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8/14/2019 Sociologia Do Negro Brasileiro_2
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142 O N E G R O COMO GRUPO ESPECÍFICO OU D I F E R E N C I A D O EM UMA SOCIEDADE...
Isto que ele nos confidenciou não poderia abalar a confiançae a f é dos seus frequen tador es? E não estará aí um dos motivos daforça de Exu no movim ento quimbandista não-institucionalizado eperseguido?
6. Um exemplo O nascimento, desenvolvimento e decadênciade degradação das escolas de samba cariocas devem ser es-
tudados vendo-as como grupos específicos deresistência negra, que foram, paulatinamente, através de uma inje-ção de valores brancos no seu centro (ao pedirem a consciência d esua especificidade) transformados, apenas, e m grupos diferenciado s.
Os moradores dos morros, desde o fim da escravidão, criaraminúmeros grupos que se organizavam em vários níveis, objetivando finsdiversos. D entro da situação social concreta em que se encontrava, que
era o da marginalidade, o negro do morro, favelado, tinha d e organizar-se para que, dentro da situação que lhe impuseram, pudesse sobrevi-ver e praticar uma série de atividades que o preservariam de um estadode anomia total. Desta form a, a música popular d o morro, o samba,com vistas a uma festa do asfalto (o carnaval), serviu de elemento aglu-tinador para que a escola de samba se organizasse. Tendo, inicialmen-te, a função de lazer 37, ela criou pólos dinamizadores em diversossegmentos de moradores do morro, fazendo entrar em um processode participação como grupo específico. Formou-se, assim, um grupohierarquizado e, ao mesmo tempo, grupos de trabalho a ele subordi-nados — desenhistas, costureiras, decoradores e músicos — cujas ati-vidades estavam centradas na escola de samba. Do ponto de vista d ahierarquia interna, surgiu o mestre-sala, a porta-estandarte etc., queadquiriram status específico dentro da organização. Além disto, elassurgiam como ato de afirmação de uma contracultura que se opunhaà das elites e que representava, através dos sambas-enredo, da coreo-grafia, das alegorias, de form a simbólica, os valores do morro que des-filavam durante o carnaval na cidade branca.
Todos esses elementos conjugados levaram a que se criasse u mespírito de grupo competitivo entre a s div ersas escolas e uma conse-quente auto-afirmação negra nessa competição. Assim, o morro s eapresentava no asfalto. Os figurantes d as diversas escolas, duranteo carnaval, ao desfilarem, realizavam catarticamente o seu desejo departicipação social, de integrar-se e dominar a cidade branca.
UM EXEMPLO DE DEGRADAÇÃO 43
Edison Carneiro, analisando a sua origem, escreve acertadamen-te que:
todas essas escolas, durante o carnaval, costumavam descer o mor-ro a fim de fazer evoluções na Praça Onze, cantando sambas alusi-vo s a acontec imentos nacionais ou locais, n o domingo e n a terça-feiragorda. Os grupos tinham, naturalmente, no começo, uma unidade pre-cária — as mulheres preferiam fantasiar-se de baianas, os homens tra-javam pijamas de listras, macacões ou camisas de malandros, o chapéude palha caído sobre os olhos, sem ordem nem lei.3S
Simbolicam ente sem ordem nem lei. Eram , assim, os valores ne-gros — do negro m arginalizado — que saíam das áreas d e marginali-zação e miséria e se integravam, durante a festa, na coletividade,voltavam ao centro do sistema, adquiriam , de modo simbólico, o sta-tu s negado. Como vemos, alegoricamente, era a dominação da cida-de pelos habitantes do morro, a través da sua organização e da suacontracultura.
Era o morro, a marginalidade, a miséria periférica e não vista
pelo centro deliberante durante todo o ano, qu e vinha ocupar a áreabranca decisória e a dominava simbolicamente, ocupava os seus es-paços e impunha a sua presença. Todos aqueles que olhavam o negrodo m orro como desordeiro, viam-no organizado; os que o tinham co -mo analfabeto e ignorante, ouviam e aceitavam os seus sambas-enredo. Finalmente, ele, através da organização que lhe custara sa -crifício, dinheiro, tempo e paciência, dom inava a metrópole. Por ou-tro lado, as instituições ou órgãos que o oprimiam e/ou perseguiamno morro agora estavam ao seu serviço; a mesma polícia que prendiaabria alas para que a escola desfilasse.
O carnaval era, assim, sociologicamente, uma festa de integra-ção, mas, especialmente, de um ponto d e vista mais analítico, um ato
de auto-afirmação negra. Nesses dias, o branco e ra repelido, n ão ele.
Er a ridicularizado porque n ão sabia sambar. O proibido (discrimina-do) de desfilar na escola d e samba. Na queles quatro dias, quando asescolas de samba estavam no esplendor da sua autenticidade e con-servavam, por isto, a sua especificidade, as situações se invertiam,e o negro do morro, o favelado, o perseguido pela polícia, tinha, em -bora apenas simbolicamente, u m status completamente diferente den-tro da estrutura da escola, daquele que ele desempenhava fora. Quemfazia a seleção era ele e não o branco: "Quando branco entra na es-cola estraga tudo", diziam. O s valores sociais e culturais se invertiame o negro era o dominador e não o dominado, o seletor e não o dis-criminado. Tinha o poder simbólico d a cidade durante quatro dias.
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144 O NEGRO COMO GRUPO ESPECÍFICO OU DIFERENCIADO EM UMA SOCIEDADE...
Do p onto de vista organizacional, a escola de samba represen-tava a forma através da qual o negro e as populações não-brancasmarginalizadas se defendiam da sua situação de quem vive ao nívelquase extremo d e simples preservação biológica, sem nenhum a pos-
sibilidade de integração social.Do ponto de vista cultura l mais geral, a escola de samba surgiu
no m omento em que a sociedade brasileira fazia um a revisão dos seusvalores, proc urava rever posições culturais e políticas e m consequên-cia de uma série de conflitos estruturais já bastante estudados. A Se-mana de Arte Moderna, de São Paulo, é de 1922 e realizou-se noTeatro Municipal. As primeiras escolas de samba começam tambémna década d e vinte, nos morros de favelados cariocas. Não é uma coin-cidência, é uma convergência e ao mesmo tempo um a dissidência. En-quanto a cultura dominante se auto-afirmava no modernismo, pro-curando suprir o descompasso entre a realidade e a cultura das elites,a cultura popular, plebeia, não-institucional, não-acadêmica ou sim-
plesmente renovadora do próprio código libertário tradicional, pu-nha na rua as escolas de samba, num transbordamento do negro domorr o, pois ele já não se continha mais nos seus grupos específicosreligiosos costumeiros, ou nos p equenos cordões ou ranchos carna-valescos. Vinha para o asfalto exibir a sua contracultura.
O negro, desta forma, não via o carnaval como um a simplesfesta, como o branco o vê. Era , de certa maneira, o mom ento maisimportante da sua vida, do ponto de vista de auto-afirmação social,cultural e étnica.
Estas são — segundo pensamos — as causas mais relevantes qu ederam uma vitalidade tão grande às escolas de samb a. Por outro la-do, a sociedade branca sentiu essa potencialidade organizacional e cul-tural do negro através das escolas de samba, e, concomitantemente,a necessidade de transformá-las em complementos do carnaval ofi-cial, tradicional, convencional, colocando-as como simples objetosdessa dinâmica, em última instância: folclorizando-as. Objetivandoisto, iniciou um processo d e corrupção através de forma s sutis de ins-titucionalização, fazendo-as, hoje em dia, simples atração turísticapara estrangeiros e a grande burguesia nativa, pois até a pequena bur-guesia e a massa operária dos subúrbios cariocas não têm mais con-dições de vê-las desfilar.
Desaparecido o conteúdo que lhes deu vitalidade, elas passarampor um processo de branqueamento social e ideológico não apenasna sua apresentação que descambou no colossalismo quantitativo e
UM EXEMPLO DE DEGRADAÇÃO 45
industrializado, manipulado pelo circuito capitalista, mas, também,nas próp rias norma s de conduta, nos objetivos dos seus organizado-res, de grande nú mer o dos seus participantes e na sua próp ria subi-deologia.
Assim, aqueles motivos sociopsicológicos qu e deram dinamis-mo interno e cap acidade organizacional às antigas escolas foram subs-tituídos por uma burocracia profissional oportunista, ligada, po rnecessidade de manter o colossalismo antipopular exigido pelos massmedia e instituições governamentais, às estruturas de poder ou grupos.
Retratando muito bem este processo de decadência e distancia-mento do s seus ob jetivos iniciais, assim falou Candeia, compositorda Portela:
No início esta invasão (branca) d e cer ta forma era contro lada. Ma s lem-bro que a Mangueira só permitia que o pessoal que não fosse da esco-la entrasse na quadra após a meia-noite, porque an*«s era ensaiomesmo, visando o desfile. Depois, ficou in controláve l.
E prossegue no seu depoimento:Principalmente porque quem pagava o ensaio se achava no direito departicipar e o ensaio da escola acabou virando baile de carnaval. Hojemestre-escola, porta-bandeira já não ensaiam, porque a quadra foi in-vadida por gente que não tem nada que ver com o samba, não sabesambar e na quadra já não se samba mais. Nem na Avenida.
Concluindo, Candeia afirm a:
As alegorias atuais representam uma fa lsa cul tura, são fe i tas por gen-te de fora, profissionais. Acho que as alegorias de uma escola devemser representativas de uma cultura própria, obrigatória do afro e do in-dígena. O barroco sofisticado não tem nada que ver com escola d e sam-ba e precisa ser eliminado. Me lembro do tempo em que as alegoriasda Portela eram feitas por Lino Maciel dos Santos, que é carpinteiro,
e por Joacir, que é pedreiro. Isso sim, é que é válido. Bacana é o cr iou-lo do morro cr iar o seu pr imeiro desf i le , sua própria arte. As fantas iasprecisam ser menos luxuosas e mais autênticas, também feitas pelopessoal da escola.39
Mas, apesar dessa luta ideológica intragrupal o processo de de-gradação da s escolas d e samba segue um ritmo avassalador. 40 Esseprocesso d e degradação dos seus va lores iniciais veio transformá-lasem grupos diferenciados pela sociedade global. A luta interna entreelementos conservadores — tão bem retratada po r Candeia — eaqueles que assimilaram a ideologia dos estratos deliberantes e quealiam essa ideologia à obtenção e compensações materiais mostra
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146 O NEGRO COMO GRUPO ESPECÍFICO OU P1FERENCUDO EM UMA SOCIEDADE...
como esses grupos inferiorizados, marcadosetnicamente, que chegama ser específicos se, em determinado momento, não assimilarem umaideologia dinâmico/radical totalizadora, teidem, mais cedo ou maistarde, a serem envolvidos pela sociedade capitalista abrangente queos coloca a serviço dos seus interesses. A trajetória histórico-socialda organização do negro nas escolas de samba vai desaparecendo porforça de uma manipulação, de fora para dentro, de elementos estra-nhos ao mundo negro que as criou.
Além desses fatores básicos de degenerescência, outros surgi-ram em níveis menos relevantes, como, por exemplo, a sua utilizaçãopor artistas de rádio e TV, empresários, donos de shows, políticos,contraventores, pregadores religiosos e outras pessoas ou grupos queprocuram tirar proveito artístico, comercial, publicitário, religioso oupolítico das escolas.
Escrevem, neste sentido, Francisco Vasconcelos e Mário Pedra:
E os donos da bola, outrora perseguidos eamesquinhados, incharam
de vaidade, ao verem seus barracos, agora transformados em palácios,serem procurados com tanta insistência por aquelas figuras de proade rádio, tevê, show, teatro, até por misses já no ostracismo, mas sem-pre misses, por pintores, arquitetos, escultores e mesmo historiado-res de nomeada, que aparecem parecendo que vêm dar mais brilho eprojeção às agremiações, zelando até pelo seu património cultural,quando, na verdade, vêm em busca de grossa publicidade gratuita,muitas vezes a té remunerada, contrariando todas essas regras do ne-gócio e, o que é pior, propositadamente ou não, contribuindo acelera-damente para o desvir tuamento do verdadeiro samba.41
Outras razões que não têm nada a ver com as motivações socio-psicológicas e culturais que fizeram nascer as escolas de samba cario-cas estão transformando-as, paulatinamente, em apêndices da Rio-tur, e os negros estão sendo transformados, novamente, em objetos
para divertimento do branco. Perdida aquela função inicial de auto-afirmação do negro do morro, foram as escolas de samba transfor-madas em simples segmentos diferenciados, subalternizados a todosos esquemas e imposições institucionais, simples componentes do pro-grama oficial da cidade do Rio de Janeiro.
Notas e referências bibliográficas
1 Sobre o que entendemos p o r função fazemos nossas as seguintes palavrasde Radcliffe-Brown, embora discordando completamente da sua posição
NOTAS E REFERÊNCIAS B I B L I O G R Á F IC A S 147
de antropólogo que se destacou pelo esforço de subordinar as conclusõesda antropologia aos interesses do Imp ério Britânico, tentando aplicar essaciência à adm inistração das populações nativas subordinadas ao colonia-lismo inglês: "Hesito em usar o teimo função que nos últimos anos tem
sido tantas vezes usado numa infinidade d e sentidos, muitos do s quais bas-tante vagos. Em lugar de ser usado para auxiliar a fazer distinções, comocabe aos termos científicos, é usado agora para confundir coisas que de-viam ser distinguidas. Porque ele tem sido empregado, muitas vezes, e mlugar de palavras bastante comuns como 'uso', 'finalidade' e 'significa-ção'. Parece ser mais sensato e conveniente, assim como mais científico,falar do uso ou dos usos de um machado ou estaca de cavar; o significadode uma palavra ou símbolo; o fim de um ato de legislação, em lugar deusar a palavra função para estas coisas diversas. 'Função' é u m termo téc-nico bastante útil em filosofia e, por analogia , o seu uso nessa ciência seriaum meio muito conveniente de expressar um importante conceito em ciên-cia social. Segundo Durkheim e outros, eu defino a função social comomodo d e agir socialmente padronizado, o u modo de pensar em sua rela-ção à estrutura social, para cuja existência e continuidade contribui. Ana-logicamente, num organismo vivo, a função fisiológica da batida do cora-
ção ou da secreção dos sucos gástricos é a sua relação à estrutura orgânicacuja existência e continuidade contribui. É neste sentido que lido com coi-sas tais como a função social d a punição do crime ou a função social do sritos funerais dos ilhéus de Andanan". (RADCLIFFE-BROW N. Sobre estru-tura social. Sociologia, São Paulo, 4 (3): 229, 1942.)
2 SKIDMORE, Thomas E. O negro no Brasil e nos Estados Unidos. Argumen-to, São Paulo, l (1): 25 et seq., 1974.
3 Sobre as instituições paralelas nos Estados Unidos ver Early negro writing(1760-1837), selected and introd uced by Doro thy Porter, Beacon Press,1971. Através deste livro de textos podemos ver o nível de organização edinamismo dessas instituições parale las negras nos Estados Unidos duran-te a escravidão.
4 RAMOS, Arthur. O espírito a ssociativo d o negro brasileiro. Revista do Ar-quivo Municipal, São Paulo, 47 (4): 105-22.
5
Esse comité formou-se na onda da chamada redemocratização de 1945.O negro continuou se organizando, destacando-se entre essas organizaçõesparalelas a Associação Cultural do Negro, em São Paulo. O golpe militarde 1964, por seu turno, traumatizou essas organizações, assim como todoo m ovimento democrático e popular do B rasil. Significativamente, o últi-mo jornal da imprensa negra regular encerra suas atividades no ano dogolpe. Depois d isto, os grupos negros tiveram dificuldades cada vez maio-res, até quando, em 1978, deram uma virada radical e articularam um atocontra a discriminação racial na s escadarias do Teatro Municipal de SãoPaulo, qua ndo foi criado o Movimento Negro Unificado Contra a Discri-minação Racial. Mas, durante a ditadura , nenhum grupo específico negroteve acesso aos órgãos governamentais, especialmente para expor e pro-testar contra a violência policial, discriminação racial e perseguição purae simples d os órgãos de repressão pelo motivo único do cidadão ser negro.
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148 O NEORO COMO GRUPO ESPECÍFICO OU DIFERENCIADO EM UMA SOC1EDA.PE...
6 COSTA PINTO, L. A. O negro no Rio de Janeiro . São Paulo, Nacional,1953. p. 33.
7 Cf. LANDECKER, Werner S. Análise funcional das relações intergrupais.Sociologia, São Paulo, 4 (2): 121 et seq., 1942.
8 Em consequência disto, quando afirmamos que esses grupos negros são
específ icos (religiosos ou com outros objetrvos centrais), não queremos di-zer — conforme já ficou claro — que são compostos somente de negrospuros, na sua acepção de antropologia física.mas, também, de pardos (mu-latos, curibocas, caboclos), os quais, em consequência do conjunto de si-tuações sociais em que estão imbricados, sã9 marcados como negros pelasociedade branca, e, ao mesmo tempo, reconhecem e aceitam uma ligaçãototal ou parcial com as suas matrizes africanas, ou assimilaram os seus va-lores culturais mais relevantes. Desta maneira, em muitos centros de um-banda, poderá não existir esse reconhecimento em primeiro plano — nívelde consciência explícito — em consequência de um processo já muito adian-tado de branqueamento, embora ele exista de forma subjacente. Em ou-tros, todavia, esse reconhecimento consciente poderá existir. Ouvimos, porexemplo, no Centro Caboclo Viramundo, que estudamos durante dois anos,cantarem o seguinte ponto:
— Aqui é rodade negro sóse branco vierleva cipó.
ou:
— Negro somente trabalhandobranco somente olhando.
O próprio chefe do centro — Geraldo — confessou-me que "era de can-domblé". No entanto, esclareceu-me, infelizmente "no interior de São Pau-lo não dá para praticá-lo". Disse-me que era da linha "gegê (sic.) nagô"e que sentia muito ter de trabalhar somente com caboclos e o Preto Velho.Conversamos, e quando eu disse que havia estado na África e que me ha-viam pedido informações sobre o funcionamento de casas de religiões deorigem africana no Brasil, mostrou-se cético dizendo-me que "os de lá nãoprecisam saber de nada daqui, porque já sabem tudo".
São esses grupos compostos por pessoas que aceitam, mesmo de formadiluída, as suas matrizes africanas e criam uma subideologia grupai quedenominamos específicos.
9 Em 1938, Edison Carneiro fez uma pesquisa com quarenta filhas-de-santodo Engenho Velho, em Salvador, objetivando identificar a sua situaçãosocial e económica fora do candomblé. Quanto às profissões obteve os se-guintes resultados: modistas 6; vendedoras ambulantes 16; domésticas 18.Escreve, concluindo, esse antropólogo: "Profissões humildes, como se vê.As domésticas incluíam no seu número senhoras casadas ou amasiadas,que se ocupavam pessoalmente dos serviços caseiros, e empregadas pagas,
NOTAS E REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS 149
para cozinhar, lavar e engomar, ao ínf imo preço que então se pagava naBahia — de 20 a 30 cruzeiros por mês, se bem que com casa e comida. Asvendedoras ambulantes eram as mulheres de tabuleiro à cabeça que ven-diam acarajé, mungunzá, bananas etc., nas esquinas da cidade, e as pou-cas que se estabeleceram com barracas nos mercados públicos e aí vendiam
fato, as vísceras do boi. Não se deve tomar a profissão de modista — pros-segue Carneiro — como profissionalmente importante. Essas filhas, as ve-zes muito hábeis, tinham a sua freguesia entre a gente pobre e só raramen-te cosiam vestidos de seda; não trabalhavam em ateliers, mas em casa, ede encomenda. Dificilmente alcançavam uma renda mensal de cem cruzei-ros". (CARNEIRO, Edison. Candomblés da Bahia. Rio de Janeiro, Con-quista, 1961. p. 120.) Era esse pessoal de profissões chamadas humildesque constituía o total das filhas-de-santo do candomblé pes'quisado. Noentanto, o seu status na hierarquia do candomblé era dos mais importan-tes. Na linha feminina, dentro do grupo religioso, elas se sentiam com umstatus de prestígio abaixo apenas das mães-de-santo e da mãe-pequena. Essadualidade de status e de papéis dos membros do grupo na sociedade globale no candomblé explica, num certo grau, a sua persistência no tempo ea sua vitalidade.
10 A origem do Clube Flor de Maio, de São Carlos, interior de São Paulo,
como de quase todos do seu interior, foi a impossibilidade da comunica-ção negra local ingressar em clubes ou em outras organizações brancas.
Em face disto, pois a barragem era (como é até hoje) acobertada pelos bran-cos que alegavam serem os negros cachaceiros, arruaceiros, desordeiros,maconheiros e as negras prostitutas. O Flor de Maio foi fundado, em 1927,com um regulamento quase ascético. O nome flor queria dizer que somen-te aqueles negros que fossem flores poderiam nele ingressar. Somente po-dia ser sócio quem fosse casado, não se aceitando associados amigados.O clube realizou, por isto, uma série de casamentos, alguns em sua sede,de negros que queriam ser sócios mas viviam irregularmente dentro dospadrões jurídicos com as suas companheiras. Fundou, depois, uma escolaprimária e fez funcionar um grupo teatral, tendo representado várias pe-ças. Eles mesmos faziam os cenários. Conseguiram a doação de um terre-no e construíram, em regime de mutirão, a sede própria do clube onde fun -cionam. Até hoje a sociedade local vê o clube através de uma série de ra-
cionalizações negativas, ideologizando-o como um antro de marginais eprostitutas, o que não é verdade. (Informações prestadas ao autor pelo Sr.Benedito Guimarães, em 1977, quando ele era presidente do clube.)
11 Neste sentido escreve Virgínia Leoni Bicudo: "O objetivo dos associados(refere-se a uma associação de negros) era, em primeiro plano, a conquis-ta de melhores condições económicas. Porém, ainda que o programa daAssociação focalizasse os aspectos económicos para a obtenção de melho-res condições materiais, não podemos concluir que tal tivesse sido o únicoobjetivo dos agremiados. É que os dirigentes do grupo viam na ascensãoeconómica o meio de alcançar recursos materiais para conseguir a eleva-ção nos níveis intelectual e moral, e, assim aparelhados, se empenharemna luta pela conquista de reivindicações económicas e físicas, mas visavam
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150 O NEGRO COMO GRUPO ESPECÍFICO O U DIFERENCIADO EM UMA SOCIEDADE...
também a elevação do nível moral e intelectual do preto, cuidando da ins-trução, da educação e do desenvolvimento da consciência d e cor.
Segundo os dados colhidos, a 'Associação do s Negros' teve como pro-pósito reunir os pretos a fim de prepará-los para lutar contra os obstácu-
los à ascensão social em consequência d » cor . B I C U D O , Virgínia Leoni.Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo. Sociologia, São Paulo,9 (3): 209, 1947.)
12 R O D R I G U E S , Nina. O animismo fetichisla do s negros baianos. Rio de Ja-neiro, Civilização Brasileira, 1935. p. 187.
13 Idem, ibidem, p. 194.14 Cf. OTT, Carlos. A transform ação do culto da m orte da Igreja do Bon-
fim em santuário de fertilidade. Afro-Ãsia, Salvador, (8/9): 35 et seq.,jun./dez., 1969.
15 Idem, ibidem.16 C f. OTT, Carlos. Loc. cit. Para termos a ma visão d o aproveitamento do
prestígio da festa do Bonfim pela sociedade global e seus estratos delibe-rantes, vamos transcrever trecho de notícia de jornal baiano, noticiandocomo transcorreu a lavagem em um p eríodo crítico para a sociedade bra-
sileira no seu conjunto, isto é, durante a participação do Brasil na Segun-da G uerra Mundia l. Havia, em todas as camadas e grupos sociais brasilei-ros — com exceção daquela minoria que se b eneficiava economicamentecom o conflito — , um a ansiedade profunda que se m anifestava em umdesejo básico: a volta à paz. Pois bem: as comemorações dos festejos doBonfim e a lavagem da Ig reja, até pouco antes proibida p elas autoridadeseclesiásticas, foram realizadas d irecionadas para a realização deste desejolatente ou manifesto de quase todos os brasileiros, especialmente baianos.Essas pessoas e grupos incorporaram subjetivãmente a imagem e o ritualda lavagem, até então denunciado como pagão, ao imperante desejo depaz. Vejamos como o mais tradicional órgão de comunicação escrita baia-no noticiou o acontecimento: "Fez-se hoje a 'lavagem do Bonfim', um adas partes da maior festa religiosa da B ahia. Por muitos anos deixara elade se realizar, voltando por ém, ultimam ente, a efetuar-se com grande en-tusiasmo, embora sem os excessos que haviam determinad o a sua suspen-são (...) Anunciando a próxima partida d o cortejo para a lavagem do Bon-f i m , às 5 horas houve uma alvorada na Praça M unicipal, ouvindo-se umaestridente clarinada, seguida de uma salva de morteiros.
Desde pouco depois da 7 horas começou a afluência ao Largo da Con-ceição d a Praia, d os devotos e curiosos que concorreram, todos os anos,para a tradicional lavagem.
Gente d e todas a s cores e condições, movida pelo intuito de participarda romaria, que encheu pouco a pouco o vasto espaço d a praça. Foramchegando alegorias singelas, sobre carroças e caminhões enfeitados, bur-ricos carregados com barris de água, 'baianas' ricamente vestidas.
Às nove horas formou-se o cortejo que desfilou do Largo da Concei-ção até a Igreja do Bonf im. U 'a multidão formada po r alguns milha-res de pessoas cercava a comprida fila d e carroças, caminhões e animais
NOTAS E REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS 151
enfeitados que, a passo lento, movia-se alegre e ruidosamente rumo aoBonfim.
Abriam o préstito em que predominav am motivos regionais, sugeridospela tradição, alguns caminhões cheios de populares e enfeitados de plan-
tas nativas. Em seguida, uma ba nda de música da Força Policial, execu-tando marchas e, após, em ordem, carroças adornadas de verde e amareloe cavaleiros vin dos dos subúrbios com animais vistosamente ajaezados, umgrupo d e queimadeiros, ostentando palmas de licuri e formados em colu-nas por quatro filhas-de-santo do terreiro de Joãozinho da Goméia, le-vando à cabeça potes e quartilhas com flores. Finalmente, cerca de dezcaminhões cheios de povo que sam bava, canta ndo mú sicas de carnaval ecorno advertência... a carrocinha da Secretaria da Segurança Pública, al-guns ônibus e povo. (...) Em uma carroça, enfeitada de verde e amarelo,viam-se recortes d e cartolina representando apetrechos e peças do Exérci-to Nacional, glorificando, assim, num a manifestação espontânea da almapopular (...) Continuam com esplendor e com a presença números de fiéiscada vez maior, enchendo o majestoso templo e com todas as tr ibunas ocu-padas, as novenas em louvor ao Senhor de Bonfim que domina a cidadedo alto da sua colina. D o púlpito, vários oradores têm se estendido sobre
a significação do culto, do s milagres e das graças alcançadas (...) Po r tudonota-se que a alm a confia nte da Bahia não é ind iferente na com preensãoe na confiança ao amor de Deus para que nos dê a paz tão almejada nahora presente". (A Tarde, Salvador, 20 dez. 1944.)
Como se vê, nos momentos em que há crise de confiança no futuro ede dúvida no presente, o baiano abandona a pureza do catolicismo trad i-cional, ortodoxo, puro, apelando para a festa do Bonfim, que nada maisé do que uma manifestação pública das religiões oprimidas frente aos es-tratos deliberantes, estruturas de poder e órgãos de repressão com um con-teúdo simbólico de protesto e poder.
17 B R A N D Ã O , Geraldo. Notas sobre a dança de São Gonçalo de Am arante.São Paulo, 1952. p. 41.
18 Cf. LANTERNARI, Vittorio. As religiões dos oprimidos. São Paulo, Pers-pectiva, 1974. p. 212. Aliás, este excelente e penetrante trabalho de Lan-ternari abre novas perspectivas para compreender-se a função social dos
cultos das populações oprimidas pelo colonialismo, recolocando o proble-ma desses movimentos proféticos e messiânicos do mundo colonial dentrode novos padrões de análise. Fugindo ao rebarbativo e esotérico da socio-logia académica, Lanternari coloca-nos frente a frente com os mecanis-mos opressores e as formas ideológicas encontradas pelas populações opri-midas para enfrentar a situação.
19 Era pelo menos como os tratava o Caboclo Caeti, todas as vezes que des-cia no Centro Caboclo Viramundo, em São Paulo, quando a eles se refe-ria: "Isso é coisa que burro da terra pode curar".
20 Cf. REGO JR., José Pires et alii. Atendimento médico de um subúrbio deBelém. Revista da Universidade Federal do Pará, l (1): 461, série II, 2?semestre de 1971.
21 Loc. cit., p. 476.
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152 O NEGRO COMO GRUPO ESPECÍFICO O U DIFERENCIADO EM UMA SOCIEDADE...
22 Loc. cit., p. 476.23 Jornal da Tarde, São Paulo, 29 nov. 1974.24 "Embora não seja exatam ente um orixá, Exu pode m anifestar-se como
um orixá. N este caso, porém, não se diz que a pessoa é filha de Exu, mastem um carrego de Exu, uma obrigação para com ele por toda a vida. Esse
carrego s e entrega a Ogunjá, um Ogum q ue mora com Oxosse e Exu e sealimenta de comida crua, para que não tomeconta da p essoa. S e, apesardisto, se manifestar, Exu pode dançar no candomblé, mas não em meioao s demais orixás. Isto aconteceu, certa vez, no candomblé do Tumba Ju -çara (Ciriáco), no Bêiru: a filha dançava jogan do-se no chão, com os ca-belos d espenteados e os vestidos sujos. A manifestação tem, parece, cará-ter de provação. Este caso do candom blé de Ciriáco é o único de que te-nho notícia acerca do aparecimento de Exu nos candomblés da Bahia."(CARNEIRO, Edison. Candomblés da Bahia. Rio de Janeiro, Conquista,1961. p. 83.)
Como vemos pelo depoimento de Ca rneiro, o caso é raríssimo e o seuexcepcionalismo serve para corroborar o que estamos afirmand o.
O esclarecimento é necessário porque não são apenas adeptos dos can-domblés, mas m esmo antropólogos que chegam a confundir Exu com umorixá. É, por exemplo, o caso do próprio Arthur R amos, incontestavel-
mente um dos maiores pesquisadores sobre o problema da etnog rafia reli-giosa d o negro brasileiro. Di z ele: "Exu é outro orixá. É o representantedas potências contrárias ao homem. O s afro-brasileiros assimilaram-no aodemónio d os católicos; mas, o que é interessante, temem -no, respeitam-no (ambivalência), fazendo dele objeto de culto". (RAMOS, Arthur . O ne-gro brasileiro. 2. ed. São Paulo, Nacional, 1940. p. 45.)
Roger Bastide, por seu turno, informa que, em alguns lugares, Exu éidentificado com São B artolomeu (Recife), atrib uindo isto ao fato do san-to ser mensageiro. (BASTIDE, Roger. O candomblé da Bahia. Sã o Paulo,Nacional, 1961. p. 222.) Pa rece-nos superficial esta analogia. D evemos con-siderar que, para o nordestino especialmente, Sã o Bartolomeu é o repre-sentante das forças aziagas e maléficas, sendo o seu dia considerado o maisdesfavorável d o ano. O seu dia, que é comemorado a 24 de agosto, exigeuma série de proteções, pois "o diab o está solto". Sobre o assunto, aliás,existe um vasto repositório d e lendas, registradas em estarias e mesmo na
literatura de cordel. D o poeta popular Leandro Gomes dos Santos são es-tes versos: A 24 de agosto/Data esta receosa/Por ser em que o diabo p o-de/ Soltar-se e dar uma prosa/Se deu o famoso parto/Da vaca m isterio-sa . (Apud CASCUDO, Luiz da Câmara. Dicionário do folclore brasilei-ro. 2. ed. Rio de Janeiro, Edições d e Ouro, 1969. p. 181.) C f. tambémo folheto de cordel "Poder de São Bartolomeu", Caruaru, Dila, s.d. Se -ria relevante um trabalho que analisasse até que ponto Sã o Bartolomeupenetrou nos xangôs do Recife, num p rocesso sincrético com Exu, segun-do a constatação de Bastide.
25 C A R N E I R O , Edison. Op. cit., p. 81.26 O processo d e diferenciação de Exu acompanha a sua evolução de prestí-
gio. Deixa de ser um só, perde a sua unidade como divindade inicial para
NOTAS E REFERENCIAS BI
ser representado de diversas formas. Em consequência, temos, de um la-do, o Exu pagão e os Exus balizados que se comportam de forma maisconvencional nas giras e, de outro, a sua diversificação mais acentuada.Surge, tam bém, a Pombagira, que configura, por seu turno, um símbolode libertação sexual e social da mulher reprimida. Assim como nas reli-
giões mais difundid as do Ocidente, especialmente o cristianismo, à medi-da que uma das suas divindades adquire maior prestígio no panteãodiferencia-se, diversifica-se. Na umb anda e especialmente na quimb andao mesmo processo se verifica. Jesus Cristo diferenciou-se no catolicismoem diversas personalidades — Coração de Jesus, B om Jesus da Lapa, Se -nhor do Bonf im, Bo m Jesus dos Navegantes e inúmeros outros — e Mariapassou pelo m esmo processo, ad quirindo vários nomes: Nossa Senhora dasDores, Nossa Senhora da Boa Morte, Nossa Senhora do Perpétuo Socor-ro, Nossa Senhora Aparecida e muitas outras, todas com os seus devotosespeciais. Na quimb anda , o mesmo fenóm eno se verificou. Exu passou ater diversas designações: Exu Sete Cam inhos, Exu Balará, Exu Buzanini,Ex u Tranca Mata, Ex u Tranca Rua, E xu Caveira etc. Além disto, h á oZé Pilinlra que é um Exu já com forma de brasileiro: é reproduzido, nãopor um feliche, mas de lerno branco, gravata vermelha, chapéu tambémbranco e um livro nos pés. Esse processo de diferenciação e, ao mesmo
tempo, d e ampliação da s áreas e níveis do poder d e Exu, está continuan-do, fazendo com que em muitas tendas de umbanda o poder da quimban-da esleja forçando o Exu a peneirar no recinto já branqueado e inslilucio-nalizado da primeira.
Um exemplo exlremo desle processo d e diferenciação e ampliação daforça de Exu nos é dad o por Yvonne Maggie Alves Velho nas pesquisasque fez no Rio de Janeiro. Regislrou a exislência do Exu de Duas Cabe-ças, representado por um homem com a cabeça inclinada para um doslados. Usa uma capa vermelha e um tridente. A cabeça inclinada e a s mãosem forma d e garra é do E xu que leni uma cabeça de Jesus e a outra deSalanás". (VELHO, Yvonne Maggie Alves. Guerra de orixá. Rio de Janei-ro, Zahar, 1975. p. 162.) Ainda essa autora registrou o seguinleponto can-tado no mesmo lerreiro: Exu que lem dua s cabeças/Ah ele olha su a ban-da com fé/Uma é de Salanás no Inferno/Oulra é de Jesus de Nazaré/Umaé de Salanás no Inferno/Oulra é de Jesus d e Nazaré". (Op. cit., p . 93.)
27 Declaração feita ao autor.28 Idem.29 A ligação enlre o Diabo e a ulopia é feita da seguinte forma a partir da s
posições católicas por Papini: "O Diabo, para combaler o crislianismo,que promele a felicidade elerna só depois da morte, linha pois de recorrer,enlre oulros ardis, ao de fazer acreditar aos h omens que se pode p repararou obter, no f uluro, um a espécie de paraíso na terra, um reino de felicida-de terrena.
Da í resulta, claro eslá, qu e Iodos os que imaginam e prom elem um con-vívio perfeilo e feliz nesla vida, seja embora num fuluro remoto, islo é ,os ulopislas, os visionários, os m essiânicos materialistas, os sonhadoresde um Éden social, Iodos os que em suma anuncia m ou sonham , no lugar
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154 O NEGRO COMO GRUPO ESPECÍFICO O U DIFERENCIADO EM UMA SOCIEDADE...
do Reino dos Céus, um reino humano terreno, são inspirados, que o sai-bam ou não, pelo Demónio. O qual escogito» fantasmagorias para queos homens nã o cuidem no seu verdadeiro destino supraterreno e sejam con-duzidos, portanto, a abandonar o cristianismo . (PAPINI, Giovani. O Dia-bo . Lisboa, Livros do Brasil, s. d. p. 142.)
30 LAPASSADE, Georges & Luz, Marco Aurélio. O segredo da macumba. Riode Janeiro, 1972. p. 25-6.
31
ENGELS, F. Ludwig Feuerbach y elfm de Ia filosofia clássica alemana.Moscou, Línguas Estrangeiras, 1946. p. 12.
32 CARNEIRO, Edison. Op . cit., p. 131.33 Idem, ibidem.34 Octávio da Costa Eduardo, estudando um a comunidade negra no Brasil,
visualizou, indiretamente, a necessidade de um estudo qu e abarcasse os doisaspectos do problema, propondo a junção d o ponto de vista comparativocom um ponto de vista que ele chama funcionaM a. Nesse trabalho — aliásexcelente — ele afirma: O primeiro inclui um estudo das origens tribaisdesses contos (refere-se a contos de origem afri cana coligidos na com unida-de estudada), das razões por que se conservaram, das modificações que so-freram aqui no Brasil e a comparação desse material com o folclore negroem outras partes do Brasil e do continente americano. O segundo compreendeum estudo do papel que esses contos desempenharam na vida do grupo e
das suas relações com outros aspectos de sua cultura". (COSTA EDUARDO,Octávio da. Aspectos do folclore de uma comunidade rural. Revista do Ar-quivo Nacional, 144 (8): 14-5, nov./ dez. 1951.)
35 COSTA LIMA, Vivaldo da. O concei to d e nação n os candomblés d a Bahia.Dakar, 1974. Mimeografado.
36 No terreiro d a mãe-de-santo Elizabeth, no bairro de São Miguel (São P au-lo), tivemos oportunidade de ver o alvará de funcionamento em olduradoe colocado ao lado esquerdo do altar, em uma moldura d e tamanho e fei-tio idênticos à do Bom Jesus da Lapa, que ficava ao seu lado direito e namesma altura. Parece-nos de importância o fato, pois o altar do candom-blé é para a s divindades ap enas. N o particular, este a que estamos nos re-ferindo já se encontrava em adiantado processo de sincretismo com a um-banda. O fato q ue registramos n ão seria um a forma inconsciente d e escra-vizar as forças institucionalizadas que lhe davam proteção? Parece um ca-
so de transferência de papéis do plano p rofano para o sagrado. Neste casoespecífico, de um terreiro de candomblé já em fr anco e adiantado proces-so de sincretismo, o fato poderá ser atribuído exatamente a esses momen-tos de transição sincrética e reflexo da desintegração dos valores mágicosanteriores e sua substituição po r outras forças protetoras da s instituiçõesda sociedade profana.
37 Edison Carneiro assim define escola d e samba: "Chama-se escola de sam-ba , atualmente, um a associação popular que tem por objetivo principala sua apresentação, como conjunto, no carnaval carioca. Outrora era oponto de subúrbio do morro — como Terreiro Grande do Salgueiro —
NOTAS E REFERENCIAS BIBLIOGRÁ FICA
onde os habitantes se reuniam para suavizar, com a música, as durezasda vida.
O nome escola decorre não somente da popularidade de comando dostiros-de-guerra, como da circunstância de se aprender a cantar e dançaro samba. Esta última palavra, corruptela d e semba, a umbigada com quese transmite a voz de dançar no samba de roda , — o batuque angolenseconhecido em Pernambuco, em São Paulo e especialmente na Bahia —
passou a designar a m úsica urbana herdeira do lundu e da modinha, im-pregnada de ritmos fundamentais africanos. C om efeito, durante muitosanos, as canções d as escolas com punham-se apenas de estribilho ou refrão,sobre o qual se improvisava (versava), enquanto o solista, exercitando asua iniciativa, sapateava, deslizava ou rodopiava sambando. O grupoconstituía-se, deste modo, numa escola de samba. Com a experiência decerca de 30 anos, as escolas começaram a a pelidar os seus componentesde académicos ou norm alistas d o samba". (CARNEIRO, Edison. A sabe-doria popular. Rio de Janeiro, INL, 1957. p. 113-4.)
38 CARNEIRO, Edison. Op. cit., p. 117.39 Entrevista concedida ao Jornal Crítica, Rio de Janeiro, / (29), 1975.40 Uma prova de que as escolas de samba perderam o ethos que as transfor-
mava em grupos específicos são as declarações d e Martinho d a Vila sobreo assunto: "Olha, esse negócio de escola voltar à origem j á era, porquenão se vai mais conseguir mesmo. Você quer u m exemplo? Compositor,antes, fazia o samba para a escola cantar, para ver todo mundo levar seusamba para a avenida. Hoje, compositor faz samba pequeno, diferente,comercial, por que sabe que só assim v ai gravar. Ele quer faturar. Não im-porta que o samba-enredo esteja sendo deturpado".
Di z ainda Martinho que "escola de samba virou m eio de promoção so-cial. Durante o carnaval, qualquer diretor de samba t em acesso a o gover-nador, ao palácio e h á muito interesse em jogo para permitir que as esco-las voltem ao que elas já foram um dia. Até sambistas já não têm mais'camisa'. É de quem paga mais. Hoje quem paga melhor leva o melhormestre-sala e a melhor porta-ba ndeira. Tem até preço de passe. (...) Podeacontecer até m esmo de escola de samb a virar veículo de propaganda, pa-trocinada por em presas. Na hor a em que uma escola dessas estiver no su-foco e abrir as pernas, não vai ter quem segure. Pode ser que as grandesnão cedam por enquanto. Mas, quem garante isto a longo prazo?" (Vida
e morte da s escolas de samba. (Entrevista a Sérgio Macedo.) Crítica, R iode Janeiro, l (29), 1975.)41 VASCONCELOS, Francisco & PEDRA, Mário. No mundo do samba (D a con-
servação das escolas de samba no futuro). Petrópolis, 1969. p. 9.
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2? Parte
A dinâmica negra
e o
racismo brancoA sociedade brasileira largou o negroao se próprio destino, deitando sobreseus ombros a responsabilidade dereeducar-se e de transformar-se paracorresponder ao s novos padrões eideais de homem, criado pelo adven-to do traba lho livre, do regime republi-cano e do capitalismo.
F L O R E S T A M F E R N A N D E S
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ISociologia da Repúblicade Palmares
1. Preferiram Conseguir-se uma aproximação sa- a liberdade entre as tisfatória com o tema sobre o qualferas que a sujeição vamos nos ocupar neste capítulo éentre OS homens mais difícil e essas dificuldades têm
origem em várias causas, umas daprópria situação da ciência histórica no que diz respeito ao s estudospalmarinos, outras de natureza ideológica e política que decorrem daprópr ia essência polémica da República de Palmares em relação à his-toriografia dominante e académica. Como vem os, temos barreiras deordem metodológica e ideológica que se cristalizam em cima de umamemória e consciência histórica e sociológica desfiguradas e/ou rei-ficadas pela maior parte dos cientistas sociais que, até hoje, se ocu-param do assunto.
Isso é compreensível s e levarmos em consideração q ue toda adocumentação que se conhece sobre Palmares é aquela fornecida pe -lo dominador, pelo colonizador, isto é, não temos outro código deinformação a não ser aquele que os seus destruidores nos oferecem.Desta for ma , o cientista social tem de se postar em uma posição mu i-to cautelosa, a fim de reinterpretar criticamente esses documentos einformações, decodificá-los, sabendo discernir heuristicamente até on-de vai a fantasia ocasional, o interesse o u a ideologia repressiva na
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160 SOCIOLOGIA DA REPÚBLICA DE PALMARES
elaboração do seu texto e onde se situa a veracidade do fato narradoe/ou interpretado. Porque foi sempre um desafio aos historiadorese sociólogos, pois representa o pique das lutas sociais e raciais queforam travadas no Brasil, até as revoltas dos negros urbanos de Sal-vador na primeira parte do século XIX. Essa historiografia procurou
minimizar a sua significação histórico/sociológica, apresentando-o co-mo um valhacouto de bandidos, de bárbaros, fetichistas e crimino-sos. A própria biografia de Zumbi somente agora emerge em conse-quência de trabalhos de historiadores que resgatam a sua figura e pro-va m a sua existência. Antes era lenda, era apenas um título que setransferia. Zumbi não existia como personagem histórico. 1
Achamos, por isto, que ainda não podemos, a não ser com muitacautela, elaborar uma interpretação sistemática da realidade social dePalmares, a sua estrutura interna, o seu dinamismo e o ritmo dessedinamismo, sistema de propriedade, organização familiar, estruturade poder etc., a não ser de forma aproximada.
Outros obstáculos não menos difíceis se somam a estes. Um de-
les foi a destruição quase total da população primitiva de Palmaresou o seu envio para outras áreas depois da sua derrota, o que propor-cionou a criação de um vácuo de memória histórica e social, fato queimpede o pesquisador recolher na região, através de trabalho de cam-po, informações orais, tradições, lendas e mitos capazes de dar umarepresentação simbólica do que os atuais ocupantes das terras na re-gião possuem do fato histórico através de transmissão oral dos seusantigos habitantes e descendentes. Finalmente, por ser Palmares umarepública que seguiu a tradição africana, tinha uma estrutura de trans-missão de pensamento, comunicação grupai fundamentalmente oral.
Na África a tradição oral é praticamente responsável pela trans-missão da memória coletiva. Vários géneros de comunicação nestesentido existem para que isto possa ser realizado. Temos: a) a poe-
sia, forma de expressão mais frequente. Refere-se quase sempre aopassado da África, às civilizações que se sucederam e às culturas quelhes deram suportes; b) o conto, que são grupos de fábulas, lendas,mitos intercalados com fatos reais, terminando o narrador ilustrando-ocom um preceito moral; c) os provérbios, máximas populares que ex-primem, através de imagens, uma regra de conduta ou conselho demoral social; d) o ditado que difere do provérbio pelo fato de ser umasentença que expressa o ideal de uma conduta ética.
Outras formas de literatura ou comunicação oral africana são:os poemas cantados (aios); as adivinhações; os cantos e coros religio-sos; as canções de invocações místicas e cenas da vida cotidiana.
PREFERIRAM
Os depositários dessas tradições e formas de comunicação oraisnas sociedades africanas poderão ser enumerados da seguinte maneira:
1.°)os detentores da autoridade política;2.° os nobres;
3.° os chefes de cultos;4.° os velhos contadores.2
É evidente que não se pode verificar empiricamente até ondePalmares reproduziu, integral ou parcialmente, essa estrutura decomunicação oral africana, hierarquizada, no seu território, mas se-rá interessante ao se estudar a sua realidade social, levar em contaque, ao que tudo indica, esse código se conservou pelo menos par-cialmente. De outra forma teriam sido apreendidos documentos tan-to durante a fase das diversas expedições punitivas, como após a suaderrota final.
Quebrada, em Palmares, a continuidade das organizações, seg-mentos, grupos ou pessoas que funcionavam com a tarefa de passa-
rem a experiência comunitária de geração a geração, extinguiu-se pra-ticamente a memória e a consciência coletiva, sem deixar vestígios sig-nificativos no presente.
De tudo isto surge a dificuldade de se conseguir aquilo que po-deríamos chamar de uma visão exata ou aproximativa da estruturae o ritmo da dinâmica interna da República de Palmares. Isto queaf i rmamos sobre Palmares estende-se também aos outros quilombosmais importantes. Finalmente, como coroamento dessa série de difi-culdades há todo um passado de historiografia tradicional, conserva-dora, ideologicamente comprometida com o colonizador e que pro-cura esconder, escamotear ou deformar o verdadeiro significado e aimportância sociológica, histórica, política e humana que foi Palma-
res, apresentando tão importante fato como sendo apenas "um va-lhacouto de bandidos e marginais".
Para fazermos uma análise sociológica sistemática da estruturada República de Palmares, teríamos de aceitar um desafio que nãocabe ser enfrentado senão particularmente no atual estágio em queestão os estudos palmarinos.
Se objetivássemos fazer um trabalho sistemático e exaustivoabordando a dinâmica da República decorrente da sua estrutura, te-ríamos de estudar as suas técnicas e outros tipos de produção; o queproduzia e especialmente como se realizava essa produção; a intera-ção do núcleo dirigente com camadas e/ou grupos de poder da socie-dade colonial; a interação dos palmarinos com os escravos e negros
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162 SOCIOLOGIA DA REPUBLICA DE PALMARES
dos engenhos e fazendas; a dinâmica interna da República n os seusdiversos níveis; língua falada; estrutura organizacional do núcleo di-rigente; forma fundam ental de propriedade; organização familiar; sis-temas de pa rentesco; religião predominante; estratificação social i n-
terna; formas de dominação e subordinação fundamentais; estruturado grupo religioso; existência (ou não) do feiticeiro ou casta sacerdo-tal com monopólio do sagrado; organização militar e sua hierarqui-zação intern a; ritua is iniciáticos; nível de poder político do núcleo mi-litar; sistema de distribuição da p rodução; sistema de distribuição deexcedentes etc.
Como se pode ver, por esta simples enumeração sumária e evi-dentemente incompleta, a tarefa seria impossível de ser realizada, pe-lo menos por uma só pessoa. Haveria, também, necessidade de in-vestimento em pesquisas históricas e na região, especialmente iniciar-se a pesquisa arqueológica, para a possível reconstrução de sua cul-tura material, coisa que até o momento não foi feita. Com isto, tal-
vez se conseguisse novas dimensões interpretativas para os estudospalmarinos. 3
2. Uma economia Uma tentativa de descrição inicial da eco-de abundância nomia de Palmares deverá começar, se-
gundo pensamos, por um inventário dasterras, suas qualidades e limitações para a prática da agricultura, r e-cursos hidrográficos, vegetação, fauna regional e grau de pluviosida-de, entre outras. Evidentemente que isto seria uma p reliminar neces-sária para se ter uma ideia da base física da República, em bora, con-forme posteriormente procuraremos analisar, não é isto o determi-nante na organização e desenvolvimento da República, pois outroselementos de ordem social, económica, cultural e militar irão dar con-teúdo à dinâmica dessa cultura.
Segundo a maioria daqueles que escreveram sobre Palm ares, aRepública estava situada em uma das regiões mais férteis d a Capita-nia d e P ernambuco, na região atualmente pertencente ao Estado deAlagoas. Para Edison Carneiro:
a região era montanh osa e difíci l — cômoro s, colinas, montes, monta-nhas, rochedos a pique s e estendiam a perder de vista... Vinha desdeo planalto de Garanh uns, no sertão de Pernambuco, atravessan do vá-rias ramificações dos sistemas orográficos central e oriental até as ser-
ras dos Dois Irmãos e d o Bananal, no mun icípio de Viçosa (Alagoas),compreendendo, entre outras, as serras do Cafuchi, da Jussara, da Pes-queira, do Comonat i e d o Barriga — o oiteiro da Barriga" — onde setravou a maior parte dos combates pela destruição final de Palm ares. 4
Décio Freitas, mais abrangente, descreve toda a região como:
Uma faixa litorânea com 23 0 quilómetros de extensão, um planalto depouca altitude ladeando a nesga do litoral e uma área mais ou menosconsiderável de terras altas. A costa baixa, sem acidentes e batida porvagas oceânicas não é convidativa à navegação, sendo a ponta d e Já-raguá o único ancoradouro seguro em todo o trecho de Recife para baixoaté a Bahia. Os rios q ue vazam para o mar são represados pelos alí-sios atlânticos, o que explicaria a formação de inúmeras lagoas carac-terísticas da região (...) Ao se refugiarem nos Palmares, os escravos ti-ravam partido do tipo de região que em todos os tempos constituiu oponto forte das classes subalternas quando sublevam — a montanhainóspita, precisamente porque ali não chega o braço do E stado, ou pe-lo menos s ó chega c om grande dificuldade.5
Ainda sobre a região, um autor desconhecido, em documentoexistente na Torre do Tombo, depois de descrever o cenário de Pal-mares, afirma que:
estende-se pela parte superior do Rio São Francisco um a corda de ma-ta brava, que vem a fazer termo sobre o sertão do Cabo de Santo Agos-tinho, correndo quase norte a sul, do mesmo modo que corre a costado mar. São as árvores principais palmeiras ag restes que deram ao ter-reno o nome de Palmares; são estas tão fecunda s para todos os usosda vida humana, que delas se fazem vinho, azeite, sal, roupas, as fo-lhas servem às classes de cobertura; os ramos de esteio, o fruto de sus-tento, e da contextura com que as pencas se cobrem no tronco, se fa-zem corda para todo o género, ligaduras e amarras; nã o correm tão uni-formem ente esses Palmares que os não separam outras m atas de di-
versas com que na distância de sessenta léguas se acham distintosPalmares.6
Suma riamente descrita a região em que se localizava a Repúbli-ca d e Palmares, po r três autores, sendo que o últim o possivelmentetenha sido contemporâneo do s acontecimentos, vejamos, agora, co-mo os seus habitantes chegaram e se multiplicaram nessa área.
Rocha Pitta diz que foram qua se quarenta negros de G uiné dosengenhos de Porto Calvo, no início, depois em bandos e de formaconstante, homiziando-se n as matas d e Palmares, que iniciaram o pri-meiro quilombo. Ele descreve a origem da República da seguintemaneira:
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164 SOCIOLOGIA D A REPÚBLICA DE PALMARES
Quando a provfncía d e Pernambuco estava tiranizada e possuída dosholandeses, se congregaram e uniram quase quarenta negros do Gen-tio de Guiné, de vários engenhos da Via do Porto Calvo, dispondo fu-girem ao s senhores, de quem eram escravos, não por tiranias, que ne-les experimentassem, mas por apetecerem viver isentos de qualquer
domínio. C om segredo (entre esta nação, e tanto número de pessoas,poucas vezes isto) dispuseram a fuga, s a exe cutaram, levando consi-go algumas escravas, esposas e concubinas, também c úmplices do de-lito da ausência, mu itas armas diferentes, umas que adquiriram e ou-tras que roubaram a seus donos n a ocasião em que fugiram. Foramrompendo o vastíssim o sertão daquelavila, que acharam desocupadodo gentio e só assistido dos brutos, que lhes serviam de alimento, acompanhia com a qual se ulgaram ditosos, estimando mais a iberda-de entre a feras, que a sujeição entre os homens. 7
O crescimento demográfico da Rep ública continua a p artir des-se núcleo básico inicial de forma ininterrup ta, diversificando-se, pos-teriormente, com a incorporação de segmentos de marginais, índios,mam elucos e membros de outros grup os étnicos. Diversas situações
surgiram paralelamente, permitindo o aumento de fugas que iriamfazer engrossar a sua população. Uma delas foi a ocupação holan-desa em Pernambuco que desarticulou as estruturas de domina-ção portuguesas e nativas, criando condições para que os escravos,aproveitando essa situação de desarticulação dos mecanismos de con-trole social e repressão, fugissem para as matas, especialmente paraPalmares.
Além da fuga desses escravos dos engenhos, continuava afluin-do aos mocam bos cada vez mais índios salteadores, fugitivos da jus-tiça de um modo geral e elementos de todas as demais etnias que sesentiam oprimidas pelo sistema escravista. Certamente chegaram tam-bé m brancos e brancas, pois d e outra forma não se explicaria a exis-tência, em 1644, entre os aprisionados por R odolfo Baro de "alguns
mulatos de menor idade". 8Nos assaltos que eram feitos às populações locais, c ertamente
os negros palmarmos ra ptavam negras, ma s brancas também . Fala-seque Zumbi tinha, entre suas mulheres, uma que era branca. Deve-mos notar, a respeito, que o problema do equilíbrio entre os sexosem Palmares deve ter sido muito sério, pois, na seleção que o sistemade importação de negros realizava para o suprimento de escravos noBrasil a proporção de mulheres era bem menor que a de homens,calculando-se, segundo estimativas, de três homens para cada mulher.Desta form a, para que se estabelecesse um equilíbrio sexual relativa-mente estável, a necessidade de se conseguirem mulheres fora da
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reprodução natural era imperativa. Como os palma rinos resolverameste problema muito sério e estabeleceram tipos de famílias que acu-diram a essas necessidades veremos oportunamente.
O certo, porém, é que através do crescimento vegetativo e dorapto de mulheres, da adesão de escravos e escravas dos engenhos e
do aprisionamento de escravos passivos, a população de Palmares che-gou a ter 20 a 30 mil habitantes, população que atingiu um nível de
i densidade demográfica, na época, desafiador. Transformou-se Pal-í mares no mais sério obstáculo ao desenvolvimento da economia es-
cravista da região. Como a região, na época, era a mais importantepara a prosperidade desse tipo de economia, podemos aquilatar a preo-
cupação que Palmares representava para as autoridades da Metrópole.Tanto isto é verdade que em 1671 o governador Fernão de Sou-
za Coutinho dirigia-se à Metrópole denunciando o perigo. Dizia ele:
Há alguns anos que os negros de Angola fugidos do rigor do cativeiroe
fábricas do s engenhos desta Capitania se formaram povoações nu -merosas pela terra dentro entre os Palmares e matos, cujas asperezase faltas de caminhos os tem mais fortificados por natureza, do que pu-dera ser por Arte, e crescendo cada dia em número se adiantam tantono atrevimento que com contínuos roubos e assaltos fazem despejarmuita pa rte dos moradores desta Capitania mais vizinhos aos seus mo-cambos, cujo exemplo e conservação vai convidando cada dia aos maisque foge, por se livrar do rigoroso cativeiro que padecem e se veremcom a liberdade lograda no fértil das terras e segurança de suas habi-tações podendo-se temer que com estas conveniências cresç am empoder de maneira que sendo tanto maior o número, pretendam atrever-se a tão poucos como são os moradores desta Capitania a respeito dosseus cativos; para evitar este dano determino passar ao Porto Calvona entrada deste verão, lugar mais proporcionado para se fazer estaguerra e dali, com contínuos troços de gente que se renda uma a ou-
tra, mandar abrir caminhos para o s ditos Palmares p or onde possamser Investidos e arrasadas as suas povoações continuamente até detodo se extinguirem e ficar livre esta C apitania des te dano que tantoa ameaça.9
Este temor e providências das autoridades não impediram quePalmares continuasse crescendo. Montado neste binómio (territórioe população) é que a sociedade civil de Palmares se estrutura e se di-namiza. Organiza-se criando um espaço humano e social dentro d oespaço físico. Po r diversas circunstâncias os quilombos, ou cidadesda República, começam a se formar, de acordo com o processo d edesenvolvimento e diferenciação da divisão do trabalho interno. Sur-gem, em consequência da diversificação d e funções e papéis d e várias
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camadas e estratos no sistema produtivo, quilombos q ue tinham ati-vidades sociais e económicas específicas. Assim, segundo documentoaproveitado por Edison Carneiro e que já usamos mtes, era a seguintea distribuição territorial dos principais quilombos que constituíam aRepública: a 5 léguas d e Porto Calvo ficava o quilombo de Zumbi;a 5 léguas mais ao norte o mocambo de Acotirene; a leste destes, dois
mocambos chamados das Tabocas; a 14 éguas a noroeste destes m o-cambos o de Dambrabanga; a 8 léguas mais ao aorte a "cerca" deSubupira; a 6 léguas mais ao norte a "cerca Real do Macaco; a 5léguas a oeste o mocambo d e Osenga, a 9 léguas de Serinharém, paranordeste; a "cerca" de Amaro a 25 léguas das Akgoas, para noroes-te; o "palmar" d e Andalaquituche, irmão de Zumbi, a 25 léguas dePorto Calvo e o mocambo de Aqualtuna, mãe do rei, afora outrosmenores, espalhados no seu território. Sabendo-se qu e légua é umavelha medida portuguesa q ue corresponde a aproximadamente seisquilómetros, podemos calcular a extensão geográfica da República.Edison Carneiro avalia em 27 mil quilómetros quadrados a superfí-cie de Palmares. Numa articulação permanente esses quilombos (o u
cidades) produziam uma economia de abundância, apesar das contí-nuas expedições enviadas contra eles e que tinham, como sistemáti-ca, destruir sua agricultura e matar os seus homens e mulheres.
3. Como os palmarinosse comunicavam?
Como se articulava, do ponto devista linguístico, a população daRepública de Palmares? Qual o
sistema de comunicação, o seu código de linguagem através do qualsocializavam o seu pensamento? A primeira hipótese surgida entreaqueles que estudaram Palmares foi a de que, como escreveu DécioFreitas, a língua era "basicamente o português, misturado com for-mas africanas d e linguagem", pensamento idêntico ao de Edison Car-neiro. Com o aprofundamento dos estudos palmarinos esta primeirahipótese está sendo revista, como veremos adiante. De fato, emborahaja referências ao envio de línguas (intérpretes) para entender-se comos palmarinos, poderíamos relacionar isto ao quase desconhecimen-to também por parte dos bandeirantes do português, isto é, a misturada linguagem palmarina com termos africanos e a incorporação determos indígenas à fala dos bandeirantes sugeria a necessidade de umintérprete que os auxiliasse no diálogo. Mas, apesar disto, dessa
COMO OS PALMARINOS SE COM
possível diversificação dialetal por parte do s palmarinos, todos oselementos indicam que o português foi a estrutura linguística qu eabsorveu o vocabulário de origem africana usado pelos negros ha-bitantes da República de Palmares para se comunicarem. Por outrolado, tem-se como quase certo que as palavras africanas incorpo-radas ao corpo léxico dos palmarinos eram de origem banto. Isto por-
que tem-se comprovado que a maioria esmagadora do s negros ha -bitantes da República provinha de populações que falavam essesdialetos.
A professora Yeda Pessoa de Castro, em trabalho especializa-do de etnolingiiística, mostra a precedência da importação banto emrelação aos negros de outras partes da África, particularmente na re-gião de Palmares. Para ela, na época da sua formação, a importaçãode negros para a lavoura escravista era basicamente das regiões daÁfrica que falam o s seus diversos dialetos. O gráfico seguinte indicaa realidade deste argumento:
Atividade principal
Agropecuár iaMineraçãoAgriculturaServiços urbanos
Séculos de importação maciça
XVI
B
B
XVII
B/J
B/J
XVIII
B/JB/J
B/J/N
XIX
N/HN/J/H/B
Grupos: B = Banto; J = Jeje/Mina; N = Nagô/lorubá; H = Hauçá.Fonte: CASTRO, Yeda Pessoa de. A presença cultural negro-africana noBrasi l ; mito e realidade. Salvador, CEAO, 1981.
A mesma autora escreve que:
no que concerne à influência dos povos de língua banto, ela foi maisextensa e penetrante po r também mais antiga n o Brasil. Isto s e revelapelo número de empréstimos léxicos de base banto que são correntes
no português do Brasil — uma média de 71 % — e pelo número de deri-vados portugueses formados de uma mesma raiz banto, inclusive osde conotação especificamente religiosa, sem que o falante brasileirotenha consciência de que essas palavras s ão d e origem banto. Exem-plos: cacunda/corcunda, caçula, fubá, angu, jiló, bunda, quiabo, den-dê, dengo etc.10
Isto acontece n ão apenas no s falares populares mas na elabora-ção de linguagem literária.11
Em outro trabalho, O s alares africanos na interação social d oBrasil Colónia Yeda Pessoa de Castro escreve que:
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os empréstimos éxicos afr icanos no português d o Brasil, associadosao regime da escravatura, são em geral étimos bantos (quilombo, sen-zala, mucama, por exemplo); depois Zumbi, Ganga Zumba, nomes doslíderes d e Palmares, sã o títulos tradicionalmente atribuídos a chefeslocais n o domínio banto. Sobre outro plano, os folguedos radicionaisbrasileiros que portam nomes denunciando influência banto, tais co -mo quilombos, congos moçambiques são atestados em diferentes zo-nas rurais do Brasil.12
Finalmente, para concluir nossa argumentação, vamos transcre-ve r trecho da documentação que Yeda Pessoa de Castro apresentouao II Encontro Nacional de Linguística:
Nessas (as senzalas), onde se misturavam africanos de diferentes pro-cedências étnicas a um contingente de indígenas, a fim de evitar rebe-liões q ue pusessem seriamente em perigo a vida do s seus proprietá-rios, numericamente nferiorizados e estabelecidos e m áreas nterio-ranas isoladas, a necessidade de comunicação entre povos lingúisti-camente diferentes deve te r provocado a emergência de uma espéciede língua franca, que chamaremos de dialetodas senzalas.
13
A argumentação acima mostra como há evidência ponderável(histórica, sociológica e etnolinguística) de que os bantos influencia-ram decisoriamente na língua falada em Palmares, criando aquilo quepoderíamos chamar, pelas mesmas razões etnolingúísticas e socioló-gicas apontadas pela professora Yeda Pessoa de Castro, de dialeto
dos quilombos, como sendo o código de linguagem através do qualeles se comunicavam. Ou então, por que não poderíamos chamar es-sa linguagem de dialeto de Palmares Esta hipótese nós levantamosno Simpósio sobre a República de Palmares, organizado pela Uni-versidade Federal de Alagoas, em 1981.14 A sugestão que colocáva-mos ali como questão aberta, veio, ao que tudo indica, ser confirma-da pelas pesquisas posteriores sobre este aspecto importantíssimo emrelação a Palmares.
O historiador Décio Freitas, baseado em pesquisas pessoais pro-curando esclarecer o assunto, escreve:
Antes de mais, n ão podiam adotar, sem desastroso sacrifício da uni-dade, uma das línguas nativas da África. Necessitavam de uma l ingua-ge m comum. Assim foi como se elaborou a linguagem palmarina: umsincretismo linguístico, em que os elementos africanos tiveram um as-cendente decisivo, mas que incorporava, por igual, elementos do por-tuguês e d o tupi. Falam um a língua toda sua, às vezes parecendo d aGuiné ou de Angola, outras parecendo nenhuma dessas e sim outralíngua nova reparou o governador Francisco d e Brito Freire.
y. nwurwjMiA fALMARINA 169
Os brancos não entendiam essa linguagem sem auxílio de ntérpretes.Todos os emissários enviados pelas autoridades coloniais a Palmarespara consertar trégua ou pazes faziam-se nvariavelmente acompanharde línguas . A s conversações entre o governador de Pernambuco eum a embaixada palmarina, no ano de 1678, no Recife, realizou-se atra-vés de línguas .
Desgraçadamente, não restaram vestígios significativos da inguagempalmarina.15
Assim, aquela hipótese que aventamos em 1981 veio a ser cor-roborada posteriormente. Podemos dizer, em face destas razões, queexistiu um dialeto de Palmares como código de linguagem através doqual seus habitantes se comunicavam.
4. Evolução daeconomia palmarina Vejamos agora como se estruturava e
articulava a economia de Palmares.Devemos dizer que vamos sumariar
aqui, em primeiro lugar, o que se produzia; em segundo lugar, como
se produzia na República. Achamos que no sistema produtivo de Pal-
mares há, inicialmente, uma fase basicamente recoletora, fase que,aliás, não desaparecerá perdendo a sua importância, mas permane-cendo como forma subsidiária durante toda a evolução da sua eco-nomia. Caça e pesca, fundamentalmente. São conseguidas pelos pal-marinos, além de frutas, vegetais medicinais, óleo de palmeira, fibrasde vários tipos, frutos como jaca, manga, laranja, fruta-pão,coco, abacate, laranja-cravo, cajá e outras, nativas, que serviam pa-ra sua alimentação. Além disto, a caça era facilitada pela abundân-cia de animais na região: diversos géneros de onças, antas, raposas,veados, pacas, cutias, caetetus, coelhos, preás, tatus, tamanduás, qua-tis e inúmeras outras espécies que davam base a uma alimentação atra-vé s da caça, capaz de suprir a população da República, pelo menosno seu início.
Além desse setor recoletor, desenvolve-se o artesanal, no qualeram produzidos cestos, pilões, tecidos, potes de argila e vasilhas deum modo geral. Esse setor artesanal era o que produzia grande partedo material bélico usado: facas, flechas e outros instrumentos vena-tórios e de guerra. Havia ainda a produção de instrumentos musicais,cachimbos de barro (para fumarem maconha), além de objetos de usocotidiano. Um dos setores mais desenvolvidos era a metalurgia, poisos africanos já eram exímios metalúrgicos na sua terra natal e aquidesenvolveram as suas aptidões e técnicas.
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N o pa r t icu lar , Edison Carneiro informa:
A exp edição holandesa de 1645 encontrou quatro for jas nos Palmarese o governador Fernão Coutinho, em 1671, dizia que os negros ebela-dos já possuíam "tendas de erreiros, e outras of icinas, com que pode-rão fazer armas, pois usam de a lgum fogo que de cá levam; e e ste ser-tão é tão fér t i l d e metais, e salitre, qu e tudo Ires oferece para a suadefesa, se lhes n ão faltar a indústria que também s e pode temer d os
muitos qu e fogem, já práticos e m todas as mecânicas".16
Co m o aumento progressivo da população, a sua diversificaçãosocial e estratificação maior e mais complexa no s diversos segmentosocupacionais, políticos, militares e produtores que a compunham, essaeconomia simples foi, paulatinamente, substituída pela agricultura in-tensiva, porém diversificada, ficando apenas como atividade comple-mentar, subsidiária, o setor recoletor e artesanal. Usando técnicas deregadio trazidas da África e uma longa experiência agrícola, os pal-marinos transformaram -se em agricultores. Posteriormente veremoscomo essa m udança no sistema de produção irá alterar os outros ní-veis organizacionais e estruturais da República. Palmares passa a teruma economia fundamentalmente agrícola, criando excedentes eco-
nómicos para redistribuição interna e externa.A base desse trabalho era a policultura, p roduzida intensivamen-te, porém de forma com unitária. Plantavam p rincipalmente o milho,que era colhido duas vezes por ano. Depois da colheita descansavamduas semanas. Plantavam ainda feijão, mandioca, batata-doce, ba-nana (pacova) e cana-de-açúcar. Isto constituía a produção básica daagricultura palmarina, sendo o excedente distribuído entre os mem-bros da comunidade para as épocas de festas religiosas ou de lazer,ou estocado para os tempos de guerra. O que sobrava era trocadocom vizinhos, pequenos sitiantes e pequenos produtores, por artigosde que a República necessitava.
A maneira como se produzia, podemos dizer que era, na suaessência, um sistema de trabalho que se chocava com o latifundiário
escravista tipo plantation que existia na Colónia, com níveis de pro-dutividade muito m ais dinâmicos e de distribuição com unitária queera a própria antítese da apropriação monopolista dos senhores deengenho e da indigência total dos escravos produtores.
Comentando esta forma com unitária de produção existente emPalmares, Duvitiliano Ramos assim se expressa:
Distinguindo muitas "roças ou plantações" onde abundavam bananei-ras e canaviais, o cronista Blaer, implicitamente, destacou com o curió-
_ ... » , »jiT rtIWi f\ 1/1
sidade específica dos quilombolas, em oposição com o sistema de ses-maria que imperava nos engenhos sob exploração holandesa, um a for-ma diferente de cultura, denunciadora de trabalho individual e não detrabalho por turmas, como se fazia na terra dos engenhos. Não somenteisso: a plantação variada de diferentes espécies, onde abundavam ba -naneiras (pacovais) e canaviais; e na lavoura do rei "uma roça muitoabundante" q ue tanto pode se r compreendida na variedade de planta-
ção (abundante), com o na extensão da área plantada, em bora a expres-são seja limitada: uma roça, como pode exprimir a ignorância do cro-nista quanto ao nome da plantação muito abundante". O fato real, con-tudo, é que a lavoura do rei era diferente na forma do trabalho da terra,da s lavouras do s habitantes, que constituíam muitos roçados, com va-riados produtos, e ao rei resultava "uma roça muito abundante", pro-metedora de farta colheita em várias espécies e produtos.Esta forma de cultura — continua o m esmo autor — , introduzida n osquilombos, ganha consistência definitiva e a f i rma-se como caracterís-tica social e m confronto com a relação geral anotada po r Blaer. Arrua-mento, duas fileiras de casas, cisternas, um largo para exercícios, acasa-grande do Conselho, as portas do mocambo, paliçadas e fortifi-cações. E isto porque entre os seus habitantes havia toda sorte deartífices". Um aldeamento progressista.17
Concluindo, afirma:
Disso se deduz que os quílomboías, ao repudiar o sistema latifundiá-rio dos sesmeiros, adotam a form a do uso útil de pequenos tratos, ro-çados, base económica da fam ília livre; que o exce dente da produçãoera dado ao Estado, como contribuição para a riqueza social e defesado sistema; que a solidariedade e a cooperação eram praticadas des-de o início dos quilombos, que deve remontar aos princípios do séculoXVII; que a sociedade livre era dirigida po r leis consagradas pelos usose costumes; que não existiam vadios n em exploradores no s quilombos,mas, sim, uma ativa fiscalização com o sói acontece r nas sociedadesque se formam no meio d e lutas, contra form as ultrapassadas d e rela-ções d e produção; que, em 1697, já existiam nascidos e crescidos, h a-bituados àquele sistema, nos quilombos, três gerações de brasileirosnatos, somando provavelmente a população de dezess eis aldeamen-tos
para mais de vinte mil indivíduos.18
Esta forma de organização dava, como consequência, uma eco-nomia de abundância. É outro estudioso, Décio Freitas, quem dá con-tinuidade e conclusão à exposição de Duvitiliano Ramos, afirmando:
Faziam largo consumo de banana pacova, abundante na região. Cria-vam galinhas, s uínos, pescavam e caçavam. Mas, fat o singular, não cria-vam gado a despeito das excelentes pastagens de certas áreas da re-gião por eles diretamente controladas.19
E aduz em seguida:
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É que nas comunidades negras reinava a farturaque oferecia vivo con-traste com a perene m iséria al imentar da população do litoral. A abun-dância da mâo-de-obra, o trabalho cooperativo ea solidariedade socialhaviam aumentado extraordinariamente a produção. O superprodutosocial se tornav a abundante. Depois de alimentada a população, aten-didos os gastos coletivos e guardadas em celeiros as quantidades des-
tinadas às épo cas de más colheitas, gue rras e festividades, ainda so-brava algo para trocar p or produtos essen ciais das populações luso-brasileiras. O caráter nitidame nte antieconômico d o sistema escravis-ta é ilustrado po r esse contraste entre o rendimento do trabalho do ne-gro quando livre e quando cativo. Era por ser escravo e não por ser ne-gro que ele produzia pouco e mal nas plantações e nos engenhos. Otrabalho cooperativo de Palmares tinha um ritmode produtividade muitomaior do que aquele que se desenvolvia nos latifúndios escravistas;a superioridade da agricultura palmarina em relação ao trabalho escravoer a faci lmente verificável.20
Analisemos, agora, quais eram as relações de produção que ca-racterizavam Palmares. Décio Freitas mais uma vez tem de ser cita-
do. Diz ele que não
há elementos seguros sobre o regime de propriedade da terra entre ospalmarinos. Cabe conjeturar que as terras pertenciam à povoação co-mo um todo. A plausibilidade da hipótese provém , em primeiro lugar,do fato de que os negros traziam da Áfr ica uma tradição de proprieda-de coletiva da terra. Em segundo lugar, uma vez que o esgotamentodo solo e razões de segurança determinavam periodicamente a mudançade toda a povoação para outro sítio, n ão teria sentido a propriedadeprivada da terra com todos os seus atributos, como compra e venda,sucessão etc.21
A dupla verificação de que Palmares se transformou em umasociedade agrícola que produzia para toda a comunidade, leva-nosa outro nível de reflexão.
Quais as m odificações estruturais significativas no interior daRepública, a o passar de simples a juntamento seminôm ade, de um pu-nhado de escravos, para um a república com território fixado pela ne-cessidade de produção a grícola e permanente pa ra alimentar a comu-nidade e de organização de normas reguladoras capazes de dar orde-namento a essa sociedade? Além d a necessidade da formação d e umEstado e de um governo, como veremos depois, f oi, também , neces-sária a criação de uma força militar que resguardasse dos ataques d efora a produção coletiva, a vida e a segurança do s seus habitantes.
Para acudir à segurança de um número tão considerável de pes-soas e um território tão grande e sempre ameaçado, necessitavam de-senvolver uma técnica m ilitar, estabelecer um sistema defensivo eficaz,
EVOLUÇÃO DA ECONOMIA PALMARINA 173
capaz de assegurar o sossego d os m oradores. Para tal, a sociedadepalma rina teve de admitir a constituição de um segmento militar quese organizou como instituição, embora na s épocas de guerra todo opovo fosse mobilizado para lutar. E sse exército aumentou considera-velmente. Iniciaram-se as construções de fortificações, paliçadas, pla-
taformas, fossos, estrepes, tudo visando a sua defesa. Por outro la-do, o setor artesanal e m etalúrgico deve ter desviado grande pa rte dassuas atividades para a fabricação de ma terial bélico indispensável pa -ra que esse exército estivesse em condições operacionais satisfatóriastodas as vezes que a República fosse atacada.
Esse exército era comandad o pelo Ganga M uiça e bem arm ado,embora, na última fase da resistência, o seu comando tenha passadoinquestionavelmente para as ordens de Zumbi, que ficou como umaespécie de comandante-chefe. Suas armas eram arcos, flechas, lan-ças, facas produzidas pelo setor artesanal da República e armas defogo tomadas das expedições primitivas, dos moradores vizinhos, com-prada s daqueles com os quais os palmarinos ma ntinham relações pa-cíficas e provavelmente também fabricadas na p rópria R epública. Co-mo vemos, Palmares, para defender-se dos ataques inimigos, teve dedirigir grande parte da sua economia para fins bélicos e ma nter, tam-bém, uma grande parte da sua população p rodutiva em armas.
Evolui o segmento militar, por isto mesmo, adquirindo uma fun-ção importante na área de domínio e prestígio político. Daí o apare-cimento de uma espécie de casta militar. A guerra de movimento, omovimento de guerrilhas, sustentado por outros quilombos menorese que deram frutos tão positivos na tática militar da quilombagemnão pode se r continuada em Palmares. As guerrilhas foram transfor-ma das em operações de envergadura e, depois de realizadas, tinhamum local fixo para voltar. O nomadismo militar inicial dos palmari-nos, possível numa sociedade recoletora, foi substituído pelo seden-
tarismo e pela luta de posições. À m edida que as atividades agrícolasse desenvolviam, iam sendo, ao mesmo tempo, transformadas as tá-ticas e técnicas militares p ara a defesa do patrim ónio coletivo. É, poroutro lado, essa fração ou segmento militar, adestrado para defen-de r o patrimó nio coletivo, que irá revoltar-se contra a capitulação d eGanga Zumba. Porque o exército de Palmares tinha esta característi-ca: não foi montado para defender nenhum tipo de propriedade pri-vada, m as para defender o património de toda a comunidade. Daíter-se insurgido, através de Zumbi e outros comp onentes do segmen-to militar, contra a capitulação de Ga nga Zum ba que significava, em
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última instância, a destruição de toda essa estrutura, com unitária. Nesteparticular, o general Zumbi, ao se insurgir contra a açãocap itulacio-nista de Ganga Zumba e os seus seguidores, estaca representando osinteresses e o consenso de toda a comunidade da República ameaça-da de ser dominada e os seus habitantes voltarem ao statusde escravos.
Este tipo d e economia levará, também, a que não se corporifi-que um direito d e propriedade definido e regulamentado e m código.
Os crimes que eram punidos severamente através de um tipo de direi-to consuetudinário (costume) eram o adultério, o homicídio e o rou-bo individual, pois ele era considerado uma lesão ao patrimóniocomum.
5. Organização familiar: O casamento era feito sem ne -poligamia e poliandria nhum ritual significativo, ou so-
lenidade ma ior. Pelo menos até omomento não se encontram informações que evidenciem o contrá-rio. Por outro lado, Palmares reproduzia, dentro das suas frontei-
ras, a
desproporção de
sexos existente na
população escrava, istoporque os senhores preferiam comp rar, para os trabalhos do eito, ho-mens jovens e mulheres as quais eram destinadas à escravidão domé s-tica, cujo número era insignificante em relação à grande massa deescravos trabalhadores na agroindústria açucareira. Por este motivoos traficantes selecionavam essa mercadoria huma na de acordo comas preferências do mercado e a vontade dos fa zendeiros. Calcula-seque para cada mulher havia três ou mais homens, com va riações re-gionais. Este fato irá refletir na composição, por sexos, da popula-ção palmarina com desequilíbrios evidentes na organização familiar.
Por isto, se os palmarinos m antivessem, nas suas fronteiras, ocasamento monogâmico que os senhores impunham nas suas fazen-das, ou a promiscuidade também ali permitida, haveria um desequi-
líbrio n a vida familiar e sexual tão agudos que a desarticulação socialseria inevitável, com repercussão de desajuste em todos os níveis daestrutura social. Para resolver esse impasse de importância fundamen-tal, os palmarinos foram obrigados a instituir dois tipos fundam en-tais de organização familiar. Um seria a família polígama e outro afamília poliândrica.
Essa dupla organização fam iliar, surgida de causas que já apon-tamos, isto é, o desequilíbrio da população palmarina segundo o sexo,
veio equilibra r o comp ortam ento d os dois sexos e ordenar socialmenteessa instituição.
No primeiro caso, a poligamia seria praticada pelos membrosprincipais da estrutura de poder. Isto é, a capa dominante, o rei, mem-bros do Conselho e possivelmente os chefes dos mocambos teriamdireito a várias mulheres, cujo número não temos elementos paraprecisar.
Um documento d a época dizia que o apetite é a regra da suaeleição", o que não é verdade. S e isto acontecesse ha veria conflitosinternos muito grandes e níveis de desorganização fam iliar q ue dese-quilibrariam a normalidade da República.
O rei Ganga Z umb a tinha três mulheres, duas negras e uma mu-lata e Zumb i teve mais de uma , havendo a hipótese de que uma delasera branca. A instituição da poligamia nesta capa dominante é incon-testável. Quanto à possibilidade de Zumbi ter uma mulher branca,a hipótese não é absurda, pois muitas brancas pobres e mesmo pros-titutas conseguiram fugir pa ra Palm ares, como form a de se livraremda discriminação a que estavam sujeitas na sociedade escravista. Alémdisto muitas "mulheres e filhas donzelas" foram raptadas pelos ne-
gros de Palmares, como registra documento da época.Mas, em contrapartida, havia a família poliândrica. Era a que
funcionava de forma majoritária no conjunto da comunidade, na-quelas camadas que não tinham poder decisório n os assuntos impor-tantes, ma s participavam em pé de igualdade com todos os mem brosda comunidade n a produção e n o consumo. A poligamia em todosos povos onde ela existiu sempre foi um privilégio, isto é, mesm o sendoum direito para todos, somente aqueles que possuem condições m a-teriais, sociais ou económicas para usá-lo, o exercem.
Em Palmares, no entanto, tanto um tipo de organização fami-liar como outro, surgiram em consequência das circunstâncias espe-ciais que os seus habitantes não podiam controlar em face de serem
de causas externas: a desprop orção g ritante entre os sexos, consequên-cia da imposição dos com pradores de escravos no mercado negreiro.Daí a poliandria ter sido estabelecida na República . Com esses
dois tipos fundam entais de organização familiar criaram-se m ecanis-mos de equilíbrio para a sua funcionalidad e, sem antagonismos a gu-dos e conflitos, do grupo família. Os estratos políticos e militares quemantinham a direção d a sociedade, especialmente o rei, tinham um afamília polígama, ao contrário do s outros segmentos e grupos ondea poliandria era a norma permanente.
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Décio Freitas, ao abordar o problema, escreve que:
para preservar a coesão social, instituiu-se o casamento poliândrico.As referências a esse tipo d e casamento são inúmeras, mas as maisminuciosas são as de um documento de 1677.
Sucede que um certo Manuel Inojosa — o patronímico aparece am-bém grafado como Jojosa — , laureado exterminador de índios e de ne-gros, grande proprietário de terras e de escravos, aspirava apaixo-nadamente a glória de destruir Palmares. Nesse intuito, apresentou àCoroa vários planos. Para colher informações, infiltrou um dos seusescravos em Palmares em troca de promessa de alforria. O negro vi-veu entre os palmarinos pelo esp aço de seis meses, para, afinal, fugire transmitir ao amo o quanto vira em Palmares.22
O espião prestou plenas inform ações ao seu amo e o mesm o dirigiu-se ao rei de Portugal com um relato dos costumes da República. N ãose conhece a íntegra do documento enviado mas um resumo feito domesmo aborda o assunto que nos interessa, ou seja, a poliandria d ePalmares. Diz ele:
... que cada negro que chega ao mocambo fugido de seus senhores lo-go é ouvido pelo conselho de just iça que tem que saber de suas ten-ções porque são grandemente desconfiados, ne m se fiam só no fatode ser negro que se apresente; qu e tanto se certificam das boas inten-ções do negro que chega lhe dão mulher a qual possuem untos co moutros negros, dois, três, quatro e cinco negros, pois sendo poucas asmulheres adotam esse estilo para evitar contendas; qu e todos os ma-ridos da mesm a mulher habitam com ela o mesmo mocambo, todosem paz e harmonia, e m arremedo de família, ma s próprio do s bárbarossem a s luzes do entendimento e a vergonha que a religião impõe; qu etodos ess es maridos s e reconhecem obedientes à mulher q ue tudo or-dena na vida como no trabalho; q ue cada um a dessas chamadas famí-lias o s m aiorais, em conselho, dão uma data de terra para que a cultiveme isso o fazem a mulher e os seus maridos... que à guerra acodem to-dos nos momentos de maior precisão, sem exceção da s mulheres quenessas ocasiões mais parecem feras qu e pessoas do seu sexo.
Visto como funcionava a família poliândrica em Palmares, ca -be uma indagação complementar. Teria havido um matriarcado emPalmares? Os mais importantes estudiosos do assunto acham que não.Ma s Joaquim Ribeiro, exagerando, ampliando o u mesmo deforman-do os traços possivelmente de um matriarcado existente entre os ne-gros brasileiros, refere-se a um matriarcado africano em Palmares,partindo d a afirmação de que o quilombo não era uma expressão deluta contra a escravidão. Para ele:
o quilombo (e esta é a sua verdadeira significação histórica) é uma rea-çã o contra a cultura d os brancos, contra o s seus usos e costumes; é
RELIGIÃO SEM CASTA SACERDOTAL 177
a restauração da velha tribo afro-negra nas plagas americanas; é a res-surreição do organismo político tribal; é o retorno, sobretudo, ao seufetichismo bárbaro.23
Daí, para ele, a poliandria de Palmares e os seus vestígios no
Nordeste serem feitos dessa regressão cultural . Afi rma p or isto:A poliandria d a es crava negra é uma sobrevivência do matriarcado ori-ginário. E foi esse resíduo matriarcalista que favoreceu, através dasrelações sexuais en tre brancos e negras, a atenuação d a luta entre osenhor e o escravo.24
Não há dúvida de que essa interpretação fantasiosa, que remetepara um possível res íduo atávico os sistemas organizacionais do mo-mento, especialmente das comunidades e grupos oprimidos, basea-dos na cultur história como Joaquim Ribeiro determina o seu método,poderá provar tudo porque não prova nada cientificamente. As ori-gens tanto da poligamia como da poliandria em Palmares surgiramda dinâmica social interna da comunidade, da sua composição por
sexo desequilibrada e das soluções estruturais que os hab itantes en-contraram para conseguir o seu equilíbrio sexual e social. O que nãose pode aceitar é reduzir a dinâmica social a simples regressão cultu-ral, o que não faz sentido nem tem nenhuma possibilidade de expli-car a dinâmica d a sociedade que se formou a o nível d e contestaçãosocial como Palmares.
6. Religião sem Para a maioria dos estudiosos de Palmarescasta sacerdotal a sua religião era formada por um sincretis-
mo no qual entra o catolicismo popular ecrenças africanas, principalmente banto. Acrescentamos, agora, a in-
fluência das religiões indígenas que tão bem se fundiram às religiõesbanto em outros lugares, como na Bahia, dando inclusive dessa fu-são o chamado candomblé de caboclo".25
Segundo Rocha Pitta eram "cristãos cismáticos" e explicava porque isto no seu entender era verdadeiro:
De católicos não conservavam já outros sinais que o da Santíssima Cruz,e algumas orações ma l repetidas, e mescladas co m outras palavras ecerimónias por eles inventadas, ou introduzidas das superstições dasua Nação; co m que, se não eram idólatras, p or conservarem a som-bra de cristãos, eram cismáticos, porque a falta de Sacramentei • daMinistros da Igreja, que eles não buscavam, pela sua rebíllâo, • i
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liberdade do s costumes, em que viviam, repugnantes ao s precei tos danossa Religião Católica, os excluía d o consórcio, grémio e número defiéis.26
Edison Carneiro, n o primeiro trabalho fundamental de revisãohistórica da República de Palmares, afirma que:
os negros (de Palmares) tinham uma religião mais ou menos semelhanteà católica, o que se explica pela pobreza mítica d os povos bantos aque pertenciam e pelo trabalho de aculturação no novo habitat ameri-cano. No mocambo do Macaco, possuíam uma capela, onde os portu-gueses encontraram três imagens, uma do Menino Jesus, muitoperfeita , outra da Senhora da Conceição, outra de São B raz (...) Os pal-marinos escolhiam um dos seus mais ladinos para lhes servir de sa-cerdote, especialmente para as cerimónias do batismo e do casamento,ma s provavelmente também para pedir o favor celeste para as suas ar -mas (...) Não era permitida a existência de feiticeiros no quilombo.27
Carneiro refere-se, ainda, a uma dança que, segundo Barléus,era praticada em conjunto e que se prolongava até a meia-noite,batendo-se com os pés no chão com tanto estrépito que se podiaouvir de muito longe".28
Parece-nos que esta "dança" devia ser alguma cerimó nia deri-vada das religiões africanas e indígenas, pois tudo leva a crer que erauma manifestação coletiva do mundo religioso da comunidade queenglobava, além de negros que eram hegemónicos, também m embrosde outras etnias que compunham a República, como índios, mame-lucos, pardos e brancos. Parece-nos que Edison C arneiro subestimouum pouco este elemento na análise que fez das práticas religiosas dePalma res. Essa ma nifestação coletiva de contato com o sobrenaturaldevia manifestar-se periodicamente, com datas ou tempo determina-dos, e deveria ter um significado de expiação ou de invocação p ropi-ciatória à colheita e/ou à guerra.
Até hoje, segundo informações que conseguimos em Maceió,em 1983, a população de União dos Palm ares a credita ouvir, de vezem quando, esses batuques de negros no cimo da Serra da Barriga.
Achamos, por tudo isto, que a execução do sagrado era prati-camente comunitária. Não havia uma carreira de sacerdote com ri-tuais iniciáticos, com diversos níveis hierárquicos que gara ntissem aoiniciado o monopólio d o sagrado. Pelo contrário. O s feiticeiros eramproibidos de agir em Palmares. Assim, a prática religiosa, quandoisto era necessário, era executada por pessoas escolhidas ocasional-mente, os "ladinos mais expertos", que não se identificavam com osagrado através d e ritos d e iniciação. O eventual prestígio adquirid o
ADMINISTRAÇÃO E ESTRATIFICAÇÃO NA REPÚBLICA 179
durante a prática do culto desaparecia depois da sua realização. Oque se pode deduzir, da s informações que se tem, é que os atos reli-giosos em Palmares eram uma comunhão coletiva com o sobrenatural.
7. Administração Na parte da administração pública po-e estratificação demos ver no cimo da pirâmide o rei quena República exercia poder es quase absolutos. Em se-
guida o Conselho, com os representan-tes dos chefes dos diversos quilombos (cidades), os quais decidiamde forma autónoma, nos seus respectivos redutos isoladamente, masem conjunto quando o assunto envolvia problema de relevância paraos destinos da República, como a guerra e a paz. A escolha do reiera eletiva. E mb ora exercendo poderes quase absolutos (apenas con-trolados pelo Conselho nos casos mais importantes), em situações ex-tremas como traição havia a pena de morte para ele, como, porexemplo, no caso de Ganga Zumba.
Quanto ao sistema m onetário não se tem notícias de uma m oe-da cunhada e em circulação na República de Palmares. O comérciopessoal e as trocas deveriam ser realizadas através do sistema de es-cambo, pois assim como não se pode conceber uma sociedade semtroca, não se pode tam bém a firm ar que deveria haver moeda metáli-ca para realizar essa operação. O que isto vem demonstrar é o rela-cionamento comunitário e pré-m onetário entre os seus membros. Atroca em espécies deveria ser, ao que acreditam os, o costume de co-mercialização (se é que assim poderíamos ch amar tal operação) sema existência do lucro. Daí, talvez , não haver necessidade de uma moedaque circulasse como equivalente geral a o valor de cada m ercadoria.
O p roblem a da estratificação social devia ser complexo e o seudinamism o através da m obilidade social horizontal e vertical poderiamedir-se pela passagem de um membro ou grupo de um estrato paraoutro ou, horizontalmente, de um mocam bo para outro ou da Repú-blica para outro local, através da fuga. Do ponto de vista de mobili-dade vertical podemos citar, em primeiro lugar, o membro daRepública que era eleito rei, e, no outro p ólo, o exemplo dos escra-vos da República que podiam ascender ao nível de membros livresde Palmares se trouxessem um ou mais negros cativos para o núcleo.Da mesma forma, parece-nos, as mulheres ascendiam socialmentequando se casavam com algum chefe de quilombo ou comandante
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militar. Q uanto aos jovens, não temos nenhuma informação de qual-quer ritual de passagem (quer para homens quer para mulheres) ououtra cerimónia iniciática para incorporá-los à comunidade, emboranão descartemos a possibilidade de sua existência, pois elas funcio-navam sistematicamente nos grupos étnicos banto.
O certo é que toda a dinâmica de estratificação e integração so-cial era feita no nível de segurança e estabilidade dos seus membrose segmentos em relação à situação do conjunto d a comunidade, fu-
gindo, por isto, de qualquer semelhança com os tipos de mobilidadeexistentes em uma sociedade competitiva.Quanto ao nível, tipo e intensidade de inteiação da comuni-
dade com moradores da região e com a estrutura de poder colonial,podemos dividi-los basicamente em três: a) interação c onflitiva; b) in-teração competitiva; c) interação pacífica.
O conflito deve ter sido o mais frequente e significativo espe-cialmente em nível do enfrentamento militar com as tropas holan-desas, portuguesas e de mercenários b andeirantes. O s choques mili-tares, as guerrilhas, as batalhas e escaramuças defensivas, as sortidaspara o roubo d e víveres essenciais e não-produzid os em Palm ares, ra p-to de negros ou m ulheres, tudo isto foi uma constante neste nível de
interação.O competitivo seria caracterizado pelas relações com morado-res locais. H avia, certam ente, um pacto não-formal (e possivelmentenão em nível d e consciência) que neutralizava aparentemente o con-teúdo das mesm as, através da troca de interesses e o estabelecimentode um escambo muitas vezes voluntário, outras vezes compulsório paraaqueles que não podiam defender-se da força militar de Palmares.Aquilo que Rocha Pitta chamava "trocar o cabedal pela honra" daparte d os proprietários locais, talvez exemp lifique este tipo de intera-ção, ou seja, um a relação competitiva acobertada por um pacto deinteresses. Em outros casos, contudo, haveria um tipo de interaçãopacífica entre pequenos proprietários, camponeses pobres com os pal-marinos.
Quanto à interação pacífica com as estruturas de poder colo-nial, parece-nos que foi excepcional e não caracteriza o relacionamentodos palmarmos com a sociedade abrangente, isto é, as estruturas depoder coloniais. Podemos dar como exemplo disto apenas o enviode um a embaixada em 1678 que foi ao Recife parlamentar com o go-vernador da Capitania, o recém-nomeado Aires de Souza e Castro.Na ocasião foi acordada a paz entre as autoridades coloniais e a
República de Palmares, através dos seus representantes, tendo a suaembaixada sido recebida a nível d e representatividade plenipotenciá-ria. O governador mandou que fosse tomado por termo
as deliberações e encarregou um sargento-mor do Terço de HenriqueDias, que sabia ler e escrever, se seguir para Palmares, em compa nhiados negros , para comunicá-las ao rei Ganga Zumba e aos seus au xil ia-res. O ilho mais velho do rei, que não podia viajar, ficou no Rec ife, sobcuidados médicos. 2 g
8. Palmares: Queremos colocar, no final deste capítulo, emuma nação nível de simples reflexão preliminar uma inter-em formação? rogação: teria sido Palmares uma nação em
formação? Se não tivesse sido destruída, ousitiada permanentemente, a comunidade palmarina teria dinamismointerno capaz de estruturar-se em nacionalidade?
Antes d e colocarmos alguns elementos teóricos para da r conti-nuidade à nossa proposta, ou hipótese, queremos dizer preliminar-mente que mesmo aqueles autores que abordaram o assunto no
passado, jamais viram Palmares como uma unidade política com di-nâmica própria, mas sempre viram Palmares como um movimentodivergente em relação à nação brasileira ainda em form ação. Jamaisfizeram um a análise d e duas unidad es paralelas que podiam, deseja-vam e tinham possibilidades de desenvolver-se autonomam ente. Que-remos dizer com isto que ninguém procurou analisar Pa lmares a partirdas leis internas (económicas, sociais e políticas) que lhe davam esta-bilidade, continuidade e dinamismo, mas semp re como um territóriode negros e ex-escravos qu e haviam fugido às leis económ icas, sociaise políticas da Colónia, estas, sim, aceitas como capazes de dar conti-nuidade e desenvolvim ento àquilo que se convencionou cham ar a so-ciedade brasileira. Em razão disto, Euclides da Cunha via em Palmares
um a "grosseira odisseia", o mesmo fazendo Nina Rodrigues quandoafirma que foi um relevante serviço prestado pelos bandeirantes a suadestruição, elogiando a ação desses mercenários ao nível d e arautosda nossa unidade nacional . Isto é, o referencial de normalidade er aa unida de do Brasil colonial. O patológico, a frag menta ção dessaunidade.
Mas, de um pa râmetro científico, esta perspectiva chovinista es-tereotipada teria razão Parece-nos, pelo contrário, que Palmares
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teve todas ou pelo menos a s principais condições de ser um a nação,possivelmente independente, ou componente do país que se forma-va, se esses chamados civilizados (os colonizadores) não tivessemmobilizado contra ela todo o seu arsenal repressor e deixassem a Re-pública palmarina desenvolver as suas instituições internas, as suasforças p rodutivas e aprimorar a sua dinâmica económica e socialpacificamente. Mas a história não se faz sem contradições. Pelo con-
trário. A contradição fa z parte imanente da s leis sociológicas que de-terminam a dinâmica ou retrocesso dos grupos, classes, comunidadese nações. Por isto Palmares foi destruída. Não por ser uma ameaçaà civilização, como quer Nina Rodrigues, mas, pelo contrário, porter sido uma ameaça à sociedade escravista que a rodeava, pelo seuexemplo de eficiência organizacional. Um viajante que aqui esteve em1871, Oscar Constatt, observou muito bem o problema e escreveu:
A prosperidade da república dos negros preocupou no mais alto grauo governo. Os portugueses resolveram po r isso pôr- lhe fim, e não tar-daram a enviar tropas, num total de 7 mil homens contra os temíveispalmarenses. Como se tinha o inimigo em muita pouca conta, não foijulgado necessário armar a força co m canhões, e a completa der rota
desta depressa mostrou aos portugueses que não lhes seria fácil al-cançar o desígnio visado. Só depois de levarem canhões e abrirem bre-chas nos muros de Palmares, formados de grossos troncos sobrepostos,foi que a resistência desesperada, que os palmarenses tinham o fere-cido até então, cedeu um pouco, e permitiu que por fim os portugue-se s se assenhoreassem da cidadela.30
O que deve ser destacado aqui é que o autor assinalou a p rospe-ridade da República como a causa de sua destruição através de umaoperação militar. De fato, não eram as escaramuças dos negros pal-marinos, rapto de escravos ou mulheres, que preocupavam o gover-no, pois esse tipo de bandoleirismo era muito comum naquela época.O que determinou, segundo pensamos, a empresa de destruir Palma-res foi, exatam ente, o seu exemplo de uma economia alternativa, com
ritmo d e produtividade maior do que a Colónia, desafiando, c om is-to, a outra economia (escravista) em confronto com a economia c o-munitária praticada na República.
Poderíamos, por isto, considerar Palmares como uma nação emformação? O que é uma nação na sua definição clássica? É uma co-munidade estável, historicamente formada, que tem sua origem nacomunidade de língua, de território, de vida económica e conforma-ção psíquica que se manifesta em uma cultura comum.
Neste nível de raciocínio teórico o que pensamos da Repúblicade Palmares? Um m ovimento separatista que queria afastar-se da na-çã o brasileira por motivos fortuitos e que deveria ser reincorporadaà unidade nacional da qual fazia parte e, por isto, justificava-se o usoda força armada para esmagá-la e reparar os nossos brios patrióticos?
Neste particular de nação dominada até hoje temos um exem-plo clássico: a Irlanda d o Norte está dom inada política e economica-mente pela Grã-B retanha, mas isto não lhe tira a condição de ser umanação nem o direito de separar-se da Inglaterra. Evidentemente qu edo ponto de vista histórico e sociológico as diferenças são imensas.Não queremos equiparar os dois exemplos, m as apenas mostrar co-mo através do conceito de unidade nacional muitas vezes os direitosdas nacionalidades são esmagados.
Depois dessas considerações va mos apresentar algumas razõesque, supomos, podem iniciar a análise do ponto de vista que sugeri-mos. No nível de análise teórica, Palmares correspondia ao s requisi-tos sociológicos, políticos e económicos suficientes para ser consi-derada uma nação em formação?
Porque — destaquemos este detalhe — o Brasil, naquele tem-
po, não era um país independente, tendo, como nação, mais contra-dições regionais e políticas do que Palmares. Há mesmo sociólogose historiadores que consideram, até hoje, o B rasil uma nação incon-clusa. O que levou a República de Palmares a ser condenada e ex-tinta foi, como já dissemos, a sua estrutura social e económica co-munitária que se chocava com o sistema baseado nas relações escra-vistas. Aqui, parece-nos, é que está a chave do problema: Palmaresera uma negação, pelo seu exemplo económico, político e social daestrutura escravista-colonialista. O seu exemplo era um desafio per-manente e um incentivo às lutas contra o sistema colonial no seu con-junto. Daí Palmares ter sido considerada, sempre, pela crónica his-tórica tradicional, um valhacouto d e bandidos e não uma nação em
formação, que estava desenvolvendo uma trajetória altamente dinâ-mica e desafiadora a todas as técnicas produtivas e estruturas de rela-cionamento social d o escravismo. A sua d estruição, po r isto mesmo,foi festejada com as pompas e homenagens de uma guerra vitoriosa.O governador Melo de Castro comunicava ao reino o notável feitodizendo que:
A notícia da gloriosa restauração dos Palmares, cuja feliz vitória se nãoavalia por menos que a expulsão dos holandeses e, assim, festejada
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1*4 SOCIOLOGIA DA REPÚBLICA DE PALMARES
por todos estes povos com 6 dias de luminárias, sem que nada distose lhes ordenasse.31
Como vem os, pela im portância que se deu à destruição de Pal-mares temos a evidência de que, no bojo da estrutu ra colonial e es-cravista que existiu na época, a existência da República de Palmares,a sua vitalidade e desenvolvimento, o seu exemplo dedinam ismo eco-nómico, e o seu exemplo de relação comunitária e liarmonia social
determinaram a sua extinção. Isto porque, segundo pensamos, eraum a alternativa surpreendentemente progressista para a economia eos sistemas de ordenação social da época. Um embriio de nação quefoi destruído para que o seu exemplo não determinasse uma econo-mia que transcendesse os padrões económicos e políticos do sistemaescravista.
Notas e referências bibliográficas
1 N o processo historiográfico de m itificação de Zumbi é significativo este
trecho de M. M. de Freitas no particular: "O Zumbi que enriquece a len-da palmarina e que se atirou do alto do rochedo com os seus trezentos ecinquenta vassalos, conforme consta da fé de ofício de vários oficiais doTerço Paulista, não é o mesmo Zumb i morto valorosamente no dia 20 denovembro de 1695 por uma partida do mesmo terço sob o comando deAndré Furtado de Mendonça. Mesmo que seja um a lenda na legítima ex-pressão do termo não deve ser destruída, q uanto mais tratando-se de umfato histórico já cristalizado por quase três séculos de existência " (FREI-TAS, M. M. de. Reino negro de Palmares. Rio de Janeiro, Biblioteca doExército, 1954. v. 2, p. 770.) Esse processo está sendo acompanhado poroutro, no sentido inverso, de desmitificar Zu mbi e colocá-lo como perso-nagem histórico. Neste particular os trabalhos de Décio Freitas for am im -portantes para se conseguir estabelecer uma biografia de Zumbi. Ohistoriador Joel Rufino d os Santos f oi quem publicou, e m forma de livro,pela p rimeira vez, a sua biografia. (SANTOS, Joel Rufino dos. Zumbi. São
Paulo, Moderna, 1986.)2 UNESCO: La tradition orale africaine. Dossier Documentaire, s.d. p. 13-4.3 Ao que estamos informados infelizmente não se fez nenhuma tentativa de
pesquisa arqueológica na região de Palmares. Parece-nos que o empregode técnicas arqueológicas poderia abrir novas perspectivas e possivelmen-te esclarecer muitos aspectos da sua realidade ainda obscuros. No particu-lar, os professores Carlos Magno Guimarães e Ana Lúcia Duarte Lanna,da Universidade Federal de Minas Gerais, executaram um trabalho pio-neiro de prospecção aplicando técnicas da arqueologia para estabelecer
uma série de rasgos da cultura m aterial e não-material dos quilombos mi-neiros. Embora seja uma pesquisa piloto, veio demonstrar como muitose lucraria com a aplicação desse método na Serra d a Barriga. Os pesqui-sadores acima conseguiram uma série interessante de informações sobreo Quilombo do Ambrósio, Quilombo do Cabeça e da Lapa do Q uilombo,ou Quilombo da Serra Luanda, inclusive localizando desenhos rupestrescomo exemplares de uma arte quilombola. (Cf. GUIMARÃES, Carlos Mag-no & LANNA, Ana Lúcia Duarte. Arqueologia d e quilombos em Minas Ge -
rais. Pesquisas — Estudos de Arqueologia e Pré-História Brasileira, SãoLeopoldo, Instituto Anchietano de Pesquisas, (31), 1980.)4 CARNEIRO, Edison. O qui lombo dos Palmares. Sã o Paulo, Brasiliense,
1947. p. 28.5 FREITAS, Décio. Palmares; a guerra dos escravos. Porto Alegre, Movimen-
to, 1973. p. 40.6 Documento de autor desconhecido existente na Torre do Tombo, Portu-
gal, transcrito por Alfredo Brandão e m ' Documentos antigos sobre a guerrado s negros palmarínos", comunicação apresentada ao 2? Congresso Afro-brasileiro, realizado em Salvador, 1937, e reproduzido no volume O negrono Brasil. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1940. p. 277.
7 ROCHA PITTA, Sebastião da . História da América Portuguesa. 3. ed. Sal-vador, Progresso, 1950. p. 294.
8 CARNEIRO, Edison. Op. cit., p. 75.9
Carta do Governador Fernão de Souza Coutinho de l? de junho de 1671sobre O aumento dos mocambos do s negros levantad os qu e assistem Pal-mares", apud ENNES, Ernesto. As guerras do s Palmares. Sã o Paulo, N a-cional, 1938. p. 133.
10 CASTRO, Yeda Pessoa de. A presença cultural negro-africana: mito e rea-l idade. Salvador, Centro de Estudos Afro-orientais, 1981. p. 4.
11 Sobre a influência da s línguas banto n o por tuguês literário do Brasil, verPINTO BULL, Benjamim. Lês apports Hnguistiques du kimbundu au bra-si l ien. Dakar, Comunicação Apresentada ao Colóquio Negritude e Amé-rica Latina, 1974. Mimeografado.
12 CASTRO, Y eda Pessoa de. Os alares africanos na interação social do BrasilColónia. Salvador, UFBa, 1980. p. 15.
13 Idem, Os alares africanos na interação social dos primeiros séculos. M i-meografado.
14
Esta tese foi por nós exposta n o I Simpósio Nacional d os Quilombos d osPalmares, realizado p ela Universidade Federal de Alagoas em novembrode 1981, quando apresentamos a com unicação "Esboço de uma sociolo-gia da República de Palmares". A hip ótese está atualmente sendo confir-mada no fundamental .
15 FREITAS, Décio. Palmares — A gue rra dos escravos. 5. ed. (Reescrita, re-vista e ampliada.) Porto Alegre, Mercado Aberto, 1984. p. 41-2.
16 CARNEIRO, Edison. Op. cit., p. 48.17 RAMOS, Duvitiliano. A posse útil d a terra entre os quilombolas. Estudos
Sociais, Rio de Janeiro, (3/4): 396-8, dez. 1958.
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18 Idem, ibidem.19 Interessante se fazer um comentário sobre a inexistênciada pecuária entre
os palmarm os, já que, em quilombos de outra s regiões elaexistia. Um exem-plo é o do Quilombo do Ambrósio. Mais intrigante torna-se o fato ao saber-se que na região d a República de Palmares a pecuária era largamente pra-ticada.
20 FREITAS, Dedo. Op . cit., p. 44.21 Idem, ibidem, p. 38.22 Idem, ibidem, p. 38.23
RIBEIRO, Joaquim. Capítulos inéditos da História do Srasil. Rio de Ja-neiro, Organização Simões, 1954. p. 126-7.24 Idem, ibidem, p. 102.25 Esta influência poderá ser constatada e m CARNEIRO, Edison. Ne gros ban-
tos. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1937, especialmente a parte qu etrata dos candomblés de caboclos. Mais modern amente, Carmen Ribeiropublicou um trab alho muito interessante sobre o atual estado desse movi-mento d e interação: Religiosidade do índio brasileiro no candomblé da Ba-hia: influências africanas e europeias. Afro-Ãsia, Salva dor, (14): 60-80,dez. 1983.
26 ROCHA PITTA, Sebastião da. Op. cit., p. 296-7.27 CARNEIRO, Edison. Op . cit., p. 42-3.28 Idem, ibidem.29 Idem, ibidem.30 CONSTATT, Oscar. Brasil terra e gente (1871). Rio de Janeiro, Conquista,1975. p. 164.31 Apud ENNES, Ernesto, As guerras n os Palmares. Sã o Paulo, Nacional,
1938. p. 106.
O negro visto contra o espelho
de dois analistas
1. Um fluxo permanente Um vasto e profundo fluxo d e li -de estudos sobre O negro teratura sobre o negro brasilei-
ro, de todas as tendências e grausde importância, vem atestando, de maneira inequívoca, a relevânciaque assume, n a nossa sociedade competitiva e preconceituosa, o pro-blema das relações interétnicas. Esse fluxo bibliográfico e essa dis-cussão permanente, em vários níveis, que procuram suprir deelementos interpretativos e/ou fatua is aqueles que se interessam peloassunto é bem uma evidência de que a nossa intelligentsia está sensi-bilizada diante d o fato/problema e, de uma forma ou de outra, pro-cura oferecer elementos capazes de a judar a manipulação de umapráxis capaz d e resolvê-lo. Po r outro lado, o interesse de segmentose grupos e m relação ao assunto mostra como ele saiu d o nível de dis-cussão meramente universitária e académica para compor uma das
preocupações relevantes da sociedade brasileira. O assunto Negro che-gou, mesmo, a estar e m moda em determinada época. Estudiosos d etodas as tendências procuravam , à sua maneira, abordar o assuntoe oferecer, m uitas vezes, soluções de acordo com as suas preferênciaspessoais ou grupais.
Atualmente, essa curiosidade transformou-se em grande parteem interesse académico, especialmente n o plano de teses para a ob-
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188 O NEGR O VISTO CONTRA O ESPELHO DE DOIS ANALISTAS
tenção de títulos de professores o u a conquista de cátedras. Deixoude ser visto por muitos como problem a social e passou a ser encaradocomo tem a universitário. Ficou, assim, desvinculado daquelas razõesiniciais que imprimiram ao s primeiros trabalhos sobre o negro umethos interessado, operacional e participante.
Muitos desses estudiosos, pela s ua situação na estrutura da so-ciedade competitiva brasileira, especialmente ao nível de concordân-cia ideológica com os seus padrões norm ativos, procuram dar-lhe uma
solução (qua ndo a procuram) paternalista e filantrópica, fato que le-vou, por outro lado, a que se descurassem de maneira quase total dosproblema s teóricos e metodológicos capazes de desmitificar o assun-to, dando-lhe, assim, as premissas para q ue seja possível uma inter-ferência prática e dinâmica no plano de resolvê-lo através de pa-râmetros operacionais científicos.
Esse abandono (parcial ou total) dos problemas enunciados aci-ma tem, também, sua explicação na própria realidade étnica que es-ses estudiosos procuram interpretar. É que o problema do negro seentronca em outro: o problema do escravo.
A criação dessa imagem dicotômica (negro/esciavo) no bojo dasociedade competitiva que substituiu a escravidão e dos blocos inte-
lectuais, surgiu, portanto, como resposta alienada de uma sociedadealtamente conflitante a um problema polémico, pois o negro, trazidodo continente africano, era integrado, ou melhor, era coercivamenteintegrado em uma sociedade escravista. A imagem do escravo do pas-sado ficou automaticamente incorporada ao negro do presente. Oscientistas sociais ou estudiosos de um m odo geral que partiram paraanalisar essa realidade tinham, obrigatoriamente, de sofrer a influênciadessa situação.
Esse condicionamento do sujeito ao objeto veio dificultar du-rante muito tempo o seu esclarecimento. Isto porque a o abordar-seo problema do negro tinha-se, de forma subjacente, mas com impli-cações variáveis no nível de interpretação, a imagem do escravo, ohomem/coisa, qu e atuava de permeio, deformando e disfocando aimagem concreta do negro que se desejava retratar e conhecer.
Superando essa visão alienada está surgindo uma pr odução queparece mar car um novo nível na perspectiva de se conhecer a contri-buição do negro na formação do Brasil, contribuição que em partesurge das universidades e, de maneira significativa, dos grupos e en-tidades negras que se articulam dinam icam ente em várias regiões dopaís.
Na área universitária podemos citar os trabalhos de NapoleãoFigueiredo 1, no Pará, trabalhos de vários cientistas sociais da Uni-versidade Federal da B ahia 2 e, especialmente, a atividade neste sen-tido desenvolvida pela Universidade de São Paulo. Borges Pereira,ao expor o programa do D epartamento de Ciências Sociais, salientaque o interesse pelos estudos sobre o negro varia de área e que essestrabalhos estão praticam ente centrados na área de antropologia e epi-sodicamente na de sociologia. Afirm a ainda que na de ciência polí-t ica nenhum trabalho se propõe a explorar o tema". 3 Como vemoshá ainda uma falta de sintonia desses trabalhos com um interesse po-lítico em relação ao problema do negro. 4
Po r outr o lado, várias entidades negras têm dado contribuiçõese dinamizado esses estudos de form a não-acadêmica, traz endo a pro-blemática para um espaço mais próximo e polémico. Entidades co-mo o Movimento Negro Unificado, o Centro de Cultura Negra doMara nhão, o Centro de Estudos do Negro no Pará (este fundado em1890, sediado em Belém), o Grupo de Trabalho André R ebouças, oInstituto de Pesquisas da s Culturas Negras (IPCN), a Sociedade deEstudos da Cultur a Negra no Brasil (Secneb) e o Instituto B rasileiro
de Estudos Africanistas, entre outros, têm participado ativam ente nosentido de tirar a discussão do problem a do negro do nível de meraconstatação universitária, para dinamizá-lo rumo à sua solução.
Como vemos há toda uma reform ulação epistemológica em re-lação a o assunto que saiu do circuito fechado da s áreas académicaspara se incorporar ao cotidiano crítico de grandes camadas da popu-lação brasileira que são atingidas pelo se u núcleo de conflito. Recen-temente, refletindo essa preocupação crescente pelo assunto, apa-receram dois livros que analisam o escravismo no Brasil e na Af ro-América. Eles serão motivo de reflexão n o presente capítulo.
O primeiro, de K át ia de Queiroz Matoso 5 é, antes d e tudo, umlivro apaixonado pelo tema e pelos problem as p aralelos que são le-
vantados. Isto não o desmerece, pelo contrário. Não foi outro senãoMarx quem escreveu que o homem como s er objeto sensível é, poristo mesmo, um ser que padece , e por ser um ser que sente paixão,um ser apaixonado. A paixão é a força essencial d o homem q ue ten-de energeticamente para o seu objeto". 6 A autora interroga-se ini-cialmente se não será audácia da sua parte pretender ir ao encontrodos escravos brasileiros e enumera as razões do seu temor, colocan-do, em primeiro lugar, tratar-se de uma "multidão obscura que ja-mais teve voz própria, cujas sabedorias não são as nossas" e, em
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segundo, o fato d e querer "abordar u m tema tão amplo, de ura paístão vasto, nu m período tão extenso".
Por isto mesmo escreve que meu ensaio mim a-se desse duploesforço. Seu título, na voz passiva, não é uma figura d e estilo: imp licao desejo de adotar o próprio ponto de vista do escravo. Aponta a von-tade de acompanhar cada passo de sua vida individual e coletiva".
Como vemos, a autora assume conscienteraente a postura de le-var o seu discurso no mesmo nível do negro escravo e não sobre ele,
acima dele.A pa rtir desta posição sensível, a autora traça um painel histó-
rico/interpretativo daquilo que foi o regime escravista entre nós. Pro-cura, ao mesmo tempo, unir o problema do escravismo à herançacultural africana, mostrando como o primeiro fenómeno não conse-guiu sufocar as manifestações culturais daquela população que, m es-mo submetida ao mais odioso sistema de exploração, procurava drenose fissuras na estrutura através dos quais conseguia manter, mesmorema nipulando ou cam uflando , os seus padrões culturais funda men -tais. Dava-lhes uma função de resistência cultural.
A autora inicia o seu livro com um p ainel interessante e profun -do do mercado negreiro na África, mostrando de maneira convin-
cente as diversas formas através das quais o império português or-ganizava esse comércio: o tráfico como empreendimento privado, otráfico exercido em comum com outras atividades e o tráfico submis-so às normas do asiento. Acha a autora qu e houve um excepcionalis-mo no caso brasileiro, pois acredita ter ele escapad o ao clássico tráficotriangular, de acordo com a teoria de Eric W illems. Acreditamos, noentanto, que embora não tendo o mesmo comportamento do tráficotriangular d as Antilhas, não há como explicar a existência e prosperi-dade desse tipo de comércio no B rasil e a acum ulação de capitais nasmetrópoles sem os mecanismos da triangulação.
É verdade que ele não se manifesta de fo rm a tão clara e trans-parente como nas Antilhas. Mas, nas diversas fases do tráfico, nãopodemos explicar o crescente númer o de negros importados e, ao mes-mo tempo, a descapitalização permanente da Colónia, sem se con-cordar com o fato de que a nossa produção foi exportada em partesignificativa em troca do braço escravo. Se assim não fosse teríamosconseguido a acum ulação de capitais suficiente para que o ciclo capi-talista se completasse no Brasil no seu sentido clássico e não teríamosdesembocado no capitalismo dependente. Nos Estados Unidos, co-mo o tráf ico é extinto em 1808 e as proporções dele são bem menores
do que no Br asil, além de outros fatores, como o fato de ele ser colo-nizado pela nação capitalista mais desenvolvida da época, o tráficotriangular não teve proporções capazes de descapitalizar a quela na-ção. Sobre o tráfico triangular voltarei a insistir neste capítulo.
Kátia de Queiroz Matoso não fica, porém, apenas no nível deexplicação economicista. Pelo contrário. Procura , c om penetrante ar -gúcia, destacar certos aspectos sociopsicológicos q ue acompanharam
o processo. Faz, por isto, distinção entre o cativo africano e o escra-vo brasileiro.
Evidentemente qu e esta abordagem sutil (e nos parece inédita)não destrói o u dilui a visão sociológica da divisão d a sociedade brasi-leira da ép oca em duas classes fundam entais, a dos senhores e a dosescravos, mas abre perspectivas para entender-se o negro, ao ser cap-turado na África, como um ser embutido em uma cultura, e o s meca-nismos de defesa ao ser incorporado a uma sociedade estranha na qualos seus padrões cultura is são inteiramente negados e ele é engastadocomo coisa. Destacando a sobrevivência, no escravo, da sua interio-ridade como ser, a autora demonstra como o escravo pode atuar tam -bém como agente ativo do processo de dinâmica social, pois nãoperdeu a sua interioridade humana.
K átia de Queiroz Matoso, dentro deste esquema interpretativo,ao destacar as relações de produção e, ao mesm o tempo, os elemen-tos sociopsicológicos que permanecem no escravo, aborda outros pa-râmetros do escravismo brasileiro, alguns j á bastante estudados edebatidos como a taxa de mortalidade no tráfico, média de vida doescravo e, especialmente, taxa de mortalidade durante a viagem docativo africano no navio negreiro da África aos portos de desembar-que no Brasil. Narra a viagem de um navio negreiro e conclui:
Nessas condições a taxa de mortal idade a bordo é elevada. A v i d a édura no n a v i o para todos o s homens, os da tripulação e os escravos.Para estes calculou-se uma taxa média de mortal idade de 15 a 20%.N a verdade, os estudos quantitativos s ão quase inteir amente inexis-
tentes e estamos m al i n fo r m a d o s . No entanto, é possível estabelecercertas ordens de grandeza para os séculos X V I e X V I I , com o apoio decasos isolados, e para os séculos X V I I I e X I X , com a ajuda de estudosexemplares m as l i m i t a d o s a alguns anos. E m 1569, F r e i Tomé de Ma-cedo cita o caso de uma nave qu e transportava 500 cativos. Somenten u m a noite morreram 1 2 0 , ou seja, um quarto do carregamento (24%).E m 1 6 2 5 , o governador de A n g o l a , João Correia de Souza, e n v i a ao B r a s i lcinco navios, cada um deles com sua respectiva carga:
195 cativos dos quais 8 5 morrem (44,4%)220 cativos dos quais 126 morrem ( 5 7 )
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35 7 cat ivos dos quais 157 morrem (43,9%)14 2 cat ivos dos quais 51 morrem (35,2%)297 cativos dos quais 163 morrem (54,8%)
De uma carga total de 1 211 cativos somente 628 sobreviveram à tra-vessia (49,2%). E outros 68 morrem imediatamente após o desem-barque. 7
Temos dúvidas e reservas a fazer quanto à técnica de cálculoestabelecida pela autora , o que pode ser visto nas páginas seguintes
do seu livro. Queremos ressaltar,
no entanto, aquilo
que nos parece
mais relevante e transparente, ou seja, muitas vezes a autora, parajustificar uma posição maternalista em relação ao escravismo brasi-leiro, aproveita-se de situações atípicas, exceções do sistema, pa ra fazerinterrogações que revelam a sua perplexidade. Outias vezes afi rmacoisas desconcertantes como qua ndo diz que o escravo ao vender osseus serviços no merca do de traba lho é explorado e explorador ao mes-mo tempo.
Ora, o escravo, exatamente po r sê-lo, n ão pode, pela sua con-dição estrutural e jurídica a lienada, alugar os seus serviços para, comisto, conseguir uma taxa de lucro pessoal. Q uem o faz é o seu senhor,através de normas p or ele estabelecidas e que são transmitida s ao ca-tivo para serem cum pridas. O senhor sub-roga ou transfere ao escra-
vo um direito que lhe é inalienável. Po r isto mesmo o escravo nãopode alugar autonomamente os seus serviços. Quem os aluga, embo-ra sem participa r direta ou pessoalmente da transação, é o seu senhor,apesar de na transação ele não se encontrar presente. Tanto assim queas normas de serviço sã o estabelecidas pelo senhor e não por nenhu-m a organização de escravos e aquilo que o escravo recebe pelo traba-lho executado é, na sua totalidade, do seu senhor, o qual transferevoluntariamente ao escravo, em retribuição, uma parte do m esmo parasua subsistência pessoal pela qual, aliás, o senhor é responsável pa ramanter a máquina d e trabalho e m perfeitas condições operacionais.Se o e scravo de ganho transfere uma parte do que recebe da alimen-tação para poupança pessoal, isto n ão modifica, n o fundamental, a
essência da s relações da total subordinação ao seu senhor.
2. Quando O detalhe A autora a profunda o seu painelquer superar O conjunto de dúvidas e reflexões interroga-tivas, perguntando se o escravo que é também possuidor de escra-
vos será escravo ou senhor. Devem os, inicialmente, dizer que quan-do isto acontece em uma forma ção social escravista representa umasituação de exceção e é por isto incara cterística.
Ninguém caracteriza uma formação econômico-social pelas ex-ceções como seria o caso acima. E quando a autora destaca este deta-lhe que surgiu, muito esporadicamente, nas brechas do sistema es-cravista (tanto no antigo como no moderno) está assum indo uma po-sição m etodológica (e teórica) de um relativismo absoluto e equivo-cado, pois se fôssemos analisar um tipo de formação social semdistinguir aquilo que lhe é fundamental do que é acidental, irrelevan-te e tópico, não haveria possibilidades de uma ciência social.
No caso o que se deve analisar não é o nível de exploração doescravo, a situação m elhor ou pior no nível de tratam ento senhorialno processo da extração do sobretrabalho do escravo. O que se devedestacar é que o escravo é um ser estruturalmente al ienado, isto é,ele pode inclusive possuir bens pessoais e até pequenas propriedades,ma s o que ele não possui e não pode possuir enquanto escravo é oseu próprio ser, que é propriedade de um terceiro. Esta condição d ealienação total da pessoa do escravo, ou seja, a imp ossibilidade d eele possuir o seu próprio corpo, que funciona como mercadoria de
um proprietário estranho, é que configura a essência do sistema es-cravista e não possíveis diferenças no nível de estratificação da pes-soa do escravo dentro desse sistema.
Outro aspecto que queremos destacar no livro é exatamente es-ta posição um tanto tímida, e ao mesmo tempo dúbia, sobre a essên-cia das relações de trabalho que se estabeleceram no Brasil durantea vigência da escravidão. Diz a autora que:
as relações d e produção não bastam, pois, para d e f i n i r a escravidão,elas l i m i t a m abusivam ente tudo a q u i l o que perm ite situar essa massade i n d i v í d u o s nã o obrigatoriamente participante de um modo d e f i n i d ode produção, m as que, ao contrário, sã o adstritos a tarefas e funçõesdas quais depende a própria existência da classe dominante, n u m a in-versão do relacionamento habitual entre exploradores e explorados.8
Aqui desejamos tecer alguns comentários de ordem teórica.Acreditamos que a autora, como aliás acontece am iúde entre os nos-sos cientistas sociais, ao procurar situar certas particularidades de co-
. mo o escravismo moderno manifestou-se no Brasil, cai no erro desubstituir o conjunto pelo detalhe. O que é fundamental pelo que ésecundário. N o entanto, o sistema escravista, como modo d e produ-ção, é caracterizado, no fundam ental, pelas suas relações de pro du-
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cão. O caso concreto do Brasil não foge à regra, mas, pdo contrário,a confirma. Sobre a situação de estrutural alienição do escravo dizMarx:
O trabalho nem sempre foi trabalho assalariado, isto é, trabalho livre.O escravo não vende a sua força d e trabalho a» possuidor de escra-
vos, assim como o boi não vende o produto do seu trabalho a o campo-nês. O escravo é vendido, com sua força de trabalho, de uma v ez parasempre a seu proprietário. É uma mercadoria que pode passar das mãosde um proprietário para as de outro. Ele mesmo éuma mercadoria, masa sua força de trabalho não é sua mercadoria.'
Desta forma, as tarefas e funções que a autora vê como modifi-cadoras do conceito fundamental de escravo como coisa surge da pers-pectiva de que a simples diversificação da divisão do trabalho dentroda estrutura escravista, divisão que se verifica apenas internamenteno espaço social da classe escrava, possa modificar, no fundamental,a essência da s relações entre senhor e escravo. O fato de que, dentrodesta estrutura alienada e alienadora, o escravo ainda conserve os ele-mentos humanos do seu ser, embora social e economicamente seja
tido como coisa, não nega o que dissemos acima. Pelo contrário, con-cordamos com os termos em que a autora desenvolve em seguida oassunto, mostrando as vertentes psicológicas dessa preservação. Istocomprova que, mesmo socialmente alienado, o escravo ainda tinhacondições de reencontrar a sua humanidade existencial como ser, semo que ele deixaria de participar do processo de mudança social, detomar consciência da sua situação e contra el a lutar. E a história, den-tro da estrutura escravista, não teria mais dinâmica, sem sua partici-pação. O que não se pode negar (ao concordar com isto) é que, defato, as relações de produção determinam, no fundamental, as rela-ções de trabalho e propriedade, as relações sociais básicas entre asclasses, grupos e indivíduos, isto é, no caso em questão, as relaçõesentre senhores e escravos.
Neste sentido, no sistema capitalista há, também, no seio da clas-se operária, de forma mais complexa e diferenciada, essa divisão dotrabalho entre os seus membros. Não é, porém, essa diversificaçãoque caracteriza o sistema capitalista, o modo de produção capitalis-ta, mas aquilo que lhe é fundamental, isto é, o trabalhador como do-no de uma mercadoria (a sua força de trabalho) que é vendida aocapitalista, detentor dos meios de produção e do capital. A mobilida-de social do escravo (com as exceções óbvias de quando ele compra-va alforria ou ela lhe era concedida pelo senhor) somente funcionava
DA DIVISÃO APAIXONAQA À RIGIDEZ CIENTIFICISTA 195
dentro do espaço social escravo. A sociedade escravista, uma socie-dade de classes fechadas, não permitia que houvesse a possibilidadede que essa mobilidade fosse além da fronteira estabelecida pela rigi-dez do sistema.
É exatamente por não compreender a essência sociológica des-
sa dicotomia rígida que a autora afirma que:Os problemas e tensões se apresentam no interior do mundo dos es-cravos pelo menos com a mesma intensidade que entre os senhores.10
Não sabemos em quais fontes a autora se apoiou para fazer talafirmação. A nós, no entanto, nos parece uma afirmativa temeráriae sem nenhum apoio, pelo menos do nosso conhecimento, na pesqui-sa empírica. Tal afirmativa nivela, teoricamente, todos os níveis decontradições do sistema escravista, equiparando aquela que era fun-damental (existente entre senhores e escravos) às possíveis divergên-cias ocasionais existentes entre os diversos estratos dos negros escravosou aquelas q ue poderiam surgir entre os diversos segmentos d a classesenhorial.
3. Da visão apaixonada Se o primeiro livro que comenta-à rigidez CÍentif icista mós pode ser considerado obra de
paixão e ciência, o de Ciro Flama-rion Cardoso é aquilo que se pode chamar u m trabalho elaboradode acordo com uma objetividade científica quase perfeita. Segueaquela postura neopositivista, a qual coloca o cientista social equi-distante, frio e teoricamente neutro em face d o fato, problema ou pro-cesso observado. Armado de vasto fichário bibliográfico, sabendomanipulá-lo c om maestria, realiza um trabalho erudito dentro daquiloque se poderia chamar de erudição académica. Neste particular a suaobra é perfeita. Ele poderia colocar como epígrafe a mesma frase deMax Weber segundo a qual "a ciência é, atualmente, uma 'vocação'alicerçada na especialização e posta a serviço de uma tomada de cons-ciência de nós mesmos e do conhecimento d as relações objetivas".
O autor procura estudar em detalhes, embora o livro seja desíntese, a escravidão na área denominada Afro-América, ou seja, aregião do Caribe, boa parte do Brasil, porções relativamente reduzi-das da América espanhola (costa do Peru, partes do que são hoje Ve-nezuela e Colômbia) e sul dos Estados Unidos. Vê-se, portanto, q ue
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há u m a abrangência muito grande na temática paraque ele a desen-volva em apenas l J O páginas de texto, o que somente foi possível pe-lo grande domínio que possui do assunto e , a o mesmo ternpo, um adidática respeitável.
Logo no início o autor, procurando resguardar a sua posiçãorigorosamente científica e objetiva, cria dúvidas quanto ao critériode alguns trabalhos surgidos recentemente sobre a escravidão. Para
ele, esses traba lhos são excessivamente ma rcados por ideologias con-flitantes: 'etnonacionalismo', marxismo de diversa coloração, negri-tude, black power".
Antes disso, convém notar, o autor cham a a atenção para aque-les interpretadores convencionais da escravidão que
consciente ou inconscientemente, assumiam o ponto d e vista dos ad-ministradores e dos senhores d e escravos. Ainda em 1968, um histo-riador da colonização francesa afirmava que o governador MauriceCointet "teve dificuldade e muito mérito em voltar a prender à terra,em 1794, os ex-escravos da Guiana Francesa, libertados pela Conven-ção em 1794, submeteu-os de novo aos seus senhores, qu e receberamde volta "o direito de infligir-lhes torme ntos fí sicos (Devèse, p. 68-9.)
Invocando, em seguida, o apelo de R. Hofstadlter para que aescravidão fosse escrita, em grande pa rte do ponto de vista do escra-vo, reporta-se ao perigo de distorção e exagero da queles que se colo-cam nesta posição e afirma:
L. Manigat (p. 420-38) mostrou, po r exemplo, que quase todas as análi-se s disponíveis sobre a revolução do Haiti estão excessivamente mar-cadas por ideologias conflitantes: "etnonacionalismo", marxismo dediversa coloração, negritude, b lack power . N o Brasil nã o es tarão cer-tos autores incorrendo em alguns exces sos interpretativos ufanistassemelhantes aos do já clássico escritor d e T rinidad e Tobago C. L. R.James (The Black Jacobins), em livros sobre o s quilombos e a s revol-tas negras? 12
É evidente que, ao se fazer uma revisão da história social daescravidão onde se encontram fortes barreiras ideológicas conserva-doras, é possível que se pratiquem alguns excessos que surgem exa ta-mente da impossibilidade de o cientista social conseguir dados fatuaissuficientes que o supram de informações compactas capazes de de-monstrar o sentido geral e progressivo do processo e a sua essênciasociológica. Esses excessos são, por ém , sup ridos à medida que as áreasde informação sobre a escravidão ficam franqueadas. Isto é, aquiloque poderia ser classificado de excesso ufanista nada mais é do que
a certeza do sentido geral do p rocesso e da falta de detalhes secundá-rios. Neste contexto eu chamaria a isto mais imaginação sociológicacomo quer W . Mills e não ufanismo. Não há, ao nosso ver, um mo-vimento pendular entre a prim eira tendência tradicional e a segundarevisionista mas uma espiral rumo ao conhecimento em favor dasegunda.
Esta posição excessivamente cautelosa do autor, p or isto, paranós, nada mais é do que um reflexo em diagonal da influência da bi-bliografia tradicional sobre o assunto e que visa negar, basicamente,a importância das lutas dos escravos (no Brasil e alhures) no proces-so de transformação do escravismo. Porque o que está acontecendoé exatam ente o contrário. À m edida que os historiadores e os cientis-tas sociais e pesquisado res militantes aprofund am -se em pesquisas ori-ginais constatam a participação, em nível cada vez maior, do escravonegro nesse processo dinâmico. Parece-nos que o desconhecimentoou à negação dessas lutas está sendo destruído, gradativam ente, porum a reavaliação q ue substitui a antiga ideologia d o escravo dócil po rum a realidade oposta. É a realidade objetiva destruindo a mitifica-
ção ideológica das classes dominantes.As pesquisas de um Décio Freitas sobre Palmares, de JosemirCamilo de Melo, em Pernambuco (século XIX), de Vicente Salles,no Amazonas, de Pedro Tomás Pedreira, na Bahia, de AriosvaldoFigueiredo, em Sergipe, de W alter Piazza, em Santa Catarina, de Wal-demar de Alm eida Barbosa, em Minas Gerais e de Mário Maestri Fi-lho, no Rio Grande do Sul, vêm comprovando que, ao invés de umaposição ufa nista desses historiadores, a ntropólogos e sociólogos, oque está havend o é uma inversão total do processo interpretativo dahistória social d o Brasil, apagado por uma geração de estudiosos, elessim ufanistas, que desejavam apresentar (contra os fatos) a nossa es-cravidão como imune às contradições e à violência, naturais ao siste-ma escravista.
Para simplificar, na esteira do nosso raciocínio, queremos lem-brar q ue outro aspecto, também colocado sob reserva pelo a utor d olivro, está també m sendo reestudado de um ângulo qu e esclarece um asérie de faces do prisma. Referimo-nos à repercussão da revoluçãodo Haiti entre os escravos negros. 13
Quem compulsa documentos de arquivo no Brasil vê sempre,como um referencial permanente, quer da parte das autoridades daColónia, quer d a Metrópole, o perigo que representou essa revolu-ção, os cuidados necessários para que ela não fosse divulgada, medi-
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das tomadas diante do perigo e recomendações sobre estratégias ideo-lógicas e repressivas para bloquear essa ressonância. Ma s além dessadocumentação de arquivo (no folclore nordestino h á também remi-niscências dessa memória), recentes pesquisas do professor Luiz R.B. Mott demonstram como a revolução haitiana teve repercussão mui-to mais relevante entre os escravos brasileiros do que supunha m atéagora o s historiadores tradicionais. Mostra como, era 1805 (um anoapenas, portanto, após a proclamação da independência do Haiti),no Rio de Janeiro
o Ouvidor do Crime mandara arrancar dos peitos de alguns cabras ecrioulos forros o retraio de Dessalines Imperador dos Negros da Ilhade São Domingos. E o que é mais notável era que estes mesmos ne -gros estavam empregados na s tropas da Milícia do Rio de Janeiro, on-de manobravam habilmente a arti lharia.
Ainda, segundo o mesmo autor,
Em 1808, na sua famosa "Análise sobre a justiça do com ércio do res-gate da costa da África", o bispo Azeredo Coutinho apontava os "no-vos fi lósofos" que se diziam defensores da humanidade oprimida, comoos culpados não só pela Revolução Francesa, mas também pela carni-f ic ina da Ilha de São Domingos. Este temor das c lasses dominantes
fica explícito em docume nto secreto escrito por um agente francês aD. João V I, redigido en tre 1823 e 1824, no qual o seu autor af i rma qu e"deve-se demonstrar a s desgraças a que certamente se expõem as pes-soas brancas, principalmente brasileiros brancos, não se opondo à per-seguição e aos massacres que sofrem os portugueses europeus, poisembora havendo aparentemente n o Brasil s ó dois partidos (o l iberal eo conservador), existe também um terceiro: o p artido dos negros e daspessoas de cor, que é o mais perigoso pois trata-se do maior numeri-camente falando. T al partido v ê co m prazer e com esperanças cr imino-sas as dissenções existentes en tre os brancos, os quais, dia a dia, têmseu número reduzido.Todos os brasileiros, e sobretudo os brancos, não percebem, suficien-temente, que é tempo de se fechar a porta aos debates políticos, àsdiscussões constitucionais? Se se continua a falar dos direitos dos ho-mens, de igualdade, terminar-se-á por pronunciar a p alavra fatal: l iber-
dade, palavra terrível e que tem muito mais forç a num país de escravosdo que em qualquer outra parte. Então, toda a revolução acabará noBrasil com o levante dos escravos que, quebrando algumas algemas,incendiarão as cidades, os campos e as plantações, massacrando osbrancos e fazendo deste magnífico império do Brasil uma deplorávelréplica da bri lhante colónia de São Domingos .14
Se este era o temor das classes dominantes escravistas e de suasautoridades, outro era o comp ortamento do s negros e pardos os quais,
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sem temerem represálias, organizavam-se para lutar contra a escravi-dão. Na vila de Laranjeiras, Sergipe, os negros colocaram em todaa cidade, pregados em muros, pasquins também nas portas e locaismais destacados, colados c om cera de abelha, com os seguintes dize-res: "Vivam mulatos e negros, morram os marotos e caiados".
Ainda em Sergipe, documento enviado ao Governador das Ar-ma s descreve:
Uma pequena faísca faz um grande ncê ndio. O incêndio já foi lavrado.No jantar que deram nas Laranjeiras os "Mata Caiados" se fizeram trêssaúdes: a primeira à extinção de tudo quanto é d o Reino, a quem cha-mam de marotos ; a segunda a tudo quanto é branco no Brasil, a quemchamam de caiporas ; a terceira à igualdade de sangue e de direitos(...) Um m enino R... irmão de outro bom menino, fez mu itos elogios aoRei do Haiti, e porque não o entend iam, falou ma is claro: São Domin-gos, o Grande Sã o Domingos.ls
Outro documento importante, também transcrito po r Luiz R .B. Mott, refere-se ao temor das autoridades de urri possível contágiodireto da revolução haitiana no Brasil. Trata-se de um ofício do De-sembargador Encarregado da Polícia da Corte do Rio de Janeiro, Pe-dr o António Pereira B arreto, dirigido ao ministro da Justiça. Inform a
o policial que os negros de São D omingos desembarcaram no BrasilDiz ele:
Relativo aos pretos da Ilha de São Domingos que aqui existem , infor-mo que ordenei ao Comandante da Polícia a sua apreensão. Conseguiu-se prender Pedro Valentim, que residia na Hospedaria das Três Ban-deiras. Tenho continuado na diligência de apreender o outro, que constaque é clérigo, e fui informado que foi visto ontem na rua dos Tanoei-ros, em meio de muitos pretos, não sendo porém encontrado quandofo i mandado prender.16
Em outro trecho do livro que estamos comentando, o autor, sur-preendentemente, generaliza de forma peremptória um problema du -vidoso em relação às suas conclusões enfáticas. É quand o a firma que
na sociedade hispano-am ericana eram os índios os elementos que ocu-pavam o setor mais explorado e humilhado da e strutura social: em com-paração com eles, os escravos e l ibertos de origem africana estavamem situação melhor. Acontece, porém, que recentes pesquisas em torno do assunto
não confirma m de forma tão categórica e genérica esta afirm ativa doautor. 18 Pelo menos no Peru as pesquisas de Emílio Ha rth-Terré pro-va m exa tamente o contrário. Segundo essas pesquisas, índios perua -
200 O NE GR O VISTO C O NT R A O E SPE L H O D E DOIS ANALISTAS DA VISÃO APAI X O NADA A R I GI DE Z C I E NT I FI C I ST A
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nos dedicaram-se a trafic ar escravos negros e, mais ainda, a comprá-los para trabalharem em seus teares e em outros géneros d e ativida-de. Suas pesquisas demonstram, por outro lado, q ue o tráfico de es-cravos negros pelos índios peruanos (inclusive po r comunidadesindígenas) em três séculos de vice-reinado fica fartamente evidencia-do. A extensão desse tráfico e dessa apropriação de negros por partede índios que se situavam, ao contrário do que afirma o autor, emestratos superiores na sociedade do Peru colonial estásendo verifica-
da. Essas pesquisas, ainda pouco divulgadas, marcam, no Peru, umaabertura nova e que segue de perto a posição de brasileiros que pro-curam reformular a história d o escravismo, fugindo às pré-noções deuma ideologia paternalista e sedutoramente consagrada.
Um a série de outras questões levantadas no livro nós gostaría-mos de debater m ais profundamente, o que fica p ara outro local. A l-gumas afirmações categóricas, como a insuficiência da s fontes em quese basearam Marx e W eber, a correção feita a essa insuficiência pelacontribuição que estudiosos modernos deram no sentido de corri-gir ou complem entar esses autores deveriam ser explicitadas no tex-to, o que surpreendentemente não acontece.
Ainda questionaria o radicalismo crítico em relação à obra d e
Eric W il lems, que me pareceu exagerada e ao mesmo tempo não-sustentável no seu conjunto. D epois d e refutar categoricamente os da-do s estatísticos ap resentados p or W illems no seu livro clássico, afir-ma que os recursos estreitos apresentados por W illems para de-monstrar a s conexões entre capitalismo e abolição foram demolidossem apelação". Volta-se, em seguida, para a obra de lanni, concor-dando com a sua tese de que "a vinculação capitalismo/abolição nãodeve ser limitada ao influxo do capitalismo metropolitano: precisaigualmente levar em conta os elementos internos"'. Procura argumen-tar sobre a influência da revolução do Ha iti no Caribe, que ninguémpode negar, e mesm o no sul dos Estados U nidos, como sustenta Ge-novese, afirmando que:
É completamente falso que a ideologia dos líderes daquela revoluçãotenha tido a in f luênc ia que lhe empresta Genovese. Sem esquecer queo tipo de situação que instalaram no Haiti durante os seus governosrepresentava para os negros algo quase equivalente à própr ia escrav i-dão ( longas horas de trabalho diário, vinculação forçosa a uma planta-
tion específica, castigos físicos). Não vemos por que os escravos doresto do continente, mesmo se in formados das ideias de Toussaint eseus sucessores (o que é duvidoso), se sentiriam compelidos a lutar
pelos planos, como os daqueles líderes, e m lugar de o fazer, p or exem-plo, pela extensão da pequena economia cam ponesa
O que acho que devemos levar em conta na reflexão de um pro-cesso tão complexo como este é que os escravos negros, ao saberemda revolução haitiana, nã o raciocinavam em termos de projetos políti-cos e/ou económicos concretos, mas a viam como uma ideologia delibertação o u utopia d e libertação, isto é , mesmo não tendo conheci-mento do seu cotidiano positivo ou negativo, incorporavam ao seu uni-
verso essa revolução sem maior análise, dando-a como o detonadorda s suas forças para libertá-los da escravidão, sem compará-la a possí-veis projetos económicos. Ver essa influência através de uma raciona-lidade é não compreender o seu significado social. Seria desejar -se umaracionalização weberiana no raciocínio radical do escravo.
Por outro lado, parece-me que o fundamental na obra de EricW illems não é a análise da conexão capitalismo/abolição, mas o con-ceito d e tráfico triangular. Mesmo com as possíveis deficiências esta-tísticas o fato é inquestionáv el. Aliás, o autor, em outro local, escreveuco m justeza sobre o assunto, afirm ando:
A principal obra de E. Willems, Capitalisme et esclavage publicada em1943, constitui um trabalho pioneiro e uma tentat iva de desmist i f ica-
ção. O autor procura explicar, mais do que o func ionamento do siste-ma escravista nas colónias — aspecto do problema que também nãodeixa de ser analisado —, o nexo ex is tente entre a escravidão, o t ráf i -co negreiro e o conjunto da economia inglesa: para isto, estuda seupapel na formação do capital que financiou a revolução industrial eo papel que cumpr iu o capitalismo industrial constituído na posteriordestruição desse mesmo sistema escravista. No decorrer dos capítu-los, assistimos às or igens da escravidão negra no Caribe, ao desen-volv imento do comérc io triangular, ao entre laçamento dos interessesantilhanos e britânicos ao esplendor de Bristol, de Liverpool, de Glas-gow, baseado no tráfico negreiro, à acumulação primitiva do capital,premissa da revolução industrial e, tudo isto com uma documentaçãoconsiderável, bastante detalhada e precisa. (...) Foi considerável a im-portância deste livro para a desm ist i f icação da historiografia colonialtradicional, na medida em que destrói o s velhos mitos e combate es -
pecia lmente a deformação qu e cons is te em cons iderar que a escravi-dão surgiu do racismo ou de incapacidade do homem branco paratrabalhar sob o sol tropica l.20
Em outro tr echo, C iro Flama rion C ardoso escreve conclusi-vamente:
Wil lems foi acusado de postular explicações economicistas . É pos-sível que se tenha equivocado em algumas expl icações, mas não há
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202 O NE G RO VISTO CONTRA O ESPELHO DE DOIS ANALISTAS NOTAS E REFERÊNCIAS B I B L I O G R Á F IC A S 203
grande dificuldade em desculpá-lo se levarmos em conta o caráter pio-neiro de sua obra.21
Com o que estamos plenamente de acordo.
Notas e referências bibliográficas
1 Ver por exemplo: FIGUEIREDO, Napoleão. Presença africana na Amazó-nia. Afro-Ásia, (12): 145 et seq., 1976.
2 Devemos destacar em particular os trabalhos de Luiz Mott, Yeda Pessoade Castro, W aldir Freitas d e Oliveira, J. J. Reis, Vivaldo da Costa Lima,Pierre Verger e da própria Kátia de Queiroz Matoso.
3 BORGES PEREIRA, João Batista. Estudos antropológicos da s populaçõesnegras na Universidade de São Paulo. Separata da Revista de Antropolo-gia, São Paulo, (24): 63, 1981. Afirma Borges Pereira no seu texto: as-sim, pode-se afirmar que, atualmente, estes estudos estão sendo desen-volvidos sistematicamente na área da antropologia e episodicamente na desociologia, ao passo que na área de ciência política nenhum trabalho sepropõe a explorar o tema". Deste programa da USP já foram editadosaté agora (1986) os seguintes volumes pela Faculdade de Filosofia, Letrase Ciências Humanas: Renato S. Queiroz: Caipiras negros no vale do Ri-
beira: u m estudo d e antropologia económica, 1983; Carlos M. H. Serra-no : Os senhores da terra e os homens do mar e Antropologia po -lítica de um reino africano, 1983; Irene Maria F. Barbosa: Socializaçãoe re lações rac iais: um estudo de famí l ia negra em Campinas, 1983; Solan-ge M. Couceiro: O negro na televisão de São Paulo: um estudo de relaçõesraciais, 1983; Yeda Marques Britto: Samba na cidade de São Paulo(1900-1930): um exercício de resistência cultural, 1986 e Ana Lúcia E. F.Valente: Polí t ica e relações rac iais — os negros e as ele ições paulistas de1982.
4 Por outro lado, uma produção não-acadêmica vem questionando do pon-to de vista político a situação do negro, como os trabalhos de Abdias doNascimento, Martiniano J. da Silva, Jacob Gorender e Luiz Luna paraexemplificar alguns.
5 MATOSO, Kát ia d e Queiroz. Se r escravo no Brasi l . S ão Paulo, Brasilien-
se, 1982.6 MARX, Karl . Manuscri tos económicos e filosóficos. São Paulo, Abril,1978. p. 41.
7 MATOSO, K átia de Queiroz. Op. cit., p. 48.8 Idem, ibidem, p. 41.9 MARX, Karl. Trabalho assalariado e capital. In: & Engels, F . Obras
escolhidas. São Paulo, Alfa Õmega, s.d. v. l, p. 63.10 MATOSO, Kátia de Queiroz. Op. cit.
11 CARDOSO, Ciro Flamarion S. A Áfro-América: a escravidão n o NovoMundo. São Paulo, Brasiliense, 1982.
12 Idem, ibidem.13 Para se ter uma visão da conexão da s lutas do s escravos brasileiros com
as de outros países v er MOURA, Clóvis. Q ui lombos: resistência ao escra-vismo. São Paulo, Ática, 1987.
14 MOTT, Luiz R. B. A revolução haitiana e o Brasil. Mensário d o ArquivoNacional, Rio de Janeiro, 13 (1).
15
MOTT, Luiz R. B. Loc. cit.16 Idem, ibidem.17 CARDOSO, Ciro Flamarion. Op. cit.18 Estamos nos referindo ao trabalho de Emílio Hardt-Terré, especialmente
o seu livo Negros e índ ios — un e stamento soc ial ignorado de i Peru colo-nial . Lima, Editorial Juan Mejía Baça, 1973. Suas pesquisas no particularcomeçaram bem antes, tendo-se notícia de uma intitulada "La Ciudadelade Huadca", publicada no jornal El Comercio, datada de 1960. De ummodo geral, porém, evidencia-se hoje que a situação do escravo negro, pas-sada a fase genocídica da ocupação e conquista, era inferior à do índio.Basta que se vejam as datas da abolição da escravidão indígena e negraem toda a Am érica Latina. A primeira precedeu sempre à segunda. Quan-to à América do Norte, Eugene Genovese escreve: os contatos entre ne-gros e índios incluíam a posse de escravos, por estes últimos, bem comoa m iscigenação. Dur ante as décadas de 1820 e 1830 os índios figurava m
entre os m aiores senhores de escravos da Geórgia e, subsequentemente,Greenwood Leflore, o chefe Choctaw mestiço de branco, notabilizou-secomo um dos m aiores fazendeiros do Mississipi, com quatrocentos escra-vos. John R oss, o famoso chefe C herokee, possuía cerca de cem escravosem 1860. Por volta dessa data os escravos negros representavam 12,5%da população do território indígena, apesar da m aioria viver em pequenasfazendas. Alguns índios, sobretud o os Chicasaw, passavam por senhoresimpiedosos, mas a maior parte deles gozava entre brancos e negros de umareputação de generosidade". (GENOVESE, Eugene. Da rebelião à revolu-ção. São Paulo, Global, 1983.)
19 CARDOSO, Ciro Flamarion. Op. cit.20 Idem, O modo de produção colonial na América. In: SANTIAGO, Té o
Araújo (org.). América colonial . Rio de Janeiro, Palias, 1975. p. 98-9.21 CARDOSO, Ciro Flamarion. Loc. cit.
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IIIA imprensa negra
em São Paulo
1. Razões da A chamada imprensa negra de Sãoexistência de Paulo, pouco conhecida e divulgada,uma imprensa negra sendo apenas relacionada em circuitos
universitários abarca um período q uevai de 1915, quando surge O Menel ick , até 1963. Essa extensão deatividades no tempo, bem como o papel social e ideológico que de-sempenhou na com unidade negra da época em que existiu, vem colo-car em evidência e discussão a sua importância e, ao m esmo tempo,indagar por que em um país que se diz uma democracia racial há ne-cessidade de uma imprensa alternativa capaz de refletir especificamenteos anseios e reivindicações, mas, acima de tudo, o ethos do universodessa comunidade não apenas oprimida economicamente, ma s dis-criminada pela sua marca de cor que os setores deliberantes da socie-
dade achavam ser estigma e elemento inferiorizador para quem aportasse.Pouco conhecida e não incluída nos programas das escolas de
comunicação como um ca pítulo a ser estudado e interpretado 1 a im-prensa negra ficou na penumbra, como se fosse pouco significativa.A própria História da imprensa no Brasil , de Nelson W erneck Sodré,não a registra. 2 A sua importância foi subestimada e desgastada poruma visão branca da imprensa, que marginalizou os jornais negros
RAZÕES DAEXISTÊNCIA DE UMA IMPRENSA NEGRA 205
impressos na época. Assim como o negro fo i marginalizado social,económica e psicologicamente, também foi marginalizado cultural-mente, sendo, po r isso, toda a sua p rodução cultural considerada sub-produto de uma etnia inferior ou inferiorizada.
Um a imprensa que tem circulação restrita e penetração limita-da à comunidade a que se destina irá exercer um a função social, p olí-tica e catártica durante a sua trajetória, mudando de conotaçãoideológica com a passagem do tempo, conforme veremos oportu-namente.
Durante todo o tempo em que a imprensa negra circulou, atra-vés de jornais de pequena tiragem e duração precária, as atividadesda com unidade negra de São Paulo ali se refletiam, dando-nos, porisso, um painel ideológico e existencial do universo do negro. Nelase encontram estilos de comp ortamento, anseios, reivindicações e pro-testos, esperanças e frustrações d os negros paulistas. É uma trajetó-ria longa, dolorosa m uitas vezes, a desses jornais que praticamentenão tinham recursos para se manterem p or m uito tempo, mas sem-pre exprimindo, de uma form a ou de outra, o universo da comunida-de. Lá estão as festas, aniversários, acontecimentos sociais; lá está
o intelectual negro faz endo poesias; lá estão os protestos contra o pre-conceito de cor e a marginalização do negro. Nessa trajetória refletem-se as inquietações da com unidade e lá se encontram os conselhos pa-ra o negro ascender social e culturalmente, procurando igualar-se a obranco.
A preocupação com a educação é uma constante. O negro deveeducar-se pa ra "subir n a vida", conseguir demonstrar que ele tam-bém pode chegar aos mesm os níveis do branco através do aprim ora-mento educacional. Para isso, deve deixar os vícios como o alcoolismo,a b oémia, deve abster-se de praticar arruaças em bailes, deve ser ummodelo d e cidadão. Em quase todas a s publicações é visível a preo-cupação com uma ética puritana capaz de retirar o negro da sua si-tuação de m arginalização. Daí haver, em muitos deles, a condenação
aos excessos em festas de negros que eram tidas pelos brancos comocentro de corrupção e de desordens. O s jornais servem, portanto, pa -ra indicar, a través de regras morais, o com portam ento que deveriamseguir os membros da comunidade negra.
Evidentemente que há variações de ideologia ou de posição emface d a sociedade global. Levando-se em conta que o primeiro jor-nal, O Menel ick, é de 1915 e o último, Correio d'Ébano, é de 1963,não é para ficarmos surpreendidos com as diferenças do enfoque de
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206 A IMPRENSA NEGRA EM SÃO PAULO
detalhes ou mesmo discordâncias de posições ideológicas. Mas o nú-cleo básico d o pensamento é o mesmo: a posição d o negro diante domundo d os brancos. Algumas vezes, eles assumem un caráter reivin-dicativo, outras vezes, um conteúdo p edagógico e moral, ma s sem-pre procurando a integração do negro.
2. Uma trajetória Roger Bastide, que estudou a imprensa ne-de heroísmo gra em São Paulo, fez a sua primeira pe-
riodização. Para ele, a fase inicial vai de1915, com O Me nel ick, até 1930. A segunda começa em 1930 e vaiaté 1937, ano-limite da sua pesquisa. Para ele, o segundo períodocaracteriza-se pela passagem "da reivindicação jornalística à reivin-dicação política". 3 N o final do segundo período, de fato, o jornalA Voz da Raça assume posição política tra nsparente, pois represen-tava o pensamento da F rente Negra Brasileira que reivindicou e con-seguiu ser registrada como partido.
Da p rimeira fase, o mais representativo foi O Clarim da Alvo-
rada (1924) que desempenhou forte e expressiva influência no meionegro. Fundado por José Correia Leite e Jayme Aguiar, ficou sendoo mais representativo jornal negro até o a parecimento de A Voz daRaça. Sobre a sua fundação assim se expressou Jayme Aguiar, quefaleceu pouco tempo depois desta entrevista:
Os negros tinham jornais das sociedades dançantes e esses jornaisdas sociedades dançantes só tratavam dos seus bailes, dos seus as-sociados, os dlsse-que-disse, as críticas adequadas como faziam osjornais dos brancos que existiam naquela época; jornal das costurei-ras, jornal das moças que trabalhavam n as fábricas etc. O negro fica-va de lado porque ele não tinha meios de comunicação. Então esse meiode comunicação foi efetuado através dos jornais negros da época. Sãoesses jornais que nós conhecem os e tratavam do m ovimento associa-tivo das sociedades dançantes. O Xauter O Bandeirante O Menel ickO Alfinete O Tamoio e outros mais. O Menelick foi um dos primeirosjornais associativos q ue surgiram em São Paulo, criado pelo poeta ne-gro Deocleciano Nascimento, falecido mais ou menos há oito anosatrás*. Esse O Menelick por causa da época da guerra da Abissíniacom a Itália, teve repercussão mu ito grande dentro de São Paulo. To-do negro fazia questão de ler O Menelick. E t inha também O Alfinete.Pelo título, os senhores á estão vendo: cutucava os ne grinhos e as ne-grinhas... Depois, então, é que surgiram os negros que queriam coisade mais elevação, de cultura, de instrução e compreensão para o ne-
* O depoimento f oi gravado em 15 de junho de 1975.
UMA TRAJETÓRIA DE HEROÍSMO 207
gro. Então surgiram os primeiros jornais dos negros dentro de um es-pírito de atividade profund a. M odéstia à parte, eu e o Correia Leite, a6 de janeiro de 1924, fundamos O Clarim.
O Clarim em primeiro lugar, chamava-se simplesmente O Clar im. Ma sexistia, como existe ainda hoje em Matão, O Clarim o grande jornalespírita. A redação de O Clarim era a minha casa, na rua Ruy Barbosa.Nós publicávamos o jornal com o pseudónimo de Jin de Araguary e Lei-te. Foi um aesp écie de hieróglifo que formamo s, para não aparecermoscomo jornalistas. Depois, este jornal foi tomando projeção. Eu devo —abrindo u m parêntese — , de minha parte, um a grande influência na un -dação do jornal a um a migo já falecido e que na época era estudantede Direito, José de Molina Quartin Filho, que tinha o pseudónimo deJoaquim Três. E le trabalhava em O Correio Paulistano e fazia crónicacarnavalesca na época, juntamente com Menotti dei Picchia que, naépoca, fazia crónicas com o pseudónimo de Helius.Eu e o Quartin trabalhávamos juntos numa mesma repartição, entãoele me disse: Jaime, os negros precisam ter um outro meio de viver".Eu disse: "Compreendo". "E por que você não faz um jornal?" E foi as-sim que eu procurei o meu amigo José Correia Leite e nós começamosa fazer O Clarim da A lvorada. (...) Havia também A Princesa do Norte.A Princesa do Norte era um jornal feito com muito carinho, com mui-tas dificuldades, por um preto que era cozinheiro do antigo Instituto
Disciplinar, onde é o
Pró-Menor. E
esse cozinheiro ch amava-se Antó-
nio dos Santos e tinha um pseudónimo que os senhores vão rir: Tio Uru-tu. Era um preto gordo, cabelos grandes, um boné ao lado, morava namesma rua em que eu morava. Rua Ruy Barbosa, un s dois quarteirõesapós a minha casa. Todas a s manhãs e le passava com a sua cesta,fazia as compras que ia levar para o Ins tituto D isciplinar. Um dia eleme disse: O senhor já leu o jornal? e me mostrou A Princesa do Nor-te. E u gostei do jornalzinho. V i aquelas críticas e vi uns versos. E comotodos nós brasileiros, não há quem não goste de música, não há quemnão goste de poesia, começa mos a publicar algum a coisa no jornal doTio Urutu. Depois, com o aparecime nto do nosso orna l, Tio Urutu con-tinuou com o seu A Princesa d o Nor te e depois acabou o seu bairroe acabou o seu jornal; surgiu O Clarim da A lvorada que, n o início, er aum jornal de cultura, instru tivo etc., e apareceram os prim eiros l itera-to s negros dentro do nosso meio.4
Como vemos por este longo e ilustrativo depoimento de Jaym eAguiar, O Clarim d a Alvorada surgiu da necessidade imperiosa deos negros possuírem um órgão mais abrangente e que substituísse aque-les microjornais que refletiam os interesses e opiniões dos pequenosgrupos sociais negros que se aglutinavam em associações recreativasou esportivas.
Ainda segundo a periodização d e Roger Bastide, na segunda faseo jornal que se destaca é A Voz da Raça, que já representa uma to-mada de posição ideológica do negro em nível de uma opção poli-
208 A IMPRENSA NEGRA EM SÃO PAULOUM A TRAJETÓR1A DE HEROÍSMO
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tica, pois er a órgão d a Frente Negra B rasileira, fundada em 16 de se-tembro de 1931. A Frente já possuía um a estrutura organizacionalbastante complexa, muito mais do que a quase inexistente dos jor-nais que a precederam e possibilitaram o seu ap arecimento.
Er a dirigida por um Grande Conselho, constituído de 20 mem-bros, selecionando-se, dentre eles, o Chefe e o S ecretário. Havia, ain-da, um C onselho auxiliar, for ma do pelos cabos distritais da Capital.Apesar de A Voz da Raça já reivindicar politicamente uma posiçãopara o negro, ainda perduram , dentro do contexto do protesto, aquelespostulados anteriores de um código ético para o negro, via instruçãoe consciência d e que ele dever ia igualar-se, pela educação, a o branco.
Nu m a periodização posterior e mais abrangente, Míriam Nico-lau Ferrara estabelece novos níveis de evolução da imprensa negraem Sã o Paulo. Ela avança até o ano de 1963. Diz:
Os jornais d a imprensa negra, considerados a partir de uma amostra,são descritos em 3 períodos: No primeiro período (1915/1923), há tenta-tiva d e integração d o negro na sociedade brasileira e a formação deuma consciência que mais tarde irá ganhar força.Com a fundação do jornal O Clarim da Alvorada em 1924, o segundoperíodo atinge s eu ápice em 1931 com a organização da Frente NegraBrasi leira e em 1933 com o jornal . A Vo z da Raça. Este período terminacom o Estado Novo.
O momento das grandes reivindicações políticas marca o terceiro pe-ríodo (1945/1963), com e lementos do grupo negro se filiando a partidospolíticos da época ou se candidatando a cargos eletivos.s
Em bora basicamente o núcleo desta periodização esteja embu-tido no de Bastide, a autora desdobra a té 1963 o universo estudado.
Miriam Nicolau faz uma revisão na periodização de Bastide por-que, segundo ela, o material de que dispomos é mais amplo", apre-sentando um quadro minucioso de praticamente toda a publicaçãodesses jornais. Seguindo a autora citada poderemos apresentar umpainel de publicações diacronicamente ordenado desses jornais da se-guinte forma: 1915: O Me ne l ick; 1916: A Rua e O Xauter; 1918: OAlfinete e O Bandeirante; 1919: A Liberdade; 1920: A Sentinela; 1922:
O Kosmos; 1923: O Getul ino; 1924: O Clarim d a Alvorada e El ite;1928: Auriverde, O Patrocínio e Progresso; 1932: Chibata; 1933: AEvolução e A Voz da Raça; 1935: O Clarim, O Estímulo, A Raçae Tribuna Negra; 1936: A Alvorada; 1946: Senzala; 1950: Mundo No-vo ; 1954: O Novo Horizonte; 1957: Notícias de Ébano; 1958: O Mu-tirão; 1960: Hífen e Níger; 1961: Nosso Jornal e 1963: Corre iod'Ébano.
Míriam Nicolau Ferrara inclui, ainda, na sua lista, os jornaisUnião, de Curitiba, Qui lombo e Redenção , do Rio de Janeiro, A Al-vorada, d e Pelotas e A Voz da Negritude, de Niterói. Evidentementeesta inclusão de jornais negros de outros Estados, p or fugir ao univer-so que estamos analisando, não será considerada na interpretação sub-sequente que faremos do conteúdo e da funcionalidade dos seus textos.Acresce notar que no esquema de periodização de Bastide há a inclu-são do Princesa do Oeste , informação que Miriam Nicolau omite.
Partind o desta listagem, Miriam prop õe o seguinte esquema deperiodização da imprensa negra:
1? período de 1915 a 1923,2? período de 1924 a 1937 e3.° período de 1945 a 1963.6
Para a interpretação subsequente do material qu e iremos anali-sar, essa periodização servirá como um pólo de apoio metodológico,acrescentando-se, em seguida, que, se atentarmos mais detalhada eanaliticamente, veremos que ela reproduz determinadas etapas da evo-lução política da sociedade brasileira. A primeira fase termina em1923, quando a abolição da pequena burguesia radical e militar de-semboca na Coluna Prestes. A segunda abra nge o período que passapela revolução de 1930 até a implantação do Estado Novo, e, final-mente, a última vai da redemocratização do país, após o fim da Se-gunda Guerra Mundial, às vésperas do golpe militar de 1964.
No entanto, há uma particularidade na imprensa negra: ela nãoreproduz, na s suas páginas, a dinâmica dessas etapas da sociedadeabrangente. Muito raram ente há referência a esses fatos. Ela é, fun-damentalmente, uma imprensa setorizada ou, como a caracterizaBastide, apoiado nos norte-americanos, uma imprensa adicional. Que-remos dizer, co m isto, que os leitores do s jornais do s negros, parase informarem d os acontecimentos nacionais e/ou internacionais, ti -nham de recorrer à imprensa branca, ou seja, à denominada grandeimprensa. É um fenóm eno singular, especialmente em São Paulo. Sa-
bemos, por exemplo, que no movim ento de 1932 o povo paulista oupelo menos a maioria esmagadora da sua classe média empolgou-secom o cham ado m ovimento de reconstitucionalização do país. O s ne-gros de São Paulo organizaram inclusive uma Legião Negra, chefia-da por Joaquim G uaraná, segundo informação de Francisco Lucrécio.O seu comandante procurou aliciar negros do interior, objetivandolevá-los a lutar pelo movimento armado de 1932. Há informações,
A IMPRENSA NEGRA EM SÃO PAULO DO NE G RO BE M -CO M P O RTADO À DESCOBERTA DA RAÇA 211
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embora não sendo d e todo confiáveis, de que os componentes dessalegião foram praticamente dizimados, pois eram destacados para oslocais m ais perigosos dos com bates. Essa p articipaçío dos negros nomovimento de 1932 propiciou, inclusive, uma cisão na Frente NegraBrasileira, pois a entidade colocou-se em posição de estrita neutrali-dade em relação ao fato.
No entanto, a imprensa negra da época não reproduz o fato,não o enfatiza, não o apoia e, o que é mais relevante, não o registra.É como se o acontecimento não tivesse existido. Esta posição depequeno universo é uma constante nesses jornais. A. sua tónica é aintegração do negro brasileiro (mais negro brasileiro do que afro-brasileiro) na nossa sociedade como cidadão. E isso deveria aconte-cer através da cultura e da educação, das boas m aneiras, do bom com-portamento do negro. No número 2 de O Alfinete, podemos ler:
Quem são os culpados dessa negra mancha que macula eternamente
a nossa f ronte?Nós, unicamente nós que v ivemos na mais vergonhosa ignorância, nomais profundo absecamento (sic) moral, que não compreendemos fi-nalmente a angustiosa situação em que v ivemos.Cultivemos, extirpemos o nosso analfabetismo e veremos s e podemos
ou não imitar os norte-americanos.7
3. Do negro bem-comportado Em o da a trajetória des-à descoberta da raça sã imprensa há um a cons-
tante,' conforme j á assi-nalamos: a ascensão do negro deverá realizar-se através do seu apri-moramento cultural e do seu bom comportamento social. Para q ueisto aconteça há , sem pre, a recomenda ção de que a família deve edu-car os filhos, especialmente as moças, par a que assim consigam o re-conhecimento social dos brancos. Por outro lado, a educação éconsiderada como uma missão da família. A educação é uma ques-tão privada e somente uma vez, ao que apuramos, há uma referênciaexplícita ao recurso do ensino público como veículo capaz de solu-cionar o problema d o negro. É um artigo de Evaristo d e Morais. Nomais, todas as referências ao problema educacional vinculam-no a umaobrigação familiar, ligando-o a um nível d e moral puritano. Comovemos, o problema d a mobilidade social depende d a educação e estada família, dos pais, da sua autoridade perante os filhos. Os negros
devem destacar-se pela cultura, e os exemplos de Luiz Gama, Josédo Patrocínio e Cr uz e Souza são sempre invocados como símbolose espelhos da possibilidade deste caminho para o êxito. Há uma re-construção quase que mítica dessas biografias, como, aliás, Bastidesalientou no seu trabalho. É por aí que o negro conseguirá a reden-ção da "raça".
E aqui cabe um a consideração maior e mais detalhada sobre es-te conceito d e "raça" que em determinado momento passa a circular
entre os negros.• A imprensa negra reflete como os negros articulam este concei-
to em relação a si mesmos. Oprimidos socialmente e discriminadosetnicamente, estigmatizados pela sua marca étnica, os negro s concen-tram nesta marca o potencial de sua revalorização simbólica, do reen-contro com a sua personalidade. Daí porque se referem à "raça",à "nossa raça" sempre em nível de exaltação, pois tudo aquilo quepara a sociedade discriminad ora é negativo passa a ser positivo p arao negro, e este fenómeno se reflete na sua imprensa. Não é por acasoque o seu ma is significativo e polémico jornal tem como título A Vozda Raça. A "raça" é , portanto, exaltada e quando o negro refere-sea outro, fala que ele é da raça". Isto está explícito nos textos do s
jornais negros. Eles chegam a extremos de comparaç ão analógica co-mo, por exemplo, a posição de Hitler que defende a raça ariana eos negros brasileiros: Hitler defendend o a sua raça, e os negros brasi-leiros, por seu turno, defendendo, também, a sua. Daí chegarem aextremos de acreditar na necessidade do aparecimento d e um "Moi-sés de Ébano".
Essa atitude dos negros, que se reflete em sua imprensa, deveser considerada m ais detalhadamente. O conceito de raça e de purezaracial deveria ser aquele que os negros descartariam sistematicamen-te por ser fruto de uma antropologia que visava colocá-los como in -feriores, a fim de que as nações colonizadoras pudessem justificar aaventura colonial. Mas tal não acontece. É que o negro, no caso es-pecífico o negro brasileiro, dele se aproveita, para , n uma reviravoltaideológica, auto-afirmar-se psicologicamente. E isto é que a impren-sa negra de São Paulo consegue refletir nas suas páginas. O conceitode "raça" é sempre usado p or isso como m otivo d e exaltação da ne-gritude dos produtores dessa imprensa. Daí, também não se interes-sarem pelos movimentos políticos da sociedade brasileira, nãotomarem posições ideológicas, quer de direita, quer de esquerda, nessesjornais. Sobre esse assunto, José Correia Leite depõe:
212 A IMPRENSA NEGRA EM SÃO PAULO DO ISOLAMENTO fiTNICO A PARTICIPAÇÃO POLÍTICA 213
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A comunidade negra em São Paulo vivia — como minoria que era —com as suas entidades e seus clubes. Po r isso, tinhanecessidade deter um veículo de informação dos acontecimentos sociais qu e tinhamna comunidade, porque o negro t inha a sua comunidade: uma série decomunidades recreativas e sociedades culturais. Coma é natural, a im-prensa branca não ia cuidar de dar informações sobe as atividadesque essa comunidade tinha. Daí surgiu a imprensa negra. Havia tam-bé m nossos literatos, nossos poetas qu e queriam publicar o s seus t ra-balhos, e essa imprensa cumpria tal função: de servir de meio de .comunicação. Sã o Paulo er a pequena e as comunicações muito maisfáceis. Então, na nossa imprensa, fazíamos notícias de aniversários,de casamentos, de falecimentos. Tudo isto era feito pela nossa impren-sa. As festas também eram feitas pela nossa imprensa. Ainda não ti-nh a surgido um movimento ideológico, um movimento d e luta declasses. 8
Correia Leite refere-se, embora de forma sumária, ao proble-ma de lutas de classes. Mas, o que predominava ou passou a predo-minar depois de certa época foi a exaltação à "raça". Olema do jornaloficial da Frente Negra Brasileira tinha como slogan: Deus, Pátria,Raça e Famíl ia, diferenciando-se do slogan do m ovimento Integralis-ta apenas pela inclusão da palavra "Raça". No seu primeiro núme-ro, Arlindo Veiga dos Santos escrevia na sua primeira página:
Neste gravíssimo momento histórico da NACIONALIDADE BRASILEI-RA , dois grandes deveres incumbem os negros briosos e esforçadosunidos num só bloco n a FRENTE NEGRA BRASILEIRA: a defesa da gen-te negra e a defesa da Pátria, porque uma e outra coisa mudam junta s,para todos aqueles que não querem trair a Pátria por forma alguma deinternacionalismo. (...) E a Nação somos nós com todos os ou tros nos-so s patrícios qu e conosco, em quatrocentos anos, criaram o Brasil. Nãopodemos, pois, permitir que impunemente uma geração atual, que éum simples momento na vida eterna da Nação, traia a Pátria, queratirando-se nos erros materialistas do separatismo (que nada mais édo que o efei to da concepção d o "materialismo histórico" — a econo-mia, a riqueza material acima de tudo), quer namoran do a terra-a-terrasocialista na sua mais legítima expressão que desfecha no bolchevis-mo, pregado pelos traidores n acionais ou estran geiros, e cuja respos-ta é e há de ser o aniquilamento violento, seja ele adotado p or cidadãos
do povo, seja e le adotado por governos qu e traíram a nacionalidade.(...) Não dar atenção aos fra cos que fora m caindo ou desanimand o pe-lo caminho Os poucos ou muitos bravos que restarem das longa s ca-minhadas de sofrimento e con quista serão suficientes para despedaçara última trincheira dos inimigos da Pátria e da Raça, que são quasesempre os mesmos.9
O que desejamos destacar aqui é o apoliticismo da imprensa ne-gra em relação àquilo que Correia Leite chama de luta de classes.
O artigo de Arlindo Veiga, do qual citamos os trechos p rincipais, mos-tra apenas uma visão abstrata do conceito de Pátria e Nação, paradescambar em um anti-socialismo acentuado e à equiparação dos con-ceitos de Pátria e Raça.
4. Do isolamento De fato, nas suas páginas não há ne-
étnico à participação nhum a referência à participação con-política creta do negro nos sindicatos, nas
lutas reivindicatórias, ou de partici-pação política radical em partidos de esquerda. Pelo contrário. Háum a cautela, parece que deliberada, dos diretores e colaboradores des-ses jornais, que os levava a não abordar certos problemas críticos,possivelmente considerados perigosos para eles.
Essa ideologia absenteísta e isolacionista em relação aos pro-blemas conflitantes será substituída, para Míriam Nicolau Ferrara,por uma outra participante, a partir de 1945, com a volta d o regimedemocrático. Para esta autora:
Com a volta do regime democrático, em 1945, inicia-se o terceiro pe-ríodo da impren sa negra. O que diferencia este dos anteriores é a si-tuação política geral que, de certa m aneira, reflete-se no s ornais negros.Temos a propaganda pol í t ica aberta e o apoio a condidaturas tanto denegros quanto de brancos. Isso seria reflexo ou decorrência da forma-ção de outro s partidos políticos da sociedade brasileira: o Partido So-cial D emoc rático (PSD), o Partido Traba lhista Brasileiro (PTB), a UniãoDemocrática Nacional (UDN), o Partido Social Progressista (PSP), a e-galização do Partido Comunista Brasileiro (PCB), o Partido SocialistaBrasileiro (PSB), o P artido Social Traba lhista (PST), o Partido de Repre-sentação Popular (PRP) e outros.10
Como se pode ver, há um a reviravolta ou, pelo menos, umanova perspectiva d e reflexão na última fase da imprensa negra pau-lista. O absenteísmo político da s duas primeiras fases, quando o ne-
gro cria mecanismos de defesa para não se pronunciar sobre osproblemas p olíticos abrangentes, e aquilo que Correia Leite chamoucom propriedade luta de classes, passa a ser considerado com o rele-vante ou p elo menos significativo no seu contexto. A s modificaçõespolíticas da sociedade brasileira passam, a partir daí, a ser registra-das nessa imprensa.
Miriam N icolau escreve, aliás concordando com Bastide, que:
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214 A IMPRENSA NEGRA EM SÃO PAULO
Sinal de amadurecimento foi a fundação da Associação do s NegrosBrasileiros que fez uma revisão do s erros anteriormente cometidos, nosentido de uma autocrítica e s e apresenta como a saída possível parao negro. Assim no jornal Alvorada de 1945, os artigos, de um modo ge-ral, têm uma finalidade: mo strar aos negros os objetiros ea importân-cia da A.N.B., criada para que os negros não se dispersassem; aocontrário, temos agora com o advento de uma fase nova de reestrutu-ração do s quadros da n ossa vida política e social — a Associação do sNegros Brasileiros — ideia s ugerida , pode-se dizer do "amadurecimentodas nossas antigas experiências", segundo texto d o ornal A lvoradade 1946. A imprensa negra registrava, portanto, nas suas páginas, a saí-
da do país da ditadura do Estado Novo e o início de uma era demo-crática.
Co m todas essas modificações de cará ter ideológico na trajetó-ria da imprensa negra um problema é permanente e dos m ais impor-tantes: o problema financeiro.
Como manter jornais representativos de uma comunidade cujamaioria e ra constituída d e ma rginais, subempregados, favelados, bis-
cateiros e desocupados? Ora, com o já vimos, esses jornais eram des-tinados à comunidade negra com posta de elementos desarticulados,desajustados ou marginalizados pela sociedade branca. As fontes definanciamento desses veículos, que não tinham praticamente publici-dade, a não ser do próprio meio, eram, p ortanto, precárias e consti-tuíam um problema permanente. Daí a irregularidade dessas pu -blicações. Um dos seus funda dores, Raul Joviano d o A maral, expli-ca em depoimento como eles conseguiam se manter:
Os jornais surgiram com a finalidade d e integrar associat ivamente onegro. Os iniciadores da imprensa negra, por pertencerem à base dasociedade, colocados no seu grau mais baixo, não tinham condiçõeseconómicas para manter a imprensa. É de se adivinhar as dificuldadesque se tinha para editar esses jornais. Como mante-los, se a colet iv i-
dade, o grupo, não tinha nenhum poderio económico? Apenas o sacri-fício, a boa vontade de abnegados permitiam a existência dessesjornais. Muitos deles despendiam ò que ganhavam modestamente pa-ra manter e publicar esses jornais. Não havia, por isso, uma periodici-dade regular de publicação: quando havia dinheiro, o jornal saía comregularidade; quando não havia saía com atraso. Uma das maneiras desustentar esses jornais era franquear as sociedades negras existen-tes na época, distribuí-los e pedir uma contribuição para o próximonúmero.Os próprios diretores, os próprios redatores iam levá-los às sedesdessas associações. Com o tempo foram criadas cooperativas. Mas,
DO ISOLAMENTO ÉTNICO À PARTICIPAÇÃO POLÍTICA 215
mesmo assim, foi muito difícil mante-los à base da co operação por-que o negro não tinha condições económicas.
O sacrifício do negro, para Raul Joviano do Amaral,
foi imenso e o seu êxito se deve a homens humildes como T io Urutu,que era um cozinheiro do Instituto Disciplinar, como José Co rreia Lei-
te, que era auxil iar de uma drogaria, o qual, além de escrever e or ientaro jornal, tirava do s seus parcos vencimentos um a parcela para mante-lo, para que ele pudesse sair c om alguma regularidade. Outros abne-gados da imprensa negra foram Jayme Aguiar, o argentino Celso Wan-derley, co m O Progresso Lino Guedes e Salatiel Campos. Todoscontribuíam c om duzentos réis ou um tostão, o máximo u m cruzeiro,para que o ornal saísse. O jornal O Clarim d a A lvorada po r isso mes-mo , nunca teve caixa e, como o objetivo da imprensa negra era difun-dir à comunidade negra as sua s ideias, o s seus organizadores nuncaprocuraram organizaçõ es financeiras para ajudá-la. Tam bém não pro-curavam políticos d a época. Sem ter prat icamente anúncios, ela viviada solidariedade. Fo i dentro deste espírito que a imprensa negra viveupo r quase v inte anos .12
Por este valioso depoimento d e um dos seus organizadores, ve-mo s que essa imprensa vivia na base da solidariedade étnica da co-munidade negra. Roger Bastide acha que a imprensa negra era oreflexo do pensamento da classe m édia negra em São Paulo. Emborapudesse questionar a existência de uma classe média negra ponderá-vel e estruturada e m nível significativo naquela época, o próprio de-poimento de Ra ul Joviano do Amaral mostra, pelo contrário, queo seu suporte económico eram os homens de baixa renda que muni-ciavam com os seus centavos e os seus tostões, para usarmos o seutermo, a continuidade dos jornais.
Este problema da ma nutenção dos jornais é derivado da situa-ção de m arginalização dó negro de uma forma global na sociedadediscriminadora. Embora Bastide afirme que os jornais surgiram deum a classe média negra, o depoimento de Raul Joviano do Amaral,
repetimos, parece que demonstra, ao contrário, que era a estratégiade u m mutirão permanente entre os negros qu e dava sustentáculo aesses órgãos.
Como vemos, os jornais da imprensa negra surgiram quase quena base de informações, notícias, mexericos e destaques sobre a vidaassociativa da comunidade negra. Com o tempo, no entanto, tomaconotações de reivindicação racial e social. Isto aconteceu em conse-quência do aguçamento da luta de classe e da exclusão do negro dosespaços sociais mais remunerados e socialmente compensadores na
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216 A IMPRENSA NEGRA EM SÃO PAULO
estrutura do sistema de capitalismo dependente que se formou apósa Abolição.
Segundo Aristides Barbosa:
O preconceito, que até 1936, quando s e escrevia nos porões do Bexi-ga: Aluga-se quarto não se aceita pessoas d e cor e nos jornais saíamanúncios pedindo empregadas brancas, foi-se acalmando. Com issoo negro pensou que o motivo da luta também se acalmou. As contradi-
ções raciais ficaram diluídas nas contradições sociais s económicas.Desta forma o negro pensa que não há mais necessidade de uma im-prensa negra de protesto.
Com o jornal Novo Horizonte fundado em 1948, um dos últi-mos da imprensa negra, a situação se repete: são os velhos, os vetera-nos que haviam fundado O Clarim d a Alvorada qu e irão ajudar anova geração e mante-lo. Por outro lado, do ponto de vista organi-zativo e financeiro nada mudou: são os seus fundadores e redatoresque têm de sair com os exemplares do jornal embaixo do braço paravendê-los entre os negros. Por isso, em 1955 o Novo Horizonte desa-parece.
Dois outros jornais negros de São Paulo surgiram no interior.Ainda segundo depoimento de Jayme Aguiar foram O Getuíino, de
Campinas, fundado pelos irmãos Andrade, Lino Guedes e outros eO Patrocínio de Piracicaba, fundado po r Alberto d e Almeida. Ain-da segundo depoimento de Jayme Aguiar:
Esses dois jornais foram um sucesso. A vinda, logo após a revolução,de jornalistas campineiros para São Paulo, como Gervásio Oliveira, B e-nedito Forêncio, Lino Guedes e outros possibilitou a sua participaçãotambém na grande batalha em prol da grandeza do negro. Todos elesirão participar d a imprensa negra paulistana.14
Dentro deste quadro d e descenso da funcionalidade da impren-sa negra, José Correia Leite ainda fa z nova tentativa, em 1946, quetambém não sobrevive por muito tempo. Geraldo Campos de Olivei-ra edita Senzala já com tendências socialistas. Surgem, ainda, Éba-
no e Níger. A partir daí a imprensa negra adquire nova conotaçãoe vai se diluindo ou se cristalizando em posições ideológicas definidas.Analisando esse período da vida do negro paulista escreve Os-
waldo de Camargo:
Os jornais qu e representam o pensamento da coletividade negra va-riam segundo a múltipla experiência do negro na vida paulistana. A l-guns ficaram apenas no nível do contato de notícias sobre um pequenogrupo de negros; outros alcançaram um alto nível de exposição deideias; outros ainda se propuseram a ilustrar e preparar o negro para
NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 217
o livre debate e procurar soluções do s problemas comuns dentro d acomunidade negra.15
Isto leva a que compreendamos o saudosismo daqueles que par-ticiparam dessa trajetória, todos se recordando do jour de gloire des-ses jornais. Mas, com a diversificação progressiva da sociedadepaulista e, especialmente, d a comunidade negra, parece-nos proble-mático um renascimento negro em São Paulo através da reativação
dessa imprensa. Outros objetivos s e apresentam para o negro registrá-los e enfrentá-los. A sociedade de capitalismo dependente, poliétnicae preconceituosa que se desenvolveu no Brasil está a exigir do negroum a participação na qual o específico étnico fique embutido no pro-grama de modificações q ue esse tipo de sociedade está a exigir. E,a partir daí, não haverá mais necessidade de uma imprensa alternati-va qu e defenda os interesses de uma comunidade oprimida e discri-minada, isto porque terão desaparecido a opressão e a discriminação.
Notas e referências bibliográficas
1 Tivemos oportunidade de proferir palestra na Escola de Comunicação eArte da USP sobre o tema "A Imprensa Negra em São Paulo", em nívelde pós-graduação, abril de 1981, mas junto à disciplina "Estudo de Pro-blemas Brasileiros", não fazendo parte do currículo.
2 SODRÉ, Nelson Werneck. A história da imprensa no Brasil. Rio de Janei-ro, Civilização Brasileira, 1966. Passim.
3 BASTIDE, Roger. A imprensa negra em São Paulo. Apud Estudos afro-brasileiros. São Paulo, Perspectiva, 1973. p. 131 et seq.
4 Depoimento gravado em 15 de junho de 1975.5 FERRARA, Miriam Nicolau. A imprensa negra em São Paulo (Dissertação
de mestrado na USP). Mimeografado.6 Idem, ibidem.7 O Alfinete, São Paulo, 3 set. 1918.8 Depoimento gravado em 15 de junho de 1975.9
SANTOS, Arlindo Veiga dos. Aos frentenegrinos. A Voz da Raça, 18 set.1933.10 F E R R A R A , Miriam Nicolau. Op. cit.11 Idem, ibidem.12 Depoimento gravado em 15 de junho de 1975.13 Idem.
Idem.4
15 CAMARGO, Oswaldo de. A descoberta do frio. São Paulo, Ed. Populares,1979. p. 30, nota de pé de página.
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IVDa insurgência negra ao
escravismo tardio
1. Modernizaçãosem mudança
Estamos a ssinalando o centenário da A bo-lição do escravismo no Brasil. O fato levaa que possamos estabelecer um a série de ní-
veis de reflexão sobre o que ocorreu em resultado da sua mudançapara o chamado trabalho livre, as aderências históricas, sociais e cul-turais que permanecem em consequência de quase quatrocentos anosde trabalho escravo e os entraves estruturais q ue ainda persistem nasociedade brasileira em decorrência desse longo período traumatizanteda nossa história.
Parece-nos que há, de fato, um atraso teórico muito grande na
análise e interpretação do sistema escravista no Brasil e, especialmente,no detalhamento das suas particularidades em relação aos demais paí-ses da América. Arquitetamos um pensamento monolítico sobre aseconomias que foram criadas pelo mercantilismo e pelo colonialismoe não procuramos analisar, em cada caso pa rticular, as suas singula-ridades mais importantes. N o caso brasileiro, ao que nos parece, t e-mos um conjunto de fatos que determinam não apenas a especificidadede certos aspectos relevantes do modo de produção escravista no Brasilem relação ao s outros países da América, mas, também, em decor-
MODERNIZAÇÃO SEM M U D A N Ç A 219
rència do seu longo tempo de duração, a permanência de traços e res-tos da formação escravista na estrutur a da sociedade brasileira atua l.
Consideremos o seu primeiro aspecto: a duração do escravismoaté o ano de 1888. O significativo e relevante aqui não é apenas otempo no seu sentido cronológico, mas as transformações técnicas,sociais e económicas que se operaram durante esse período na socie-
dade brasileira em decorrência das modificações que se registraramna economia mundial da qual éra mos dependentes. Do sistema colo-nial que determinou o perfil da primeira fase do escravismo brasilei-ro que vai até o ario de 1850 e, posteriormente, de 1851 até o térm inodo escravismo, modificações profundas se verificaram na economiamundial que passou da fase da exportação de mercadoria para a deexportação de capitais. Os mecanismos reguladores e o comportamen-to quer da economia interna, quer daquelas nações das quais éramosdependentes, tamtyém s e modificaram. O fluxo de capitais investidosno Brasil em setorbs estrategicamente controladores da nossa econo-mi a determinou a fase d e modernização das cidades e dos hábitos dosbrasileiros. Tudo Aquilo que significava civilização no seu conceito
do capitalismo clássico era trazido de fora e se incorporava à nossasociedade civil (excluídos os escravos).O processo de modernização da última fase dessa sociedade es-
cravista era, por e$sas razões, injetado. A tecnologia era introduzidado exterior, os meios de comunicação m ecanizavam-se, abriam-se es-tradas de ferro em todo o território nacional, o cabo submarino erainaugurado, tínhamos gás de iluminação, telefone, bondes de traçãoanimal, mas tudo isto superposto a uma estrutura traumatizada noseu dinam ismo pela p ersistência de relações de produção escravistas.Era, portanto, urfla modernização sem mudança social. Em outraspalavras: as estruturas básicas da sociedade brasileira ainda eram aque-las que procuravam manter e eternizar essas relações obsoletas, crian-do, com isto, uma contradição flagrante e progressiva com odesenvolvimento das forças produtivas que se dinamizavam.
Neste panorama geral podemos assinalar particularidades regio-nais. E não apenas regionais, m as também diferenciações de níveisde prosperidade e decadência em função da s preferências dos nossosclientes do m ercado internacional. Disto resultou uma comp lexidademuito grande na caracterização da s relações sociais fundamentais d omodo de produção escravista no Brasil. Eram zonas que floresciam,outras que entravam em decadência, algumas que estacionavam oudiversificavam a sua produção; finalmente, havia uma teia muito com-
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22 0 DA INSURGÊNCIA NEGRA AO ESCRAVISMO TARDIO
plexa de relações e interações que criava diferenças regionais e dia-crônicas. Mas, em todo esse processo de diferenciação ima coisa erapatente: o trabalho escravo. Quer na agroindústria canarieira do Nor-deste, ou nos campos de algodão do Maranhão, nas chirqueadas doSul, nos canaviais da Bahia, na região urbana de Salvador e do Riode Janeiro, na s fazendas d e café paulistas e fluminenses, ou na pe-
cuária, o escravo negro era quem produzia, quem criada. Por outrolado, as diversificações regionais, que determinavam particularida-des na situação do escravo — escravo d e ganho, escravo doméstico,escravo no eito agrícola, escravo na mineração, etc. — não modifica-rão o essencial. Ele até podia possuir alguns objetos de uso pessoal.Porém o que ele não tinha e não podia ter era a posse do seu própriocorpo, que era propriedade d o seu senhor. Esta é a condição básicaque se sobrepõe a qualquer outra para definir-se a situação de escra-vo. Isto é: um ser alienado da sua essência humana. E é a partir dacompreensão deste nível extremo de dominação e alienação de umser humano po r outro que poderemos compreender os níveis e o con-teúdo social, político e psicológico d a insurgência negra durante o pe-
ríodo escravista no Brasil e as suas pa rticularidades históricas.Essa grande duração do escravismo no Brasil, de um lado, e,de outro, as grandes transform ações ha vidas nos interesses e com-portamento das nações centrais (m odificações internas e externas) cria-ram contradições que vão se acumulando e agudizando-se com otempo.
Podemos, por isto, dividir a escravidão no Brasil em dois pe-ríodos que se completam , mas têm características particulares. O pri-meiro vai da chegada ao Brasil dos africanos em número significativocomo escravos até a Lei Eusébio d e Queiroz qu e extingue o tráficonegreiro com a África, em 1850. É o período dos gra ndes piques dotrabalho escravo no Nordeste açucareiro, da mineração em MinasGerais.
2. Rasgos fundamentaisdo escravismobrasileiro pleno(1550/1850)
Nesse período podemos dizer queos seus rasgos fundamentais eque o caracterizam são os se-guintes:l. Produç ão exclusiva para ex-
portação no m ercado colonial, salvo produção de subsistência poucorelevante.
RASGOS FUNDA MENTAIS DO ESCRAVISMO BRASILEIRO PLENO (1550/1850) 22 1
2. Tráfico de escravos de caráter internacional e tráfico triangular co-mo elemento mediador.
3. Subordinação total da economia colonial à Metrópole e impossi-bilidade de urna acumulação primitiva do capital interno e m nívelque pudesse determinar a passagem do escravismo ao capitalismonão-dependente.
4. Latifúndio escravista como forma fundamental de propriedade.5. Legislação repressora contra os escravos, violenta e sem ap elação.6. Os escravos lutam sozinhos, de form a ativa e radical, contra o ins-
tituto da escravidão.O sistema escravista consolida-se nessa fase. O número de es-
cravos cresce constantemente. A produção, através do trabalho es-cravo, cria um clima de fastígio da classe senhorial e os negros passama ser os pés e as mãos dos senhores na expressão de um cronista daépoca. Essa consolidação do trabalho escravo reflete-se, por outrolado, naquilo que determinará esse fausto da classe senhorial: a si-tuação de total dom inação económica e extra-econômica sobre o ele-mento escravizado, as condições sub-humanas de tratamento, umsistema despótico de controle social e, finalmente, um aparelho deEstado voltado fundam entalmente para defender os direitos dos se-nhores e os seus privilégios. Esses senhores, donos de escravos e deterras, são, ao mesmo tempo, exportadores de tudo ou quase tudoo que se produzia no Brasil.
Para que isto pudesse ter êxito e esse dinamismo não entrasseem colapso, criou-se o tráfico com a Á frica que supria de novos bra-ços aqueles que morriam ou eram inutilizados para o traba lho. Destaforma, o fluxo perma nente de africanos permitia ao senhor níveis deexploração assombrosos e uma margem de lucro que propiciava a ma-nutenção de todo um aparato de luxo e lazer sem precedentes. Essefastígio tinha, p orém, interna e externamente, fatores de deteriora-ção contínuos. O monopólio comercial da Metrópole determinava um
nível de transação mercantil unilateral, pois a parte compradora eraquem estabelecia os preços. Com isto, os senhores tinham de aceitaraquilo que lhes era imposto. Mas, p or outro lado, o preço do escravoera estabelecido praticamente pelos traficantes ou por intermediáriosdesses proprietários de navios negreiros. Enqua nto o trá fico conse-guia equilibrar a demanda de novos braços para a lavoura e outrasatividades, as coisas se equivaliam e a aparência de prosperidade con-tínua permanecia à superfície. Quando, porém, por qualquer moti-vo, esse desequilíbrio se rompia, os senhores começavam a protestarcontra aquilo que julgavam ser uma exploração unilateral contra eles.
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222 DA INSURGÊNC1A NEGRA AO ESCRAVISMO TARDIO
Por outro lado, essa economia não permitia a acum ulação in-terna d e capitais em nível capaz d e poder-se dar um passo de mudan-ça económica e social qualitativo e que fossem transformadas asrelações de produção fundam entais. Com isto ficava estagnado o seudinamismo interno no nível d e reprodução contínua d o trabalho e s-cravo quase que de maneira circular. O escravismo criava os seus pró-
prios mecanismos de estagnação económica e social. O latifúndioescravista era, po r essas razões, a forma fundamental senão a únicarelevante de propriedade. Instala-se no B rasil, nacionalmente, o m o-do de produção escravista moderno em sua plenitude.
Os níveis de repressão nesse contexto eram totais, a fim de quea tax a de lucro do senhor não fosse atingida. O trabalho escravo ga-nha, assim, proporções extrema s de exploração. Fecham-se todas aspossibilidades de uma sociedade na qual existissem mecanismos m e-diadores dos conflitos da s duas classes sociais fundam entais: escra-vos e senhores.
3. Significado SOCial É nesta estrutura que se m anifesta ain-da insurgência surgência do escravo negro. Somentenegro-escrava através da compreensão da situação
social e política que a econom ia escra-vista produzia, nesse período, em relação a o escravo, que poderemosreconhecer a sua importância. Neste sentido, José Honório Rodri-gues escreve que:
A rebeldia negra foi um problema na v ida inst i tuc ional brasileira, re -presentou um sacrifício imenso, violentou o processo h is tór ico e or igi-nou um debate historiográfico. Com relação ao s is tema escravocrata,a rebeldia negra, insurreição racial, foi um processo contínuo, perma-nente e não-esporádico, com o faz ver a historiografia oficial. O debate
historiográfico resultou da interpretação oficial do sistema escravocrata,apresentado como tendo por base a legitimidade da propriedade e nãoo preconceito da inferior idade racial, muito mais for te nos EstadosUnidos.A versão de um quadro paternal e doce, no qual a confraternização pre-dominou sobre a animosidade, especia lmente nas re lações domésti-cas, fa lsamente generalizado, subver teu a verdadeira inteligência doprocesso.1
Em decorrência dessa extrema exploração do trabalho do escra-vo, e da sua consequente rebeldia, surgiram os racionalizadores do
SIGNIFICADO SOCIAL DA INSURGÊNCIA NEGRO-ESCRAVA 223
sistema. No particular, os dois m aiores sistematizadores desse pro-cesso foram Antonil e Benci. É interessante notar que ambos são je-suítas e procuram difundir uma ideologia através da qual o sistemaescravista poderia se r racionalizado. Não por motivos altruístas e cris-tãos, mas, em última instância, objetivando maior produtividade doescravo, mais tempo da sua vida útil e medidas capazes de impedir
a su a fuga. C om as medidas p or eles preconizadas poderia s er amor-tecido o potencial de rebeldia do escravo negro contra o seu senhor.Expondo o seu pensamento, Antonil escreve:
O qu e pertence ao sustento, vest ido e m oderação no trabalho, claroestá que se lhes n ão deve negar; porque a quem o serve deve o senhorde jus t iça dar suf ic iente a l imento; mezinhas na doença, e modo, comqu e decentemente se cubra, e se vista, como pede o estado de servo,e n ão aparecendo quase nu pelas ruas; e deve também moderar o ser-viço de sorte que não se ja super ior às forças dos que trabalham, sequer que possam aturar.2
Antonil é explícito n as suas intenções e pondera que se essas me-didas não fossem tomadas pelos senhores, os escravos
ou se irão embora, fugindo para o mato; ou se matarão por si, comocostumam, tomando a respiração ou enforcando-se, ou procurarão ti-rar a vida aos que lha dão tão m á, recorrendo (se for necessár io) a ar -tes diabólicas, ou clamarão de tal sorte a Deus que os servirá .3
E insiste: o bom tratam ento deveria ser concedido aos escravosporque, em caso contrário, eles
fugirão por uma vez para algum mocambo no mato, e s e forem apanha-do s poderá ser que se matem a si mesmos, antes que o senhor cheguea açoitá- los, ou que algum seu parente tome a sua conta a v ingançaou com fe i t iço, ou com veneno.4
Benci é mais refinad o, mais teórico do que Antonil, mas chegaàs mesmas conclusões. Referindo-se às faltas d os escravos e à neces-sidade do senhor julgá-los com isenção afirma:
Não tendo pois o servo o castigo, como há de fazer su a vontade? E quan-do ainda não chegue a despir to ta lmente o medo, porque o cast igo po-de saber bem; da muita continuação dele nasce outro inconvenientenão pequeno. Porque sabendo o escravo que o senhor lhe não passaem c laro fa l ta a lguma e que lhe não valem padrinhos; em chegandoa cometer algum delito, e vendo que não tem outro remédio para evitaros r igores do mesmo senhor , toma car ta de seguro e f o g e . 5
No entanto, tais medidas nunca foram aplicadas, pelo menosna primeira fase do escravismo brasileiro. Pelo contrário, a síndro-
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224 DA INSURGÊNCIA NEGRA A O ESCRAVISMO TARDIO
me d o me d o domina profundamente a classe senhorial e cond ic ionao seu comportamento. A p ossível revolta do s escravos estava sempreem primeiro plano quer da s autoridades, quer d os senhores e do seuaparelho repressivo.
No Nordeste, com a República de Palmares, essa síndrome seaguça e perm anece dur ante quase um século. A luta dos escravos da
Serra da Barriga foi o centro de preocupações da Metrópole e dossenhores de engenhos não apenas na Cap itania d e Pernambuco à qualpertencia o território emancipado, mas em toda a região. Palmaresconverge, em pleno século XVII, para si as atenções da Metrópole,mas, mesmo assim, assume proporções de um ato de resistência quenão teve similar na América Latina. A vasta documentação que exis-te a respeito, especialmente de origem portuguesa (sabe-se, também,da existência de documentos em arquivos holandeses e italianos), bemdemonstra a preocupação da Metrópole, de um lado, e, de outro, aimportância social, económica e militar de Palmares. Esta dicotomiabásica era o motor do comportamento das duas classes fundam entaisdo escravismo brasileiro. A preocupação substantiva, portanto, querdos senhores quer das autoridades locais ou da Metróp ole era mantera coerção económica e extra-econômica atrav és da qua l se consegui-ria extrair todo o sobretrabalho d o escravo. Por isto, no sistema detrabalho escravo na sua plenitude os níveis de repressão despóticosfuncionavam constantemente e faziam parte d a normalidade do com-portamento dos dominadores. Nesse sistema de trabalho a racionali-dade , ou melhor a racionalização pretendida por Antonil e Benci nãopodia funcionar. Conforme já dissemos, não havia nenhum nível demediação e a exploração tinha de ser total pa ra que o senhor pudesseter lucros compensadores, dentro da forma como era feita a distri-buição da renda no sistema colonial. À produção interna estava liga-da a divisão internacional do trabalho e isto impedia qualquerpossibilidade de um comportamento que não fosse o d a absoluta e x-
ploração. Marx dizia, por isto:Desde que os povos cuja produção se move ainda nas formas inferio-res da escravidão e da servidão sáo atraídos pelo mercado internacio-nal dominado pelo modo de produção capitalista e que em decorrênciaa venda dos seus produtos no estrangeiro se torna o seu principal in-teresse, desde esse momento os horrores d o sobretrabalho, esse pro-duto da civilização vem se juntar à barbárie da escravidão e da servidão.Enquanto a produção, no s Estados do Sul da União Americana, era prin-cipalmente dirigida para a sat is fação da s necessidades imediatas, otrabalho do s negros representava um caráter moderado e patriarcal.
SIGNIFICADO SOCIAL DA INSURGENCIA NEGRO-ESCRAVA 225
À medida, porém, que a exportação do algodão tornou -se o interessevital desses Estados, o negro foi sobrecarregado e a consumação desua vida em sete anos de trabalho tornou-se parte integrante de umsistema friamente calculado. N ão se tratava mais de obter dele certamassa de produtos úteis. Tratava-se da produção da mais-valia aomáximo.6
Isto pode ser aplicado perfeitamente ao escravismo brasileiro.
As estruturas de dominação e os seus mecanismos estratégicos, ta ntoem um caso como no outro, eram idênticas e não podiam permitirque o escravo fosse tratado a não ser como coisa, pois de outra for-ma o sistema não funcionaria de acordo com os seus objetivos.
Por isto, dando continuidade à linha ideológica de Antonil eBenci, vamos encontrar, após a Abolição, toda uma literatura queidealiza a escravidão no Brasil, criando vertentes históricas que de-fendem a sua benignidade. Como vemos é todo um espectro de pen-samento que procurou antes racionalizar e atualmente tenta roman-tizar, através de vários argumentos, a forma despótica como existiua escravidão no Brasil.
É exatamente nesse período que vai da Colónia até meados doSegundo Império que as revoltas de escravos, assumindo diversas for-
mas, contestam e desgastam mais violentamente o sistema. A quilom-bagem é uma constante nacional e acontece nesse período de formamuito violenta. A última dessas insurreições arquitetadas nessa fasee que fracassa ainda em projeto é e m Salvador, em 1844, seis anosantes, portanto, da Lei Eusébio de Queiroz.
Podemos constatar que onde há o pique do escravismo na suaprimeira fase, há, também, o pique de revoltas. Na fase colonial te-m os Palmares, a que já nos referimos, e os seus desdobramentos pos-teriores na região nordestina que se p rolongam até o século XIX. E mMinas Gerais, qua ndo se chega ao auge da exploração a urífera e dia-mantífera o quilomb o do Ambró sio e inúmeros mais perturbam e des-gastam a harmonia social e económica da região. Há, como podemos
ver, uma correspondência entre o nível de exploração e a incidênciadessas revoltas.Palmares acontece em um mom ento em que o Nordeste estava no
auge da produção acucareira, fato que levou a Holanda a ocupar a re-gião para explorá-la em seu proveito. Em Minas, o Quilombo do Am-brósio, qu e chegou a ter cerca de dez mil habitantes, foi destruído em1746 também em um momento d e prosperidade. Não queremos estabe-lecer, porém, uma relação mecânica entre os níveis de opressão e rebel-dia. Ma s podemos estabelecer um a linha de frequência n o particular.
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226 DA INSUROÊNCIA NEGRA AO ESCRAVISMO TARDIO
Convém particularizar, também, o tipo de atividade desses es-cravos rebeldes na divisão técnica d o trabalho. Os escravos que fugi-ra m para Palmares estavam estruturados na agroindústria açucareira.Já nas revoltas urbanas do século XIX , em Salvador, o escravo de ga-nh o será o núcleo dinamizador mais relevante. Por outro lado, comoveremos oportunamente, na segunda fase da escravidão essas revoltasterão um significado b em diferente, quer em quantidade, quer em ní-vel de radicalização. Com exceção dos quilombos sergipanos de 1870a 1875, a revolta passiva será típica d o comportamento d os escravos.
4. Prosperidade, Em contrapartida, é exatamente nos mo-escravidão e mentos em que os escravos se revoltam querebeldia as leis repressivas são aprovadas e executa-
das. Ainda no ciclo de Palmares surge o Al-vará de março de 1741, mandando que fosse ferrado com um Femsua espádua todo escravo fujão encontrado em quilombo. No ciclo
mineiro de revoltas encontramos, além do bando de Gomes Freirede Andrade recomendando o cumprimento do alvará daquele ano,a Carta Régia de 24 de fevereiro de 1731 q ue autorizava o governa-dor de Minas Gerais a aplicar a pena de morte ao s escravos.
Finalmente, vem o ciclo das insurreições baianas. Em consequên-cia, surge, e m primeiro lugar, a criação no Código Criminal do Im-pério, em 7 de janeiro d e 1831, da figura jurídica de insurreição emrelação às revoltas dos escravos. Para o s cidadãos livres que conspi-ravam contra a tranquilidade pública a denominação seria de cons-piração ou rebel ião. No artigo 113 do Código era considerada in-surreição a reunião d e "vinte ou mais escravos para haverem a liber-dade pela força". 7
Mas logo depois da insurreição escrava da capital baiana de 1835é aprovada a Lei n? 4, de 10 de junho daquele ano, acerca da puni-ção dos escravos que matassem ou ferissem os seus senhores. A ínte-gra da lei deve ser transcrita para um a análise do seu significadojurídico e político:
A Regê ncia Permanente em Nome do Imperador D. Pedro Segundo fazsaber a todos os súditos do Império que a Assem bleia G eral Legislati-va Decretou, Ela sancionou a Lei seguinte: Art. 1? —Serão punidos compena de morte os escravos ou escravas, que matarem por qualquer ma-neira que seja, propiciarem veneno, ferirem gravemen te ou fizerem ou-
O DESGASTE ECONÓMICO 227
tra qualquer ofens a física a seu senhor, a sua mulher, a descend entesou ascende ntes, que em sua companh ia morarem, e administrador, fei-tor e às suas mulheres que com eles conviverem. Se o fer imento o uofensa física forem leves, a pena será d e açoites à proporção d as c i r-cunstâncias mais ou menos agravantes. Art. 2? — Acontecendo algumdos delitos mencionados n o Art. 1.° o d e insurreição e qualquer outrocometido po r pessoas escravas, em que caiba a pena de morte, haveráreunião extraordinária do Júri doT ermo (caso não esteja em exercício)convocada pelo Juiz de Direito, aquém tais acontecimentos serão ime-diatamente comunicados. Art. 3 . — Os Juizes de Paz terão jurisdiçãocumulativa, em todo o Município para processarem tais delitos até adenúncia com as diligências legais posteriores, e prisão dos delinquen-tes, e concluído que seja o enviarão ao Juiz de Direito para esteapresentá-lo ao Júri, logo que esteja reunido e seguir-se os mesmostermos. Art . 4.° — Em tais delitos a imposição da pena de morte serávencida po r dois terços do número de votos; e para as outras pela maio-ria; e a sentença se for condenatória, se executará sem recurso algum.Art. 5? — Ficam revogadas todas as Leis, Decretos e mais disposiçõesem contrário. Dada no Palácio de Rio de Janeiro, aos 10 dias do mêsde junho de 1835.8
Como podemos ver havia um a conexão entre a insurgência es-
crava (quilombagem) e a legislação repressiva. A rticulou-se um a le-gislação baseada na síndrome do med o criada pelos antagonismosestruturais do escravismo e que atingia a classe senhorial de formaa deformar-lhe o comportamento. As lutas do s escravos foram umelemento de desgaste permanente. Como podemos ver, se as cons-tantes lutas nã o chegaram a o nível modificador da estrutura, criandoum novo modelo de ordenação social, foram , no entanto, um moti-vo de permanente desgaste do sistema. Podemos dizer que esse des-gaste permanente apresenta-se em três níveis principais: a) desgasteeconómico; b) desgaste político; c) desgaste psicológico.
5. O desgaste No primeiro nível de desgaste devemos consi-econômico derar o fato de que o escravo fugido correspon-
dia a um património subtraído ao senhor. Mas,além disto, era um património que produzia valor através do seu tra-balho, e esse valor não-produzido também onerava o seu senhor, poisalém da perda física do escravo ele perdia aquilo que deveria ser pro-duzido durante o tempo em que permanecia evadido, muitas vezespara o resto da vida. Além d isto, devemos computar as despesas coma captura, pagamento a capitães-do-mato, recompensas a informan-
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228 DA I N SUR OÊ N CI A NEGRA AO ESC R AVISMO T ARD IO
tes, despesas com o tempo em que o escravo encontrava-se em pri-sões do Estado e muitas outras. Soma-se a todas essas razões a des-valorização no mercado do valor do fugitivo, dificilmente adquirívelpor outro senhor a não ser por baixo preço.
Esse desgaste económico, que não podemos quantificar, ma s foisignificativo, onerava obviamente o custo d e produção, da í vermos,
constantemente, as queixas dos senhores contra a fuga dos seus es-cravos. José Alípio Goulart, abordando apenas um dos aspectos dodesgaste económico — o preço do escravo evadido — , afirma que:
Negros fugidos contavam-se aos milhares, muitos milhares, fossem aqui-lombados ou ribeirinhos. Repre sentand o cada cabeça determinado va-lor monetário, torna-se possível aquilatar o volumoso capital m produtivo,concentrado na população d e calhambolas espalhados por esses bra-sis. Calculando o preço unitário de cada escravo, grosso modo, em100SOOO, valor corrente durante largo espaço de tempo; e consideradaa informação de que apenasmente nos Palmares concentravam-se emtorno de 60 000 fugitivos, conclui-se que só aquele quilombo represen-tou acúmu lo de capital inoperante da ordem de seis mil contos de réis(6.000:0005000), verdadeira fábula em dinheiro naquela época. Em idên-tica ordem de raciocínio, cita-se o quilombo de Trombetas, no Pará, re-gião financeiramente pobre e onde por tal razão a incidência de escravosnegros foi relativamente pequena. Aquele quilombo, com seus 2 000 ca-lhambolas representava uma imobilização de capital da ordem de tre-zentos contos de réis (300:000$000), pois ali, ao surgirem, os africanoseram vendidos, quando menos, p or 150$000 a "cabeça". Assim o qui-lombo de Campo Grande, em Mato Grosso, e outros que aglutinavamdezenas, centenas, vezes até milhares de componentes.9
Mas, conforme já d issemos, esse desgaste não se limitava à per-da do valor do escravo e do seu trabalho. Era m uito mais abrangen-te. Incluía, também , as despesas dos senhores e do aparelho d o Estado.Neste particular, as Câmaras sempre reclamavam falta de dinheiroe verba para dar combate aos quilombolas. Por isto, os governos dasprovíncias criavam verbas para premiar captores. Em 1852 há uma
resolução do presidente d o Pará criando prémios d e 200$000 depoisde executada a diligência e capturados os fugitivos, quantia q ue seriapaga pelo Tesouro Público Provincial. N a m esma resolução, o presi-dente fica autorizado a dispender até a quantia de 12 contos de réiscom a destruição dos quilombos e captura dos escravos neles refugia -dos 10. Este fato pode ser generalizado a quase todo o Brasil.
Finalmente, havia a destruição por parte do escravo da p roprie-dade e da lavoura do senhor. Se isto acontecia esporadicamente noNordeste, n a primeira fase do escravismo, com o aqueles escravos que,
O DESGASTE E CO NÓMICO 229
durante a ocupação holandesa destruíram engenhos e plantações emPernambuco u vamos encontrar este comportamento, de forma maissistemática, já no final d a escravidão, praticado p or escravos flumi-nenses orientados p or abolicionistas radicais. Aliás, o episódio é sig-nificativo porque é atípico do comportamento do escravo do restodo Brasil nessa segunda fase do escravismo.
Em Campos de Goitacazes, Estado do Rio de Janeiro, os escra-vos fugitivos incendiavam as fazendas numa atitude radical que ge-rou pânico entre os senhores. No dia 15 de agosto de 1877 mani-festou-se o prim eiro incêndio em uma usina do Q ueimado. Seguiu-seum rosário de sinistros provocados pelos escravos orientados nessesentido pelos abolicionistas. Segundo um historiador desse período:
O encarregado de incendiar o canavial executava esse atentado se mreceio de que pudesse o acusar de o ter feito. Um vidro de óculos, umalente, era colocado em lugar onde convergindo os raios solares, faziamacender a mecha de véspera aí posta, e às m esmas horas do dia ante-rior, estando o incendiário longe do lugar, o canavial era preso dechamas.12
Depois do primeiro incêndio
não param mais. Pelo
contrário.Continuam com maior intensidade. Depõe Júlio Feydit:
Em 14 de janeiro de 1887, e m Guarulhos, foram incendiados os cana-viais das fazendas e usinas S. João do s srs. Lima & Moreira; uma fa-zenda Penha, do Sr. António Póvoa, outros dois na fazen da Abadia.Sete dias depois o fogo destruía na freguesia de S. Salvador um cana-vial do Sr. Ferreira Pinto, e no dia seguinte, outro. A 26 de janeiro o Sr.Barão de Miranda perdia devido a incêndio um canavial de 1 500 arro-bas de açúcar ou 30 caixas; três dias depois, os canaviais das fazen-das do Sr. Manoel Coelho Batista Cabral ardiam.Além dessa s fazendas, a do Outeiro, a 23 de aneiro, a do Sr. Sebastiãode Almeida Rebello, tiveram os canaviais incendiados.Em 6 de fevereiro de 1887, ao meio-dia, ardiam as canas da FazendaVelha; e mais os can aviais na Fazenda Paraíso, pertencente a Guilher-me de Miranda e Silva, e também outras três na fazenda do majorCrespo.Em março, na f reguesia de S. Sebastião lançaram fogo a um canavialdo Sr. José Pinto Passanha, sendo o seu prejuízo de 15 a 20 arrobascada uma. Como podemos ver, era um estado de conflagração permanen-
te, que transcendia a o simples protesto p acífico costumeiro na segundafase da escravidão, mas enveredava em um movimento d e subleva-çã o regional. O mesmo historiador afirma, ainda, comentando a si-tuação geral nesse período:
230 DA INSURGÊNCIA NEGRA AO ESCRAVISMO TARDIO
Era uma devastação medonha; era uma uta tremenda; o s fazendeiros
A SlNDROME DO MEDO 23 1
insurreição de 1835 encontram os um bem elaborado plano militar que
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enchiam as fazendas de capangas sob o título de agiegados e cama-radas, faziam reuniões, tendo em uma delas sido proposto que se com-prasse o chefe abolicionista em Campos e se ele não quisesse se venderse pagasse a quem o suprimisse. 14
Podemos ver, pelo exposto, que em Campos havia um desgasteponderável na economia escravista daquela região fluminense. Em-bora tenha sido uma m anifestação tópica e já sob a influência ou di-reção de abolicionistas radicais, o comportamento do s escravos a li
demonstra como o desgaste económico produzido pela rebeldia n e-gra, em vários níveis e durante todo o tempo, não deve ser despreza-do na análise da importância do seu comp ortamento de negação aosistema.
6. O desgaste político No particular do desgaste político,a quilombagem despertou na classe
senhorial o receio permanente e agudo da propagação da rebeldia,da insubmissão, da violência d os quilombolas da s fazendas ou dosinsurretos urbanos. Isto porque os negros davam demonstração na
prática política (descartamos o conceito de movimentos pré-políticos)de que havia a possibilidade de uma solução alternativa possível mes-mo no sistema escravista: a form ação de unidades independentes nasquais o trabalho escravo não era praticado. O exemplo de Palmarese a sua organização política sempre era visto com apreensão pelas au-toridades coloniais e imperiais. Dura nte a existência do Quilombo doAmbrósio, em Minas G erais, o m esmo raciocínio se verificou. Sabia-se que ali havia um a organização política que ordenava a sua econo-mia de modo comunitário. S egundo se afirma havia um modelo d eorganização e disciplina, d e trabalho comunitário . Os negros eramdivididos em grupos, ou setores "todos trabalhando de acordo coma sua capacidade". 1S
No Quilombo do Ambrósio praticava-se a pecuária, através de
campeiros e criadores. A parte responsável pela produção agrícolaencarregava-se dos engenhos, da plantação de cana e fabricação deaçúcar, aguardente, além de mandioca para fazer farinha e azeite co-m o produtos complementares.
Essa preocupação política das autoridades é mais visível aindadurante as insurreições baianas do século XIX. Especialmente na
não foi totalmente executado pela antecipação do movimento euma caixa para finanças, através da qual eles conseguiam recursosfinanceiros para angariar ou comprar alforria dos seus líderes. A s pró-prias autoridades da Província reconheceram o conteúdo político domovimento.
Outra preocupação d as autoridades e dos senhores era a alian-ça d os quilombolas o u insurretos negros de um modo geral com ca-madas e grupos oprimidos da sociedade escravista. Os palmarmospraticaram largamente esse costume, o m esmo acontecendo em Mi-nas Gerais. Nessa Capitania os quilombolas ligavam-se co m frequên-cia aos faiscadores e aos contraband istas de diamantes e ouro, comeles m antendo comércio clandestino. Em face dessa concordata, oscontrabandistas prestavam serviços aos quilombolas, informando- osda s m edidas tomadas pelo aparelho repressor contra eles. Esse con-tato do s negros fugidos ou aquilombados co m outras camadas opri-midas, quer durante a Colónia, quer durante o Império, será umaconstante p reocupação política e militar das autoridades e da classesenhorial.
7. A SÍndrome Finalmente, o desgaste psicológico. Referim o-do medo nos àquele sentim ento sociopsicológico que de-
nominamos de síndrome do m ed o e que foiresponsável pelo com portamento da classe senhorial durante toda aduração do escravismo. O receio da insurreição, especialmente no pri-meiro período, criava um estado d e pânico permanente. O "perigode São Dom ingos (repetidam ente mencionad o), as possíveis ligaçõesdos escravos brasileiros com os de outros países, a provável articula-ção em nível nacional d os escravos rebeldes, a obsessão da violênciasexual contra mulheres brancas ou outras formas de insurgência,tudo isto levou a que o senhor de escravos se transformasse em umneurótico.
Um a verdadeira paranóia apoderou-se d os membros d a classesenhorial e determinou o seu comportamento básico em relação àsmedidas repressivas contra os negros em geral.
Na primeira fase, às autoridades coloniais e a classe senhorialusam de toda a brutalidade, legislando de forma despótica contra oescravo. Isto vai dos alvarás mandando ferrar escravos à legislação
232 DA INSURGÊNCIA NEGRA AO ESCRAVISMO TARDIO
da pena de morte, do açoite, execução sumária "sem apelo algum"
A SÍNDROME DO M E D O 233
Para os senhores da Bahia isso nada tinha de impossível, pois a des-
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do s escravos rebeldes etc. Nessa fase não há nenhum processo de me-diação e a legislação terrorista reflete essa síndrome deforma trans-parente. Aliás, para respaldar esse conjunto de medidas jurídicas hátodo um aparato de repressão brutal e legal. Os escravos têm o seudireito de locomoção praticamente impedido. Os troncos, os pelouri-nhos, a gonilha, o bacalhau, a máscara de flandres, ovira-mundo,o anjinho, o libambo, as placas de ferro com inscrições infamantes,
as correntes, os grilhões, as gargalheiras, tudo isso formava o apare-lho de tortura ou aviltamento através do qual as leis eram executadascomo medida de normalidade social.
A síndrome do medo das classes senhoriais tinha apoio mate-rial no grande número de escravos negros e na possibilidade perma-nente da sua rebeldia. Refletia uma ansiedade contínua e, com isto,a necessidade de um aparelho de controle social despótico, capaz deesmagar, ao primeiro sintoma de rebeldia, a possibilidade dessa mas-sa escrava se rebelar. Os senhores de escravos, por isto, especialmen-te os senhores de engenho, onde a massa negra era bem superior àbranca e os meios de comunicação escassos, estavam sempre a pedirprovidências acauteladoras ao governo.
Na Bahia, por exemplo, a classe senhorial vivia angustiada com
a possível rebeldia dos seus escravos. Quantitativamente Spix e Mar-tius, quando estiveram em Salvador, por volta de 1824, davam a se-guinte estatística populacional a qual bem demonstra a superioridadedos homens de cor sobre os brancos. Apoiados em Balbi, davam,incluindo-se a Capitania de Sergipe, este quadro demográfico:
Brancos 192 000índios 13000Gente livre de cor 80 000
Escravos de cor 35 000Negros escravos 489000)Negros forros 49000 )
115000
538 000858 000
Como se vê, para uma população branca de 192 000 pessoas ha-
via uma grande massa não-branca, incluindo-se os índios, de 666 000pessoas. A desproporção era gritante. Essa posição de ansiedade daclasse senhorial se aguçará diante da inquietação da classe escrava quese levantara naquela região a partir de 1807. Os cidadãos e senhoresde escravos dirigiram-se em 1814 diretamente ao rei expondo-lhe osseus temores. Comentando a situação conflitante a historiadora Ma-ria Beatriz Nizza da Silva assim a expõe:
proporção numér ica era muito grande entre brancos e mulatos, de umlado, e negros do outro. Pelas listas de população mandadas tirar notempo do Conde da Ponte, antecessor do Conde dos Arcos, só na ci-dade se calculava entre 24 a 27 negros para cada homem branco oumulato. Fora dela, a desproporção aumentava: havia 408 engenhos,calculando-se 100 escravos por engenho e, no máximo, 6 brancos e par-dos em cada um. De nada servia argumentar, como se tinha feito, quea rebelião era impossível por serem os negros de nações diferentes einimigas entre si, pois o que se verificara na insurreição era a aliança
dos Aussás aos Nagôs, Calabar etc.lf>
A síndrome do medo nos senhores reflete-se nos termos de umdocumento que enviaram ao rei. Vejamos:
Senhor,Com o mais profundo respeito o Corpo do Comércio, e mais cidadãosda praça da Bahia cheios da maior aflição vão representar a V. A. R.a horrorosa catástrofe, e atentados, que têm acontecido e suplicar apronta providência que exige o deplorável estado das cousas para asegurança de suas vidas, honras, e fazendas.É notório que há 3 para 4 anos os negros tentam rebelar-se e matar to-dos os brancos, e tendo nos anteriores feito 2 investidas, agora ao ama-nhecer do dia 28 de fevereiro em distância somente de uma légua destacidade deram a 3? com muito mais estragos, e ousadias, que as outras.
Estes ensaios, Senhor, bem prognosticam, que chegará (a não ser setomarem medidas mui sérias) um dia em que eles de todo acertem erealizem inteiramente o seu projeto, sendo nós as vítimas da suarebelião e tirania.
E prosseguem descrevendo a rebelião de 1814:
Eles começaram na armação de Manuel Inácio, e seguindo pelo sítiode Itapoã até o rio de Joanes com o desígnio de irem incorporando-secom os dos mais engenhos, e armações gritavam liberdade, vivam osnegros, e seu rei o... e morram os brancos e mulatos; e a todas as ne-gras, e algum moleque, que os não queriam acompanhar matavam, lo-go é claro que o partido é que entre si, e que forçosamente devesucumbir o dos brancos, e pardos. Ninguém de bom senso, mesmo pres-cindindo do prognóstico do atual acontecimento, poderá duvidar, que
a sorte desta Capitania venha a ser a mesma da Ilha de S. Domingospor 2 princípios, 1.° pela demonstrada da enorme desproporção de for-ças, e em uma gente aguerrida, e tão bárbara, que quando acometemnão temem morrer; pois que nos seus países se matam pelo festejo,e têm a superstição de que passam ao seu reino, e se chegam mesmoa assassinar por qualquer leve paixão, ou falso pundonor, e muitos nestainsurreição se acharam enforcados pelos matos do rio Vermelho; e o2° princípio para deduzir a mesma consequência é a relaxação dos
234 DA INSURGÊNCIA NEGRA AO ESCRAVISMO TARDIO A SfNDROME DO MEDO 235
costumes, e falta de polícia, que geralmente se observa nesta cidade, controle permanece. E a síndrome d o m ed o continua, sob novas for-
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pelas muitas larguezas que se lhes tem dado, de sorte que são contí-nuos os insultos, atacando vergonhosamente a mulheres brancas.
A classe senhorial n ão satisfeita com as medidas de controle to-madas pelo governo insiste no mesmo documento:
Isto ainda mais é de esperar onde não há castigo; pois que chegou otempo de até os senhores serem repreendidos pelo governo se o fa-zem, mesmo com justiça, atendendo-se mais as queixas do s negros,que as razões d os senhores, e chama-se a isto humanidade, e idade
de ouro do Brasil; mas assim o é para os negros que têm o privilégiode humanidade, e nós de desumanidade, além de outros muitos fatos,e desgraças, que diariamente nos cercam, e o que mais é para admiraré nesta tão lamentável, e funesta, a indiferença, e indolência d o gover-no, que não satisfeito de por espaço de 40 dias nenhum a providênciadar, ainda permite, e aconselha na sua 1? e única ordem do dia d ez docorrente abril que os negrinhos brinquem com os seus bailes nos doiscampos do Barbalho, e Graça, pontos tão perigosos pelo ajuntamentoque aí sem serem vistos podem fazer, quando em as circunstânciasatuais nem 3 se deviam consentir conversar unidos; e em reco mpen sada barbaridade com que tratavam os dos lugares incendiados, cujascasas chegam a cento e cinquenta e tantas, e assassinados cinquen-ta e tantos, ainda recom enda na sua dita 1 ." ordem que na cidade seimpeçam os tais batuques co m toda moderação. Deverá talvez pedir-lhes de joelhos, que não batuquem, e façam (como até agora) disto ser-
tão de Costa de Mina. Assentar que se devem mandar os negros a di-vertimentos tão profanos em dias de descanso, e dedicados ao cultodo verdadeiro Deus, isto com prejuízo da sociedade, e do sossego pú-blico, quanto m uitos brancos, com o v. g. os soldados, e caixeiros, quenão têm domingo, nem dia santo aplicados sempre nos seus serviçose aqueles em guarda, e rondas de dia e de noite, e até mesmo por moti-vo deles negros, passam sem eles, e até onde pode chegar a relaxa-ção de costumes 17
Como vemos, a classe senhorial baia na, pelos seus representan-tes, dirige-se diretamente ao Rei para expor o seu estado de espíritoem face da insurgência d os escravos.
Quando o eixo dinâmico (económico e social) do escravismo sedesloca do Nordeste para Minas, Rio de Janeiro e São Paulo, esse
mecanismo de defesa senhorial também se racionaliza.Da mesma forma como o número de escravos já não é mais pro-porcionalmente tão grande em relação aos brancos os mecanismosrepressivos se modificam, como veremos. Há toda uma moderniza-çã o das classes senhoriais que depois da lei de 1835 passam a procu-rar elaborar leis protetoras contra a massa escrava. Modernizam astáticas, mas a estratégia de poder a fim de manter os escravos sob
mas, a condicionar o com portamento dos senhores de escravos. É umcontinuum q ue acompanha o outro — o da discriminação do negro— em diferentes níveis, mas com fins convergentes. Conforme vere-m os adiante, o branco fo i atingid o pela síndrome d o m ed o , de formasistemática e contínua, pela neurose e paranóia da classe senhorial.
Levando-se em consideração que o número de escravos e ne-gros durante muito tempo era superior ao de brancos podemos vero estado de pânico permanente d os senhores de escravos. Daí não serpermitido ao escravo nenhum privilégio, pois os espaços sociais rigi-damente delimitados dentro da hierarquia escravista somente possi-bilitavam a sua ruptura e mudança estrutural através da negação dosistema: a insurgência social e racial do escravo.
A síndrome d o m ed o estender-se-á, também , à segunda fase doescravismo brasileiro, m as através de m ecanismos táticos diferentes.A classe senhorial já não legisla mais através dos seus agentes parareprimir e/ou muitas vezes destruir fisicamente o escravo, ma s passaa produzir leis protetoras. A partir da extinção do tráfico e a dimi-nuição da população escrava começam a suced er-se leis que prote-gem e beneficiam o escravo, como veremos adiante.
Desta form a, a s índrome do m edo defor mou psicologicamente
a classe senhorial, deu-lhe elementos inibidores para assumir um com-portamento patológico e caracterizou a postura sádica dos seusmembros.
Depois de 1850, com a extinção do tráfico, temos o início doque chamamos escravismo tardio. O comportamento da classe senho-rial e do legislador se alteram. Para conservar o escravo, cujo preçoaumentara de forma drástica, surgem as primeiras leis protetoras. Poroutro lado, o escravo negro que até então lutara sozinho com a suarebeldia radical contra o instituto da escravidão começa a ser vistoatravés de uma ótica liberal. As manifestações hum anistas se suce-dem. E as posições que refletiam uma consciência crítica contra a ins-tituição também aparecem, especialmente entre a mocidade boémiae alguns grupos adeptos de um liberalismo mais radical.
Neste contexto de mudanç a da cham ada opinião pública as leisprotetoras se sucedem: Lei do Ventre Livre, Lei dos Sexagenários,lei que extingue a pena do a çoite, proibição de venda separada de es-cravos casados e outras que objetivam proteger o escravo valorizadopela impossibilidade de reposição antiga. Neste sentido alguma s pro-víncias decretam antecipadamente extinta a escravidão nos seus terri-
236 DA INSURGÊNCIA NEGRA AO ESCRAVISMO TARDIO
tórios. N o Am azonas ela se extingue em 1884 e nessemesmo ano no
RASGOS FUNDAMENTAIS DO ESCRAVISMO TARDIO (1851/1888) 237
Como vemos, no escravismo tardio entrecruzam-se relações es-
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Ceará e em Porto Alegre.Paralelam ente, a escravidão regionaliza-se e aqueks antig as áreas
de prosperidade da sua primeira fase entram em deadência, dandolugar ao florescimento de uma economia nova que se desenvolverájá como o segundo ciclo do escravismo no Brasil.
8. Rasgos fundamentais Essa nova fase, p ara nós, terá osdo escravismo seguintes rasgos funda men tais:tardio (1851/1888) 1. Relações de produção escra-
vistas diversificadas regional-mente, mas concentradas na parte que dinamizava uma economianova, especialmente Rio de Janeiro e São Paulo.
2. Parcelas de trabalhadores livres predominando em algumas re-giões, quer nas áreas decadentes quer naquelas que decolaram como café.
3. Concomitância de relações capitalistas (de um capitalismo subor-dinado ao capital monopolista) e permanência de relações escra-vistas (Mina de Morro Velho).
4. Subordinação, no nível de produção industrial, comunicações, es-
tradas de ferro, portos, iluminação a gás, telefone etc. a o capitalmonopolista, especialmente inglês; no nível de relações comerciaissubordinação ao mercado mundial e sua realização, internamen-te, em grande parte, por casas comerciais estrangeiras, a mesmacoisa acontecendo no setor bancário e de exportação.
5. Urbanização e modernização sem mudança nas relações deprodução.
6. Tráfico de escravos interprovincial substituindo o internacional.Aumento do seu preço em consequência.
7. Trabalhador livre importado desequilibrando a oferta da forçade trabalho e desqualificando o nacional.
8. Empresas de trabalho livre como a colónia de Blumenau.9. Empresas de trabalho livre e escravo, como no sistema de parce-
ria de Ibicaba em São Paulo.10. Empresas de trabalho escravo.11. Influência progressiva do capital monopolista nesse processo.12. Legislação protetora, substituindo a repressora da primeira fase.13. Luta dos escravos em aliança com outros segmentos sociais. A
resistência passiva substitui a insurgência ativa da primeira fase.Primeiras lutas da classe operária.
cravistas e capitalistas. Mas, com uma característica particularizado-ra : essas relações capitalistas, no que elas têm de mais importante esignificativo, não surgiram preponderantemente da nossa acumula-ção interna, mas foram injetadas de fora, implantadas por todo umcomplexo subordinador que atuava no pólo externo. Com isto, háalterações no comportamento da classe senhorial e dos escravos. Asgrandes lutas radicais do século XVII até a primeira parte do século
XIX entram em recesso. Nesta segunda fase do escravismo, novosmecanismos reguladores influem também no comportamento dos se-nhores. Uma coisa porém não se altera: o escravo continua como pro-priedade, como coisa, ou, para usarmos um conceito económico, elecontinua como capital fixo. Na sua essência, a situação do escravopermanece a mesma, com modificações apenas nas táticas controla-doras da sua rebeldia por parte dos seus proprietários.
Mesmo assim, há transformações também no comportamentodo escravo. Não apenas pelas m odificações táticas, m as por manipu-lações estratégicas da classe senhorial. O tráfico interprovincial de-sarticula mais uma vez a população escrava, desfazendo muitas vezeso grupo família. A lei que regula e procura p roteger a família escravanão permitindo a sua fragmentação na venda, faz-se quase fora do
temp o pois é de 1869. Ela surge como medid a reprodutora e não p ro-tetora, pois as famílias passam a ser matrizes de novos escravos nomomento em que a reprodução desses elementos para o trabalho ca -tivo começa a escassear.
Se na primeira fase do escravismo essa desarticulação verificava-se na África , o mesmo irá acontecer na segunda, quando os escravossão vendidos das outras províncias para Sã o Paulo e Rio de Janeiro.Somente que ela se realiza internamente. A lei que impede essa desar-ticulação familiar somente chega durante a Guerra do Paraguai, pa-ra impedir a total fragmentação do acasalamento escravo, pois apopulação negra foi aquela que mais sofreu em consequência doconflito.
Paralelamente há substanciais modificações e diferenciações naeconomia brasileira. Superpostas às relações de produção escravistasimplantam-se, do exterior, relações capitalistas dependentes. O capi-tal monopolista cria um complexo cerrado de dominação na quilo quea economia brasileira deveria dinamizar se tivesse forças económicasinternas capazes de efetuar uma mudança qualitativa a fim de sairdo escravismo e entrar na senda do desenvolvimento capitalista auto-
238 DA INSURGENCIA NEGRA AO ESCRAVISMO TARDIO
nomo. O escravismo brasileiro, no seu final, já era um anacronismo
ENCONTRO DO ESCRAVISMO TARDIO COM O CAPITAL MONOPOLISTA 239
Precisamente no fim do Império vamos constatar que as vinte firmas
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aberrante e a sua decomposição verifica-se simultaneamente ao iní-cio da dominação imperialista. Conforme já dissemos em parte, agrande duração do escravismo brasileiro levou-o a encontrar-se c omaquelas forças económicas de dominação exógenas que não tinhammais interesse em exportar mercadorias, m as capitais.
Depois de ocupado e dominado o mercado interno, a Inglater-ra investe capitais para subalternizar estruturalmente a economia bra-sileira. O representante do s Estados Unidos junto ao nosso governo
ao iniciar-se a segunda metade do século XIX descreveu essa situa-ção da seguinte maneira:
Em todas as fazendas d o Brasil, os donos e seus escravos vestem-secom manufaturas do trabalho livre, e nove décimosdelas são inglesas.A Inglaterra fornece todo o capital necessário paramelhoramentos in-ternos no Brasil e fabrica todos os utensílios de uso ordinário, de en-xada para cima, e quase todos os artigos de luxo, ou de necessidade,desde o alfinete até o vestido caro. Cerâmica inglesa, os artigos ingle-se s d e vidro, ferro e madeira, sã o t ão universais como o s panos de lãe os tecidos de algodão. A Grã-Bretanha fornece ao Brasil os seus n a-vios a vapor e a vela, calça-lhe e drena-lhe a s ruas, ilumina-lhe a gásas cidades, constrói-lhe as ferrovias, explora-lhe as minas, é o seu ban-queiro, levanta-lhe as linhas telegráficas, transporta-lhe as malas pos-tais, constrói-lhe as docas, motores, vagões, numa palavra: veste e faz
tudo, menos alimentar o povo brasileiro.
18
Nelson Werneck Sodré, comentando esta realidade, afirma:
No início da segunda metade do século XIX, realmente, o Brasil come-ça a emergir da prolongada crise que tivera no início com a decadên-cia da mineração, ainda no período colonial. A necessidade estava emaumentar a exportação, conservando a estrutura vigente, isto é,aumentá-la produzindo quantidade maior de produto agrícola de con-sumo suscetível de desenvolvimento nos mercados externos. Para is-so, havia dois fatores favoráveis: a larga disponibilidade de terras e oexcesso de oferta da força de trabalho, já concentrada e adaptada aoregime escravista. O fator negativo, na época, consistia na fraca dis-ponibilidade de recursos monetários.19
Essa emergência não produz ruptura com a estrutura escravis-ta, mas prolonga-a e reajusta-a aos novos mecanismos internos e ex-ternos sempre na direção de sujeição progressiva ao capital externo.
Para se ter uma ideia do nível de subalternização económica doBrasil n o final d o escravismo tardio e d e como todos os nódulos es-tratégicos da nossa economia àquela época encontram-se dominadospelo capital alienígena, vejamos o levantamento de Humberto Bas-tos no fim do século XIX:
maiores exportadoras de café eram d e origem estrangeira, controlan-do cerca de 70% das exportações, como citarei a seguir: Arbukle Bro-thers, E. Johnston & Cia., Levering & Cia., Hard Rand & Cia., J. H. Doane&Cia., Philipps Brothers &Cia., WilleSchmilinsk &Cia., GustavTrunsk& Cia., Norton Megaro & Cia., Andrew Mur & Cia., Karl Valois & Cia.,Berle Cia., Mc Kinnel &Cia., Max Nothmann &Cia., O. S. Nicholson& Ca., Pradez & Fls. Com ndicação nacional havia apenas duas gran-de s firmas na praça do Rio de Janeiro: J. F. de Lacerda & Cia. e ZenhaRamos & Cia. O Brasil tinha o monopólio natural da produção do café.
O monopólio comercial, porém, pertencia a firmas estrangeiras.
Da mesma forma como o capital monopolista estrangeiro ab-sorve e domina a comercialização do café, monopoliza, igualmente,ainda em pleno regime escravista, todos os setores estratégicos da nossaeconomia. Ainda é Humberto Bastos quem informa:
Num longo período que vai de 1868 a 1888, não se registra em territóriobrasileiro a fundação de fortes empresas nacionais. Notamos, isto sim,a fundação da The Amazon Stean Navegation Co. Ltd., New Londonand Brazilian Bank Ltd., The Braganza Gold Mining Ltd., The Madeiraand Mamoré Railway, The São Pedro Brazil Gás Co. Ltd., The PitanguyGold Mining Co., Wilson Sons and Co. Ltd., The Rio Grande do Sul GoldMining Ltd., The City of Santos Improvements Co. Ltd., The CamposSyndicate Ltd., The Rio de Janeiro Four Mills and Granaríes Ltd., So-
cieté Anonime du Rio de Janeiro, The Singer Manufacturing Co., Brazi-lian Exploration Co. Ltd.20
É o encontro do escravismo tardio com o capitalismo monopo-lista internacional estrangulando a possibilidade de um desenvolvi-mento capitalista autónomo no Brasil.
9. Encontro do Com isto ficam traumatizadas e estrangu-escravismo tardio ladas as fontes de desenvolvimento capi-COm O capital talista autónomo. A modernização avan-monopolista ca, a economia se regionaliza, a urbani-
zação se acentua, mas as relações escra-vistas e a s suas instituições correspondentes, finalmente a estruturasocial, conserva-se intocável n o fundamental embora já com todosos sintomas de decomposição em face da sua incapacidade de dina-mismo económico interno. Por outro lado, progride o estrangulamen-to das possibilidades de desenvolvimento capitalista nacional emconsequência da dominação do capital das metrópoles. Esse proces-
240 PA INSURGENCIA NEGRA AO ESCRAVISMO TARDIO EVCONTRO DO ESCRAVISMO TARDIO COM O CAPITAL MONOPOLISTA 241
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so de decomposição va i encontrar — do ponto devista interno — umasaída para adiar a sua morte e neutralizar os grupos abolicionistasque se formavam: a Guerra do Paraguai.
O conflito resultou, de fato, dos interesses ingleses na Américado Sul, mas, internamente, serviu de anteparo ideológico para sustara visão crítica que ia se avolumando em relação ao trabalho escravo.Passou-se a invocar o brio patriótico do povo todas as vezes que al-
guém ou algum grupo queria tocar no delicado issunto. Por outrolado, os escravos passaram a ser recrutados e muitos fugiram dos seussenhores para se alistarem objetivando alcançar aliberdade que lhesera prometida. Ele é também alforriado pelo Império e os chamadosescravos da nação são incorporados às tropas brasileiras. Os senho-res, por seu turno, para fugirem ao dever de se incorporarem às tro-pas, enviam em seu lugar escravos da sua propriedade e m númerode um, dois, três e até mais. Com a deserção quase total da classesenhorial dos seus deveres militares, o exército será engrossado subs-tancialmente por escravos negros (voluntários ou engajados compul-soriamente), capoeiras, negros forros, mulatos desocupados etc.
A Lei n.° 1.101 de 20 de setembro de 1860 (Artigo 5.°, § 4?),e, depois, o Decreto n? 3.513, de 12 de setembro de 1865, facultavama substituição do convocado ou recruta por outra pessoa ou pessoasou o pagamento de uma "indenizacão" ao governo. 21 Com isto, oExército que foi combater no Paraguai era predominantemente ne-gro. Os negros eram enviados em grande número para a Unha de frentee foram os grandes imolados nas batalhas ali travadas. Por esta ra-zão J. J. Chiavenato escreve que:
As consequências da Guerra do Paraguai foram terríveis para os ne-gros. Os mais fortes, em uma seleção que os tirou do eito para a guer-ra, morreram lutando. Os negros mortos somaram de 60 a 100 mil —há estimativas que informam até 140 mil. Isso na frente de batalha, noParaguai. Esses números nunca aparecem nas estatísticas oficiais.Cotejando-se porém estimativas de militares brasileiros — Caxias in-clusive — à margem da historiografia oficial, dos observadores estran-geiros, dos próprios aliados argentinos, chega-se com relativa segurançaem torno de 90 mil negros mortos na Guerra do Paraguai. Na guerra
em si, porque outros milhares morreram de cólera durante a fase detreinamento, de disenteria, de maus-tratos nos transportes.22
O que desejamos destacar, em seguida, é a diferença da insur-gência negra durante a primeira fase do escravismo e na fase do es-cravismo tardio. E também salientar a mudança de estratégia da classesenhorial em relação à legislação de controle social sobre o escravoque foi praticamente invertida: de uma legislação repressiva terroris-ta e despótica passou a produzir uma legislação protetora.
Os senhores de escravos e suas estruturas de poder correspon-dentes, com a Guerra do Paraguai, resolveram ou pelo menos adia-ram a solução da crise institucional que a escravidão havia criado,apelando para o patriotismo dos abolicionistas e, do ponto de vistada ideologia racial, encontraram oportunidade de branquear a popu-lação brasileira através do envio de grande quantidade de negros pa-ra os campos de batalha, de onde a sua maioria não regressou e muitos
dos que voltaram foram reescravizados.Ao mesmo tempo, o comportamento do negro escravo é bemdiferente daquele que proporcionou a formação de Palmares, no sé-culo XVII, e as insurreições baianas do século XIX. Nessa segundafase já não se aproveitam da guerra para se livrarem dos seus senho-res, como fizeram aqueles que iriam formar Palmares durante a ocu-pação holandesa ou como aqueles negros que durante a luta pelaindependência, na Bahia, fugiram para as matas, escapando ao con-trole dos seus senhores. Não se têm notícias de grandes movimentosde rebeldia escrava durante o período da guerra. É que a própria classeescrava já estava parcialmente desarticulada, passara por um proces-so de diferenciação muito grande quer na divisão do trabalho querna localização das suas atividades e, por estas e outras razões, já não
tinha mais aquele ethos de rebeldia antiga, anestesiada (pelo menosparcialmente) pelas medidas jurídicas decretadas em seu favor.A rebeldia escrava chega ao seu apogeu até a primeira parte do
século XIX. Em seguida é substituída por uma resistência passiva,muitas vezes organizada não por eles mas por grupos liberais que pro-curam colocar os escravos dentro de padrões não-contestatórios aosistema. Não é por acaso que um ano depois da Guerra do Paraguaié promulgada a Lei do Venti > Livre que dá àqueles escravos descon-tentes a esperança de que através de medidas institucionais a Aboli-ção chegaria. A classe senhorial manipula mecanismos reguladoresnovos e arma uma estratégia que consegue deslocar sutilmente o fimdo escravismo das lutas dos escravos para o Parlamento. 23
Mas essa estratégia senhorial é desenvolvida em cima de condi-
ções económicas e sociais muito particulares e desfavoráveis. É queo Brasil, ao sair da guerra, é uma nação completamente dependentee endividada, com compromissos alienadores da nossa soberania queproduzem descontentamento e inquietação política em diversos seg-mentos sociais. Por isso procura manobrar, de um lado, procurandoimpedir um conflito maior entre senhores e escravos, e, de outro, ten-tando saldar os seus compromissos financeiros internacionais assu-midos durante o conflito, especialmente com os Rotschild. 24
242 DA INSUROÊNCIA NEGRA AO ESCRAVISMO TARDIO
A população escrava, por seu turno, sai consideravelmente di-
ENCONTRO DO ESCR AVISMO TARDIO COM O CAPITAL MONOPOLISTA 243
fosse posto em prática. Os negros escravos não tinham a hegemonia
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minuída da Guerra do Paraguai. Não tem mais o peso demográficoda primeira fase do escravismo. Por outro lado, o aparelho repressorse refina'pelo menos aparentemente, os negros escravos estão menosconcentrados, a urbanização e a modernização prosseguem. Tudo is-to diferencia ainda mais o escravo na divisão técnica d» trabalho. S eupotencial de rebeldia se vê bloqueado por todas essas razões, enquantoo capital monopolista consegue dominar a queles setores económicos
que darão prosseguimento à form ação de um modelo dependente decapitalismo.Após a Guerra do Paraguai a escravidão decompunha-se social
e economicamente não apenas naquelas áreas decadentes do Nordes-te, mas no centro mesmo daquelas de economia nova e ascendente.
Se, de um lado, os escravos não mais participavam d e movi-mentos radicais armados, de outro, na última fase da escravidão, asimples resistência pa ssiva atuava como agente desarticulador e de-sestruturador daquelas unidades económicas que ainda produziam ba-seadas exclusivamente no traba lho escravo. O movimento abolicionistasó se articula nacionalmente em 1883, quando é fundada a Confede-ração A bolicionista. Esse movimento que teve diversas alas ideológi-cas procurava, na verdade, extinguir a escravidão, mas objetivava
igualmente manter o s escravos qu e abandonavam o trabalho sob seucontrole.
Desses mov imentos d a última fase do escravismo dois são osmais significativos: a atuação dos Caifases e a estruturação do Qui-lombo do Jabaqua ra, amb os em São Paulo, sendo que o segundo éum prolongamento do primeiro.
Os Caifases, liderados po r António Bento, iniciam-se com umdiscurso radical, pregando através do seu jornal A Redenção a eman-cipação dos escravos por quaisquer meios, inclusive o revolucioná-rio. Mas já no final a sua direção entra em conciliação com osfazendeiros, inclusive servindo de intermediária entre os escravos fu -gitivos e os proprietários das fazendas. N ão queremos negar que du-
rante algum tempo António Bento tenha sido um elemento valiosopar a a desarticulação das relações escravistas nessa última fase. O quedesejamos caracterizar e destacar é que dentro das condições sociaise históricas em que a transição se realizava, com os pólos de mudan-ça já dominados estrategicamente pelos agentes económicos externos— inclusive com a introdução d o trabalhador estrangeiro para subs-tituir o negro — , não havia possibilidades de que o discurso radical
do processo de mudança. Daí porque o próprio António Bento e n-trou e m contato co m fazendeiros paulistas q ue necessitavam d e bra-ços para a lavoura e oferece-lhes os próprios escravos fugidos de outrasfazendas. Bueno d e Andrada descreveu essa negociação nos seguin-tes termos:
António Bento enveredou por um caminho revolucionário mais origi-nal. Combinou com alguns fazendeiros, dos quais havia já despovoa-
do as roças, para receberem escravos retirados de outros donos. Cadatrabalhador adventício receberia de seus patrões o salário de 400 réis.O processo, sem perturbar completamente a lavoura, libertou turmase turmas de escravizados e interessou muitos fazendeiros na vitór ia dasnossas ideias. Foi uma bela ideia
Sobre essa solução encontrada pelos abolicionistas paulistas, Ro-bert Conrad escreve que:
Segundo este proprietário, que conduziu ele mesmo os proprietáriosa Bento para negociações, na data da Abolição mais de um terço dasfazendas d a província de São Paulo já estavam sendo trabalhadas po r escravos que haviam abandonado outras propriedades. (...) Para osplantadores de café, é claro, este arranjo era vantajoso, já que, a 400por dia, talvez mesmo uma escala temporária de salário, a renda anualdo trabalhador recentemente libertado era mais ou menos o equivalentedo valor de três sacas de café, ta lvez um oitavo da sua capacidade pro-dutiva. 25
Como vemos, os escravos qu e fugiram através d a proteção do sCaifases não tiveram liberdade de vender a sua força de trabalho d eforma independente, mas ela foi feita através de intermediários queestabeleceram inclusive o valor do salário. Tudo isto estava subordi-nado à conjuntura de transição sem a participação em primeiro pla-no daquelas forças sociais interessadas na mudança radical.
Existiam, portanto, mecanismos controladores da insurgênciaescrava por parte dos p róprios a bolicionistas. E com isto os negrosfugidos ficaram praticamente à mercê do protecionismo dos aboli-cionistas b rancos.
Com o Quilombo do Jabaquara, prolongamento d a atuação d osCaifases, o mesm o acontece. E le também surge na última fase d a cam-panha, organizado po r políticos que eram contra o instituto da es-cravidão, mas, a o mesmo tempo, tinham receio de uma radicalizaçãoindependente da grande massa de negros fugidos da s fazendas de ca-fé. Po r isto mesmo teve particularidades em relação ao s quilombosque se organizaram na prim eira fase do escravismo. Uma delas é que
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ele não surgiu lenta e espontaneam ente, como acontecia com os qui-lombos da primeira fase e era criação dos quilombolasem confrontocom a sociedade escravista no seu conjunto. Foi, ao contrário, orga-nizado por um grup o de abolicionistas que tinham objetivos muitoclaros e metas bem delimitadas. Os escravos evadidos tiveram, no ca-so, portanto, um papel passivo no processo. O seu líder, por outrolado (e talvez po r isto mesmo) foi o ex-escravo sergipano Quintino
de L acerda que não surgiu de uma luta independente dos escravosaté conseguir pela confiança geral a sua chefia, mas foi indicado pelogrupo organizador de abolicionistas moderados. Com ovemos, o qui-lombo teve a sua formação subordinada às peculiaridades conciliató-rias da ideologia abolicionista e não às lutas d os próprios escravos.
A chegada de ondas sucessivas de cativos a Santos, vindos dediversas regiões d a Província e que ali se refugiavam, levou os aboli-cionistas daquela cidade paulista a tom arem um a posição prática nosentido de organizá-los convenientemente. Em 1882, por iniciativa deXavier Pinheiro, realizou-se u m a reunião desses abolicionistas paradecidirem o destino que poderiam dar às centenas de negros que che-gavam diariamente àquela cidade.
Feita uma coleta entre eles para a organização de um quilom-bo , conseguiu-se num abrir e fechar de olhos" duzentos homens ar -mados. Quintino de Lacerda foi escolhido chefe do quilombo eelemento de ligação entre os negros do reduto e os abolicionistas dacidade. Os abolicionistas escolheram, tam bém , o local do quilombo: uma área ainda em estado primitivo, coberta de matos e cortadade riachos". 26 Segundo um historiador da cidade de Santos a esco-lha de Quintino de Lacerda para chefe do quilombo deveu-se à ne-cessidade de um líder que os m antivesse (os negros fugidos) em ordeme arrefecesse os seus ímpetos naturais e compreensíveis . 2? Comovemos, o quilombo foi organizado como mecanismo controlador deum possível radicalismo no comportamento dos negros fugidos.
Esse quilombo, como vemos, era bem diferente d e quantos s e
formaram na primeira fase da escrav idão. Os abolicionistas p rocura-va m tirar os escravos das fazendas, mas não permitiam que eles seorganizassem sem a m ediação do seu poder de direção sobre eles. E raportanto uma solução intermediária que subordinava os escravos fu-gidos às correntes abolicionistas.
Daí terem surgido, dentro desse conjunto de forças, contradi-ções e divergências quanto a o tratam ento que deveria ser dado a es-ses negros. Joaquim Xavier Pinheiro, abolicionista e inspirador da
fundação do quilom bo, embora no seu início tenha aj udad o com di-nheiro o movimento, explorou posteriormente o trabalho dos quilom-bolas em proveito próprio. Possuidor de uma caieira, em pregava osescravos refugiados no Jabaquara sem remuneração na sua empresa,a troco de comida e esconderijo. Os demais abolicionistas sabiam dofato mas fingiam ignorá-lo, pois, para eles a sua contribuição à cau-sa justificava aquele procedimento.
Sem acesso à terra, o negro se marginalizou na cionalmente de-pois da Abolição. Em relação ao Nordeste, Manoel Correia de An-drade escreve com acerto que:
A Abolição, apesar de ter sido um a medida revolucionária, de vez queatingiu em ch eio o direito de propriedade, negando indenizaçâo aos de-sapropriados, não tendo sido complementada por medidas que demo-cratizassem o acesso à propriedade da terra, não provocou modificaçõessubstanciais nas estruturas existentes. As mesmas famílias, ou mes-mo grupos dominantes continuaram a dirigir a economia da área açu-careira, apenas substituindo o que em parte já haviam feito, o uso damão-de-obra escrava pelo uso da mão-de-obra assalariada.28
Os mecanismos seletores e discriminadores foram os mesmos.Tanto no Nordeste quanto nas demais regiões.
Como v emos, a rebeldia negra, na fase conclusiva da Abolição,ficou subordina da àquelas forças abolicionistas m oderadas que pro-curaram subalternizar o negro livre de acordo com padrões de obe-diência próximos aos do escravo. Era o início d a m arginalização donegro após a Abolição q ue persiste até hoje. O s próp rios a bolicionis-tas se encarregaram de colocá-lo no seu devido lugar".
10. Operários e É uma característica desse escravismo tardioescravos em o cruzamento de relações escravistas e capi-lutas paralelas t alistas. Se isto se verificava no nível das clas-
ses dominantes, vamos encontrar o mesmofenómeno n o nível da classe trabalha dora, isto é , a existência de mo-vimentos de resistência escrav a e movimentos de trabalhadores livres,de operários. Os escravos ainda lutava m p ela extinção do ca tiveiroe já os operários, paralelamente, p artiam para um a posição reivindi-cativa, inclusive organizando greves. Isto bem demonstra a hetero-doxia desse modo de produção na sua última fase, o encontro decontradições entre senhores e escravos e capitalistas e operários.
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246 DA INSURGÊNCIA NEGRA A O ESCRAVISMO TARDIO
Neste sentido, Hermínio Linhares registra u m a jreve de tipó-grafos em 1858, apenas oito anos, portanto, após a extinção do tráfi-co negreiro. Diz ele neste sentido:
A greve do s tipógrafos em 1858 foi a primeira greve do Rio de Janeiro,talvez do Brasil. O trabalho dos t ipógrafos não era regularizado, princi-
palmente no s grandes jornais, começavam a trabalhar à s três horas datarde e só largavam alta noite e à s vezes terminavam de madrugada.Em dezembro de 1855 resolveram pedir o aumento de dez tostões diá-rios, sendo prontamente atendidos. Decorridos dois anos, nos primór-dios de dezembro de 1857, como o custo de vida tivesse subido muito,pediram novo aumento. Não especificaram quanto desejavam, pelo con-trário, declararam que se satisfaziam com qualquer quantia, mesmo pe -quena. Os empregadores, alegando ser necessário estudar o problema,pediram que aguardassem resposta até o início do ano. Nos primeirosdias d e janeiro veio a resposta: o aumento não era possível. Em 8-1-1858os tipógrafos d os jornais Diário do Rio de Janeiro, Correio Mercantil
e Jornal do Comércio, qu e eram os grandes jornais d a época, não sa-tisfeitos com a resposta dada, exigiram aumento de dez tostões diá-rios. Os patrões se negaram. Foi desencadeada a primeira greveorganizada do Rio. No dia 9-1-1858 nã o houve jornais. No dia 10, do-
mingo, o s tipógrafos lançaram o seu jornal — Jornal do s Tipógrafos.Nele se defendiam e ao mesmo tempo atacavam os proprietários dosjornais; além disso, o jornal era igual aos demais, possuindo todas assessões clássicas da época. Assustados, os proprietários dos jornaispediram ao chefe de polícia providências enérgicas; este chamou umacomissão de vinte grevistas, que tão bem se houve na defesa das suasreivindicações que o chefe de polícia nada pode fazer. Foram feitos ape-los pelos proprietários ao Ministro da Justiça que também nada con-seguiu. Em desespero, correram ao Ministro da Fazenda; este ordenouque os tipógrafos da Imprensa Nacional fossem postos à disposiçãodas três folhas. Tais tipógrafos, porém, solidários com seus colegas,se negaram a trabalhar. Foram necessárias muitas ameaças, medidasde repressão etc., para que eles ocupassem o lugar do s grevistas. Quan-do terminou a greve, os tipógrafos foram acusados de elementos per-turbadores, de anarquistas.29
Ainda está por se fazer um levantamento dos movimentos dostrabalhadores livres no período escravista e as possíveis convergên-cias ou divergências com as lutas dos escravos. Na greve que estamosregistrando, encontramos, ainda em Hermínio Linhares:
Como fosse difícil a impressão de seu jornal (dos grevistas), um grupode tipógrafos se ofereceu e trabalhou de graça. No n.°14, lê-se: Já ét empo de acabarem as opressões de toda casta; já é tempo de se guer-rear por todos os meios legais toda exploração do homem pelo mes-mo homem . A Imperial Associação Tipográf ica Fuminense deu onzedos doze contos de réis que tinha em caixa para auxiliar o jornal.30
Queremos destacar aqui, nesta perspectiva de possível conexãode lutas operárias com as dos escravos, que foi exatamente essa I m -perial Associação Tipográfica Fluminense que, ao ser informada de
que entre os seus associados tinha um que era escravo designou uma
comissão para libertá-lo.Do ponto de vista em que nos colocamos em relação ao escra-
vismo tardio o exemplo é significativo pois demonstra como já exis-tiam escravos trabalhando como operários e se associando a entidadesde trabalhadores livres e, em contrapartida, a iniciativa de uma des-
sas entidades no sentido de modificar o status do seu associado,
concedendo-lhe o título de cidadão.As greves e movimentos reivindicatórios dos operários durante
o escravismo ainda não foram levantadas sistematicamente por pes-quisadores. Há, porém, diversas informações esparsas. Escreve Fer-nando Henrique Cardoso:
Em época anterior à greve dos chapeleiros, em 1884, houve um movi-mento reivindicatório levado adiante pelos trabalhadores de uma es-trada de ferro. Reclamavam a obrigação que lhes era imposta de gastaros salários nos armazéns da própria companhia, onde pagavam o do-bro do preço corrente no mercado pelos géneros de que necessitavampara viver. No decorrer do movimento reivindicatório enviaram um me-morial à Companhia onde diziam: Somos pobres e temos que nos su-jeitarmos aos caprichos desses senhores, por infelicidade nossa. Istonão é justo. Impõe-se-nos como obrigação gastarmos de 15$000 a20$000 por mês, podendo nós gastarmos muito menos. Isto é duro. De-pois, se algum trabalhador resiste e não gasta nos tais armazéns é lo-go despedido. À digna diretoria levamos os nossos queixumes,esperando que ela providencie no sentido de que se dê liberdade e pro-teção aos trabalhadores .31
Esses movimentos de trabalhadores livres que coexistem com osescravos bem demonstram como o escravismo tardio do Brasil de-monstrava, na sua estrutura, dois níveis de contradições na área dasrelações de trabalho. Uma era entre os senhores de escravos e a es-cravaria que se revoltava, outra era aquela que existia entre patrões
e operários que reivindicavam maior valorização da sua força de tra-
balho. De permeio, influindo em uma e na outra, o capital monopo-lista internacional garroteava o desenvolvimento autónomo da nossaeconomia e a colocava em situação de dependência como está até hoje.
24* DA INSUROÊNCIA NEGRA AO ESCRAVISMO TARDIO NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 249
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Notas e referências bibliográficas
1 RODRIGUES, José Honório. A rebeldia negra e a Abolição. Afro-Ásia, pu-blicação semestral do Centro de Estudos Afro-Ocidentais, Salvad or, (6/7):102-3, jun./dez. 1968.
2 ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil. Saltador, LivrariaProgresso, 1950. p. 55.
3 Idem, ibidem, p. 86.4 Idem, ibidem, p. 57.5 BENCI, Jorge S. J. Economia cristã dos senhores no governo do s escra-
vos. São Paulo, Grijalbo, 1977. p . 139.6 MARX, Kar l . Lê capital. Paris, 1949. v. II, p. 91.7 Vejamos como a lei é detalhista, igualando-se à resposta do Rei ao Conse-
lho Ultramarino quando define o que é quilombo, entrando, tam bém , naminúcia do número : quilombo era toda habitação de negros fugidos quepassem d e cinco, em parte desprovida, ainda que não tenham ranchos le-vantados nem se achem pilões neles". A resposta é de 1740.
8 Coleção das Leis do Governo do Império do Brasi l , 1835, p. 5-6.9 GOULART, José Alípio. Da fuga ao suicídio (Aspectos de rebeldia dos es-
cravos no Brasil). Rio de Janeiro, Conquista, 1972. p. 35.10 SALLES, Vicente. O negro no Pará. Rio de Janeiro, FGV/UFP, 1971. p.217.
11 Vejamos a situação descrita po r José António Gonçalves de Mello: Des-de 1638 há referência a quilombos que constituíam uma grande ameaçapara as populações e os bens da colónia. Havia tam bém pequenos aldea-mentos ou bandos de negros que roubavam e matavam pelos caminhos:os 'boschnegers', contra os quais eram empregados capitães de campo bra-sileiros, já que os holandeses eram considerados incapazes para tal fun-ção. (...) Outros quilombos surgiram no período da dominação holandesa,ma s são poucas as informaç ões sobre eles. Um deles estava situado na 'MataBrasil' e os seus elementos corriam a região em bandos, roubando e ma-tando. O governo holandês castigava-os exemplarmente: eram enforcadosou queimados vivos (.'..) Mas a guerra empreendida pelos holandeses no
período 1630/1635 desorganizou completamente a vida da colónia. Todosos negros aproveitaram a oportunidade para fugir. Pela leitura dos docu-mentos vê-se que, parou quase com pletamente o trabalho nos engenhos.Um a relação dos engenhos existentes entre o rio das Jandadas e o Una ,feita pelo conselheiro Schott, mostra-nos a verdadeira situação dessas pro-priedades, exatamente na zona mais rica da Cap itania, e a zona Sul. Eramcanaviais queimados, casas-grandes abrasadas, os cobres jogados aos rios,açudes arrombados, os bois levados ou comidos, fugidos todos os negros.Só não haviam fugido os negros velhos e molequinhos". (MELLO, NETO,José António Gonçalves de. Tempo de flamengos . Rio de Janeiro, JoséOlympio, 1947. p. 206-30.)
12 FEYDIT, Júlio. Subsídios para a história do s campos d os goitacases. Ri ode Janeiro, Esquilo, 1979. p. 361. Devemos assinalar a técnica sofisticadausada para o incêndio, o que demonstra a participação pelo menos indire-ta de abolicionistas junto aos escravos fugidos, pois o uso de lentes paratais atos pressupõe uma intenção de impunida de que o quilombola tra di-cional não tinha.
13 Idem, ibidem, p. 362.14 Idem, ibidem, p. 362.15 V ejamos como um historiador do Quilombo do Am brósio descreve a di-
visão do trabalho naquele reduto: Foi um modelo de organização, de dis-ciplina, de trabalho comunitário. Os negros, cerca de mil, eram divididosem grupos ousetores, trabalhando todos d e acordo com a sua especialida-de. Havia os excurcionistas ou exploradores, qu e saíam em grupos de trinta,mais ou menos, assaltavam fazendas ou carava nas de viajantes; havia oscampeiros ou criadores, que cuidava m do gado; havia os caçadores ou me-garefes; os ag ricultores que cuidavam das roças e plantações; os que trata-va m do s engenhos, fabricação de açúcar, aguardente, azeite, farinha etc.Todos trabalhavam nas suas funções. (...) As colheitas eram conduzidasaos paióis da comunidade . (BARBOSA, W aldemar de Almeida. Negrose qui lombos em Minas Gerais. Belo Horizonte, 1972. p. 31.)
16 SILVA, Maria Beatriz Nizza da. A primeira gazeta da Bahia: Idade d'Ou-
ro do Brasi l . São Paulo, Cultrix/MEC, 1978. p. 101.17 Doe. na Biblioteca Nacional do Rio, seção de manuscritos II, 24, 6, 53,apud SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Op. cit.
18 Apud SODRÉ, Nelson W erneck. Brasil: radiografia de um modelo . Petró-polis, Vozes, 1975. p. 43.
19 SODRÉ, Nelson W erneck. Op. cit., p. 46.20 Apud MARTINS, Ivan Pedro de . Introdução à economia brasileira. Rio de
Janeiro, José Olympio, 1961. p. 100-1.21 CHIAVENATO, J. J. Os voluntários da pátria (e outros mitos). São Paulo,
Global, 1983. p. 33.22 Idem, O negro no Brasil (da senzala à Guerra do Paraguai). São Paulo,
Brasiliense, 1980. p. 203-4.23 Nab uco, o mais conspícuo abolicionista no Parlam ento, dizia no particu-
lar: A propagand a abolicionista, com efeito, não se dirige aos escravos.Seria uma cobardia, inepta e criminosa, e, além disso, um suicídio políti-co para o partido abolicionista, incitar à insurreição ou ao crime, homenssem defesa, e que a lei de Linch , ou a justiça pública, im ediatamente ha-veria de esmagar. Cobardia, porque seria expor outros a perigos que o pro-vocador não correria com eles; inépcia, porque seria fazer os inocentessofrerem pelos culpados, além da cumplicidade que cabe ao que induz ou-trem a cometer o crime; suicídio político, porque a nação inteira — vendoum a classe, essa a mais influente e poderosa do Estado, exposta à vinditabárbara e selvagem de uma população mantida até hoje ao nível dos ani-mais e cujas paixões, quebrando o freio do medo, nã o conheceriam limi-
250 DA INSURGÊNCIA NE GR A AO ESCRAVISMO TARDIO
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tes no modo de satisfazer-se — pensaria que a necessidade urgente era sal-var a sociedade a todo custo por um exemplo tremendo, e isto seria o sinalde morte do abolicionismo. (...) A emancipação há de ser feita, entrenós,por uma lei que tenha os requisitos externos e internos, de todas as outras.É assim, no Parlamento e não nas fazendas ou quilombos d» interior, nemnas ruas e praças das cidades, que se há de ganhar, ou perder, a causa daliberdade. Em semelhante luta, a violência, o crime, o descontentamento
de ódios acalentados, só pode ser prejudicial ao lado de quem tem por sio direito, a justiça, a preocupação dos oprimidos e os votosda humanida-de toda". (NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. São Paulo, Nacional,1938. p. 5-6.)
24 Vejamos como um historiador da Guerra do Paraguai descreve a situaçãoeconómica do Brasil após o conflito: "O Brasil ficou economicamente exau-rido. Terá que recorrer aos empréstimos ingleses. Entre 1871 e 1889 con-trai dívidas que montam a 45.504.100 libras. Seu comércio exterior estádominado por capitalistas britânicos. O café, seu principal produto de ex-portação, foi monopolizado pelas seguintes firmas: Phillips Irmãos,Schwind Mc Kinnel, Ed. Johnson and Co., Wright and Co., Boje & Cia.Apenas um nome brasileiro, o último da lista. Em 1875, do volume de co-mércio de toda a América Latina com a Inglaterra, 32% das exportaçõese 40% das importações cabe ao Brasil Império. Nesse setor, o Brasil ocu-pa o primeiro lugar, com larga diferença em relação aos outros. Os inves-
timentos ingleses, nesse ano, incluindo os empréstimos não-amortizados,atingem a casa de 31.289.000 libras". (POMER, Leon. Paraguai: nossa
guerra contra esse soldado. 2. ed. São Paulo, Global, s.d. p. 50.)25 CONRAD, Robert. Os Mimos anos da escravatura no Brasil. Rio de Ja-
neiro, Civilização Brasileira/MEC, 1975. p. 310. O depoimento de Buenode Andrada encontra-se na mesma página da citação.
26 MARTINS DOS SANTOS, Francisco. História de Santos. São Paulo, Revistados Tribunais, 1937. v. 2, p. 12.
27 Idem, ibidem.28 ANDRADE, Manoel Correia de. Escravidão e trabalho "livre" no Nordes-
te açucareiro. Recife, ASA, 1985. p. 39-40.29 LINHARES, Hermínio. Contribuição à história das lutas operárias no Bra-
sil. São Paulo, Alfa-Ômega, 1976.30
Antes dessa greve de 1858 há notícias de um movimento reivindicativo maisremoto. "Trata-se do movimento dos acendedores de luz. Esses homensameaçaram a cidade de deixá-la às trevas caso não fossem satisfeitas asexigências que faziam. Sabe-se que interveio a polícia e a ameaça dos acen-dedores de luz foi à força afastada." (QUEIROZ, Maurício Vinhas de. Asprimeiras lutas operárias no Brasil. Revista do Povo, (2), 1946.)
31 CARDOSO, Fernando Henrique. Proletariado no Brasil: situação e compor-tamento social. Revista Brasiliense, São Paulo, (41): 108, 1966.
As séri s Princíp ios e u n d a m e n t o s sã o fruto de um trabalho editorialintenso e realista e apresentam l i v r o s intimamente ligados aos currículosde nossas faculdades sempre elaborados po r autores representativos de
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1. Na sala de aulaCaderno de análise literáriaAntónio Cândido
2. Novas lições d e análise
sintàticaAdriano da Gam a Kury
3. Tem pos da literaturabrasileiraBenjamin Abdala Júnior BSamira Youssef Campedellí
4. No reino d a falaEleonora Moita Mata
5. Literatura infantil brasileiraHistória & históriasMa is a Lajoio õRegina Zilberman
6. Iniciação ao teatroSábato Magald i
7 Estónas africanasHistória & antologiaMaria Aparecida Santilli
8. Reflexões sobre a arteAlfredo Bosi
9. No mundo da escritaUrna perspectivapsicolinguisticaMary A. Kato
10. Linguagem
e escolaUma perspectiva socialMagda Soares
11. Psicologia diferencialDante Moreira Lei te
12. MorfossintaxeF/ á v ia de Bam s Carone
13. L iteraturas africanas deexpressão portuguesaManuel Ferreira
14. Romance htspano-americanoBeíla Jozef
15. Falares crioulosLínguas em contatoFernando Tarallo EtTânia Alkmin
16. A prática da reportagemRicardo Kotscho
17- A língua escrita no BrasilEdith Pimentel Pinto
18. Cultura brasileiraTemas e situaçõesAlfredo Bos i
19. Pensamento pedagógicobrasileiroMoacir Gadot t i
20. Constituições brasileiras ecidadaniaCélia Galvão Quir ino Maria Lúcia Montes
2Í . História d a línguaportuguesaL Século Xlll e século XIVOswaldo Ceschin
22 . História da línguaportuguesaII Século XV e meados doséculo XV IDulce d e Faria Paiva
23 . História da línguaportuguesaIII. Segunda metade doséculo XVI e século XVI ISegismundo Spina
24 . História da línguaportuguesaIV. Sécuio XVI I IRolando Morei Pinto
25. História d a línguaportuguesaV Século X IXNilce Sant'Anna Martins
26. História da línguaportuguesaVI. Século XXEdith Pimentel Pinto
27. Administração estratégicaLuiz Ga
28. A tragédia - estrutura &históriaLígia Militz da Costa &Mana Luiza Ritzel Remédios
29. Dicionário de teoria danarrativaCarlos Reis QAna Cr ist ina M. Lopes
30 . Introdução à economiamundial contemporâneaGeraldo Muller
31. O tempo na nar ra t ivaBenedito Nunes
32 . Classes, regimes eideologiasRobert Henry Srour
33 . AIDS -Uma estratégia para aassistência de enfermagemRobert J- Pratt
34. Sociologia do negrobrasileiroClóvis Moura
35. Aprendizagem eplanejamento de ensinoWilson de Faria
36. Sociologia d a sociologiaOctavio lanni
37. A fo rm ação d o EstadoPopulista na AméricaLatinaOctavio lanni
38. Introdução à f ilosof ia daar t eBenedito Nunes
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SÉRIE
EBDNCfEDS1 Paródia paráfrase & Cia. - AffonsoRomano de SanfAnna * 2. Teoria do con-to - Nádia Battella Gotlib * 3 A persona-gem - Beth Brait 4. Ofoco narrativo -Lígia Chiappini Moraes Leite * 5. A cróni-ca - Jorge de Sá *6. Versos sons rit-mos - Norrna Goldstein * 7. Erotismo eliteratura — Jesus António Durigan * 8.Semântica — Rodo l f o Ilari & JoãoWanderley GeraRJT* 9. A pesquisa socio-lingúfstica - Fernando Taral lo 10. Pro-núncia do inglês norte-americano - Mar-tha Steinberg * 11. Rumos da literaturainglesa - Mana Elisa Cevasco & Valter Lel-lis Siqueira * 12 Técnicas de comunica-ção escrita - Izidoro Blikstein * 13 Oc a-ráter social da ficção do Brasil - FábioLucas ir 14. Best-seller: a literatura demercado - Muniz Sodré *15. Osigno -Isaac Epstein * 16. Adança - Miriam Gar-cia Mendes * 17. Linguagem e persuasão— Adilson Citelli * 18. Para uma nova gra-mática do Português — Mário A. Penn *19. Atelenovela - Samira Youssef C am-pedelli * 20. A poesia lírica - Salete deAlmeida Cara 21 . Períodos literários -Lígia Cademar tor i * 22. Informática e so-ciedade — António N icolau Youssef & Vi-cente Paz Fernandez * 23 Espaço e ro-mance — António Dimas * 24. O herói —Flávio R . Kothe * 25. Sonho e loucura -
José Roberto Wolf f * 26. Ensino da gra-mática. Opressão? Liberdade? — EvanildoBechara 27. Morfologia inglesa - no-
ções introdutórias -Martha Steinberg ir28. Iniciação à música popular brasileira- Waldenyr Caldas + 29. Estrutura da no-tícia - Nilson Lage * 30 Conceito de psi-quiatria — Adilson Grandino & Durval No -gueira * 31 . O inconsciente — um estudocrítico - Alf redo Naffah Neto * 32. Ahis-teria - Zacaria Borge Ali Ramadam * 33.O trabalho na América Latina colonial -Ciro F lamar ion S. Cardoso *34. Umbanda
— José Guilherme Cantor Magnani * 35.Teoria dainformação - Isaac Epstein 36. O enredo - Samira Nahid de Mesquita* 37 Linguagem jornalística — Nilson Lagê * 38. O feudalismo: economia e socie-dade — Hamilton M. Monteiro * 39. Acidade-estado antiga - Ciro Flamarion S.Cardoso * 40. Negritude — usos e senti-
dos — Kabengele Munanga * 41 . Impren-sa feminina — Dulc í l ia Schroeder Buitoni 42. Sexo e adolescência -Içami Tiba 43. Magia e pensamento mágico —
Paula Montero 44. Ametalinguagem -Samira Chalhub * 45. P sicanálise e lin-guagem - Eliana de Moura Castro * 46.Teoria da literatura - Rober to Acízelo deSouza * 47. Sociedades do Antigo Orien-te Próximo — Ciro F lamar ion S. Cardoso *48 Lutas camponesas no Nordeste -Manuel Correia de Andrade * 49 . Alingua-gem literária - Domicio Proença Filho +50. Brasil Império - Hamilton M. Monteiro 51. Perspectivas históricas da educa-ção — Eliane Marta Teixeira Lopes *52.Camponeses - Margarida Maria Moura-*53. Região e organização espacial — R o-berto Lobato Corrêa * 54. Despotismo es-clarecido - Francisco José Calazans Fal-con 55 Concordância verbal - MariaAparecida Baccega * 56. Comunicação ecultura brasileira — Virgílio Noya Pinto *57. Conceito de poesia - Pedro Lyra *58. Literatura comparada — Tânia FrancoCarvalhal * 59 Sociedad es indígenas -
Alcida Rita Ramos * 60. Modernismo bra-sileiro e vanguarda - Lúcia Helena * 61.Personagens da literatura infanto-juvenil*Sônia Salomão Khéde * 62. Cibernéti-ca — Isaac Epstein *63. Greve — fatos esignificados — Pedro Castro * 64. Aaprendizagem do ator - António Januzel-li, Janô + 65. Carnaval carnavais - JoséCarlos Sebe * 66. Brasil República - Ha-milton M. Monteiro * 67. Computador e
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ensino — u m a aplicação à língua portu-guesa — Cristina P. C. Marques, M. IsabelL. de Mattos, Yves de Ia Tail le * 68. Modocapitalista de produção e agricultura -Ariovaldo Umbelino de Oliveira * 69. Casa-mento, amor e desejo no Ocidente Cris-tão — Ronaldo Vainfas * 70. Marxismo eteoria da revolução proletária - Eder Sá-der *71. Pescadores do mar - SimoneCarneiro Maldonado * 72. Aalegoria —Flávio R. Kothe * 73. Consciência e iden-tidade - Malvina Muszkat 74. Oficinade tradução — Ateoria na prática - Ro-semary Arro jo * 75. História do movimen-to operário no Brasil — Antón io Paulo Re-zende 76. Neuroses - Manuel IgnacioQuiles 77. Surrealismo - Marilda deVasconcellos Reboliças * 78. Romantismo*Adilson Citell i 79. Higiene bucal -Giorgio de Micheli, Carlos Eduardo Aun,Michel Nicolau Yousse f * 80. Aspectoseconómicos da educação - LadislauDowbor * 81. Escola Nova — Cristiano DiGiorgi * 82. Análise da conversação —Luiz António Marcuschi * 83. O Estado
Federal - Dalmo deAbreu Dallari 84.Iluminismo — Francisco José Calazans Fal-con 85. Constituições - Célia GalvâoQuirino, Maria Lúcia Montes * 86. Litera-tura infantil — voz de criança — Maria Jo -sé Paio, Maria Rosa D. Oliveira * 87. Aimagem - Eduardo Neiva Jr. 88. Teorialexical - Margarida Basilio 89. Apolíti-ca externa brasileira (1822-1985) -Amado Luiz Cervo, Clodoaldo Buefio * 90.Energia & fome - Gilberto Kobler Corrêa 91 Sonhar brincar, criar, interpretar -
Arlindo C. Pimenta * 92. História da litera-tura alemã - Eloá Heise, Ruth Ròhl * 93.História do trabalho — Carlos Rober to deOliveira 94 Nazismo — O Triunfo daVontade — Alcir Len haro * 95. Fascis-mo italiano — Angelo Trenío * 96. Asdrogas - Luiz Carlos Rocha * 97. Poesiainfantil - Maria d a Glória Bordini * 98.Pactos e estabilização económica — Pe -dro Scuro Neto * 99. Estática do sorriso— Michel Nicolau Youssef, Carlos «EduardoAun, Giorgio de Micheli * 100. Leitura
sem palavras — Lucrécia D'Aléssio Feirara
101 ODiabo no imaginário cristão Carlos Rober to F. Nogueira * 102. Psicote-rapias - Zacaria Borge Ali Ramadam -*103. O conto de fadas - Nelly NovaesCoelho 104. Guia teórico do alfabetiza-dor -Míriam Lemle * 105. Entrevista — odiálogo possível — Cremilda de Araújo M e-dina * 106 Quilombos — resistência aoescravismo - Clóvis.Moura 107. Raça— conceito e preconceito — Eliane Azeve-do * 108. Candomblé — religião e resis-tência cultural Raul Lody * 109 Aboli-ção e reforma agrária - Manuel Correia deAndrade * 110 Poemas eróticos de Car-
los Drummond da Andrade - R i t a de Cãssia Barbosa * 111. Cinema e montagem— Eduardo Leone e Maria Dora Mourão *
' 112. Democracia - Décio Saes * 113. Overbo inglês — teoria e prática — ValterLellis Siqueira A 114. Descobrinentos colonização — Janice Theodoro da Silva* 1 1 5 D. João VI: os bastidores da inde-pendência — Leila Mezan Algranti * 116.Escravidão negra no Brasil - Suely Ro-bles Reis de Queiroz * 117. Anarquismo eanarcossindicalismo — Giuséppiíia Sferra* 11 8 Afeitiçaria na Europa moderna Laura de Mello e Souza * 119 Funções dalinguagem - Samira Chalhub 120. Cicloda vida — ritos e ritmos - Thales de Azevedo * 121. Televisão e psicanálise —Muniz Sodré * 122 . Cultura popular noBrasil - Marcos Ayala e Maria Ignez NovaisAyala * 123. Desenvolvimento da perso-nalidade - símbolos earquétipos - CarlosByington * 124. Sistemas de comunica-ção popular - Joseph M. Luyten 125.Períodos filosóficos - João daPenha 126. Os povos bárbaros - Ma ria Sonsoles
Guerras * 127. Abolição — Antón io TorresMontenegro k 128. Como ordenar asideias - Edivaldo M. Boaventura 129.Advérbios - Eneida Bomfim 130. Im-
prensa operária no Brasil - Maria Naza-reth Ferreira ir 131. O método junguiano*Glauco Ulson 132. O antástico -Selma Calasans Rodrigues * 133. Gramscíe a escola — Luna Galano Mochcovi tch *134 Dimensões simbólicas da personali-dade — Carlos Byington * 135. Estruturada personalidade — Persona e sombraCarlos Byington * 136. Grandezas e uni-dades de medida — O sistema internacio-nal de unidades - R o me u C. Rocha-Filho 137 Linguagem e ideologia - José LuizFiorin * 138 Subordinação e coordena-ção — Confrontos e contrastes Fláviade Barros Carone k 139. Ernest Heming-way — Julian Nazario * 140. Roma repu-blicana — Norma Musco Mendes * 141.Pesquise de mercado — Marina Rutter &Sertório Augusto de Abreu * 142 . Burgue-sia e capitalismo no Brasil - Antón io C ar
los Mazzeo * 143 Sistemas de comunica-ção popular — Joseph M . Luyten * 144.Evolução biológica - Controvérsias -
Celso Piedemonte de Lima * 145. Arqueo-logia - Pedro Paulo Abreu Funari * 146.Escara — Problema na hospitalizaçãoMaria Coeli Campedelli & Raquel RaponeGaidzinski * 147 Injecões — Modos emétodos — Brigitta Pfeiffer Caste l lanos *148 Ecologia cultural — Uma antropolo-gia da mudança - Renate Br ig i t te Vierther+ 149 Inças e astecas — Culturas pré-colombianas - Jorge Luiz Ferreira.