Upload
ju-morais
View
216
Download
4
Embed Size (px)
DESCRIPTION
pensamento social
Citation preview
37º Encontro Anual da ANPOCS
SPG17 Pensamento social e análise da cultura
DESVIO, CONTRADIÇÃO OU ESTRATÉGIA? SÍLVIO ROMERO E A INTELECTUALIDADE BRASILEIRA NO CONTEXTO DE FORMAÇÃO DA
ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS
Fernando de Azevedo Lopes
2
Desvio, contradição ou estratégia? Sílvio Romero e a intelectualidade brasileira no contexto de formação da Academia Brasileira de Letras
Fernando de Azevedo Lopes*
Resumo: O trabalho aqui proposto tem como pretensão analisar a atuação intelectual e política de Sílvio Romero no contexto da Primeira República e da criação da Academia Brasileira de Letras (1897), período em que os intelectuais comumente agrupados na “Geração de 1870” ganham um espaço maior de divulgação de suas ideias. Nele, busco entender a trajetória e disputa de Romero nesse contexto como forma de compreender melhor a dinâmica da intelectualidade brasileira do período, com suas estratégias de legitimação/repulsão, em um momento chave para a institucionalização da intelectualidade brasileira. Em um segundo momento do trabalho, busco compreender a disputa acerca do que significava ser intelectual no Brasil no período, empreendida por Silvio Romero contra o que chamo aqui de mainstream da ABL, tendo como figura principal Machado de Assis (mas não somente ele), utilizando para isso o referencial teórico cientificista como forma de atuação política no contexto nacional e de inserção na dinâmica do campo intelectual brasileiro. Palavras-chave: Sílvio Romero; Academia Brasileira de Letras; Pensamento social brasileiro; crítica literária. Introdução1
Sílvio Romero é destacado por muitos analistas como um dos grandes
intelectuais brasileiros e sua obra foi objeto de muitas análises, indo da História
e Literatura até a Filosofia. Romero é comumente associado ao movimento
renovador de ideias políticas e filosóficas no Brasil, a “geração de 1870”,
geração esta formada por intelectuais que se caracterizavam pela oposição à
ordem saquarema, a qual vigorou quase ininterruptamente entre 1848 e 1878 e
confrontava os três pilares da ordem imperial conservadora: o catolicismo
hierárquico, o indianismo romântico e o regime que limitava a participação
política. Romero teve sua obra, principalmente sua crítica literária, diretamente
marcada pela influência do ideário cientificista, principalmente do evolucionismo
de Herbert Spencer, e esse foi o aspecto que mais o marcou/estigmatizou, tanto * Mestrando em Sociologia com concentração em Antropologia pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia – PPGSA/IFCS/UFRJ e bolsista da CAPES. Email: [email protected]. 1 Agradeço a leitura crítica e atenta do meu orientador, Professor André Botelho e as valorosas sugestões feitas. Agradeço também a leitura crítica e valiosa feita por Paula Ribeiro da Cruz.
3
pelos seus adversários coetâneos quanto pela produção analítica posterior
sobre ele.
Visto isso, um dos objetivos desse trabalho será o de contestar a visão
corrente dentro dos estudos sobre Romero, segundo a qual uma certa lógica de
cópia / desvio das ideias marcaria a trajetória intelectual do autor sergipano, no
sentido de absorção mecânica de certos repertórios intelectuais e também de
contradições presentes na sua trajetória intelectual. Tento compreender, ao
contrário, o uso do repertório cientificista europeu por Romero como forma de
atuação política e intelectual no contexto nacional, e não como mero “erro de
percurso” na migração das ideias das matrizes europeias para o Brasil. Busco
entender a trajetória e disputas de Romero nesse contexto, como forma de
melhor analisar a dinâmica da intelectualidade brasileira do período, com suas
estratégias de legitimação/repulsão, em um momento chave para a
institucionalização e conformação do campo intelectual brasileiro2.
Para tal demonstração, utilizo como ferramenta empírica a análise das
críticas de Sílvio Romero à relação das oligarquias estaduais e do militarismo
com o positivismo. Outra das minhas hipóteses é de que uma certa “linhagem”
tipológica crítica surge com José Veríssimo, no momento de formação da ABL e
de embate in loco com Romero, variando intensidade e forma, e se renova na
bibliografia subsequente sobre o autor sergipano.
Em outras palavras, acredito que a dinâmica própria do momento de
formação da ABL e as saídas retóricas nascidas naquele debate acabaram por
estigmatizar Sílvio Romero e esse artigo é uma breve tentativa de leitura de sua
atuação intelectual como dotada de sentido próprio, para assim perceber
também como o manejo do repertório científico do período segue um plano
estratégico de agência na realidade nacional do período.
Desvio, contradição ou estratégia?
Muitas das análises sobre Romero trabalham com a ideia de que o
pensamento do autor e a forma como mobilizou suas construções intelectuais 2 Utilizo “campo” aqui como categoria descritiva e não da forma analítica empreendida por Pierre Bourdieu.
4
seriam “contraditórios”, desde as primeiras reações em relação à sua obra até
as análises mais recentes. Sua suposta incoerência e o ardor e ferocidade para
com as querelas em que estava envolvido com seus adversários marcaram uma
tradição de análise que por muito tempo balizou o debate sobre sua contribuição
para o pensamento social brasileiro. José Veríssimo, um dos principais
adversários intelectuais de Romero3, inaugura uma vertente interpretativa sobre
a obra do autor ao se posicionar criticamente em relação à crítica literária
romeriana, tendo no trecho abaixo citado um grande exemplo desse movimento: [...] ele não é uma natureza complicada e difícil, antes clara, espontânea e aberta. Mas também incoerente, impulsiva, sem medida nem comedimento. Isso explica as suas incoerências, a sua inconstância de caráter e de espírito [...] se não se emenda, é um candidato ao delírio de perseguição (VERÍSSIMO, 2001, p. 244)
Nota-se claramente a desqualificação de Romero transcendendo ao
arcabouço teórico e crítico utilizado por ele e fixando-se nas suas características
pessoais e psicológicas. Artifício comum no mis-en-scéne intelectual da época,
essa forma de abordagem interpretativa se perpetuou, de formas diversas, na
vasta produção subsequente acerca do autor, indo desde Antonio Candido até
obras mais recentes, as quais serão abordadas no decorrer do trabalho.
Sílvio Romero é considerado por Antonio Candido um dos principais nomes
da moderna crítica literária brasileira, apesar do autor salientar discrepâncias
nas suas análises e o excessivo enfoque nos fatores externos à literatura.
Candido, em Método Crítico de Sílvio Romero (1945), enfatiza as contradições
romerianas, caracterizando-as como um “ardente e por vezes desordenado
movimento entre idéias resultante de um humor instável” (Ibid.:19). Podemos
notar que a interpretação de Candido lança mão de certo psicologismo, como
Veríssimo, ao caracterizar a lógica do movimento intelectual de Romero.
Segundo Candido, a polêmica, tão marcante na obra de Romero, teria sofrido
influência de ressentimentos e motivos pessoais, mais do que motivações
políticas e de disputa intelectual. O problema de tal análise é o fato de Candido
3Além de toda a diferença entre as propostas de crítica literária existentes entre os autores, pode-se localizar o início da polêmica e da intensa rixa entre os dois na defesa de Machado de Assis empreendida por Veríssimo mediante as críticas feitas por Romero no seu Machado de Assis: Estudo comparativo de literatura brasileira (1897). Sobre essa tríplice polêmica, ver Bariani, 2007.
5
deslegitimar essas motivações na trajetória de Romero dentro da disputa
intelectual do período.
Por outro lado, Antonio Candido vê na obra de Romero importância devido
à forma como o último ultrapassou o formalismo da crítica literária e permitiu
uma leitura mais complexa das atividades artísticas e literárias do Brasil. Para
Candido, esse movimento em Romero deveu-se ao embasamento no
naturalismo crítico, que entende as questões culturais de forma integrada e
funcional em relação a um contexto específico (Ibid.).
Apesar desse elogio à importância da obra de Romero para a crítica
literária brasileira, Candido entende o uso do ideário cientificista como mera
reprodução de suas matrizes européias. As polêmicas em que Sílvio Romero
participou são entendidas como influenciadas pelos seus devaneios
“passionais”, quase irracionais, não obedecendo a uma lógica interna do campo
de disputa intelectual do período.
Nelson Werneck Sodré, em seu livro A Ideologia do colonialismo (1984
[1956]), trabalha com a perspectiva de que o pensamento evolucionista
brasileiro, especificamente o de Sílvio Romero, seria fruto de uma recepção
acrítica e servil do ideário da “metrópole”, reflexo da dominação colonial,
enfatizando que as teorias adotadas pelos intelectuais brasileiros do fim do
século XIX seriam uma
[...] transplantação cultural, isto é, a imitação, a cópia, a adoção servil de modelos externos, no campo político como no campo artístico [...] Os povos subordinados não a escolhem por um ato de vontade. São naturalmente conduzidos a recebê-la porque, ao mesmo tempo que justifica a supremacia de nações colonizadoras, justifica, internamente a supremacia da classe ou das classes que se beneficiam da subordinação, associando-se às forças econômicas externas que a impõe (SODRÉ, 1984: 08).
No mesmo diapasão do argumento de Sodré, Dante Moreira Leite (1969)
argumenta que o uso dos aspectos científicos por Romero seria forma de dar
legitimidade à sua atividade de crítico, visto o prestígio que a ciência tomou na
intelectualidade brasileira no último quartel do século XIX (Ibid.: 180) e não
mantendo um nexo com a realidade social brasileira, significando, portanto, uma
contradição argumentativa na obra do sergipano.
6
Já na década de 1970, Thomas Skidmore, em Preto no Branco: Raça e
nacionalidade no pensamento brasileiro (1976) também destaca as supostas
contradições no pensamento de Sílvio Romero, principalmente na questão do
papel do mestiço na construção da ideia de um novo Brasil. O historiador
americano classifica como inconsistente as posições de Romero, o qual, para
Skidmore, teria ressignificado as ideias cientificistas raciológicas, alocando o
mestiço em um contraditório papel na construção desse “novo” nacional. Essa
inconsistência, segundo Skidmore, seria ainda mais aguda tendo em vista a
solução do branqueamento e a sua incompatibilidade com as ideias matriciais
europeias.
Retomando e criticando essa vertente analítica propagada pelo
brasilianista, Roberto Ventura, no seu livro Estilo Tropical: História Cultural e
polêmicas literárias no Brasil analisa essas aparentes contradições na obra de
Romero como uma forma de integração do ideário europeu no Brasil consoante
à conjuntura política nacional, como fica claro no trecho citado:
[...] os sistemas de pensamento europeus foram integrados de forma crítica e seletiva, segundo os interesses políticos e culturais das camadas letradas, preocupadas em articular os ideários estrangeiros à realidade local. O racismo científico assumiu essa função interna, não coincidente com os interesses imperialistas, e se transformou em instrumento conservador e autoritário de definição da identidade social da classe senhorial [...] (VENTURA, 1991, p.60)
Ventura, no fragmento acima, dialoga com a tradição interpretativa na qual
Skidmore se enquadra. Ao contrário do brasilianista, Roberto Ventura não
enxerga a adaptação do ideário europeu como cópia ou erro de percurso, ao
contrário, o autor avança em muitos aspectos no trato a geração de 1870, mas
em muitos trechos de seu livro ainda trabalha com concepções como
“contraditório” e outras de fundo psicologizante – que a meu ver nublam o viés
analítico sobre Romero.
Ao relacionar o recurso à polêmica como reflexo de uma prática própria da
intelectualidade brasileira do período remanescente de certos aspectos
tradicionais – a questão da honra e da busca pela manutenção da integridade
pessoal –, Ventura deixa de considerar o projeto intelectual específico de
Romero e aponta na direção de que a forma e o conteúdo das críticas feitas
7
pelo autor sergipano seriam fruto de uma conjuntura influenciada por um modus
operandi tradicional.
Em trabalho recente de Alberto Luis Schneider (2005), percebe-se a
preocupação em historicizar as querelas de Romero frente aos seus adversários
intelectuais e políticos (principalmente Machado de Assis), transcendendo o
“estigma do contraditório” que marcou, durante décadas, as abordagens sobre
Romero. Dessa forma, Schneider percebe que muitos dos movimentos críticos e
ataques de Sílvio Romero à “panelinha fluminense” e ao seu “chefe” – Machado
de Assis – representavam uma tentativa de critica à posição central ocupada
pelo Rio de Janeiro no ambiente intelectual do país no momento. Além disso,
Schneider destaca a disputa empreendida por Romero em torno da definição e
normatização da semântica do ofício letrado no país: a postura “engajada” de
Romero em oposição ao suposto belletrissmo de Machado de Assis (Ibid.: 99).
Outro aspecto presente no trabalho de Schneider tange a certas
interpretações que dão a linha de comparação que empreendo aqui. O autor,
em passagem que explica a diferença entre as abordagens de Machado de
Assis e Romero quanto à questão da nacionalidade, deixa clara a chave de
compreensão dessa diferença:
A pretensão romeriana de explicar o Brasil exibiu uma consciência nacionalista perturbada, oscilando entre o otimismo e o pessimismo, que observava a vida brasileira e ao mesmo tempo lia os teóricos europeus, extraindo desses olhares respostas contraditórias. A imaginação intelectual do século XIX penetrou fundo no universo romeriano. Machado de Assis, ao contrário, foi menos suscetível aos discursos hegemônicos, menos interessado nas grandes teorias explicativas e mais disposto a flagrar a universalidade do homem nas suas estratégias veladas, no cálculo escondido atrás da generosidade ou da ingenuidade, no jogo das aparências, no interesse de classes dissimulado. Sem a angústia da identidade nacional, Machado de Assis soube falar do seu país e de seu tempo, conseguindo afirmar e relativizar, criticar e compreender, capaz de aludir às coisas brasileiras sem cair num discurso nacionalista ou antinacionalista (SCHNEIDER, 2005, p.117) (grifo meu).
O autor, ao fazer essa comparação, repete a longa tradição explicitada
linhas acima, vendo em Sílvio Romero uma adoção equivocada de repertórios
intelectuais externos à realidade brasileira e, por outro lado, em Machado de
Assis, saltaria aos olhos a sofisticação de sua interpretação e o refinamento de
8
se afastar do cientificismo tão em voga no período, o que lhe permitiria ver as
nuances da realidade social brasileira, desprendido das amarras da “angústia da
identidade nacional” (Ibid.: 117).
Não nego que Machado de Assis não comungava e sempre foi um crítico
do cientificismo nas suas mais variadas vertentes e o fez com muita perspicácia
no seu tempo. Entretanto, entender a prevalência de Machado de Assis em
relação a Romero através dessa chave de leitura me parece um exercício
eivado de anacronismo, posto que essa interpretação desconsidera a realidade
do momento em que os agentes estavam inseridos, fazendo uma leitura
teleológica. Ademais, entender que existem teorias ou “doutrinas” específicas ou
mais apropriadas em relação a determinado período pode ser perigoso e não
permitir enxergar a forma política em que os repertórios são empregados.
Como nos lembra Quentin Skinner (1996), o estudo do contexto em que a
obra foi produzida não significa apenas adquirir uma informação adicional sobre
uma etiologia, mas também implica em perceber e ter maior visão interna sobre
o que seu autor queria dizer, o que ele “estava fazendo”4 quando escreveu suas
obras (Ibid.: 13). A proposta metodológica do contextualismo linguístico
transcende a simples análise do argumento do autor e possibilita dar conta das
questões que Sílvio Romero lançava e tentava responder e, em que medida,
aceitava e endossava, ou contestava e repelia – ou às vezes até ignorava – as
ideias e convenções predominantes.
Após esse breve mapeamento da presença de certas continuidades de
análise em torno da obra de Romero, convém perceber a utilização do repertório
teórico por ele adotado com finalidade de ação prática frente à realidade política
do país. Vale mencionar que, para Romero, a atuação política e a prática
literária caminhavam juntas e faziam parte do mesmo movimento. Portanto, para
melhor compreender a dinâmica intelectual do autor se torna necessário
considerar também suas análises políticas strictu sensu.
As oligarquias estaduais e o positivismo 4 Skinner não defende que esse “fazer” seria o de adentrar a mente do autor e, em um esforço subjetivista, dar conta dos meandros de sua mente. O que ele coloca é o fato de entender a produção dos textos dentro dos seus contextos linguísticos específicos e compreender como os mesmos têm uma função estratégica e instrumental de agência na realidade (SKINNER, 2005).
9
Em sua obra Doutrina contra Doutrina (2001 [1894]), Romero elabora uma
forte crítica ao positivismo no Brasil, presente no exército e naqueles que
promoveram o golpe republicano no país. Utilizando de forma singular e
progressista o evolucionismo spenceriano como contraponto ao “atrasado
positivismo com seus anacronismos, ditaduras, seu patriarcado...” (Ibid.: 122),
Romero defende que o Brasil é “fatalmente democrático” (Ibid.: 72). Em outras
palavras, para ele, a nação brasileira surge no momento posterior ao fim das
aristocracias próprias do Antigo Regime quando a mestiçagem funcionou como
um mecanismo que tornou a sociedade brasileira “naturalmente” igualitária e
aonde o governo aristocrático e autoritário de poucos não condizeriam com os
fatores do meio social brasileiro.
Ao fazer a crítica do autoritarismo em que o positivismo se apresenta no
Brasil, Romero utiliza o liberalismo de inspiração spenceriana de forma a
defender a democracia, a chamar a atenção para a exploração capitalista dos
operários (Ibid.: 90), chegando mesmo a flertar com o movimento socialista e a
tecer elogios a obra de Marx e Engels (Ibid.: 85). Esse processo de afastamento
e antagonismo em relação ao positivismo e adesão irrestrita ao evolucionismo
de Herbert Spencer atinge o seu auge na trajetória de Romero no início do
período republicano e salienta que uma das motivações foi o cenário político em
que se configurou a república brasileira nos seus primeiros anos. O repertório
intelectual se apresenta, para ele, como forma de interagir e reagir à estrutura
política nacional.
Durante o fim do século XIX e a primeira do século XX, os grupos
oligárquicos davam suporte à ordem política nacional. As oligarquias estaduais
eram os principais atores políticos dos primórdios da República, tendo o governo
federal que negociar e tecer acordos com eles para se manter a
governabilidade. Romero em As oligarquias e sua classificação, discurso
transformado em artigo que data de 31 de maio de 1908 sintetiza o que pensa
sobre as oligarquias e o seu legado negativo:
O Brasil de hoje, como foi organizado, por certos ‘fantasistas’ sem cultura real, sem plasticidade orgânica de talentos e de doutrinas, confundidores famosos de frases com idéias, e como tem andado ao
10
sabor e sob o tacão de criminosos exploradores, é uma desarticulada ditadura, de joelhos perante o exército, repartida em vinte oligarquias fechadas, feudos escusos, pertencentes a vinte bandos de vicários (ROMERO, 1910, p.407)
Nesta obra, Romero utiliza categorias influenciadas pelo pensamento
evolucionista para tentar compreender as realidades sociais do Brasil,
movimento bem comum na obra do autor.
Dois dos principais grupos da renovação intelectual do Brasil, as elites
regionais, antes de 1880 marginalizadas, mas agora com poder e influência nos
seus estados foram os federalistas de São Paulo e os do Rio Grande do Sul
(ALONSO, 2002: 156-157). Em comum, eles nutriam a filiação ideológica com o
positivismo de Augusto Comte e a descentralização política como bandeira.
Romero foi um crítico desses últimos, exemplificado pelas rusgas com Pinheiro
Machado5 e Julio de Castilhos6 e o grupo gaúcho que eles eram representantes,
controvérsia essa que fica evidente em um fragmento de sua obra O castilhismo
no Rio Grande do Sul:
A maior anomalia da República Brasileira é a existência em seu seio, existência tolerada pela fraqueza do governo federal, da organização de um dos Estados da União inteiramente fora dos moldes de todos os outros, moldes prescritos pela carta de 24 de fevereiro [...] É a organização castilhista do Rio Grande do Sul, fonte inesgotável de males que têm açoitado aquela rica região e aquele nobre povo (ROMERO, 1912: 01).
Romero, ao atacar o grupo castilhista, o fazia nas bases teóricas que
informam a conduta do grupo – o positivismo – demonstrando que a ideia de
filiação ao seu tutor e mestre Tobias Barreto, fortemente influenciado pelo
comtismo, deve ser relativizada e as suas supostas “contradições” e mudanças
de rumo intelectual e ideológico serviam a um propósito maior, o de instrumento
na luta política levada a cabo por ele (Ibid.).
5 Um dos principais nomes da oligarquia gaúcha, Pinheiro Machado foi eleito senador e deputado federal pelo Estado do RS. 6 Político do PRP formado pela faculdade de Direito de São Paulo, por duas vezes foi eleito governador do Rio Grande do Sul. Fortemente influenciado pela doutrina positivista de Augusto Comte, redigiu a constituição do Estado do Rio Grande do Sul praticamente sozinho, constituição de viés nitidamente positivista e autoritário. Os castilhistas assumiram o poder logo que a República foi instaurada no Brasil. Sobre o tema, ver COSTA e PADUIM, 2006.
11
O positivismo, para Romero, teria tomado forma no Brasil –
principalmente com o advento da República – como uma seita, um emaranhado
de fanáticos (Ibid.: 116), servindo ao sectarismo dos militares e às configurações
oligárquicas regionais. Para o autor, o militarismo, com a influência da doutrina
positiva de Augusto Comte, teria deixado de ser uma instituição neutra e
passando a agir ativamente na política brasileira, fato esse que seria um
equívoco causador de imensos males para o país.
Conclui-se que, para Romero, a questão do combate doutrinário contra o
positivismo não se apresentava como mera disputa entre ideias, mas sim tinha
tamanha importância porque implicava em questões práticas da vida política e
social do país. Para o autor, o combate aos desmandos do militarismo no
período pós-golpe republicano e à crítica ao autoritarismo e ao regionalismo
oligárquico passavam majoritariamente pela crítica ao suporte filosófico que os
sustentava: o positivismo. Segundo ele: A república do positivismo têm de república apenas o nome: está para o verdadeiro ideal republicano como o governo autocrático do Czar está, na ordem da realeza, para a monarquia constitucional da Inglaterra. Nem mais, nem menos. É o que é fácil de verificar, chamando a depor as basesde uma constituição política ditatorial federativa para a República brasileira, publicadas pelo apostolado central.
Para Romero, o atraso, tanto social, quanto intelectual caminhavam
juntos, e o combate precisava ser nessas duas frentes. Penso que para
entender sua atuação de forma mais completa e dar conta dos aspectos mais
imbricados e complexos precisa-se também realizar esse duplo movimento de
análise, não priorizando um aspecto em detrimento de outro, visto que para o
entendimento completo de sua atuação é necessário conjugar as duas esferas
de análise, a intelectual e a política.
A formação da ABL e as disputas de Sílvio Romero
O processo de diferenciação em relação à intelectualidade da capital é
muito presente na trajetória de Romero, desde seus primeiros escritos, para o
qual o ambiente intelectual fluminense do período e sua homogeneização
representavam um fato desestimulante para a individualidade e a crítica
12
renovadora (ROMERO apud MATOS, 1994: 24). Essa busca pela novidade é
justificada com base na necessidade de se criar um sistema de pensamento
organizado, lógico e unitário, que possa dar conta das realidades do Brasil em
todos os seus primas. Tal movimento político e intelectual serviu também a
tentativa de conquista de um novo espaço para o tipo de homem de letras que
Romero representava. Muitas vezes interpretado como “sem razão” e
“exagerado nas suas críticas”, seu esforço deve ser entendido, ao contrário,
como dotado de lógica, uma lógica interna, dentro do campo de possibilidades
do autor.
A criação da Academia Brasileira de Letras (1897) como forma de
especialização do ofício literário7 pode nos trazer informações e dados sobre as
disputas entre a significação do papel do homem de letras no final do século
XIX. Machado de Assis, ao contrário de Romero, pregava o distanciamento e a
independência do literato frente às questões do seu tempo. Em um trecho de
seu discurso de abertura da Academia, ele diz:
Nascida entre graves cuidados de ordem pública, a Academia Brasileira de Letras tem que ser o que são as instituições análogas: uma torre de marfim onde se acolhem espíritos literários, com a única preocupação literária, e de onde estendendo os olhos para todos os lados, vejam claro e quieto. Homens daqui podem escrever páginas de história, mas a história se faz lá fora (ASSIS apud SEVCENKO, 1983: 83).
Romero, ao contrário, defendia que o homem de letras deveria ser atuante,
quase um “militante” em torno das questões caras à realidade social e cultural
do país, tendo ele mesmo defendido esse tipo de “fazer literário” dentro da
Academia. Com efeito, é possível compreender como esse embate de ideias e
práticas também era uma busca por um status quo dentro da instituição recém-
fundada, e também uma forma de defender o emblema da tradição intelectual
do Recife e do Nordeste (principalmente da proeminência de Tobias Barreto
enquanto intelectual maior), em detrimento da intelectualidade da capital federal
(ROMERO, 1897).
Convém lembrar que, retomando o que foi abordado na primeira seção
deste trabalho, a polêmica que deu origem às críticas de Veríssimo a Romero 7 Sobre a Academia Brasileira de Letras e a tentativa de Machado de Assis de criação de um ambiente mais livre e autônomo para os homens de letras no Brasil, ver MISKOLCI, 2006.
13
tinha como cenário os primeiros anos de formação da ABL. Nesta conjuntura,
antigas questões referentes à crítica literária e ao caráter nacional retornaram ao
centro dos debates e reavivaram antigas polêmicas. Como exemplo, podemos
citar o seguinte ataque de Veríssimo a Romero:
Eis a que chegou nas mãos incapazes do Sr. Sílvio Romero a “crítica cientificista” como ele próprio chama a sua: à rebusca de coincidências de opiniões, de plágios e reminiscências com cujo achado impavam de gozo críticos das velhas escolas que o Sr. Sílvio Romero veio justamente suplantar e destruir. Não pode haver mais estupenda revelação de incapacidade critica. Igual só aquela de confrontar os versos patuscos e quejandas chulices de Tobias Barreto com o fino e percuciente humorismo de Machado de Assis (VERÍSSIMO, 2006: 267).
No trecho acima transcrito, pode-se notar claramente como a questão da
proeminência ou não da intelectualidade pernambucana em relação à da capital
fluminense é matéria de embate, o que fica evidente também na sua frase: “A
urbanidade é também uma qualidade literária!” (Ibid.: 273). José Veríssimo
condensa, assim, o argumento em torno do qual constrói sua crítica em torno da
obra de Sílvio Romero. Ele “acusou o golpe”, respondendo e construindo boa
parte de sua crítica de forma reativa, num movimento de acusação e defesa de
argumento. Pode-se notar, nesta conjuntura, o nascimento da representação de
Sílvio Romero como uma personagem “difícil” no ambiente intelectual do Rio de
Janeiro. A figura de polemista fervoroso e dono de uma retórica agressiva, com
uma personalidade egocêntrica dada com muita frequência as autocitações
(Ibid.: 241).
Essa polêmica, que tem como pano de fundo a crítica feita por Romero a
Machado de Assis e a sua posição enquanto maior intelectual do país naquele
período, definiu parte da forma como o esforço empreendido por Romero em
torno das semânticas do ofício letrado no país não podem ser dissociadas da
forma como o autor foi recebido e interpretado pelo pensamento social brasileiro
durante boa parte do século XX. É importante notar que o mesmo projeto
nacional defendido por ele em relação aos projetos políticos para o país e a
crítica às oligarquias estaduais estão diretamente ligadas ao seu esforço de
construir uma crítica literária científica e em sintonia com o Brasil “real”.
14
Considerações finais
A relevância do posicionamento analítico apresentado neste trabalho está
no fato de trazer à tona conflitos dentro de campos vistos pela literatura como
homogêneos, e de salientar que as ideias “científicas” de Romero estavam
trabalhando a favor de uma luta política, de disputa de paradigmas de
organização social. Sua obra sempre foi encarada por ele como forma de ação
na realidade, por mais que, influenciado pelas ideias cientificistas, acreditasse
que o que estava realizando era descobrir a lógica natural existente na
realidade.
Com vistas a auxiliar a análise da trajetória política de Sílvio Romero torna-
se necessário retomar as reflexões de Bourdieu acerca das ilusões biográficas,
que nos indica que é necessário reconstituir o campo de ação do indivíduo
estudado, contextualizando-o em relação aos aspectos da sociedade que está
inserido. Quando se pensa numa trajetória, não se deve imaginá-la como um
todo coerente e racionalmente traçado, como se os sujeitos históricos
obedecessem a um caminho pré-estabelecido (BOURDIEU, 2005).
Tratando-se da análise da obra e posicionamento político de Silvio Romero,
torna-se vital para o bom andamento da análise utilizar esses apontamentos,
pois em Romero, talvez mais explicitamente do que ocorre com todos os
literatos, sua vida e obra apresentam um aspecto nitidamente relacional. Essa
abordagem auxilia no entendimento da lógica social que o autor está inserido,
sua relação com os outros intelectuais do Recife e do resto do Brasil, podendo
nos oferecer uma eficaz resposta à questão da suposta falta de coerência em
suas obras e atitudes, escapando do cerne desse pensamento: a linearidade e
coerência das trajetórias intelectuais que enquadram os fatos que escapam a
esse modelo como apenas incoerências e “vulgarizações” de ideias (Ibid.).
Por outro lado, o uso do contextualismo linguístico como aporte
metodológico para o trabalho permitiu a fuga em relação ao perigoso
mecanismo de interpretar a trajetória intelectual e política de Sílvio Romero sob
o prisma das classificações feitas por seus adversários, nublando os confrontos
e estratégias intrínsecas a um ambiente marcadamente conflituoso e em
formação. Essa matriz teórico-metodológica auxilia a crítica da repercussão e da
15
forma como a obra romeriana foi absorvida e analisada pelos estudiosos do
pensamento social brasileiro. Na sua grande maioria, esses trabalhos muitas
das vezes “importam” acriticamente categorias classificatórias próprias de um
cenário bem específico de disputas e alocam o autor em uma “jaula”
hermenêutica: o uso do ideário cientificista aparece nessas análises como mera
reprodução de suas matrizes europeias e as polêmicas em que Sílvio Romero
participou são entendidas como influenciadas pelos seus devaneios
“passionais”, quase irracionais, não obedecendo a uma lógica interna de um
cenário de disputa intelectual do período.
O esforço empreendido no trabalho, de análise da produção crítica sobre
Sílvio Romero numa perspectiva de longa duração, teve o intuito de perceber e
salientar permanências interpretativas que estigmatizam o autor e elucidar um
outro caminho possível para o entendimento do esforço intelectual do autor.
Perceber essa dinâmica, sem desmerecer as contribuições heurísticas das
obras analisadas, permite transcender o lugar-comum em que se situou por
muito tempo a crítica a Romero e tentar compreendê-lo em seu esforço maior de
confrontação política e estratégia de inserção num ambiente intelectual não
muito receptivo a ele.
Além disso, num plano mais geral, demonstra-se útil esse movimento de
análise como forma de pensar as trajetórias e produções intelectuais chamadas
clássicas, dentro do campo de estudo do pensamento social brasileiro, dentro
de uma dinâmica menos “desencarnada” (FEVBRE apud CHARTIER, 1990: 70)
e mais atenta aos processos constituintes da produção intelectual e de formação
dos repertórios intelectuais. As ideias não se localizam nem se produzem no
vácuo e o uso que os intelectuais fazem delas respondem reflexivamente a
conjunturas político-sociais específicas.
16
Referências bibliográficas
ALONSO, A. Idéias em movimento: A geração de 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
BOURDIEU, P. “A Ilusão Biográfica” IN. AMADO, J. e FERREIRA, M. (coord.). Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.
CANDIDO, A. O método crítico de Sílvio Romero. São Paulo: Ouro sobre Azul editora. 2006.
CHARTIER, R. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990.
COSTA, M.V e PADUIM, M.M. A Revolução federalista (1893-1895): Contexto platino, redes, os projetos e discursos construídos pela elite liberal federalista. Santa Maria: MILA-UFSM, 2006.
MATOS, C. N. A poesia popular na República das Letras: Sílvio Romero Folclorista. Rio de Janeiro: Funarte, UFRJ, 1994.
MISKOLCI, R. Sociologias. Porto Alegre: ano 8 número 15; jan/jun 2006.
ROMERO, Sílvio. Introdução a Doutrina contra doutrina. São Paulo, Companhia das Letras, 2001 [1894].
______. Machado de Assis: Estudo comparativo de literatura Brasileira, 1897.
______. Provocações e debates: contribuições para o estudo do Brasil social. Porto: Chardron de Lello & irmão, 1910
______. O castilhismo no Rio Grande do Sul. Porto: Chardron de Lello & irmão, 1912.
SCHNEIDER, A.L. Sílvio Romero Hermeneuta do Brasil. São Paulo: Annablume, 2005.
SEVCENKO, N. Literatura como Missão. São Paulo: Brasiliense, 1983.
SKIDMORE, T. E. Preto no Branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
SKINNER, Q. Os fundamentos do Pensamento Político Moderno. Companhia das Letras: São Paulo, 1997.
______. Visões da política : sobre os métodos históricos. Algés: Difel, 2005.
SODRÉ, N. W. Ideologia do Colonialismo: Seus reflexos no pensamento brasileiro. Petrópolis, RJ: Editora Vozes. 1984 [1956].