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Sonata para verso e voz Eduardo Gama

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Sonata para verso e voz

Eduardo Gama

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Aos meus pais

ao meu primeiro mestre

Índice

Sonata. s.f. Mús. Peça musical para um ou dois instrumentos, divergindo as partes dela em caráter e andamento.

Sonata

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No Classicismo, é uma forma de composição musical normalmente dividida em três partes: uma exposição de um ou mais temas, o desenvolvimento desses temas e a recapitulação, que é a reapresentação dos temas de maneira modificada, geralmente em outra tonalidade.

Na origem do termo sonata, era uma música para instrumentos de sopro ou para cordas. Com o passar do tempo, sonata passou a designar uma obra musical em vários movimentos cuja estrutura era definida. A sonata clássica, desenvolvida por Mozart no Classicismo era constituída de três ou quatro movimentos.

Sonata Clássica

É uma composição para instrumentos solistas, geralmente piano, em três movimentos (normalmente dois rápidos e um lento), sendo um deles escrito na forma tradicional (exposição, desenvolvimento, reexposição). Os compositores que mais escreveram sonatas clássicas foram Mozart, Haydn e Beethoven.

Fonte: Wikipédia, a enciclopédia livre.

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Sou um trovador perdido neste século,Arnaut Daniel é meu irmão de sangue.Talvez blasfêmia, talvez impropério,

Mas devo assumir que meu pai é Dante.

Contudo o Tempo trouxe-me o degredoE vim parar na terra da emoção.

Ninguém diga que não sou brasileiro:Adivinhaste a rima? Coração...

Enfim, em casa, que é também degredo.Não entendo esse neo-naturalismo

É um perfume de odores estrangeiros...

Atento alheio, verso sobre o espírito,Este sim, o exilado verdadeiro,

Não, é claro, da pátria, mas dos livros.

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We shall not cease from explorationAnd the end of all our explorationWill be to arrive where we started

And know the place for the first time.

T.S.Eliot, em Little Gidding, de Quatro Quartetos.

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Exposição

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Vida Nova

Onde foi que perdemos o sentido?É urgente resgatar novas palavras,Polir verbos com zelo em línguas mortas,Reler inscrições de mundos perdidos.

A Poesia deseja uma só notaPra compor a canção de um tempo inédito.Ela aceita não ter mais nenhum mérito Porque é compasso que somente importa.

O silêncio requer um alfabetoE a leveza voar veloz em verso,Romper estas cadeias rumo à Aurora!

Só tu, puro Amor, ouve a voz dos verbos,Rimas querendo céu em Terra morna,Todos os sons sonhando Vida Nova.

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Poética

Hoje os poetas que nunca serei vem visitar-me.À Eliot, reparto os cabelos ao meio,Apesar de ser calvo como Carlos Drummond de Andrade.

Abraça-me toda a melancolia de Bandeira,O tédio mortal de BaudelaireEnquanto me vejo no espelho enigmático de Cecília.

Carrego em mim o temível inferno de DanteE a fé delirante de Jorge de Lima,Mesmo preso ao mesmo laço de Castro Alves.

Estou nessa estante de pó que não sou eu, mas é minha,Porque é a minha história nesses livros-cadáveres E só minhas estas formas mortas que ressuscitarei em arte.

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Baudelaire

Eu cuspo na vida em banho-maria,Em mentes ocas íntimas de nada;pudesse não ser o que sou seriauma fétida cova ou céu de gala.

Mas o demônio é o pai da apatia,paternidade que não me foi dada.Gerei sífilis e melancoliano século da casa derrubada.

Se houvesse culpa, não seria minha,porque a esperança, a última que eu tinhaa perderam por mim, Tempo e Desgraça.

A beleza! Gritei, ninguém ouvia...A estética impossível da ruína,cemitério da almas condenadas.

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Meu cálice transborda:Venha como vier qualquer tristeza,Que estou alegre festa de família,Venha a mim quem seja ou queira,Meu cálice transborda de alegria.

Venha, venha quem quiser felicidadeQuem tem os olhos rasos de mágoa,Quem não sabe o seu lugar na cidadeE vacila pelas ruas ensolaradasMas o seu peito soluça saudade,

Meu cálice transbordaPosso agora sofrer pela maldadeQue não é minha, da minha raça inteira,Brasileira por descuido de DeusQue nos pôs nessa terra bela e traiçoeira.

Venha quem tem sangue vertendoE sequer sabe onde arrumou tal ferida,E só conhece a dor de ir vivendo,Adiando com promessas a melancoliaQue, não escondamos, certo virá um dia.

Venha, eu tenho água de sobraPara sustentar toda língua seca,Tenho acalantos, sei a melodiaSuspirada pelo coral dos anjosQue velam essa terra noite e dia:

Meu cálice transborda de alegria.

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Veredas

Não às vozes orquestradas Que urram altos ruídos,velhas canções da mentira;

sem fogos, sem artifícios de quem anseia da vida a pompa, os alaridos,

tapetes como rotina, em que os passos distendidos deixam marcas de neblina.

Não é esse o nosso caminho. O nosso chão é caatinga, O cacto, a pedra e o espinho,

o sol derretendo a vista, as nuvens sempre em indício de uma chuva que não pinga.

Neste sertão esquecido, terra de suor à vista nenhum esforço é perdido.

A vida amada em delícias resseca em lento gemido e de fartura definha.

O desespero é o seu grito, Nada é a última linha do trem que nasceu partido.

Porém nós, em nossa lida, o prêmio está garantido (não falo só da outra vida).

Para nós somente um pingo é chuva, mais, é enxurrada festa plena de sentido.

Desta gota nasce o dia, cresce verde pasto lindoe o burro se anima.

Porque o mundo do sorriso

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É a pureza da alegria, ser um coração crescido.

E no fim da estadia, quando já é quase passado, vê-se em pegadas na trilha.

deixou o campo arado, o gado em boa companhia. o burro amou, foi amado.

Hoje ser é uma ousadia, mas canta, ah, e canta alto: canta! a tua voz é divina”.

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O Sobrevivente

Haverá nessa terra um amor puro,Que conheça o perfume da doçura,Que saiba versos de cor, mesmo muda,Haverá nessa terra um amor puro?

Eu vaguei pelas ondas da amarguraTodos diziam ser assim o mundoE melhor aceitar a querer tudo.Eu vaguei pelas ondas da amargura.

Conheci, ai de mim, olhos imundos,E bocas falsas, e línguas impuras,Falsos corações, velhas pedras duras.Conheci, ai de mim, olhos imundos.

Sou o náufrago das ilhas impolutas,Envio sinais aos céus: serei o únicoQue espera o amor vir com a sua escuna?Haverá nessa terra um amor puro?

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Pietá

O sofrimentoQue envelhece, envileceOs olhos dos homens,No teu rosto é jovem,Menino como a criançaSilenciosa nos teus braços.

Não chora, não grita.Intui o teu olharDoído, doído, doído.

A última espada,Tua paz quase alegre,A última espadaFoi um “Até breve”...

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O trabalho do vento

Deixa o vento voar à vontade lá fora.Deixa o vento fazer os seus suspiros violentos,Espalhar suas mentiras, impedirOs homens de passarem leves pela vida.

Deixa o vento.

Ontem foi mormaço, anteontem bonança,Hoje o dia apresta-se a tempestades,É o clima, o sinal dos tempos.Caminha no teu passo,Preocupa-te em pisar as tuas pegadas.

Por acaso já seguiste o vento?

Eu já segui seus descaminhos,Sei que nascem das nuvensE quanto mais perdidos, mais desfolham a copa das árvores.Não é fúria, mas lamento, dor de viver a esmo...Esse outrora habitante dos desertos,nada pode salvo aterrorizar os fracos da cidade.

Deixa-o, deixa-o.Nada pode fazer contra a tua alma,Apenas despentear os teus cabelos.Deixa-o, deixa-o!

Nada deixará o vento.

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A Desejada

Vem, Beleza,Doçura sonora da Terra!Revela o teu rosto frágilAos que não te conhecem,Nunca te souberamE ainda assim te desprezam.

Vem, Beleza,Mostra-te viola, violino,Violoncelo,Ou desnuda-te todaQuarteto!

Vem, bela,Desvela-te poeta,Braços puros os teus versosrima rica o teu verbo,Vem linda!,

Brisa marinhaQue uma vez ouvidaNada mais valeNem pena é sentidaSó tu, tu sóDona da vida.

ResgataImperaPorque sem tiSem a tua presençaResta só a lembrançaVestígios sob ruínas

Única esperançaDe quem te aguardadesperta saudadesna gente adormecida.

Vem, Por que ainda alguémespera ardentecompõe poesiate embala no ventresoluça o teu nome

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anseia a tua vinda.

Vem logoPorque eu morroE a minha morteA minha morte,Amada e Filha,É o teu fimPorque sem mimTu não mais existirias.

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Que eu veja

O cego curado ouviuque Jesus, o nazareno,seria crucificado.

Era manhã... Sentado à mesaolhou o pão e viu no pratoo azul dos seus olhos renovados.

Um momento de tristezao levou à solidão do quarto:fechou os olhos e relembrou o passado:

“Por misericórdia, uma moeda”e o povo: Isso é lá contigo,teu e de teus pais é o pecado.”

Veio a ele a voz da graça:“Não tenho nada nos bolsos,mas vá em paz, está curado.”

Pensou em ir ao Gólgota e gritar: “Vocês estão enganados.Vejam, eu sou o cego curado!

Minha alma hoje está renovada,Ninguém crê que Ele seja o Esperado?Então todo o mundo está enganado.”

Mas o medo congelou sua alma: “Talvez eu seja apedrejado.Basta um só crucificado.”

As cortinas do templo rasgadas,Os soluços do cego curado,O mundo em pânico transformado.

Jesus, hoje minha visão é clara:O cego, o pobre cego Bartimeu,esse cego - sou eu.

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A Reta Veloz

“Poeta de quem espero(na expressão de Murilo Mendes)

´a reta, veloz’”.

Bruno TolentinoAgosto 2004

A reta velozSei de ti,Poeta, legítimo,Vero albatroz.

Tua idéia de mundo,Meu mundo como idéia.Teu mergulho no absurdo,minha lição de trevas.

Poeta do áspero,Liso nas conversas.Humor irônico,Língua de fera.

A reta velozÉ a tua vida em versoQue levo de cor,Poeta do Verbo.

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Amor de Mãe

a Cristina Rothering

A vida das mães de primeira viagem...Elas sabem que os homens são crianças,Seus trabalhos não passam de brinquedosE as suas lágrimas não passam de manhas.

A mãe que se dedica com ternura.Troca a fralda, dá banho e o embala,Chora por nada, suplica um sorrisoE por meses aguarda uma palavra.

Não filosofou, mas soube no amorNão ter sede por noitadas de sonoNem alívio para as trágicas cólicasInsistentes por toda a madrugada.

Mãe que nem cogitou estas palavrasPorque para ela o tempo é muito curtoPara estar, ser e dar-se apaixonada:Amar é saber pouco e esperar tudo.

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Forja

As torres, os prédios, o ar sufocado, O barulho, a tensão e a incompreensão; Ter em si a alegria e ser calado,Semear vida, colher frustração;

Ter o corpo ao fim do dia cansado,Exigindo o gosto da tentação; Olhos que não se fecham assustadosCom a loucura da imaginação.

Perplexo, o homem olha para os lados:De um, chama-lhe a deusa da emoção, De outro um rio, que parece ter secado.

Cai a lágrima que tem evitado,Murmura um protesto, sua oração. Escuta um sopro: “Quero amor provado”.

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Depois do Amor

É antes do pecado que sou triste.Antes que uma ilusão em vestes de IdéiaPrepare em letras de ouro o seu conviteE chame – só a mim- para a sua festa.

Muito antes do silêncio estou ausente.Vem do tempo passado a minha espera,Que é mais profunda no tempo presentePorque é de quem duvida e sabe que erra.

Muito antes do pecado é que sou triste,Porque o pecado é só uma conseqüênciaDe quem sabe, ouve e mesmo assim despreza.

Bem antes do pecado é a lei de Deus.Antes é o Criador ante a criaturaE só depois do amor se diz adeus.

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Nem te atrevas a lamentar-te à porta da saída,

pois pouco importa a vida como a levas, que ela te leva a ti, de despedida

em despedida, a uma lição de trevas.

Bruno Tolentino, In Passim, de O mundo como idéia

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Desenvolvimento

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Eterna Viagem

Nasce outra vez no peitoO tempo de ir embora.Um adeus se lança em aceno,O coração sabe a sua hora.

A mão resiste ao gesto,O olhar se volta à terra perdida,Aflita por ouvir um grito:Volta... Espera... Fica!

Mas passar é o meu destino.Todas as histórias são belasse renascem o espírito.Já devias esperar este dia...

Não te prendas a lamentos:Novos mundos outras terras!O teu único futuro,O presente que te espera.

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Em Breve

Há dias componho uma canção alegreSincera como um choro de criançaacordando a casa durante a noite.Há dias componho uma canção alegre.

Há dias descanso de tanto tristezaE ando ao sol no meio da tarde,Sozinho, esperando a voz da verdade.Há dias descanso de tanta tristeza.

Há dias me esqueço da minha maldadeE vago como quem sofreu uma perdaMas ninguém ainda lhe disse palavra...Há dias me esqueço da minha maldade.

Há dias ninguém ouve a minha fala.É verdade que escondo um segredo,Mas não sei verbo, então me calo.Há dias ninguém ouve a minha fala.

Há dias penso se me despeçoE parto resoluto rumo à chegada,Onde disseram estar a minha alma.Há dias penso se me esqueço...

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Adiós

Sucede que pensei muito e estou exausto,exausta flecha partida em plena tarde,suspenso vôo das minhas asas ligeiras,abatida andorinha em nuvens crepusculares.

Sucede...

Sucede o momento, dias e lamentos,sucede a vida esgotada em pleno ápicee um peito intenso de todo sentimentomais sincero, mais sonhador e selvagem.

Sucede.

Sucede que vou-me embora.Adiós muchachos compañeros de mi vida!Adeus mundo das idéias! Tchau, Pasárgada!Não me incomodem, cansei e vou pra casa.

Deixarei a vida inteira lá fora.Um Romeu que espancou a cotovia,que nunca viu Julieta mais gordae tomou veneno porque queria.

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Desapego

Não vou me perder nas teias do teu arame farpado. Enquanto teces encantos deixo-me e não me debato.

Solto a voz em outro canto que detesto, mas me livro de viver só esperando amor de olhos movediços.

Quem sabe se eu gorjeando vás em busca de outro pássaro, ave afônica de enganos:Eu me cansei dos teus braços.

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Restos

Eu, de mim, sei o silêncio duro,a pedra imobilizada pelo temposozinha na treva de uma caverna,no profundo amargo de uma idéia.

De mim sei só sentir ausência,embalando a manhã sem palavras,dilúvios de vapores d`água,alcoólico dos cacos da própria falência.

A tarde se apresenta nula,prévia escandalosa da noiteque me ferirá em corte sem sanguee serei uma estrela a brilhar escura.

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Deserção

Hoje, só por hoje,Deixa-me estar morto,Prostrado em meu quarto,Calado de sono.

Só, só por um dia,Deixa-me o sossegoDa morna de apatiaEnquanto eu espero,

Espero algo inédito,Um sopro de vida,Uma vida novaQue não mais oprima.

Deixa-me estar morto,Sorver horas lentas,Amargo conforto,Torpe desistência.

Amanhã sim, vivo!Hoje, asteio a brancaBandeira da entrega.Eu perdi a guerra.

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Mulher ideal

Bem sabem os poetas, Bem sabem os cantores,Sabem todos os artistas:As melhores amadas são as desconhecidas.

Bem sabe Laura,Sabem também BeatrizEstátuas de Dante e Petrarca:As melhores amadas são inventadas.

Pobre Alphonsus,Poeta pela morte de Constança,Que deixa lágrimas e lamentos:Esse é o seu melhor testamento.

Pobre de mim neste momentoQue sofro de infelizes mentirascompostas para o meu pranto:Os melhores amores são enganos.

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Ausência

Pudesse agora dançar suavementeao vento, em silêncio, abraçadoà sombra do corpo agora ausente.

Pudesse tirar da memória o fardo,ouvir a melodia descontenteà voz monótona do passado.

Sofre sempre mais quem senteter previsto o futuro errado-profeta que da fé se ressente.

A canção tem sempre o seu compasso;encanta, envolve e de repentefim: hoje não haverá espetáculo.

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Felicidade

Eu não tenho mais aquela ousadia De quem sonhava campos descobertos Não porque estivessem, mas não sabia Que no meio da trilha há um deserto.

Há um deserto chamado apatia, do desânimo o rebento mais novo, Irmão gêmeo da idosa covardia, Dois tormentos para o peito orgulhoso.

Peito orgulhoso porque a expectativa Era muita, meu pacto com o mundo, Minha brisa na terra da asfixia. Fazia-me ver e gostar de tudo.

Tudo se foi. Se soubesse que iria Talvez desistisse já no começo, Porque era o meu desejo e minha vida: Não conheci o bem, mas sei o preço.

Sei o preço velando em agonia, Conheço-o na voz fina do desprezo, reconheço-o na lágrima sozinha que aceitou se acomodar no meu peito.

No meu peito, eterna sala vazia, Belo casarão hoje sob escombros Que nem mesmo quer a velha mendiga Que passou, mal olhou e deu de ombros.

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Conversão

Eu, que me pego pensando:“Quantas paroxítonas há na línguae ela mesma é uma proparoxítona!”

Que arrumo as prateleiras nas livrarias,Que choro ao ver um livro pego pela capa,Que tiro o pó de páginas velhíssimas.

Eu, que argumento comigo mesmoTeorias, filosofias e sílabas métricasE faço versos para serem esquecidos.

Eu, que danço os sons da alma de Mozart,Que anoiteço com Chopin ao pianoE louvo Bach em uma missa imperecível.

Eu, justo eu, nascido e sofridoPara amar a quem ninguém ama,Eu, justo a Deus, não amo.

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Adão em Agonia

Mulher, mulher, terrível fragilidade!Meu ódio por ti não foi conquistadoPelo fato de teres vindo a minha vidaE me feito descobrir o que eu já tinha visto,Tocado, mas nunca, nunca contemplado.

Não. Meu ódio não nasceu da tua belezaFalsa, é verdade, mas enquanto luziaBanhava-me nos raios da certezaDe que a minha alma nunca morreriaPorque na tua a minha alma se espelhava.

Nem pelos gêmeos que embalamosE fizemos planos, e nos comovemosPara vermos um depois ser assassino.Eles foram nós dois e o mundo inteiro:A esperança em olhos de meninos.

Não, não. Não te odeio porqueFizeste-me mudar o nome dos bichosSó porque os que eu havia batizadoNão eram mais do teu agrado.Cedia feliz aos teus volúveis caprichos.

Nem por teres ficado antiga e desleixada,Por teres jogado fora os teus encantos,Aflita, absorta em ninharias diáriasOu pelas vezes que me deixaste esperandoUm carinho, um alívio, um afago.

O que me sobe às faces e me enlouquece,Depois arrefece, represa e me esgota,Pune-me porque carrego pedras caiadasQuando queria dar-te rosas e esmeraldasÉ tudo que a tua bela intuição já sabe.

Mulher, mulher, meu maior castigo!Desculpe-me os modos, mas mereces o infernoOu melhor, não: te encontrarias comigo.Não te quero rondando o meu deserto,Meu peito por ti construído, ruído.

Creio que entendes o que te explico,A razão desse meu ódio incontido,Das lágrimas secas que me corroem.

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Mulher, ah, mulher, ser maldito!Por tua culpa perdi o Paraíso.

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Aos pés do Santíssimo

Estou aqui.Sem nenhuma reverênciaSem nenhum arrependimentoSalvo essa dorQue atropela o peito.

Enfim aqui.Talvez estivesse láEntre o fogo inimigoCom certo gostoDe ter sido atingido.

Mas aqui.Sem qualquer vontadeOlhos fundos de maldade.Por que não lá,O que queres de mim?

Ou ainda queres,O que é pior!Se fosse a primeira vez,Mas lá se vão oito anosPara muitos nada,Para mim criança feita.

Aliás,Única vida,Tantas vezes cuspida,Tantas vezes escarrada.O que de mim queres,O que tanto queres ainda?

PenaDo meu estado decrépitoDo meu rosto lamentávelDos meus lábios baixosDo remorso irrevogável?

PenaDa lágrima que o orgulhoSeqüestrou sufocouAmolou a sua facaE por fim a matou?

Ainda aqui.

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Pensado compor palavrasMas que não passam de palavrasNem ao menos blasfemashipócritas palavras algemadas.

Ainda aqui.Morto à língua presaLouco por alguma coisaSalvo essa tristezaMinha glória e coroa.

Ainda aqui.Não busco curaNão quero milagre.Quero ser outro,Morrer de outra morte.

Daqui não saio.Nem para um copo d´água,Nem para lavar a lágrimaSuja única sujaQue insiste em cair

E não lavará os teus pésNem irá perfumar os teus cabelosChoro convulso contidoTalvez mais um desesperoTalvez arrependido.

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Solidão

Falei comigo e ninguém respondeu.Cantei as mesmas velhas cantigasDo tempo do “o que é meu também é teu”,Mas a voz não era a que eu conhecia.

Nem o corpo, que eu pensava ser meu,Nem ele quis minha companhia.Somente a voz viva que morreuLonge soprou o que me acordaria:

“Quem morava aqui não te esqueceue te quer com a dor da mãe aflitaao pé do filho insano que se perdeue a trata como uma desconhecida.”

Quero ouvir outra vez a voz de Deus.

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Doctos varões darão razões subidas,Mas são experiências mais provadas,

E por isso é melhor ter muito visto.

Cousas há i que passam sem ser cridasE cousas cridas sem ser passadas,

Mas o melhor de tudo é crer em Cristo.

Camões, Soneto 166

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Recapitulação

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Vida Nova

Hoje é dia de lágrimas.Hoje, o homem que não fuiLevanta-se, me encara E não me condena.

Olha.Em seus olhos, certa pena.ReparaE cheio de dorEstende a ponta do seu dedoÀ ponta do meu queixo.

Resisto.As oportunidades perdidas,a vida que poderia ter sidoalegre vôo da Andorinhaé cantiga triste,cantiga de pecado.

Estou velho.Os cabelos brancosNão são sabedoria,Mas contrasteEntre a mocidade perdida- da alma-e a velhice adquirida- do espírito.

O homem jovemQue poderia ter havidoQuer-me com a loucuraDe CristoA caminho da sepultura.

O seu olhar me comove.A bondade que não tive,A maldade que me fez outroDissolve-se nesse olhar amoroso

Que me diz:Hoje, agoraÉ sempre uma outra história.Hoje renasce a real aurora.

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Aqui começa Vida Nova. Uma gota de sangue

Mas de lá de dentro do fundo da treva do chão da covaEu ouvia a vozinha da Virgem Maria

Dizer que fazia sol lá foraDizer i n s i s t e n t e m e n t e

Que fazia sol lá fora.

Manuel BandeiraI

A chuva não deu trégua o dia inteiro.Ouvi as gotas falindo na gramaAtravés das horas e horas monótonas.

Disseram (ouvi sons como um índiocom o ouvido sobre a terra)Que dezembro é mesmo tempo de águas.

Desde que me perdi sou impermeávelE penso muito porque me ajuda a passar o tempo,Mas nem eu mais agüento a minha voz.

A estátua, o ídolo que fiz de mim desabou-me.Meu nome o sol se esqueceu de dourá-lo.Escuro, escuro, trevas. E lá fora chove.

Para o fundo do poço só mais um passoPorque o buraco, bem sabes, é sempre mais embaixo.(traiu-me uma rima: queria o descompasso).

A humildade chama-me para o nível da terra,Mas eu ainda me encarcero aqui no profundo.Gritam: “Pra fora”, e eu “Não, estou cansado.”

II

Voltando ao clima, as chuvas até que foram ligeiras.Intensas alagaram as ruas cheias de sombrasOu gente, ou pessoas, chame como queiras.

(Eu não consigo me livrar das rimas.Talvez sirvam para que quando eu saia da covaLembre-me de tudo que pensei de memória.)

Talvez suponha alguém eu estar morto.Esse, coitado, não sabe que o orgulho

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Perece cerca de uma hora após o corpo.

Orgulho de quê, dirias: “Se Dante eu fosse...”Eis o fato. O orgulho é malandro,Cuidado! E ele te vende o corcovado

E o pior é que ainda ficarás pensandoQue não foste trouxa, apenas enganado,Tu, homem de boa-fé, homem honrado!

III

Ai, ai, como me dói a cabeça!Lázaro virá talvez com algum comprimido,Um anestésico para que eu de mim me esqueça?

(Assumo: eu amo as rimas como a mim próprio.Sim, sim, amadas minhas rimasRicas meninas do meu falso opróbrio.)

Como eu gostaria de ser um pouco humildeE aceitar que não sou nada heróico,Que forcei a rima, que não ando na Verdade.

Custará talvez uma hora de choro,Os meus sentidos, uma gota de sangue.Custará: aceito e pago o preço amargo.

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Miudinho

Também não sei dançar.Nunca vi as terças-feiras mais gordas

Não perdi pai, mãe, irmã.Mas a dor da partidaÉ a cantiga do meu peito!

Manuel, tomemos alegria!

No meu quarto escondem-seOs ritmos que danço estático

BrasileirinhoApanhei-te cavaquinhoOdeon!

E, gran finale,Fantasia Triunfal sobre o Hino Nacional Brasileirocomposta por um estrangeiro.

Tarrrrrã tarrrrrã tarrrrrã tã

De fato estas notas sonoras misturadas é o Brasil.

Nosso café não é mais o mesmo?O algodão perdeu o seu peso?

Nazareth, o choro, o cavaquinhoO Hino Nacional.

Manuel, Bandeira brasileiraVamos tomar um trago:

A dose de alegria Deixa que hoje eu pago!

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Legado

As lições de trevas são rarasaos pobres mortais, Tolentino.Cabe, poeta, talvez ao gênioescorregar, não do destino,mas de Deus (sabes mais que eu)e mergulhar no precipício.

Voltar, eterno Prometeuou filho mais velho de Sísifo,triturado, a salvo com Deusnão como parte de um castigo,mas remir os pecados – seuse do mundo, cúmplice amigo.

O que é issosenão a bordadeira,antiga Penélopeansiando o regressodo seu Ulisses,Ou, como dizes, o Cristo?

Isso é teuE a tua freira.E nós com isso?Pergunto e respondo:Viveste a fogueiraem busca do Paraíso

e, In Passim, lição de trevas,espessas e tão dolorosasque esse metro perto da falanão pode almejar abarcá-la:Observa-a cerimoniosasofrendo tentando imitá-la.

E do profundodo fundo da treva do chão da cova, (Manuel, minha cantiga é mais triste...)as horas da KatharinaNão são minutos, mas séculos.São a nossa história.

Mozart compôs um Réquiem

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Para um tempo esnobe e orgulhoso- era da idéia, acho que dirias-,tu, que tens a maestria do verso,orquestraste o nosso Réquiem, As Horas de Katharina.

Funeral feito,obra cumprida,poesia vivida.Restava o novo séculoe outra luta severapara ser vencida.

Mundo pós-moderno, que seja,porém, nada novo o controleda arte e vida pelo sistema.Novo mundo, teorias velhas:a saga do homem perdidonesse oco mundo como idéia.

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Poema de Natal

A Benjamin Rothering

Há barulho demais nas ruas e aqui dentro.Comecei seguindo a estrela ascendenteMas a imaginação logo fez dela cometa,Meteoro, chuva de raios ultra-violetaE nem sei mais se estou contente.

Onde é a “Casa do Pão”,Belém em língua aramaica?No meio da minha confusãoNem sei onde é a minha casa...

Haverá neste Natal à minha roda um meninopulando, brincando convidando-me a um sorriso?Talvez meu sobrinho, em seus olhos puros...Talvez ao me agachar para beijar-lhe o rostoencontre a estrela do meu repouso.

Talvez naquelas pupilas encendidasEsteja o berço para o meu corpo.Talvez o Natal esteja naquele menino E no seu olhar eu possa viver de novo.

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Canção de amor

Quem me vê cantando e diz:“Quisera ser este homem,livre de dores, feliz”,não sabe o que o peito esconde.

O canto é a vida por um triz,um quase morrer de fome,sempre sede pois se quissempre correr rumo à fonte.

Se não cobro pra sorriré que a alegria tem nome.E quem quiser descobrirestá escrito em minha fronte,

sob a estranha cicatriz,maior dom dos meus amores.Não sabes o que aqui se diz?Tu é que estás livre de dores.

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A origem do homem

Para Chimena M.S. de Barros

No princípio era só.Contemplava a criação,louvava as maravilhas moventes sobre a terra,amava as plantas, gostava de ver correr os riose vislumbrar nas águas a imagem divina esculpida em meu rosto,alegrar-me de ser o ápice da criação, dono do que me foi herdado.

No princípio era eu só.Trabalhando intensamente pois jamais me cansava,lavrava a terra, construía as vias que dariam passagem a mim mesmo,aos bichos selvagens domesticados sob os meus olhos atentose a nada destruía, apenas remodelava a terra ao que mais me agradava.

Mas era só.À noite, sempre a noite, desde o princípio a noite,a noite eu esquadrinhava a casa de Deuse perguntava: “Será sempre assim, Senhor?nada reprovo, tudo me alegra, eu devia estar feliz,mas, mas... acontece que não estou...”

Então Deus todo poderoso deu-me os caminhospor mim desvendados, abriu-me os olhospara depois cerrá-los antes que eu desesperasse por encontrar o inimaginável.Lançou-me em sono, delirava no primeiro presságio da morte,saltava- sempre de olhos fechados -, tremia, suava sangue e me angustiava,era sonho.

Recobrado os sentidos,lá ela estava,Ainda ao longe vagava passos decididos rumo ao meu encontro.Olhou o meu rosto, perguntou o meu nome,encantou-a o trabalho dos meus braçose pela primeira vez na minha vidacontei a alguém os meus planos, o que havia sonhado para essa terra,como Deus me queria, o quanto eu o louvava.

Eu disse a ela que jamais me deixasse,ela me disse que jamais me deixaria,eu e ela seríamos o mesmo sangue, a mesma carneimoladas a Deus, protótipo da eucaristia,e permaneceríamos, os dois um, para sempre, nesse vale

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sem saber da morte, sem outra preocupação que a de amar-nos; Amar-se, eu e ela, dois um, nós, eus,Contemplando o Senhor face a face.

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Soneto a Carlos Drummond

Escrevias com pedra em um chão ásperoE as fagulhas queimavam os teus olhos.No início, bem sabias, mundo vasto,Mais que uma rima, largo passo em falso.

Era a pedra, a pedra no caminho,Não era um mero obstáculo, mas vida,O teu pão, o teu verso ressentido,Pasto mineiro da tua poesia.

Diga-me Carlos, não era essa pedra,Em que tropeçaste, em que te apartaste,A pedra angular que rejeitavas?

Certo, nós todos somos filhos do orgulho.Mas Carlos, leio e cai-me uma lágrima,Ai, Carlos, era a Máquina do Mundo!

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Gênese

Todo poema nasce do silêncioApaixonado do artista.Adules o verso,Transborda-o de carícias,É o teu filho predileto.

Envolve-o de amores,Pede-lhe um beijo,Dá-te em casamento.À poesia todas as dores:É a tua fiel esposa.

Mulher, mulher amada!Conhece a sua família,Pergunta-lhe a genealogia.Por que a pele clara,Onde os cabelos negros,Como esses olhos verdes?

InsisteÉ mulher encabulada.

InsisteEla te dirá segredos,Revelará o passado.

Quando tiveres de corA história da sua vida,Ela te dará a alma.

Ela, mãe, esposa, filha,Tua eterna namorada.

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Presságio

Ao depor a última flor sobre o túmulo, composta da lágrima que restara virei as costas sem qualquer murmúrio: aquela vida era morta e encerrada.

Mas todo o meu semblante estava espúrioou talvez buscasse deitar-se em calma; desfazer da língua o sabor agrúrio,buscar dentro de mim uma outra alma.

Quando a sós rodava em um quarto escuro, ouvi ao longe a tua voz, lenta e fraca, propagando-se entre paredes, pátinas, anunciando a tua vinda no futuro.

Espero, tremo, deserto, peço água; suplico-te: não saias do outro mundo! Deixa-me com a dor e os meus soluços:eu não creio em fantasmas.

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Afago

Mudar-se implica sempre certa dor.Os gostos, os caprichos, as manias,são fantasmas, são diabos, são delíriose assombrá-los requer grande ousadia.

A recompensa agora certo alívio,aos poucos, leve, a paz, à frente a vidacada dia mais pura e luminosa,assim o criador sabe a sua cria.

A renúncia ao sabor sempre é custosa.O palato ama suas iguarias,Mesmo bolor, esterco, sofre a língua.

Mas esqueças o preço. Toma, prova,Saboreia o que à alma é delícia,Sustenta o corpo, não o destrói. Carícia...

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Cântico

Eu era o que trazia tristes canções no peito,levantava cidades destruídasao ouvir os primeiros acordes de lágrimas.

Eu era o insaciável, o impossível, o inviávele dormia assim que o sol me sorria irônicodo pânico que me dava ser o indomável.

Eu era triste, essa é a verdade, titirava,dormia idolatrando oceanose acordava vendo barcos naufragados.

O dia era um cansaço, a noite uma ânsia,a tarde nada, nada, mormaço de sentimento,mas eu mesmo não sabia ser criança.

Não sabia chorar os meus tombose aflito esperar um abraço,uma voz doce de alívio e socorro.

Não sabia correr pela grama,brincar seriamente de ser gigante,Fazendo coisas sem importância.

Não sabia que só o que valho não está nos meus torpes talentos,mas no olhar benevolente de quem me ama.

Não sabia ver no tempo um amigoe o desprezava por ser tão altivomas na verdade, eu me enganava.

Hoje acordo e corro pra rua,saúdo simpáticas velhinhas desdentadas,elogio Deus por mais um dia lindo.

Olho para o céu, abro um sorrisoe volto ao trabalho com a chamade quem sabe e aceita o seu destino.

Crê: a cada jornada o seu cuidado.Vê o passado com certo alívio e o futuro como menino levado.

Mas venha o que venha e virá:Pode vir, vem, estou preparadoNada, nada nesse mundo irá me separar

Do grande amor hoje aqui celebrado.

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Cantata I e II

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I. Noite Eterna

O chamado

A cidade precisa de silêncio,Preciso do silêncio da cidade.Não caia, noite, vem para o meu leito.Quero a tua paz repleta de bondade.

Esconde o raio de sol derradeiro,Anuncia o fim da festa da tarde.Noite, levita com teus passos lentos.Vem, doce filha da serenidade!

Meus dias sempre foram passageirosSem um porto seguro ao desembarque.Quantos dias tão fúteis e ligeiros!

Vem, noite, sopra o som da eternidade.Nascemos juntos, só a ti conheçoE só confio em ti, mãe da verdade.

Reparação

Noite, a última vez que nos vimos,Estava despreparado,Estava intenso de mim:Raios de sol haviam me cegado.

Queria ouvir o dia,Sua música dourada de êxtase.Mas já ao meio-diaEstava desapontadoComo tantas outras vezes.

Noite, não me despreze.Suei venenos friosSó para receber-te.

Quando o sol surgiu selvagemNão olhei.Quando o sol brilhou vontadesDesviei.Quando queimou minha falsa imagemNão chorei.

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Noite,Estou esgotado de mim.

Valor

Para receber-tePreparei os melhores vinhos,Meu sangue derramado nos revezes;

Escolhi os melhores saboresDepois de ter provadoOs meus erros e os meus horrores.

Promessa

Só aos amados é dadoConhecer os segredos de quem os ama.No silêncio negro é revelado à chama Qual calor lhe inflama.

Noite, vem linda, branca noiva encantadaQue está livre do medoDe um dia se ver só e rejeitadaPor quem lhe prometeuApenas a alegria de ser amada.

Morada

A casa está vazia,A porta está aberta,A cidade é tranqüila.

Nada mais me interessa,Nada mais me enfeitiça,Ninguém mais me espera.

Despedi falsas mulheres,Lancei fora maus hábitosFaz de mim o que quiseres.

Decorei o teu rostoPara cantá-lo assim que vieres.Desenhei no ar o teu corpo:Venha assim que quiseres.

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O Canto

Esse é o único suspiroQue teço à primeira estrelaDourada dos teus cabelosMeigo detalhe da tua pureza.

E o meu canto para acordar-te, noite,O meu canto que anseia vidaAntes que a morteSele o fim da poesia.

Encontro

A tarde desmaia de cansaço.O céu está coloridoE o vento desfaz os mormaços.

Choveu.O perfume que a terra exalaÉ o sinal sensível da tua vinda.

Enfim te vejo.Como estás linda!Como doeu estarmos separados!

Sinais

Ninguém nunca saberáDos nossos afetos,Do carinho, do contatoDa pele em busca da alma.

Ninguém nunca saberáDos beijos de lua cheia,versos afagos de prata,Da nossa perfeita Lírica ao longo da madrugada.

Saberá, talvez, Quem repareEm um rostoRepleto de felicidade.

Ah, noite,Mesmo que ninguém jamais soubesse,

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Mesmo que ninguém nunca adivinhasseQue me fiz alegre, muito todo alegre,

Ainda assim, mesmo assimFaria tudo para que viesses,Faria tudo para ter-te,Outra vez em mim.

Partida

Vai, não temas abandonar-me.Vai, pois vivo,E da próxima vez que voltares

Irás encontrar-meNo lugar exatoEm que tiveste que me deixar.

Pedes um laço incorruptível,Um prova indelévelQue esse amor é invencível.

Realizo o teu desejo,Minha amada.Repara:Está escrito o teu nomePor toda a minha alma.

Agora parte,É longo o caminho.Chegará, chegará, é certoA hora de andarmos de mãos dadasSerá tua a minhaa minha será a tua casa.

Por ora, vai.

Alimenta um carinho intensoPor esse momento que passamos juntos.Protege a tua beleza,Não descuide da tua aparência,Para que outra vez te reconheça,Para que eu nunca mais te esqueça.

Eu partirei rumo ao perigo.Não fiques aflita.Fui muitas vezes vencido:

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A experiência é minha amiga.Conheço o que me espera,Sei como não ser atingido.

Mesmo assim, Intercede por esse que se lançaàs águas profundas de si mesmo.Não tenho medo, amada,Mas temo:Desconfio que levo um inimigoNo lado direito do peito.- é teu o esquerdo.

PartireiEm busca das riquezasQue nada valem ao mundoPois só servemPara coroar a tua beleza.

Enquanto navego, vela.Assim, juntos

Partiremos.

Despedida

O sol sobe invejoso atrás das montanhas.Cada vez o azul torna-se mais claro...O dia lentamente vai-se acordando:Temo que um raio feroz fira a tua face.

Vai,Leva um último olhar apaixonado.

Pensas que foram as últimas,Mas foram essas as primeiras palavras.

Vai,

Aqui termina a madrugada

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II. A Longa Noite da Alma

Era Noite...

Outra vez surge o sol inevitável.Resseca, disseca a pele,Provoca queimaduras,Desfaz quem eu era.

Eu era eterno no colo da Noite!Via as horas alucinadasCorrerem transporem os limites do tempo,Percorrerem anosSem esvaziar o meu rosto.

Mas é dia.Um dia trotando segundos,Outro dia escorrendoLíquido amargoCaindo do canto da boca.

Quero outra vez a Noite!Quero ser eternoComo o eco dos séculosSendo agora poesia.

Quero ser eterno.Não suporto o odorCadavérico do tempo,O túmulo das horas,Os ossos do momentoQue se esvai.

Quero o sentido da Noite Cega,Invisíveis aos olhos supérfluosDe quem aguarda outro diaPara viver outro diaComo outro dia, outro diaQualquer.

Vem outra vez logo, Noite!

Seduziste-me, é certo.Fiz promessas, Parti todas ao meio.

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Devolvo uma concha vazia,O búzio quebrado do tempo.

Tenho nas mãos um surdo lamento,Nos olhos a melancoliaDe quem cavalga falsas alegriasE não cai do cavalo,Apenas uma hora a corrida termina...

Mas Noite, Que dizer-te da minha alma,Condensada de vapores poluídos,Que dizer da minha alma?

Tu, que a mimavas,Tens de vê-laAgora desolada.

- Voz da Noite

Se queres me ter de volta,Silencia os sentidos,Dormita os sentimentos.

Aceita estar cego,Deseja ser mudo,Rejeito o tato,Afasta-te dos perfumes.

Estás pleno de ti,Estás repleto de vento que passa.

O sol só derreteCorpos de cera negra.

Não tenhas medo,Mas confiança.

Virá o dia em que o SolSerá a chamaDeste teu agora corpo mortoQue precisa ser cera brancaPara iluminar de novo.

Não digas,

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Não penses mais nada.

Entra outra vezNo túnel escuro A caminho da madrugada.

Sequer uma palavra!

Mas toma,Leva essa lágrima douradaQue me fizeste derramarEm uma louca paixão desenfreada.

Toma.Será a tua guiaNessa longa noite da alma.

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