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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA E CULTURA ANDRÉ GUEDES TRINDADE ENTRE O TEATRO E A CANÇÃO: UMA LEITURA SEMIÓTICA DE GOTA D´ÁGUA ORIENTADORA: PROFA. DRA. ELINÊS DE ALBUQUERQUE VASCONCÉLOS E OLIVEIRA JOÃO PESSOA PB 2013

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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARABA CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS REA DE CONCENTRAO: LITERATURA E CULTURA ANDR GUEDES TRINDADE ENTRE O TEATRO E A CANO: UMA LEITURA SEMITICA DE GOTA DGUA ORIENTADORA: PROFA. DRA. ELINS DE ALBUQUERQUE VASCONCLOS E OLIVEIRA JOO PESSOA PB 2013 2 ANDR GUEDES TRINDADE ENTRE O TEATRO E A CANO: UMA LEITURA SEMITICA DE GOTA DGUA DissertaoapresentadaaoProgramade Ps-Graduao em Letras da Universidade FederaldaParaba(UFPB),como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Letras. rea de Concentrao: Literatura e Cultura Orientadora: Profa. Dra. Elins de Albuquerque Vasconclos e Oliveira (UFPB) JOO PESSOA PB 2013 3 ANDR GUEDES TRINDADE ENTRE O TEATRO E A CANO: UMA LEITURA SEMITICA DE GOTA DGUA BANCA EXAMINADORA Profa. Dra. Elins de Albuquerque Vasconclos e Oliveira ORIENTADORA/ UFPB Prof. Dr. Luis Antonio Mousinho Magalhes EXAMINADOR INTERNO/ UFPB Prof. Dr. Jos Vilian Mangueira EXAMINADOR EXTERNO/ UERN Profa. Dra. Maria Luiza Teixeira Batista SUPLENTE /UFPB JOO PESSOA PB 2013 4 Dedico este trabalho a minha maior mestra, minha Me, Maria de Ftima Guedes Trindade, por me ensinar e me proporcionar os caminhos da dedicao, do progredir e da felicidade. 5 AGRADECIMENTOS foradivinaesuperior,quecostumochamardeDeus,porsempremeguiareporme proporcionar a f, no permitindo que me perca nos caminhos obscuros dessa vida. A minha me, Maria de Ftima Guedes Trindade, por tudo que me concedeu na vida, que me concedeu:educao,bomcarter,amor,dedicao,foradevontadeeexemplodeser humano irretocvel. Ao meu pai, Francisco das Chagas Trindade, pelos ensinamentos e pelo apoio. Ameusirmos,ThiagoGuedesTrindadeeMilenaGuedesTrindade,porsempreme incentivarem e pela amizade de todas as horas. A minha companheira e amada namorada, Mariana de Moraes Correa Perez, pelo amor, pela amizadeepelosinfinitosmomentosdeapoioamimconcedidos,semosquaiseunoteria chegado aqui. minhaorientadora,professoraElinsdeA.V.eOliveira,quecomextremagentilezae pacincia, abriu os horizontes para a composio desse trabalho e de outros que iro marcar a minha vida enquanto professor. Ao amigo Amador Ribeiro Neto, mestre inestimvel a minha formao, que forneceu bastante material para a fomentao deste trabalho e para fomentao da minha vida profissional. Aos Professores: Luis Antonio Mousinho Magalhes, Jos Vilian Mangueira, Sandra Luna. AtodososprofessoresefuncionriosdoProgramaemPs-GraduaoemLetrasdaUFPB, por deixarem momentos de grande valia guardados na minha memria. A todos os meus amados amigos, por sempre me apoiarem nas minhas decises. 6 Ao amigo, Jos Diego Cirne Santos, devido ao apoio e confiana profissional, sem os quais o percurso deste trabalho no teria sido possvel. CoordenaodeAperfeioamentodePessoaldeNvelSuperior(CAPES),pelaconcesso da bolsa de estudos, sem a qual este trabalho no seria vivel. 7 Cultura um sistema semitico, um sistema de textos, e, enquantotal,umsistemaperceptivo,dearmazenageme divulgaodeinformaes.Comoosprocessos perceptivossoinseparveisdamemria,naestrutura detodotextosemanifestaaorientaoparacertotipo dememria,noaquelaindividual,masamemria coletiva.Culturaassimmemriacoletivano hereditria. (in http://www4.pucsp.br/.htm) 8 RESUMO Esta pesquisa visa investigar e desenvolver umestudo semitico entre os sistemas de linguagens dialogantes da cano e do texto dramtico na obra Gota Dgua (1975), de Chico BuarqueePauloPontes.Paraaconcretizaodesteexercciodemodelizao,utilizar-se- comolastrotericoosconceitosdaSemiticadaCulturasomadosaosestudosacercada linguagem dramtica e da cano, comenfoque na Msica Popular Brasileira (MPB). Atravs desterespaldoconceitual,pretende-setecerumdilogointersemiticoentreoteatroea cano,duaslinguagensqueconsideramosestruturaisdopontodevistadosignificadoda pea.Nestapesquisa,tantoacanopopular,quantootextodramticoseroconsiderados sistemasmodelizantesdesegundograuumavezquetransmitemsignificadosprpriose tambmporpossuremcodificaessingularesemrelaolnguanaturalqueosistema modelizante de primeiro grau. Por fim, espera-se, atravs das construes de sentido geradas a partirdestainteraosemitica,estarmoscontribuindoparaaampliaodaredede comunicao sistmica da cultura. Palavras-chave: Semitica da Cultura; Sistema modelizante; Teatro; Cano; Gota dgua 9 ABSTRACT Thisresearchaimstoinvestigateanddevelopasemioticstudyaboutthedialogical interactions between the theatre and the song systems in the play Gota Dgua (1975) written by Chico Buarque and Paulo Pontes. To achieve this purpose will be required a combination oftheoriesfromtheSemioticsofCulture,thedramaticlanguageandthesong,emphasizing thestudiesonBrazilianPopularMusic(MPB).Thus,weintendtocreateaninter-semiotic dialoguebetweenthetheatreandthesong,consideringthemastwostructuralsemiotic languagestotheunderstandingoftheplayGotaDgua.Inthisstudy,bothdramatic languageandthesong(MPB)languagewillbeconsideredasasecond-degreemodelling system, once they convey their own meaning and have singular codifications in relation to the naturallanguage,thefirst-degreemodellingsystem.Throughtheestablishmentofthis semioticnetwork,wehopecontributetotheincreasingofthesystemiccommunication network of culture itself.Key words: Semiotics of Culture; Modelling systems; Theatre; Song (MPB); Gota dgua. 10 SUMRIO INTRODUO.................................................................................................................12 1.CAPTULO I O percurso terico: teatro, msica e cano e suas relaes sistmicas.....................................................................................................................17 1.1- A Cano como um sistema modelizante de segundo grau..................................22 1.2 - As modelizaes do Samba no percurso da MPB.....................................................24 1.3 - A Tragdia: da Clssica Moderna............................................................................28 1.4 - O Teatro e as suas semioses........................................................................................32 1.5 - Intersemioses aplicadas Gota dgua......................................................................36 2.CAPTULO II - Dilogos viscerais: as falas de Joana na pea Gota dgua e a Msica..........................................................................................................................40 2.1 - O dilogo entre Medeia e Gota dgua......................................................................40 2.2 - Trechos e Anlises......................................................................................................45 2.2.1 - Entrada de Joana.....................................................................................................45 2.2.2 - Monlogo do povo...................................................................................................49 2.2.3 - Desabafo de Joana para Jaso...............................................................................52 2.2.4 - Joana e as vizinhas..................................................................................................55 2.2.5 Ritual.......................................................................................................................57 2.2.6 Veneno.....................................................................................................................59 2.2.7 - Morte........................................................................................................................61

3.CAPTULO III A Cano como componente ativo da ao dramtica emGota dgua..........................................................................................................................65 3.1 - A performance da voz cantada no teatro..................................................................66 3.1.1 - Teatro Musical.........................................................................................................69 3.1.2 O Canto: a voz aperfeioada..............................................................................71 3.2 Canes e Anlises....................................................................................................73 3.2.1 Flor da Idade..........................................................................................................73 3.2.2 Bem querer..............................................................................................................76 3.2.3 Basta um dia............................................................................................................78 11 3.2.4 Gota dgua............................................................................................................81 CONSIDERAES FINAIS...........................................................................................85 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS...........................................................................89

12 INTRODUO O interesse por estudar a cano em dilogo com o drama na peaGota Dgua veio depoisdadefesadeumestudomonogrficoem2009noqualestudamosapoeticidadeno processodecomposiomusicaldeLenine.Apsestetrabalhoinicialemquese evidenciaramasdiversascorrespondnciaspotico-musicaispresentesnaobradoautor, permaneceuointeressedecontinuarestudandoalgorelacionadocano,emumapesquisa deportemaisdenso.Surgeentoaideiadestapesquisa:estreitarapluralidadetemtica presentenarea,fazendoumestudosobreosaspectossemiticosdaculturadacanoedo drama na obra supracitada de Chico Buarque e Paulo Pontes, uma vez que notrio que esses dois sistemas modelizantes estruturam o significado da pea. Assim, o seguinte trabalho visa proporedesenvolverumestudosemiticoentreossistemasdelinguagensdialogantesda cano e do texto dramtico na obra Gota Dgua (1975), de Chico Buarque e Paulo Pontes. Para a concretizao da pesquisa foi necessria a juno das teorias da Semitica da Cultura, do Teatro e dos estudos crticos literrios da Msica Popular Brasileira (MPB).Oprimeirocaptulo,intituladoOpercursoterico:Teatro,MsicaeCanoesuas relaessistmicas,desenvolveu-seapartirdasreflexesacercadaSemiticadaCultura feitaspelaEscoladeTrtu-MoscounaRssia,almdasteoriassobreotextodramticoe sobreacano.AETM,deacordocomIreneMachado,nolivroEscoladeSemitica:a experinciadeTartu-MoscouparaoestudodaCultura(2003),surgiuapartirdas investigaes russas para compreender a linguagem na cultura e preocupava-se em estudar as linguagens como uma combinatria de vrios sistemas de signos, da a concluso de que elas sejamsemiticasesistmicas.ASemiticadaCulturaabordaoobjetoartsticocomo semitico, ou seja, ele est determinado na sociedade e para isso necessitaria de uma estrutura significativa.OssemioticistastrabalhamcomavisodequeaCulturaumsistemade combinatriase,emumaabordagemorgnica,elaprecisaserelacionarcomoutrossistemas para assim gerar a cultura.OcaptuloIencontra-sedivididoemtpicos.Noprimeirotpico,ACanocomo um sistema modelizante de segundo grau, iremos abordar as teoriasacerca da cano. Para issotrabalhamoscomestudiososquedecertaforma,refletemacercadacanopopular,a exemplodeLuizTatit(1996),T.S.Eliot(1991),JosMiguelWisnik(1989),CarlosRenn (2003),JosTinhoro(1974).Dessaforma,veremosquetantoacanopopular,quantoo 13 textodramticoseroconsideradosaquicomosistemasmodelizantesdesegundograu,por possuremcodificaessingularesemrelaolnguanatural,sistemamodelizantede primeirograu,transmitindo,assim,significadosprprios.Emseguida,faremosapraxesdo processodemodelizaoevidenciandoodilogointersemiticoentreasduaslinguagens estruturantes na obra analisada para que a enquadremos na concepo de que as linguagens s funcionam na interao. Observaremos neste tpico que as obras culturais e os seus processossistmicossoparteorgnicadasemiosferadefendidaporLtmanemseusestudos, propiciando assim a construo dos significados e daprpria cultura. Noentanto,parasetornarumtextoculturalsignificativoimprescindvelqueeste textopasseporumacodificaoquelheconfiraestruturalidadeeossemioticistasobservam esse processo como um duplo. Ou seja, h de acontecer uma primeira codificao pelo cdigo natural que estrutura a informao, para depois haver a segunda codificao que dada pelo contextosemiticodacultura.Assim,modelizarconstruirsistemasdesignosapartirdo modelodalnguanatural.Contudo,cadasistemadesenvolveumaformapeculiarde linguagem,poissetratadeumprocessodeconservaoetransmissodemensagense elaborao de novos textos (Cf. MACHADO, 2003, p. 51). NosegundotpicodonossoprimeirocaptuloAsmodelizaesdoSambano percurso da MPB, partimos para aanlise de algumas figuras e temas populares ligados ao samba,recorrentesemalgunstrechosdeGotaDgua(1975),identificandoeanalisando episdios ilustrativos dos conceitos e das definies que discutiremos atravs das referncias tericas como Fiorin (2006) e Barbalho (2006). Combasenisso,notaremosquediversostemaspodemseridentificadosatravsdas figurasqueaparecememGotaDgua.Porm,nossofoconestetpicosernatematizao atravsdaculturapopular.Muitodosvaloresabstratosdispostosnotextorecebemum encadeamentodefigurasatravsdosamba,queestabelecemumaligaocomacultura popular.Logo,otextoservircomobasedeinmerasfigurasqueteroseussignificados abrangidos pelos personagens da obra. NoterceirotpicodoprimeirocaptuloATragdia:daClssicaModerna, analisaremosocursodaTragdia,paratentarentenderdequemaneiraessegnerotantose modificounodecorrerdahistria.Fundamentamo-nos,paraarealizaodestaleitura,nos conceitos da Tragdia, fazendo um percurso da Clssica Moderna. Para isso, no basearemos na Potica clssica de Aristteles, Hegel (1964) e Luna (2008), entre outros. 14 NoquartotpicodocaptuloOTeatroeassuassemioses,discutimossobreos fundamentostericosdasemiticaaplicadaaoteatro,abordamostericoscomoBogatyrev (1988), Kowzan (2006) e Ingarden (2006). Baseado na premissa retirada dos pensamentos de RomanIngarden(2006),discutiremosnestetpicoqueoteatronoapenasopalco,mas, tambm,asalaeopblicoqueapreenche,dentreoutrosvriossignospresentesnele.A representao teatral impe-se sobre a realidade, suscitando as mudanas que determinam os diferentesmomentosdahistriadohomem.Talrepresentaoconstituirumantida superestrutura intencional, que resultar da combinao de vrios fatores, tais como: quadros visuais1 fornecidos e realizados pelos atores juntamente com os signos, pessoas e suas aes; que sempre sero oriundas de um texto principal, de onde poderemos abstrair a essencialidade do teatro.O espao teatral , por excelncia, um lugar em que o pblico lida com a realizao de diversas situaes, logo, podemos afirmar que tal espao repleto de signosquese proliferameinteragementresi.Assimsendo,podemosanalisaroteatrocomoumsistema verbal que dialoga com outros sistemas verbais (o prprio texto dramtico, a voz, a entonao, apronncia,etc.)enoverbais(msica,dana,vestimenta,gestos,cenrio,cinema), formando, portanto, uma identidade cultural (INGARDEN apud GUINSBURG, J. et al, 2006 p.152). No quinto e ltimo tpico desse captulo terico, intitulado Intersemioses aplicadas GotaDgua,investigaremosossignosdoteatropresentesnascenasselecionadasda adaptao de Gota Dgua, identificandoe analisando exemplos ilustrativos dos conceitos e dasdefiniesquediscutiremosatravsdasrefernciastericasexpostasacima.Pretende-se ainda entender a maneira atravs da qual Paulo Pontes e Chico Buarque recriaram nos palcos a tragdia grega Medeia, adaptando-a e contextualizando-a realidade brasileira.Comojfoievidenciado,oespetculodramticoGotadgua(1975)umsistema semitico no qual vrias linguagens interagem de modo orgnico. Se partirmos da concepo de Ltman (1978) de que linguagem todo sistema codificado e dotado de possibilidade de combinatrias,criandovoltadohomemumasemiosfera(umaanalogiabiosfera),veremosqueoselementosvriosquecompemapeasoorganizadosemcdigos hierrquicos, que se mesclam e interagem com o todo de forma hbrida.

1 Quando uma pea realmente encenada, os objetos, as personagens e suas aes constituem quadros visuais. (INGARDEN, 2006, p.152) 15 J o segundo captulo deste estudo Dilogos viscerais: as falas de Joana na pea Gota Dgua e a Msica, teve como intuito as anlises de algumas falas da personagem Joana por meiodasintervenesintersemiticasdoselementosmusicais,queaparecemaofundoda ao dramtica, presentes na pea de Paulo Pontes e Chico Buarque. Entendendo-se o Teatro comoumsistemamodelizantedesegundograu,foramanalisadasoitofalasdapersonagem principal(Joana),buscando-seascorrespondnciasqueelasestabelecemcomaMsica, gerandoassimumdilogointersemitico.Paraisso,nosbasearemosnasgravaesda performancevocaldeBibiFerreiraencontradasnolbumGotadgua(1977)deChico Buarque.Destaforma,jqueaobraemanlisesetratadeumareleituradeumatragdia grega, tentamos remet-la ao estado primitivo da poesia em que Msica, Poesia e Encenao estariam todos em um mesmo patamar ldico da arte.Paraisso,foinecessriocontextualizaressedilogoentreasobrasnosubtpico. Assim,pretendemosinvestigar,apartirdasdiscussesacercadodialogismodeBakhtin,o cruzamentoeaadaptaodealgunsaspectosdaCulturanasobras Medeia (431a.C.),de Eurpedese GotaDgua (1975),deChicoBuarqueePauloPontes.Nessesentido,esse dilogo entreas obras teve comoobjetivo entendermos as mudanasestabelecidasentreelas atravs do tempo. NoltimocaptulodadissertaoACanocomocomponenteativodaao dramticaemGotaDgua,iremosfocaremoutramaneiradeacompanharasfalasdos personagens dentro da pea Gota dgua, analisando dessa feita a cano como componente ativodaaodramtica,nomaiscomocomplementodefundodasvozesdaspersonagens. Para tanto, fizemos, primeiramente, uma reflexo acerca da msica enquanto elemento da teia semiticaengendradapelalinguagemteatral,fazendoumpercursotericoacercada performance da voz no teatro, fundamentados nos pensamentos de Paul Zumthor. No que diz respeito ao Teatro Musical, nos baseando nos dizeres de Valente (1999); e, por fim, faremos um panorama de como o canto se transformou ao longo do tempo, j que este um dos nossos objetivos: uni-lo a significao teatral. Emsetratandodametodologia,utilizamosgravaesdolbumGotadgua(1977), para que pudssemos proceder anlise das cenas dentro do texto dramtico. Assim, o que se pretendeu,aqui,analisarsistematicamenteoencontrodesistemasmodelizantesdistintos presentesnapea.Servindo-se,paratanto,deummtodoestilsticodeanlisetextual,sem deixar de lado, claro, as contribuies de outras correntes, a exemplo da Semitica da Cultura 16 edeoutras,asquaisajudaramaentenderonossoobjetodeestudocommaiseficincia. Tentamos abordara obra atravs da juno das partes segmentadas do Texto Dramtico e da Cano,oriundasdeumestudoanalticosoboselementosmenores,chegando,enfim,ao sentidomaisamplo.Aintenofoifazerumprojetointersemitico,bebendonasfontesno s da teoria acerca do teatro, mas de outros ramos das artes, tais como a cano e poesia. 17 CAPTULO I O PERCURSO TERICO: TEATRO, MSICA E CANO E SUAS RELAES SISTMICAS No existe cultura pronta.Toda nova etapa da cultura,dentro de qualquer domnio,exige experimentao. Bris Eikhenbaum2 Pensaremcultura,muitasvezes,voltarmososolhosparadentrodensmesmos, como,analogicamente,umprocessodeautorreflexosobreoqueemitimosparaomundo. Essa comparao inicial coaduna com a ideia de cultura oriunda da Semitica da Cultura, uma vezque,paraessaEscolaSemitica,culturaumconjuntodeinformaesnohereditrias que so armazenadas e transmitidas por determinado grupo. Pode-seafirmarqueabasedestecaptulobuscouinspiraonessasinvestigaes semiticas,queentendemaculturacomoumprocessamentoeinter-relacionamentode informaes.Ouseja:deacordocomessaconcepo,umsistemadelinguagemnuncaest isolado,poisprecisasempredeestaremcorrelaocomoutroparaassimgerarcultura. Diantedessaperspectiva,tentaremosaveriguarcomoossistemasdesignosdoTeatro,da MsicaedaCanointeragementresiecomoutrossistemasdesignosqueseencontram presentesnaobraGotadgua(1975),escritaporPauloPonteseChicoBuarque,comoa gestualidade,ocenrioealuz,entreoutros.Antes,porm,faz-senecessrioumamelhor exposio desses conceitos que embasaro nossa investigao. A Semitica da Cultura surgiu na Rssia nos anos 60, a partir dos estudos da Escola de Trtu-Moscou3,cujaconstituiovisavaaosestudosdaslinguagens,apartirdolegadode Lomonssov,queviaaquelacomooeloqueuniadomniosdiferentesdavidanoplaneta. Sendoassim,osestudosrussosvoltadoscompreensodaslinguagenseram,pornatureza, semiticos. (Cf. MACHADO, 2003, p.24)

2 EIKHENBAUM, Bris apud MACHADO, Irene. Escola de Semitica. So Paulo: Ateli Editorial, 2003, p.29. 3 Utilizaremos, neste trabalho, a expressoETM quando nos referirmos a Escola de Trtu-Moscou. 18 AETM,deacordocomIreneMachado,nolivroEscoladeSemitica:aexperincia deTartu-MoscouparaoestudodaCultura(2003),surgiuapartirdasinvestigaesrussas paracompreenderalinguagemnaculturaepreocupava-seemestudaraslinguagenscomo uma combinatria de vrios sistemas de signos, da a concluso de que elas sejam semiticas e sistmicas. A Semitica da Cultura aborda o objeto artstico como semitico, na perspectiva de ele estar determinado na sociedade e, para isso, necessitar de uma estrutura significativa. OProgramadaETMestavaestruturadoparadiscutirestratgiasdeanlisedos sistemasdesignosdaculturaatravsdoensinodasemiticae,deformanatural,gerouos seguintes questionamentos: que tipo de competncia a ETM procurou desenvolver e ensinar? Quais foram suas estratgias para isso? Apriori,importantesalientarqueaSemiticadaCulturanotratadeumateoria geraldossignos,comoseverificanospreceitosdeCharlesSandersPeirceoudateoria semitica das significaes, cujo principal representante o francs Algirdas Julius Greimas. O Conceito de modelizao da Semitica da Cultura, por exemplo, diferente do conceito de modalizao. A segunda a abordagem greimasiana, que trabalha com o conceito da fala e com o conceito de esteretipo. A primeira tem origem das linguagens dos computadores. Os semioticistas russos trabalham, ento, com a viso de que a cultura um sistema de combinatriasedequeelaprecisaserelacionarcomoutrossistemasparaassimseauto-alimentar. Em uma primeira definio, cultura a informao no hereditria que se recolhe, conservaetransmitenassociedadeshumanas. Logo,oobjetivoprimordialdaETMolhar semioticamente,noacultura,masosseusprodutosque,dentrodestaviso,adquiremo estatutodesistemassemiticos.Deacordocomessaconcepo,quandofocamosoolhar sobre o comportamentodos signos, consequentemente,direcionaremos o foco tambmsobre as relaes entre os sistemas de signos da cultura. Nesse sentido, Machado (2003) aponta que

Aculturapressupesistemasdesignoscujaorganizaoreproduz comportamentosdistintosdaquelesconsideradosnaturaisqueso,assim, culturalizadosporalgumtipodecodificao.Oscdigoscomosistemas modelizantes e modeladores tm a funo de culturalizar o mundo, isto , de conferir-lhe uma estrutura da cultura (MACHADO, 2003, 39). IreneMachado(idemibidem2003,p.39)ilustraissoquandoutilizaotermo capacidade semitica, como a capacidade de entender os sistemas semiticos como produtos 19 da culturalizao, ou seja, como produto da transformao da informaoem linguagem, em sistemadacultura.Logo,paraconheceressessistemas,precisoconheceroscdigos culturaisqueosdistinguemunsdosoutros.Portanto,ascodificaesnocriamsistemas isoladoseaculturaconstitudapeloentrelaamentodecdigos,criando,assim,umtecido cultural. Daqui, abstramos que imprescindvel entender a cultura como um ecossistema, isto ,comosistemasdesignosqueseencontraminterligadosaoutrossistemas,estabelecendo dessa forma, relaes sistmicas.SeguindoospreceitosdeIriLtman,umdosprincipaistericosdaSemiticada Cultura, todo sistema que serve para fins de comunicao entre dois ou mais indivduos pode serdefinidocomoumalinguagem4.Baseando-senestaafirmao,todasasmanifestaes artsticas so linguagens dotadas de estruturas especficas, os cdigos, no entanto abertas aos dilogos combinatrios com outras linguagens. Assim, toda linguagem possui signos e regras definidasdecombinaoentreessessignos,fatoquedeterminarasuaespecificidade(Cf. LTMAN, 1978, p. 34) Intrnseco concepo apresentada acima se encontra o conceito de texto da cultura.Nessaabordagemterica,oconceitodetextoumconjuntodeinformaesrelacionadas,masnoidnticos,enoapenasumsignoverbal,constitudoporumanicalinguagem.Ou seja:nestaperspectiva,otextoserumdispositivocomplexoquecontmcdigosdiversos, capaz de transformar as mensagens recebidas e de gerar novas delas, em um espao semitico onde esses cdigos se auto-organizam hierarquicamente (Cf. LTMAN, 1996, p.82). Neste sentido, qualquer comunicao registrada em um determinado sistema sgnico considerada um texto e, consequentemente, este texto no se constitui em um fato isolado. Ele est inserido em um grande sistema de significao, que Ltman ir definir como semiosfera.Asemiosferaumconceitoqueestvinculadoaodebiosfera,dobiogeoqumico VladimirIvanovichVernardiski,cujateoriaafirmaquecadaorganismovivoirteruma estrutura definida, que designar a esfera da vida no planeta. Logo, para Ltman a semiosfera, por analogia, o espao que os signos habitam dentro da cultura, como afirma a seguir,

4 Entendemos linguagem neste trabalho como um sistema de comunicao que utiliza signos ordenados de modo particular (Ltman, 1978, p.35). 20 Trabalhofundamentalorganizarestruturalmenteomundoquerodeiao homem.Aculturaumgeradordeestruturalidade:criavoltadohomem umasociosferaque,damesmamaneiraqueabiosfera,tornapossvelavida, noorgnica,bvio,masderelao(LTMAN;USPNSKIapud MACHADO, 2003, p. 39) Assim,deacordocomestaconcepo,asemiosferaoespaosemiticoque possibilitaaexistnciaeaproliferaodossignos,foradoqualseriaimpossvelexistirasemiose. Atravs desse espao que teremos ainter-relaoentre os signos e os sujeitos, os elementos primordiais da semitica da cultura. Trata-se de uma relao esponjosa, ou seja, os textos da cultura esto em constante dilogo com vrios outros textos e cabe semitica da culturaanalisarocomportamentodessasvriasrelaes.Emoutraspalavras:investigara semiosegeradaatravsdessasinterpenetraessistmicas.Logo,aSemiticadaCulturaa disciplinaqueexaminaainteraodesistemassemiticos,estruturadosapartirdecdigos diversos, em um grande espao semitico a semiosfera.Porm, para entender-se melhor esta perspectiva dos textos culturais em inter-relao, no podemos omitir outro conceito importante para semitica da cultura, que o conceito de fronteira.Anoodefronteiraimplicaacompreensodequeelaatuarnaindividualidade dos sistemas de signos. Contudo,ela apresentar a peculiaridade de seresponjosa. Como foi ditoanteriormente,pressupe-sequeossignosobtenhamcertaheterogeneidadeparaquese diferenciem dentro da semiosfera e assim proporcionem a troca e as transformaes advindas dos contatos entre estas fronteiras. ParaqueosestudiososdaETMpudesseminvestigarecompreenderas particularidadesdosvriossistemasdelinguagemouesferasdacomunicaoquenose limitavamaosverbais,elesformularamoconceitodetrao,retirandodestanooa compreenso de que cada sistema de linguagem possui suas particularidades. E o objetivo da SemiticadaCulturajustamentecompreendercomofuncionamosmecanismossemiticos decadaumdessessistemasetambmcomoelespodemestabelecerrelaesunscomos outrose,ainda,compreenderaculturacomoconjuntounificadodesistemas,ouseja,como umgrandetexto.Assimomovimentosistmico,segundooqualostextosdaculturase consolidam e se transformam. Nesse ponto, cabe uma observao sobre o processo de semiose queseencontraatreladaaoconceitodefronteira:sealinguagemumsistemacodificado, deve-seobservarnoasuatotalidade,massim,ostraosdistintivosqueinteragementresi atravs de uma experincia dialgica em um espao semitico. 21 Logo,paradefinirarelaodeinteraoentreostraossemiticosediferira linguagemnaturaldossistemasdelinguagemculturais,ossemioticistasrussosfalamem modelizao,condiofundamentaldaabordagemsistmica.Esteconceitodifere-seda modalizao, que uma teoria pertencente Semitica Greimasiana, que vincula os signos decodificao,aocontrriodamodelizao,conceitodaSemiticadaCultura,quemantm relao com a transcodificao ou com a criao de novos cdigos.AEscoladeParis,inspiradapelospreceitosdeAlgirdasJulienGreimas,tomacomo modelo a competncia semitica observada no contexto da lngua natural no intercurso social desujeitosdiscursivos,paraentenderoutrascompetnciassemiticasforadomundoda lnguanatural.Paraasemiticagreimasiana,modeloesquema,imagem,representao, simulacro;modalizarconformaraomodelosegundoacompetnciatextualdesenvolvida. Logo,oconceitodemodalizaoparaaescolafrancesavincula-sedecodificao;ja modelizao, conceito cunhado pela Semitica da Cultura, diz respeito transcodificao ou criao de novos cdigos. Ainda segundo a modalizao, a lngua natural o modelo em que osoutrossignostmquesebasear.Jnamodelizao,alnguanaturalomecanismo semiticoapartirdoqualatossistemascarentesdeestruturacodificadapodemconstituir linguagem. Ou seja: modelizar, para a Semitica da Cultura, o processo de estruturao, de organizaodaslinguagens.Paraossemioticistassoviticosesteomecanismobsicoda cultura,apassagemdano-culturaparaacultura.TaldiferenciaoresultounoqueIrene Machado especifica em seu pensamento: Se a vida resultado das transformaes de sinais em informaes, que, por suavez,constituemlinguagens,modelizarumprocessofundadordeum sistemaecolgicocaracterizadopelaconexonatureza-cultura (MACHADO, 2003, p. 150). Modelizar, portanto, a organizao dos sistemas de signos em linguagens, tomando-seporbaseomodelodalnguanatural.Logo,paraasemiticadacultura,osobjetosde estudodessapesquisaoteatroeacanososistemasmodelizantesdesegundograu, estruturadosapartirdosrespectivoscdigosqueosdistinguemeque,porsuavez,so constitudos a partir de um sistema modelizante de primeiro grau, ou seja, a lngua natural.Graasaoconceitodemodelizao,podem-seestabelecer,atravsdaanlise sistmica,dilogosentreosmaisdiversossistemasdacultura.Bakhtin(1982)reforaessa 22 ideiaaoafirmarqueoencontrodialgico,entreduasoumaisculturas,noseextinguena fundio, nem na mescla. Ao contrrio: o encontro permite que cada uma delas conserve a sua unidade e a sua totalidade aberta, enriquecendo-se mutuamente.Baseando-senaideiaacimaqueIreneMachadoteorizaacercadecompetncia semitica,conceitodefundamentalimportnciaparaesteestudo,pois,comojfoidito,nas possibilidadesdecodificaoemumdeterminadosistema,compreenderemososdilogos entreessessistemas,gerandotextosnacultura.Porisso,aSemiticadaCulturaserde tamanhaimportnciaparaestapesquisaatravsdaqualinvestigaremososintercmbiosque ossistemasdesignosdeGotadguapodemestabelecerentresi,comojfoiapontadoem um momento anterior.Umavezapresentadoolastrotericoqueembasarestapesquisae,partindo-sedo pressuposto de que a obra de Chico Buarque e Paulo Pontes mescla vrios sistemas sgnicos,a partir de agora, sempre em relao sistmica, traaremos a relevncia de cada um deles para opropsitodesteestudoedecomoelesseconstituemsistemasmodelizantes,luzda abordagem terica semitica discutida at ento. Comecemos pela cano. 1.1 A Cano como um sistema modelizante de segundo grau H de se considerar o fato de que os estudiosos e pesquisadores da cano, geralmente, tm-se voltado para o estudo de autores que j foram exaustivamente abordados. Falando da linguagemmusical,sobretudo,temosessaconstataonoapenasrelacionadaaumestudo exaustivodosautoresedeperspectivasrelacionadasaeles,mastambm,prpriatemtica musicalcomoumfocodeestudoepesquisa.umfatoirrisrioedecadente,avessoao panoramadacriaoartstico-musicalnoBrasil,quesabemosserdetamanhagenialidade, fatorinfluentedaartecomoumtodoemtodoomundo.Osreflexosdesseproblema,dese limitar sempre a um cnone literrio, acabam resultando na repetio de ideias, que outrora j foramconstatadas,causandopoucoimpactonosconhecimentosdaquelesqueseinteressam pelo tema. Entretanto,percorremosumlongotrajetodesdeasmodinhasimperiaisatorock nacional,epercebemosacanocomoumadasformasartsticasmaisutilizadasnoBrasil 23 paraperpassarideologiaseexpressaraculturadopas.Vriascanesdamsicapopular brasileira podem ser vistas no s como uma grande fonte de poeticidade - de literariedade no geral-mastambm,considerando-seosexpressivosvaloresmusicais,fontesriqussimasde elementos estruturais e temticos que, de certa forma, constituem a cano como um sistema modelizante de segundo grau.A cano est situada nos domnios da linguagem verbal e da msica, logo, apresenta uma estrutura de anlise complexa. Trata-se de um objeto que possui uma propulso natural intersemioticidadeumavezquecontmdiversossistemasmodelizantesbalizandosua estrutura. Elementos como a harmonia, a melodia, o ritmo, dentre outros que percorrem tanto o mbito da expresso quanto o do contedo, geraro os dilogos intersemiticos com o todo da estrutura, tornando-se passveis de estudos analticos.Surge aqui a possibilidade de se considerar a msica como uma linguagem, qual se possaatribuirsentido.JohnBlacking(1981)partedoprincpioativodequealinguagem verbalnotenhasidoosistemamodeladorprimrionahistriaintelectualdoserhumano,e postula que a msica, sim, tenha sido esse modelador primrio: Aotentarcompreenderasestruturaselementaresdopensamentohumano, conclui-se que a msica na verdade mais adequada que a linguagem verbal para revelar as exigncias puramente estruturais de um sistema de smbolos (BLACKING, 1981, p.189). Atermosdeilustrao,noconcordamosnecessariamentecomasupremaciadeum cdigo sobre o outro, j que partimos de uma leitura moldada pela Semitica da Cultura, mas estepontodevistatorna-seinteressanteparareforaraideiadequeamsica,almdeter significadoprprio,contidoemsuasformas,comunicasentidosque,dealgummodo,se reportam ao mundo extramusical de conceitos, sentimentos, aes etc. Acanopodeservistacomoumsignoqueocompositoreointrpretepretendem sugeriraoouvinteeabsorvidaenquantoexperinciaesttica.Amensagempodeser apreendida como uma nova vivncia ou como uma interpretao. Neste caso, o receptor est perante um universo de rendio s suas memrias e sua imaginao construtiva. Estamos, assim,peranteumaexperinciaestticaqueestcondicionada,queraosesquemasdo compositor, quer aos do ouvinte, sem esquecer o papel do intrprete. 24 ParaJosMiguelWisnik(1989),amsicanorefere,nemnomeiacoisasvisveis, comoalinguagemverbalfaz,masapontacomumaforatodasuaparaono-verbal, atravessacertasredesdefensivasqueaconscinciaealinguagemcristalizadaopemsua ao e toca em pontos de ligao efetivos do mental e do corporal, do intelecto e do afetivo. Na verdade, mesmo considerando a cano um sistema modelizante de segundo grau, nosepodeafirmarqueelaconstituaumsistemaarticulado,comoalinguagemverbal. Preferimos sustentar que a cano uma linguagemsui generis, dotada de maior sutileza de sentidoedeumagrandeforaemotiva,pormmuitomenosespecficadoquealinguagem verbal.Faltalinguagemmusicaloelementoderefernciaconvencional,prpriodoestrato semnticodalinguagemverbal.Noentanto,valesalientarquesustentamosqueacano possuisignificaoprpria,umaformasignificativa,prximadossmbolos,umobjeto sensrioaltamentearticulado,queemvirtudedesuaestruturadinmicapodeexpressar formasdeexperinciavital,svezesinacessveissformasverbais.Da,podemosconcluir que o sentido da cano assemelha-se ao da linguagem verbal, fundindo traos semnticos em suas relaes intersemiticas com outros signos. O percurso seguinte ser voltado para o samba e as suas variaes na msica popular brasileira, especificamente dos anos 70. Cabe, portanto, alm das reflexes semnticas acerca deste estilo musical, inserir o samba no curso da msica popular brasileira e na Histria, fato que daremos enfoque a seguir. 1.2 - As Modelizaes do samba no percurso da MPB Acanoumsistemamodelizantecrucialparaoentendimentodapeaemanlise, porm, esta ltima giraem torno de uma cano,o sambaGota dgua.A obra repleta de inmerasfigurassemiticas,queenvolvem,principalmente,aculturapopularbrasileiraali existente, com o intuito de produzir iluso referencial. Portanto, faremos uma retomada desseritmo to precioso cultura brasileira evidenciando a sua importncia dentro da obra de Chico Buarque e Paulo Pontes. Importantssimooatodareflexosobreaetimologiadaspalavrasqueestudamos, paraentend-lassoboutropontodevista.Amsicapopularnosefindanaexplicao 25 etimolgicadasuapalavraporserumfenmenocomplexo.Faz-senecessrio,ento,um panorama sobre esse fenmeno, para tentarmos entend-la.A msica popular,de qualquer gnero, seriaaquela composta para ser mais acessvel ao pblico em geral, e divulgada por meios comunicativos, constituindo-se, num plano geral, em uma criao contempornea com elevado grau de diversificao social. Em contrapartida, tambmhdeserefletiracercadamsicafolclricaque,geralmente,deautoria desconhecidaequetransmitidadeformaoraldegeraoagerao,ouseja,msicado povo,masdistingue-sedamsicapopular,pelofatodeestaltimaserescritae comercializada, tendo a evoluo natural de se perpassar atravs de geraes. DeacordocomJosTinhoro(1974),especialmentenasdcadasde20e30, constatou-sequeoSambajnoeraprticarestritaanegroseaex-escravossemascenso social. Naquela poca, comearam a surgir os primeiros compositores brancos de importncia como Noel Rosa e Ari Barroso, entre outros (Cf. TINHORO, 1974, p.17). Nosamba,notemosaobedinciaordemmtricaprefixadacomonoslundusenas modinhas. A linguagem a mais prosaica possvel, a construo das frases segue a mesma naturalidadedoritmodotexto,numaordemdireta,coloquial.Redescobrimos,nosamba,a lngua que se fala no pas, abrasileiramos a sintaxe na tentativa de alcanar aquilo que muitos escritores, como Mrio de Andrade,por exemplo, defendiam: a lngua brasileira. No geral, as peculiaridadesapresentadassoefeitosdeordemestilstica,paranofalaremcontedos sociais e culturais, que se enquadram na ideologia expressa no samba brasileiro. ComoinciodaBossaNova,aproximadamenteem1959,ocorreumamudanano ritmo,noarranjo,naletraenaprpriavozdocantor.Hquemdefenda,dopontodevista social,aexemplodeJosTinhoro(1974,p.17),queaBossaNovaerajazzrequentado, montado no Brasil, e que tinha uma nica novidade: a puxada de violo de Joo Gilberto. De maneirageral,comonossointuitoaquidiscutirsobreascorrespondncias,apartirda histria, entre os sistemas de signos artsticos, a Bossa Nova um grande marco desse estudo no Brasil. Algumascaractersticassomarcantesnessecomparativoentreasduasartes,quando nosreferimosBossaNova.Autilizaodeumvocabulrioreduzidoesimples,tentando codificarafaladaclassemdiaemsuasmanifestaessentimentais.Osversos,svezes, tornam-sebastantecurtoseaeconomiadaspalavrasreforaojogosonoroestruturalmente ligadoaoritmoemelodia.Algumascanespraticaramametalinguagemconceituandoa 26 prpriaBossaNova,comoSambadeUmaNotaSeDesafinado,ambasdeTomJobime Newton Mendona. O movimento foi assim ganhando consistncia. Costumeiramente,observamosestudosvoltados paradiferenaentrepalavracantada epalavrafalada.Trata-sedeumadistinoimportantssima,principalmenteemsetratando deMPB.Porm,limita-seaoplanomeldicodaexpresso,nosuprindoumdilogomais propcioentreossistemasmodelizantesquecomplementamalinguagemmusical.Estudar esseselementos,decertaforma,caracterizarocompositor,analisaroconjuntode estratgias e procedimentos por ele utilizado em sua obra, fato que o torna nico ou no. Para o terico Luiz Tatit, Em se tratando de cano, a melodia o centro da elaborao da sonoridade (doplanodeexpresso).Porisso,ocompositorestabilizaasfrequncias dentro de um percurso harmnico, regula uma pulsao e distribui os acentos rtmicos,criandozonasdetensoqueedificamumaestabilidadeeum sentido prprio para a melodia (TATIT, 1996, p.12). Umdospontosaquesepropeesteestudo,atravsdospreceitosdaSemiticada Cultura,investigaralmdamelodia,consideradaopontodeinterseoentreoverbaleo musical.Pretende-seanalisartambmosoutroselementosquecompemalinguagem musical, como o ritmo, os arranjos, a intensidade, entre outros que iroaparecer no decorrer da pesquisa,j que as canes da pea Gota dgua so voltadas para a encenao do teatro e, dificilmente, se manifestam isoladamente. Muito pelo contrrio, estes elementos aparecem deformaassociadacomvriosoutroscomponentes,formandoumacomplexaredede produo de significados musicais. Diversostemaspodemseridentificadosatravsdasmuitasfigurasqueaparecemem Gota Dgua. Muitos dos valores abstratos dispostos no texto recebem um encadeamento de figuras atravs do samba, que estabelecem uma ligao com a cultura popular. Logo, o texto servircomobasedeinmerasfigurasqueteroseussignificadosabrangidospelos personagens da obra. PodemosnotaremalgunstrechosdapeadeChicoBuarqueePauloPontesas diferentes significaes do Samba no texto, como tambm, na medida do possvel, a presena da expresso popular, que mltipla devido s contradies das personagens. Iniciemos nossa exemplificao vislumbrando o seguinte trecho de Gota Dgua: 27 CACETO Ih, Galego, olha s o Jaso... (L:) Jaso de Oliveira, novo valor da emepeb, promissor autordo xito Gota dgua, vai casar coa jovem Alma Vasconcelos, filha do grande comerciante benfeitor Creonte Vasconcelos... GALEGO Si snior CACETO Vivo, eh... GALEGO Ese conseguio si arum CACETO Retrato no jornal... GALEGO Qui maravilha CACETO Sabe por qu?... GALEGO o sucesso do sambaCACETO Ou a grana dela?... GALEGO No sei, caramba CACETO As bodas... (HOLANDA & PONTES, 2011, p.30) Podemosidentificarnotrechoacimaumdilogocujocontedogiraemtornoda ascensosocialdeJaso.Naobra,observa-sequeocoroformadopelosvizinhos,que narram os acontecimentos em forma de dilogos, julgando os protagonistas e os atritando no drama.FicamuitontidoqueospersonagensacimaassimilamosucessodeJasonosao samba composto por ele, como tambm, ao fato de ele casar com a filha de Creonte, dono da Vila-do-meio-dia,emboraumacoisaimpliqueaoutra,resultandoemascensodeclasse social. Um fato muito curioso ir ser desencadeado a partir dessa condio, que j se inicia in mediares5:JasoirtrairJoana,abandonando-a,juntamenteaosseusdoisfilhos.Essefato seroclmaxprincipaldatragdia,epodemosatribu-loaascensosocialdeJaso,que ocorrer pelo samba. Sendoassim,podemosestabelecerumaprimeirasignificaodosamba,adequea msica popular na mo dominante pode se tornar uma mquina de manipulao e banalizao dapopulao,jqueCreonteseutilizadessacondioparaconvencerJasoaingressarna classe dominante, ou seja, o discurso figurativizado se relaciona com extradiscursivo, j que o

5 Expresso latina que significa no meio dos acontecimentos. Ou seja, a narrao no relatada no incio temporal da ao, mas a partir de um ponto mdio do seu desenvolvimento. 28 textoremete-sepocaditatorial.AindecisodeJaso,tantosocialquantoamorosa, ilustrada pelo samba Gota Dgua.Ao passo que essa significao vai sendo assimilada, a coerncia semntica do texto construdapelosefeitosderealidadecausados.Logo,outraformadosambaquepodemos encadear nessa temtica a proximidade desse ritmo musical s culturas e costumes populares do cotidiano. Alis, o ritmo do samba, que em Gota Dgua pode ser aliado ao do candombl, est associado cultura popular brasileira, fato que ser analisado posteriormente no prximo captulo. Comojfoiditoanteriormente,estetrabalhosepropeaanalisaralgunssistemasde signosdaobraGotaDgua(1975),deChicoBuarqueePauloPontes,eassuasfunes semnticas,tantonotextodramtico,quantoemcena.Assim,preconizadoasdiscusses semnticasehistricasdaMPB,vale-nosadentrarnasreflexestericasnossooutroobjeto deestudo:oteatro.Aobraqueseranalisadanestapesquisapodeserconsideradauma atualizaodaMedeiadeEurpedes,comcaractersticasmodernasebrasileiras.Logo, conhecida como uma tragdia brasileira, por dialogar diretamente com a tragdia grega e ao mesmo tempo, por marcar o contexto histrico-social brasileiro. Assim, adiante faremos uma breve discusso sobre a tragdia enquanto gnero literrio. 1.3 A Tragdia: da Clssica Moderna AsTragdiassosmbolosdastransgressesdostabuseasuaproduoimpe-se sobre a realidade, suscitando as mudanas que determinam os diferentes momentos da histria do homem. Compreenderemos teatro aqui no apenas como uma forma de representao que cada um abstrai de um determinado momento de um momento histrico especfico, mas sim, comoestruturasartsticasquepalpitammudanasquedeterminarooprocessode diferenciao dos momentos histricos (Cf. SOUSA, 2005, p.2). Baseadonessaperspectiva,GotaDgua(1975),deChicoBuarqueePauloPontes, segundoelesmesmos,consideradaumatragdiabrasileiraadaptadadatragdiagrega Medeia,deEurpedes.Podemosaveriguarissonoprlogodaobra,emquesepercebe, tambm,quehaviaumapreocupaoacentuadaporpartedosautoresdetrazertonao momentoespecficodahistriabrasileira,cujarealidadegiravaemtornodadesestruturao econmicaoriundadogolpemilitarde1964.Logo,elesfizeramumaobrasublinhadapela 29 estruturapoticadodramaeporpersonagensqueilustravamosvaloresdaquelasociedade. Utilizou-se a forma dramtica, para que a palavra voltasse ao centro do Drama, e a escrita em versos,paraintensificarumdilogoquepodiaexpressardemasiadanaturalidadeemprosa (HOLLANDA & PONTES, 2011, p.18). A tragdia tem sua origem quando o teatro cumpria uma funo ritualstica, da esttica emproldeumagradodivino,danecessidadehumanadetranscenderoreal.NaGrcia,a partirdomomentoemqueatragdiapassouaseraestruturaartsticamaisadequadapara revelarasproblemticassociais,aestruturadotextodramticopassaaterincorporaesde cunho social e histrico.Aristteles,emsuaPotica(1966),oprecursordaanlisedotextodramtico,cuja teoria nos fornece vrios conceitos sobre a arte como um todo,dentre eles o da katharsis, que atribuiarteacapacidadedeproduzirestadosemocionaisbenficosaohomem.E,na Potica aristotlica que h as primeiras apreciaes crticas sobre a tragdia, visto que esta se tornou um gnero de grande importncia na poca. Aristteles(1966)defineaaocomosendoaalmadatragdiaeaconceituacomo uma estrutura artstica que imita as aes humanas, que ir produzir um excesso emocional no ser humano, misturando a piedade ao temor. A partir da concepo da tragdia como imitao deumaao,estabeleceu-se,assim,umdostraosestilsticosfundamentaisdognero dramtico. SegundoAristteles,atragdiagregatemacaractersticadefornecerempatiaao espectadorperanteosofrimentodapersonagem.Dessaforma,surgeasensaode temeridade, por esse mesmo ser humano no desejar o mesmo fim para sua vida, produzindo assim um aprendizado moralista por esse vis emptico. Segundo o estudioso: atragdiaarepresentaodeumaaograve,dealgumaextensoe completa,emlinguagemexornada,cadapartecomoseuatavioadequado, comatoresagindo,nonarrando,aqual,inspirandopenaetemor,operaa catarse prpria dessas emoes (ARISTTELES, 1966, p.24). Aristteles ainda nos ensina que a falha trgica crucial para estruturao correta do enredo,poisaprovidnciadamudanadodestinoquepromoveaquedadoheriao infortnio se d, no por uma falha de carter moral, mas sim, por um erro. Disso, abstrai-se 30 umadascaractersticasprincipaisdatragdianaleituraaristotlica:aestruturadramtica determinada pela concentrao do enredo em torno de um conflito central. Dessaforma,compreende-sequeaPoticafoiescritabasicamenteparaservircomo teoria geral da tragdia e para servir de parmetros paradramaturgos, enquanto instrues ao dramagrego,jqueognerosetornourefernciaparaasdiscussessobreasociedadeno mbito artstico.Contudo,comopassardotempo,emergiuumanovaconceponohomemgrego:o logospassouasermaisevidenciadonastragdias,emdetrimentodaordemdivina.Dessa forma,ohomempassaatermaisconscinciadosseusatos,queficamrepletosdeconflitos entreasescolhasaseremtomadas,daaracionalidadeestarmaispresentenastragdias gregas a partir do sc. V a.C. (Cf. SOUSA,2005,p.4). Emseulivro,intituladoATragdianoTeatrodoTempo:Dasorigensclssicasao Drama Moderno (2008),Sandra Luna faz uma reflexo sobre a modernidade no mbito das produesartsticas,quenaverdadejmostravamlevesindciosaofimdosculoXIX.A autoraconsideraqueamodernidadeimpe-semaiscomocontinuidadetransformadadoque como ruptura. Essa concepo ser de extrema importncia paraanalisarmos como o culto razoseconstituiunateorizaosobreatragdia,ondeconceitoscomoheritrgico, aotrgica,entreoutros,passaroaconstarnasreflexesacercadatragdiamoderna, deixando de permutar apenas na construo dessas (Cf. LUNA, 2008, p. 129). Aindaassim,namodernidade,Luna(2008)ressaltaqueateorizaodatragdia gravitouaindaemtornodaPoticadeAristteles,eoseugrandeinterpretador,vistoas obscuridadespresentesnaobraeasinmeraspotencialidadesprodutivas,seriaCastelvetro. Dentreosconceitospoucoexploradosanteriormente,veiotonaodaaodramtica.A ao,segundooautor,amatriaquemoldaodrama,partindodapremissaaristotlicade queAtragdianoimitaodehomens,masdeaes(Cf.CASTELVETROapud LUNA, 2008, p.135). Em suma, o recorte que nos interessa nessa discusso sobre a adequao da Potica na modernidadeovisdequeoscontemporneosestavamadaptandoessesconhecimentos aristotlicossexpressesartsticasdapoca.ApartirdaobraA poticade Aristteles vulgarizada e exposta, de Castelvetro, surgir o conceito das trs unidades, que so:aao,otempoeolugar.Essesconceitosseroocernedatragdia,apesardeautores comoShakespearenoutilizaremessaconceponassuasobras.Entretanto,muitossoos 31 conceitosqueficarammaisntidosapsessasreflexesdeCastelvetro,aexemplodas reflexesacercadaduraodeumatragdia,quenosdizeresdeAristtelesprocuracaber dentrodeumperododosol,oupoucoexced-lo(ARISTTELES,1966,p.24).J Castelvetro,emsuareleituradirqueotempodaaonodeveexcederolimitededoze horas (Cf. CASTELVETRO apud LUNA, 2008, p.137). OobjetivodesetercitadoonomedeShakespeareacimaparaseressaltaraimportnciadelidarcomasituaodequeasregrasdatragdiaproporcionavamfacilidade no julgamento das obras. Porm, na tragdia moderna, sobretudo naquelas escritas pelo bardo ingls, no iremos nos deparar com regras fixas no quesito estrutural da tragdia, motivo pelo quallevouoautorarecebercrticasdemasiadasnoseutempo,masquenoapagoua importncia das suas obras. Como um todo, pode-se dizer que a modernidade do teatro de Shakespeare nos trouxe aesinteriorizadas,cujossujeitospossuamvontadesconscientes,livre-arbtrio,conflitos psicolgicos.Issoimplicaumadivisodosvaloresdospersonagens,quegiramemtornodo sensocomum,massemperdervolumeparaosprprios.Da,opersonagemserocernedo drama, suas atitudes passam a representar o ser humano universalmente. Voltando o foco para onossoobjetodeestudo,JoanaemGotaDguasesuicidademaneiradiferenteda personagem anloga daMedeia, em Eurpedes. Medeiano pensa nas consequncias de sua morte para o mundo, ao contrrio de Joana que, repleta de desejos e vontades prprias, analisa maiscautelosamenteoatoconcomitantequedesfechariaambasastragdias.Ouseja,seria como se o mundo moderno retirasse a fora de deciso da herona. Contudo,nopodemosfalardatransformaodaTragdiasemressaltarospreceitos deHegelque,utilizando-sedesuadialtica,consegueirmaislongedoqueospreceitos aristotlicossobreosconceitosdognero.Eletambmconsideraaunidadedeaocomo uma regra inviolvel no drama, porm, parte do pressuposto de que o universo racional, por serconstitudodeumaredeinterligadadefatospuramenteracionais,oqueacabapor relacionarfatosisoladosaabstraes.Isto,todofatoserconflituosoparaHegeleir modificar a realidade da ao. Segundo Hegel, Apoesiadramticanasceudanossanecessidadedeverosactoseas situaesdavidahumanarepresentadasporpersonagensquerelatemos factos e expressem os intentos mediante breves ou longos discursos. A ao dramticanoselimita,porm,calmaesimplesprogressoparaumfim determinado;pelocontrrio,decorreessencialmentenummeiorepletode 32 conflitosedeoposies,porqueestsujeitascircunstncias,paixese caracteresqueselheopem.Porsuavezessesconflitoseoposiesdo origemaacesereaesque,numdeterminadomomento,produzemo necessrio apaziguamento (HEGEL, 1964, p. 279). Deumamaneirageral,essapequenareflexosobreolegadodaTragdia,teveo intuitodemostraradiferenaentreumarepresentaoemqueomundodoshomens agregadoaomundodosdeuses,cujasaeshumanasadquiriamumaperspectiva transcendental e uma representao em que a vontade consciente do ser humano repleta de racionalizaoediscernimento,ondeosmritoseoserrossetransformamemculpasdo prprio indivduo e no de providncia divina. Maciel(2004)nospropeumareflexointeressanteaotratardotrgico.Segundoo autor,temosdeconsiderarqueessapalavrasedesvinculoudaformaartsticaeconverteu-se emadjetivo,utilizadoemsuamaiorparteparadesignareventosinfelizesqueacometamos sujeitos,independentementedesuaclassesocial,diferentementedaconcepoverificadana tragdiaclssica.Comisso,estaperceporecai,principalmente,sobreabuscadosentido trgico presente nas tragdias do dia a dia, o que acabaria reabilitando osentido primeiro da tragdia,denaturezageralepblica,eampliandoaexperinciatrgicaparaalmdaalta posio social dos seus protagonistas primeiros (Cf. MACIEL, 2004, p.4). Noprximocaptulo,adentraremosnaperspectivadatransformao,do desenvolvimentodoqueviriaaserchamadomaistardededramasocialnoqual,atravs dessavontadeconscientedoserhumano,surgiramascaractersticasdadramaturgiadosc. XXqueserocomentadasnaanlisedonossocorpus,apeaGotaDgua(1975).Alm disso, como especificamos anteriormente, o foco desta pesquisa no est no percurso histrico dos sistemas de signos abordados aqui (teatro e msica), mas sim, na abordagem sistmica e semnticadessessignoseminteraodentrodaobra.Portanto,comojexpomosessa perspectiva terica para msica, no prximo tpico iremos nos aprofundar nos conceitos que envolvem a semiologia do teatro. 1.4 O Teatro e as suas semioses Consideremos a premissa postulada por Roman Ingarden (2006), de que o teatro no apenas o palco, mas tambm a sala e o pblico que a preenchem. Logo, a representao teatral 33 impe-se sobre a realidade, suscitando as mudanas que determinam os diferentes momentos da histria do homem. Tal representao constituir uma ntida superestrutura intencional, que resultar da combinao de vrios fatores, tais como: quadros visuais6 fornecidos e realizados pelosatoresjuntamentecomossignos,pessoasesuasaes,quesempreserooriundasde umtextoprincipal,dondepoderemosabstrairaessencialidadedoteatro(Cf.INGARDEN apud GUINSBURG, 2006 p.152). Devemos,tambm,partirdaideiadequeaproduoteatraldifere-sedasoutras produesartsticasedeoutrasformasdecomunicao,pelaquantidadeconsideradade signosveiculados.Dentrodaencenaodeumapea,tem-seaveiculaodediversos sistemas modelizantes de segundo grau, tais como o prprio texto escrito, a poesia, a msica, adana,ocenrio,ovesturio,asartesplsticas,entreoutros.Assim,taissistemasde linguagemteroumaabordagemdiferentedaquelaqueteriamemregrageralnoutros enfoques, pois aqui eles podero ser expressos com maior riqueza, variedade e densidade.Emsuma,queremospreconizarquetaiselementos,quandonoteatro,recebemno palconovassignificaes,poisapolissemiadestaartefazcomqueumamesmacenapossa sercompreendidadiferentementepordiferentesespectadoreseque,atmesmo,permiteque osatores,atravsdeseudesempenhocnico,geremsignificaesdiferentesacada apresentao.Paraosfinsdestapesquisa,oteatroserabordadocomoumsistemacultural, geradordesignificadosdentrodoprocessodecomunicaoecujafunoadeinteragir diantedosemissoresereceptores,colocandoemrelaosemiticaosignificanteeo significado.Oespaoteatral,porexcelncia,umlugaremqueopblicolidacoma realizao de diversas situaes, assim, pode-se afirmar que tal espao repleto de signos que seproliferameinteragementresi.Destaforma,pode-seanalis-locomoumsistemaverbal quedialogacomoutrossistemasverbais-oprpriotextodramtico,avoz,aentonao,a pronncia,etc.etambmcomossistemasnoverbaiscomoamsica,dana,vestimenta, gestos,cenrio,cinema,formando,portanto,umaidentidadecultural,comopontuaIrene Machado: Osimplesfatodetodaculturaserumaunidadeabertajoindicativode queprpriodaculturainteragireconduzirsuaaoemdireooutra,

6 Quando uma pea realmente encenada, os objetos, as personagens e suas aes constituem quadros visuais. (INGARDEN: 2006, p.152) 34 vale dizer, experimentar outra [...] a identidade de uma cultura se constitui a partirdoolhardooutro,daquiloqueBakhtinchamaextraposio (MACHADO, 2003, p.28). Como j se afirmou em um momento anterior, Bakhtin foi o responsvel pelo conceito de que no encontro dialgico h o enriquecimento mtuo das culturas. Porm, os formalistas russosjhaviamdefendidoanoodeaberturacomofundamentodaexperimentao. Baseados neste aspecto, podemos afirmar que no existe uma cultura pronta, toda nova etapa dequalquerculturarequerexperimentao,ouseja,naarte,tudooquehdenovose apresenta,antesdetudo,comoexperimentao,gerandoestranhamentonopblico,porm, com o tempo, se revela fato cultural autntico (Cf. EIKHENBAUM apud MACHADO, 2003, p.29).Uma vez que os signos formam cadeias sistemticas da comunicao e se manifestam nesseprocessocomolinguagem,Ltman(1978)afirmaquealinguagemsertodosistema que possua uma estrutura prpria de organizao, dotada de possibilidades combinatrias, tal como a cultura, que uma combinatria de vrios sistemas de signos. Logo, o objeto artstico - que serconsiderado como um texto pela Semitica da Cultura se tratade umconjunto de signoseminteraoquedotadodeumaestrutura,oscdigos.Estetexto,entretanto,vive sobre as fronteiras dos muitos sistemas de signos que o constituem,como o caso do objeto desta anlise. Assim, para a Semitica da Cultura, isso significa que todo texto deve estar codificado pelomenosduasvezes:primeiramente,pelocdigonatural,queseriaalnguanatural,que apreendeainformaoeatransformanumaestruturaorganizadadesignos;emsegundo lugar, pelo contexto histrico codificado pela cultura. Ento, para diferir a linguagem natural dossistemasdelinguagemculturais,observaremosqueossemioticistasrussosfalamem modelizao,princpiofundamentaldaabordagemsistmicadacultura,jexplicitado anteriormente.Emsetratandodeteatro,paraZich(apudBOGATYREV,2006,p.74),todosos elementos que so signos no teatro possuem dois objetivos: o de caracterizar as personagens e olugardaao;eoutrafuncional,comintuitodeparticipardaaodramtica.Ouseja:o teatroutilizarossignos,sistemasmodelizantesdesegundograu,deacordocoma necessidadedeumadeterminadasituaodramtica.Diferentementedavidareal,umsigno noteatroapenassignodosignodeumacoisa,masnoosignodaprpriacoisa.Por 35 exemplo:segundooautor,umabengalanavidarealpodecaracterizargostodeumsujeito, seus meios financeiros, como tambm, pode fazer parte da ao dele na possibilidade dele se apoiarnelaaocaminhar.Porm,noteatro,essemesmosignopoderiasetransformarde maneira rpida e variada em algo que no representaria na vida real, como em um alimento, aosmoldesdossapatosdeCharlesChaplinemEmbuscadoouro(1925)(Cf.ZICHapud BOGATYREV, 2006, p.74). Emcontrapartida,hsituaesemqueosignomaiselementarpoderepresentara prpriacoisa.Sendoassim,podemosestabelecerqueoselementosquesimbolizam significaes no teatro intensificam a sua carga semntica, no tendo a mesma perspectiva do que na vida real (Cf. BOGATYREV apud GUINSBURG, J. et al,2006, p.73).Comoexemplodisso,pode-secitar,jquevaiserumdosnossosenfoques,queo discursodoatornopalcoumsistemadesignosbastantericoemsignificaes,veiculando praticamente quase todos os signos da ao dramtica e podendo ser utilizado no drama para expressarrelaesdospersonagenscomsuascaracterizaes,comoacondiosocialou geogrfica.Contudo,aexpressolingusticanoteatronoapenasdetentoradesignosdo discurso,referentespalavra,comotambm,degestos,trajes,cenrios,msica,dentre outros,quetambmsosignosepodemexpressarsituaesdediversasnaturezasdevido propriedade polissmica que o teatro possui. Anaturezadossignosdoteatrohdeterumarelaobastanteespecficacomo pblico, no que se refere ao quesito de certos signos serem bastante diferentes na relao do homem com a coisa real ou com o sujeito real, que no teatro so representados: O andar e os gestos de um velho, por exemplo, geralmente despertam, na vida real, a piedade. O andar e o gestosenildeumatortmquasesempreumefeitocmico(BOGATYREVapud GUINSBURG, J. et al, 2006, p.84). Ossignosdaarteteatralsosignoscriadospelohomem,voluntariamente,para comunicaralgo.Soestabelecidoscompremeditao,tantoquesetratadeumaarte dependentedopblico,queteropapeldefinidordafuncionalidadedossignosteatraisem comunicar algo.At agora, discutimos que a arte teatral faz uso dos signos da vida real, mas quecadaumdessessignosemcenaperde,oumelhor,transformaasuapropriedade comunicativa primitiva. Contudo, nada impede que no teatro haja signos que possam remeter s suas propriedades primitivas, como por exemplo, a voz de um ator octogenrio, que no 36 criada voluntariamente para comunicar a velhice (Cf. KOWZAN apud GUINSBURG, J. et al, 2006, p.102). Emsuma,tudopassaasersignonarepresentaoteatral,conformeapontaKowzan (2006), e esta se serve tanto da palavra como de sistemas de signos no lingusticos. E esses estarofrequentementeacompanhadosporoutrosdaexpressocnica,queatuam simultaneamente sobre o espectador: As palavras Eu te amo possuem um valor emotivo e significativo diferente, segundosejampronunciadasporumapessoanegligentementesentadaem suapoltrona,umcigarronaboca(papelsignificativosuplementardo acessrio), por um homem queabraaumamulher, ou queestardecostas paraapessoaaquemdirigeestaspalavras(KOWZANapud GUINSBURG, J. et al, 2006p. 99). Apsessasconsideraesgeraisreferentesnoodesignoedassuasmuitas combinaes na linguagem teatral, tentaremos delimitar os principais sistemas de signos que dialogamnatragdiabrasileiraGotadgua(1975),paradepoisanalisarmosdetidamentea linguagemteatralaliadamusicalepotica.Partimos,paratanto,deumaconcepo arbitrriadossistemasdesignostraadosporTadeuszKownzan,emOsSignosnoTeatro Introduo semiologia da arte do espetculo (Cf. KOWZAN apud GUINSBURG, J. et al, 2006). 1.5 - Intersemioses aplicadas Gota Dgua O espetculo dramtico Gota dgua (1975) um sistema. Se partirmos da concepo de Ltman (1978),de que linguagem todo sistema codificado e dotado de possibilidade de combinatrias, criando, assim, a volta do homem uma semiosfera, em analogia a uma biosfera derelaessemnticas,veremosqueoselementosvriosquecompemapeaso organizadosemcdigoshierrquicos,quesemesclameinteragemcomotododeforma hbrida: 37 Otrabalhodacultura[...]consisteemorganizarestruturalmenteomundo que rodeia o homem. A cultura um gerador de estruturalidade: cria volta dohomemumasociosferaque,damesmamaneiraqueabiosfera,torna possvelavida,noorgnica,bvio,masderelao(LTMAN& USPNSKI apud MACHADO, 2003, p.39). Essaanlisebasear-se-notextodramticoenascanesdaobraGotadgua (1975),contudo,noextinguimosapossibilidadedeoutrasleituras,sobretudoacercadas encenaes.Nossopropsito,aqui,nolimitaovastopoderdearticulaodossignos, sobretudoemsetratandodeteatro,porm,justamentetendoconscinciadopoderdessa vastido,propomosconciliar,afimdeservirspesquisassemiticas,objetosprticose tericos. Em se falando de metodologia, o que se pretende, aqui, analisar sistematicamente o encontro de sistemas modelizantes distintos que se encontram presentes na pea. Defendemos isso,devidonospresenadecanesnotextodramtico,taiscomoFlordaIdade, Bem querer, Gota dgua, Basta um dia,7 ou at mesmo como fundo de solilquios da personagem Joana, mas tambm pela presena de vrios sistemas modelizantes do Teatro que permeiamaobra,taiscomoaperformance,avoz,otomdesta,avestimenta,o posicionamentosocialdaspersonagens,que,concomitantemente,mantmrelaescomum todosignificativodentrodapea;ambososcasosseroanalisadosmaisdetidamenteno prximo captulo. Partindo das estruturas fundamentais do signo musical- ritmo, melodia e harmonia percebe-se que a msica inserida na pea Gota dgua tem o papel de sublinhar e ampliar, ou at mesmo de substituir alguns signos de outros sistemas modelizantes envolvidos na ao, de acordocomKowzan(Cf.KOWZANapudGUINSBURG,NETTOECARDOSO,2006, p.114). Deformageral,pode-seobservarqueascanesdeChicoBuarquenapeaservem para evocar a atmosfera, o lugar, a poca da ao, o meio social, dentre outros fatores que tm valores semiticos. Nascanes que seroanalisadas,somos tomados por uma atmosfera de carterreligioso,navozdeBibiFerreira8remetendoaproximaesaocantogregorianoe

7 Chico Buarque, do lbum Gota dgua (1975) 8 Bibi Ferreira, pseudnimo de Abigail Izquierdo Ferreira (Rio de Janeiro, 01 de Junho de 1922), uma atriz, cantora, diretora e compositora brasileira. 38 pera.Podemosperceber,tambm,quehumasupressodasgriasutilizadasnotextoda cano,talvezparaevocarumaambientaoclssicajqueapeaumareleituradeuma tragdia grega. Sabendo que a palavra um dos signos que compe a linguagem da cano, partimos paraduasperspectivasparacomprovarmosoditoacima:primeiramente,asemntica,cujas canes,porexemplo,carregamascaractersticasdolugardaao,dacondiosocialdas personagens,domeiosocialemqueelesestaroinseridosnapea;esegundo,pelovis semitico, que implicaro fatores fonolgicos, a exemplo do tom utilizado pelos personagens parainterpretarasfalas,oqualcompreendeelementostaiscomoentonao,ritmo,sotaque, que, no geral, so todos premeditadamente voltados ao contexto do morro e da malandragem associados ao Rio de Janeiro. Gota dgua uma histria de pobres e macumbeiros intrnsecos cultura brasileira, fazendoumcontrapontoMedeia,deEurpedes,queconstadereisefeiticeiros.Combase nisso,percebe-seemalgumascenas,queseevocaessaatmosferadocandomblatravsde referncias intertextuais a Ogum. Na tradio doCandombl, Ogum (como conhecida essa divindadeyorubno idiomaportugus)frequentementeidentificadocom SoJorge.Isto acontece, por exemplo, no estado do Rio de Janeiro, ambiente da encenao.Almdisso,aindasobreatemticadoCandomblexploradadapea,nosepode avanarsemantesatentarparaasonoridadenascenasqueenvolvemessatemtica,que rementem s gesticulaes caractersticas do candombl. Acerca da gesticulao, seguindo os preceitos de Tadeusz Kowzan, Osignogestualomeiomaisricoemaleveldeexprimirospensamentosno teatro[...]haquelesqueacompanhamapalavraouasubstituem,quesuprimem um elemento do cenrio, um acessrio, gestos que significam um sentimento, uma emoo, etc. (KOWZAN apud GUINSBURG, J. et al, 2006, p. 106-107). Interessanteobservarotom,enquantosignoteatral,utilizadonapea.Se observarmos o texto de Chico Buarque e Paulo Pontes, no geral, notaremos um tom bastante agressivo,maisligadoaogrotescodoambientedapea,utilizando,inclusive,palavrasde baixo calo para expressar a fria e indignao, como podemos observar em diversos trechos queseroanalisados.Porm,comainserodacano,d-secenaumaspectodramtico, tomado aqui como um signo musical que concerne ideia de um solilquio, pronunciados em 39 cenacomaintenocomunicativadepassarparaopblicoospensamentoeestadosda personagem Joana. Diantedoexpostoerespaldando-nosnosestudossemiolgicosnoteatro, constatamosapolissemiavisceralqueseencontrapresenteemGotadgua.Almdas combinatrias oriundasdas linguagens estruturadoras e dialogantes dessa pesquisa, constata-se ainda que a construo do enredo de Chico Buarque e Paulo Pontes est inteiramente ligada s prprias percepes da cultura brasileira daquele contexto da dcada de 70, principalmente em se tratando de texto potico, dramtico e msica popular.Aps a apresentao dos pressupostos tericos que nortearo os rumos da pesquisa em curso,osegundocaptulorecortaralgumasfalasdapersonagemJoanaevidenciandoas relaes sistmicas geradas a partir delas. 40 CAPTULO II: DILOGOS VISCERAIS: AS FALAS DE JOANA NA PEA GOTA DGUA E A MSICA NestecaptuloanalisaremosalgumasfalasdapersonagemJoanapormeiodas intervenesintersemiticasdoselementosmusicais,queaparecemnofundodaao dramticaequeseencontrampresentesnapeadePauloPonteseChicoBuarque. Entendendo-se o Teatro como um sistema modelizante de segundo grau, sero analisadas oito falasdapersonagemprincipal-Joana,buscandoascorrespondnciasqueelasestabelecem comaMsica,gerandoatravsdesteencontroumdilogointersemitico.Paraisso,nos basearemos nas gravaes da performance vocal de Bibi Ferreira encontradas no lbum Gota dgua (1977) de Chico Buarque.Destaforma,jqueaobraemanliseumareleituradeumatragdiagrega, tentaremosremet-laaoestadoprimitivodapoesiaemqueMsica,PoesiaeEncenao estariamtodosemummesmopatamardearte.Paraisso,sernecessriocontextualizaresse dilogo entre as obras. 2.1 O dilogo entre Medeia e Gota Dgua MuitosestudostmsededicadocomparaoentreMedeiaeGotaDgua.Parao propsitodestapesquisa,noentanto,ocotejodosdoistextosserfeitoatravsdeuma perspectiva semitica e atravs do vis do dialogismo, postulado porBakhtin (1981). Iremos nos deter, portanto, ao dilogo do diferente, partindo da premissa de que a compreenso dual, seporumladocriadiferenas,poroutroestabelecesimilaridades.Sobreaimportnciado dialogismo, Boris Schnaiderman (1983) argumenta, Eutomoconscinciademimetorno-meeumesmo,somenteme descobrindoparaoutrem,atravsdeoutremecomasuaajuda.Asaes maisimportantes,queconstituemaautoconscincia,sedeterminampela relaocomoutraconscincia(umtu).(...)Noaquiloquesucedeno interior,masaquiloquesednafronteiradasuaprpriaconscinciaeda 41 alheia, no umbral. (...) E tudo o que interior, no prepondera sobre si, est voltado para fora, dialogizado, cada vivncia interior se localiza na fronteira, encontra-secomooutro,enesteencontrotensoesttodaasuaessncia (SCHNAIDERMAN, 1983, p. 104). Neste trecho, Boris Schnaiderman discute o dialogismo na perspectiva de Bakhtin, de quenohcriaodeumterceiroelementonodilogoentreasculturas,mas,sim,um enriquecimentomtuo.Paraumacompreensomaisadequadadesseconceito,voltaremos discussoacercadafronteiraluzdeLtman,feitanoprimeirocaptulodesteestudo. Partimosdaconcepodequefronteirasseparamecriamidentidades;contudo,tambm conectam e constroem tais identidades por justaposio ao prprio e ao alheio. Ltman (1979) ir afirmar que a traduo ser o mecanismo mais importante intrnseco s fronteiras, pois at determinarumaidentidade,umapessoaprecisa,primeiramente,descrev-laparasiprpria. Ouseja,apartirdatraduoformaremosabaseparaaatividadedopensamento.Assim, segundo o autor, o ato elementar do pensamento a traduo e o mecanismo elementar desta o dialogismo (Cf. LTMAN, 1979, p. 143). Assim,aprpriaexistnciadohomemamaisprofundacomunicao.Sersignifica comunicar-se.Sersignificaserparaoutro.Logo,ohomemnotemumterritriointerior soberano, esse est todo e sempre na fronteira, formando a sua identidade pelo olhar do outro e pelos olhos dos outros. Essa concepo tem sua base terica nos estudos de Bakhtin sobre a extraposio, quando ele afirma que, Nacultura,aextraposiooinstrumentomaispoderosodacompreenso. Noencontrodialgico,asduasculturasnosefundemnemsemesclam, cadaumaconservasuaunidadeesuatotalidadeaberta,pormambasse enriquecem mutuamente (BAKHTIN, 1981, p.352). Baseado nessa perspectiva de dilogo e de sistema, respectivamente representadas por BakhtineLtman,antesdevermosainteraodoTeatrocomaMsicadentrodeGota Dgua(1975),pode-seconsideraressaobracomoumarevitalizao,umatraduoda MedeiadeEurpedes,comcaractersticasmodernasebrasileiras.Issosignificaqueiremos abord-lacomoumtextodacultura,comoumsistemafinito,ondeingressamdiferentes cdigos de linguagem em mltiplas combinaes (ARN apud LACERDA, 2011, p.44). 42 AntesdeestabelecermosodilogoentreMedeiaeGotaDguaeavanarmosna anlise propriamente dita, faz-se necessrioainda um breve resumo do enredo de Eurpedes, sobre o qual nos debruaremos em busca doentendimento dos passos percorridos por Chico Buarque e Paulo Pontes, na construo de sua prpria trama. Emlinhasgerais,omitodeMedeiarefere-seaocrculodosArgonautas.Jasovai ClquidaembuscadoTosodeOuro.Medeia,magamuitopoderosa,filhadoreida Clquida,apaixona-seporJaso,ajuda-onaobtenodafamosapeledocarneirosagradoe fogecomele,tornando-sesuamulheredando-lhedoisfilhos.Maistarde,Jasoabandona-a para desposar a filha deCreonte, rei de Corinto. Medeia, para vingar-se,provoca a morte da noiva graas a seu poder de magia e, aps isso, mata os seus filhos, pice da tragdia. A tragdia inicia-se in media res antes de Medeia entrar em cena. A Ama nos coloca a par dos acontecimentos, temendo o futuro das crianas em face reao de Medeia perante a traio. O coro, formado por mulheres, entra em cena, para apaziguar a fria da personagem principal, que seguido da exposio dos seus sofrimentos. Creonte trar a primeira cena de enfrentamentodatragdia,aotentarexpulsarMedeiadopas,mas,convencidoporela,a deixaficarmaisumdiaemCorinto.Nesseintervalodetempo,Medeiairplanejarasua vingana. Apsessesfatos,hasegundacenadeenfrentamentoentreJasoeMedeiamarcada pelaexposiodosmotivosdecadaum.Nessemomento,Egeuentraremcena,garantindo exlioparaMedeiaemAtenas,consolidandoaaodela,queagorasesentiaabrigada,visto que no poderia permanecer em solos corintianos.Apartirda,segue-separaodesfechodaaotrgica,quandoMedeiaeJaso reencontram-seeelaentrega-lhe,pelasmosdosfilhosemvisita,opresenteamaldioado: uma coroa envenenada. Creonte e a sua filha morrem envenenados, para, a partir da, Medeia consolidarsuavinganacompleta,queimplicanoassassinatodosfilhoseemsuafugapara Atenas.J que iremos abordar as duas obras pelo vis da atualizao semitica, com base nas transformaesocorridasnarelaodialgica,vlidosalientarumtericodecrucial importnciaparaesseconceito,trata-sedeGrardGenette.LeilaCristinaBarros(2005), discutindo sobre a relao entre Gota dgua e Medeia, diz que Genette props baseado nos termosdialogismo(deBakhtin)eintertextualidade(deKristeva)oconceitode 43 transtextualidade,assimdefinido:(...)tudoque ocoloca[otexto]emrelao,manifestaou secreta com outros textos (GENETTE apud BARROS, 2005, p. 7).Segundoaautora,ocrticoapresentacincotiposderelaestranstextuais:a intertextualidade,aparatextualidade,ametatextualidade,aarquitextualidadeea hipertextualidade. Esta ltima nos interessar na nossa pesquisa, pois hipertextualidade (...) toda relao que une um texto B a um texto anterior A, do qual ele brota de umaforma que no a do comentrio (GENETTE apud BARROS, 2005, p. 19). Baseadonessaperspectiva,abordaremosasobrasartsticascomoobjetosque perpassamimpossibilidadedeexausto,paraissoutilizaremosoconceitodaderivao hipertextual, cuja teoria fornece dois tipos: a transformao e a imitao9: Atransformaosria,ou transposio,,semnenhumadvida,amais importantedetodasasprticashipertextuais,principalmente(...)pela importnciahistricaepeloacabamentoestticodecertasobrasquedela resultam.Tambmpelaamplitudeevariedadedosprocedimentosnela envolvidos (GENETTE apud BARROS, 2005, p. 51). Partindodessaconcepo,trataremosareleiturafeitaporChicoBuarqueePaulo Pontescomoumatransformaosocialeculturalemrelaoaotextogrego,apesarda semelhanadotema,dosnomesdealgunspersonagensenaproximidadedosdilogosdas personagens. Sendoassim,percebemosemGotaDguaumatransformaoculturalesocial,nos aspectospoltico-sociais.Apeafoiescritaparaarealidadebrasileiranapocadoregime militar,criticandoocapitalismo,acensuraeoprprioregimevigente.Percebe-senaobra umadisposioemfazervirtonaessemomentodanossahistria,querpelodiscurso fortementeideolgicodaintroduodosautores,querpelasfigurasdispostasaolongoda obra.Outro aspecto bastante importante a transformao esttica de Gota Dgua. A fora potica da obra traz tona a cultura popular dos morros cariocas, toda a nobreza da tragdia gregasubstitudapelavidadepessoascomuns.Alinguagem,emboraemversos,

9 (GENETTE apud BARROS, 2005, p. 79)44 coloquial;reiseprncipessotransformadosempessoasdomorro,emborahaja hierarquizao na disposio delas: Amaneiracomootextofoidesenvolvidodemonstraapreocupaodos autores pela valorizao da palavra, uma vez que sua estrutura se determinou porversos,comintuitodereforarapresenapopular.SegundoPaulo Pontes:overso[...]capazdeaprofundaropersonagemsocialededar umadignidade,umaforateatral,quesubstituiodilogoemprosa, naturalista [...], a tradio da rima pertence s camadas populares (PONTES, 1976, p. 283). Nosaspectosamorososhumatransformaobastanteexpressivaem Gotadgua. MedeiatransformadaemJoana,mulherdopovoemoradoradomorro,queabandonao maridomaisvelhoparajuntar-seaJaso,sambistaquefazsucessonordiocomosamba intituladotambmGotadgua.OreiCreontetorna-seodonodoconjuntohabitacional ondemoramospersonagens,paideAlma,noivadeJaso.Ocorodatragdiagrega, formadopelasancisdeCorinto,substitudopelasvizinhasevizinhosdeJoana(Zara, Estela, Maria, Nen, Caceto, Xul, Boca Pequena, Amorim, Galego). A ama de Medeia vira Corina, amiga e confidente de Joana. Egeu, rei de Atenas que promete exlio para Medeia, e o preceptor dosfilhos dela socombinados em um personagemchamado de mestre Egeu, que protegeeabrigaJoanaeosfilhos;eleumhomemindignado,queestimulaosvizinhosa reclamaremdosjurosabusivoscobradosporCreonte,noreajustedasprestaesdascasas, liderando este coro dos descontentes. OquenotamosatravsdessedilogoentreMedeiaeGotaDguaumcruzamento entre as culturas clssica e brasileira em vrios aspectos. H, por exemplo, certa banalizao intencional do conceito de tragdia para a realidade brasileira, tragdia, no sentido presente no aspectotrgicododiaadia,nocotidiano,contribuindo,portanto,paradarnovosvalores culturais a obra em um contexto brasileiro. Outropontoimportanteparatratarmosasobraspelovisdatraduosemiticaa incorporaodeoutrossistemasdelinguagensemGotaDgua,almdosjcitados,tais como a msica ea dana. Casam-se a msica popular coma poesia, demonstrando, alm de uma significao mais ampla, uma contextualizao com a cultura das personagens da Vila do Meio-dia,totalmenteintrnsecasnaraizdosamba,domorro.Tem-seumexemplodoque 45 afirmamosanteriormente no primeiro ato, quando o samba Gota dgua ouvido no rdio dalavanderia,enquantoasvizinhasexecutamumacoreografiarepresentandootrabalhode lavar-estender-passar roupa. Aindapodemosressaltar,paraintensificarodilogo,acenafinaldeambasasobras. Nofimdatragdiagrega,Medeiaeoscorposdosfilhossotransportadosemumcarro flamejante enviado pelo deus Sol, para no deix-la a merc de mortais. Em Gota Dgua h umfinalsurpreendente,comoassassinatodascrianaseosuicdiodeJoana,eterminaem suspenso.EgeueCorinaentramnafestadeCreontecarregandooscorposdeJoanaedos filhos, entram em cena todos os atores cantando o samba Gota dgua, J lhe dei meu corpo, minha alegria J estanquei meu sangue quando fervia Olha a voz que me resta Olha a veia que salta Olha a gota que falta Pro desfecho da festa Por favor Deixe em paz meu corao Que ele um pote at aqui de mgoa E qualquer desateno, faa no Pode ser a gota dgua (Chico Buarque) Ao fundo, temos a apario de uma manchete sensacionalista noticiando uma tragdia; issonosmostraque,almdeserumtrabalhometalingusticodosautores,reforaa transformao do conceito de tragdia no contexto brasileiro. 2.2 Trechos e Anlises 2.2.1 Entrada de J oana 1.JOANA (Uma melodia sublinha a fala de Joana.)2.S agora h pouco, depois de tanto 3.tempo acordados, finalmente os dois 4.conseguiram adormecer. Depois 5.de tanto susto, como por encanto, 6.o rostinho deles voltou a ter 7.no sei no... Parece que de repente, 46 8.no sono, eles encontram novamente 9.a inocncia que estavam pra perder 10. Olhando eles assim, sem sofrimento, 11. imveis, sorrindo at, flutuando, 12. olhando eles assim, fiquei pensando: 13. podem acordar a qualquer momento 14. Se eles acordam, minha vida assim 15. do jeito que ela est destrambelhada, 16. sem pai, sem po, a casa revirada, 17. se eles acordam, vo olhar pra mim 18. Vo olhar pro mundo sem entender 19. Vo perder a infncia, o sonho e o sorriso 20. pro resto da vida... Ouam, eu preciso 21. de vocs e vocs vo compreender: 22. duas crianas cresceram pra nada, 23. pra levar bofetada pelo mundo, 24. melhor ficar num sono profundo 25. com a inocncia assim cristalizada 26. (Orquestra encerra.) [...] 27. JOANA 28. Ningum vai sambar na minha caveira 29. Vocs to de prova: eu no sou mulher 30. pra macho chegar e usar como quer, 31. depois dizer tchau, deixando poeira 32. e meleira na cama desmanchada 33. Mulher de malandro? Comigo, no 34. No sou das que gozam coa submisso 35. Eu sou de arrancar a fora guardada 36. c dentro, toda a fora do meu peito, 37. pra fazer forte o homem que me ama 38. Assim, quando ele me levar pra cama, 39. eu sei que quem me leva um homem feito 40. e foi assim que eu fiz Jaso um dia 41. Agora, no sei... Quero a vaidade 42. de volta, minha teso, minha vontade 43. de viver, meu sono, minha alegria, 44. quero tudo contado bem direito... 45. Ah, putinha, ah, lambisgia, ah, Creonte 46. Vocs no levaram meu homem fronte 47. a fronte, coxa a coxa, peito a peito 48. Vocs me roubaram Jaso coo brilho 49. da estrela que cega e perturba a vida 50. de quem vive na banda apodrecida 51. do mundo... Mas tem volta, velho filho 52. da me! Assim que no vai ficar47 53. T me ouvindo? Velho filho da puta! 54. Voc tambm, Jaso, v se me escuta 55. Eu descubro um jeito de me vingar... (HOLLANDA & PONTES, 2011, p.58-60) NagravaodotrechoacimaintituladaEntradadeJoana,dolbumGotadgua (1977),halgumasmodificaesmnimasdotextooriginalemalgumaspalavrasusadasna interpretao de Bibi Ferreira. Mas, de qualquer maneira, nos serve para estabelecer a ideia de queodiscurso,sejadopersonagemnotextooudoatornopalco,umsistemadesignos bastante rico que veicula praticamente quase todos os signos da ao dramtica e que pode ser utilizado no drama para expressar relaes dos personagens com suas caracterizaes, como a condio social ou geogrfica, dentre outras. Contudo, a expresso lingustica no teatro no apenas detentora de signos do discurso, referentes palavra, como tambm, de gestos, trajes, cenrios,msica,dentreoutros,quetambmsosignosepodemexpressarsituaesde diversas naturezas devido propriedade polissmica que o teatro possui. Segundo Isabel Jasinski (1997), o emprego da msica no teatro pode ser feito sob duas concepesdodrama:umanaturalista,outraantinaturalista.Segundoapesquisadora,o empregodamsicanaconceponaturalistaprezapelaimitaodarealidadeexterior,jna antinaturalistahumprivilgiodacaracterizaodomomentocnico,sendoassimum recurso da teatralidade. Assim, a msica torna-se um elemento constituinte da representao, contribuindo para o ncleo significativo da obra como um todo (Cf. JASINSKI, 1997). Nestaanlise,pode-seperceberqueamsicaumrecursofrequente,podendo funcionar como um cdigo significativo ou como invocador de uma atmosfera psicolgica. A msica pode funcionar ainda como um agente caracterizador do momento, do espao cnico. Portanto,assituaesdescritasacimasoaconcretizaodaintersemioseresultantedo dilogo entre os sistemas modelizantes de segundo grau o teatro e a msica.NorecortedafaladeJoanaapresentadoacima,verifica-seomomentoemquea protagonistaentraemcena,expondotodooseusofrimentosamigasdiantedoocorridona ao dramtica. No incio da fala de Joana, especificamente do verso 1 ao 26, como explicita arubrica,inicia-seumaorquestraexecutandoamelodiadosambaGotadguadeforma meldica, pontuando a fala da personagem. A suavidade da fala quase sussurrada, mirando os dois filhos que naquela hora dormiam, fugindo da tenso e do importuno destino que lhes foi traado,aoesmo,abandonadosetrocadospelopai,marcadapelofundomusical, 48 recuperandoeevocandootomtrgicodasituaoemgoadapersonagemdiantedadorda traioedoabandono,quejprenunciametaforicamentenosversos24e25odesfechodo destino das crianas. A partir do verso 27, que, no texto, remete justamente ao prenncio da morte de Joana s vizinhas, a personagem principal j muda o seu tom de sua voz, aindaacompanhado pela orquestra.AquinotamosqueapersonagemJoanadotadadedio,tantopelotomdevoz, quantopelaentonaodaorquestra,principalmenteentreaausnciadesomem [00h02min16seg],verso41notextodramtico,eaalternnciadasnotasagudasdoviolino acentuado at o final. Nessa parte, notamos um uso vocabular bastante agressivo por parte de JoanaemrefernciaaJaso,CreonteeAlma,talcomoputinha,lambisgia,filhoda puta, todos marcando bem o estado psicolgico e social da personagem principal, que remete vingana,aopopulareafaltadeescrpulodiantedesuadesdita.Osritmoseamelodia clssica iro definir a entonao da voz, complementando o significado do discurso e da ao dramtica.Assim,amsicaaofundo,defineotomdacena,everemosqueessaumadas caractersticas principais da obra dramtica.deextremaimportnciaparaanossaanliseutilizaroinstrumentalterico apresentadopelosuoPaulZumthor,quecontribuiudediversasformasparaoestudoda HistriaedaCultura,aoinstalarosestudosdapoticadavoz.Assim,daremosnfase transmissoteatralizantedavozqueeleassumiucomoperformance.Porisso,convm entendermos, respectivamente, os termos obra e texto luz dos preceitos deste autor. Para ele, obraoquecomunicadopoeticamenteaquieagora,ouseja,otermocompreendea totalidadedefatoresdeumaperformance(texto,sonoridade,ritmo,etc.).Jtexto,na concepodoautorseriaumasequncialingusticaquetendeaofechamento,cujosentido globalnoredutvelsomadosefeitosdesentidoparticularesproduzidopelosseus componentes.Assim,otextolegvel,aobraaudvelevisvel,dotexto,avozem performance extrai a obra (Cf. ZUMTHOR, 1993, p. 219). Combasenoconceitodeperformance,cunhadoporPaulZumthor,etecendoum dilogo com nosso objeto de estudo que mescla intersemioticamente os sistemas modelizantes do Teatro e da Msica, verificamos que toda ao complexa pela qual uma mensagem potica passada e sentida num dado momento passa a ser performance. Ou seja, em performance, o textopronunciadoconstitui,primeiramente,umsinalsonoro,ativocomotal,es secundariamente mensagem articulada (Cf. ZUMTHOR, 1993, p. 262). Baseando-se nesta 49 assertiva,eunindoessaconcepoaonossoobjetodeanlise,podemosconcluirqueos signosenvolvidosnaperformancedeJoanacorroboramativamentecomaveiculaoda mensagem transmitida complementando a rede de significados contidos na obra. 2.2.2 Monlogo do povo A segunda interpretao que vamos analisar intitula-se no lbum Monlogo do povo etrata-sedeumsolilquiodeJoanaemcorrespondnciaascensosocialobtidaporJaso pelo casamento e pelo samba de sucesso, considerada uma traio por parte da primeira: 1. JOANA Muito bem, Jaso, voc poeta2. perigoso porque de repente3.est dando s palavras a inteno4.que interessa a voc...5.[...] 6. S que essa ansiedade que voc diz7.no coisa minha, no, do infeliz8.do teu povo, ele sim, que vive aos trancos,9.pendurado na quina dos barrancos10. Seu povo que urgente, fora cega,11. corao aos pulos, ele carrega12. um vulco amarrado pelo umbigo13. Ele ento no tem tempo, nem amigo,14. nem futuro, que uma simples piada15. pode dar em risada ou punhalada16. Como a mesma garrafa de cachaa17. acaba em carnaval ou desgraa18. seu povo que vive de repente19. porque no sabe o que vem pela frente20. Ento ele costura a fantasia21. e sai, fazendo f na loteria,22. se apinhando e se esgoelando no estdio,23. bebendo no gargalo, pondo o rdio,24. sua prpria tragdia, a todo volume, 25. morrendo por amor e por cime,26. matando por um mao de cigarro27. e se atirando debaixo de carro28. Se voc no aguenta essa barra,29. tem mas que se mandar, se agarra30. na barra do manto do poderoso31. Creonte e fica l em pleno gozo32. de sossego, dinheiro e posio33. coaquela mulherzinha. Mas, Jaso,50 34. j lhe digo o que vai acontecer:35. tem ua coisa que voc vai perder,36. a ligao que voc tem com sua37. gente, o cheiro dela, o cheiro da rua,38. voc pode dar banquetes, Jaso,39. mas samba que voc no faz mais no,40. no faz e a que voc se atocha41. Porque vai tentar e sa samba brocha,42. samba escroto, essa a minha maldio43. Gota dgua, nunca mais, seu Jaso44. Samba, aqui, ... 45. [...] 46. JOANA Nunca... 47. JOANA Voc no engana ningum... 48. [...] 49. JOANA Corre! Vai procurar aquela puta!50. No fica perdendo tempo comigo51. Vai bajular Creonte, mas, escuta,52. de algum lugar h de vir o castigo53. A vida no assim, seu Jaso54. No se pode ter tudo impunemente55. A paz do justo, o lote do ladro56. mais o sono tranquilo do inocente57. Corre pro teu casamento, Jaso58. No essa a tua grande ambio?59. Depressa, bebe, come, lambe, goza,60. mas, se quem faz justia neste mundo61. me escutar, esse casamento imundo62. no vai haver no, por falta de esposa (HOLLANDA & PONTES, 2011, p.134-137) NessetrechopodemosobservarqueJoanaexpeaJasosuaconcepoacercadoseu casamentocomAlmaedoseusucessodevidoaosambaestouradonasrdios.Percebemos queovocabulrioeotomdevozdeJoananotrechoremetemaotomraivoso,irnico, alucinado,desesperadoejocoso.Nota-sequeaascensodeJaso,tantosocialquando artstica,consideradaporelacomoumatraioeumabandonodomiciliar,jqueambos tinhamdoisfilhos.Porisso,esseclmax,quejaconteceinmediaresnoenredo,provoca tantodioemJoana,fatoquealevaafaltadediscernimentoqueserconfirmadocoma materializao da tragdia no fim da histria. AperformancedeBibiFerreira,nafaixaintituladaMonlogodoPovo,nolbumem anlise,remeteaessetrecho.Percebemos,logodeincio,obatuquedosambacomomsica de fundo, recuperando o ritmo primitivo da msica, que em sua origem remete ao ritmo mais 51 lento. O samba um gnero musical considerado uma das principais manifestaes culturais popularesbrasileiras,porm,jquereservamosumapartedesteestudoapenaspradiscutir questes acerca deste gnero musical, no nos prolongaremos neste assunto. Contudo,associa-seosambaaestetrechodevidoaofatodeJoanaretomaraorigem popular de Jaso e considerar a sua ascenso como uma traio perante suas origens, perante oseupovo.Novamente,tem-seaentradadamsicatemadaobra,osambaGotadgua, dessa vez, interpretado por um coro meldico em [00h01min25seg] da faixa. Assim, podemos afirmar que o fundo musical age nesse momento especfico, do verso 7 ao 44, como um signo em intersemiose com o sistema modelizante do Teatro, sublinhando o assunto que est sendo tratadonaaodramtica(daorigempopulardosamba,dacompletudeentrecombustvel criativoelaospopulares),amplificandooseusignificado.E,partindodasestruturas fundamentais do signo musical ritmo, melodia e harmonia notamos que a msica inserida nessapeatemopapeldesublinhareampliar,ouatmesmodesubstituiralgunssignosde outros sistemas modelizantes envolvidos na ao (Cf. KOWZAN apud GUINSBURG, J. et al, 2006, p.114). Almdisso,vlidocomentardoisconceitosimportantesquepermeiamaobra:a tematizao e a figurativizao. O primeiro refere-se queles elementos que norteiam a ideia abstrata no texto, j o segundo remete aos elementos concretos presentes no mesmo texto. Partiremos,aqui,dapremissadequeafigurativizaotemapropriedadedeformar cadeiassignificativasdepalavrasouexpressesquepossuamtraosemcomum,equepara compreendlasnecessrioconheceroprimeironveltemtico.Apartirdeento, chegaremosaumaestruturalfundamental,quepoderconterasfigurasencadeadasem esquemas de oposio. Fiorin(1999)irnosforneceraideiadequeexistemdoistiposdetextos:os figurativos e os temticos. H uma relao bastante complementar e estreita entre esses tipos detexto,masquesediferemnoquesitodeaplicaododiscursorealidade.Enquantoo primeirocriaumaespciedesimulacrodarealidade,osegundoirtentarclassific-la,ou seja,ostraossemnticosdodiscursonessetipodetextoseroabstratos.Aindasobreessa diferenciao proximal, Clia Regina Simonetti Barbalho, na obra Fazer semitico: subsdios para exame do espao concreto (2006) ir afirmar que, 52 A tematizao expressa elementos abstratos buscando explicar a realidade e representaromundoatravsdeuminvestimentoconceptual.Ostemas organizam,categorizameordenamarealidadesignificantedemodoa permitirsuainterpretao.Figurasetemassoparamanteracoerncia interna do texto, necessitam seguir um percurso ou encadeamento lgico de modoagerarsentido.Asfigurasdevemservistasatravsdoconjuntopor elas composto e no isoladamente (BARBALHO, 2006, p. 88). Umafiguraisoladanotersignificadoprprio,porm,aoseremorganizadosem grupos,ostemaspassamasertraduzidos,poisoencadeamentodasfigurasirproporcionar significados amplos dentro do texto. Ento, pode-se cheg