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Panfleto político cultural, dossiê Raymond Russel

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    SOPRO98[ DOSSIRAYMONDROUSSEL]

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    Locus solus

    Raymond Roussel

    Traduo de Fernando Scheibe | Prefcio de Ral Antelo |Posfcio de Pierre Bazantay | Capa e projeto grco de Marina Moros

    Desterro: Cultura e Barbrie, 2013 [pseudo- coleo de literatura, 344pgs].

    Venda e mais informaes em http://culturaebarbarie.org/?page_id=511

    Imagem da capa:marcus parcus

    (themonkeymind.livejournal.com)

    ApresentaoFernando Scheibe

    Raymond Roussel (1877-1933) uma gura nica, um verdadeiro Locus Solus da literatura mundial.Considerado por muitos de seus contemporneos uma espcie de dbil mental, Roussel talvez stenha escapado ao obliviumgraas ao fascnio que exerceu sobre os surrealistas e, especialmente,sobre Michel Leiris, que passou a vida s voltas com seu Cahier Roussel.

    A partir da, sua obra cresceu atravs de leitores como Marcel Duchamp, Guillaume Apollinaire,Francis Picabia, Georgio de Chirico, Jean Cocteau, Paul luard, Robert Desnos, Roger Vitrac, Phili -ppe Soupault, Andr Breton, Georges Bataille, Salvador Dal, Anbal Machado, Jean-Jacques Pauvert,Raymond Queneau, Leonardo Sciascia, Georges Perec, Michel Butor, Alain Robbe-Grillet, talo Calvi -no, Jlio Cortzar, John Ashbery, Joseph Cornell, Michel Foucault, Gilles Deleuze, Enrique Vila-Matas,Csar Aira...

    Como resumiu o patafsico emrito Jean Ferry (ou Lvy, como preferir): Depois [de Roussel], vemtoda a literatura dita moderna.

    Este nmero especialssimo do SOPRO, que festeja a publicao da primeira traduo em portugusde Locus Solus(ano que vem tem mais Roussel na Cultura & Barbrie, aguardem!), rene mortos evivos para enar uma grande haste de vitaliume uma dose cavalar de ressurrectinana leitura brasileirade Roussel.

    O leitor encontrar aqui, alm de textos inditos, redigidos especialmente para esta edio, e deuma parte essencial da fortuna crtica de Roussel, dois fragmentos do manuscrito inicial de Locus Soluscortados da verso nal.

    Roussel sempre foi obcecado pela glria. Mas, como explica Michel Leiris, a verdadeira glria no fama e sim xtase. Que o leitor, portanto, se extasie.

    Agradeo, extasiadamente, a colaborao de todos, vivos e mortos, que participaram deste soprode vida.

    http://culturaebarbarie.org/?page_id=511http://localhost/var/www/apps/conversion/tmp/scratch_7/themonkeymind.livejournal.comhttp://localhost/var/www/apps/conversion/tmp/scratch_7/themonkeymind.livejournal.comhttp://culturaebarbarie.org/?page_id=511
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    Raymond Roussel. A Chave Unicada*1

    Csar Aira | Traduo de Byron Vlez Escalln

    Explicitar mais uma vez o famosoprocedimentode Roussel tempo perdido; por mais clara que sejaa explicao, sempre car um mal-entendido. Roussel a torre de Babel dos seus intrpretes e es -tudiosos. De algum modo, ele fez com que todos falem idiomas diferentes. Todo artigo que se escrevesobre ele poderia se intitular: Os erros mais frequentes que se cometem ao falar de Roussel.O preoque se paga por acreditar t-lo entendido acreditar que o outro, qualquer outro, o entendeu mal. Isto, sim, explicvel, ao menos parcialmente: um escritor nico, que no entra em nenhuma das catego-rias em que se classicam os demais escritores, continua nico na recepo, ou seja, torna nico o

    leitor, que se sente separado de todos os outros leitores pelo abismo do erro. Algo parecido acontecequando o dilogo no mais entre expertos, mas entre aquele que sabe, que dedicou anos e paixo leitura de Roussel, e aquele que no sabe mas gostaria de saber: a distncia entre ambos excessiva.Ns, rousselianos, sabemos demais sobre Roussel; h demasiada erudio construda ao seu redor, elemos tudo, incorporamos tudo ao corpus, porque tudo pertinente, dada a qualidade de Mundo quetm Roussel e sua obra, qualidade que este fato precisamente conrma. Quem quer entender o Mundodever deixar de lado a categoria do pertinente, porque tudo o , e isso o que o faz Mundo.

    Ainda assim, a tentao de explic-lo de novo se faz irresistvel, qui no s por motivos psico -lgicos, mas por uma condio inerente obra, que exige a multiplicao do nico no seio do mal--entendido. Voltar a explic-lo tem algo de prova de laboratrio. O resultado da prova no pode seroutro que revelar um erro a mais e, a partir dele, revelar a curiosa propriedade dos erros sobre Roussel:a de no ser erros.

    Pois bem, um dos enganos mais frequentes quando se fala de Roussel confundir seu procedi-mentoparticular com o procedimento em geral. Um procedimento um mtodo para gerar argumentosnarrativos, histrias. Tambm poderiam servir para gerar argumento s de outro tipo, poticos, cientcose at loscos; mas no fundo sempre sero narrativas. Esse mtodo poderia consistir em extrairpalavras ao acaso do dicionrio, ou de um chapu, e armar uma histria que fosse da primeira palavra segunda, da segunda terceira... Se a primeira palavra que saiu da cartola colher, a segunda mer-crio, a terceira bactria, a histria poderia ser sobre um jogo de talheres no palcio do rei de um pascujo principal produto de exportao o mercrio, e uma colher desse jogo aparece com uma estranhamarca durante um jantar... E dessa marca sai a frmula para criar uma bactria que se alimentaria demercrio e levaria o pas runa... Improviso um exemplo qualquer. O procedimento poderia ser qual-quer outro, usando imagens recortadas de revistas, ou misturando manchetes do jornal. No precisaser muito criativo ou estranho, basta que sirva ao propsito de pr o acaso a servio de uma formaolingustica qualquer, que depois a honestidade (a honestidade do bom jogador, que no trapaceia) do

    *Originalmente publicado em Carta, N 2, Madri: primavera- vero, 2011. Revisado por Joca Wolff e FernandoScheibe.

    Sumrio

    5 | Raymond Roussel. A Chave Unifcada(Csar Aira; trad. Byron Vlez Escalln)

    13 | Locus Solus est reanimado Bom Pblico (Raymond Roussel; trad. Paolo Colosso)

    14 | O duplo e seu teatro[fragmento] (Laurent Jenny; trad. Paolo Colosso)

    16 | Sobre Raymond Roussel[fragmento] (John Ashbery; trad. Alexandre Nodari)

    17 | Raymond Roussel: a estrela na testa(Paul Eluard; trad Joca Wolff)

    18 | A estrela na testa(Robert Desnos; trad. Diego Cervelin)

    20 | Histria de leituras(Jean-Jacques Pauvert; trad. Pablo Simpson)

    26 | Raymond Roussel(Andr Breton; trad. Fernando Scheibe)

    28 | Apenas um breve depoimento(Claudio Willer)

    30 | A rulote de Raymond e outras invenes(Dominique Ndellec; trad. Thiago Mattos)

    34 | O jogador de xadrez[fragmento] (Roger Vitrac; trad. Marcelo Jacques de Moraes)

    35 | Uma nova querela entre antigos e modernos(Fabiano Barboza Viana)

    37 | Raymond Roussel. "Meus monstros sagrados"(Jean Cocteau; trad. Paula Glenadel)

    37 | Raymond Roussel: frica porttil(Kelvin Falco Klein)

    40 | Roussel em Plomeur(Patrick Besnier; trad. Fernando Scheibe)

    42 | Raymond Roussel(Phillippe Soupault; trad. Fabiano Barboza Viana)

    45 | Impresses de Raymond Roussel em Michel Leiris(Osvaldo Fontes Filho)

    56 | Os Comedores de Estrelas(Georges Bataille; trad. Ruy Luduvice)

    60 | Um autor difcil[fragmento] (Robert de Montesquiou; trad. Antonio Carlos Santos)

    61 | Como escrevi alguns de meus livros(Michel Leiris; trad. Liliane Mendona)

    63 | Entrevista sobre Raymond Roussel (Michel Leiris; trad. Fedra Rodrguez Hinojosa)

    67 | Martial Canterel promove o encontro entre os artistas Lucius groizard eArthur Bispo do Rosrio(Marta Dantas)

    75 | Locus solus[manuscritos] (Raymond Roussel; trad. Felipe Vicari de Carli e Fernando Scheibe)

    83 | Autos referentes morte de Raymond Roussel [fragmento](Leonardo Sciascia; trad. Eduardo Sterzi)

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    escritor usar para criar uma histria. (Ou trapaceando, d no mesmo). Como se v pelo exemplo an-terior, o da colher e do mercrio, o procedimento no fornece a histria pronta mas os elementos parafaz-la, e com os mesmos elementos pode-se inventar histrias diferentes, melhores ou piores segundoquem as zer. Para Roussel, isso era claro: Assim como com as rimas podem fazer-se versos bons ouruins, com este procedimento podem fazer-se livros bons ou ruins.

    A alternativa ao uso de um procedimento inventar histrias como sempre se fez, tirando-as daimaginao ou da memria, ou das innitas combinaes, em diferentes propores, de imaginao ememria (e, seria preciso agregar, desejos conscientes e inconscientes, rancores, anidades, antipa-tias, ideologias, e o resto todo da panplia psicolgica). Se sempre foi assim, e todas as obras-primasda literatura (menos as de Roussel) foram feitas assim, por que inovar? O simples fato de que sejao que fazem todos, e que sempre se tenha feito assim, um bom motivo para tentar algo diferente.

    Atravs do procedimento o escritor se libera das suas prprias invenes, que de algum modo sempresero mais ou menos previsveis, pois sairo dos seus mecanismos mentais, da sua memria, da suaexperincia, de toda a misria psicolgica perante a qual a maquinaria fria e reluzente do procedimentoluz como algo, enm, novo, estranho, surpreendente. Uma inveno realmente novanunca sair dosnossos velhos crebros, onde tudo j est condicionado e consabido. S nos dar esse novo o acasode uma maquinao alheia a ns.

    Alheia a ns... Mais ou menos. Porque o procedimento, como disse, nos d as peas do quebra--cabea, mas somos ns que devemos mont-lo. Mas um efeito dessa alheidade que o procedimento,se bem usado, gera uma histria tal que o leitor se perguntar: Como ele foi pensar nisso? , com umgesto de incredulidade. uma pergunta, e um gesto, muito eloquente. Quer dizer que s podemos pen-sar naquilo que foi predeterminado pela nossa histria, mentalidade, meio, poca, etc. As formaesque o procedimento propicia, pelo contrrio, esto livres desses condicionamentos.

    (Estes raciocnios admitiriam, me parece, uma objeo de segundo grau. Se o procedimento servepara nos dar uma histria que estaria vedada a nossa limitada capacidade de inveno... Os fatos reaisde nossa vida, de nossa biograa, no esto nos dando os mesmos elementos, independentemente danossa imaginao ou capacidade de inventar? Dito de outro modo, nossa vida, o que nos aconteceu ouaconteceu em nossa famlia e entorno, no to objetivo quanto o acaso?).

    Dito isto, digamos que o procedimento usado por Roussel foi um dentre todos aqueles que sepoderia usar. Consistia em encontrar e desenvolver frases inesperadas, provenientes de homonmias,deformaes, segundas e terceiras acepes, todo tipo de jogos de palavras aos que t o bem se prestao francs. Por exemplo, pegava uma frase feita qualquer, Demoiselle prtendant (senhorita compretendente), e a submetia a variaes homofnicas que davam em Demoiselle (pilo) retre (umtipo de soldado alemo ou centro-europeu) en dents(feito com dentes). A histria que nasceu dessestrs elementos foi a de um pilo modicado que compunha com dentes um mosaico representando umsoldado. Torn-lo verossmil, sem deixar pontas soltas, obrigou-o inveno de uma complicadssimamquina, vrias histrias colaterais, e as subsequentes digresses cientcas, e isso tudo ocupa trintadensas pginas de Locus Solus. No vale a pena se deter na descrio do procedimentode Roussel,

    que ele prprio fez em seu livro-testamento Como escrevi alguns de meus livros. Poderia ter sidoqualquer outro procedimento. Este seu era evidentemente aquele que lhe resultava mais produtivo,mas talvez s porque no achou outro, ou no se interessou em procur-lo. Portanto um erro dosestudiosos de Roussel (e esse sim, o mais frequente) se encarniar na descrio do procedimento, epraticamente limitar a essa descrio a interpretao e apreciao da sua obra. E, no entanto... Aqui onde se demonstra que os erros cometidos com Roussel tm a curiosa propriedade de deixar de sererros. Porque h um ponto em que a diferena entre geral e particular se desvanece: o nico escritorque usou um procedimento para gerar histrias foi Raymond Roussel e o nico procedimento que seusou nunca foi o seu. Da que o erro de confundir procedimento geral com procedimento particular setransforme no erro de diferenci-los.

    O procedimento serve somente para gerar o argumento. Logo, uma vez escrita a histria, o proce -

    dimento desaparece, ca oculto, to parte da histria quanto o fato de o autor ter usado tinta azul outinta preta para escrever, ou qualquer outro dado desprovido da menor importncia para entender oujulgar o texto, ou para d esfrut-lo. Nesse ponto Foucault se equivoca, no seu livro sobre Roussel, aodizer que aquele que no souber francs e, portanto, no captar os jogos de palavras subjacentes shistrias, perder algo na leitura de Roussel. Acho um erro grave da sua parte. O procedimento umaferramenta do autor (de Roussel, porque no houve outro), e no concerne ao leitor. Uma ferramentaque lhe permitiu encontrar as histrias mais estranhas, as invenes mais esquisitas e surpreendentes,em que jamais teria pensado se houvesse conado na sua prpria inveno. Por isso traduzir Rousselno s possvel mas conveniente, e l-lo em traduo a outra lngua (pelo menos nas suas obras emprosa, quer dizer, as feitas segundo oprocedimento) o nico jeito de apr eci-lo plenamente, visto queao afast-lo do francs se consuma o ocultamento da gnese.

    Um bigrafo e estudioso, Mark Ford, diz das Impresses da frica: Cada episdio pe em prticaum enigma lingustico, e mais adiante fala das charadas narrativas que o procedimento gera. omesmo erro que cometem quase todos os rousselianos. Essas charadas so resolvidas pelo autor, nopelo leitor. Roussel as resolveu, e a resoluo deu por resultado seus romances, oferecidos ao leitorcomo pura leitura, como leitura de romances de Jlio Verne, nem mais nem menos.

    Esta foi a leitura que se fez dos seus livros enquanto ele vivia. A revelao do mecanismo produtivo,doprocedimento, ele a deixou escrita para que se publicasse depois da sua morte. Antes disso, nin -gum sabia da existncia doprocedimento, e se acreditava de boa f que essas fantsticas invenessaam da sua cabea. E saam realmente, porque o procedimento apenas uma ferramenta descar-tvel, que s funcionou nas mos de Roussel. Mas a obnubilao produzida pela revelao doproce-dimentofez com que ningum conseguisse l-lo com a correta admirao do leitor puro; interps-se oconhecimento da maquinaria de inveno.

    Mas seria preciso examinar essa admirao. Para aqueles leitores, os que o leram enquanto elevivia, os leitores entre os quais Roussel procurou o elogio (e o procurou patologicamente), o que erasua obra? Ele a propunha como um equivalente dos seus autores favoritos, Jlio Verne, Pierre Loti.Para a freguesia dessas leituras, Roussel era um pouco esquisitodemais, mesmo na sua narrativa

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    (os dois romances e as duas peas teatrais), para no falar da sua poesia descritiva, e muito menosdas Novas Impresses da frica, com o jogo dos parnteses. Mas foi lido e admirado, embora nemsempre por quem ele teria escolhido; por exemplo, os surrealistas, de cujos elogios ele tinha motivospara suspeitar, porque o colocavam no acervo das recuperaes de extravagantes curiosos, ingnuosou loucos, como Brisset.

    Entre os testemunhos que caram das leituras contemporneas de Roussel, prvias revelaodoprocedimento(as de Montesquiou, Breton, Raymond Queneau e outros), a mais aguda a que fezum escritor argentino, Jos Bianco, num artigo publicado no suplemento literrio do jornal La Nacinde Buenos Aires, em maro de 1934, um ano antes da publicao de Como escrevi alguns de meuslivros(e meses aps a morte de Roussel em Palermo, fato que aparentemente Bianco desconhecia).

    Bianco, claro, surpreende-se perante a estranheza dessa obra, estranheza que adjudica a um

    agente incerto e prestativo como a fantasia: o sonho mgico que a fantasia de Roussel. Mas essainesgotvel fantasia, intuindo a existncia de algo oculto, Bianco a faz administrar por Roussel comrigorosa lgica de demente, ou com uma exasperante meticulosidade de engenheiro. Postula duasfases: a fantasia criadora, onrica, csmica, e ento uma estrita e vigiada racionalidade para transmitiressa fantasia. Compara-o com Daisy Ashford, a menina autora de The Young Visiters, pela lgica que acriana exige, mas tambm pela gratuidade das suas invenes. Sbios e fascinantes jogos de crian -as, diz, e descreve a populao dos seus romances como uma atrativa panplia infantil.

    Bianco, no leitor (foi o primeiro, enquanto secretrio de redao da revista Sur, a ler o primeiro contode Borges, Pierre Menard, autor do Quixote, e o qualicou nesse mesmo dia como a melhor coisaque j li na minha vida), adivinha obscuramente o suplemento oculto na obra de Roussel, esseproce-dimentoque se revelaria um ano mais tarde. preciso um terrvel talento para tornar suportvel umpouco de gnio, diz no seu artigo. Desse pouco de gnio no pode dizer nada, posto ser a invenode um modo diferente de criar; o terrvel talento o visvel, a laboriosidade espantvel da criana oudo louco para conseguir o que quer.

    Mais prximo ainda do segredo est Bianco neste elogio: Todo escritor parece indigente se com -parado com Roussel, at as elucubraes de Poe tm algo de montonas, de limitadas.... Esta ltimapalavra acerta para alm do que se prope. Certamente, tanto Poe como qualquer outro escritor es-to limitados pelo seu poder criativo pessoal, sua imaginao, sua inteligncia. Roussel, ao usar ummecanismo acionado pelo ilimitado do acaso, pode operar com uma latitude sem fronteiras pessoais.(Isso tambm foi entrevisto por outro avanado, Raymond Queneau, que em 1933 disse: Roussel criamundos com uma potncia, uma originalidade, uma inspirao, de que at hoje Deus acreditava ter aexclusividade).

    Bianco aproxima Roussel e Proust: idntica ociosa e magnca gratuidade. Jean Cocteau, queconviveu com Roussel numa clnica de desintoxicao, o aproxima tambm de Proust, pela sua apa-rncia fsica: ambos provinham do mesmo meio, diz, tiveram educao e experincias equivalentes,moviam-se entre a mesma gente. A aproximao intrigante; dir-se-ia que no poderiam ter tomado

    caminhos literrios mais divergentes. Proust elegeu os limites biogrcos da sua experincia e da suasensibilidade, e os fez explodir de dentro; Roussel, o mais impessoal e o menos autobiogrco dosescritores, chegava pelo caminho oposto mesma ociosa e magnca gratuidade.

    Mas quando Jos Bianco se aproxima mais da descoberta do procedimento quando se refere diculdade de falar sobre Roussel: Sobre Roussel impossvel escrever. Acima da literatura, ele estpara alm da crtica. Devo me limitar a uma srie de fatigosos balbucios de entusiasmo, como essesque algumas mulheres lanam diante das obras de arte, quando no acham um argumento vlido quepossa explicar razoavelmente a sua admirao. verdade, nada mais difcil do que expressar o prazeresttico quando este, em palavras de Hegel citadas por Breton a propsito de Roussel, depende ex -clusivamente do modo como a imaginao se pe em cena, e como ela s pe em cena a si mesma. Aobra de Roussel torna intransponvel essa diculdade, mas a que est o recurso de voltar a explicitar

    oprocedimentopara esquiv-la.Podemos nos perguntar por que Roussel revelou o segredo de seu procedimento. Teria suspeitadoque era a sua melhor criao, a criao das criaes, e que era a nica coisa que poderia lhe dar aglria que desejava, e que talvez tivesse comeado a suspeitar que no lhe dariam seus livros? Fez arevelao no livro Como escrevi alguns de meus livros, preparado por ele para edio pstuma; umarecompilao de textos juvenis, inditos, esboos de romance. Precedido pela revelao propriamentedita, que o nico texto normalque Roussel escreveu, sua busca do tempo perdido, um relato psicol-gico, biogrco, alheio a qualquer procedimento ou mtodo. Talvez a explicao dessa manobra pstu-ma seja simplesmente que existia um segredo, e o ativode um segredo a sua revelao. E nem todoescritor, ou nenhum escritor, tem um segredo que possa ser revelado limpamente, como o seu, em vintepginas. Um segredo que, apesar de intudo ou suspeitado, tinha se mantido secreto para todo mundo.

    Em termos maostas, a Contradio Principal em Roussel d-se entre oprocedimentoe a obra. Masa obra se estende para alm dessa dupla, posto que as obras escritas com oprocedimentoso somen-te quatro, e Roussel escreveu outros trs livros, tendo especicado que no tinham surgido de nenhumprocedimento; so escritos em versos, rimados, e como ele disse que oprocedimentoem sntese, estaparentado com a rima, quando no usou o procedimentousou sua parente, a rima. Ou, ao revs, spodia escrever em prosa se havia um procedimento aparentado com a rima; em verso, onde a rima (eo metro) j estava, no precisava dele.

    No s do auxlio do acaso formal da rima que precisa nesses livros alheios aoprocedimento. Ne-les h um estrito plano de produo, em geral associado descrio. Aqui h uma inteno levementeperversa (tambm se poderia dizer vanguardista, no fosse o fato de Roussel ter sido o exato opostode um vanguardista) de fazer trabalhar a inadequao. Porque o verso medido e rimado seria o ltimoformato que ocorreria a um escritor usar para fazer a descrio detalhada de seres e objetos concretosvisualizados previamente.

    O primeiro foi La Doublure, escrito na sua primeira juventude, que consiste principalmente em umadescrio (de duzentas pginas) do desle de bonecos cabeesno carnaval de Nice. Outro, La Vue,trs longos poemas que descrevem com mincia de microscpio singulares fotograas ou desenhos

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    em branco e preto. E, nalmente, o seu ltimo livro, as Novas Impresses da frica, cujo plano inicialera, como em La Vue, a descrio de imagens dentro de objetos pequenssimos, e acabou sendo umasrie de enumeraes associativas e comparativas, numa estrutura de frases imbricadas medianteparnteses (chega a haver mais de dez nveis parentticos). Tambm em verso, tambm descritivo, hum poema adolescente, Minha alma, em que a aproximao descritiva ca subordinada ao projeto delevar uma metfora at as suas ltimas consequncias. A metfora a da alma do poeta como umamina de que so extrados metais preciosos. O desenvolvimento, em centenas de versos, descreve ato mais exasperante detalhe o trabalho nessa mina.

    No ttulo do livro-testamento, Como escrevi alguns de meus livros , ca implicitamente sublinhada apalavra alguns. No texto, a declarao to lacnica quanto taxativa: No necessrio esclarecer que

    meus outros livros, La Doublure, La Vuee Novas Impresses da frica, no tm absolutamente nada aver com o procedimento. Se bem que isso pe esses outros livros num patamar secundrio, tambmacentua a sua existncia. Da que tenham excitado o interesse crtico, pelo menos nas margens dointeresse desproporcionado dirigido aoprocedimento. E, um passo mais frente, postularam o enigmada obra como totalidade. O que une as duas metades da produo de Roussel, as feitas com e sem oprocedimento? Porque a segunda no est marcada s pela ausncia do procedimento: to originale estranha quanto a outra, ou ainda mais. O problema no se colocaria se fossem livros convencionais,dos que pudesse se pensar que foram frias do rduo trabalho dos romances. Como os astrofsicosque procuram a explicao geral que conjugue todas as explicaes parciais dos diferentes fenmenosexplicados do Universo, assim os rousselianos procuram a Chave Unicada de Roussel.

    Eu acredito t-la encontrado: o que tem em comum tudo o que escreveu, do princpio ao m da suavida, , simplesmente, a ocupao do tempo. Escreveu para preencher de maneira slida e constanteum tempo vital que de outra forma teria cado vazio. Para isso teve que inventar modos de escrever,marcos, formatos, que ocupassem a maior quantidade possvel de tempo. O que tm em comum todosseus escritos? A semelhana com a resoluo de palavras cruzadas: a fuso de um mximo de signi -cado com um mnimo de sentido. O que se traduz, precisamente, na ocupao do tempo.

    A forjadura das homonmias noprocedimento, as trabalhosas verossimilizaes, as explicaes decomplicadssimas mquinas nunca vistas; e, fora doprocedimento, a esforada redao dos alexandri-nos, o achado das rimas... Tudo se resolve no mesmo: o tempo que leva faz-lo. O ltimo livro, as No-vas Impresses da frica, com seu mecanismo de parnteses, exacerba algo que sempre havia estadoa. No se pode acreditar no imenso tempo que exige a composio de versos desse tipo, diz Roussel,e calcula que o poema, de umas quarenta pginas apenas, lhe tomou sete anos de trabalho sem pausa.

    Isto posto, dir-se- que uma obviedade. Toda obra de todo escritor se fez ocupando o tempo quelevou para escrev-la. Mas acontece que em Roussel a ocupao do tempo est no primeiro plano e,se a minha hiptese est certa, constitui o motivo de escrever. Observe-se que o seu testamento seintitula Como escrevi..., e no Por que; em Roussel no h nenhum por que, s h um como; umatcnica, algo que ocupa o tempo sem se dirigir a nenhum objetivo. A nica resposta a um por que, a

    resposta teleolgica, biogrca, a nica nalidade a que pde agarrar-se, foram conceitos vazios comoa fama, a glria, a difuso(lpanouissement), a ponto de torn-los patologias (de que foi tratado, e deque nalmente morreu).

    Tudo o que escreveu compartilha esse ar d e quebra-cabea de montagem paciente e engenhosa; ea isso se agrega sua gratuidade manifesta, a sua falta de qualquer mensagem, ideolgica ou instrutiva;at seus admirados Verne ou Loti tm um componente educativo ou informativo; Roussel arma ma -quetes de Verne ou Loti despojadas desse componente, puramente formais. Finalmente, tampouco helementos autobiogrcos, isso ele tratou de deixar claro explicitamente. (De todas a s minhas viagens,nunca tirei nada para meus livros). Ento, o que resta, em termos de justicao ou explicao para terescrito? Resposta: a ocupao do tempo.

    E para alm do trabalho de produzi-los, ou como consequncia desse trabalho, seus textos, as

    invenes de seus romances, cheiram a tempo. Isso o que deve ter sentido Duchamp, que disseque a sua experincia de assistir encenao da teatralizao das Impresses da fricafoi que ditoua direo que tomaria a sua obra. E a obra de Duchamp tambm poderia ser vista como um grandeaparato para ocupar o tempo sem impor objetivos de sentido. (Sua prtica do xadrez, e a lenda que eleprprio alimentou, de que tinha abandonado a arte para se dedicar ao xadrez, vo na mesma direo).

    Em que outra coisa poderia t-lo ocupado, o tempo, um homem como Roussel, rico, neurtico, edu-cado para a inutilidade. verdade que no foi o nico homem rico, neurtico, desocupado que existiu.Nele parece ter havido uma sensibilidade especial ao uso do tempo. Se bem que a escritura o absorveuquase por completo (ele deu um jeito para que assim o zesse) restaram margens, que ocupou em ati -vidades tambm tipicamente de uso do tempo: as drogas, as viagens. Isso no quer dizer que no sejaum grande escritor. Pelo contrrio. Nenhum elogio excessivo ao escritor que escreveu s para enchero tempo, e fez dessa ocupao a nica matria de sua obra. Porque tambm poderia ter ocupado seutempo escrevendo romances como os de Dostoivski, ou poemas como os de Verlaine. No teriamsido menos ecazes nessa incumbncia. Mas ento deveria ter escrito sobre seus sentimentos, ideias,experincias, e isso estava fora das intenes do grande dndi que foi Roussel. A literatura est todafeita de elementos extraliterrios. O que aconteceria se lhe tirssemos tudo o que nela informao,comunicao, ideologia, autobiograa, opinio...? Se consegussemos isolar o puro mecanismo do quefaz literria a literatura? Acredito que teramos algo como Locus Solus ou qualquer outro dos seuslivros. Na sua concentrao por encontrar formatos que lhe dessem uma plena ocupao do tempo,Roussel ps de lado todos esses elementos, e deixou a literatura nua.

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    Locus Solus est reanimado Bom Pblico*1

    Raymond Roussel | Traduo de Paolo Colosso

    Tu acreditaste que eu estava morto. No sabes que eu tenho o segredo da ressurreio? A pena,mesmo a da crtica, no capaz de matar. Mas, tendo borboleteado em torno de minha mecnica, elatinha distorcido as engrenagens. Eu a consertei. Ei-la aqui bem viva, novamente animando meus seisquadros.

    Todavia coloquei um pouco de ordem em meu laboratrio, descartei meus tars, minhas esmeral -das; os meios do teatro, demasiado limitados para realizar minhas imaginaes, reduziam-me a ter dedescrev-los e tu terias gostado de v-los tomar corpo no palco. Se estiver curioso em conhec-los,leia o livro que publiquei sob meu pseudnimo Raymond Roussel; l tu os reencontrars e mil outrasinvenes inesperadas.

    Por que tu no virs?O que te prometeu meu apregoador que eu no tenha cumprido? A msica de Touret? Os cenrios

    de Bertin? As descobertas de Poiret? No houve para eles seno elogios. Minha evocao da glria,meu divertimento submarino? A nica crtica que lhes foi feita foi a de serem curtos demais. Discutiu-seSignoret, Morton, Fabre, Flateaux, Galipaux? Foi dito que eles se desonravam!!!. No entanto nenhumdeles se exibe de cuecas... Teus lhos podem vir me ver!

    Minhas invenes? Minhas mais desconcertantes reaproximaes? No riu delas este primeiropblico? Ele riu, creia-me. Somente tu, quando leste, ouviste, viste algumas boas farsas, dizes, en -xugando as lgrimas alegres Sou idiota por rir assim. Ele, o pblico, teve vergonha de ter rido, poisacreditava que tu o olhavas, e ento disse Deus, como isso idiota.

    No, eu no te enganei. Avisei-te copiosamente, creio, que eu era um original.Tu, tu no vens para me julgar, tu pagas para te agradar, para te distrair, entreter-te. Que eu tenha

    talento, que eu seja louco, genial ou enganador... o que isso te f...az contanto que tu rias!

    At hoje noite, bom pblico... At amanh, at todas as noites. Quantas quiseres.

    *Texto publicado nos jornais parisienses quando da reprise da pea Locus Solusem dezembro de 1922 e atribudopor Roger Vitrac a Raymond Roussel. Roger Vitrac, Joueur dchecs, Revue de la N.R.F., 1928. (Republicado nonmero especial da revista Bizarreconsagrado a Raymond Roussel em 1964).

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    O duplo e seu teatro [fragmento]*1

    Laurent Jenny | Traduo de Paolo Colosso

    A m fortuna de Roussel no teatro se deve, apesar de tentativas reiteradas (adaptaes de ImpressionsdAfriqueem 1912 e de Locus Solusem 1922 criaes de lEtoile au frontem 1924 e de Poussiredes Soleils em 1926), sem dvida abracadabrncia de suas intrigas, como dizia a imprensa dapoca. Mas o que condena de modo mais denitivo este teatro a interpretao que dele zeram reite -radamente seus adaptadores e crticos. Pierre Frondaie, dramaturgo que adaptou dois dos romancesde Roussel, tenta criar uma feliz mistura de Ubu-Roi e de Caligari e se esfora por aproxim-lo doExpressionismo e do Cubismo, os quais tm o mrito de serem lugares-comuns do indecifrvel para

    o pblico dos anos 20. A crtica, quando benevolente, modela-se a estas sugestes. A propsito deImpressions dAfrique, no peridico lIntransigeant, Nozires o aproxima de Jarry. Dujardin, na Revuede lEpoque, insere a adaptao de Locus Solus na tradio de Ubu-Roi e das Mamelles de Tir-sias. Roussel, por sua vez, deplora as liberdades que tomaram com suas obras. fato que se fez deImpressions dAfriqueum horror Grand-Guignolcom suas atraes sanguinolentas como o ato detorturas, e se fez de Locus Solusuma farsa vanguardista em cenrios Cubistas. Roussel est alhu -res. Nos antpodas, em todo caso, do teatro total apolinairiano ou da exuberncia ubuesca. Rousselprope um anti-teatro que volta as costas tanto ao realismo da Terceira Repblica quanto revoluoteatral em curso desde Jarry e que culminar nas proposies de Artaud.

    Sem dvida o teatro rousseliano, com sua obsolescncia pirada, parece estar longe do Teatro daCrueldade. No entanto, entre Roussel e Artaud, para alm dos anos, a relao menos de contradiodo que de inverso, com o que isso comporta de solidariedade. O que compartilham, primeiramente, uma negao radical da psicologia realista que invadiu o teatro desde o incio do sculo at sufoc-lo. Emais ainda, eles tm em comum a conscincia de que a questo da linguagem determina toda e qual -quer expresso. Se, com efeito, Artaud prope a liquidao da palavra,no nem de longe para dar lugar a uma emergncia pulsional do grito,mas para substitu-la por uma linguagem cnica. Ele visa, portanto,ao contrrio, a que nenhum elemento dramtico deixe de tomar formacomo linguagem. O ator, em primeiro lugar, deve ser hierglifo vivo.Cada um de seus gestos deve sinalizar, remeter a uma signicaoespiritual precisa, ainda que indecidvel. Msica, cenrio, espaos seinserem numa articulao, assim como as entonaes que remodelama palavra, a sobrearticulam, como para compensar o embotamento desua segmentao. Assim, a cena sonhada por Artaud aquela onde seexibe no tanto um espetculo total, mas uma linguagem total o que

    *Fragmento de Le double et son thtre. Em: Larc, Raymond Roussel.Paris:Duponchelle, 1990. pp. 52-59.

    implica tambm que essa linguagem reencontre uma eccia perdida, sua expanso plstica alterandolongamente o espao de que ela se apossa e os seres que nele se oferecem. Teatro portanto ondese elabora uma linguagem sempre nova, num processo dramtico que no encontra exteriorizaoseno em razo de uma presso verbal interior que preciso liberar sob outras formas. A esse teatroexpansivo, Roussel ope de antemo um teatro sem corpo e sem ao. clera de Artaud contraa ditadura do texto, Roussel ope uma submisso incondicional, rigorosa e aplicada, seria precisodizer, palavra falada. Roussel tenta uma operao inversa quela de Artaud: demonstrar que todacena (atores, cenrios, espaos, luzes, gurantes e acessrios) pode ser absorvida confusamente napalavra proferida, precipitar-se nela como na catstrofe de uma manipulao qumica. Deste modo, overbal se torna no somente o verdadeiro teatro, mas tambm o modelo de todo drama, submetendoo corpo ao hieratismo de algumas atitudes convencionais, impondo ao espao uma paralisia absoluta,

    estendendo a todas as dimenses cnicas o terror prprio ao simblico (este ltimo termo tomado nono mesmo sentido de Artaud, mas na acepo muito geral de prtica signicante que tem em nossosdias). Do ator-hierglifo ao ator-teatro, a diferena est na escala, mas o mesmo debate: corpos maldiante da simbolicidade, procurando meios com os quais poderiam se libertar dela ou nela se perder.Sob esse aspecto, est claro que Roussel opta pela poltica do pior. (...)

    Assim, teatro do terror fosco, ou da simbolicidade enferma o teatro de Roussel est destinadoa permanecer inaudvel. No pelas razes fteis e escandalosas que invocavam os detratores dosanos 20. Mas por motivos mais dramaticamente insolveis: porque no h palavra para descrevero terror da palavra, porque o debate do ser e da palavra se trava fora de qualquer espao e d lugarapenas a histrias. Apesar de sua prolixidade, a palavra aterrorizada do teatro rousseliano se mantmterrivelmente silenciosa. Ela no trai seu verdadeiro estado seno por sintomas discretos: duplicidadeaplicada, animao mecnica e angustiada do silncio. no ordenamento desses sintomas que esttoda mise en scnede Roussel.

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    Sobre Raymond Roussel [fragmento]*1

    John Ashbery | Traduo de Alexandre Nodari

    Roussel o nico poeta moderno francs cujos experimentos com a linguagem po dem ser comparadosaos de Mallarm. E h, na verdade, um sentimento de desintegrao em Nouvelles Impressionsquevinha sendo elaborado desde as perigosas acumulaes de adjetivos em La Doublure, os cadve-res arriscadamente conservados de Locus soluse as impiedosas sries de anedotas nas peas (queresultaram em um teatro da crueldade distinto de tudo que Artaud tenha sonhado, convertendo umrespeitvel pblico burgus em uma horda de feras selvagens). Em Nouvelles Impressions, o incons-ciente parece ter se libertado dos mitos em que Roussel o havia cuidadosamente encerrado; no mais

    o mundo imaginrio, mas o real, e ele est explodindo ao nosso redor como uma fbrica de fogos deartifcio, em uma ltima ofuscante orgia de som e luz.Muitos escritores, inclusive Andr Breton e Jean Ferry (cujo tude sur Raymond Roussel ines-

    timvel como chave de leitura para Nouvelles Impressions), sentiram que Roussel escondia algumsignicado ou mensagem secretos em sua obra. Breton (em seu prefcio ao livro de Ferry) argumentaconvincentemente que Roussel um alquimista cujos livros so mensagenscifradas ocultando le Grand Oeuvre a Pedra Filosofal. De acordo comBreton, as vrias pistas da caada ao tesouro em La Poussire de Soleilsformam uma mensagem decifrvel, enquanto Michel Leiris v uma cadeiaautobiogrca nas ilustraes de Nouvelles Impressions: Morte voluntria:parede de neve e fogo, ponto culminante, xtase supremo, modo nico desaborear em um instante la gloire. Mas se parece possvel que Rous -sel tenha enterrado uma mensagem secreta em seus escritos, parece igual-mente provvel que ningum jamais ir conseguir exum-la. O que ele nosdeixa um corpo de obra que como o templo perfeitamente preservadode um culto que desapareceu sem deixar vestgio, ou um complexo conjuntode ferramentas cujo uso no pode ser desvendado. Mas ainda que talveznunca possamos usar sua obra do modo que ele esperava, ainda pode -mos admirar sua beleza inumana, e sermos sacudidos por uma linguagemque parece sempre a ponto de revelar seu segredo, de apontar o caminhode volta repblica dos sonhos, cuja insgnia resplandecia em sua testa.

    *Extrado de Foucault, Michel. Death and Literature: The World of Raymond Roussel.Londres: Continuum, 1986. pp. 202-203.

    Raymond Roussel: a estrela na testa*1

    Paul Eluard | Traduo de Joca Wolff

    L esto os contadores. Um comea, o outro continua. Eles so marcados pelo mesmo signo, eles sopresas da mesma imaginao que leva na cabea a terra e os cus. Todas as histrias do mundo sotecidas com suas palavras, todas as estrelas do mundo esto nas suas testas, espelhos misteriosos damagia dos sonhos e dos fatos mais bizarros, mais maravilhosos. Ser que eles distraem esses insetosque fazem uma msica montona ao pensar e ao comer, que mal os escutam e que no compreendema grandeza de seu delrio?

    Prestidigitadores, eis que eles transformam as palavras simples e puras numa multido de persona-

    gens transtornados pelos objetos da paixo e um raio de ouro que eles tm na mo, e a ecloso daverdade, da dignidade, da liberdade, da felicidade e do amor.Que Raymond Roussel nos mostre tudo aquilo que no foi. Ns somos alguns a quem s essa

    realidade importa.

    *Publicado em La Rvolution Surraliste, n. 4; Paris, 15 de julho de 1925.

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    A ESTRELA NA TESTA*

    Por ter consentido em desvelar-nos os mistrios barrocos do destino humano e, diante de uma assembleia da crtica parisiense em que o talento questionado de maneirabarata, a surpreendente existncia do gnio do Sr. Raymond Roussel no deixou de erguer contra ele a coalizo dos Boulevards, das cervejarias e das salas de redao. De minhaparte, sinto-me honrado por ter sido um dos nicos a aplaudir, mesmo estando mergulhado em uma plateia de imbecis e de incapazes de qualquer compreenso. O destino humanoest to raso que, quando o exprimimos atravs de lendas encantadoras, as pessoas ditas sensatas se sentem indignadas e proclamam louco o autor de uma pea em que ospersonagens so tragicamente reduzidos ao papel de peas de xadrez submetidas a uma paixo: curiosidade, vcios, amor...

    Nossos contemporneos so grosseires engraadinhos que ainda procuram estabelecer limites ao material potico. Lautramont j havia presidido a esses en -contros patticos de objetos vindos de universos diferentes para usos distanciados uns dos outros e aparentemente destinados a consumar sua existncia materialsem embaralhar suas engrenagens e sem que suas energias heterclitas jamais se choquem. Em que um assistente de laboratrio que faz fortuna graas a um p de ma-mute congelado e enviado a Paris por um professor curioso pelo estudo das putrefaes; em que uma humilde criada que ajusta com tanto fatalismo sua sorte boa von -tade do calendrio o mesmo que a fez nascer num dia cinza e a dotou de um escapulrio de organdi por causa de supersties camponesas em torno de um pinheirovenervel ; em que a revelao num balo esfrico dominando a guerra de 1870-71 do amor de um bispo por uma enfermeira e da importncia dessa revelao para odestino de um anel enterrado em uma sarjeta medieval; em que esses magncos episdios do bacar humano so mais escandalosos ou menos tocantes do quea aventura inesperada por que passou a virgem romena em um circo ensolarado na presena dos lees nascidos sob outro clima, do que o choque do amor de dois ho -mens pela mesma mulher sob um astro hbil para recortar suas sombras sobre a areia das aleias com a mesma luz com que iluminou no mesmo lugar samambaias

    Um crtico de pouco valor e mau poeta, o Sr. Fernand Gregh cons-tatava outro dia (Nouvelles Littraires) que tomando uma a uma ashistrias de A estrela na testae pondo molho ao redor fazendode cada uma um volume de 350 pginas , obteramos o maiorsucesso do romance contemporneo (no gnero Atlntida!).

    a que a porca torce o rabo desses asnos.O Sr. Roussel muito rico. Ele prprio j constatou o inconve-

    niente disso em Locus Solus. Convm observar agora que essaconstatao no tem apenas um sentido material e que devemosentend-la igualmente no sentido espiritual. No duvido de que umdia surjam homens de talento que sacaro romances de sucessoa partir da obra do Sr. Raymond Roussel, homem de gnio. Deminha parte, cono demais no autor das Impressions dAfriqueparatemer, mesmo que por um instante, que ele sucumba tentao datiragem a cem mil.

    Para satisfazer esses cem mil leitores imbecis j h um nmerosuciente de medocres: Henri Braud, que dilui Charcot para os

    mercadores de tecidos e expe suas tripas para as zeladoras, HenriBraud, a quem eu no perdoo por me obrigar a tomar o partido de Gide; Andr Antoine, anti-poeta e introdutor do realismo convencional no teatro, Antoine, cujos artigos nopassam de um pastiche, Antoine, a quem no faria mal voltar ao seu medidor de gs; Courteline, rei dos cretinos; Anatole France, chefe abortador da Revoluo e grande eruditosegundo a Larousse; e outros tantos!

    Mas a imaginao exata de Raymond Roussel inige mordazes desmentidos a outros patifes: Jean Cocteau, que jamais deixou de plagiar Edmond Rostand; Tristan Tzara, falsoescroque e primeiro eunuco do harm mundano; Gabory... Marcel Raval, editor de meus desenhos; e toda a cambada de arreges e de vulgarizadores.

    O caminho traado por um instante se interrompe de repente.A tropa dos criados est muito para trs.Na grande plancie potica, jovenzinhas marcham at Colin-Maillard, em direo ao norte, guiadas com mais segurana por um instinto misterioso do que pela bssola ou pelas

    estrelas. A est a parte virgem da oresta com seus cips, suas serpentes, seus tesouros, suas mulheres adorveis e seus perigos maravilhosamente mortais. O machado est a.Logo estaremos fora do alcance dos ces e dos fuzis.

    ROBERT DESNOS | Traduo de Diego Cervelin1

    *Originalmente publicado na 391, n. 17, 1924.

    Efeitos

    colaterais:AndrBretonestufaopeitocomse

    uscabelos.

    Efeitoscolaterais:GeorgesAuricestufaopeitocomseupelonamo.

    arborescentes, serpentes aladas, o amor noturno das formigas ver-melhas ou o parto sem glria de uma virgem ignorada? Em que odestino do homem menos dramtico quando o assimilamos aobizarro equilbrio dos sis e dos planetas?

    Tudo sobre a terra barroco. O barco no feito mais para omar do que para o cu; to arbitrrio reunir em uma paisagemintelectual uma jovem garota e uma or quanto unir para ns deobscuras reprodues a fmea do tubaro com o escorpio macho.

    Entretanto, esses encontros inesperados se reproduzem e daaclimatao a essas cenas miraculosas nascem as mitologias. Arapidez com que o material moderno posto fora de uso tem comoconsequncia as novas edies da Lista de Deuses e do catlogode seus atributos. Do Sol a Vnus, de Vnus ao Cristo, do Cris -to guilhotina, da guilhotina Vnus de Milo, da Vnus de Miloao aeroplano, do aeroplano ao raio invisvel, passando pelos es -pectros, pelos vulces e pela serpente do mar, alonga-se a listadas masmorras poticas. A imaginao se esgotaria repetindo-as

    sem a colaborao de espritos como o de Raymond Roussel.

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    Histria de leituras*1

    Jean-Jacques Pauvert | Traduo de Pablo Simpson

    A especializao que obtive em meus trabalhos pessoais foi, em suma, a histria das leituras. A histriadas mentalidades e dos comportamentos atravs das leituras. Ora, a histria das leituras feita de es-tatsticas. Ela feita de cifras, de toneladas de papel, de nmeros de exemplares, coisas para as quaisatribuo muita importncia. A histria das leituras , alis, uma disciplina um pouco curiosa, um poucomarginal. Falo sobre ela hoje com prazer numa faculdade de Letras, mas, de fato, uma disciplinadisputada um pouco pelos historiadores puros e os literrios, e no sabemos muito bem ainda quemvai tom-la para si. Quando converso, por exemplo como costuma acontecer, de tempos em tempos

    com pessoas como Le Roy-Ladurie ou Duby, vejo que se trata de uma disciplina que os interessabastante, e tenho a impresso s vezes, no tenho certeza, de que os literrios se interessam um poucomenos pela histria das leituras do que os historiadores propriamente ditos. H gente como Henri-JeanMartin, por exemplo, que se interessa pela histria do livro e que trata disso de forma brilhante, mas ahistria do livro no exatamente a das leituras. Fico um tanto surpreso que os literrios no se inte -ressem mais pela histria das leituras, porque me parece que ela pode apresentar um certo interessecom relao histria da literatura.

    Falemos de um autor que conheo bem por ter trabalhado bastante com ele: Sade. A histria da lei-tura de Sade extremamente importante. Sade nem sempre foi lido no momento em que se publicavamseus livros. Roland Barthes, que foi um distinto universitrio, consolidou toda uma teoria sobre Sadepartindo do fato de que Sade no teria sido praticamente lido no sculo XIX. Num debate radiofnico,tirava da concluses extremamente interessantes. De fato, ele tinha ido Biblioteca Nacional e lera nocatlogo que a obra principal de Sade, isto , a Nova Justinee Juliette, havia sido editada em 1797 (oque, alis, me parece equivocado, em trs ou quatro anos), e ele no viu nenhuma edio com outradata. Todas as edies traziam a data de 1797. Barthes concluiu a partir disso, portanto, que entre 1797e 1947, data em que reeditei Sade, este no havia sido reimpresso, e que, portanto, no fora lido. O quepoderia ter sido dito a ele por qualquer livreiro antigo que Sade foi extraordinariamente reimpressodurante todo o sculo XIX. Foram dezenas de milhares de exemplares. No se sabe quantos, tantoseles foram. S que os livreiros e os impressores clandestinos tomavam o cuidado de datar as ediescomo 1797. Isso durou cento e cinquenta anos. Roland Barthes no sabia. No sabia que Sade haviasido lido digo uma cifra qualquer aproximadamente cento e cinquenta vezes mais no sculo XIXdo que hoje. No sculo XIX, como armara Sainte-Beuve em 1842, Sade era extraordinariamente lido.Mas, para sab-lo, preciso conhecer a livraria. preciso conhecer a histria das leituras, saber quan -tos livros foram prensados. por isso que acho que essa disciplina um pouco marginal tem, apesardisso, um interesse para a histria dos textos.

    *Publicado em Revue Mlusine,n. 6: RAYMOND ROUSSEL EN GLOIRE, Actes du colloque de Nice(junho de1983), 1984.

    preciso dizer tambm que, para fazer de fato uma histria das leituras, faltam-nos vrios ele-mentos. At o sculo XIX, as tiragens e as vendas nem sempre deixavam muitos rastros e, para operodo contemporneo, os editores h uns vinte ano s no atribuem muita importncia a seus arquivos.Quando Gallimard comprou o Mercure de France, todo um hangar de papis velhos, dizem, foi vendidoa um catador de papis. Havia entre eles todas as cartas recebidas por Vallete de seus autores: Gide,Gourmont, Jarry, etc. desconcertante. As editoras, que se tornara m importantes, em geral, obedecema regras que lhes so ditadas pelos que chamamos gestores, e esperamos que esses gestores admi -nistrem com cuidado coisas importantes. Ora, os autgrafos valem caro, e vender cartas autgrafas deescritores clebres a peso de papel no parece uma boa gesto.

    E os exemplares de arquivos! A princpio, poderamos pensar que todos os grandes editoresguardam ao menos um exemplar de todos os volumes que editaram. Ora bem, Gallimard vendeu tudo.

    Sei que Gallimard publicara em torno de doze mil volumes e que, nesses doze mil volumes, se h coi -sas interessantes, h na maior parte livros sem interesse. Mas eles se livraram de tudo. Ento quandotentamos reconstituir uma histria dos autores... Por exemplo, as tiragens. Precisamos das cifras dastiragens, das datas. Hoje em dia, quando se vai a um grande editor, eles no tm absolutamente maisnada. Quando houve em 1979 uma exposio Jean-Jacques Pauvert na casa de cultura de Rennes,Hachette, que supostamente guardava o meu fundo, recusou-se absolutamente a participar. Tive quefazer tudo isso sozinho com os meios de que dispunha. H vinte anos ainda, podamos encontrar naseditoras arquivos interessantes. Mas os arquivos ocupam lugar. E o lugar se calcula a metro, j que osgestores explicam que o metro quadrado ou cbico ocupado pelos arquivos custa tanto por ano, e queisso no alimenta ningum. Ento, jogam tudo pelas janelas.

    Chego nalmente a Roussel. A leitura de Roussel tal qual a reconstituo divide-se grosso modoemtrs pocas: todo o perodo de vida de Roussel, o perodo que se seguiu reedio que z de suasobras, e entre os dois h uma espcie de no mans land, e um no mans landum pouco militarizado.Quero dizer, o no mans landLemerre. Vocs sabem que Roussel foi publicado por Lemerre s expen -sas do autor, com tiragens que desconhecemos porque a editora Lemerre, que possua arquivos, noas comunicou.

    Em 1962-1963, comprei os direitos da obra de Roussel junto ao duque de Elchingen, que era seuherdeiro. Seu sobrinho. Vocs sabem que Roussel no se casou e no teve descendentes. Foi, portan-to, o sobrinho que herdou, o duque de Elchingen. Um homem absolutamente encantador, que moravano Jquei Clube onde dispunha de um quarto anual. Ele se interessava por todo tipo de coisa. No tantopor seu tio, mas devo dizer que falava tambm dele. Eu o conheci bem, discutimos bastante a comprados direitos. No era apenas o personagem ridculo que foi caracterizado posteriormente. E o duque deElchingen me ps em contato com a editora Lemerre, situada na passagem Choiseul.

    Estive ento na passagem Choiseul, e vi os irmos Lemerre. Eram dois senhores bem velhos.Alphonse Lemerre j havia morrido h algum tempo. Eles estavam cada um de um lado de uma mesa,face face, exatamente como Bouvard e Pcuchet. Alphonse Lemerre devia ter um pouco mais deestatura, provavelmente, mas esses dois a eram os perfeitos editores s expensas do autor.

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    No h vergonha em se praticar a edio de autor. Eu s o z umas duas vezes em minha vida emcircunstncias particulares, mas as edies s expensas do autor no so algo forosamente monstru -oso. Jos Corti, por exemplo, publicou Gracq s custas do autor. H um modo de faz-lo, uma espciede artesanato como no sculo XIX, que no tem nada de desonroso, at mesmo interessante.

    Alphonse Lemerre e seus lhos, de todo modo, faziam o seu trabalho bem honestamente. Quandofui v-los, eles haviam tomado uma deciso e a aplicaram bastante rara na histria do comrcioda edio. A sociedade das edies Lemerre havia sido constituda por Alphonse Lemerre em tornode 1870 por um certo nmero de anos, como sempre, e quando cheguei, o nmero de anos j haviapassado, e os lhos decidiram que a sociedade chegaria simplesmente ao m. Houve uma liquidaocompleta. Eles no fecharam, alis, eles foram bem at o m. Venderam alguns estoques com o melhorpreo e, no que diz respeito a Roussel, caram de me enviar as contas e os estoques. Possuam ainda

    livros de Roussel, e at papis de alta qualidade, exemplares em Japo das Novas impresses dafrica. Eu era, de algum modo, o herdeiro de Roussel, e os irmos Lemerre me conaram no seise eles se levantaram juntos para me entregar, eram realmente os gmeos da edio papis ondeconstava que eles deviam a Roussel ou a seus herdeiros um certo nmero de exemplares que eles meconvidaram a indicar. Era totalmente solene. Infelizmente, eles no souberam me dizer quais haviamsido as tiragens de Roussel. Tendo a pensar que no houve livros de Roussel impressos para alm de5.000 exemplares. Acho que as Pginas escolhidasforam reimpressas, mas difcil reconstituir. Todosos ttulos estavam mais para invendveis at a morte de Roussel; a maior parte dos exemplares quesaam da editora Lemerre eram exemplares de homenagem.

    A partir dos anos 20, comea o movimento em torno de Roussel, no qual os Surrealistas tiveram opapel principal. Vocs se lembram da famosa histria da representao deA Estrela na testa, em 1924,quando Roussel, como sempre, vaiado. Desnos, Elluard, Aragon, Breton, Vitrac, M. Leiris esto nasala e se manifestam a favor de Roussel. O pblico grita, naturalmente, grita contra Roussel h quaren-ta anos. E um expectador diz a Desnos: Ah! So vocs a claque. E Desnos responde: Ns somos aclaque e vocs so a cara21

    Podemos pensar, apesar disso, que houve algumas vendas depois da morte de Roussel, entre1933 e 1939, por causa de todo esse barulho, e de uma voga crescente do surrealismo. Os irmosLemerre no se recusam a vender, alis. Mas estabelecem em torno de Roussel uma guarda difcilde compreender. Eles nunca a explicaram. Assim que a sociedade foi liquidada, foram embora, nuncasoube onde encontr-los e nunca lhes z essas perguntas que me intrigavam. H a histria conhecidade Andr Breton pedindo autorizao para reproduzir trs pginas de Roussel para a suaAntologia dohumor negro, de 1939, e a recusa dos irmos Lemerre, no se sabe por qu, em nome do qu. Naprimeira edio da Antologia do humor negro, no h portanto citao de Roussel, s a nota introdut -ria. Eu restabeleci a citao quando Breton me deu os direitos da Antologia, j que tinha os direitos deRoussel. Para a primeira edio, Breton havia feito uma pequena nota dizendo que os irmos Lemerrelhe haviam recusado a autorizao para reproduzir os fragmentos da obra de Roussel, fragmentos dos1N.T.: Claqueem francs tem como primeiro sentido tapa.

    quais arbitrariamente a editora de Alphonse Lemerre nos impede de dispor, escreve Breton.Tudo isso, evidentemente, era pouco favorvel leitura de Roussel. Todos os seus livros estavam

    disponveis na Lemerre, mas constavam como esgotados. Na poca em que comecei a me ocuparprossionalmente de livros, em 1952, pouca gente sabia que bastava ir at a Lemerre para ter acessoa Locus Solusou Impresses da frica. Havia ainda exemplares quando comprei os direitos. Porm,de forma geral, no devemos acreditar que Roussel fosse, de fato, conhecido na poca. Ele era aindabem marginal.

    Foi um editor suo, perto do nal dos anos 50, a editora Rencontre de Franois de Muralt, que quisprimeiro reeditar Roussel numa coleo intitulada Cem obr as-primas, no sei por que feliz iniciativa. Ecomo bons suos muito prticos, eles zeram algo que ningum at ento havia feito, procuraram osherdeiros de Roussel. Encontraram o duque de Elchingen, obtiveram autorizao para reimprimir Locus

    Solusna coleo e esse foi o incio de uma espcie de retomada de Roussel. Retomada muito limitada,no foi grande coisa. Mas o Nouveau Romanreivindicava Roussel, voltava-se a falar dele meio que emtudo quanto lugar. Houve os estudos de Foucault, de Butor. E, alm disso, em 1963, reeditei as Obrascompletas, e publiquei um nmero especial de Bizarre.

    Eu havia, portanto, adquirido os direitos de Roussel junto a esse adorvel duque de Elchingen, bemcaros, alis. Ele era duro nos negcios. Na poca, dei-lhe 50.000 francos de adiantamento, o que dmais de 400.000 francos hoje. Em compensao, os 5.000 primeiros exemplares estavam livres dedireitos de autor. Todo o mundo pensou que eu estava completamente louco, e todo o mundo tinhaum pouco de razo. Eu achava que havia chegado a hora de Roussel, mas ela nunca chegou. Quinzeanos depois, havia ainda na Hachette exemplares dessa primeira tiragem de 5.000 exemplares. S quehouve duas edies de bolso. Guy Schoeller teve a coragem de editar Impresses da fricana coleoLivre de Poche, e Folio publicou Locus Solus.

    A histria dessa edio Folio curiosa. No momento em que eu publicava as obras completas,tive a surpresa de ver a edio de Locus Soluspela Gallimard, na Coleo branca, e eu os processeij que, evidentemente, Gaston Gallimard (na poca era ainda o Gaston Gallimard) no detinha absolu-tamente os direitos para publicar Locus Solus. Eu o conhecia havia bastante tempo, tnhamos relaesum pouco instveis, e ele me interessava bastante. Mas mesmo assim o processei. Poder processarGaston Gallimard um privilgio bem raro. Ns nos en contramos no juizado de pequenas causas e, ali,ele fez uma observao magnca. No acredito que nos dias de hoje um grande editor possa dizer omesmo, o que demonstra que, apesar de seus defeitos, ele possua grandes qualidades. Diante do juizque armava: Mas, senhor Gallimard, na sua idade, uma empresa sria como a sua.... Ele no buscouargumentos jurdicos ele no tinha nenhum; sua defesa era ridcula. Simplesmente disse: Senhorjuiz, o senhor no percebe, h mais de trinta anos que sonhava em ter esse livro em meu catlogo. Isso um editor. No fundo, o velho Gaston, eu gostava dele. No nal, zemos um acordo que lhe permitiu terLocus Solusna Coleo branca, e zemos uma edio meio a meio em Folio.

    Mas hoje, podemos dizer que Roussel lido? Lembro-me de ter vindo aqui, a Nice, para um debateonde j se falava de Roussel, h uns quinze anos.

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    A. M. Amiot 1969.J.-J. P. A senhora se lembra disso... Eu estava procurando a data. Era Michel Sanouillet o orga -

    nizador. Eu tinha falado com uma senhora, no sei se ela ainda est por aqui...A. M. A. Sou eu (risos na sala).J.-J. P. Ah, a senhora. Ora ora, esses reencontros...A. M. A. O senhor tinha os depsitos ainda cheios de Roussel, e eu sem conseguir alguns para

    os meus estudantes em Nice.J.-J. P. So os mistrios da distribuio Hachette. O que me surpreendeu, na poca, na leitura

    dos estudantes era uma espcie de constncia: eles liam muito mais livros sobre os textos do que osprprios textos. Dizem-me que ainda assim, lamentvel. Eles leem o que Foucault ou Butor dizemsobre Roussel, e no leem Roussel. Ora, a leitura de Roussel cresceu mesmo assim, e se no so os

    estudantes de Letras que o leem, ento quem ? Imagino que todos que esto aqui compraram ediesde Roussel, ao menos as de bolso.

    Mas o livro de bolso faz com que se leia o resto? Eu no acredito. Quando Andr Breton me trouxeos direitos de alguns ttulos que ele conseguira arrancar de Gallimard, em 1962, quase no se lia maisBreton. Era a grande poca de Sartre, que durou, grosso modo, de 45 a 68, e Sartre queria o courode Breton, e quase o teve. Precisamos lembrar de tudo o que ele diz em Situaes, ou em Oque aliteratura? um enterro completo do surrealismo. Desenvolvendo o tema: preciso que sejamos sriosagora, engajemo-nos reengajemo-nos no marxismo-leninismo e no stalinismo. Esqueamos Bretone suas bobagens libertrias. Naturalmente, no foi s ele que disse isso, e como efetivamente a modaestava de seu lado, no se lia muito mais Breton.

    Eu tinha, portanto, vrios ttulos de Breton: os Manifestos do Surrealismo,Arcano 17, Martinica,encantadora de serpentes,Antologia do humor negro, a Chave dos campos, e eu queria que relessemBreton. Dei, assim, os Manifestos do surrealismoa uma coleo de bolso, Ides, pensando comigo:eles vo comprar os manifestos, isso vai lhes dar vontade de ler o resto. Mas inicialmente, mesmoem bolso, os Manifestosno foram muito vendidos. Foi preciso esperar 1968. Em 1968, a coisa virou:duzentos ou trezentos mil exemplares. Porm mesmo depois de 1968, eles no compraram o resto. Foipreciso public-los tambm em bolso.

    A retomada de Breton em 1968 trouxe certamente consigo tudo o que estava relacionado com ele e,portanto, Roussel. Roussel em bolso comeou a vender um pouco. Locus Solusem Folio atingiu como tempo, parece, 40.000 exemplares. E Impresses da frica, em Livre de poche, vendeu ainda mais.Mas preciso dizer, para ponderar as cifras bibliogrcas, que o livro foi vendido sobretudo nos pasesfrancfonos da frica, que o compravam em grande quantidade. Segundo as cifras que me foram pas -sadas, h hoje em torno de 55 a 60.000 exemplares vendidos, entre a primeira edio e a reimpressoem Biblio. Quantos foram enviados para Dakar? Precisaramos sab-lo. Isso, alis, justica comple -tamente a observao de Cocteau em Opium. Opium, onde h um dos testemunhos mais sensveissobre Roussel, por algum que o conheceu bem enquanto estava vivo. E Cocteau escreve: No m dascontas, Impresses da fricadeixa uma impresso da frica. Isso tem mais alcance do que parece.

    Ainda um nmero: Como escrevi alguns de meus livrosfoi publicado em 1977 por 10/18. Lembroque 10/18 um pouco mais cara do que outras colees de bolso. Foram impressos 10.000 exempla-res, e s agora esto se esgotando. Mesmo assim, so nmeros no negligenciveis. Mas constato queo Roussel escrito por Caburet para a coleo Poetas de hoje (no gosto muito desse livro) vendeu 3ou 4.000 exemplares. E vocs me dizem que no so os estudantes que tm Roussel na lista. De fato,quantas vezes Roussel esteve na lista?

    A.-M. Amiot. Eu o pus uma vez, dois anos, para uma centena de estudantes. Nunca tivemos oscem exemplares de Impresses da frica.

    J.-J. P. E eu tinha tantos. Mas eles no saam da minha editora, assim como no chegavam paravocs. Eu era distribudo pela Hachette.

    Eis mais ou menos tudo o qu e posso lhes dizer sobre a difuso dos textos de Roussel. So informa-

    es que requerem, evidentemente, mais detalhamento. Eu tambm gostaria de saber mais. Se algumquiser trabalhar com a leitura de Roussel, gostaria por exemplo de saber queml hoje Roussel. Paraonde foram os 40 ou 50.000 exemplares de Locus Solus? Houve, de fato, houve alguma reviravolta naleitura de Roussel depois de 1968, quando se passou da era Sartre a uma era Breton talvez fugitiva,mas marcante? uma espcie de apelo que lano s boas vontades. No m das contas, vim mais parafazer perguntas a vocs do que para dar respostas.

    H tambm as tradues. Um editor alemo que traduziu Roussel...A.-M. Amiot. Ns temos um tradutor alemo aqui: Hans Grossel...Hans Grossel. Locus Solus foi traduzido bem cedo, em 1968, com um prefcio de Olivier de

    Magny. Surkamp o reeditou mais recentemente. E, desde ento, tudo foi traduzido.J.-J. P. At onde sei, a Alemanha e a Itlia so os nicos pases que teriam traduzido Roussel. Na

    Itlia e nos Estados Unidos, os direitos so liberados. Nos Estados Unidos, porque o copyrightnuncafoi estabelecido, e na Itlia em virtude da posio particular da Itlia, h algum tempo, com relao sconvenes internacionais sobre o direito de autor.

    A.-M. Amiot. Haveria edies espanholas.J.-J. P. Seria preciso checar.A.-M. A. O que explica que Cortzar, Roa Bastos, tenham conhecido muito bem, e bem cedo, a

    obra de Roussel.J.-J. P. Isso foi feito sem cesso de direitos. A Amrica do Sul se especializou um pouco em

    tradues piratas. Nesse caso, acho isso muito bom.Uma ltima palavra sobre os prprios textos. Raymond Roussel pegava de volta todos os manuscri -

    tos do editor, e, parece-me, no havia tampouco provas corrigidas com os Lemerre. Roussel tinha a seurevisor particular junto editora Lemerre, um revisor que lhe era especialmente designado.

    Franois Caradec. Foi esse revisor que deu a Michel Leiris os desenhos de Novas impressesde frica. A letra que est sobre os desenhos , muito provavelmente, a do revisor, para as legendas.O revisor disse a Michel Leiris: So as legendas de Roussel. Leiris as publicou antes da guerra noscadernos GLM. S conhecemos as provas corrigidas deA la Havane.

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    J.-J. P. As que publicamos em paves. Fora isso, no tem nada. Junto famlia tambm no.F. C. No sabemos o que aconteceu com os arquivos Lemerre. Quando soube que a empresa

    Lemerre chegava ao m dos 99 anos, que a sociedade no seria prolongada, que os irmos Lemerrecirculavam entre os livreiros para vender suas ltimas colees, que ningum alis queria, pensei co -migo: deveria ir trabalhar com eles como empacotador. Mas eles no precisavam. Havia coisas pararoubar. Soube pelos vizinhos que caminhes haviam levado tudo, no se sabe aonde.

    J.-J. P. Acho que eles destruram os arquivos. Eles deram aos herdeiros dos autores, escrupulo -samente, tudo o que lhes pertencia, e destruram o resto.

    F.C. Acho que atualmente as nicas peas de arquivos do Mercure de France, por exemplo, quecirculam ainda, se devem ao fato de que alguns foram inteligentes o bastante para roub-las. Sabemosde manuscritos de Jarry que foram salvos assim: por roubo. Em contrapartida, a diculdade que sempre

    existir para fazer estudos sobre a leitura porque h, nos editores franceses, um tal gosto pelo segre -do e a mentira que eles nunca do uma cifra de venda exata. Alis, nenhum autor jamais pde ver isso.Ento, o que sobra? O depsito legal?

    J.-J. P. Mas mesmo as cifras do depsito legal nem sempre so exatas. Denol e Grasset, porexemplo, adulteravam sempre, eram grandes especialistas nisso. Denol, durante a guerra, fraudouprovavelmente Rebatet em 100.000 exemplares, de Dcombres, e seu depsito legal falso. Grassetfazia vrios livros s expensas do autor, e quando eles eram vendidos, ele no se importava em pagaros autores. Parece que fazia reimpresses que no declarava absolutamente. So tantas coisas quenunca saberemos. uma pena...

    Raymond Roussel*3

    Andr Breton | Traduo de Fernando Scheibe

    Roussel , com Lautramont, o maior magnetizador dos tempos modernos. Nele, o homem consciente,extremamente laborioso (Sangro, diz ele, sobre cada frase; e cona a Michel Leiris que cada versodas Novas impresses da fricalhe custou cerca de quinze horas), no cessa de estar s voltas como homem inconsciente, extremamente imperioso ( bastante sintomtico que tenha se mantido el,sem buscar modic-la ou substitu-la por outra, a uma tcnica losocamente injusticvel por cercade quarenta anos). O humor, voluntrio ou no, de Raymond Roussel reside inteiramente nesse jogode foras desproporcionadas: A mquina infernal deposta por Lautramont nos degraus do esprito,diz o Sr. Jean Lvy, somos alguns a perceber [em Roussel] seu tique-taque lgubre, e a saudar comadmirao cada uma de suas exploses liberadoras.*Publicado em Anthologie de lhumour noir.Paris: ditions de Sagittaire, 1940.

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    Apenas um breve depoimentoClaudio Willer

    Subjetividade e objetividade travam, ao longo de uma vida humana, uma srie de combates, nos quaisa primeira costuma sair-se inteiramente mal, armou Andr Breton no prefcio de Nadja. Partidrios dasubjetividade, msticos e tambm os romnticos da primeira gerao identicavam-na ao conhecimentodo universo. Novalis, por exemplo: O que a natureza? Um ndice enciclopdico sistemtico ou planodo nosso esprito. Baudelaire tambm observou a tenso entre as duas instncias e a viu como umacontradio a ser superada pelo que chamou de arte puraem A Arte Filosca, texto inacabado epublicado postumamente: O que a arte pura segundo a concepo moderna? criar a magia suges -

    tiva que contenha ao mesmo tempo o objeto e o sujeito, o mundo exterior ao artista e o prprio artista.A superao da contradio entre a esfera simblica e o mundo das coisas se daria, para continu -

    adores de Baudelaire como Lautramont e Mallarm, atravs da destruio do objeto; da aniquilaosimblica do mundo das coisas; do ataque frontal signicao, relao estvel entre signos e seusreferentes externos.

    Esse foi o programa ou projeto de Raymond Roussel, to bem resumido por Andr Breton no cap -tulo dedicado ao autor de Locus SolusnaAnthologie de lhumour noir:

    A magnca originalidade da obra de Roussel ope um desmentido pesado em signicao e alcance,inige uma afronta denitiva aos adeptos de um retardado realismo primrio, quer se qualique de socia-lista ou no. Martial sob esse nome que o autor de Locus Solusse apresenta no estudo do Sr. PierreJanet tem uma concepo muito interessante da beleza literria, preciso que a obra no contenhanada do real, nenhuma observao do mundo ou dos espritos, nada alm de combinaes inteiramenteimaginrias: essas j so ideias de um mundo extra-humano.

    tpico de Breton transformar um julgamento psiquitrico negativo o trecho que cita do artigo deJanet sobre a megalomania de Roussel, e atribuir valor a sua criao n o lhe passava pela cabea emjulgamento potico e positivo. Nesse artigo em que chama Roussel de junto com Lautramont, o maiormagnetizador dos tempos modernos, tambm examina a relao de seus procedimentos de criao

    com a escrita automtica, o automatismo psquico puro, do qual seus autmatos seriam uma metforaou representao, equivalente mquina infernal imaginada por Lautramont.Tambm promove a confuso entre biograa e obra; v uma como extenso da outra, ambas em

    relao de vasos comunicantes. o mtodo crtico de Breton; o mesmo que o faz interpretar e colocarno mesmo plano da obra os dandismos e provocaes de Baudelaire, as bicicletas e tiros de revlverde Alfred Jarry, as viagens, invenes e outras iniciativas de Roussel.

    Atraem-me essas recprocas, por Roussel, de seu ataque ao realismo e ao real atravs da criaode um mundo extra-humano. As ocasies em que transformou a vida em extenso da obra. O epis -dio mais famoso, aquele das viagens pelos oceanos ndico e Pacco, ao Taiti e China, entre outroslugares, sem sair do camarote escrevendo, assim demonstrando que sua criao era maior que o

    real emprico, e que todas as maravilhas com que poderia deparar-se naqueles lugares eram menoresque sua imaginao. Assim como Baudelaire, que detestava viajar (deu meia volta, retornou mais cedode uma viagem dessas ao Oriente) e armou: Acho intil e fastidioso representar aquilo que , porquenada daquilo que existe me satisfaz. A natureza feita, e prero os monstros de minha fantasia trivialidade concreta.

    Eu havia achado na Livraria Francesa a edio da revista Bizarrededicada a Roussel, o n 34-35de 1964. Que reeditem ou tornem disponvel on line aquele dossi. Nele, alm dos relatos de viagensde navio e outras informaes relevantes, a histria de sua maison roulante, a manso sobre rodas de1925: um automvel com dez metros de comprimento, precursor das vans e dos trailers, dentro do qualhavia instalado um apartamento completo. O iate terrestre foi exposto no Salo do Automvel parisien-se; nele, Roussel foi a Roma visitar o papa, como bem registrado por Joca Reiners Terron em No h

    nada l, e tambm Mussolini. Fez mais, porm e isso no est relatado na pgina a respeito que lo -calizei, http://www.bookforum.com/inprint/018_02/7807, porm apenas naquela edio da Bizarre. Saiudirigindo rumo ao Oriente. Os amigos, por semanas, sem notcias dele. At chegar um telegrama: Fureium pneu na Prsia. Achei elegante. Toda vez que eu me referir a algo, algum, algum acontecimento,como elegante, saibam que nesse sentido. Com todas as conotaes acrescentadas por Roussel.

    Se a inteno de Roussel foi instaurar a confuso entre imaginrio e real, projetar a inveno/criao na vida, ento vale relatar circunstncias que acompanharam sua leitura. Por muito tempo,todo ano eu pegava uma gripe, cava uns dias em casa com febre, depois passava. Curioso, nunca mevacinei, mas nos ltimos anos, em que deveria ter mais propenso aos achaques, deixou de acontecer.Aproveitava a recluso para ler em especial, obras complexas e extensas que devem ser lidas seminterrupo. Minha primeira leitura de Grande serto: Veredas foi durante uma dessas gripes fezbem, melhorava enquanto lia. Outra vez, durante outra gripe, peguei Impressions dAfrique. J conhe-cia Roussel, havia lido Locus Solus matriz, reconhecem-se ecos em tantos autores extraordinrios,Bioy Casares, Cortzar, e Libert ou lamour de Desnos, obra da minha predileo, impregnado deRoussel e Comment jai crit certains de mes livres, entre outras. Enquanto lia, piorava, a febre subia,acho que alcanou 39 graus. Sobrevivi. Mas ler Roussel pode fazer mal, provocar reaes, dar febre.Aplica-se a famosa advertncia de Lautramont, na abertura de Os cantos de Maldoror, variante de um

    chavo ou tpica, a exortao ao leitor:Praza ao cu que o leitor, audacioso e tornado momentaneamente feroz com isto que l, encontre, sem sedesorientar, seu caminho abrupto e selvagem, atravs dos pntanos desolados destas pginas sombrias echeias de veneno; pois, a no ser que invista em sua leitura uma lgica rigorosa, e uma tenso de espritopelo menos igual a sua desconana, as emanaes mortais deste livro embebero sua alma, assim comoa gua ao acar. No convm que qualquer um leia as pginas que vm a seguir; somente alguns sabo -rearo este fruto amargo sem perigo. Por conseguinte, alma tmida, antes de penetrar mais longe em taisextenses inexploradas de terra, dirige teus calcanhares para trs e no para a frente. Escuta bem o quete digo: dirige teus calcanhares para trs e no para a frente [...]

    http://www.bookforum.com/inprint/018_02/7807http://www.bookforum.com/inprint/018_02/7807
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    A rulote de Raymond e outras invenes*1Dominique Ndellec | Traduo de Thiago Mattos

    Turismo precursor: A VILA NMADE: todos ainda se lembram desse artigo e de suas quilomtricaspromessas. Na revista LIllustrationde 26 de fevereiro de 1926. O reprter estava maravilhado. Eleplanejou e mandou construir um automvel gigante, de 9m por 2m 30, dotado, graas a engenhosasdisposies, de uma sala de estar, um estdio, um quarto de dormir, um banheiro e at um pequenodormitrio para a equipe de trs homens: dois motoristas e um criado. E o jornalista, mistura de hars -pice e de previsionista Bison Fut 21, lana: dias viro em que as vilas nmades correro numerosaspelas estradas do mundo, ressuscitando, para o renado prazer de seus ocupantes, a era extinta dos

    povos pastores e a poca, em vias de se extinguir, do ar livre e da liberdade sem entraves sob o cu.Aqueles que desprezavam LIllustration, generalista demais, preferiam em seu lugar, talvez, a Revuedu Touring-Club de France. Lembram-se ento da reportagem publicada em agosto de 1926, quefornecia precises tcnicas sobre a engenhoca: A decorao interior da casa ambulante do senhorRaymond Roussel assinada por Maple. Possui aquecimento eltrico e lareira a gs. O aquecimentodo banho tambm a gs. A moblia foi planejada para atender a todas as necessidades, possuindoinclusive um cofre-forte Fichet. Uma excelente aparelhagem permite captar os programas de todos osrdio-transmissores europeus. Tal descrio, embora breve, permite constatar que essa verdadeiravila ambulante qual pode ser engatada ainda uma cozinha a reboque permite a seu proprietriodesfrutar, num espao apenas um pouco menor, de toda a doura do lar-doce-lar.

    Aquilo que seu proprietrio promovido sua revelia a novo arauto dos povos pastores chamavahumildemente de rulote automobilstica causara alguma comoo entre os visitantes do Salo do au-tomvel de 1925. As dimenses do veculo, negro como um sol, impressionavam: capaz de dar caronade uma s vez a umas trinta pessoas (as equipes de rugby Aviron Bayonnais e Biarritz Olympique reuni-das). Conjecturava-se: um carro funerrio para uma famlia numerosa, um camel megalomanaco, umvendedor de batatas fritas clandestino? Um transportador internacional? Mudanas Raymond Roussel Todos os destinos Europa frica. No: as cortinas namente trabalhadas e as janelas deixavam

    claro que se tratava de uma mimosa casita mvel, com destino catita: estar em casa tanto aqui quantoem qualquer lugar, estar em toda parte sem partir. A inveno punha m ao dilema da pessoa caseiraque, no entanto, no consegue car parada, salvava o aventureiro que sentia falta de casa: viagensinteriorizadas, um turismo centrpeto. No ano seguinte, todo cheio de si, Georges Rgis, fabricante decarrocerias e construtor desse iate das estradas, distribua, frisando os bigodes, um pr ospecto publici-trio exaltando os mritos do automvel-salo do senhor Raymond Roussel.

    Com uma rulote pegava-se, seriamente, ento, a via da modernidade, falava-se em combustvel ags e transmisso sem o: mobilidade, sim, mas num ninho aconchegante. Raymond Roussel no *Agradecimentos: as informaes sobre a rulote foram gentilmente fornecidas pela ocina Franois Caradec(Raymond Roussel, Fayard, 1997).1N.T.: Popular sistema francs de previso do trfego.

    Ayrton Senna. Alguns, mos sujas de graxa, vo se matar para inventar pernas de pau motorizadas,patinetes monociclos (pouco cmodos para transportar um cofre-forte ou acomodar a equipe), raquetesde neve a energia solar, alguns construiro em suas garagens mal iluminadas banheiras a retropedala -gem ou tanques de guerra perfumados: quanto a Raymond, preferir inventar uma rulote revolucionriapara acalmar suas crises de bicho-carpinteiro. A carroceria tinha acabado de ser pintada, sbria at aausteridade no mesmo ano, Sonia Delaunay decora a Bugatti 35 e cria o vestido combinando paraa motorista e a vila nmade j realizava corajosamente seus primeiros 3000 quilmetros: Alscia,depois Sua. Era preciso, portanto, que resistisse tanto aos vilarejos oridos quanto ao canto tirols.Uma bela mecnica.

    Mas, anal, por que uma rulote? Talvez alguma reminiscncia da Grande Guerra: em 1 de setem -bro de 1914 (ano de publicao de Locus Solus), Raymond Roussel convocado para o servio de

    manuteno de automveis do 13 regimento de artilharia de Vincennes. Histrias de cap. A vida decaserna lhe teria permitido o lazer de anotar duas ou trs ideias para um veculo vindouro. Sem falar

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    que uma paixo da poca: enquanto Roussel escreve a Charlotte Dufrne contando que se deleitacom handsome cabs que v em Melbourne, Proust se delicia com os passeios de carro entre maciei -ras e casas de taipa pelas falsias da Normandia. De resto, de que meios se dispunha ento para pas -sear, para ir jogar confete no carnaval de Nice ou experimentar uma sopa de canguru na Tasmnia, queoutras alternativas poderia ter preferido um homem que tinha seus muitos milhes em ouro? O avio, claro, mais rpido. Mas ainda no havia sido inventado, ou s em parte. Um avio naquela poca: umafrgil carcaa aberta a correntes de ar, um motor que nos torce as orelhas, mosquitos nos olhos. Jovenstontos com a cabea coberta de camura mal curtida, pulando exibidos na poltrona do avio como al -gum que faz questo de entrar pela janela. Nada srio. A ferrovia, ento? Com esse inconveniente deque a latitude estreita para se afastar dos trilhos, fossem eles de pulmo de vitela: impossvel pegardo nada um caminho fechado de vegetao ou responder ao convite de uma encantadora estrada

    provinciana. Sabemos de onde partimos, aonde chegamos e a que horas. Um tdio. Os paquetes? charmoso, mas nem todos passam por Bcon-les-Bruyres ou Dnipropetrovsk. Fica-se condenado linha da costa, sem experincia interior. Enseadas, baas, ancoradouros at no poder mais, ladainhasde peixeiras e barris de combustvel. E os planaltos, os zigue-zagues traados nas montanhas? AsEdelweiss e as neves eternas? No com um barquinho que se atingem esses elevados prazeres.

    Para Raymond Roussel tratava-se, ento, de reunir os confortos e vantagens dos diferentes meiosde transporte em um prottipo ideal: um vago-leito para grandes estradas, com fronha de travesseiroindividual e rodap de madeira de lei, e que seguisse a direo escolhida pelo passageiro. Sabendo,por um lado, que a duquesa de Uzs, primeira mulher do mundo a ter carteira de motorista, tornaramuito popular o uso do retrovisor saber proteger a traseira... e, por outro lado, que sob o impulso dosamericanos passava-se a dominar a tcnica do pneu de borracha modelada antiderrapante, possvelentender sem grandes diculdades a escolha nal de Roussel, atento a seu tempo. Po dia partir tranqui-lo, estrela na testa e cortina lesta. Sem contar que, a partir de 1921 , graas descoberta do britnico W.M. Folberth, os pra-brisas so automaticamente acionados por ar comprimido proveniente do motor, oque sempre til, mesmo quando a mo-de-obra abunda a bordo (os dois motoristas e o criado devemdurar tanto tempo quanto o pneu de borracha pura).

    Em relao a invenes, surpreendente constatar o quanto escritores gostam de requerer paten -

    tes. Quase uma mania como o xadrez. Roussel, antes de pensar em deixar todo mundo embasbaca -do no Salo do automvel com sua rulote de luxo, tentou deixar uma lembrana durvel e autenticadapara os tcnicos em calefao. Em 18 de setembro de 1922, pede um primeiro registro (diversos aden -dos vo se seguir) junto ao Escritrio nacional da propriedade intelectual, com o ttulo de Utilizaodo vazio para o no-desperdcio de calor em relao habitao e locomoo. E isso algum quediziam glacial... Seu companheiro de experimentos, Jean-Pierre Brisset, futuro profeta e doutor em rsantes de enar o dedo na goela da lngua francesa se dedicando etimologia tonitruante, trouxe umacontribuio decisiva para a arte do movimento em ambiente aquoso registrando, em 1871, uma tcnicade banho totalmente segura: o cinto-calo aerfero de natao com duplo reservatrio compensador.Essa tcnica fornecia um feliz complemento s suas pesquisas anteriores, detalhadas em La Natation

    ou lArt de nager, appris seul en moins dune heure[A natao ou A arte de nadar, sem mestre e emmenos de uma hora], publicado um ano antes. Trata-se de um mtodo para aperfeioar as braadasestando fora dgua: curioso constatar que Roussel falava da sua rulote como um iate da terra (noexiste acaso; tampouco explicao). Quase ao mesmo tempo que Roussel, e no entanto mais ao sul,Fernando Pessoa (s tratamos aqui de criadores com dois s) registra no ms de agosto de 1926 umainveno que no ajuda nem a nadar nem a evitar o desperdcio de calor (ou ajuda?), ocializandoa elaborao de um anurio indicador sinttico, por nomes e outras classicaes, consultvel emqualquer lngua. 1926, ano venturoso para o poeta, que, em janeiro, com seu cunhado Caetano Dias,funda a Revista de Comrcio e Contabilidade.

    Moral da histria: os escritores no so aqueles que acreditamos ser principalmente os pobrescoitados que enamos, afobados, no mesmo saco lotado e agitado dos excntricos. Quantas vezes

    no reprovamos no literato sua leviandade, neurastenia, egocentrismo, desinteresse pela vida real? Es-ses poucos exemplos provam que um homem de letras sabe tambm se preocupar com os agentes docomrcio e com o annimo tiritando de frio, que ele sonha com um pleno uso do vazio e que o destinodo banhista o desassossega, sobretudo quando trapalho.

    Lisboa, novembro de 2002

    Mquina para ler as Novas Impresses da frica de Raymond Roussel [Juan Esteban Fassio, 1964]

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    O jogador de xadrez [fragmento]*1Roger Vitrac | Traduo de Marcelo Jacques de Moraes

    Paul Valry assinalava esta relojoaria invasiva: a preciso do tempo, do lugar e da atividade dos ho -mens; e que h cada vez menos jogo na mecnica, que nossas luzes no tremem mais e que a imagi-nao pura est condenada, se no se adaptar, a ser moda pela mquina.

    Raymond Roussel serviu-se dessa preciso moderna e da lgica estabelecida para construir fabu -losos aparelhos destinados ao transbordamento do material potico.

    Sua obra a fbrica que transforma os mveis em orestas, os explosivos em pastos, os jornais emcrimes. No que a velha mquina gire s avessas, de uma outra que se trata, inteiramente construdacom os metais mais longnquos, com os motores mais raros, e sempre de uma tal preciso que o voca -bulrio deve ceder ao impulso brbaro.

    Na fbrica moderna, Raymond Russel faz uma espcie de greve intermitente. Ele aplica todas as

    regras com uma preciso implacvel e cruel. Nada deixado ao acaso ou aventura, tudo condicio-nado, agrupado, mas sem o menor jogo, sem leo nas juntas, sem vlvula de escape, e ele se regozijaque as polias agarrem, que as barras se quebrem como vidro, que as caldeiras explodam. ento queo sonho estende aqueles trilhos de bofe de vitelo, que ele constri foles com pulmes humanos e apri-siona nos pistons a fora ascendente das guias. Em suma, parafraseando o conhecido verso, pode-sedizer que Roussel vive em um mundo em que o sonho irmo da ao.

    A preciso absoluta se mostra destrutiva, ela a forma nova do humor, do humor de RaymondRoussel.

    *Fragmento de Joueur dchecs, publicado na Revue de la N.R.F., 1928.

    Uma nova querela entre antigos e modernosFabiano Barboza Viana

    Com muita pompa, certos exegetas da obra de Raymond Roussel anunciam a boa nova: a invenode um mtodo de escrita rousseliano! Daccord.Roussel, conforme explicita em seu testamento liter-rio, desenvolveu trs procedimentos de criao narrativa baseados em aproximaes de palavras porhomofonias, homograas e paronmias. Aquilo que provavelmente nasceu de uma brincadeira de caa--palavras, de um acaso qualquer, ganhou objetividade ao ponto de se estender por boa parte de suasobras literrias e no-literrias aps 1910 - procedimentos arquitetnicos, enxadrsticos, industriais,gastronmicos, comportamentais, sero examinados pelos seus vidos intrpretes e apstolos.

    Concernente s obras literrias, a execuo do mtodo estendida aos volumes Impresses dafrica, Locus Soluse depois s Novas Impresses da fricaindicava, provavelmente, algo no limiteentre uma perverso clssica e/ou uma inveno moderna (como no ttulo do colquio CerisysobreRoussel, em 1991). Sabe-se que j os poetas gregos e latinos tinham bastante apreo por estas inter-venes sistemticas na materialidade dos signos apenas para citar alguns, Triodoro (V a.c), Lasode Hermione (VI a.c), assim como, sculos depois, o espanhol Alonso de Alcal y Herrera (1599-1682),adotavam o lipograma e o anagrama como mtodos ostensivos de construo potica. Qual seriaento a novidade rousseliana?

    Talvez, R.R tenha sido o lho prdigo da modernidade que, a partir do entrelaamento de sua vidae obra, congurou-se como o prottipo do antropfago da tradio, ou, segundo a formulao deGilles Deleuze, tornou-se um dos grandes repetidores da literatura. Mais do que fazer o pastiche, seapropriar, citar, aludir, parodiar, poetas gregos e latinos, novelistas franceses e ingleses, o messias dasvanguardas devorou almanaques, revistas de curiosidades, palavras-cruzadas, dicionrios, o sistemainteiro da belle languee cada uma de suas duplas palavras. Tal voracidade demonstra a distnciahistrica em relao aos seus confrades da antiguidade a escrita rousseliana no mobilizar troposretricos fundados no decoroconferido por um sistema preceptivo qualquer. No se trata de emularcom agudezaos clssicos da lngua. Tanto o regime generalizado de apropriaes quanto a quebra dehierarquia entre os gneros Roussel bebe no mesmo gole de Virglio e dos pasteles da Comdie --Franaise sem nenhum inconveniente apontam para uma espcie de autoconscincia humorsticadeste novo brinquedo chamado literatura, diante da tradio das belles lettres, mas tambm diante desi mesma.

    Ora, mas no eram os antigos que possuam a mxima conscincia de que a poesia feita compalavras, acima de tudo, concatenadas em construes verbais engenhosas? Raymond Roussel noseria, por sua vez, um romntico temporo ao rearmar o mito do gnio romntico?

    Justamente por a literatura, vista atravs do binculos de R.R, estar agora abandonada e entre-gue a si mesma, este singular grau de conscincia aberto na modernidade no se deixa confundircom a dimenso da palavra ordenada e classicada pelos sistemas representativos de linguagem.

  • 5/26/2018 sopro98s

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    Sopro98| nov/2013 Dossi Raymond Roussel

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    Antes de tudo, a imagem de literatura que se deagra indica um eterno retorno para a manjedoura dasprprias palavras, espao embrionrio no qual a palavra lettrespoder vir a ser letras do alfabetoou cartas para amada, de acordo com o sentido que se queira extrair. Do mesmo modo, a despeitoat do iderio do escritor ele mesmo (isto supondo que seja possvel acess-lo; no seria mais umamscara desse escritor sagaz?), a esquizofrenia da escritura rousseliana ultrapassa em larga medidavalores institucionalizados como genialidade ou a pecha do escritor louco. No toa que foramos vanguardistas, ps-vanguardistas e contemporneos de planto que levaram mais frente uma dasdivisas rousselianas: R.R. lia a si mesmo como um clssico da literatura francesa que dispunha de umvasto repertrio de leitmotivse imagens, assim comode uma diversidade de procedimentos estilsticos deescrita. Porm, uma vez que ousou saborear do fruto

    proibido da literatura, j no se estava mais em tem-po de retornar ao idlio de uma lngua originada noseio da natureza. A escrita obse