso no possvel. No pode. Ou pode. Como pode? Se eufor ao futuro posso me encontrar comigo do jeito que eu sou hoje? Omenino plido se perguntou. Ou como eu era hoje? Eu, de hoje, de agora,sendo como sou neste momento, poderei ver como eu serei? O que euserei?

    ...e as sombras que a luz projeta sobrea minha querida e distante Terra.

    O russo disse. O astronauta russo. O major Iuri Gagrin, de vinte e seteanos. No rdio disseram que ele disse. Pode ser mentira. Os russosmentem para conquistar o mundo, o padre Toms sempre avisa, em todaaula de Latim ele avisa: os comunistas mentem. Mas o professor Lamarcadiz que so os americanos que mentem, o garoto lembrou-se. Porque elesquerem as riquezas do nosso solo, nosso ouro, nosso petrleo, nossasareias monazticas...

    Ento Paulo veio por baixo dgua, nadando o mais silenciosamente queconseguia, aproximou-se de Eduardo, de quem agora via o corpo por baixo, efez a brincadeira que sabia seu amigo detestava: virou a boia e puxou-lhe acueca para o meio das pernas.

    Eduardo afundou, engoliu um pouco de gua, subiu tossindo.Paulo nadou para a margem, rapidamente, rindo, fazendo sons que

    imitavam os berros dos ndios vitoriosos sobre os caras-plidas invasoresnos filmes de faroeste vistos em matins de domingo no Cine TheatroUniverso, enquanto Eduardo se recompunha, resmungava alguma coisa enadava, em grandes braadas, tentando alcan-lo.

    Paulo saiu da gua, ainda rindo, correu alguns metros, parou.Aguardou.O amigo furioso se aproximava.Chegou perto.Paulo riu de novo, feliz. Aquela era a sua brincadeira favorita. Sabia que

  • era mais veloz e mais hbil que Eduardo, conhecia melhor as manhas dosdribles, ser mais baixo at favorecia, quando gingava para a direita ou paraa esquerda, abaixava o tronco e passava sob os braos abertos de Eduardo,como fazia agora.

    Desconcertado, capaz apenas de movimentos diretos, Eduardo continuoua perseguio, os ps descalos por vezes escorregando no capim molhadoe na lama, enquanto o amigo disparava, sem nunca perder o equilbrio.

    Foi ento que Paulo caiu, ao tropear em alguma coisa.Era um corpo.Uma mulher, loura, de braos e pernas abertos, suja de sangue e lama.O seio esquerdo tinha sido cortado fora.

    O buraco entre as pedras e as formigas pretas que saam dali cleres eordenadas eram tudo o que Eduardo conseguia ver, de frente paredespera para onde os policiais o tinham empurrado. A fileira subia emdireo abertura gradeada, muito acima da cabea dele, atravs da qualentravam ondas do calor da tarde e vagos raros sons da rua: as rodas deuma carroa e os cascos ferrados da mula sobre os paraleleppedos, asvozes de duas mulheres a passar na calada do outro lado, um gemidolongnquo, indistinto, de uma criana chorando, talvez de algum detento nosubsolo da delegacia.

    Os trs policiais fediam. Ele suava. Quis acreditar que no fosse demedo.

    Eu vi primeiro repetiu. Mas eu que tropecei no corpo Paulo explicou, mais uma vez.Estavam de costas um para o outro, Paulo tambm de p, de cara para

    a parede do lado oposto. Os policiais se alternavam, refazendo as mesmasperguntas.

    Por que estavam com ela? Como ela foi l com vocs? Quem chamou ela?

  • A gente no conhece ela, eu j disse! Moo, nem o Paulo nem eu sabemos quem ela . Claro que sabem. De quem o canivete? Quantos furos vocs fizeram nela? Como levaram ela para l?Um deles riu. Eduardo achou que cochichavam. Eu j falei, o Eduardo falou, a gente no conhece ela. No conhecia. Nunca vi. Nunca vimos. Nunca. Quantos furos? Como no conhecem ela? Quantos furos voc fez com seu canivete? O canivete no do Eduardo, meu. Quantos furos? O canivete meu, mas a gente nunca fez nada nela, a gente nem

    conhece ela, nunca, nada. Todo mundo conhece ela, moleque. No sou moleque! Cala a boca! S responde o que eu pergunto, moleque! No sou moleque! E no tenho nada que ficar respondendo nada! Quer levar porrada, moleque? Calma, moo! Calma, Paulo. Fomos ao lago nadar, s isso, moo. Quantos furos? Fala, moleque! No sei. A gente no quis olhar. No contamos. Nem eu nem o Paulo contamos. Canivete no faz furo assim. Foi faca. Como sabe, moleque? J enfiou a faca em algum? No sou moleque! No fiz nada. S tropecei na morta. Como sabiam que estava morta? Vocs mataram. Por que furaram ela tantas vezes?

  • Quando eu tropecei ela j estava morta! Nem tocamos nela, moo. Encontramos e eu disse ao Paulo que era

    melhor a gente vir aqui na delegacia para contar que ns encontramos. Ocorpo.

    E eu te disse que era melhor a gente no se meter com a polcia! Ns voltamos l com vocs, no voltamos? Para mostrar. Ns s

    encontramos ela. S isso. Eu te falei que a polcia no ia acreditar na gente, Eduardo! No acreditamos porque mentira. O que vocs fizeram com ela? Nada! Ela j estava fria quando eu tropecei. Est mentindo, moleque. Paulo e eu fomos ao lago porque o professor de Geografia nos

    expulsou da sala de aula. Mandou a gente para falar com o diretor. Quem levantou a saia dela? Voc ou voc?Estou com fome, Paulo se deu conta. Estou com fome, estou com sede,

    quero mijar, ainda no almocei, no comi nada, s aquele pedao de pocom caf, por que eles me botaram e ao Eduardo nesta sala abafada, porque continuam perguntando para a gente isso tudo de matar a mulher, porque, para qu? No esto vendo que no tinha como a gente matar ela?Com meu canivete no tinha como matar ela. No levantei a saia dela, asaia dela j estava subida at na cintura, ou estava rasgada, quem sabeno, no estava rasgada, ou estava, eu no levantei, Eduardo tambm nolevantou, esse que est gritando no meu ouvido cospe toda vez que fala,sujeito porco, deve ser aquele primeiro com quem a gente falou, o que temuma crie no dente da frente, o que empurrou a gente para a sala nosfundos da delegacia, quando a gente chegou para contar sobre o corpo que agente encontrou. Ele tinha mau hlito, dava para sentir de longe. Ou era ooutro que tinha. Minha barriga est roncando, que horas so?

    Foi voc, moleque? A gente nem tocou nela. S tropecei. Quando estava correndo. Fomos ao lago porque o professor nos expulsou. E no podamos

    voltar para casa. A gente no podia chegar em casa antes da hora do fim das aulas.

  • Expulsou os dois? . Estavam fazendo o qu? Nada de mais, moo. A gente estava vendo uma revista. Durante a aula. Qual revista? O professor tomou. Mandou a gente ir falar com o diretor. Que revista era? De sacanagem, eu aposto que esses moleques estavam com alguma

    revista de sacanagem. Vocs estavam fazendo sacanagem? Meia? Um com o outro? No! A gente estava nadando! Mas o diretor no estava no gabinete dele e ns achamos que era

    melhor irmos embora. A gente achou melhor fugir. Vocs queriam fazer sacanagem com ela. A gente nem viu ela! A gente nem conhece ela! Eu nunca tinha visto, juro. Nem o Paulo. Est mentindo, moleque. Todo mundo conhece essa mulher. Ns, no. A gente nem nunca viu ela antes, j disse! Todo mundo conhece essa mulher. Conhecia. No conheo, no, senhor. Claro que conhece. Essa mulher era uma puta. Puta? A morta era puta? Puta. Vagabunda. Vocs sabiam. Ns no sabamos, moo. Nunca fui ao lugar delas. Nem o Paulo. O

    pai dele vai, o irmo tambm vai. Ele nunca. Ns, nunca. Ela era puta da zona?

  • Quem faz pergunta aqui sou eu, moleque. O que vocs queriam comela?

    Queriam obrigar ela a fazer sacanagem. Ela recusou. Vocs atacaram ela. Com o canivete. Levaram at revista de sacanagem. Cad a revista? O professor de Geografia tomou. O professor Lemos tomou. Pode

    perguntar a ele. Vocs limparam o canivete na meia dela. A lmina est limpa e a

    meia manchada de sangue. No senhor. Ns fomos de bicicleta ao lago. S isso. Nadar. A o Paulo virou a boia e puxou a minha cueca, e eu sa correndo

    atrs dele e... Os dois nus? No meio do mato? Ento tinha mesmo sacanagem entre vocs. No, no! Era uma brincadeira! Brincadeira de sacanagem. No! J mandamos chamar seu pai. E o seu tambm. Ah, meu pai, no! Calma, Paulo. Eu conto para ele que no temos culpa de nada. Que

    ns que procuramos a polcia. Que a mulher loura j estava morta quandovoc tropeou nela.

    Como sabiam que estava morta? Ela j estava dura! O sangue j estava duro! Coagulado, Paulo. Ento vocs mexeram no corpo. Brincaram com o corpo. No!... Mexemos de leve. S um pouco. Para ver se estava viva.

  • Mas no estava. Nem podia. Furada daquele jeito! Furos de canivete. Do seu canivete. No foi meu canivete! Aquilo buraco de faca! Eu sei que buraco

    de faca. Sabe? Como que sabe? Meu pai aougueiro. No precisava chamar ele. Est com medo? O que foi que voc fez? Conta, pode contar. No estou com medo. Voc de menor, no vai acontecer nada com voc. No precisava de chamar ele... A minha me tambm vir aqui? Chamaram minha me, tambm? Vocs esto sempre indo naquele lugar, l no lago? Fazem o que quando esto juntos? Nadam sem roupa? Ficam juntos sem roupa? Onde esconderam a revista de sacanagem? A gente no fez nada de mal. S fugiu da escola, s isso. No tem vergonha, moleque? Sua me est l fora, chorando. a minha me. A do Paulo j morreu. Pior. Tanto sacrifcio para dar educao aos filhos e vocs ficam por

    a, vagabundeando. Mas foi o professor Lemos que nos expulsou da sala! Porque vocs estavam com uma revista de sacanagem. Me deixa falar com a minha me, moo. Para ela no ficar

    preocupada. Depois. Daqui a pouco. Depois de vocs explicarem direitinho essa histria de tirar a cueca e

    ficar juntos no lago, de tirar a calcinha dela, do canivete, tudo. Mas ns j contamos para o senhor. Para vocs trs. Ento conta de novo. Desde o comeo.

  • Por que voc est com tanto medo do seu pai? No o meu. o do Paulo. Se fosse meu filho, eu te mostrava como que se educa um

    vagabundo. Eu no sou vagabundo.Uma quarta voz de adulto os interrompeu, abrindo a porta e anunciando: O pai do mulatinho chegou.

    A primeira bofetada, com as costas da mo, atingiu Paulo no ouvidodireito. Ele se desequilibrou, uma dor afiada entrando pelo crnio, e s nocaiu porque outro tapa, desta vez com a palma da mo, acertou-lhe o ladoesquerdo da cabea, jogando-o contra a mesa de jantar. Mal teve tempo dese desviar dela, enquanto, zonzo, via o pai se aproximar, sabendo quepretendia lhe dar mais uma, duas, quantas bofetadas conseguisse acertar,at se acalmar. Sangue ruim, dizia o homem louro espadado, sangue ruim,repetia, apertando os olhos azuis sob clios to claros que s vezespareciam brancos, voc tem sangue ruim como o da sua me e de toda afamlia dela, moleque filho da puta.

    Paulo se manteve calado. No adiantaria dizer nada. O pai no ouviria,como nunca ouvia nada quando estava com raiva. Com raiva dele,principalmente. Como parecia estar sempre. Podia tentar dribl-lo, chisparpelo outro lado da mesa, sair para a rua e correr at... Onde? No tinhapara onde ir. Nem quem o acolhesse. Deixaria o pai mais furioso. Seria pior.Quando o pegasse, e mais cedo ou mais tarde o pegaria, a surra deixariamarcas e dores por dias seguidos, como acontecera antes de aprender queo melhor era parar e apanhar. Parar agora porque apanharia menos.

    Paulo viu a mo grande vindo em direo ao seu rosto, antecipando a dorardida, sabendo que mais uma vez dormiria e acordaria com aquela dorlatejante, que era tambm a dor de vergonha e de tristeza provocadas pelohomem que s o chamava de moleque.

    Sentiu a manzorra atingindo-o entre o nariz e a orelha. Desequilibrou-senovamente.

  • Deixou-se cair entre as cadeiras, de lado, girando sobre o corpo paradebaixo da mesa, instintivamente puxando as pernas junto ao tronco ejuntando a elas a cabea, enrolado sobre si mesmo, torcendo para a surraterminar naquele instante, mas preparado para ser puxado e levar algunspescoes, seguidos de lambadas do cinto de couro que o pai agora tiravadas calas. Mas o pai no o arrastou. Deu uma, e outra, uma terceira euma quarta vergastada entre as cadeiras, s de raspo atingindo a cabeade Paulo. Deteve-se, bateu com a fivela nos mveis algumas vezes, depoisatirou o cinto sobre o filho, ordenando: sai da, moleque filho da puta, saida.

    Paulo ps-se de quatro, engatinhou para fora da proteo da mesa,levantou-se e, de costas para o pai, aguardou. Seria um soco na cabea, oprximo? Outra tapona nos ouvidos?

    Ouvia sua respirao forte, entremeada aos palavres que repetia, semse aproximar. Era um bom sinal. Quando no se movia, quase sempreparava de bater nele. Quase sempre estendia mais uma fileira dexingamentos, porm a sova poderia se encerrar nisso. Torceu para quefosse assim.

    O pai s disse: pega essa merda desse cinto.Paulo se inclinou, pegou o cinto.Me d essa merda.Paulo lhe entregou.Voc no presta, seu moleque de merda, tem sangue ruim que nem eles,

    moleque vagabundo, tu bem o sangue deles, tu vagabundo que nem osparentes da tua me.

    Paulo abaixou a cabea e, mais uma vez, sentiu uma dor funda, amesma que sentiria tantas vezes no futuro, quando se lembrasse daquelesmomentos com o pai, uma dor que sabia no vir apenas das pancadas, masque ainda no tinha como localizar nem entender.

    O pai saiu, batendo a porta.Paulo ficou sozinho na sala. A dor foi aumentando, tomando conta de

    suas pernas, seus braos, seu peito, at chegar aos olhos e ia setransformar em lgrimas quando ele mordeu o lbio inferior, com fora,cada vez com mais fora, tentando transferir uma dor para outra. Mas aslgrimas correram assim mesmo, finas, pelos cantos dos olhos, descendopelo rosto que j comeava a inchar. Paulo correu para o banheiro, fechou a

  • porta sem trinco torcendo para que nem o pai nem o irmo entrassemnaquele momento, pegou a toalha de rosto e enfiou na boca. Assim,abafadamente, secretamente, chorou e gemeu enquanto o som de algumrdio, em alguma casa vizinha, trombeteava mais uma vez o primeiro vooque um ser humano tinha feito no espao.

    Quando entrou no quarto que dividia com o irmo, Antonio se exercitavacom um par de halteres diante do espelho do guarda-roupa. Vestia apenasuma cueca pequena. A ossatura larga e o corpo peludo lhe davam um slidoar de adulto aos dezesseis anos. Como o pai e tantos descendentes deportugueses do norte, herdara dos visigodos a estatura e a pele clara. Nosfartos cabelos louros alinhados com brilhantina, um topete tombavacuidadosamente sobre a testa. Abaixo das sobrancelhas grossas, os olhosescuros como os da me miravam com prazer o prprio corpo. Contava emvoz alta as repeties, enquanto levantava e abaixava os pesos de ferro.

    Que histria essa de mulher morta, Neguinho? perguntou,chamando o irmo pelo apelido que sublinhava a diferena no tom da peleentre eles, sem interromper o exerccio nem tirar os olhos de si mesmo.

    Paulo no respondeu. Cuidando para que o irmo no percebesse os olhosainda vermelhos, caminhou at a cama, encostada na parede ao lado doguarda-roupa e, mantendo-se de costas, levantou o travesseiro procura dealgo. No encontrou.

    E te prenderam, Neguinho? A tarde toda?Puxou o cobertor, a colcha: tambm no estava ali. Fala, Neguinho! O que foi que voc fez desta vez?Levantou o colcho. L, tampouco. Estava pelada, disseram. Nua. Estava, Neguinho?Abaixou-se, olhou sob o estrado de madeira, levantou-se, subiu na cama.

    Correu os olhos pela parte de cima do guarda-roupa, no viu nada, passou amo. Apenas poeira.

    Era muito gostosa, essa mulher do dentista. Parecia a Brigitte Bardot.Uma mistura da Brigitte Bardot com Sophia Loren.

  • Paulo no sabia quem era uma ou a outra, nem estava interessado. Masficou surpreso com parte do que o irmo dissera.

    Mulher do dentista? No era uma puta? Mulher do dentista. Mas na delegacia disseram que era puta. Dava para todo mundo. Era uma puta. Putona. Puta rampeira,

    galinhona, marafa. Mas era casada com o dentista.Paulo desceu da cama. Viu ela pelada, Neguinho? Era gostosa mesmo, no era? Estava toda ensanguentada. Suja, cheia de lama... Peitos empinados. Bunda empinada. Coxa grossa. Gostosa demais.

    Queria ter comido ela. Se tivesse enfiado minha vara naquela vagabundadeixava ela gamada por mim.

    Tanto quanto dos bceps e peitorais, Antonio se orgulhava do domnioque acreditava exercer sobre toda mulher que penetrava. Desde a iniciaocom uma prostituta, trs anos antes, ele e o pai iam juntos ao prostbuloque uma cafetina polaca mantinha numa rua prxima ao centro da cidade.No raro, dormiam l. Paulo os encontrara algumas vezes saindo do HotelWizorek, enquanto ia para a escola.

    Cortaram mesmo os peitos dela? Estava sem calcinha?Paulo levantou o colcho de crina, olhou com ateno, empurrou o

    colcho para a parede. Tinha pentelhos louros? Boceta rosada? No quero falar disso. No sei. No vi. Loura de verdade tem boceta cor-de-rosa e pentelho louro. J vi

    muita. J comi muita boceta de loura.Deixou o colcho cair de volta. S havia um dentista na cidade, um

    senhor franzino de cabelos ralos, que Paulo vira poucas vezes, sozinho,sempre de palet e gravata. No podia ser ele.

    O dentista velho. Ela era nova. Parecia nova. Uns vinte e quatro, vinte e cinco anos. O dentista deve ter o dobro.

    Ou mais. Ela s gostava de velho. S dava pra velho. Nunca olhou paramim.

    Pousou os halteres no soalho, encheu o peito de ar, ps-se de perfil para

  • o espelho, expirou, passou as mos pelo abdmen, acariciou os pelosalourados, virou-se de frente, inspirou fundo mais uma vez, flexionou osbraos. A pose confirmava: seus bceps estavam cada vez maiores. Nopercebeu que sorria satisfeito para si mesmo. Ergueu os halteres e passoua dobrar cada brao, alternadamente, por trs da cabea, inspirando eexpirando ruidosamente, inchando agora os trceps.

    Paulo puxou, irritado, a colcha e o cobertor para os ps da cama, semencontrar nada.

    Cad o livro que eu deixei aqui? Sei l. Viu o marido preso?Paulo virou-se, surpreso. A polcia prendeu o marido? Por qu? Se entregou. Confessou que matou ela. Como no viu o dentista, se

    voc estava l?Paulo fez as contas: deixara a delegacia havia mais de duas horas,

    levado pelo pai. Passaram pelo colgio, com Eduardo e a me, convocadospara a reunio com o diretor. Aguardaram de vinte minutos a meia hora atserem recebidos e ouvirem uma longa preleo. Saram quando comeava aanoitecer. Os postes da rua estavam acesos quando chegaram casa. Omarido da morta devia ter-se apresentado nesse nterim, imaginou,enquanto ia at a cama de Antonio, quase certo de que escondera ali oobjeto emprestado por Eduardo. Bastou colocar a mo por baixo do colchopara confirmar.

    Com cuidado trouxe para fora o livro em que, na capa colorida, seu herifavorito descobria, do alto de um penhasco, no profundo vale abaixo, smargens de um rio largo, azul e caudaloso, uma civilizao perdida na selvapor sculos.

    Foi para sua cama, deitou-se, jogou os sapatos sem olhar onde caam eabriu o exemplar desbotado de Tarzan e a cidade de ouro na pgina quetinha marcado com um barbante. Comeou a ler.

    Est lendo o qu, Neguinho? Livro de putaria? No gosto de ler. Nemlivro de sacanagem eu gosto de ler. Perda de tempo. Meu negcio foder.O que eu gosto mesmo de meter. Meto em boceta, meto em cu, meto naboca, meu negcio meter, enfiar minha caceta e gozar. Gozar muito.Tenho muita porra pra gozar e...

  • Logo Paulo estava longe dali. A dor desapareceu. No havia maisvergonha, nem tristeza. Percorria as ruas de uma cidade fabulosa escondidano jngal africano, pontuada por edifcios de arquitetura rebuscada eparedes de materiais preciosos que despertavam toda sorte de cobia,metrpoles desenvolvidas em meio a uma cincia avanadssima, povoadaspor uma raa como no havia nenhuma outra no mundo, protegidas porguerreiros altivos, vestidos de peles e armaduras guarnecidas deesmeraldas e rubis, bravos soldados que acabariam por se render coragem, honradez e destemor do rei das selvas.

    Quantas facadas ela levou?A voz de Antonio trouxe Paulo de volta ao quarto. No queria. Agarrou-se

    a um pargrafo e decolou de volta para a terra de Onthat, onde ficavam astorres de marfim e ouro das cidades perdidas de Cathne e Athne.

    Quantas facadas? Sete? Oito? Tem gente falando em mais de vinte.Quantas foram?

    Tentou retornar cidade onde Tarzan tinha sido lanado a uma arenaem que, quando soassem as trombetas, iria enfrentar um gigantefortssimo chamado Phobeg, numa luta em que o perdedor teria a gargantacortada para deleite da bela e perversa rainha Nemone.

    Quantas facadas?Tarzan desvencilhou-se das cordas que o prendiam e...Antonio arrancou o livro das mos de Paulo. Quantas facadas? Me d! Me d o livro! Quantas? Quantas facadas?Paulo tentava, sem sucesso, tomar de volta o livro que o irmo segurava

    acima de sua cabea com uma das mos, enquanto com a outra omantinha afastado.

    Me d o livro! Me d! Quantas facadas? Diz primeiro: quantas facadas? No contei. Me d o livro, Antonio! Diz: quantas? Quantas? No sei, no me lembro, no sei. Voc estava l, voc viu. Quantas?

  • O livro, Antonio... Quantas foram? Fala! Me d...A lembrana do seio cortado e da vermelhido da carne exposta, borrada

    de lama e sangue, voltou a Paulo. Sentiu-se muito fraco. Sentou-se nacama, tonto, sem foras. Calou-se. Abaixou a cabea.

    Antonio fitou-o por alguns instantes, achando que era uma encenao,pronto para reagir ao salto que seguramente viria a seguir, o livro bemseguro, alto, na mo direita. Mas Paulo continuou sentado na cama, acabea baixa escondendo o rosto. No se movia. O irmo jogou o livro emcima dele e foi se vestir para sair.

  • 2.Noche de Ronda

    Luna que se quiebrasobre la tinieblade mi soledad...a dnde vas?

    De onde vinha aquela voz?

    Dime si esta nocheT te vas de rondaComo ella se fue...

    Onde ouvi essa cano pela primeira vez?, ele se perguntaria muitosanos mais tarde. Era um som distante, como me parece, agora? Umhomem cantava. Ou uma mulher?

    Con quien est?...

    A voz chegava trmula, distorcida, ele recordaria. De um rdio. Talvezde um toca-discos na vizinhana. Algum que ouvia um disco. Ou uma fitacassete. Havia fitas cassete naquela poca, em 1961. Havia? Naquelacidade? Quem as teria? No um operrio. Ningum naquela rua poderia ter

  • um toca-fitas. Um pai aougueiro tampouco. Naquela rua, seguramente,ningum. Ou talvez sim. Talvez houvesse crdito fcil e qualquer pessoacom carteira de trabalho, ou mesmo sem ela, pudesse comprar umaparelho com rdio e toca-fitas em prestaes a perder de vista. Ummaquinista, um serralheiro, at mesmo uma costureira poderia possuir obem que quisesse: os tempos da iluso da abundncia ao alcance da mo jhaviam comeado. Um gravador de fita, por que no? Ou um gravador derolo. Eles j existiam, os gravadores de rolo, no incio dos anos 1960?Algum que eu conhecia devia ter um gravador com aquelas duas fitasmarrons girando e reproduzindo a voz dessa cano, se no, como poderiame lembrar deles agora?

    Dile que la quierodile que me muero de tanto esperar

    Que vuelva ya...

    Era uma vitrola, ele acreditaria, dcadas depois. Uma radiovitrola.Daquelas que tocavam discos pretos, pesados, com rtulos redondos nocentro, dentro de invlucros de papel. Como os discos de Hanna Wizoreck.Era numa radiovitrola que talvez tocasse a cano em espanhol. Mas nsainda no conhecamos Hanna Wizoreck. Na minha casa no haviaradiovitrola ou discos. Nem na dele. Eu sabia que era uma cano emespanhol?

    Que las rondasNo son buenas...

    Eu ouvi, mesmo, ele duvidaria, passados tantos anos, a voz que agorapermeia essas recordaes? Ou acrescentei a msica lembrana daquelanoite? Imaginei, imaginei ali, imaginei ento, que a mulher que s tnhamosvisto morta, em vida gostava do bolero de Agustn Lara. Que ouvia Nochede Ronda na vitrola, ou na radiovitrola, ou no toca-fitas. Ou soube maistarde que ela se embalava em canes assim chorosas, lamentos de

  • amores perdidos, splicas nostlgicas.No.No.Eu nem sabia como era a vida dela naquela noite. Imaginei a cano

    mais tarde. Ouvi a cano mais tarde. A msica em espanhol, a voz nanoite, tudo foi acrescido e... No. No. No. Tenho certeza: ouvi naquelanoite. Uma voz de homem. Acho que era. Faz sentido: voz masculina. Ellase fue, ele canta. Quem lamentava o abandono era ele. Uma voz masculina.Acho. Tenho certeza. Acho. Voz masculina, grave. Na mesma noite do diaem que encontramos o corpo dela.

    Que hacen dao,Que dan pea...

    O assobio soou pela rua mal iluminada. Depois, a imitao do pio demacuco, repetida quatro vezes, prximo ao renque de casas idnticas,silenciosas e apagadas. Dormiam cedo os funcionrios da Estrada de FerroCentral do Brasil. Dali a poucas horas despertadores barulhentos oumulheres estremunhadas de sono os sacudiriam para sarem sob o cu toescuro quanto o da hora em que tinham se deitado, no estmago o cafcom po e margarina tomado em p na cozinha, levando garrafas trmicase marmitas de alumnio com o almoo preparado na noite anterior, apercorrer as ruas de paraleleppedos midos pelo sereno, brilhantes luzdos postes de ferro ainda acesos, antes mesmo dos operrios sados doturno da noite da fbrica de tecidos.

    Paulo aguardou, apoiado no guido da bicicleta, junto ao muro baixo emfrente a uma das casas, ora se apoiando num p, ora no outro, impaciente,atento janela por trs da qual ficava o quarto de Eduardo. Os minutos sepassavam sem nenhuma indicao de que conseguira acord-lo.

    Repetiu o sinal secreto, mais alto. Um assovio longo, quatro pios. Semsucesso.

    Das montanhas escuras que rodeavam a cidade descia a neblina rala dasmadrugadas de abril. Acima dele o vu tnue se movia lentamente, svezes abrindo remendos estrelados.

  • Encostou a bicicleta e pulou o muro, evitando o porto que poderiaranger e acordar os adultos. Com poucos passos atravessou o jardim. Cadacanteiro, entre estreitas passarelas decoradas com cacos coloridos deazulejos, era bordejado por moldura de cimento pintada com cal branca paraafastar formigas. Uma roseira, apoiada em armao de ferro semelhante aoesqueleto de uma sombrinha, era a nica planta alta, provvelremanescente da famlia de ferrovirios que ocupara a casa antes. Nos doisanos em que vivia ali, a me de Eduardo plantara unicamente florespequenas de nomes femininos que Paulo desconhecia, cada espcieseparada em grupos de cores e matizes semelhantes, a formar buqusdelicados.

    Vira a mesma organizao meticulosa no interior da casa. Mveisbrilhantes, recendendo a leo de peroba, decorados com panos de crochtricotados por ela. No forno, sempre algo pronto para Eduardo comer, fossequal fosse a hora que lhe batesse a fome. Cortinas nas janelas. Portas comtrincos. Cortes de tecidos, moldes em papel riscado de giz e roupasincompletas das clientes dobrados e empilhados sobre a mesa de frmica,ao lado da mquina de costura sempre azeitada. Aroma de capim-cheirosonas roupas de cama. Pisos encerados e polidos todo sbado. Uma sensaode solidez e ordem que Paulo percebia, novamente sem conseguir definir,como acontecia com tanta coisa sua volta.

    Muitas vezes imaginara que gostaria de morar em um lugar assim:sempre limpo, onde seria esperado na volta da escola com almoo recm-preparado, quente ainda, para ser comido sentado mesa enquanto a me,ou outro algum, faria perguntas sobre o que lhe fora ensinado nas aulas damanh. tarde, entre uma freguesa de costura e outra, a me iria aoquarto onde ele estaria estudando, levando um pedao do bolo que acabarade assar e um copo de leite. Que cheiro teria um bolo assado dentro decasa? Que gosto teria um bolo quente feito em casa?

    Bobagem. Nem gostava de bolo. Se comia ou no comia o que acozinheira deixava nas panelas em cima do fogo, era problema dele. Faziaos deveres e trabalhos escolares pela surpresa e prazer de aprender coisasnovas. Banho tomava quando queria: muitos no calor, poucos no frio.Trocava ou guardava a roupa se tinha vontade. Estivesse a me viva comoa de Eduardo, no teria a mesma liberdade. Menos ainda a de entrar e sairquando bem quisesse. A qualquer hora. Quase a qualquer hora: tarde danoite era proibido. Mas quando o pai e Antonio dormiam no puteiro no tinha

  • por que se preocupar. Como esta noite.Junto janela assoviou e imitou de novo o pio de ave. Uma vez. Duas.

    No meio da terceira, Eduardo surgiu, o pijama azul de listas cinza fechadoat o ltimo boto.

    Que aconteceu, Paulo? Que horas so? Mais de meia-noite. Que isso no seu rosto? Nada. Est inchado. Quero te falar de outra coisa. Seu pai te bateu outra vez?Cochichavam. Paulo no conseguia parar quieto. Estava agitado desde a

    conversa com Antonio. O marido da morta confessou.Repetiu, diante do olhar desinteressado de Eduardo. O marido. O dentista. Confessou. Eu sei. Est preso. Eu sei. Ele disse que foi ele. Eu soube. Ouvi meu pai falando disso com minha me. mentira. Quem disse que mentira? No pode. Por que no pode? O dentista velho e fraco. Matou, assim mesmo. Como ia matar uma mulher grande feito ela, Eduardo? Voc viu como

    a loura era grande. Ele confessou. No foi ele. Primeiro deixou ela tonta com um remdio, depois esfaqueou.

  • Duvido. Mais de doze vezes, meu pai falou. Por que levou o corpo para to longe?Breve pausa. No lago arriscou Eduardo era mais difcil de encontrar? Se ia confessar, por que no deixou o corpo em casa? S confessou depois. Se arrependeu. Estava nervoso, ento levou o

    corpo para longe e...Paulo interrompeu-o: Como que botou o corpo pesado no carro? Arrastou? Isso: arrastou. Por que no jogou o corpo fora antes de chegar no lago? Por que no

    jogou num barranco? Num rio? Por que no jogou dentro do lago com umpeso amarrado, para afundar e os peixes comerem e ningum nuncaencontrar e ele poder dizer que a mulher sumiu, que a mulher fugiu decasa?

    As respostas de Eduardo tambm vinham com interrogaes: No deu tempo? Ficou pesado demais para arrastar na lama? No

    tinha o que pendurar nela? e acrescentou, com segurana: Se no amatou, para que confessar?

    Paulo, que remoera a mesma pergunta por horas, sozinho no quarto,rebateu com outras: ela no gritou, enquanto era esfaqueada? Nenhumvizinho ouviu os gritos? Ela no tentou fugir nem pedir socorro?

    Eduardo bocejou. Percebeu a neblina acinzentando a rua por trs dePaulo, achou que estava comeando a sentir frio e pensou que gostaria devoltar logo para o leito morno. Paulo insistia.

    Ela estava com as mos cortadas, se lembra?Eduardo no tinha certeza de que se lembrava. Deve ter sido para tentar segurar a faca, Eduardo. Ela deve ter

    brigado para no morrer. Tem de ter brigado. Qualquer um briga para nomorrer. E o dentista no era um homem forte para vencer ela.

    Que diferena faz? J passa da meia-noite, Paulo. Amanh ns temosaulas cedo. Amanh, no: hoje.

    No foi o dentista que matou ela. No foi!

  • Mas confessou. Pronto. Acabou. Ah, ? ? Ento me diz: por que ele cortou o peito dela fora, Eduardo?

    Hein? Hein, Eduardo? Por que cortou fora, Eduardo? Por qu?Calaram-se. De longe vinha o som entrecortado, falho, de um rdio. Ou

    de uma vitrola. Uma voz de bartono.

    Que las rondasNo son buenas...Que hacen dao,Que dan pena...

    O facho da lanterna de Eduardo brilhou sobre o semicrculo metlico queemoldurava a cabea da imagem da santa de madeira. Apertava contra opeito um crucifixo e duas rosas, uma branca, outra vermelha. Talhada commincias no sculo XVIII, pintada em tons suaves e j esmaecidos,contrastava com as cores e o rosto de boneca de feira da estatueta demassa atrs dela, produzida industrialmente na segunda metade do sculoXX. direita, a figura em gesso pintado de uma jovem de cabelos longostinha um ramo de lrios brancos nos braos. Vrias outras estatuetasestavam dispostas sobre a mesa oval de jacarand, ladeadas por doiscastiais cilndricos de prata, encimados por velas altas.

    Os olhos de Paulo desviaram-se para os quadros de tamanhos eformatos diversos na parede acima. Mostravam mulheres e homens de arpiedoso. Alguns tinham chagas nas mos e nos ps. Vrios exibiam halosem torno das cabeas. Paulo reconheceu um deles: o velho barbudo que,apoiado em um cajado, atravessava um riacho levando ao ombro umsorridente menino de cachos dourados e olhos azuis. Era o mesmo santoque um motorista amigo de seu pai mantinha pendurado no espelhoretrovisor do txi.

    So Cristvo apontou. Carregando o menino Jesus. Fale baixo censurou Eduardo. Se algum nos pega aqui estamos

  • fritos!Paulo achou a precauo exagerada. Tinha certeza de que ningum os

    vira pular o muro dos fundos, nem entrar pela veneziana do banheiro. Nohavia gente nas ruas quela hora da madrugada. Ainda que algum passasseem frente casa do dentista, no ouviria o que era dito por trs de suasparedes grossas. Ademais, ainda no aprendera a controlar o tom da voz,que comeava a misturar tons roucos da adolescncia que chegava aosagudos da infncia. Protestou com um muxoxo, que Eduardo ignorou,atarantado diante das estatuetas.

    Nunca vi tantas. Tantas o qu? Santas. Santos. E to antigos. Olha essa. Veja como benfeita. Olha

    o nariz, as mos, os detalhes das unhas. O crucifixo representa a devooa Jesus Cristo.

    Paulo no sabia o que significava devoo. igual a amor, s que mais ainda.A resposta no fez sentido para Paulo. Quem ? Santa Terezinha. Os devotos dela recebem uma chuva de rosas

    quando entram no paraso.Tampouco fazia sentido, mas Paulo no contestou. E a dos cabelos compridos? Santa Maria Goretti. Os lrios so para mostrar que era pura. Como voc sabe que quer dizer isso? Todo mundo sabe. Eu no sei. Todo catlico sabe. Minha me que era catlica. Meu pai no liga para religio. Ningum

    me obriga a ir missa. Nem a mim. Eu vou porque quero. Vai dizer que quando sua me e seu pai vo igreja no domingo eles

    deixam voc no ir? Eu vou porque quero ir. E eu no vou porque eu no quero.

  • Eduardo encerrou a discusso apontando para a santa de cabelos longos. Essa teve at um filme sobre ela. Qual? A dos lrios. Santa Maria Goretti. Um sujeito quis praticar atos

    indecentes com ela, ela no deixou, ele a matou a facadas. Ento foi isso que aconteceu com a mulher do dentista! Mas no era puta? Ah, sim, era. E o dentista tinha direito de se aproveitar dela. Era o marido. Mas no foi ele que matou. No isso que a gente vai provar? . Ento vamos continuar a investigao. Vamos procurar mais. O que

    aquilo, l?O facho mostrou ao fundo um mvel alto. Tinha duas portas na parte

    superior e uma gaveta embaixo. Abriram as portas. Uma delas rangeu. Aluz correu por alguns ternos cinza-escuro, um par de palets pretos ecalas no mesmo tom, camisas sociais brancas, gravatas pretas e azul-marinho, jalecos brancos com as iniciais do dentista bordadas no bolso. Nagaveta encontraram pilhas de cuecas, camisetas e lenos, todos brancos.Enrolados em um canto, alguns pares de meias pretas.

    S roupa de homem. S roupa do velho. S roupa do dentista. Aqui o quarto dele. Quarto deles, Paulo. Marido e mulher dormem juntos. Olha ali: a cama de solteiro. Deve ser quarto de hspedes Eduardo comentou, de olho na

    imagem do Cristo crucificado, acima do leito. Gente rica tem isso. Oquarto do casal outro, com certeza.

    Saram. A luz da lanterna percorreu o corredor at a porta do banheiropor onde tinham entrado. Adiante, numa saleta azulejada at o teto e pisode lajotas vermelhas, havia apenas uma mesa de jantar, duas cadeiras, umfogo, um bujo de gs.

    No sentido oposto o corredor levava frente da casa, onde ficava o

  • consultrio dentrio, separado do corpo do imvel por divisrias de alumnioe placas de plstico leitoso de construo recente. Poucos metros antes,frente a frente, duas portas fechadas.

    Foram at elas.A da esquerda estava apenas encostada. Empurraram e entraram. De

    lado a lado entre as paredes havia radiografias e negativos fotogrficospendurados em cordes. A um canto, sobre a bancada de uma pia, duasvasilhas retangulares de metal, com lquido at a metade. Em uma delasboiava uma folha de plstico escuro, que Eduardo pegou, examinou contra ofacho da lanterna, depois estendeu a Paulo: imagens de um dente com raizcomprida. Paulo jogou-a de volta no lquido.

    No cmodo em frente, a porta pareceu trancada, mas acabou por seabrir quando Eduardo a empurrou mais forte, aps girar algumas vezes amaaneta de loua. A luz da lanterna bateu no espelho de uma penteadeirae eles se viram refletidos: dois meninos, numa casa s escuras, em buscade algo que no sabiam o que era.

    Boa parte do aposento era ocupada por uma cama de casal larga,coberta por colcha de tecido atoalhado verde. Na parede ao lado, um mvelde madeira marchetada, com bordas arredondadas e vrias gavetas. Sobre otampo de mrmore, nenhum objeto. Nem imagens de santos nas paredes.Ou crucifixo acima do leito. Travesseiros, tampouco.

    Eduardo foi penteadeira. Viu embalagens de cosmticos, caixas de p,esponjas, vidros de esmalte e perfumes. No eram diferentes dos que viana penteadeira de sua me. Exceto pelas cores: todos os batons e esmaltesda mulher assassinada eram de um vermelho denso como o de uma goiabapodre.

    Cautelosamente abriu, uma a uma, as quatro gavetas laterais. Encontrouum pente aqui, uns grampos ali, uma escova de cabelos na outra, um estojode manicure, um par de botes, uma almofada pequena com agulhas ealfinetes, uma tesoura, algumas moedas. Nenhum bilhete revelador, cartaou mensagem.

    Ilumina aqui, Eduardo.Virou-se, apontou a lanterna. Paulo tinha nas mos vrias peas de roupa

    semelhantes, que acabara de retirar da gaveta mais baixa do armrio.Colocou uma na cabea. Parecia uma touca dupla. Sorriu, encantado.

    um suti, Eduardo!

  • Pe de volta. Por qu? So roupas da morta. J tinha visto tantos sutis? No fica mexendo nisso. Mas no estamos procurando pistas? Suti no ...Interrompeu-se. Fez sinal com o indicador nos lbios, pedindo silncio. O qu...?Eduardo repetiu o sinal de silncio. Apontou na direo do corredor. Havia

    uma claridade nova, irregular.Um facho de luz percorreu o teto do corredor, em seguida o assoalho.

    Uma outra lanterna. Uma outra pessoa na casa. Devia estar usando sapatosde sola de borracha porque no ouviam seno um rudo surdo, conforme asvelhas tbuas eram pressionadas a espaos regulares. Passos curtos.Cautelosos.

    Quem...?Eduardo tapou a boca de Paulo com a mo. O rudo dos passos continuou

    pelo corredor. A luz da outra lanterna voltou-se na direo do quarto quetinham deixado h pouco. O corredor ficou novamente s escuras.

    Ouviram o ranger da porta do armrio duplo, em seguida o rudo dosganchos dos cabides sendo afastados. Eduardo indicou com a cabea quedeveriam sair dali, tomou o suti das mos de Paulo e o jogou de volta nagaveta. Ento viu uma caixa retangular no fundo dela. Pegou-a. Ficouindeciso entre abri-la ou lev-la. Paulo, levantando-se, esbarrou na caixa. Ocontedo se esparramou no cho.

    Camisas de vnus! exclamou, entre os dentes, reconhecendo ospreservativos de ltex iguais aos do irmo. Quantas!

    Esticou-se para pegar algumas, mas Eduardo puxou-o pela manga e oarrastou para fora do quarto. No banheiro, Paulo ajudou Eduardo a passarentre as venezianas. Em seguida subiu na beira do vaso sanitrio, pisou nobeiral da janela, inclinou-se, enfiou o ombro esquerdo entre um painel devidro e outro, depois a perna esquerda, logo se esgueirou e estava junto aEduardo no quintal da casa.

    Do outro lado da rua esconderam-se atrs de uma caamba de lixo.

  • Ouviram o sino da catedral. Uma badalada. Pausa. Uma segunda.Silncio.

    Duas da manh! Se minha me descobre que no estou na cama vaificar preocupada.

    Paulo torceu para que a festa de prostitutas, cachaa e risos, em queimaginava seu pai e Antonio mergulhados, estivesse mais animada quenunca.

    Se meu pai volta e descobre que no estou em casa, me mata. Por que ele te bate sempre? Nem sempre. J te vi com a cara inchada tantas vezes... Culpa minha. Culpa sua? Eu no presto. Que isso, Paulo? No presto. Nunca te vi fazer nada que... Penso muita coisa ruim interrompeu. Que coisas? Coisas. Feias. Como o qu?Paulo calou-se. Pode falar. Tem vezes que eu...Calou-se, novamente. Fala, Paulo. Nada, no. Pode falar.

  • Tem vezes que eu queria enfiar uma faca no corao do meu pai, Pauloteve vontade de dizer. Furar ele. E torcer a faca. Cortar a garganta dele atesguichar todo o sangue por ali, como um porco. Furar o olho dele, batercom uma pedra na cabea dele at esmagar tanto, tanto, que ningum nemsoubesse de quem era aquela cara, jogar gasolina na cama em que eledorme e acender um fsforo, botar fogo na casa e ver ele e o Antonioarderem at virarem dois pedaos de carne preta, dar um tiro na boca dele,dar um tiro em cada mo e em cada p dele, cortar cada dedo, um a um,cortar o nariz, cortar as orelhas, cortar os lbios, cortar a lngua, cortar opinto, cortar o saco. Penso isso tudo o que meu pai sabe que eu penso e elesabe que eu tenho esses pensamentos porque eu tenho sangue ruim, nascicom esse sangue ruim, no como o sangue dele e o do Antonio, tenhosangue ruim como o da famlia da minha me e ele sabe, porque eu nopresto e se eu no afastar esses pensamentos da minha cabea um dia eusou capaz de fazer tudo isso mesmo porque eu... porque eu tenho...

    Desejos perversos, diria, se conseguisse entender o significado do quelhe ocorria e permanecia aps cada ato de violncia do pai. Respondeuapenas:

    Coisas. Ruins. De raiva.Eduardo no entendeu. Por que seu pai te trata assim? No sei. Ele no gosta de voc? No sei. Mas se voc resolver esse crime ele vai gostar. . Vai ficar orgulhoso. . Se voc provar que o dentista no o assassino da mulher, ele vai te

    tratar de outra maneira. No vai?Paulo no respondeu. Olhava para a frente, quieto, a ateno voltada

    para uma figura que abria o porto da casa do dentista e se afastava nadireo oposta que estavam.

    Foram atrs.Talvez porque o calamento de pedras fosse irregular, talvez porque a

  • rua em aclive assim exigisse, o homem caminhava devagar, bem no centrodela. A cada crculo de luz dos postes era possvel observ-lo melhor.Baixo. Magro. De palet. Cabelos brancos. Ou grisalhos.

    Se olhasse para trs ele veria dois garotos, um mais comprido que ooutro, andando muito perto das paredes e muros das casas centenrias,buscando as sombras como os detetives dos filmes que tinham visto.Porm o homem baixo magro de palet e cabelos brancos ou grisalhosseguia em frente, sem pressa. Passeava? quela hora da madrugada?

    Virou esquerda, entrou em um beco.Eduardo e Paulo correram para no perd-lo de vista. No foi necessrio:

    continuava caminhando no mesmo passo curto e ritmado.Assim chegou prxima rua de paraleleppedos, igualmente margeada

    por slidas casas datadas da metade do sculo XIX, construdas pelosfazendeiros de caf da regio para visitas e compras na cidade. Quando amaioria se arruinou aps a libertao dos escravos tiveram de vend-las, ouseus descendentes fracassados as transformaram em residnciapermanente, escorraados das grandes fazendas dos pais e avs, perdidaspara hipotecas bancrias ou para recm-chegados imigrantes europeus.Poucas das casas ainda estavam preservadas. A maioria foradescaracterizada por adies e reformas: fachadas modernizadas, curvasde cantaria substitudas por linhas retas de tijolo e cimento, azulejosportugueses por argamassa e pintura, janelas de pinho-de-riga por alumnio,vidros bisotados franceses por plstico corrugado recm-fabricado nasindstrias que se multiplicavam em So Paulo. Duas casas tinhamdesabado. Uma terceira, junto a elas, fora demolida, e no terreno formadopelas trs, no final dos anos 1920, erguido um cinema de dois andares emvago estilo art dco.

    O homem sem pressa parou diante dele, pareceu ler o ttulo namarquise, em letras maisculas de madeira pintadas de preto, penduradassobre grade de arame grosso: Atirem no pianista. Era o filme exibido nanoite anterior. No Cine Theatro Universo, como em tantos outros de cidadesdo interior do Brasil naqueles tempos, as atraes eram trocadasdiariamente, exceto nos fins de semana. Podiam ser francesas, italianas,mexicanas, argentinas, alems, japonesas, americanas ou nacionais. A danoite seguinte estava anunciada no cartaz sobre cavaletes, no saguo portrs das portas de ferro sanfonadas. Era uma fita brasileira: Um candangona Belacap, com Ankito e Grande Otelo. Paulo dava boas risadas com eles,

  • Eduardo gostava mais de Oscarito. Nas vitrinas externas, um cartaz emtons vermelhos, por enquanto s com o ttulo americano, West Side Story, eum em preto e branco, em que a imagem de uma mulher loura dentro deuma fonte vinha abaixo do nome Federico Fellini, junto a trs palavras: Adoce vida.

    Paulo, por trs de Eduardo, sem conseguir ver o rosto do homem queseguiam, elaborava teorias.

    Ele suspeito. Por qu? No assim que se fala, quando uma pessoa pode ser o assassino? Suspeito, sim, a palavra. Pois ele . Olha s o jeito dele. Est com as mos nos bolsos do palet, lendo os cartazes dos

    filmes. Se no suspeito, foi fazer o que na casa do dentista? O que voc acha? Esconder provas do crime! Aposto que ele o verdadeiro assassino. Ele baixo como o dentista. E magro, tambm. E se os dois se juntaram para matar ela? Enquanto ela lutava com

    um, o outro enfiava a faca. No havia nada quebrado l. Nenhum sinal de luta. No encontramos

    prova de nada. Porque o suspeito apareceu. A gente teve de fugir. Suspeito? Com essa calma? Mas quem ele, ento? Foi fazer o qu, l na casa do dentista?O suspeito de Paulo virou-se, caminhou alguns passos, entrou na praa

    que tinha o nome de um heri local, morto na batalha de Monte Cassino, naItlia, durante a Segunda Guerra Mundial, mas que os moradores da cidadeinsistiam em chamar apenas de A Praa do Jardim de Cima. No centro,dominado por um coreto em forma de pagode chins, o homem de cabelosbrancos ou grisalhos subiu os quatro degraus, apoiou-se na balaustrada deferro moldado em imitao de bambu, olhou em torno, desceu, sentou-seem um banco.

    Viu a cara dele?

  • Mais ou menos. Quem ? Acho que no conheo. Nunca viu? Acho que no.Sob a marquise do cinema, confiando no abrigo das sombras, viram

    quando o homem tirou algo do bolso interno do palet, sem conseguiremdistinguir o que era. Acharam que escrevia. Interrompia, olhava o objeto,parecia escrever mais um pouco. Guardou o objeto de volta. Cruzou aspernas e permaneceu assim por algum tempo. Levantou-se. Olhou emtorno, como se buscasse uma direo. Partiu.

    Desceu a ladeira onde placas diversas, acima de vitrines apagadas eportas de ferro, indicavam as lojas da principal rua de comrcio. Ao fimdela, nova ladeira levava parte mais alta da cidade, ocupada pela catedralde torres duplas, desproporcionalmente grandiosa, inaugurada pelorepresentante do jovem imperador Pedro ii em 1835 em testemunho dareligiosidade, prestgio e poder econmico dos bares de caf.

    Passou pela igreja, contornou-a, desceu a rua ngreme direita. Na parteplana, sempre afastado da calada, cruzou frente fachada de tijolosvermelhos pontuada por janelas basculantes. Uma guia de concreto,pintada de branco e tendo no bico uma placa de bronze com a fraseInaugurada em 1890 e ramos de algodo nas garras pousadas sobre umglobo terrestre em alto-relevo, encimava os dizeres Fbrica de TecidosUnio & Progresso. A me de Paulo trabalhara ali como tecel. Aliconhecera o futuro marido, operrio do setor de tinturaria antes de setornar aougueiro.

    Para onde voc acha que ele est indo? No sei, Paulo. Para casa? Ele est indo cada vez para mais longe.A rea que o homem percorreu a seguir era pouco conhecida deles. As

    casas iam rareando, surgiam terrenos desocupados, um ou outro cercadopor muro de tijolos ou varas de bambu, muitos cobertos por capim alto eps de mamona. Aps um destes, um paredo de pedras, extenso, patinadode limo, pontuado por tufos de avencas e marias-sem-vergonha. Sobre ele,no trecho menos iluminado da rua, dobravam-se os galhos volumosos de

  • uma das rvores do lado de dentro.Foi debaixo dela que ele parou. Chegando muito prximo do muro, ergueu

    os braos, pareceu procurar com as mos, encontrou: uma corda. Conformecomeou a puxar, com algum esforo, surgiram do outro lado duas pontasde madeira, unidas por tbuas paralelas, em uma das quais a corda estavaamarrada. Uma escada de pintor.

    Aps abaix-la at a calada, o homem de cabelos grisalhos ou brancosencostou a escada contra as pedras. Subiu cada degrau com cuidado.Sentou-se no alto do paredo. Em precrio equilbrio, puxou a corda,erguendo a escada. Virou-a para a parte de dentro. Segurou um galho,colocou um primeiro p num dos degraus, depois outro, soltou o galho, psas duas mos na escada e logo desapareceu por trs das ramadas.

    Correram at o muro. A corda ainda balanava entre as folhagens. Umatroca de olhares bastou para que decidissem.

    Vamos l dentro!Paulo fez um apoio com as mos, Eduardo pisou nelas e pulou,

    esperando pendurar-se na corda. Agarrou-a, mas caiu sentado. A corda veioparar no meio de suas pernas. No estava mais presa escada.

    Aps um momento de decepo e surpresa, recobraram o nimo. Pauloenrolou a corda em torno do pescoo, enquanto Eduardo procurava outraentrada. Deu a volta ao muro. Encontrou um porto duplo de madeira, quaseda mesma altura do paredo. Trancado. Pregado nele, uma placa. Dizia:Asilo de Idosos So Simo.

    Longe, o relgio da catedral soou uma, duas, trs vezes.

  • 3.Caubis e ndios

    O velho dormia torto na espreguiadeira de lona, protegido do sol datarde pela folhagem da rvore esparramada para alm do muro do ptio. Desua boca aberta escorria uma baba fina, que descia pelo queixo, molhava agola da camisa do uniforme do asilo. Os ralos fios de cabelo deixavam mostra manchas escuras pela cabea. Outro velho, ainda vestindo pijama,sorria para os dois meninos uma boca sem dentes. frente, dois jogavamcartas, um terceiro permanecia imvel diante de um tabuleiro de xadrez,um quarto folheava uma revista. No banco junto ao muro um arruivado esardento balanava o corpo para a frente e para trs, enquanto balbuciavauma cano sem som. Mais alm, apoiando-se em muletas, um gordosentou-se ao sol e estendeu frente a nica perna, enrolada em bandagens.Tinha feridas violceas no rosto. Prximo a ele, sobre uma cama de rodas,uma figura envolta em cobertores gemia. Em outras macas, bancos,espreguiadeiras, outros velhos. Dezenas deles.

    Eduardo e Paulo no sabiam para onde se dirigir, rodeados peloamontoado de misria humana e corpos arruinados como sequer sabiampossvel. Descobriam um destino para os velhos diferente do queconheciam, do que tinham visto, do que ouviam falar: dos que chegavam aofim amparados pela famlia, expirando em seus prprios leitos, assistidospela mulher, por filhos, por netos, um amigo, ao menos.

    Ele no est aqui. Nenhum desses o homem que pulou o muroontem noite.

    Tem que estar. Ns vimos ele entrar Paulo insistiu, a cordaenrolada em torno do ombro.

    Olhe para esses velhos, Paulo! Olhe!Aqueles no ptio eram o refugo que no conheciam. Os enjeitados, os

  • malucos, os enfermos, os caducos, os chaguentos, os mutilados, os senis,os alcolatras, os dbeis, os pobres, os analfabetos, os mendigos, osaleijados largados prpria sorte. Os sobrinhos, avs, pais, tios esquecidosem sanatrios e hospitais, enxotados de casa ou recolhidos sob marquises,sob pontes, em becos, lixeiras, praas, em jardins e caladas, em beiras deestradas do pas que se industrializava, se agigantava, se modernizava. Anao da Amrica do Sul das repblicas de bananas que navegava para forado Terceiro Mundo fabricando tornos e automveis, caminhes, tratores,geladeiras, lmpadas, liquidificadores, televisores, aparelhos de som,sapatos, refrigerantes e mquinas de lavar, o pas que fora capaz decrescer cinquenta anos em apenas cinco de total democracia, e que notinha mais lugar para aqueles homens.

    Ningum aqui conseguiria entrar na casa do dentista. Nem fazeraquele truque da corda.

    Quem sabe est escondido l dentro? Todos esto aqui. hora do banho de sol. L dentro s fica quem

    est muito doente. Ento...? No daqui. Entrou aqui, mas de outro lugar Eduardo concluiu,

    girando sobre os calcanhares, encaminhando-se para a sada. Paulo o seguiu. E agora? Vamos embora. Assim a gente deixa o suspeito escapar. Que suspeito, Paulo? Olhe esses velhos. Estou olhando. Est vendo algum parecido com o homem desta madrugada? No. Ningum. Espere...Pararam. Paulo apontou na direo de uma dupla: um velho parecia olhar

    para eles com ateno, o outro cobriu o rosto com um jornal, como seestivesse lendo.

    Aqueles. Um careca. O outro alto. Nosso suspeito baixo e tem cabelos

    brancos ou...Foi interrompido por uma voz atrs dele:

  • Joga xadrez?Era o homem diante do tabuleiro. Apontou a cadeira vazia em frente: Quer jogar? No, obrigado, estamos indo embora. A gente no sabemos jogar acrescentou Paulo. No sabemos e j estamos de sada Eduardo disse rpido,

    encobrindo o erro de concordncia do amigo. Nenhum dos dois joga xadrez? Meu pai joga damas com meu irmo. igual? Conhecem o jogo? J vi na televiso Eduardo respondeu. Voc possui um aparelho de Tele-Viso? o velho admirou-se,

    separando as duas palavras. Nunca assisti Tele-Viso. to bom quantocinema, como dizem?

    Ah, no. tudo em preto e branco. Mas na minha casa no... Sua Tele-Viso no em tecnicolor? S existe televiso em preto e branco. E a imagem fica fugindo,

    sabe? Como se estivesse dentro de uma onda, entende? Flutuando? Isso, flutuando! Os artistas aparecem tortos. A tela pequena e

    dentro de uma caixa. L dentro tem muitos fios e muitas vlvulas, que socomo lmpadas, entende? S que diferentes.

    Sua famlia deve ser abastada. Um aparelho de Tele-Viso custa caro. No somos ricos, no, senhor. E ns no temos... O pai do Eduardo mecnico da Estrada de Ferro Central do Brasil

    Paulo explicou. Eu vi televiso na casa do meu tio. No Rio de Janeiro acrescentou Paulo. Seu tio um homem de posses, com certeza. Acho que sim. , sim. O tio dele mora num bairro chamado Tijuca. L todo mundo tem

    automvel. Meu tio tem um Aero-Willys, conhece? um carro grande, cabem

  • seis pessoas. O tio dele mecnico de aviao. Trabalha na Panair do Brasil. O tio dele j foi na Europa e nos Estados Unidos. A Panair do Brasil uma companhia de aviao, conhece? Uma das

    maiores do mundo. Ele meu tio porque casado com a minha tia. A irmda minha me.

    O tio dele j foi duas vezes na Europa. E uma aos Estados Unidos. Eles foram. Ele e minha tia. Ele disse que

    vo de novo, ano que vem. esse tio dele que tem televiso em casa. Na Tijuca. Mas meu pai falou que vai comprar uma. Assim que tiver dinheiro. E quando instalarem uma torre aqui, para receber. Para receber a imagem. transmitida pelo ar, feito o rdio. Aqui no nos deixam ouvir rdio. proibido. As freiras no gostam. No gostam de msica? De barulho. De msica alta. Muitos velhos daqui so surdos e s

    conseguem ouvir rdio em alto volume. Por isso as freiras proibiram. Maselas no gostam de nada. Proibiram at os noticirios. Nem sequer oReprter Esso podemos escutar. Aqui as revistas so velhas, os jornais dedias atrs. Ficamos isolados, sem saber o que se passa no mundo. Essacorda a minha?

    Pego de surpresa, Paulo no soube o que responder. Essa corda no seu ombro, menino: a minha? insistiu o homem

    moreno e levemente estrbico. A voz tinha uma suave cadncia nordestina. Sua, como? reagiu Eduardo. Minha. Comprada com meu dinheiro. Estava amarrada escada. Escada? Que escada? repetiu Paulo. A escada de madeira que estava ali, encostada ao muro. No sei de escada nenhuma! Sabe, sim. Vocs dois sabem. Tanto sabem que vieram aqui. Vim trazer uma encomenda do aougue do meu pai.

  • mentira. Voc e seu amigo estavam fuando pelo ptio. O pai dele mandou trazer um pacote de carne e eu vim junto. Vocs entraram aqui sem pacote nenhum. Porque entreguei na portaria. Me d essa corda. minha. A corda nossa afirmou Paulo. Foram vocs que me seguiram. Ns? a surpresa de Eduardo era genuna. Vocs. Eu vi. Viu? De jeito nenhum. Ns nunca... Vocs invadiram a casa do dentista. Depois me seguiram at aqui. Ns... O qu? Eduardo tentou um tom indignado. Vocs me seguiram e levaram minha corda. Eu nem sa de casa ontem noite. E o Paulo est proibido de sair. Se eu sair de noite meu pai me mata. Minha me tem sopro no corao. No posso ficar por a de

    madrugada. Vocs invadiram a casa que estava fechada pela polcia. Invadiram a

    cena do crime. De jeito nenhum! protestou Eduardo, sem convico. A gente s ficou do lado de fora. Foi isso que fizemos. Ficamos vigiando do lado de fora. Para ver se

    acontecia alguma coisa. Vocs reviraram tudo. Mexeram na roupa ntima de dona Anita. A gente ficou o tempo todo do lado de fora da casa. Vocs invadiram a cena do crime. Entraram pela janela da cozinha ou

    pela janela do banheiro. Foram aos quartos, foram ao laboratrio, abriramos armrios, abriram as gavetas. Tiraram vrias evidncias do lugar. Talveztenham escondido alguma.

    No somos ladres! Roubaram minha corda. No roubamos.

  • Ela caiu, quando eu puxei. Ento me devolva. Como a gente pode saber que sua mesmo? O que foram fazer na casa do dentista? Nada. que o Antonio, o meu irmo, ele falou que a mulher do dentista... Buscavam o qu? O irmo dele falou umas coisas da mulher do dentista e a o Paulo foi

    minha casa... A a gente pensou que ele, que o dentista, que ele era pequeno e

    velho, sem querer ofender o senhor, mas a a gente pensou como que umvelho ia poder matar uma...

    Me d essa corda. No levamos nada da casa do dentista, o senhor pode acreditar

    garantiu Eduardo. Diga ao seu amigo que me d a corda. Encontrado no roubado. Seus pais sabem que vocs passam as madrugadas fora de casa,

    zanzando pelas ruas da cidade? Foi s essa vez! No conta para o meu pai, por favor. O jogo de xadrez muito interessante, sabem? Eu diria, e nisso no

    tenho receio de estar cometendo exagero, eu diria at que a prtica doxadrez nos prepara, falo em sentido metafrico, evidentemente, nos preparapara os embates da vida, vocs compreendem?

    Sim, senhor acedeu Eduardo, mentindo, disposto a qualquerconcesso para sair daquela situao.

    O que metafrico? O que embate? Depois te explico, Paulo. E o senhor, estava fazendo o qu na casa do dentista? Viver em asilo muito aborrecido. No estou aqui por caridade, vejam

    bem, como estes pobres coitados. Pago minha estadia com os proventos deminha aposentadoria.

  • Pr-ventos? o sotaque do velho confundiu Paulo. O que tem osventos?

    Pr-ventos corrigiu Eduardo, exagerando a pronncia. Nada a vercom os ventos. Dinheiro. Salrio.

    Meu salrio, meu dinheiro o velho sublinhou. Minhaaposentadoria. No devo favores a ningum.

    O senhor tambm invadiu a cena do crime! Paulo irritou-se. No invadi coisssima alguma. Aqui os velhos s falam do passado.

    Quando ainda conseguem falar de alguma coisa. O nico assunto dasfreiras o reino dos cus. Trancam os portes depois do jantar. s oito danoite, todos em suas camas! S descobri que tinha acontecido um vooespacial porque fugi ontem noite. O primeiro da histria da humanidade enem sequer um comentrio das freiras ou dos velhos!

    Iuri Gagrin lembrou Paulo. A Terra azul! Eduardo citou. Um russo acrescentou Paulo. No posso ficar preso aqui dentro. Me d a corda.Paulo olhou para Eduardo, que meneou levemente a cabea, antes de

    estender a corda ao velho.Ele no a pegou. Coloque atrs daquele arbusto.Paulo e Eduardo caminharam at a vegetao junto ao muro, procuraram

    a mais densa e ali esconderam a corda. Quando se viraram, o velho jcaminhava para o interior do asilo, levando sob o brao a caixa do jogo dexadrez.

    Sentado na calada em frente ao muro do asilo, Eduardo assoviava umacano. Assoviava baixo, desatento ao que fazia, aguardando Paulo.Perscrutava o cu, na esperana de ver uma estrela cadente.

    A princpio os sons no tinham compasso. Um menino, assoviando nanoite, para se distrair. Aos poucos, sem que percebesse, os tons foram se

  • alinhando, uma nota se harmonizando com a seguinte, tomando o caminhode uma melodia. Suave. Ritmada como passos deslizando sobre um pisoclaro, frio. Juntas, ondulantes, as notas acabaram por formar uma msicatantas vezes ouvida antes das sesses no Cine Theatro Universo ecantarolada vez por outra por sua me, as costas arqueadas sobre amquina de costura, o pedal marcando a cadncia. A voz, um sussurroquase, tinha harmonia doce e melanclica.

    Amapola,lindsima Amapola,

    Ser siempre mi alma, tuya sla.Yo te quiero,

    amada nia maIgual que ama a la flor,

    la luz del da

    O muro em frente, as estrelas acima, os paraleleppedos a seus ps,tudo em torno dele perdeu a nitidez. Achou que j tinha passado por aquelasituao, a mesma, igual, igualzinha, alguma vez no passado ou agorinhamesmo, e no entendeu o que era nem por que seus olhos tinham seenchido de lgrimas. Outra vez isso, pensou, outra vez essa... essa... oqu?, tomava conta dele como um aperto no corpo inteiro, como se algoestivesse machucado, ralado, ardendo. Mas l. Dentro. Uma pontada. Nouma dor: pontada. Fina, fina, fininha. Doa fino. E levava tempo para passar.Ou, ao menos, amainar. Quando finalmente parecia sumir, deixava umavontade de ficar quieto, de no rir, de no conversar, de no brincar, de nosair.

    Amapola,lindsima Amapola,No seas tan ingrata

    Y mame,Amapola,

  • Amapola,Cmo puedes

    T vivir tan sola...

    Se estivesse em casa, fecharia a porta do quarto, se deitaria, cerraria osolhos e procuraria sair daquele desnimo conjugando mentalmente verbosirregulares; citando cada pas da Amrica do Sul, da Amrica Central e daAmrica do Norte e sua capital; repetindo as declinaes em latim;lembrando, alternadamente, como fazia agora, murmurando, os afluentes damargem direita do rio Amazonas Javari, Juru, Purus, Madeira, Tapajs eXingu e os da margem esquerda I, Japur, Negro, Trombetas, Paru eJari. Se as imagens dos rios caudalosos ziguezagueando pela floresta nofossem suficientes para aquiet-lo, tentaria os presidentes da repblica, defrente para trs: Jnio Quadros, Juscelino Kubitschek, Getlio Vargas, EuricoGaspar Dutra...

    O que voc est fazendo?Paulo acabara de chegar. Estava a p. Lembrando os presidentes do Brasil. Voc est atrasado. O pai e o Antonio demoraram a sair. O velho j apareceu? No. Cad sua bicicleta? Deixei em casa. Assim pensam que estou por l.Eduardo estendeu para ele duas tiras de papel, escritas e dobradas.

    Antes mesmo de abrir Paulo j sabia o que eram: o significado das palavrasque o velho dissera tarde. Embate. Metafrico. Eduardo tinha umdicionrio. Na escola, fora ele, s os filhos de doutores. Mas estes nocontavam: os livres pertenciam aos pais.

    Palavras decifradas eram parte de um acordo de ajuda mtua, nuncaverbalizado, entre eles. Na porrada ou nos estudos, um amigo est semprepronto para estender a mo ao que precisa. Os papelotes das palavras,muitos j, eram guardados sob meias e cuecas, em um canto do guarda-roupa, para Antonio no descobrir. Riria, com certeza. Debocharia dointeresse dele. Palavras!... Sinnimos!... Guardadas como tesouros!... Quantababaquice, Neguinho!

    Paulo inspirou, profundamente, com prazer. O ar estava carregado do

  • aroma de damas-da-noite. O cheiro ardente parecia fazer carcias dentrodele. Estava perto de acabar, uma pena. O inverno se aproximava. Quando otempo esfriasse, a flor em forma de clice, de bordas nacaradas, fechada,murcha e inodora durante o dia, desapareceria de sua vida. O fim dafragrncia intensa marcava o fim do vero.

    Que horas so? perguntou.Eduardo levantou-se, esticou o pescoo, mas dali no via o relgio da

    torre direita da catedral. Umas dez e tanto. Acho.Paulo chutou uma pedra imaginria. Depois uma bola de futebol

    imaginria. Depois uma bola de futebol imaginria diante da boquiabertaplateia de um estdio estrangeiro. Vestia o uniforme da seleo brasileira,ao lado de Zito, Didi, Pel, Garrincha, Nilton Santos, Bellini, Orlando,Mazzola, De Sordi, Zagallo e Gilmar. Em rdios e alto-falantes, nas maiorescapitais e at nos vilarejos mais remotos, as vozes dos locutoresberravam, por cima dos gritos entusiasmados das multides reunidas pelasruas e avenidas do pas. O maiooor jogador de futebol de toodos os tempos,meus caros ouvintes, um herooi para toodos os poovos do mundo, ocraque dos craques, senhoras e senhores, de frente para o gol!

    Antes que a bola imaginria, impulsionada pelo chute mais poderoso dahistria do esporte, passasse zunindo junto cabea do goleiro louro ebalanasse a rede da seleo adversria, Paulo percebeu movimento nafolhagem da rvore grande. Ali estavam a corda, a escada, o homem decabelos brancos descendo at a calada.

    O que fazem aqui? resmungou ao v-los.A corda e a escada tinham sumido de vista. Paulo no se conteve. Como o senhor consegue? Fsica, lgica e nsia de liberdade respondeu, limpando as mos

    com um leno.Paulo sorriu. O velho fechou a cara. tarde. Hora de criana estar na cama. No sou criana! Nem o Eduardo! Vamos fazer treze anos!Eduardo foi direto lista de perguntas preparada e ensaiada com Paulo. Na casa do dentista ser que o senhor chegou a encontrar... Vo embora! interrompeu o homem.

  • A gente s queria... tentou Paulo. X! X! o homem sacudia as mos como se enxotando galinhas.

    Passem fora! A gente acha que quem matou a mulher loura no foi o... Eduardo

    recomeou.As mos passaram a se agitar com mais intensidade. X! X! Fora daqui, j! O dentista confessou, mas a gente acha que... X! Para as suas casas! X, x! Mas que ns... X! Fora daqui! Ns... Andem, andem!Os meninos se entreolharam. Fora! No ouviram o que eu disse? Fora! X! Vo para suas casas,

    vo dormir! X, x! Vo embora! J!Eduardo e Paulo deram as costas e se afastaram. O velho esperou que

    sumissem de vista.Foi na direo oposta.To logo virou a esquina, Paulo emergiu das sombras. Eduardo apareceu

    em seguida.No era difcil segui-lo. Como na noite anterior, caminhava pelo meio das

    ruas vazias. Passou sem pressa em frente fbrica de tecidos. Subiudevagar a ladeira atrs da catedral. Rodeou-a. Parou. Virou-se, olhou para ogrande relgio na torre. Retomou a caminhada. Pequeno, franzino,atravessou a passos lentos a rua do comrcio, deserta e silenciosa. AEduardo pareceu uma viso desoladora.

    No quero ficar velho disse, em voz baixa.Paulo no entendeu. Velho. triste. Por qu? Vejo um velho assim, feito esse... Eu sinto assim como... No sei

    explicar. No tem mais nada para ele, no ?

  • No entendi. Acabou, no ? Acabou o qu? Tudo. Para ele. No entendi. Deixa pra l.Chegando praa, o homem de cabelos brancos foi em direo ao nico

    prdio ainda aceso. Um botequim. Os dois ltimos clientes conversavamcom o dono, por trs do balco. O velho se juntou a eles.

    So os cmplices disse Paulo, ainda encantado com a palavra.Eduardo discordava. Achava que comparsas no ousariam se encontrar

    to abertamente. Mas tampouco tinha explicao para o comportamentoerrtico do homem que seguiam. Paulo ofereceu a teoria que acabara de lheocorrer.

    Ele o assassino. Foi na casa do dentista para esconder as provas.Os criminosos sempre voltam ao local do crime.

    Mas o crime foi perto do lago. O dentista no disse para a polcia que matou ela em casa? Mas ns sabemos que no pode ter sido l. ou no esquisito o velho de um asilo ter ido na casa? . Se esse velho no cmplice do dentista, maluco. Pode ser. Meu av era assim. O tal que voc chamava de Nonno? No, esse era o italiano, pai do meu pai. O doido era o portugus, pai

    da minha me. Fugia de casa, sumia por vrios dias, tomava porres,cantava na rua. Minha me tinha vergonha dele.

    Um dos fregueses saiu cambaleante. Pouco depois, o outro. O homem decabelos brancos continuou de p junto ao balco. Bebia um lquidotransparente, servido pelo proprietrio em um copo pequeno. Paulo achouque devia ser cachaa.

    Esse av doido ia muito na sua casa? O portugus? Vivia conosco em So Paulo. Quando meu pai foi

    transferido para o interior, minha me mandou ele para a casa da irm no

  • Rio. Morreu l. No lembro direito de qu. Tambm no lembro o nomedele. Acho que era Vicente. Mas eu s chamava ele de v. Uma vez melevou zona.

    Na zona? Das putas? . Minha me ficou danada, quando descobriu. Elas estavam peladas? As putas? No lembro. Eu era criana, ainda. No lembra se as mulheres estavam peladas? Acho que no estavam peladas, no. ... Paulo suspirou. No deviam estar. Se voc tivesse visto uma

    mulher nua, voc no ia esquecer.Do lado de fora do bar, o proprietrio comeou a cerrar as portas largas

    de madeira. O velho saiu. Prepararam-se para segui-lo, mas ele caminhouapenas at um dos bancos da praa e sentou-se. Do bolso interno do paletretirou um caderno pequeno. Folheou algumas pginas, leu, fez anotaes.Guardou o caderno de volta. De outro bolso puxou um cigarro amassado euma caixa de fsforos. Acendeu. Deu um trago longo, soprou a fumaa,tragou novamente.

    Paulo bocejou. Estava com muito sono.

    A ponta da caneta fechou o semicrculo da ltima letra, uma consoante,desceu com leveza esquerda, sublinhou parte do sobrenome. Erguida, saiudo papel, cortou a letra t. Levada ao final da assinatura marcou dois pontos direita dela, um sobre o outro. Pronto.

    A justificativa da sua ausncia est assinada pelo seu pai disseEduardo, estendendo a caderneta escolar. Amanh voc assiste s aulassem problema.

    Paulo examinou o texto e a assinatura. Perfeitos. Est igualzinha. No tem nenhuma diferena da assinatura de cima.Eduardo sorriu. A de cima tambm fui eu que fiz.

  • Podia ser ruim de bola, magro, desajeitado, feio, esquisito, chato, cu deferro podiam dizer o que quisessem dele, esses garotos que sempre operseguiam em cada cidade nova para onde o pai ia transferido. Masningum, ningum conseguia imitar a caligrafia e assinatura de quem querque fosse melhor do que ele.

    Era uma habilidade surgida em tardes de tdio e solido, copiando aassinatura redonda da me, depois as pontas finas para cima e para baixodos escritos do pai, mais tarde os crculos e as inclinaes manuscritasnos envelopes de cartas de parentes. Um aprendizado paulatino,inconsciente, sem objetivo nem prazo estabelecidos, at reconhecer que eraum craque de verdade quando reproduziu tintim por tintim a assinaturacheia de volutas do tabelio, estampada na prpria certido de nascimento,que um dia levou para matrcula na escola da cidade anterior.

    O talento, mantido em segredo exceto para o nico amigo de verdade,mais uma vez se mostrava til. No dava mesmo para ficar trancadodentro de uma sala nesta manh to bonita, ouvindo a lenga-lenga de cadaprofessor, aula aps aula. Entenderam isso ao se encontrarem na porta daescola. Foi s um olhar para o outro, nem chegaram a descer dasbicicletas. Foram direto para a estrada. Amanh bastaria apresentar asjustificativas de ausncia e as assinaturas nas cadernetas.

    Eduardo se espreguiou. Estava cansado. Mais uma vez dormira tarde.Por causa do velho. O pior que no tinham conseguido nada. Nenhumanovidade. Estavam tal e qual na noite em que tinham sado para investigarpela primeira vez.

    Procurou uma rea limpa e seca na relva, deitou-se. O uniforme estavadobrado ao lado. Ali perto as aves faziam seus rudos matinais. Nuvensgrandes se acumulavam acima dele e se refletiam no lago.

    Quando? a voz de Paulo, afastada. Devia estar perto da gua. Quando o qu? Quando voc fez a assinatura de cima? Quando voc foi suspenso da ltima vez. Ah, foi. Quando dei aqueles cascudos no Svio Januzzi. No. Quando colocou o espelhinho embaixo da carteira da Suzana

    Scheienfeber para ver a calcinha dela.Barulho de mergulho. Barulho de braadas. Silncio. Paulo devia estar

  • boiando. Grito de maritaca. Silncio. Pio de anum. Vento suave na orelha.Silncio. Rudo de bambus roando em bambus. Rangendo um tanto.Curvando-se. Zumbido. Longe. Mosquito? Liblula? Silncio. Uma preguia...Sono. O olho fechando. As nuvens sumindo. Preto.

    Ela estava sem calcinha a voz de Paulo acordou-o. Ela o qu? Sem calcinha.Paulo estava em p diante dele. Pingando em cima dele. Como sem calcinha? A Suzana estava de calcinha, sim senhor. A morta, Eduardo. A tal da Anita. Estava sem calcinha.Eduardo apoiou-se nos cotovelos. O cara deve ter arrancado, u. Arrancado? Para se aproveitar dela. Currar.Paulo agachou-se. Mas l na casa do dentista tambm no tinha. No tinha o qu? Calcinha. Nenhuma. Devia ter. A gente que no viu. No teve tempo de descobrir. A gente abriu tudo. Tinha de ter. Toda mulher usa calcinha. Calcinha, suti, combinao,

    angua, cinta e meia. Usa tudo isso por baixo do vestido. Como que voc sabe? Sabendo, u. Sua me usa tudo isso? No mete minha me no meio.Paulo sentou-se. Me era assunto a ser evitado de ambos os lados. A de

    Paulo porque estava morta, a de Eduardo porque ainda era bonita. Outroacordo mtuo e mudo entre eles.

    Voc se lembra da sua? Eduardo tentou, repentinamente, commedo de estar quebrando o pacto, mas com interesse genuno.

    Minha o qu? Me.

  • Hum.No era uma resposta: era o encerramento de um tema que Eduardo

    imaginava doloroso. Desculpe. No devia ter perguntado. Hum. Mas que de vez em quando... Eu fico pensando se... Se voc no... Hum. Saudades. Se no tem. Se no sente. Hum. No sente? Hum. No lembra? Meu pai. O qu? Meu pai. Seu pai? Meu pai tem. Seu pai tem o qu? Uma. Seu pai tem uma o qu? Foto. Foto? Pequena. Daquelas trs por quatro. Seu pai? Ele tem. Foto de...? Dela. Foto pequena. Escondida na carteira. Foto da sua me? S essa. S vi essa. Sua me? Peguei a carteira para tirar um dinheiro escondido. Ele nunca te d nenhum?

  • Eu vi. Pequenininha, trs por quatro. Ele guarda na... Morena. Magra. Um pouco dentua. Foto de identidade. Foi a nica que

    eu vi dela. No tem mais nenhuma outra? No lembro dela. Voc no chegou a... Quando eu penso nela... Sim? Eu penso nessa foto. Escondida na carteira do meu pai. No a

    mesma coisa que lembrar.Calou-se. Eduardo no sabia como continuar, tampouco. Se o velho doido no tivesse aparecido Paulo retomou , a gente

    tinha descobrido... Descoberto corrigiu Eduardo, com alvio por retornar a terreno

    seguro. Descoberto alguma coisa. Descobrimos as camisinhas. Isso tem aos montes na minha casa. Seu pai e seu irmo esto sempre com putas. Com elas tem que usar

    camisinha, se no pega doena. Foi seu av que te contou? O av maluco?Eduardo no se lembrava. Achava que tinha lido sobre isso. Mas onde

    teria sido possvel le