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TEXTO BARROSO

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Luís Roberto BarrosoProfessor Titular da Direito Constuucional da Universidade

do Estado do Rio de laneiro, Mestre elll Direito pela Ya!e Lato School.Procurador do Estado e Advogado /IO Rio de laneiro

TEMAS DE DIREITOCONSTITUCIONAL

Tomo Il

RENOVARRio de Janeiro. São Paulo

2003

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nêuticos e nu sisternatízação de princípios específicos de interpreta-ção constitucional. A ascensão política e científica do direito consti-tucional brasileiro conduzirarn-no ao centro do sistema jurídico, ondedesempenha uma Função de [iitrageni constitucionol àe todo o direitoinfraconstitucional, significando a interpretação e leitura de seus ins-titutos fi luz da Constituição.

5. O direito constitucional, como o direito em geral, tem possi-bilidades e limites. A correção de vicissitudes crônicas da vida nacio-nal, como a ideologia da desigualdade e a corrupção institucional,depende antes da superação histórica e política dos ciclos do atraso,do que de normas jurídicas. O aprofundarnento democrático no Brasilestá subordinado ao resgate de valores éticos, ao exercício da cídada-nia e a um projeto generoso e inclusivo de país.

A Ordem Econômica Constitucional eos Limites à Atuação Estatal no

Controle de Preços

i!

.'

SUMARIO: r. Nota prévia. Parte r. COl1Stiwição, ordem eco-nômica e intervenção estatal. li. Fundamentos da ordem eco-nômica: livre iniciafiva (! valorização do trabalho humano.[U. Princípios da ordem econômica. [[[.1. Princípios de [un-cionllmento; fIl.2. Principíos-jins. IV Agentes da ordem eco-nÔl/1ica. IVI. Papel do Estado /Ia ordem econômica; [V.2_Papel da iniciativa privada /1aordem econômica. V lnteruen-ção estatal na ordem econômica: disciplina. VI. Modalidadesde intervenção estatal /1a ordem econômica; V2. Limites efundamentos legítimos da inrervençclo discipliiuulora; a) Li-mites da disciplina; b) Fuudametuos' da disciplina. Parte Il.Limites constitucionais à disciplina de preços por parte doEstado. VI. Competência esiatol elll /llatéria de preços priva-dos. V7.I. A livre fixação de preços é elemento [undamentalda livre il1iciativa. O controle prévio de preços COIIIOpolíticapública regular viola principio constitucioual; VII Somenteem siruação de anormalidtide do /ll erca do, amentes as condi-ções regulares de livre cOltcorrêllcia, o princípio da livre ini-ciativa poderá sofrer ponderação para admitir o controle pré-vio de preços; V7.3. Pressupostos CO/1.Stitucionaispara o COIl-irole prévio de preços. VrI. Conclusão.

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.,

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I. Nota prévia De fato, não tendo o princípio caráter absoluto, pode haversituações excepcionais de intervenção estatal legítima em matéria depreços. ES!<l possibilidade, eventual e drástica, não se confunde coma idéia que rem ganho curso em certos segmentos governamentais: ade que a livre iniciativa, decisão política fundamental do constituintede 1988, deva ceder passo diante de todos os demais bens em algumamedida valorados pela Constituição. Ou pior: deva submeter-se àsdecisões circunstanciais da conveniência política.

A questão é complexa e será objeto de apreciação analítica, emum esforço para delimitar o espaço próprio de irradiação de cada umdos princípios relevantes, bem como dos parãmetros dentro dos quaisos juízos de ponderação deverão operar. A trajetória delineado incluia análise de aspectos jurídico-constitucionais da ordem econômica edo papel reservado à iniciativa privada e ao Estado, com ênfase nosfundamentos e limites da intervenção disciplinadora do Poder Públi-co sobre a atuação privada.

o estudo que se segue encontra-se dividido em duas partes. Naparte l, procura-se delinear doutrinariamente o papel econômico doEstado e seus limites legítimos. Na parte 11, desenvolve-se o estudodas possibilidades e limites da ação estatal no que diz respeito apreços privados em geral. Doze anos após a reconstitucionalização,estes temas ainda suscitam perplexidades diversas e não forampacificados na doutrina, na jurisprudência e na prática dos Poderespúblicos.

Doutrinadores eminentes sustentam o ponto de vista de que, noBrasil, após a Constituição de 1988, não mais seria legítimo qualquertipo de atuação estatal no controle de preços, à vista do princípio dalivre concorrência I. Há um conjunto bem articulado de argumentosem favor dessa tese, sem embargo de existir pronunciamento juris-prudencial relevante em sentido diverso/. Cabe-me declinar, por de-ver de honestidade científica, que não é esta a minha convicção,consoante externei em artigo doutrinário escrito ainda em 19933. Parte I

CONSTITUIÇÃO, ORDEM ECONÔMICA EINTERVENÇÃO ESTATAL

I. Essa é a posição, dentre outros autores, de Diogo de Figueircdo MoreiraNeto, Ordem econômica e dcsenualuinieruo IILl COILSciwição de 1988, 1989, p.69/70; Celso Ribeiro Bastos, Comentários li Constituição do Brasil, "1990, p.16/17; Miguel Reule Júnior, Casos de direito constitucional, 1992, p. 18/19;Marcos Juruena Villelu Somo, COllstituição ecol1ômica, Cadernos de direitotributário 4, 1993, p. 250 e Dinorâ Adelaide lvIuselli Grotti, hueruenção doestado na economia, Revista dos Tribunais - Cadernos de Direito Constitucio-nal e Ciência Política nO 15, 1996, p. 74.2. Trata-se da decisão do Supremo Tribunal Federal na ADIN na 319-DF que,por maioria, considerou constitucional a Lei n" 8.039/90, que dispunha sobrecritérios de reajustes das mensalidades escolares. Vale registrar que não se estáintegralmente de acordo com as premissas e conclusões da referida decisão, que,excessivamente marcado pelas circunstâncias do caso concreto, não produziufundamentos de validade geral.3. Luis Roberro Barroso, 11 crise econômica e o direito calLScicucianal, ill RevistaForense n" 323/83, p. 92: "A despeito do reconhecimento que merecem osautores citados - ambos da maior suposição - parece-me radical o ponto devista de que o princípio da livre concorrência veda, 10111 court, a possibilidade deo Governo controlar preços, inclusive por tabelamento ou congelamento. Épreciso ter em conta outros valores da ordem constitucional que atenuam arigidez de tal colocação, como, v.g., a defesa do consumidor (art. 170, VJ e a

Il. Fundamentos da ordem econômica: livre iniciativa evalorização do trabalho humano

A livre iniciativa e o valor do trabalho humano são dois dosprincípios fundamentais do Estado brasileiro e os fundamentos daordem econômica. Essa é a dicção expressa dos arts. 1°, rv, e l70,caput, da Carta, in uerbis:

"Art. 1°. A República Federativa do Brasil (. ..) tem como[undame ritos:

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciaiiva"

repressão do abuso do poder econõmico que vise à dominação dos mercados, àeliminação da concorrência e o aumento arbitrãrio de lucros [art. 173, § 4°)".

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"Arc. J 70. A ordem eco/1ômica, fundada na valorização dotrabalho humano e !ta livre ílliciatiua (... )".

econômica, independentemente de autorização, salvo nos casos pre-vistos em lei. Em terceiro lugar situa-se a iivre CO/lcorrêltcia, lastropara a faculdade de o empreendedor estabelecer os seus preços, quehão de ser determinados pelo mercado, em ambiente competitivo(Cr, art. 170, [V). Por fim, é da essência do regime de livre iniciativaa liberdade de contratar, decorrência lógica do princípio da legalida-de, Fundamento das demais liberdades, pelo qual ninguém será obri-gado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei(CF, art. 5°, !1).

É bem de ver que, embora a referência à livre iniciativa sejatradicional nos textos constitucionais brasileiros, a Carta de 1988 trazuma visão bem diversa da ordem econômica e do papel do Estado, emcontraste com os modelos anteriores. Já não se concede mais, comofazia a Carta de 1967/69, ampla competência na matéria ao legisladorordinário, ao qual era reconhecida até mesmo a possibilidade de insti-tuir monopólios estatais". As exceções ao princípio da livre iniciativa,portanto, haverão de estar autorizadas pelo próprio texto da Consti-tuição de 1988 que o consagra. Não se admite que o legislador ordi-nário possa livremente excluí-Ia, salvo se agir fundamentado em outranorma constitucional especffica.f

. Note-se desde logo que não há norma constitucional que autori-ze o estabelecimento de controle prévio de preços no âmbito domercado. Apenas a atuação repressiva do Poder Público está constitu-cionalmente prevista, nos termos do urt. 173, § 4° da Carta", a ser

Tais princípios correspondem a decisões políticas fundamentaisdo constituinte originário" e, por essa razão, subordinam toda a açãono âmbito do Estado, bem como a interpretação das normas constitu-cionais e infraconstitucionais. A ordem econômica, em particular, ccada um de seus agentes - 05 da iniciativa privada e o próprio Estado- estão vinculados a esses dois bens: a valorização do trabalho [e, a[ortiori, de quem trabalha.j e a livre iniciativa de todos - que, afinal,também abriga :J idéia de trabalho -, espécie do gênero liberdadehumana.

A Constituição de 1988 cuidou de concretizar o princípio davalorização do trabalho em regras concentradas em seu art. 7°, ondese pode encontrar um rol de direitos assegurados aos trabalhadoresê.O elenco que ali figura não exclui outros direitos que visem à me lho-ria de sua condição social, nos termos expressos do capta do mesmoartigo". O constituinte prestigiou, nessa mesma linha, o trabalho dosautores e inventores, através das garantias do direito autoral (art. 5°,XXVII) e da proteção patentária (art. 5°, XXIX), e daqueles profis-sionais que participam de espetáculos públicos ou de obras coletivas(art. 5°, XXVI![). O fundamento da proteção ao trabalhador e davalorização do trabalho encontra-se na própria dignidade da pessoahumana (art. 1°, 1II).

O princípio da livre iniciativa, por sua vez, pode ser decompos-to em alguns elementos que lhe dão conteúdo, todos eles desdobra-dos no texto constitucional. Pressupõe ele, em primeiro lugar, a exis-tência de propriedade privada, isto é, de apropriação particular dosbens e dos meios de produção (CF, arts. 5°, XXII e 170, IJ). De parteisto, integra, igualmente, o núcleo da idéia de livre iniciativa a liber-dade de empresa, conceito materializado no parágrafo único do art.170, que assegura a todos o livre exercício de qualquer atividade

7. Esse era o teor do art, 163 da Constituição de 1967/69: "São facultados aintervenção no domínio econômico e o monopólio de determinada indústria ouatividade. mediante lei federal, quando indispensável por motivo de segurançanacional ou para organizar setor que não possa ser desenvolvido com eficácia noregime de competição e de liberdade de iniciativa, assegurados os direitos egarantias individuais.".8. Nesse sentido, v. Diogo de Figueiredo Morcira Neto, Orde//! econõlI1ica edesenvolvimento lia COl1Slicuição de 1988, 1989, p. 69170: "Este rol constitucio-nal de instrumentos de intervenção regulatória é exaustivo: não admite amplia-ção por via interpretativa, uma vez que representam, cada um deles, uma exce-ção ao princípio da livre iniciativa (art. I '', IV, e art. 170, caput] e, mais precisa-mente, ao princípio da livre concorrência (art. 170, IV]. Qualquer outra moda-lidade ínterventíva, admissivel genericamente no art. 163 da antiga Carta ( ... )perde, na vigente, seu suporte constitucional."9. Cf , art , 173, § 4°: "A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à

4. Sobre o conceito de decisões políticas fundamentais, v. Carl Schmitt, Teoriade la C07wiwción, 1970.5. Ainda que alguns permaneçam paralisados pela inércia do legislador.6. Cf', art. 7°, cuput: "São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além deoutros que visem à melhoria de SIl,I condição social:".

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desencadeada a partir da apuração da prática de ilícitos em decorrên-cia do abuso de poder econôrníco. É por essa razão que boa parte dadoutri na rejeita qualquer forma de controle prévio de preços, como éo caso de Diogo de Figueiredo Ivloreira Neto, que registrou expressa-mente:

"É o caso para tocarmos Ilum exemplo de grande importân-cia, do controle estatal de preços. Essa prática, largamenieutilizada 110 autoritarismo econômico, durante várias dé-cadas neste País, lI1as tão prejudicial à competição, tãoincompatível com uma política de desenvolvimento (hoje,principio constitucional - art. 30, Il), tão perigosa pelasdistorções que gera (como nos casos dos planos 'Cruzado'e 'Verão'), teve seu fim, com muito atraso, na Const uuiçãode 1988. Não será lllais possível à burocracia incompetentefazer demagogia com preços.A interuenção regulatória 110S preços não exclui, todavia, amodalidade sancionatória, sempre que se caracterizarem astransgressões previstas no art, 173, § 40

, CCL'iOS em que oEstado estará autorizado a intervir vinculada e motivada:mente." 10

ganizar um mercado deteriorado, no qual esses dois principies te-nham entrado em colapso e não mais operem regularmente. De qual-quer sorte, ainda nessa hipótese, o controle de preços somente seráconsiderado legítimo se obedecer a um conjunto de pressupostos, queserão examinados adiante.

Cabe, nesse passo, uma breve anotação sobre ;J teoria dos princí-pios e como eles se inserem na ordem jurídica como um todo. Como jáassinalado, nenhum princípio é absoluto. O princípio da livre iniciativa,portanto, assim como os demais, deve ser ponderado com outros valo-res e fins públicos previstos no próprio texto da Constituição. Sujeita-se, assim, à atividade reguladora e fiscalizadora do Estado, cujo funda-mento é a efetivação das normas constitucionais destinadas a neutrali-zar ou reduzir as distorções que possam advir do abuso da liberdade deiniciativa e aprimorar-lhe as condições de funcionamento.

A ponderação é a técnica utilizada para a neutralização ou ate-nuação da colisão de normas constitucionais. Destina-se a assegurar aconvivência de princípios que, GlSO levados às últimas conseqüências,acabariam por se checar!'. É o que acontece, e.g., com a liberdade de

11. Luís Roberto Barroso, Temas de direito constitucional, p. 65-8: "O direito,como se sabe, é um sistema de normas harrnonicamente articuladas. Uma situa-ção não pode ser rcgida simultaneamente por duas disposições legais que secontraponham. Para solucionar essas hipóteses de conflito de leis, o ordenarnen-to jurídico se serve de três critérios tradicionais: o da hierarquia ( ... ), o temporal(... ) e o da especialização (... ). Esses critérios, todavia, n50 são sntisfatóriosquando o conflito se dá entre normas constitucionais. ( ... ) A ponderação devalores é a técnica pela qual o intérprete procura lidar com valores constitucio-nuis que se encontrem em linha de colisão. Como não existe um critério abstratoque imponha a supremacia de um sobre o outro, deve-se, à vista do caso concre-to, fazer concessões recíprocas, de modo a produzir-se um resultado socialmen-te desejável, sacrificando o mínimo de cada um dos princípios ou direitos funda-mentais em oposição. O legislador não pode, arbitrariamente, escolher um dosinteresses em jogo e anular o outro, sob pena de violar o texto constitucional.Relernbre-se: as regras incidem sob a forma de 'tudo ou nada' (Dworkin), aopasso que os princípios precisam ser sopesados". Sobre a teoria dos princípios ea ponderação de valores, veja-se Ronald Dworkin, Takinl: rigjus seriausiy, 1977;Robert Alexy, Teoria de Ias derechos [uiulaineruales, 1997, p. 83; Daniel Sar-mento, A ponderação de interesses na ConstiCl/ição Federal, 2000; e HeinrichSchollcr, O princípio da proporcionalidade 110 direito constitucional e admiuis-tratiuo da Alemanha, Trad, Ingo Wolfgang Sarlet, 1999, Revista Interesse Públi-co n'' 2, p. 93 e S5.

Tal ponto de vista, embora bem fundado e trazendo a autoridadede seu autor, não corresponde à minha convicção doutrinária, como jáassinalado. Penso ser preciso conceder que, em situações excepcio-nais, o controle prévio de preços poderá justi Ficar-se, com fundamen-to nos próprios princípios da livre iniciativa e da livre concorrência.Será este o caso quando esta medida extrema for essencial para rcor-

dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitráriodos lucros".

10. Diogo de Figueiredo Moreirn Neto, Ordem ecollõnrica e deseiwoluimetuo naCorlStil1lição de 1988, 1989, p. 69/70. Essa é também a posição de muitosoutros autores: Celso Ribeiro Bastos, Comemários à CO/lstituição do Brasil,1990, p. I GI 17; Miguel Rcale Júnior, Casos de direito cOl1stil!lcional, 1992, p.18/19; Marcos J uruena Ville]a Sou to, Constituição ecollõl1lica, Cadernos dedireito tributário 4, 1993, p. 250 e Dinorá Adelaide Muselli Grotti, [l1lenJellçâodo Estado lU! economia, Revista dos Tribunais - Cadernos de Direito Constitu-cional e Ciência Política n° 15,1996, p. 74.

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expressão e o direito à vida privada e à honra ou com o direito àpropriedade e sua função social12. É evidente, entretanto, que a pon-deração encontra limites no conteúdo próprio e típico de cada princi-pio. Não Fosse assim, a interpretação constitucional seria um merojogo de palavras sem conteúdo c sem valor. Bastaria afirmar que seestá "ponderando" um determinado princípio para, por essa expres-são mágica, o intérprete encontrar-se autorizado a transgredir livre-mente o que o princípio determina. Estar-se-ia diante de uma grandefraude à Constituição, finamente captada por Celso Antonio Bandei-ra de 1v1e 110:

Ora bem: se a liberdade para rixa r preços de acordo com omercado concorrencial é da própria essência da livre iniciativa, ela nãopode ser eliminada de forma peremptória, sob pena de negação doprincipio, e não de ponderação com outros valores. A menos que - eeste é o ponto a que se chegará mais il Frente - o controle prévioFosse necessário para recompor o próprio sistema de livre iniciativa.

Além desses dois princípios Fundamentais - livre iniciativa evalorização do trabalho -, o art. 170 apresenta, ainda, um conjuntode princípios setoriaia'? que, em harmonia com esses, deverão condu-zir a ordem econômica. A eles se dedica o tópico seguinte.

"Um [undamento constitucionai que pudesse ser arredadopor obra de legislação ordinária ou um principio que estapudesse menoscabar, a toda evidência, nada valeriam e oconstituinte seria 111"/1 rematado tolo se houvesse pretendidoconstrui-los com tal fragilidade. "13

1fI. Princípios da ordem econômica

Particularmente acerca da livre iniciativa e dos demais princípiosque com ela convivem, escreveu ainda uma vez Diogo de FigueiredoMoreira Neto:

Além de repetir que a valorização do trabalho humano e a livreiniciativa constituem os fundamentos da ordem econômica, como jáo são do Estado de forma mais geral, o art. 170 da Constituiçãoenuncia os demais princípios que devem orientar a atuação do Estadoe dos particulares nos processos de produção, circulação, distribuiçãoe consumo das riquezas do País. Confira-se a íntegra do dispositivo:

"O princípio da liberdade de iniciativa tempera-se pelo elainiciativa suplementar do Estado; o princípio da liberdadede empresa corrige-se com o da definição da j1mção socialda empresa; o principio da liberdade de lucro, bem comoo ela liberdade de competição, moderam-se com o da repres-são do abuso de poder econômico; o princípio da liberdadede contratação limita -se pela aplicação dos princípios davalorização do trabalho e da luz 111 !O 11ia e solidariedade entreas categorias sociais de produção; e, finalmente, o princípioda propriedade privada restringe-se com o principio da [un.ção social ela propriedade.í'" (grifos no original)

"Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização dotrabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conjorme os ditames da justiçasocial, observados os seguintes princípios:[ - soberania nacional;[[ - propriedade privada;[[f - função social da propriedade;TV - livre cOllcon·ê/lcia;V - defesa do consumidor;VI - defesa do meio ambiente;VlT - redução das desigualdades regionais e sociais;V[[[ - busca do pleno emprego;IX - tratamento favorecido para as empresas de pequenoporte constituidas sob as leis brasileiras e que tenham suasede e administração no País."li. Sobre o assunto, v. também Luis Gustuvo Grandinetti Castanho de Carva-

lho, OireilO de iri[armaçâa e liberdade de expressão, 1999.13. Celso Antonio Bandeira de Mcllo, Curso de direito administrativo, 1999, p.490/1.

14. Diogo de Figueiredo Moreira Neto, Ordem ecol1ômica e desenvolvimento naCOTlstüuiçãn de 1988, 1989, p. 28.

15. Sobre a distinção entre princípios fundamentais, gerais e setoriais, v. LuísRoberto Barroso, [nterpretaçâo e aplicação da consciruição, 1999, p. 147 e 55.

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Da leitura dos princípios setoriais em questão, é Fácil perceberque não há uma homogeneidade funcional entre eles. O papel que alivre concorrência desempenha na ordem econômica é diverso daque-le reservado ao princípio que propugna pela busca do pleno empregoou pela redução das desigualdades regionais e sociais. À vista dessaconstataçâo, é possível agrupar estes principias em dois grandes gru-pos, conforme se trate de princípios de [uncionamento da ordemeconômica e de principios-jins. Em linhas gerais, os princípios defuncionamento estabelecem os parârnetros de convivência básicos queos agentes da ordem econômica deverão observar. Os princtpíos-jins,por sua vez, descrevem realidades materiais que o constituinte desejasejam alcançadas. Convém analisar cada uma dessas categorias sepa-radamente.

b) Propriedade privada e função social da propriedade

111.1. Princípios de funcionamento

A propriedade privada é condição inerente à livre iniciativa elugar da sua expansão!", além de direito individual constitucional-mente assegurado!". Sua função como principio setorial da ordemeconômica é, em primeiro lugar, assegurar a todos os agentes que nelaatuam ou pretendam atuar a possibilidade de apropriação privada dosbens e meios de produção. Ao mesmo tempo, impõe aos indivíduosem geral o respeito à propriedade alheia e limita a ação do Estado, quesó poderá restringir o direito n propriedade nas hipóteses autorizadaspela Constituição Federal!".

Nada obstante, e superando uma concepção puramente indivi-dualista da propriedade, o texto constitucional estabeleceu que, naordem econômica por ele disciplinada, a propriedade deverá ter umafunção social. O conceito é relativamente dífuso, mas abriga idéiascentrais como o aproveitamento racional, a utilização adequada dosrecursos naturais, a preservação do meio ambiente, o bem-estar dacornunidade'". A frustração de tal mandamento constitucional dáensejo a sanções previstas na própria Carta/".

Os princípios de funcionamento referem-se à dinâmica das rela-ções produtivas, às quais todos os seus agentes estão vinculados. Po-dem ser classificados como princípios de [uncionameruo aqueles refe-ridos nos incisos [ a VI do artigo 170, a saber: a) soberania nacional,b) propriedade privada, c) função social da propriedade, d) livreconcorrência, e) defesa do consumidor, e f) defesa do meio ambiente.

a) Soberania nacional

16. Tércio Sarnpaio Ferraz Jr, Congelamento de preços - tabelamentos oficiais(parecer), Revista de Direito Público na 91, 1989, p. 77.17. CF, art. 5°, XXI!.18. A Constituição enunciou quatro formas de intervenção estatal na proprieda-de privada, a saber: a) a instituição e cobrança de tributos, obedecidas as limita-ções constitucionais ao poder de tributar [art. I '18 e 55., especialmente oart.Lófl], dentre as quais figura a proibição de utilizar tributo com efeito deconfisco; b) privação de bens por meio de devido processo legal, assegurada aampla defesa e o contraditório aos litigantes [art. 5°, LlV e LV); c) o perdimentode bens [art. 5°, XLVI, b) e a expropriação, sem indenização, dos bens envolvi-dos no cultivo de plantas psicotrópicas e no tráfico de entorpecentes [arr. 243),como modalidade de pena criminal; e d) a desapropriação, garantida, comon:gra, prévia c justa indenização, e a requisição ou ocupação temporárias, asse-gurada igualmente a indenização se houver dano (arts. 5°, XXIV, 182, § 4", 111,184 e 5°, XXV).19. Miguel Reale Jr., Casos de direito constitucional, 1992, p. 14: "A proprieda-de exerce uma Função social, se realiza um fim economicamente útil, produtivoe em beneficio do proprietário e de terceiros, mormente os que com o trabalhointervêm no processo de utilização de meios econômicos .' ',

20. E.g., CF, arts. 182, § " e 184.

Soberania é um atributo essencial do Estado, sendo conceito dedupla significação: do ponto de vista do direito internacional, expres-sa a idéia de igualdade, de não subordinação; do ponto de vista internotraduz a supremacia da Constituição e da lei, e da superioridadejurídica do Poder Público na sua interpretação e aplicação. Se o Esta-do brasileiro decretar embargo comercial a um país, proibindo asexportações, todas as empresas terão de sujeitar-se. Se partes priva-das escolherem contratualmente a aplicação de lei estrangeira emmatéria na qual a norma brasileira seja de aplicação (agente, é estaque prevalecerá. A própria reserva de mercado em setor estratégico émanifestação de soberania nacional na ordem econômica.

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c) Livre co/!corrr?!1ciae defesa do consumidor d) Defesa do meio ambiente

Por fim, a preservação do meio ambiente condiciona o exercíciodas atividades econômicas em geral. O constituinte de 1988 nãoapenas incluiu sua defesa entre os princípios da ordem econômica(CF, art. 170, VI), como também dedicou todo um capítulo (Capítu-lo VI do Título VIII) à sua disciplina, elevando-o à categoria de direi-to de todos. Confira-se o teor do caput do art. 225 da Carta, ia uerbis:

O princípio da livre concorrência, corolário direto da liberdadede iniciativa, expressa a opção pela economia de mercado. Nele secontém a crença de que a competição entre os agentes econômicos,de um lado, e a liberdade de escolha dos consumidores, de outro,produzirão os melhores resultados sociais: qualidade dos bens e servi-ços e preço justo. Dai decorre que o Poder Público não pode preten-der substituir a regulação natural do mercado por sua ação cogente,salvo as situações de exceção que serão aqui tratadas. Por outro lado,os agentes privados têm não apenas direito subjetivo à livre concor-rência, mas também o dever jurídico de não adotarem comportamen-tos anticoncorrenciais, sob pena de se sujeitarem à ação disciplinado-ra e punitiva do Estado.

Em suma: a opção por uma economia capitalista se funda nacrença de que o método mais eficiente de assegurar a satisfação dosinteresses do consumidor de uma forma geral é através de um merca-do em condições de livre concorrência, especialmente no que dizrespeito a preços.

A experiência demonstrou, todavia, que o sistema de auto-regu-lação do mercado nem sempre é eficaz em relação a um conjunto deoutros aspectos dos produtos e serviços, como qualidade e segurança,veracidade das informações ao consumidor, vedação de cláusulas abu-sivas, atendimento pós-consumo ete. Daí a necessidade de uma regu-lamentação específica de proteção ao consumidor, que veio inscritainclusive como um direito individual constitucionalizadc'". Trata-se,aqui, tanto de um princípio de Funcionamento da ordem econômica,ao qual está vinculada a iniciativa privada, quanto de um dever doEstado. A ele cabe, não apenas assegurar um mercado eFetivamenteconcorrencial, como também criar condições eqüitativas entre partesnaturalmente desiguais, ainda que de forma induzida, e assegurarcondições objetivas de boa-fé negocial22•

"Art. 225. Todos têm direito ao meio-ambiente ecologica-mente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencialà sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público eà coletividade o dever ele deiendê-io e preservá-to, para aspresentes e futuras gerações."

O agente econômico, público ou privado, não pode destruir omeio ambiente a pretexto de exercer seu direito constitucionalmentetutelado da livre iniciativa. Um ambiente saudável e o limite ao livreexercício da atividade econômica e, para defendê-Ia e garantir a sadiaqualidade de vida da população, o Estado tem o poder-dever de inter-vir na atuação empresarial, mediante a edição de leis e regulamentosque visem a. promover o desenvolvimento sustentado+'.

Este conjunto de princípios setoriais, acima examinados, forma,em suma, as "regras do jogo", que limitam e obrigam a conduta dosparticulares. O destinatário principal dos princípios de funcionamen-to da ordem econômica é, como se vê, a iniciativa privada (e tambémo Estado quando atua empresarialmente, nos termos do art. 173 daConstituiçãc'"]. Cabe ao Poder Público, nesse particular, regularrien-

23. Maria Helena Diniz, Dicionário jurídico, vol.Z, 1998, p. 94. A autora definea já célebre expressão nos seguintes termos: "Desenvolvimento sustentado. Di-reita lncemacional Público. Segundo a Comissão Mundial sobre Meio Ambientee Desenvolvimento, é aquele que visa atender às necessidades do presente, semque se comprometa ~ capacidade da futurn geração de satisfazer as própriasnecessidades". Observe-se que os deveres do Estado para com a preservação domeio-ambiente não se restringem à regulação das atividades econômicas.24. CF, art. 173: "Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a explora-ção direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando neces-

21. CF, art. 5°, XXX!!: "o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa doconsumidor;" .22. Sobre o tema, v. Teresa Negreiros, Fundamentos para lima interpretaçãoconstiuicionai do principio da boa-fé, 1998.

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tar aquilo que lhe compete - como, e.g., os direitos do consumidor- e respeitar, sem outras interferências não autorizadas, o exercícioda livre iniciativa.

n1.2. Princípios-fins

Assim, como a própria expressão sugere, os principios-Iins sãofinalidades a que visa o Estado na ordem econômica, já que, ao ladodos particulares, o Poder Público também é um agente econõmico.Vale dizer, representam os objetivos sociais do Estado dentro dessamesma ordem, informando a política econômica do Governo no sen-tido da plena realização dos preceitos constitucionais.

Uma última observação importante a ser feita a respeito dosprincípios setoriais, em qualquer de suas categorias, é que nenhumdeles - desde a meta de assegurar a todos existência digna, até otratamento Favorecido para as empresas nacionais de pequeno porte- poderá contrariar ou esvaziar os princípios Fundamentais da ordemeconômica, tal como positivadcs no capta do art. 170, ainda que lhesestabeleçam certo nível de restrições. Não se pode, sob o pretexto derealizar qualquer deles, eliminar a livre iniciativa ou depreciar o traba-lho humano. Confira-se, sobre o ponto, Celso Antonio Bandeira deMello, in uerbis:

Os princípios-Fins delineiam os objetivos que, como produtofinal, a ordem econômica como um todo deverá atingir. Eles figuramtanto no capta do art. 170 quanto em seus incisos finais. São eles: (i)existência digna para todos; (ii) redução das desigualdades regionais esociais, (iii) busca do pleno emprego; (iv) e a expansão das empresasde pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham suasede e administração no país.

Cada um desses princípios descreve uma realidade fãtica deseja-da pelo constituinte e comandada ao Poder Público. Assim, o consti-tuinte deseja o fortalecimento das empresas brasileiras de pequenoporte, admitindo, então, tratamento favorecido por parte do Estado.Além disso, a Constituição harmoniza os objetivos da ordem econô-mica - redução das desigualdades, pleno emprego e existência dignapara todos - com os objetivos fundamentais da República Federativado Brasil, constantes do art. 3° da Carta. Também ali pode-se ler, nosincisos !TI e IV, que erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir asdesigualdades sociais e regionais, e promover o bem de todos, sempreconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outrasformas de discriminação, são objetivos fundamentais do Estado brasi-leiro como um tocioIS.

"Seria um verdadeiro absurdo, um contra-senso cabal, e»trair do parágrafo de !1m artigo a outorga de poder paranulijicar o que se contém e/ll sua cabeça e em um de seusincisos; o disparate interpretativo seria particularmenteinadmissível quando se sabe que o artigo e o il1ciso emquestão (170 e seu inciso IV) apresentam-se, e de mododeclarado, como sendo respectivamente, /1/11 dos '[undamen-tos da ordem econômica' e 10/1 dos 'princípios' reteres dela.Um fundamento constitucional CJuepudesse ser arredadopor obra de legislação ordinária ou !1m principio que estapudesse menoscabar, a toda evidência, nada valeriam e oconstituinte seria !1m rematado calo se houvesse pretendidoconstrui-los com tal fragilidade."26sãria aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo,

conforme definidos em lei.". O § 1°, 11, do mesmo artigo cornplcmenta: "§ I li Alei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de econo-mia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produçãoou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre: ( ... ) 11- a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quantoaos direitos e obriguções civis, comerciais, trabalhistas e tributários:",25. CF, art. 3°, III e IV: "Constituem objetivos fundamentais da RepúblicaFederativa do Brasil ( ... ) 111- errndicar a pobreza e a rnarginalizução e reduziras desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sempreconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas dediscriminação.".

A conclusão a que se chega, portanto, é que nenhum dessesprincípios setoriais poderá restringir a livre iniciativa a ponto de afetarseus elementos essenciais. Sendo a livre Fixação de preços um desseselementos, não se poderá exccpcioná-la apenas com fundamento em

ZG. Celso Antonio Bandeira de Mello, Curso de direito administratiuo, 1999, p.490/ l.

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"Em conseqüência, deve-se dizer, portanto, que o sentidodo papel do Estado como agente normatiuo e regulador estádelimitado, negativamente, pela livre iniciativa, que nãopode ser suprimida. O Estado, ao agir, tem o dever deomitir a sua supressão, Positivamente, os limites das fw}

ções de fiscalização, estímulo e planejamento estão nos prin-cípios da ordem, que são a sua condição de possibilidade.O primeiro deles é a soberania nacional. Nada fora dopacto constituinte. Nenhuma vontade pode se impor de forado pacto constitucional, nem //lesma em /lome de algumaracionalulade da eficiência, externa e tirânica. O segundoé a propriedade privada, condição inerente ti livre inicia-tiva. O terceiro é a [unção social da propriedade, que tema ver com a valorização do trabalho humano e confere oconteúdo positivo da liberdade de i/liciativa. O quar!o é alivre concorrência: a livre iniciativa é para todos, sem ex-clusões e discriminações. O quinto é a defesa do consumi-dor, devendo-se velar para que Cl produção esteja a serviçodo C071SW1l0, e não este a serviço daquela. O sexto é a defesado meio ambiente, entendendo-se que lima natureza sadiaé um limite à atividade e também sua condição de exercício.(...)Esses nove princípios não se contrapõem aos fundamentosda o rdein , mas dão-lhes seu espaço relativo. Cumpre aoEstado assegurar us [undanientos, a partir dos princí-pios. Não se pode, por isso, em nome de qualquer deleseliminar a livre iniciativa nem desvalorizar o trabalhoh1111l.alW.Fiscalizar, estimular, planejar, portanto, sãofunções a serviço dos fundamentos da ordem, conformeseus princípios. Jamais devem ser entendidos como fun-ções que, supostamente em nome dos princípios, des-truam seus [undamentos." (negrito acresceu tado) 27

Cabe ao Estado, do mesmo modo, a responsabilidade de írnple-mentação dos princípios-Fins contidos no art. 170, sempre visando aassegurar a todos existência digna, conForme os ditames da justiçasocial. No desempenho de tal atribuição, compete-lhe, por exemplo,levar a efeito programas que promovam a redução da desigualdade ouque visem ao pleno emprego. Ao mesmo tempo, é dever do Estado,como agente da ordem econômica, criar mecanismos de incentivo

qualquer desses princípios, p015 15S0 representaria uma violação dofundamento da própria ordem econômica.

IV. Agentes da ordem econômica

Iv.L. Papel do Estado na ordem econômica

Preservação e promoção dos principias de [uncionanienio e implemeneação de programas para a realização dos princípios-fim

Em linha de coerência com a classificação acima delineada -princípios de funcionamento e princípios-fins -, varia o papel doEstado na implementação de cada um deles. Os princípios de funcio-namento, relcrnbre-se, são endereçados primordialmente à atividadedo setor privado. Os princípios-rins determinam a política econômicaestatal. Veja-se, brevemente, o conteúdo e os limites da atuação esta-tal na realização de cada um deles.

Cabe ao Estado fiscalizar o regular atendimento, pela iniciativaprivada, dos princípios de funcionamento da ordem econômica. Nodesempenho dessa competência, deverá editar normas coibindo abu-sos contra o consumidor, prevenindo danos à natureza ou sancicnan-do condutas anti-concorrenciais, para citar alguns exemplos. Ao tra-çar esta disciplina, deverá o Poder Público, como natural, pautar-seno quadro da Constituição, tendo como vetor interpretativo os fun-damentos do Estado e da ordem econômica: livre iniciativa e valoriza-ção do trabalho.

É certo que alguns dos princípios setoriaís podem autorizar aprodução de normas que interfiram com a livre-iniciativa. Isto é natu-ral e inevitável. Mas tais princípios não têm força jurídica para validaratos que venham suprimir a livre iniciativa ou vulnerá-la no seu núcleoessencial. Tércio Sarnpaio Feraz Jr., em estudo sobre o tema, sinteti-zou o papel do Estado na preservação e promoção dos princípios defuncionamento da ordem econômica, verbis:

27. Tércio Sarnpaio Ferraz Jr., Congelamento de preços +-rabalamentos oficiais(parecer), in Revista de Direito Público na 91, 1989, p. 77/78.

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que estimulem a iniciativa privada a auxiliar na consecução dessesmesmos Fins.

Nessa linha de raciocínio, é próprio do papel do Estado procurarinfluir legitimamente nas condutas dos agentes econômicos, atravésde mecanismos de fomento - incentivos fiscais, Financiamentos pú-blicos, redução da alíquota de impostos -, sem que possa, todavia,obrigar a iniciativa privada à adesão. De fato, nos termos do art. 174da Carta em vigor, o Estado exercerá Funções de incentivo e planeja-mento, 'sendo este determinante para o setor público e indicativopara o setor privado'. Sobre o tema, vejam-se as manifestações preci-sas de Celso Antônio Bandeira de Mello e Marcos Juruena VillelaSouto, respectivamente:

Em outras palavras, não se pode, sem prejuízo dos princípiosfundamentais da ordem econômica, consagrados nu Lei Maior, trans-ferir aos particulares de forma cogente o ônus de concretizar princí-pios-fins de responsabilidade do Estado. A realização de seus própriosobjetivos privados não é incompatível - deve-se erifatizar - com afunção social da empresa e certos deveres de solidariedade, mas nãoinclui o de substituir-se ao Poder Público. Como é intuitivo, o papelda iniciativa privada na ordem econômica é diverso daquele desempe-nhado pelo Estado. O tema é desenvolvido a seguir.

rV.2. Papel da iniciativa privada na ordem econômica

"... com o advento da Constituição de 1988, tornou-seenfaticamente explícito que nent mesmo o planejamentoeconômico - feito pelo Poder Público para algum setorde atividade ou para o conjunto deles - pode impor-secomo obrigatório para o setor privado. É o que estáestampado com todas as Letras, no art. 174_ ( ... )Em suma: a dicção categórica do artigo deixa explícito que,a título de planejar, o Estado l1ão pode impor aos particu-Lares nem mesmo O. atendimento às diretrizes 011 intençõespretendidas, mas apenas incentivar, atrair os particulares,mediante planejamento indicatiuo que se apresente comosedutor para condicionar a atuação da iniciativa privada."(negrito acrescentadoj f

"Se o pLa/lejamento é determinante para o setor público,por força do princípio da livre iniciativa, é apenas indicativopara o setor privado; quer dizer, o planejamento da econo-mia não obriga a empresa privada a atuar em áreas Cal}sideradas estratégicas, mas apenas a incentiva (sançõespositivas) C! colaborar com o desenuoluimento que vai pro-porcionar o bem-estar geral (surgem benefícios [iscais, sub-sídios, empréstimos facilitados, etc.)"29

De acordo com o sistema constitucional que aqui se vem expon-do, é fora de dúvida que os particulares são os principais atores daordem econômica brasileira. Têm eles direito subjetivo à livre concor-rência e à busca do lucro e o dever jurídico de observarem os princí-pios de funcionamento da atividade econômica. O significado dessapreeminência da livre iniciativa foi captado e enfatízado por TércioSarnpaio Ferraz Jr., nos seguintes termos:

"flfin71ar a livre iniciativa como base é reconhecer na li-berdade um dos fatores estntturais da ordem, é afinnar aautonomia empreendedora do homem na coniormaçâo daatividade econômica, aceitando sua intrínseca contingênciae fragilidade; é preferir, assim, lima ordem aberta ao frfrcasso a uma 'estabilidade' supostamente certa e eficiente.Afinna-se, pois, qlle a estrutura da ordem está centradana atividade das pessoas e dos grupos e nelO na atividadedo Estado. Isca não significa, porém, uma ordem do 'laissez[aire', posto que a livre iniciatiua se conjuga com a vedo-rização do trabalho humano. "]0

28. Celso Antõnio Bandeira de Mello, Liberdade de iniciativa. Intromissão esta-tal indeuida no domínio econômica, \999, ín Revista de Direito Administrativoe Constitucional n? I, p. 178/179.29. Marcos Juruena Villela Souta, Constituição econômica, 1993, in Caderno deDireito Tributário n'' 4, p. 232.

Tais idéias, naturalmente, não s50 incompatíveis com o conceitomoderno de função social da empresa. Embora não referido de modo

30. Tércio Sarnpaio Ferraz Jr., Congelamento ele preços - tabelamentos oficiais(parecer), ín Revista de Direito Público nO 9\, \989, p. 77.

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expresso no texto constitucional, integra ele o sistema jurídico, comodecorrência da idéia de Estado democrático de direito, inspirada porvalores como justiça social e participação. A empresa há de ter com-promisso social com os parceiros com os quais interage e com a socie-dade como um todo.

Tem, assim, deveres para com seus empregados e com a valori-zação social do trabalho, na forma da lei, bem como com a oferta deemprego e, em última análise, com a existência digna para todos. Departe isto, tem obrigações para com seus Fornecedores, que assegu-ram o ciclo produtivo, e com os consumidores". a quem se destina aatividade econômica e cujos direitos limitam seu exercício. Há tam-bém os vizinhos e a comunidade como um todo, titulares, em últimaanálise, do direito ao meio ambiente saudável32 e beneficiá rios indire-tos da utilização produtiva da prcpriedade+'.

Há, por Fim, a responsabilidade social mais geral, consistente nacontribuição tributária regular - cujos recursos sustentam a própriaexistência do Estado e permitem a prestação dos serviços públicos, aentrega de utilidades sociais e as políticas públicas voltadas à realiza-ção dos fins estatais.

Como se pode singelamente constatar, o regular exercício de suasatividades pelas empresas privadas - como tal entendido o que obser-va os princípios de funcionamento da ordem econômica - já viabilizauma parte importante do bem-estar social. O que o Estado não podepretender, sob pena de subverter os papéis, é que a empresa privada,em lugar de buscar o lucro, oriente sua atividade para a consecução dosprincípios-fins da ordem econômica como um todo, com sacrifício dalivre-iniciativa. Isto seria dirigismo, uma opção por um modelo histori-camente superado. O Poder Público não pode supor, e.g., que umaempresa esteja obrigada a admitir um número x de empregados, inde-pendentemente de suas necessidades, apenas para promover o plenoemprego. Ou ainda que o setor privado deva compulsoriamente doarprodutos para aqueles que n50 têm condições de adquiri-los, ou que seinstalem fábricas obrigatoriamente em determinadas regiões do País,de modo a impulsionar seu desenvolvimento.

Ao Estado, e não à iniciativa privada, cabe desenvolver ou esti-mular práticas redistributivistas ou assistencialistas. É do Poder Pú-blico a responsabilidade primária. Poderá desincurnbir-se dela poriniciativa própria ou estimulando comportamentos da iniciativa priva-da que conduzam ::I esses resultados, oferecendo vantagens fiscais,financiamentos, melhores condições de exercício de determinadasatividades, dentre outras formas de Fomento.

V. Intervenção estatal na ordem econômica: disciplina

V.1. Modalidades de intervenção estatal na ordem econômica

Identificados os papéis do Estado na ordem econômica, é possí-vel agora classificar suas modalidades de intervenção e associá-Ias acada um deles. A sistematização doutrinária das formas ele interven-ção do Estado na economia varia conforme o critério adotado. Háautores que se referem à intervenção (a) regulatória, (b) concorreu-cial, (c) monopolista e (d) sancionatória'". Outros classificam-na em(a) poder de polícia, (b) incentivos fi iniciativa privada e (c) atuaçãoempresarial]'. Nessa linha, é possível identificar três mecanismos deintervenção estatal no domínio econômico: a atuação direta, o fomen-to e a disciplina.

O Estado pode interferir na ordem econômica mediante umaatuação direta, isto é: assumindo, ele próprio, o papel de produtorou prestador de bens ou serviços. Essa modalidade de intervençãoassume duas apresentações distintas: (a) a prestação de serviços pú-blicos e (b) a exploração de atividades econômicas. Entretanto, cabenão perder de vista que a atuação di reta do Estado na economia éexcepcional, só autorizada nos termos constitucionais, por repre-sentar uma exclusão da livre iniciativa.

Este caráter excepcional é enfatizado pela Constituição em duasnormas, uma implícita e outra explícita. A primeira limita a criação de

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J.l. Diogo de Pígueíredo Moreira Neto, Curso de direito administrativo, 1996,p.365.35. Celso Antonio Bandeira de Mello, Curso de direito administratiuc, 1996, p.434-j.

31. CF, art. 170, V.32. CF, art, 170, VI.33. cr. art. 170, llI.

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novos monopólios públicos, além daqueles que já constam da Carta l''.E a segunda impõe a necessidade de lei autorizativa de qualquerforma de exploração direta de atividade econõmica pelo Estado, cujo,pressupostos são os impernti uos da segurança nacional OLl relevanteinteresse coletivo. Além disso, a Constituição estabelece que, nessashipóteses, o Estado-empresário estará submetido às mesmas condi-ções que os particulares, de modo a evitar a concorrência desleal, comprejuízo maior para o principio da livre iniciatíva'".

De outra parte, o Estado interfere no domínio econômico porvia do fome 11 to, isto é, apoiando a iniciativa privada e estimulando (oudesestirnulandc] determinados comportamentos, por meio, porexemplo, de incentivos fiscais ou financiamentos públicos.J8 Esta é a

modalidade própria de que se utiliza o Estado para atingir os princí-pios-fins da ordem econõmica. Como registram Diogo de FigueiredoMoreira Neto e Ney Prado:

"Através do fomento público, o Estado deverá desenvolverlima atuação suasoria, não cogente, destinada a estimularas iniciativas privadas que concorram para restabelecer aiguaidade de oportunidades eco/lãmicas e sociais ou suprirdeficiêllcias da livre empresa 110 atendunerüo de certos as-pectos de maior interesse coletivo.'·J9.

A peculiaridade dessa forma de intervenção estatal é que elaopera por meio de /lonnas diretivas. A adesão ao comportamentosugerido constitui mera opção dos agentes econômicos que se benefi-ciariam com os mecanismos de Fomento criados em lei. Esse aspectoé sublinhado por Eras Roberto Grau, Unem:

36. Essa é a posição consolidada da doutrina. Veja-se, por todos, Fábio KonderCornparato, Monopólio público e domínio público in Direito Público: estudos epareceres, 1996, p. 149: •.A vigente Carta Constitucional preferiu seguir o crité-rio de enumeração taxutiva dos setores ou atividades em que existe (inde-pendentemente, pois, de criação por lei) monopólio estatal, deferido agoraexclusivamente à União [art. 177 e 21, X, XI e XII). Quer isto dizer que, noregime da Constituição de 1988, a lei já não pode criar outros monopólios, n50previstos expressamente no texto constitucional. pois contra isso opõe-se oprincípio da livre iniciativa, sobre o qual se funda toda a ordem econômica [art,170}." e Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo,1996, p. 441: "Fínalrnente, convém lembrar que a Constituição previu o mono-pólio de certas atividades. S50 elas unicamente as seguintes, consoante arrola-mento do art. 177 da Constituição (... ) Tais atividades monopolizadas não seconFundem com serviços públicos. Constituem-se, também elas, em 'serviçosgovernamentais', sujeitos, pois, às regras do Direito Privado. Correspondem,pura e simplesmente, a atividades econômicas subtraídas do âmbito da livreiniciativa.".]7. Cf', art. 173, § 1°: "A lei estabelecerá o estatuto juridico dn empresa pública,da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem at ividadeeconômica de produção ou cornercinlízaçào de bens ou de prestação de serviços,dispondo sobre:(...)II - a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusivequanto aos direitos e obrigações civil, comerciais, trabalhistas e tributários;(...)§ 2° As empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozarde privilégios Fiscais não extensivos às do setor privado. ".38. Luiz Carlos Bresser Pereira, Cidadania e res publica: CI emergência dos direi-tos republicanos, ifl Revista de Direito Administrativo n" 208, p. J 47 e 55. Em

"No caso das nOn1WS de intervenção por indução defron-tamo-nos com preceitos que, embora prescritiuos [deõnti-cos) , Ilão são dotados ela mesmCl carga de cogência queafeta as llonnas ele intervenção por direção. Trata-se denormas dispositivas. Não, contudo, no sentido de suprir avontade do seu destinatário, porém, Ila dicção de ModestoCarvalhosa. 110 de 'levá-Ia a uma opção econômica de it»teresse coletivo e social que transcende os limites do quererindividual'. Nelas, a SCl11Ção,tradictonalniente manifesta-da COlHO comando, é substituida pelo expediente do convite(. ..). Ao destinatário da llOnllClresta aberta a alternatiuade nc/.o se deixar por ela seduzir, deixando de aderir à

interessante estudo, o autor identifica como direito retntblicano o direito a queos recursos públicos sejam aplicados no interesse c beneficio de toda a coletivi-dade, e não de alguns grupos privados. Embora nem sempre se concorde com 05

exemplos utilizados pelo autor (gue, por vezes, não distingue entre direitoslegitimamente adquiridos e interesses privados ilegítimos), o trabalho mereceregistro.

39. Diogo de Fígueiredo Moreira Neto e Ney Prado, Uma análise sistémica doconceito de ordem econãmica e social, 1987, in Revista de Informação Legislativado Senado Federal n? 96/ f 21, p. 132.

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prescrição nela vinculada. Se adesão a ela manifestar, /l0

entanto, resultará juridicamente vinculado pOI·prescriçõesque correspondeni aos benefícios usujruidos em decorrênciadessa adesão. Penetramos, aí, o universo do direito pre-mial. "·10

beraçôes, portarias, algumas em domínios relevancíssimos como apolítica de crédito e a política de câmbio, em meio a muitas outras.Por fim, desempenha, também, o poder de polícia, restringindo direi-tos e condicionando o exercício de atividades em favor do interessecoletivo (e.g., polícia ambienta], sanitária, fiscalização trabalhista).

Diferentemente do que se passa com os instrumentos de fomen-to, a disciplina impõe comportamentos compulsórios, mediante aedição de normCLS cogentes, cuja violação sujeita o infrator a umasanção. Na medida em que determinadas condutas são consideradasobrigatórias, opera-se uma retração lógica do espaço da liberdade deiniciativa, que, como visto, não é um princípio absoluto. Porém, ensi-na a experiência, pode ocorrer que, com a intenção ou a pretex ..to derestringir e fiscalizar, se chegue a aniquilar e esvaziar a livre iniciativa.Daí a importância de se delinear o regime juridico da própria discipli-na, à luz da Constituição.

Do exame sistemático do texto constitucional, é possível identi-ficar ao menos 2 (duas) ordens de limitações à intervenção disciplina-dera do Estado sobre a ordem econômica e 3 (três) conjuntos defundamentos válidos que podem desencadear essa intervenção. Oslimites correspondem aos princípios da livre iniciativa (e, no seu âm-bito, especialmente <I livre concorrência) e da razcabilidade. Os fun-damentos válidos para a disciplina consistem: (i) na reorganizaçãoda própria livre iniciativa e livre concorrência, nas hipóteses excep-cionais em que o mercado privado haja se desorganizado; (ii) navalorização do trabalho humano; e (iii) nos princípios de funciona-mento da ordem econômica. Veja-se cada um desses elementos sepa-radamente.

Por fim, o Poder Público interfere com a atividade econômicatraçando-lhe a disciplina. O propósito principal dessa forma de in-tervenção, como já se viu, é a preservação e promoção dos princípiosde funcionamento da ordem econômica. Esta modalidade de inter-venção na ordem econômica será objeto de análise mais detalhada nositens seguintes.

V.2. Limites e fundamentos legítimos da intervençãodisciplinadora

A modalidade de intervenção estatal mais importante para osfins deste estudo, como já se registrou, é a disciplina. Aqui, o PoderPúblico atua como agente normativo e regulador, exercendo a funçãode fiscalização, prevista no já referido art. 174 da Carta de 1988.11

, eé no âmbito da disciplina estatal da atividade econômica que se inserea discussão acerca do controle de preços.

O Estado disciplina a atividade econômica mediante a edição deleis, de regulamentos e pelo exercício do poder de polícia. De fato, oPoder Público exerce competências normativas primárias e edita nor-mas decisivas para o desempenho da atividade econômica, algumascom matriz constitucional, como, por exemplo, o Código do Consu-midor (art. 5, XXXII), a lei de remessa de lucros (art. 172.), a lei derepressão ao abuso do poder econômico (art. 173, § 4), dentre inú-meras outras. Exerce, ademais, competências norrnativas de cunhoadministrativo, editando decretos regulamentares, resoluções, de Ii-

a) Limites da disciplina

(i) Elementos fundamentais da livre iniciativa e livre concorrên-cia e (ii) princípio da razoabilidade

A atuação do Estado, como agente norrnativo e regulador dofenômeno econômico comporta uma gradação importante, à vista doprojeto ideológico escolhido. Historicamente, tem sido experimenta-dos modelos que vão de um extremo a outro: do controle absoluto aoliberalismo radical (laissez-faire), passando por formas intermediá-rias. A intensidade do poder de intervenção do Estado leva fi distinçãoentre os conceitos de dirigismo e disciplina.

·10. Eras Roberto Grau, 11 ordens ecollômica na COILstiwiçãode /988, 1990, p.164.41. CF, arr. 174: "Como "gente norrnativo e regulador da atividade econômica,o Estada exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e plane-jamento, senda este dererrnina nte para a setor pública e indicativo para o setorprivado".

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o dirigismo econômico é próprio dos modelos coletivistas, ba-seados na planificação centralizada e cagente e na propriedade coleti-va dos meios de produção. O mercado deixa de estar centrado naatividade das pessoas e dos grupos privados e passa a ser largamentemanipulado pelo Estado. Já nos Estados que optaram pela livre inicia-tiva, a disciplina é um instrumento de intervencionismo econômico- prática que teve o seu ponto alto no período em que se Fortaleceua idéia de Estado de bem-estar social -, mas se rege por um postula-do essencial: o de que o livre mercado concorrencial é o mecanismomais eficaz de produção de riquezas e bem estar (ainda que longe deser perfeito). Em suma: a disciplina é forma de intervenção que se dánão contra o mercado, mas a seu FavorH.

À luz da Constituição brasileira, a ordem econômica funda-se,essencialmente, na atuação espontânea do mercado. O Estado pode,evidentemente, intervir para implementar políticas públicas, corrigirdístorções e, sobretudo, para assegurar a própria livre iniciativa epromover seu aprimoramento. Este é o fundamento e o limite de suaintervenção legítima. A característica da disciplina está, exatamente,em que ela não pretende nem pode pretender substituir o mercadoem seu papel central do sistema econômico.

Ora bem: o controle prévio de preços não é um dos instrumen;-tos próprios da disciplina, tal como pautada pela Constituição. Emeio de atuação do dirigismo, que autoriza o total domínio da econo-mia pelo Poder Público. Na síntese de Tércio Sampaio Ferraz J r.:

gatôrio que todos executall1; a entulatle atttom do planodetermina a necessidade dos sujeitos e a sI/a prioridade,fixa os níveis de produção e de preços e opera di reta ouindiretamente a distribuição dos bens produzidos."·'J

"... aqui entra a distinção entre interuencionismo e dirigis-mo. O primeiro é atitude flexível, que visa a estimular omercado e a definir as regras do jogo. Já o segundo secaracteriza por uma atitude rígida, que impõe autoritaria-mente certos comportamentos. Neste há uma direção centralda ecollomia que fUllciona na base de 11111 plano geral obri-

Adotar, portanto, urna política que altere a livre fixação dospreços pelas forças do mercado - sem que se esteja diante de umadeterioração tal do mercado em que esta seja a única medida capaz derestabelecer a livre iniciativa e a livre concorrência - importa, emúltima instância, a deturpação do modelo instituído pela Constituiçãode 1988. Em outras palavras: em condições regulares de funciona-mento do mercado concorrencial, não é possível a intervenção esta-tal que elimine a livre iniciativa e a livre concorrência - de que éexemplo a supressão da liberdade de fixação dos preços -, seja qualfor o fundamento adotado para a medida.

Além de observar o limite material representado pela livre ini-ciativa - livre concorrência, qualquer medida de disciplina do mer-cado, ainda que disponha de um Fundamento legítimo, deverá apre-sentar-se de acordo com o princípio da razoabilidade. O princípio darazoabilídade é um mecanismo para controlar a discricionariedadelegislativa e administrativa. Ele permite ao Judiciário invalidar atoslegislativos ou administrativos quando: (a) não haja adequação entreo fim perseguido e o meio empregado; (b) a medida não seja exigívelou necessária, havendo caminho alternativo para chegar ao mesmoresultado com menor ônus a um direito individual: (c) não haja pro-porcionalidade em sentido estrito, ou seja, o que se perde com amedida tem maior relevo do que aquilo que se ganha.

Desse modo, em primeiro lugar, é preciso que haja um nexoracional e razoável entre a medida disciplinadora implementada e oobjetivo que se pretende alcançar, tendo em vista o pressuposto [áti-

co que fundamenta a norma. Com efeito, a regra que vier a interferirno mercado deve ser apta a realizar e/ou restaurar o fim constitucio-nal que autorizou sua edição. Vale dizer, deve haver uma correlaçãológico-racional entre a distorção que se quer corrigir e o seu remédio.

42. Tércio Sampaio Ferraz Júnior, Congeiameiuo de Preços - TabelamentosOficiais, Revista de Direito Público na 91, 1989, p. 76/86: "Distinto do intcr-vencionisrno é, nesse sentido, o dirigismo econômico, próprio das economias deplanificação compulsória, e que pressupõe a propriedade estatal dos meios deprodução, a coletivização das culturas agropecuárias e o papel do Estado comoagente centralizadcr das decisões econômicas de formação de preços e fixaçãode objetivos".

,13. Tércio Sampaio Ferrnz Jr., Congelamento de Preços - Tabelaniencos Ofi.ciais, íu Revista de Direito Público na 91, 1989, p. 83.

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<,

b] Fundamentos da disciplina

Por fim, o terceiro Fundamento da disciplina, e seu propósitoprincipal, é, exatamente, preservar ou promover os princípios defuncionamento da ordem econômica. Justifica-se a disciplina estatal,em tese, na medida em que ela busque: (i) assegurar a soberaniaestatal e os próprios comandos constitucionais sobre <3 matéria; (ii)proteger a propriedade privada e assegurar a realização de sua funçãosocial; (iii) defender o consumidor; e (iv) defender o meio ambiente.Em todo caso, lembre-se, os limites constitucionais referidos acimadeverão ser observados. isto é: o Poder Público não poderá, ainda quecom o propósito de promover esses princípios, violar o conteúdobásico da livre iniciativa e nem irnplernentar qualquer medida quenão resista ao teste da razoabilidade.

Não lhe cabe, assim, determinar o que produzir, onde comercia-lizar, que preços praticar. A norrnatização que poderá a autoridadepública efetuar sobre a atividade econômica circunscreve-se, na liçãode Celso Antônio Bandeira de Mello, à "cornpatibilização dos em-preendimentos econômicos com exigências conaturais à segurança, àsalubridade, à hígidez do meio ambiente, à qualidade mínima doproduto em defesa do consumidor e outros bens jurídicos que com-põem a constelação de interesses coletivos." E complementa:

o princípio da razoabilidade exige também, em segundo lugar,que, dentre as medidas aptas a atingir o resultado pretendido, sejaescolhida aquela que produz a menor restrição aos direitos consagra-dos na Constituição. E preciso assegurar a presença do binôrnio neces-sidade/utilidade no caso concreto, com a conseqüente vedação doexcesso. Por fim, a medida deverá ser comparativamente menos da-nosa aos princípios constitucionais que regem a ordem econômicaque o próprio motivo da intervenção. Em outras palavras: o custo-be-nefício deverá ser positivo.

(i) Reorganização da livre iniciativa - livre concorrência, (ii)valorização do trabalho humano e (iii) realização dos princípios defuncionamento da ordem econômica

Além de observar os limites constitucionais acima referidos, aação disciplinadora do Estado se legitima na medida em que procurerealizar determinados princípios constitucionais. A primeira possibili-dade que justifica a intervenção disciplinadora do Estado, ainda quese trate de hipótese excepcional, é um quadro de deceríoração gene-ralizada do princípio da livre iniciativa e da livre concorrência, exigin-do-se a ação estatal para sua reorganização. Este fundamento seráexaminado mais detalhadamente adiante, pois é o único que justificamedidas extremas que afetem a própria essência da livre iniciativa eda livre concorrência.

Em segundo lugar, a valorização do trabalho humano, por serco-fundamento da ordem econômica brasileira, ao lado da livre inicia-tiva (CF, art. 170), pode justificar a intervenção estatal. De fato,embora o trabalho humano e a livre iniciativa possam identificar-se epotencializar-se mutuamente, é comum, em uma sociedade capitalis-ta, que estejam em relação de tensão. Daí a legitimidade da atuaçãodisciplinadora do Estado, impondo um elenco de direitos a serempreservados e a distribuição de parte dos proveitos obtidos com oesforço coletivo. É certo, todavia, que este fundamento jamais pode-ria legitimar o controle de preços: ainda que não houvesse a limitaçãomaterial representada pelo núcleo do conceito de livre iniciativa, nãohaveria qualquer relação lógica entre controle de preços e valorizaçãodo trabalho.

"É que o Estado em regime de livre iniciativa e livre con-corrência - consagrados na Constituição do País - nãopode interferir na atividade econômica em si mesma, de-sempenliada por particulares. Em sendo ela legítima, valedizer, não proscrita por lei, falece ao Poder Público apossibilidade de determinar a quantidade do produzido,OLl de fixar o montante do produto a ser comercializadode cada vez e, como é de clareza solar, de quaruificar asunidades que deverão ou poderão existir em cada emba-lagem. "44

'14. Celso Antônio Bandeira de Mello, Liberdade de iniciativa. lutromissão esta-ta/ indeuula riO domínio ecollõmico, A & C - Revista de Direito AdministrativoeConstitucionaln"OI, 1999,p.17ge 174.

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Parte IIUMITES CONSTITUCIONAIS À DISCIPUNA

DE PREÇOS POR PARTE DO ESTADO

VI.2. Somente em situação de unorrnalidadc do mercado,ausentes as condições regulares de livre concorrência, o princípioda livre iniciativa poderá sofrer ponderaçào para admitir ocontrole prévio de preços, observados determinados pressupostos

VI. Competência estatal em matéria de preços privados Admite-se, todavia, que em situações anormais seja possível ocontrole prévio de preços pelo Estado, na medida em que o mercadoprivado como um todo tenha se deteriorado a ponto de não maisoperarem a livre iniciativa e a livre concorrência de Forma regular.Nesses casos - excepcionais, repita-se - a intervenção se justifica,afastando o limite material acima referido, exatamente para recons-truir a prática de tais princípios. Isto é: para reordenar o mercadoconcorrencial de modo que a livre iniciativa e seus corolários possamefetivamente funcionar.

Note-se, porém, que o controle prévio de preços só é admissívelpor esse fundamento. E, mesmo assim, observado o princípio da ra-zoabilídade. Os demais, representados pela valorização do trabalhohumano e pelos princípios de Funcionamento da ordem econômica,não podem justificar o controle prévio de preços, pois isso seria in-compatível com o conteúdo básico da livre iniciativa. Esta proposiçãoé válida, inclusive, em relação à atuação voltada para a proteção doconsumidor - que é um dos princípios de funcionamento da ativida-de econôrnícav. E, ademais, também quanto ti este ponto, ocorreria olimite imposto pela razoabilidade, haja vista que existem mecanismosmenos gravosos para esta proteção - incentivo à concorrência, puni-ção administrativa, civil e penal dos infratores.

\'1. L A livre fixação de preços é elemento fundamental da livreiniciativa. O controle prévio de preços como política públicaregular viola princípio constitucional

Nos capítulos precedentes, cuidou-se genericamente da inter-venção estatal, na modalidade de disciplina da ordem econômica.Cumpre agora aplicar as idéias desenvolvidas à questão específica docontrole de preços. Deve-se assinalar, de plano, que o controle préviode preços é medida própria de dirigismo econômico, e não meiolegítimo de disciplina do mercado. A livre Fixação de preços integra oconteúdo essencial da livre iniciativa e não pode ser validarnentevulnerada, salvo situações extremas que envolvam o próprio colapsono funcionamento do mercado.

Diante de tal premissa, é possível assentar que, em situação denormalidade, independentemente dos fundamentos em tese adrnissí-veis para a intervenção disciplínadora, o controle prévio ou a fixaçãode preços privados pelo Estado configura inconstitucionalidade pa-tente. A Constituição brasileira não admite como política públicaregular o controle prévio de preços.

Note-se que a situação de normalidade a que se fez referêncianão exclui, por natural, a possibilidade episódica da prática de ilícitoscontra a ordem econômica. Diante ele algum indício de conduta infra-tora ou anticoncorrencial, podem ser deAagrados os mecanismos pró-prios de apuração, mediante devido processo legal, e, se for o caso,de punição. Em situações normais, o controle estatal em matéria depreços de produtos e serviços será sempre posterior à verificação depráticas abusivas ou anticoncorrenciais, assegurados os direitos fun-damentais à ampla defesa e ao devido processo legal [Cf', art. 5°,L1V).

Vr.3. Pressupostos constitucionais para o controle prévio de preços

A admissão de que algum tipo de controle de preços pode serlegítimo - tese aqui defendida, em oposição a boa parte da doutrina

~5. É evidente que ao reorganizar o mercado e restabelecer o funcionamentoregular da livre iniciativa e da livre concorrência, o controle de preços - quandoadrnissível - estará funcionando como instrumento mediara de defesa do con-sumidor. Isso porque, como já referido, condições de cnncorréncin reais consti-tuem o principal mecanismo de proteção do consumidor no sistema constitucio-nal brasileiro. especialmente no que diz respeitoa preços.

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- impõe, como contrapartida, a exigência de rígida observância doscondicionamentos constitucionais para sua adoção.

Com efeito, pelo princípio da unidade da Constituição, inexisrehierarquia entre as normas constitucionais, de forma que jamais sedeve interpretar uma delas invalidando ou paralisando a eficácia deoutra. Por assim ser, como já se teve ocasião de registrar, deve-sesempre preservar um núcleo mínimo dos princípios constitucionaisem ponderação, sob penn de violar-se a unidade da Carta. Nessesentido, há razoável consenso em que, mesmo quando admitido ocontrole de preços, ele sofre três limitações insuperáveis: a) deveráobservar o princípio da razoabilidade: b) como medida excepcional,pressupõe uma situação de anormalidade e deve ser limitado notempo; e c) em nenhuma hipótese pode impor a venda de bens ouserviços por preço inferior ao preço de custo, acrescido de um retor-no mínimo, compatível com as necessidades de reinvestimcnto e delucratividade próprias do setor privado.

Não é o caso de se voltar a enunciar o conceito de razoabilidadee de seus sub-princípíos. Mas algumas considerações podem ainda serelucidativas. E que tem ampla curso na teoria econômica e entre seustradutores jurídicos a tese de que a interferência estatal no preço debens e serviços não promove justiça social nem protege efetivamenteo consumidor, antes pelo contrário: reduz o investimento pelas em-presas, diminui a oferta de emprego e torna desinteressante a produ-ção de determinados produtos ou a prestação de serviços. E que apermanente tentação populista do tabelamento e do congelamentode preços foi responsável por mais de uma década de estagnaçãoeconômica do país.

Vale dizer: não se trataria sequer de medida adequada para osfins visados. fsto independentemente da vedação do excesso e daproporcionalidade em sentido estrito. Acrescente-se, por derradeiro,que além de figurar como parâmetro da possibilidade em tese docontrole de preços, o princípio da razoabilidade será aplicado tambémpara aferir a constitucionalidadc dos termos de qualquer medida es-pecificamente adotada, tendo em vista seus pressupostos e os nns quepretenda produzir.

Além de ser razoável, a intervenção estatal sobre os preços terá,em qualquer caso, de observar dois outros limites inequívocos. Um,de natureza conjuntural: a medida deve ser excepcional, para atendera circunstância específica e emergencial. Na ausência de uma situação

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anormal, Fora do comum, não se legitima a providência, menos aindacom caráter duradouro. Vale dizer: o controle de preços jamais podeser praticado como uma política pública ordinária.

Em outras palavras, o controle de preços poderá ser adotadotemporária e excepcionalmente para formar um mercado privada econcorrencial, ou para reestabelecê-lo. Daí por diante, o mercadoprivado, devidamente organizado, passará a reger-se pela livre inicia-tiva e pela livre concorrência. Essa é a única hipótese em que ocontrole de preços pelo Estado poderá ser legítimo. Também esteponto de vista tem sido por mim sustentado de longa data, como severifica da transcrição a seguir:

"Sem embargo, tanto o congelamento quanto o. tabelamentoserão inadmissíveis:1. quando se prolongueni indefinidamente;2. quando impuserem ao empresário a venda de seu produtoabaixo do preço ele custo.No primeiro caso, a permanência do controle rígido depreços por período ele tempo excessivamente Longo rompe ocaráter excepcional da medida e subverte 05 princípios dalivre iniciativa e da livre cOllcorrência. Tais princípios,conto se demonstrou, não são absolutos e devem ser sope-sados com outros. De outra parte, não podem ser anuladosna prática. A razoabilidade da demora na volta (/0 regimede mercado será o critério do intérprete.Quanto ao segundo caso, impor ao empresário a venda COI7I

prejuízo configura confisco, constitui privação de proprie-dade sem devido processo legal (art. 50, LEV]. E mais: éda essência do sistema capitalista a obtenção de lucro. Opreço de U111 bem deve cobrir o seu custo de produção, asnecessidades de reinuestimento e a margem de lucro. O queé condenável e enseja a intervenção é o lucro arbitrário[art. L73, § 40

), o lucro abusivo, de cunho espoliativo.t'"

Lembre-se mais uma vez que a existência de um mercado priva-do organizado não significa, naturalmente, que no seu âmbito não

·16. Luís Roberto Barroso, A crise econômica e o direito COIl.íCilllCiollal, RevistaForense 32]/83, 1993.

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possam se desenvolver poderes econômicos, que conduzam a condu-tas an ticoncorrenciuis. A prática episódica do ilícito faz parte da nor-malidade. Para isso existem mecanismos próprios de punição e re-pressão ao abuso do poder econômico e ao aumento arbitrário delucros, em consonância com a previsão genérica do art. 173, § 4" daConstituição.

O último pressuposto constitucional para reconhecer-se comolegítimo o controle prévio de preços diz respeito ao seu conteúdo:jamais se poderá impor ao agente econômico praticar preços que nãosejam capazes (i) de cobrir os seus custos - porque haveria confisco-, (ii) de propiciar um lucro mínimo apto a remunerar o dono docapital - porque seria a negação do regime de livre iniciativa - e (iii)de ensejar os reinvestirnentcs necessários, porque do contrário a ati-vidade se inviabilizaria, Frustrando o princípio da livre empresa.

A matéria já Foi objeto de pronunciamento do Tribunal Consti-tucional italiano, consoante noticiado por Bruno Cavallo e GiampieroDi Plinio:

custo acrescido da margem necessária para reinvestimentos e de umlucro mínimo. E em todos os seus aspectos deverá observar o princí-pio da razoabilidade.

VII. Conclusão

Ao Fim dessa exposição analítica -·que se fez inevitavelmentelonga - é possível cornpendiar a essência das idéias desenvolvidas nasproposições seguintes:

I. A livre iniciativa é princípio fundamental do Estado e é da suaessência que os preços de bens e serviços sejam estabelecidos pelomercado. Como conseqüência, o controle prévio de preços não é ad-mitido no ordenaniento constitucionai brasileiro como lima políticapública regular.

2. O controle prévio de preços somente poderá ser legítimodiante da ocorrência de situação de anormalidade, de grave deteriora-ção das condições de mercado, com ausência de livre concorrência ecolapsc da própria livre iniciativa. Aí a intervenção estatal se legitima-ria pela necessidade de restabelecimento dos próprios fundamentosconstitucionais da ordem econômica.

3. Mesmo quando possa ser excepcionalmente admitido, o con-trole prévio de preços está sujeito aos pressupostos constitucionais esofre três limitações insuperáveis: a) deverá observar o princípio darazoabilídade, em sua tríplice dimensão: adequação lógica, vedaçãodo excesso e proporcional idade em sentido estrito; b) deverá serlimitado no tempo, não podendo prolongar-se indefinidamente; c)ern nenhuma hipótese poderá impor a venda de bens ou serviços porpreço inferior ao preço de custo, acrescido do lucro e do retornomínimo compatível com o reinvestimento.

li Especificamente no que tange ao controle de preços, o Tri-bunal Constitncional italiano teve ocasião de julgar que elese toma excessivo e, por consequinte, ilegitinio, quando pe-naliza os lucros empresariais, importando na imposição depreços não remunerativos ou tecnicamente desproporciono-dos aos custos de produção. A jurisprudência italiana res-saltou, por igual, a ilegitimidade de um sistema permanentede controle de preços, dada a /latI/reza essencialmente con-juntural dessa medida de policia':"

Em conclusão: o controle prévio de preços poderá ser legítimono sistema constitucional brasileiro diante de uma situação absoluta-mente anormal, de deterioração do mercado privado concorrencial, enão por qualquer outro fundamento. Seu propósito será o reestabele-cimento do mercado livre, deverá se tratar de medida temporária eem nenhuma hipótese poderá impor preços inferiores ao preço de

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~7. Bruno Cnvallo e Giarnpiero Di Plínio,lvlalllwle di diriuo pllúb/ico dell'ece-nOl11iCl, Milão. 1983, p. 531, apud Fábio Konder Comparare, Regime co/lslilllcio·nal do couirole de preços nu mercado, Revista de Direito Público 97, 1991, p. 25.

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