THERBORN, Göran - Do Marxismo Ao Pós-marxismo

Embed Size (px)

Citation preview

  • 7/23/2019 THERBORN, Gran - Do Marxismo Ao Ps-marxismo

    1/154

    G

    DO MARXISMO AO PS-MARXISMO

    raduo

    Rodrigo Nobile

  • 7/23/2019 THERBORN, Gran - Do Marxismo Ao Ps-marxismo

    2/154

    SobreDo marxismo ao ps-marxismo?

    Ruy Braga

    Aqueles que conhecem Gran Terborn apenas por Sexo e poder, seu memorvelestudo das transformaes da instituio familiar no sculo XX, possivelmentese surpreendero com Do marxismo ao ps-marxismo?. Afinal, raramente en-contramos intelectuais capazes de passar do alto nvel de especializao exigidopelas estatsticas demogrficas para os desdobramentos contemporneos dopensamento crtico com tanta desenvoltura e competncia quanto esse socilogosueco radicado em Cambridge.

    Na verdade, uma inusual combinao de dons distingue o pensamento deTerborn do de outros tericos sociais: estamos diante de um socilogo voca-cionado para a pesquisa conceitual, mas que no renuncia ao dilogo com osdados empricos. Acompanhando a evoluo de sua obra, percebemos comoesse trao foi se consolidando entre as dcadas de 1970 e 1990.

    Partindo de investigaes marcadamente tericas (tais como a abordagem compa-rativa entre as origens da sociologia e do marxismo ou a anlise do poder estatal

    no feudalismo, no capitalismo e no socialismo) para alcanar projetos escoradosem um amplo domnio de dados empricos (como o estudo do paradoxo docrescimento econmico com desemprego ou a investigao da trajetria dassociedades europeias aps a Segunda Guerra Mundial), o talento de Terbornconverteu-o em um dos mais prestigiados socilogos da atualidade.

    De fato, apenas algum especializado em compreender as mudanas mais impor-tantes que aconteceram nas relaes sociais em tempos modernos poderia exami-nar um sculo de teoria social com tanta destreza. Reunindo neste volume trsestimulantes ensaios sobre a trajetria e o legado atual do marxismo, Terbornesmiuou os recentes desenvolvimentos do pensamento social, at chegar aautores radicais como Antonio Negri, Slavoj iek e Alain Badiou. Alm disso,ao contextualizar historicamente as polmicas em torno da modernidade, daps-modernidade e do ps-marxismo, transformou ridas teses acadmicas emvvidos debates localizados nas principais encruzilhadas polticas do sculo XXI.

    Ou seja, Gran Terborn sabe seduzir o leitor com uma rara combinao de

    intempestiva capacidade intelectual e serena sensibilidade socialista vinculadaa sua nacionalidade. Num ambiente universitrio cada dia mais especializado,este livro relembra-nos uma antiga lio do marxismo clssico: o contato comaudincias extra-acadmicas enriquece o pensamento crtico.

  • 7/23/2019 THERBORN, Gran - Do Marxismo Ao Ps-marxismo

    3/154

    Copyright Gran Terborn, 2008Copyright desta edio Boitempo Editorial, 2012

    raduo do original em ingls From Marxism to Post-Marxism?(Londres, Verso, 2008)

    Coordenao editorial

    Ivana JinkingsEditora-adjuntaBibiana Leme

    raduoRodrigo Nobile

    PreparaoMariana Echalar

    RevisoMnica Santos

    DiagramaoLivia Campos

    CapaAntonio Kehl

    sobre Paul Klee, Paukenspieler [ocador de timbales],guache sobre papel sobre carto, 1940

    ProduoAna Lotufo Valverde

    vedada, nos termos da lei, a reproduo de qualquerparte deste livro sem a expressa autorizao da editora.

    Este livro atende s normas do acordo ortogrf ico em vigor desde janeiro de 2009.

    1a

    edio: abril de 2012BOIEMPO EDIORIAL

    Jinkings Editores Associados Ltda.Rua Pereira Leite, 373

    05442-000 So Paulo SPel./fax: (11) 3875-7250 / 3872-6869

    [email protected]

    CIP-BRASIL. CAALOGAO-NA-FONESINDICAO NACIONAL DOS EDIORES DE LIVROS, RJ

    357d

    Terborn, Gran, 1941- Do marxismo ao ps-marxismo? / Gran Terborn ; traduo Rodrigo Nobile. -So Paulo : Boitempo, 2012.

    raduo de: From marxism to post-marxism? Inclui ndice ISBN 978-85-7559-166-6

    1. Marx, Karl, 1818-1883. 2. Socialismo - Histria - Sc. XX. 3. Filosof ia marxista.

    4. eoria crtica. I. tulo.11-7787. CDD:335.409 CDU: 330.85(09)

    18.11.11 24.11.11 031483

  • 7/23/2019 THERBORN, Gran - Do Marxismo Ao Ps-marxismo

    4/154

    S

    Introduo Nosso tempo e a idade de Marx .................. 7

    1. Rumo ao sculo XXI: os novos parmetros dapoltica global ...............................................................11

    2. O marxismo do sculo XX e a dialtica damodernidade ................................................................61

    3. Depois da dialtica: a teoria social radicalno Norte no alvorecer do sculo XXI ............................ 97

    ndice onomstico......................................................... 149

    Sobre o autor ...............................................................153

  • 7/23/2019 THERBORN, Gran - Do Marxismo Ao Ps-marxismo

    5/154

    NOTA DA EDIO ELETRNICA

    Para aprimorar a experincia da leitura digital, optamos por extrair desta verso ele-trnica as pginas em branco que intercalavam os captulos, ndices etc. na versoimpressa do livro. Por este motivo, possvel que o leitor perceba saltos na numeraodas pginas. O contedo original do livro se mantm integralmente reproduzido.

  • 7/23/2019 THERBORN, Gran - Do Marxismo Ao Ps-marxismo

    6/154

    I

    N M

    Nascido em 1818, Karl Marx tem mais ou menos a mesma idadedas independncias latino-americanas. Os primeiros brados pela independn-cia datam de 1810, apesar de as batalhas anticoloniais decisivas do Mxico e doPeru terem sido travadas nos anos 1820. Na Amrica Latina, os preparativospara a comemorao do bicentenrio em 2010 j comearam . Marx , sem d-vida, mais jovem que os protagonistas das lutas de libertao latino-americanas mais jovem que Simn Bolvar, por exemplo, que foi alado recentemente aguia espiritual da revoluo na Venezuela , j que nasceu nos anos negros dareao europeia, da Santa Aliana da contrarrevoluo. Contudo, as semen-tes da modernidade estavam profundamente enraizadas no solo econmico ecultural da Europa Ocidental, e Karl foi testemunha de seu primeiro floresci-mento. OManifesto Comunistaapareceu muito frente de seu tempo, comsua viso do capitalismo globalizado e das lutas da classe operria durantea Primavera dos Povos, como foram chamadas as revolues de fevereiro amaro de 1848.

    No que se refere a suas contrapartidas literrias, Marx bem mais novoque, digamos, Rumi, Dante, Cervantes ou Shakespeare e, como terico sociale poltico, mais novo que Hobbes e Locke, por exemplo, heris da polticaacadmica de Cambridge na poca em que Marx nasceu, sem falar dos sbiosclssicos, como Plato, Aristteles, Confcio e Mncio.

    Hoje, muito mais difcil determinar a longevidade de um intelectualdo que prever a expectativa de vida do ser humano. O que poderamos dizersobre a capacidade de resistncia de Marx? medida que nos aproximamos dobicentenrio de nascimento do homem, o conjunto do trabalho que leva seunome est morto (desde quando?), morrendo, envelhecendo ou amadurecendo?Sua ressurreio possvel? No h dvida de que seria impossvel defender queo fundador do materialismo histrico seja intemporal ou eternamente jovem.

  • 7/23/2019 THERBORN, Gran - Do Marxismo Ao Ps-marxismo

    7/154

    G 8

    Qualquer resposta apropriada a essa pergunta deve levar em conta o fatode que Marx era um grande articulador e uma personalidade multidimen-sional. Era um intelectual, um f ilsofo social do Iluminismo radical, um

    cientista e historiador social, um estrategista e lder poltico primeiro dadiasprica Liga Comunista e depois da Associao Internacional dos ra-balhadores. Com o passar dos anos, esses personagens mltiplos ganharamsignif icados e implicaes muito diferentes. A poltica inegavelmente apea fundamental do legado marxista, mas ningum nunca af irmou queMarx era um grande lder poltico. Ele serviu como fonte de inspiraopoltica e bssola social para a navegao poltica, mas o poltico Marx estmorto h muito tempo. Poucos ou nenhum cientista social ou historiador

    negariam que a metodologia, a compreenso e o conhecimento social ehistrico avanaram nos ltimos 125 anos, desde que a derradeira doenade Marx ps f im ao trabalho no manuscrito de O capital. Mas o assuntoaqui mais complicado, porque tanto as anlises sociais contemporneasquanto as histricas continuam a se basear nos clssicos no apenas comoinspirao, mas tambm como temas de pesquisa, conceitos, apreciaesinteressantes e ideias intrigantes. mile Durkheim, Alexis de ocqueville eMax Weber so clssicos contemporneos nesse sentido, como so tambm

    Ibn Khaldun e Maquiavel, embora muitos sculos mais velhos. Alm disso,os grandes f ilsofos nunca morrem: eles passam tanto por perodos de hi-bernao quanto de florescimento que duram com frequncia algo entre osciclos de Kondratiev e as eras climticas.

    Este livro concerne mais ao Marx-ismoque a Marx. No entanto, no quediz respeito a Marx em nossa poca, a impresso que tenho que ele est ama-durecendo, como um bom queijo ou um vinho de safra no recomendvel parafestas dionisacas ou pequenos goles na frente de batalha. Ele , de preferncia,

    uma companhia estimulante para o pensamento profundo sobre os signif icadosda modernidade e da emancipao humana.

    Para o bicentenrio vindouro, eu proporia trs brindes. O primeiro, a KarlMarx como proponente da razo emancipadora, de uma atenta inquirio ra-cionalista do mundo, comprometida com a libertao humana da explorao eda opresso. O segundo, abordagem materialista histrica que faz das cinciassociais em outras palavras, a seu entendimento do presente como histria,com particular ateno s condies de vida e trabalho das pessoas comuns e

    materialidade econmica e poltica do poder , uma abordagem que no paraser seguida como um manual, mas como uma ampla diretriz, acompanhadada motivao para lev-la alm. Em terceiro, Karl deveria ser brindado por suaabertura dialtica sua sensibilidade e compreenso das contradies, antinomiase conf litos da vida social.

  • 7/23/2019 THERBORN, Gran - Do Marxismo Ao Ps-marxismo

    8/154

    D - 9

    Creio que o Marx-ismotem um futuro incerto pelas razes que explicareia seguir. Mas o prprio Marx estava preso longa vida de alternncias de pri-maveras, veres, outonos e invernos, vivida por tantos grandes pensadores da

    humanidade, de Confcio e Plato em diante.

    A natureza deste estudo

    Este livro foi planejado como um mapa e uma bssola. uma tentativa deentender as mudanas sociais e intelectuais radicais entre o sculo XX numsentido importante, o sculo do marxismo e o sculo XXI, que comeounos anos 1978-1991, quando a China se voltou para o mercado e o sistema

    sovitico entrou em colapso na Europa e na prpria Unio das RepblicasSocialistas Soviticas (URSS). No tem a pretenso de ser uma histria in-telectual ou uma histria das ideias, e pode ser visto mais como um diriode viajante, como notas despretensiosas colocadas no papel aps uma longae rdua viagem por montes, desf iladeiros, ladeiras e becos do marxismo dosculo XX e incio do sculo XXI.

    Este livro tem dois propsitos. O primeiro situar a prtica poltica e opensamento de esquerda do incio do sculo XXI no marco do sculo anterior.

    O segundo oferecer um panorama sistemtico do pensamento de esquerda noNorte no comeo deste sculo e compar-lo com o marxismo do perodo pre-cedente. Embora me abstenha de defender qualquer caminho ou interpretaoparticular, no quero esconder que este trabalho foi escrito por um acadmicoque no abandonou seu compromisso com a esquerda. De fato, foi esse com-promisso que me motivou a escrever este livro.

    Esses dois objetivos so perseguidos em trs captulos diferentes, de origensdiversas. O primeiro, sobre os espaos de pensamento e as prticas de esquerda,

    foi apresentado inicialmente no Mxico, numa conferncia organizada por se-nadores do Partido da Revoluo Democrtica em abril de 2001, e publicadoposteriormente, com uma reviso ps-11 de Setembro, no nmero 10 da NewLef t Review. Aqui, ele foi signif icativamente reestruturado e reescrito. O segundo uma tentativa de identif icar o legado do marxismo do sculo XX como teoriacrtica e deriva de uma contribuio primeira edio de Te Blackwell Compa-nion to Social Teory(datada de 1996 e editada por Bryan urner, que tambmeditou a segunda, de 2000). Foi reimpresso aqui com pequenas alteraes, so-

    bretudo para evitar repeties no ensaio subsequente. O terceiro captulo, sobreo pensamento radical mais recente, originou-se de minha contribuio ao TeHandbook of Contemporary European Social Teory(editado por Gerard Delantypara a Routledge, em 2006), que posteriormente foi ampliado e adaptado aoingls norte-americano para publicao no nmero 43 da New Lef t Review.

  • 7/23/2019 THERBORN, Gran - Do Marxismo Ao Ps-marxismo

    9/154

    G 10

    Atualizei e, de certo modo, ampliei-o aqui; alguns erros apontados pelos leitoresda New Lef t Reviewe gentilmente encaminhados a mim foram corrigidos ecertos argumentos contextuais foram deslocados para outros captulos.

    Como um acadmico com interesses globais, tento situar a esquerda noespao global. Mas admito de partida que um panorama sistemtico do pensa-mento radical do Sul estava alm de minha competncia lingustica, bem comode minhas limitaes de tempo. Reconheo, porm, o rico legado do requintadopensamento de esquerda no Sul, pois aqui que o futuro provavelmente deverser decidido.

    Cambridge, outubro-novembro de 2007

  • 7/23/2019 THERBORN, Gran - Do Marxismo Ao Ps-marxismo

    10/154

    1. R :

    Apoltica pensada e disputada, polticas so forjadas e implemen-tadas, ideias polticas nascem e morrem todas dentro de um espao global.O espao em si no decide nada: somente os atores e suas aes podem fazerisso. Mas essa dimenso h muito global, em muitos aspectos, mas agoramais densa em sua conectividade mundial que sustenta esses atores com suasforas e debilidades, suas restries e oportunidades. O espao d as coorde-nadas de seus movimentos polticos. Habilidade e responsabilidade na arte dapoltica, sorte e talento e seus opostos so constantes, mas o espao queem grande medida distribuiu as cartas aos atores polticos.

    Esse espao global compreende trs planos principais. O primeiro o socioe-conmico, que estabelece as precondies para a orientao social e econmicada poltica em outras palavras, para a esquerda e para a direita. O segundo o cultural, com seus padres predominantes de crenas e identidades e osprincipais meios de comunicao. O terceiro o geopoltico, que estabeleceos parmetros de poder nos confrontos entre e contra os Estados. Este captuloprocura mapear o espao social da poltica de esquerda e direita desde os anos1960 primeira dcada do sculo XXI. No se trata de uma histria polticanem de um programa estratgico, embora se d alguma relevncia a ambos.rata-se de uma tentativa de identif icar as foras e as debilidades da esquerda eda direita, em sentido amplo e imparcial ambas no passado recente, aindainterferindo no presente e dentro das correntes emergentes.

    O espao geopoltico completo ser evocado apenas naquilo em que afetarmais diretamente a poltica de esquerda e direita. No que concerne s concep-es destacadas, no entanto, uns poucos pontos de esclarecimento podem sernecessrios. bvio que a distino analtica entre esses dois elementos noimplica que sejam literalmente distintos. No mundo concreto, os espaossocial e geopoltico so conjuntos. odavia, importante no confundi-los.

  • 7/23/2019 THERBORN, Gran - Do Marxismo Ao Ps-marxismo

    11/154

    G 12

    A Guerra Fria, por exemplo, teve uma importante dimenso de esquerda edireita a da competio entre as modernidades socialista e capitalista. Masteve tambm uma dinmica geopoltica especf ica, que jogou as duas super-

    potncias globais uma contra a outra e arrastou, em cada um dos lados, aliados,clientes e amigos. Qual dessas duas dimenses foi a mais importante ainda uma questo controversa.

    Os recursos, as oportunidades e as opes dos atores interterritoriaisno plano geopoltico so gerados por uma variedade de fatores inclinaomilitar, peso demogrf ico, poder econmico, localizao geogrf ica, entreoutros. Para o entendimento da poltica de esquerda e direita que nos con-cerne, dois outros aspectos so particularmente signif icativos: a distribuio

    do poder geopoltico no mundo e o carter social dos atores interterritoriaisou transterritoriais.

    Em relao ao primeiro, devemos observar que a distribuio do poder mu-dou dramaticamente nos ltimos quarenta anos e no apenas em uma direo.O perodo comea com o processo de gestao da primeira derrota militar dosEstados Unidos em sua histria, no Vietn, e com a ascenso da Unio Sovi-tica a uma paridade militar muito prxima. Posteriormente, houve o colapsoda Unio Sovitica e os Estados Unidos proclamaram vitria na Guerra Fria.

    Apesar de, em 1956, o f iasco da invaso franco-inglesa-israelense a Suez terassinalado o f im do poder militar europeu em escala mundial, a Europa comoUnio Europeia reapareceu na forma de uma grande potncia econmica eum laboratrio continental para uma complexa relao entre Estados. No inciodesse perodo, o Japo era uma estrela econmica ascendente; hoje, est perdendoo vigor econmico e envelhecendo rapidamente. Em contraste, o crescimentoespetacular da China por dcadas a f io tem dado musculatura econmica paraseu grande peso demogrf ico.

    O carter social dos atores interterritoriais pode ser lido no apenas peloprisma dos regimes de Estado, mas tambm pela orientao e pelo peso de forasno estatais. Dois novos tipos de atores internacionais com signif icados sociaisdivergentes tornaram-se cada vez mais importantes durante esse perodo1. Oprimeiro so as organizaes interestatais transnacionais, como o Banco Mundial,o Fundo Monetrio Internacional (FMI) e a Organizao Mundial do Comrcio(OMC), que serviram conjuntamente como a principal ponta de lana neoliberalda direita (embora houvesse algumas vozes dissonantes no Banco Mundial).

    O segundo o conjunto menos denso de redes transnacionais, movimentos elobbiesa favor de questes globais que surgiram como atores progressistas muito

    1 claro que as empresas multinacionais so um componente do capitalismo com a mesmaidade.

  • 7/23/2019 THERBORN, Gran - Do Marxismo Ao Ps-marxismo

    12/154

    D - 13

    signif icativos na arena mundial de incio por suas ligaes com os mecanismosdas Naes Unidas, como as convenes de direitos humanos e confernciasinternacionais importantes sobre as mulheres e a populao e, mais recentemente,

    por sua mobilizao contra a liberalizao comercial.Resumindo, embora os Estados Unidos tenham se tornado a nica super-

    potncia, o espao geopoltico no se tornou unipolar; ao contrrio, ele comeaa assumir novas formas de complexidade.

    Estados, mercados e formaes sociais

    O espao social da poltica moderna tem ao menos trs parmetros cruciais:

    Estados, mercados e formaes sociais2. Os dois primeiros so complexosinstitucionais bem conhecidos e altamente perceptveis. O terceiro pode exi-gir explicao. Diz respeito constituio dos atores sociais um processoinf luenciado, claro, por Estados e mercados, mas com fora prpria, deri-vada de formas de convivncia e domiclio, religies e instituies familiares.Envolve no apenas uma estrutura de classe, como, mais fundamentalmente,uma variedade de causas sem classe. Pode ser til neste ponto evocar umadiferenciao mais abstrata e analtica da formao social que as diferenciaes

    convencionais de fora ou tamanho de classe ou identidades categoriais, comoclasse, gnero e etnia. As formaes que quero destacar so as socioculturais,com nfase mais nas orientaes culturais amplas e socialmente determinadasdo que apenas nas categorias estruturais. Sugiro aqui como dimenses-chavea irreverncia-deferncia e o coletivismo-individualismo (esquematizados naFigura 1.1).

    Irreverncia e deferncia, nesse caso, referem-se a orientaes na dire-o das desigualdades de poder, riqueza e statusexistentes; j o coletivismo

    e o individualismo dizem respeito s propenses altas ou baixas paraidentif icao e organizao coletivas. A esquerda clssica foi guiada pelocoletivismo irreverente da classe trabalhadora socialista e pelos movimentosanti-imperialistas, enquanto outras correntes radicais contemporneas

    2 O prprio capitalismo um sistema de mercados, formaes sociais e (um ou mais) Estados.Observar as caractersticas e, sobretudo, as inter-relaes dessas trs dimenses um modo em minha avaliao, frutfero de dissecar as relaes entre o poder e suas dinmicas no

    capitalismo. Essas variveis tm a vantagem de se desdobrar em panoramas emprico--analticos, sem pressupor ou requerer julgamentos sobre a atual extenso da ausnciade sistema [systemness] capitalista dos Estados e formaes sociais. Como a previsvelpoltica atual dif icilmente pode ser sintetizada em termos de socialismo versuscapitalismo,esse aparato conceitual mais amplo, flexvel, menos focado no capital/trabalho podeter algum mrito.

  • 7/23/2019 THERBORN, Gran - Do Marxismo Ao Ps-marxismo

    13/154

    G 14

    as dos direitos humanos e das mulheres, por exemplo tm carter maisindividualista. A direita tradicional foi institucional ou clientelisticamentecoletivista; o novo e o velho liberalismos tendem para o individualismodeferente acatando os supostamente de maior status, os grandes em-

    preendedores, os ricos, os administradores, os especialistas (em particularos economistas liberais) e, ao menos at recentemente, os chefes de fam-lia do sexo masculino, governantes imperiais e representantes de impriosHerrenvolk[de raas superiores].

    nesse tringulo formado por Estados, mercados e formaes sociais queas ideias polticas ganham ascenso e ocorre a ao poltica. As dinmicas des-ses espaos derivam, em primeiro lugar, dos resultados das disputas polticasanteriores; em segundo lugar, dos aportes de novos conhecimentos e tecnolo-

    gias; e em terceiro lugar, dos processos do sistema econmico capitalismo e,anteriormente, do socialismo que existe hoje. A esquematizao do modelocompleto dada na Figura 1.2.

    F E, ,

    A maioria das discusses atuais sobre o Estado, seja de esquerda ou de direita,concentram-se na questo do Estado-nao como confronto com a globali-

    zao ou nas privatizaes como um desaf io a suas instituies. Esse enfoquetende a ignorar a realidade da formulao de polticas do Estado contempor-neo e, mais do que isso, as diferentes formas estruturais de desenvolvimentodo Estado. No primeiro caso, a questo : a capacidade do Estado de perseguiros objetivos das polticas diminuiu realmente nas ltimas quatro dcadas?

    Figura 1.1. Dimenses cruciais da formao social dos atores

    Coletivismo

    Irreverncia

    Individualismo

    Deferncia

  • 7/23/2019 THERBORN, Gran - Do Marxismo Ao Ps-marxismo

    14/154

    D - 15

    A resposta bvia para as democracias desenvolvidas , de modo geral, negativa.Poderamos dizer, ao contrrio, que os anos recentes tm assistido a um sucessoimpressionante das polticas de Estado: a diminuio mundial da inf lao naverdade, sua supresso virtual um dos maiores exemplos disso; o desenvol-vimento de poderosas organizaes interestatais regionais a Unio Europeia,a Associao de Naes do Sudeste Asitico (em ingls, Asean), o Mercosul, oratado de Livre Comrcio da Amrica do Norte (em ingls, Nafta) outro.Na verdade, a persistncia do desemprego de massa na Unio Europeia umfracasso patente dessas polticas, mas, de modo geral, os desempregados europeusno foram impelidos para a pobreza ao estilo estadunidense, o que deve contarao menos como um modesto sucesso.

    As orientaes e as prioridades das polticas mudaram; podem ser ne-cessrias novas habilidades e mais flexibilidade; como sempre, um nmeroconsidervel de polticas no conseguiu atingir suas metas. Mas isso no nenhuma novidade. Como sempre, os Estados nacionais, as regies e as cidadespostergaro sua ef icincia, mas no vejo nenhuma tendncia diminuiogeneralizada da capacidade de formular polticas. Provavelmente verdade quecertas polticas de esquerda tm se tornado mais difceis de implementar, masisso no deriva tanto dos fracassos no nvel do Estado quanto da orientao direita das coordenadas polticas.

    Figura 1.2. Espao social das polticas e suas dinmicas

    Coordenadas sociais da poltica

    Estados

    Ideiaspolticas, ao

    Mercados Formaes sociais

    Dinmicas do espao socialResultados polticos

    Conhecimento e tecnologiaDinmicas econmicas sistmicas

  • 7/23/2019 THERBORN, Gran - Do Marxismo Ao Ps-marxismo

    15/154

    G 16

    Formas de Estado bem-sucedidas

    O problema mais grave do discurso convencional da globalizao, no

    entanto, sua cegueira no que diz respeito ao desenvolvimento de formasdiferentes de Estado nos ltimos quarenta anos. Surgiram dois modelos deEstado nos anos 1960: o de bem-estar social, baseado em direitos sociais ge-nerosos e f inanciados pelo poder pblico, e o de desenvolvimento voltadopara o exterior, no Leste Asitico. Desde ento, ambos foram consolidadose aplicados com xito. O principal territrio do Estado de bem-estar socialfoi a Europa Ocidental, onde teve um grande impacto em todos os pases daantiga OCDE*. Embora suas razes europeias sejam de muito antes, foi nosanos aps 1960 que o Estado de bem-estar social comeou a decolar derepente, em mais ou menos uma dcada, os gastos e as receitas do Estadocresceram mais do que durante toda a sua histria. Desconsideradas pelateoria convencional da globalizao, as ltimas quatro dcadas do sculo XXviram os Estados desenvolvidos crescerem a taxas muito mais altas do que ocomrcio internacional. Nos pases da antiga OCDE como um todo, os gastospblicos cresceram treze pontos percentuais em relao ao Produto InternoBruto (PIB) entre 1960 e 1999, enquanto as exportaes cresceram 11%3.Nos quinze pases membros da Unio Europeia, gastos pblicos cresceram18-19 pontos percentuais e as exportaes, 14%4.

    Apesar de muitos protestos em contrrio tanto da esquerda quanto dadireita , o Estado de bem-estar social ainda persiste onde quer que tenhasido implantado. Quer seja medido pelos gastos, quer pelas receitas, o setorpblico nos pases mais ricos do mundo est ou se f ixou em seu nvel hist-rico mais elevado. Nos pases da OCDE da Europa Ocidental, Amrica doNorte, Japo e Oceania, a mdia nacional do total de gastos governamentaisem 1960 (no ponderado pela populao e excludos Islndia e Luxembur-go) era de 24,7% do PIB. Em 2005, chegou a 44%. Nos pases do G-7**,os gastos pblicos cresceram de 28% do PIB total em 1960 para 44% em2005. Na verdade, a participao dos gastos em ambos os casos foi cerca de

    * Organizao para a Cooperao e Desenvolvimento Econmico, fundada em 1961 e integradapor trinta Estados em 2010. (N. .)

    3 Isto , antes da recente incluso de Mxico, Coreia do Sul e Europa Central Oriental ps-

    -comunista.4 Dados de 1960 da OECD Historical Statistics 1960-1997(Paris, OECD, 1999), tabelas 6.5 e

    6.12; dados de 1999 da OECD Economic Outlook (Paris, OECD, 2000), tabelas 28 e 29 doanexo.

    ** Grupo dos Sete, fundado em 1976 e integrado por Alemanha, Canad, Estados Unidos,Frana, Itlia, Japo e Reino Unido. (N. .)

  • 7/23/2019 THERBORN, Gran - Do Marxismo Ao Ps-marxismo

    16/154

    D - 17

    dois pontos percentuais mais alta nos anos de recesso do incio da dcadade 1990 do que nos anos de crescimento do f im da dcada, mas isso deveriaser interpretado como uma ampla oscilao conjuntural. Em relao aos

    impostos, em 2006 a OCDE bateu seu prprio recorde histrico de 2000 eregistrou sua maior receita: cerca de 37% do PIB foi para os cofres pblicos.Isso no signif ica que no haja necessidade e demanda cada vez maiores poreducao, sade, servios sociais e aposentadoria, que exigiro um maiorcrescimento do Estado de bem-estar social, um crescimento que hoje dif icultado pelas foras de direita.

    A segunda forma de Estado que tambm surgiu nos anos 1960 (seguindoa ascenso pr-guerra do Japo) o modelo do Estado voltado para o exterior,

    predominante no Leste Asitico: voltado para as exportaes para o mercadomundial, sobretudo para a indstria de manufatura pesada, caracteriza-se pelocontrole e pelo planejamento estatal dos bancos e do crdito e, em algunscasos, como o da Coreia , pela propriedade total do Estado. Introduzido peloJapo, o Estado de desenvolvimento logo se tornou um modelo regional comdiferentes combinaes entre interveno estatal e iniciativa capitalista ,adotado por Coreia do Sul (talvez o arqutipo do modelo), aiwan, Singa-pura e Hong Kong, seguidos por ailndia, Malsia, Indonsia e a menos

    bem-sucedida Filipinas (esta ltima , cultural e socialmente, uma espcie deAmrica Latina do sudeste da sia, onde ainda h uma poderosa oligarquialatifundiria, por exemplo). Esses so os exemplos que seguiriam a China, apartir do f im dos anos 1970, e o Vietn, uma dcada depois. H variaesconsiderveis entre esses Estados e suas diferentes formas de capitalismo, mastodos emergiram de um contexto regional comum: ser uma das fronteiras daGuerra Fria e receber dos Estados Unidos uma ajuda econmica (e militar)substancial. odos tm muitas caractersticas em comum: o Japo, como

    modelo regional de desenvolvimento; uma oligarquia agrria ausente ou in-terrompida; taxas mnimas de analfabetismo; um forte estrato empreendedor;e, com frequncia, uma dispora chinesa. Alm disso, a maioria teve regimespolticos similares: autoritrios e engajados no desenvolvimento econmiconacional por intermdio da competitividade internacional e com vontade deimplantar iniciativas estatais decisivas.

    Esse legado dos anos 1960 uma das principais caractersticas do mundoatual. A China, o maior pas do planeta, tornou-se o Estado de desenvolvi-

    mento mais bem-sucedido da histria, com uma taxa de crescimentoper capitade quase 10% ao ano nos ltimos vinte anos. A crise dos anos 1997 e 1998atingiu fortemente a Coreia e o Sudeste Asitico, mas, com exceo talvezda catica Indonsia, a dcada no foi perdida. Ao contrrio, a maioria dospases sobretudo a Coreia reagiu com vigor.

  • 7/23/2019 THERBORN, Gran - Do Marxismo Ao Ps-marxismo

    17/154

    G 18

    Os Estados de bem-estar social da Europa Ocidental e de desenvolvi-mento do Leste Asitico esto enraizados em padres de sociedades muitodiferentes e suas prioridades polticas so bastante distintas. No entanto,

    esses Estados e economias tm mostrado duas caractersticas em comum.Em primeiro lugar, ambos so voltados para o exterior e dependem dasexportaes para o mercado mundial. Ao contrrio do que diz a opiniogeral, tem havido uma correlao positiva signif icativa e consistente entrea dependncia do mercado mundial e a liberalidade dos direitos sociaisnos pases ricos da OCDE: quanto mais dependente de exportaes umpas, maior sua generosidade social5. Em segundo lugar, apesar de suacompetitividade e receptividade ao novo, nem o Estado de bem-estar social

    nem o de desenvolvimento esto abertos aos ventos do mercado mundial.Os dois modelos estabeleceram, e continuam mantendo, sistemas de pro-teo interna. Entre os Estados de bem-estar social, isso toma a forma deseguridade social e redistribuio de renda. Por exemplo, no incio dos anos1990, quando a Finlndia foi atingida pela recesso, o PIB caiu 10% e odesemprego subiu para aproximadamente 20%, o Estado interveio paraevitar o aumento da pobreza e, com isso, preservou uma das distribuies derenda mais igualitrias do mundo. No momento em que escrevo, a economia

    f inlandesa est indo muito bem e a Nokia lder no segmento de telefonescelulares. Para os padres europeus, o Estado de bem-estar social canadenseno muito desenvolvido; todavia, apesar dos laos estreitos com seu vizi-nho colossal reforados pelo Nafta , o Canad foi capaz de manter umadistribuio de renda mais igualitria nos ltimos vinte anos, enquanto adesigualdade nos Estados Unidos cresceu severamente.

    Os Estados de desenvolvimento asiticos tm sido atentos proteo culturale poltica contra influncias externas indesejveis, adotando com frequncia uma

    posio nacionalista e autoritria. O Japo e a Coreia do Sul travaram batalhasdiscretas, mas constantes e ef icazes, contra os investimentos externos. O FMI e,por trs dele, a tentativa dos Estados Unidos de usar a crise do Sudeste Asiticoem 1997 e 1998 para for-los a abrir as economias da regio tiveram um xitomodesto; a Malsia at conseguiu se preservar, impondo uma srie de controlessobre fluxos de capitais transfronteirios.

    5 Em meados dos anos 1990, o coef iciente de correlao de Pearson entre exportaes e gastossociais, como a porcentagem do PIB nos pases da antiga OCDE, era de 0,26. Provavelmen-te, no h relao direta de causa e efeito aqui. Ou antes, a relao deveria ser interpretadacomo um sinal de que a competitividade internacional contribui pelo crescimento para aparticipao de foras progressistas e no incompatvel com as ltimas polticas de expansodos direitos sociais.

  • 7/23/2019 THERBORN, Gran - Do Marxismo Ao Ps-marxismo

    18/154

    D - 19

    Os fracassos do Estado

    Por outro lado, os Estados voltados para o mercado interno e pouco comrcio

    passam por uma crise letal. Os modelos comunistas protegidos implodiram, coma exceo da Coreia do Norte, que se mantm a duras penas. A China, o Vietn,o Camboja e o Laos enveredaram por um caminho novo: a China tem agora umamassa de investimentos diretos proporcionalmente maior que a Amrica Latina.Cuba conseguiu sobreviver, apesar do bloqueio dos Estados Unidos mesmoaps o desaparecimento da Unio Sovitica , em grande medida por ter setransformado em um polo turstico, com a ajuda de capital italiano, canadense eespanhol (embora esse capital esteja sendo ultrapassado pelo dinheiro pago pelaVenezuela em troca da assistncia mdica e educacional fornecida por Cuba). Nafrica, os Estados ps-coloniais com ambies nacional-socialistas fracassaramestrondosamente, graas falta de competncia administrativa e econmica e deuma cultura poltica nacional adequada. O sul da sia teve condies iniciaismelhores, com uma elite administrativa qualif icada, uma burguesia signif ica-tiva e uma cultura democrtica. Mas at agora o resultado foi decepcionante:o sistema educacional excludente e o crescimento econmico baixo, o queleva ao aumento do nmero de pessoas que vivem na pobreza. Mesmo apsos recentes movimentos da ndia na direo do crescimento econmico, o pasainda o maior lar de desfavorecidos do planeta. Cerca de 40% dos pobres domundo (pessoas que vivem com menos de dois dlares por dia) concentram-seno sul da sia, ou seja, entre 75% e 80% da populao regional. A virada rumo industrializao substitutiva de importaes na Amrica Latina nos anos 1950no foi to malsucedida, em especial no Brasil. Mas nos anos 1970 e 1980 f icouclaro que esse modelo havia chegado a um impasse. Nessa poca, toda a regiopassava por uma profunda crise econmica e poltica. Estados tradicionalistas,voltados para o mercado interno, como a Espanha de Franco, tambm foramobrigados a mudar: por volta de 1960, a Espanha tomou um novo rumo,concentrando-se no turismo de massa e nos investimentos externos.

    A ampla crise que os Estados voltados para o mercado interno enfrentam emsuas vrias facetas em contraste latente com o sucesso das diferentes verses dasformas de Estados voltados para o mercado externo deve ter uma explicaogeral. alvez essa explicao possa ser encontrada nas linhas abaixo. O perodoposterior Segunda Guerra Mundial assistiu a um novo crescimento no comrciointernacional embora s no incio dos anos 1970 tenha alcanado a mesmaproporo de comrcio mundial de 1913. Entretanto, mais importante que aescala foi a mudana de natureza. Como f icou claro no f im do sculo XX, ocomrcio internacional cada vez menos uma troca de matrias--primas porcommoditiesindustriais predominante na poca em que Amrica Latina seorientava para as exportaes e cada vez mais uma competio entre indstrias.

  • 7/23/2019 THERBORN, Gran - Do Marxismo Ao Ps-marxismo

    19/154

    G 20

    Um efeito desse crescimento do comrcio entre indstrias foi o grande saltotecnolgico; os pases que permaneceram fora do mercado mundial tenderama perder essa onda de desenvolvimento. No comeo dos anos 1980, quando a

    Unio Sovitica f inalmente conseguiu superar a produo de ao dos EstadosUnidos, o ao tornou-se mais uma expresso de obsolescncia econmica doque um smbolo de poder industrial. Entre o entusiasmo do lanamento doSputnik, em 1957, e a estagnao pr-crise dos anos 1980, a Unio Sovitica que sempre se inspirou no modelo de metas do Ocidente, sobretudo o dosEstados Unidos viu sua dinmica tecnolgica decair. A virada ps-industriale as novas possibilidades da eletrnica no Ocidente foram descobertas muitotarde pelos planejadores soviticos e da Europa Central.

    Sendo assim, os Estados ainda podem se impor e implantar polticas prpriasnas condies atuais de globalizao, desde que sua economia possa competir nomercado mundial. Para a esquerda clssica, isso um novo desaf io, mas o movi-mento dos trabalhadores escandinavos cresceu com ele, em sociedades pequenas,pouco desenvolvidas, que voltaram suas atenes para a produo de produtosde exportao competitivos por trabalhadores relativamente competitivos.

    Empresas e EstadosA importncia econmica relativa das grandes empresas tem crescido ao

    longo da histria criando uma concentrao de capital, justamente comoMarx previu. Em 1905, as cinquenta maiores empresas dos Estados Unidos, porcapitalizao nominal, tinham bens equivalentes a 16% do Produto NacionalBruto (PNB). Em 1999, os bens das cinquenta maiores empresas industriaisdos Estados Unidos atingiram 37% do PNB. No Reino Unido, o crescimentodas dez maiores companhias passou de 5% do PNB em 1905 para 41% em

    1999 s a Vodafone, a maior operadora de telefonia celular do mundo, detinha18% do PNB6. Comparado ao crescimento do Estado, porm, o crescimentodas empresas no to impressionante. Surpreendentemente talvez, emboraos nmeros no sejam totalmente comparveis, h indcios de que o Estadonorte-americano cresceu de fato mais rapidamente que as empresas industriais

    6 O balano de capital histrico em princpio, o balano dos ativos contra crditos e dbi-

    tos pode no ser o mesmo da contabilidade atual dos bens empresariais, mas essa mudanacorresponde ao desenvolvimento atual das empresas. Clculos de Peter L. Payne (Te Emer-gence of the Large Scale Company in Great Britain,Economic History Review, n. 20, 1967,p. 540-1) e contas nacionais histricas da Gr-Bretanha e dos Estados Unidos, comparadoscom os dados atuais da revista Fortune(31 jul. 2000) e do informe do Banco Mundial (WorldDevelopment Report, 2000-2001).

  • 7/23/2019 THERBORN, Gran - Do Marxismo Ao Ps-marxismo

    20/154

    D - 21

    ao longo do sculo XX (mas o contrrio verdadeiro para o Reino Unido). Ogasto pblico nos Estados Unidos mais do que quadruplicou entre 1913 e 1998,indo de 7,5% para 33% do PIB; no Reino Unido, passou de 13% para 40%7.

    Na Sucia, o Estado tambm cresceu mais do que as empresas. Os ativos dastrs maiores empresas industriais do pas somavam 11-12% do PNB em 1913e 1929, caram para 5% em 1948 e atingiram 28-29% em 1999. Os impostos,por outro lado, passaram de 8% do PNB em 1913 para 52% em 1997.

    Em perodos mais recentes, a relao de crescimento entre as empresas trans-nacionais e as economias nacionais foi surpreendentemente atenuada. A receitadas dez maiores empresas do mundo uma medida nem sempre disponvel paracomparaes de longo prazo diminuiu em relao maior economia nacional.

    Em 1980, a receita com vendas somava 21% do PIB dos Estados Unidos e em2006 apenas 17%; em 1980, essa receita era trs vezes maior que o PIB do Mxicoe, em 2006, duas vezes maior; nessa poca, a populao mexicana era de cercade 105 milhes de pessoas. Apesar disso, estamos diante de grandes foras priva-das. Em 1999, a receita total das quinhentas maiores empresas somava 43% doproduto mundial. Somente seus lucros anuais eram 29% maior que o PNBdo Mxico, cuja populao em 1999 era de cerca de 97 milhes de pessoas8.Mais do que a receita, foi a riqueza das empresas que mais cresceu em relao

    aos Estados e s economias nacionais. Ao contrrio da crena geral, a receitadas empresas quase no conseguiu acompanhar o crescimento das economiascentrais nas duas dcadas passadas9.

    A dinmica de mercado

    Mais do que as empresas, o que vem crescendo so os mercados osmercados transnacionais. O f inanciamento da guerra dos Estados Unidos no

    Vietn foi provavelmente um dos pontos de virada na histria econmica dosculo XX: ajudou a disseminar o novo mercado de cmbio transnacional, comseus gigantescos f luxos de capital, e as aquisies dos Estados Unidos para aguerra tiveram um papel crucial no desenvolvimento do Leste Asitico. Em

    7 Nicholas Crafts, Globalization and Growth in the wentieth Century, em FMI, WorldEconomic Outlook, Suporting Studies (Washington, DC, FMI, 2001), p. 35.

    8 Os dados relativos s empresas so da revista Fortune(24 jul. 2000). Os dados do PIB so do

    World Development Report, 2000-2001.9 A contabilizao dos ativos das empresas mais estvel que a capitalizao de mercado, isto ,

    o valor de mercado das aes da empresa em determinado dia. Em 24 de abril de 2000, logono incio da queda das bolsas mundiais, o valor de mercado da Microsoft era quase 7% doPIB dos Estados Unidos em 1999 e o da General Eletric era quase 6%; ver Financial imes,4 maio 2000.

  • 7/23/2019 THERBORN, Gran - Do Marxismo Ao Ps-marxismo

    21/154

    G 22

    escala mundial, a rotatividade do mercado de aes mundial subiu de 28% doproduto mundial em 1990 para 81% em 1998. A capitalizao do mercado deaes dos Estados Unidos aumentou de cerca de 40% do PIB em 1980 para

    53% em 1990 e 150% no incio de 2001, aps um pico de cerca de 180%10. Osf luxos de capitais transnacionais tm se acelerado enormemente, no apenas ou talvez nem mesmo sobretudo graas s inovaes tecnolgicas na reada comunicao, mas por causa das mudanas institucionais. Dois exemplosme vm mente. O primeiro o do mercado de cmbio transnacional. Aancoragem do sistema de cmbio no ps-guerra, def inida em Bretton Woods,entrou em colapso no comeo dos anos 1970. O comrcio de cmbio transna-cional tornou-se um enorme cassino global, chegando a 12 vezes do total de

    exportaes globais em 1979 e a 61 vezes das exportaes globais em 1989, edepois se nivelando nesse patamar. Em abril de 1998, a rotatividade diria docomrcio de moeda estrangeira no mundo era 3,4 vezes maior que a RendaNacional Bruta (RNB) anual do Mxico. No entanto, a partir do outono de1998, com a introduo do euro e os danos causados pela crise asitica, entreoutros fatores, as transaes cambiais diminuram signif icativamente. Em abrilde 2007, a rotatividade diria do mercado de cmbio foi de US$ 3,2 trilhes,mais do que o PIB da terceira maior economia do mundo, a Alemanha, que

    foi de US$ 2,9 trilhes em 2006.A segunda mudana foi o desenvolvimento de um novo objeto importante

    para o comrcio. Essa inveno que data dos anos 1970, mas s explodiunos anos 1980 foram os derivativos: a aposta no futuro. Entre 1986 e 1996,o comrcio de derivativos cresceu 56 vezes, atingindo um volume de cerca deUS$ 34 bilhes. Em 1995, o montante estimado de apostas no comrcio dederivativos quase igualou o produto mundial; a partir de 1996, elas o supera-ram. Os fluxos transfronteirios de ttulos e aes cresceram nos anos 1980 e

    atingiram seu auge em 1998. As transaes transnacionais de ttulos e aesrealizadas por residentes dos Estados Unidos passaram de 6,9% do PIB entre1975 e 1979 para 221,8% em 1998 mais de duas vezes o PIB do pas , antesde cair para 189% em 199911.

    H 150 anos, Marx teve um vislumbre da tendncia histrica do desen-volvimento as foras produtivas adquiririam um carter mais social e, assim,

    10 Banco Mundial, World Development Indicators (Washington, DC, Banco Mundial, 2005),tabela 5.4.

    11 Banco Mundial, World Development Indicators(Washington, DC, Banco Mundial, 2000), tabela5.2; Dagens Nyheter, 12 abr. 2001, C3; David Held et al., Global ransformations (Standford,CA, Standford University Press, 1999), p. 208-9; Bank of International Settlements, 70th

    Annual Report(Basileia, Bank for International Settlements, 2000).

  • 7/23/2019 THERBORN, Gran - Do Marxismo Ao Ps-marxismo

    22/154

    D - 23

    entrariam cada vez mais em contradio com a propriedade privada dos meiosde produo. Daquela poca at mais ou menos a dcada de 1980, houve de fatouma tendncia de longo prazo para a socializao e/ou regulao pblica dos

    meios de produo, transporte (ferrovias, companhias areas, metr) e comunica-o (telefone e, posteriormente, radiodifuso). Essa foi uma dinmica importanteem terras capitalistas desde a Primeira Guerra Mundial at o incio da GuerraFria. ornou-se mais slida com a fora da industrializao sovitica e, apsa Segunda Guerra Mundial, com todo o bloco comunista. Uma segunda ondade socializao veio com o socialismo ps-colonial (Revoluo Cubana, UnidadePopular Chilena) e as propostas de socializao dos governos francs e sueco,entre meados dos anos 1970 e comeo dos anos 1980.

    Posteriormente, a tendncia retrocedeu, com fracassos e derrotas desde aSucia at o Chile, desde a Frana at a anznia e a ndia, e foi acompanha-da de uma crise gradual nos pases comunistas. Na Gr-Bretanha, a onda deprivatizaes foi iniciada por Margaret Tatcher nesse aspecto, mais radicalque sua contrapartida chilena, Augusto Pinochet. Desde ento, os programasde privatizao foram adotados no apenas nos pases da Europa Oriental ps--comunista, mas tambm nos maiores pases ainda comunistas, como China eVietn, e por virtualmente todas as sociais-democracias sem falar da direita.

    ais programas se tornaram uma condio importante, algumas vezes decisiva,para obter emprstimos do FMI. Como essa virada histrica da socializao pa-ra a privatizao pode ser explicada? O que houve foi uma confluncia de trsprocessos sistmicos, sob as condies favorveis ou desfavorveis, conformeo ponto de vista de eventos contingentes.

    1. O programa de desenvolvimento dos Estados comunistas, que dependiada mobilizao de recursos naturais e humanos, com auxlio de tecnologia pr-pria ou emprestada, estava comeando a se esgotar. Isso era visvel sobretudo na

    Europa Centro-Oriental, em meados da dcada de 1960, e na Unio Sovitica,cerca de uma dcada depois. Fora do mbito da corrida armamentista com osEstados Unidos, a questo da gerao de novas tecnologias e maior produtividadenunca foi resolvida. A invaso sovitica na checoslovquia em 1968 desesti-mulou novas iniciativas comunistas e inaugurou um perodo de estagnao, queaperestroikano conseguiu interromper.

    2. A competncia e a integridade dos Estados ps-coloniais mostraram-seinadequadas s necessidades do planejamento social e do desenvolvimento

    econmico patrocinado pelo Estado.3. Nos pases capitalistas centrais, novas fontes de gerao de capital etecnologias de gerenciamento desaf iaram a capacidade do Estado. Compro-missos sociais de vulto tambm tornaram cada vez mais difcil, at mesmopara os Estados ricos, atender s novas demandas por investimento em in-

  • 7/23/2019 THERBORN, Gran - Do Marxismo Ao Ps-marxismo

    23/154

    G 24

    fraestrutura, enquanto a exploso dos mercados f inanceiros gerava ainda maiscapital privado.

    Essas trs tendncias sistmicas convergiram nos anos 1980. Ento a

    privatizao ganhou conf iana poltica atravs da emergncia de duas ten-dncias particularmente cruis e inescrupulosas que surgiram com a crise degerenciamento da esquerda: o pinochetismo no Chile e o thatcherismo naInglaterra. Em nenhum desses casos a privatizao era uma questo em si alm de reverter as socializaes de Allende , mas algo que surgiu em se-guida, de dentro do crculo de apoiadores desses lderes. Uma vez colocadaem marcha, porm, foi vigorosamente impulsionada por investidores e con-sultores de negcios, tornou-se condio para os emprstimos do FMI e do

    Banco Mundial e foi considerada uma pea ideolgica fundamental pela mdiade direita. Como observamos, h certos aspectos gerenciais e tecnolgicosnessa mudana, principalmente nas telecomunicaes. A terceirizao do setorprivado um desenvolvimento paralelo. Mas, acima de tudo, o impulso paraa privatizao ganhou fora com o novo capital privado, fortemente amparadopelo modismo ideolgico.

    Menos classe, mais irrevernciaO emprego industrial atingiu seu pice no capitalismo central na segunda

    metade dos anos 1960; o movimento da classe trabalhadora industrial atingiuseu auge em termos de tamanho e influncia nos 1970; e um processo dram-tico de desindustrializao ocorreu nos anos 198012. Enquanto a industriali-zao e a formao da classe trabalhadora industrial continuaram no Leste eno Sudeste Asitico, mais intensamente na Coreia do Sul onde o empregonas manufaturas subiu rapidamente de 1,5% em 1960 para 22% em 1980

    e atingiu o pico de 27% de emprego total em 1990 , a desindustrializaotambm atingiu os antigos centros industriais do erceiro Mundo, comoMumbai. O emprego industrial tambm caiu, relativamente, a partir de 1980,em todos os pases mais desenvolvidos da Amrica Latina (com exceo doMxico, com suas maquiladorasnorte-americanas)13. Entre 1965 e 1990, oemprego industrial em relao ao emprego mundial caiu de 19% para 17%e, entre os pases industriais, de 37% para 26%14. Uma srie temporal de1996 a 2006 da Organizao Internacional do rabalho (OI) indicou certa

    12 Ver meu livro European Modernity and Beyond(Londres, Sage Publications, 1995), p. 69 e seg.13 Cepal, Panorama social de Amrica Latina, 1997(Santiago de Chile, Cepal, 1997), tabela III.3.14 OI, World Employment, 1995(Genebra, OI, 1995), p. 29.

  • 7/23/2019 THERBORN, Gran - Do Marxismo Ao Ps-marxismo

    24/154

    D - 25

    estabilizao num nvel ligeiramente mais alto: o emprego industrial atingiu21% do emprego mundial nos dois anos f inais e a queda ps-industrial foianulada pela industrializao no Sul Asitico.

    Claramente, no entanto, a grande poca do movimento da classe traba-lhadora chegou ao f im. De fato, o trabalho industrial s conseguiu dominaro emprego ps-agrrio na Europa, nunca nos Estados Unidos, no Japo ouna Coreia do Sul, e muito provvel que isso nunca venha a acontecer. Aindasegundo a OI, o emprego no setor de servios est prestes a ultrapassar oemprego industrial na China. O enorme crescimento das megacidades doerceiro Mundo do Cairo Jacarta, de Daca Cidade do Mxico, passan-do por Kinshasa e Lagos est gerando um proletariado urbano no sentido

    romano e pr-marxista de trabalho informal e comerciantes. Na ndia, cercade um dcimo apenas da populao economicamente ativa encontra-se notrabalho urbano formal; na China, 23%. Ainda que exista uma organizaointernacional de moradores de favelas, uma eventual revolta das favelas (comosugerida em Planeta favela, de Mike Davis*), se ocorrer, provavelmente no seencaixar no repertrio clssico de protestos da classe trabalhadora e da revo-luo. O coletivismo irreverente, cuja principal locomotiva era o movimentoda classe trabalhadora industrial, teve seu auge e agora est enfraquecendo

    pouco a pouco. Mas isso apenas parte da histria.Outro desenvolvimento crucial nesse perodo foi a corroso da deferncia

    tradicional, tanto religiosa como sociopoltica. A reduo do setor agrrio foi umdos motivos o trabalho agrcola caiu de 57% para 48% do emprego mundialentre 1965 e 1990 , apesar de desde sempre e em todos os lugares os campo-neses serem deferentes. De acordo com o senso de 2000, a populao urbanana China hoje um tero da populao total; dez anos atrs, era um quarto.A Holanda d um exemplo claro de secularizao: os partidos explicitamente

    religiosos sempre tiveram mais da metade dos votos em todas as eleies, desdea introduo do sufrgio universal em 1918 at 1963; nos vinte anos seguintes,sua participao caiu para um tero. O domnio do patriarcado tambm caiude maneira signif icativa: o direito das mulheres e a questo da igualdade dosgneros entraram na agenda poltica em quase todo o mundo15.

    O que poderamos chamar de modernizao social resultante das mudanaseconmicas, da educao, da comunicao de massa, dos direitos democrticosformais, das migraes transnacionais teve o efeito de corroer vrios tipos dife-

    * Mike Davis, Planeta favela(So Paulo, Boitempo, 2006). (N. .)15 Ver o captulo 1 do meu Between Sex and Power: Family in the World, 1900-2000(Londres,

    Routledge, 2004). [Ed. bras.: Sexo e poder: a famlia no mundo, 1900-2000, So Paulo, Con-texto, 2006.]

  • 7/23/2019 THERBORN, Gran - Do Marxismo Ao Ps-marxismo

    25/154

    G 26

    rentes de deferncia, afetando no apenas as mulheres e os jovens, mas tambmos estratos mdios assalariados da maioria dos pases, como as castas inferiores e osintocveis no Sul Asitico, povos indgenas de todos continentes, os pobres

    das novas favelas dos grandes centros urbanos do erceiro Mundo, os catlicose os protestantes europeus. Esse efeito foi visvel primeiro nos anos 1960, coma fragilizao do clientelismo tradicional na Europa e na Amrica latinas. Issofoi destacado nos protestos de 1968 e, posteriormente, pelo movimento demulheres que veio em seu rastro.

    Um dos fatores dessa corroso da deferncia foi a criao de novas formasde coletivismo rebelde. Os povos indgenas se organizaram para a defesa de seusdireitos e se tornaram uma fora poltica signif icativa em toda a Amrica, do

    Canad rtico ao Chile subantrtico, e uma das principais foras na Bolvia eno Equador. Na ndia, os movimentos indgenas, aliados s organizaes am-bientalistas, exerceram seu poder de veto. As castas inferiores reformularam suaidentidade coletiva como dalits, que signif ica subjugado ou oprimido, melhorque o depreciado intocvel, e as mulheres lutaram para criar redes transnacionaisfeministas. Mas h outras tendncias tambm. Uma delas est voltada para o quepoderamos chamar de individualismo deferente a adorao da riqueza e dosucesso sob qualquer forma. O declnio da antiga autoridade tambm possibi-

    litou o surgimento de novas formas de autoritarismo, livremente escolhido, oude fundamentalismo particularmente signif icativo no protestantismo norte--americano, no islamismo asitico-oriental e norte-africano e no judasmo israe-lense. Enquanto o fundamentalismo islmico e o evangelismo latino-americanose fortaleceram com a falncia social, tanto da esquerda secularizada quanto dasinstituies religiosas tradicionais, as correntes fundamentalistas do judasmoe do protestantismo norte-americano parecem ser guiadas por preocupaesespecf icas de identidade.

    impossvel, neste estgio, fazer um balano dos efeitos combinados dessesprocessos sociais, com suas vrias contradies, excees e desigualdades. Minhaimpresso, porm, que a direo geral a que se dirigem e se dirigiro noapenas se distancia do coletivismo tradicional, como tambm, e de modo maisinsistente, leva a uma maior irreverncia diante das desigualdades e dos privil-gios, em particular aqueles proporcionados por poder e status. Da perspectiva daesquerda, esses processos oferecem no apenas um reforo potencial de aliadoscontra a deferncia, mas tambm o desaf io de um questionamento individua-

    lista ou neocoletivista do coletivismo tradicional de esquerda, dos movimentosanti-imperialistas e trabalhistas. O mais importante, no entanto, que essesdesenvolvimentos no munem simplesmente a esquerda de mais recursos. Elestrazem novos temas e geram novas questes de prioridade, aliana e compro-misso. Por f im, o ambientalismo e as polticas identitrias podem entrar em

  • 7/23/2019 THERBORN, Gran - Do Marxismo Ao Ps-marxismo

    26/154

    D - 27

    choque com o desenvolvimentismo e o igualitarismo da esquerda clssica, porexemplo. A irreverncia tambm pode se manifestar de forma repulsiva, comoviolncia xenofbica e delinquncia.

    Poltica de vida, poltica de massa e ciberpoltica

    As formas polticas dependem de conhecimento e tecnologia. Mais de umsculo depois de Darwin, a biologia emerge novamente como a vanguarda doconhecimento e da tecnologia. No apoiando por enquanto nenhum movi-mento poltico signif icativo, como f izeram no passado o darwinismo social, aeugenia ou mesmo a sociobiologia antifeminista, os avanos biolgicos recentes

    levantam uma srie de novas questes que podem ser resumidas como polticade vida. As cruzadas fundamentalistas crists contra o aborto estabeleceram-secomo um elemento maior da poltica estadunidense, mas h muitos outros te-mas: prioridades em resgates e tratamentos caros, riscos da engenharia gentica,comportamento individual e sade pblica, o envelhecimento na Europa, noJapo e, em breve, na China. Proibir o aborto tornou-se a plataforma principalda direita crist, mas a maioria das questes da poltica de vida ainda no en-controu um tom poltico estvel.

    A poltica frequentemente sobre temas e sempre sobre comunicao. Noque diz respeito comunicao, o f im do sculo XX e comeo do sculo XXIpromoveram mudanas histricas, que podem ser resumidas em duas tendnciasopostas. A primeira o crescimento da comunicao de massa a partir dos centrosde orientao. A televiso tornou-se global, tanto no sentido da difuso quaseuniversal (apesar de ainda limitada no interior da frica e do Sul Asitico) quantono do alcance mundial por meio da transmisso por satlite. Os recursos dainternet tambm so utilizados cada vez mais para a comunicao de massa

    direta. A comunicao de massa est sendo empregada em todos os tipos depolticas, mas parece ter pelo menos trs efeitos signif icativos claros: aumentao conhecimento e o alerta para acontecimentos e condies distantes; tornaa poltica mais personalista e imagtica e menos focada em temas; e, porltimo, aumenta a influncia e o poder do dinheiro, que paga pela mensagem.

    No entanto, a recente revoluo nas comunicaes tambm tornou possveluma comunicao interpessoal em grande escala e ritmo acelerado. O e-maile suas derivaes, como a blogosfera, o Youube, o Facebook, o witter etc.,

    tornaram possvel a comunicao de um indivduo com muitos. Isso ciber-poltica, e ela j mostrou ser uma ferramenta poderosa de mobilizao poltica,derrubando o governo mentiroso de direita de Aznar na Espanha, em 2004,tornando Obama elegvel nos Estados Unidos, convocando protestos de Chi-sinau e eer a Manila, e fornecendo informaes politicamente importantes

  • 7/23/2019 THERBORN, Gran - Do Marxismo Ao Ps-marxismo

    27/154

    G 28

    a respeito de pases fechados, como Myanmar e (s vezes) a China. Nos pasesdemocrticos, os indivduos agora podem desaf iar a viso de mundo da mdiade massa. At agora a ciberpoltica sobretudo poltica de jovens de classe

    mdia, mas o celular o primeiro meio de comunicao industrial a chegar aointerior da frica. Os entusiastas da cultura ciberntica que criaram a internetno estavam errados quando apontaram seu potencial democrtico participativo.

    M

    Dentro dessas coordenadas, novas dinmicas esto trabalhando. As maisimediatas so aquelas criadas pelos resultados histricos das disputas polticas

    anteriores. Aqui, podemos apenas listar o que parecem ser as derrotas e as vitriasmais importantes, os xitos e os fracassos dos ltimos quarenta anos direita e esquerda, bem como apontar os parmetros que mudaram no campo poltico.

    Os xitos da esquerda

    1. O descrdito do racismo explcito e o f im do colonialismo. At os anos1960, o domnio colonial europeu sobre outros povos ainda era considerado per-feitamente legtimo. Os negros nos Estados Unidos ainda tinham negados seusdireitos humanos e civis. A descolonizao da frica, a derrota do racismo insti-tucional nos Estados Unidos, o f im do apartheidna frica do Sul e a derrocadado imperialismo norte-americano em Cuba e no Vietn foram vitrias estrondo-sas da esquerda, que alteraram signif icativamente o espao poltico mundial.

    2. A discusso ps-guerra sobre o Estado de bem-estar social nos pasescapitalistas avanados a nova prosperidade signif icou que menos gastos sociaisseriam necessrios ou que a seguridade social e servios sociais apropriados agoraeram acessveis? foi estrondosamente vencida pela esquerda (reformista), espe-cialmente na Alemanha Ocidental, na Escandinvia e na Holanda, e ratif icadapor uma srie de resultados eleitorais nos anos 1960.

    3. O movimento estudantil mundial de 1968 foi um avano importantepara as foras de irreverncia ao redor do mundo, porque atacou no apenasa tradio e a reao, mas tambm a complacncia do liberalismo social, asocial-democracia, o comunismo e as revolues nacionais. Rejeitou a frmulado crescimento econmico e da educao de massas como realizao adequadada demanda clssica do Iluminismo de esquerda por emancipao e igualdadee def iniu novas agendas polticas para a liberao humana e a autorrealizao.

    4. O novo movimento feminista questionou a liderana masculina radicaldos movimentos pela liberao e pela igualdade, em que os papis tradicionais dosgneros permaneciam inalterados. Acima de tudo, o feminismo tem sido um

  • 7/23/2019 THERBORN, Gran - Do Marxismo Ao Ps-marxismo

    28/154

    D - 29

    movimento de esquerda em seu sentido mais amplo embora mais na EuropaOcidental e no erceiro Mundo do que nos Estados Unidos , questionandoo jugo masculino do capital e do patriarcado. No passado, o padro do voto

    feminino tendia a ser mais direita que o dos homens, apesar da tendncia dosprimeiros movimentos feministas de se alinhar esquerda. Mas no decorrerdos anos 1980 e 1990 esse padro mudou nas democracias capitalistas: a prefe-rncia do voto feminino foi para os candidatos e os partidos de centro-esquerda(claramente visvel nas ltimas eleies nos Estados Unidos).

    Os fracassos e as derrotas da esquerda

    1. Um ponto de virada importante foi a incapacidade da esquerda de lidarcom os conflitos distributivos que surgiram durante a crise econmica dos anos1970 e 1980. A social-democracia da Europa Ocidental sobretudo o Partidorabalhista Britnico , o liberalismo norte-americano, o populismo latino--americano e a esquerda chilena enfrentaram esses conflitos e caram numa criseainda mais profunda, com inflao, desemprego, ingovernabilidade e declnioeconmico. As derrotas da esquerda abriram caminho para uma reao poderosada direita violenta na Amrica Latina, mas dentro dos limites da democracia

    formal na Amrica do Norte e na Europa Ocidental. Alm disso, levaram aoneoliberalismo, que ainda est conosco.

    2. O rendez-vous manqu[encontro mal-sucedido] entre os manifestantesde 1968 e os movimentos trabalhistas. Aps a primeira onda de iconoclastiaindividualista, os primeiros tornaram-se um romanticismo bolchevique mi-mtico e criador de partido. A desiluso, por sua vez, gerou uma boa dosede renegao liberal-direitista, nouveaux philosophes[novos filsofos] e tropaspara a tempestade ideolgica da Guerra do Golfo e do Kosovo, assim como o

    individualismo autoindulgente da prole de Clinton. Boa parte do individua-lismo irreverente de 1968 se manteve algumas vezes expresso politicamente,como nos movimentos feminista e ambientalista e no ativismo pelos direitoshumanos. Mas como faltou ao encontro, o potencial de renovao histrica ourefundao da esquerda se perdeu.

    3. A capacidade de violncia da direita fatalmente subestimada pela es-querda levou a um grande nmero de derrotas sangrentas: na Indonsia, em1965, no Cone Sul, no comeo dos anos 1970, e uma batalha mais duradoura,

    porm proporcionalmente mais assassina, na Amrica Central.4. A imploso do comunismo nos anos 1990 foi uma virada negativa de

    propores picas, tanto para os no comunistas quanto para a esquerda comu-nista: a possibilidade de construir uma sociedade no capitalista perdeu muitode sua credibilidade. A runa do comunismo no foi uma derrota heroica ou

  • 7/23/2019 THERBORN, Gran - Do Marxismo Ao Ps-marxismo

    29/154

    G 30

    um mero resultado de um processo acelerado de decadncia. Na verdade, teveuma pitada de ironia. Na Unio Sovitica e na China, o comeo do f im foi umaonda de reformas internas radicais e imprevistas; nos dois pases, o ltimo ato

    veio como resultado inesperado do sucesso dessas reformas. Na Unio Sovitica,as reformas foram amplamente polticas e democratizantes; levaram a economiaplanejada ao caos e, por f im, benef iciaram os polticos nacionalistas. Na China,as reformas foram amplamente econmicas e, por isso, levaram mais tempo parareduzir as polticas socialistas a migalhas, enquanto corrompiam profundamenteo partido-Estado. A Europa Oriental foi mais rpida que a URSS desligou--se dela antes que se desintegrasse e o Sudeste Asitico seguiu a China commuita cautela.

    Contudo, dois regimes comunistas menos importantes mantm-se at hoje,por estratgias de sobrevivncia muito diferentes. O isolamento nacionalistatransformou a Coreia do Norte comunista em poder dinstico, inteirado pormsseis e pobreza em massa. Cuba preservou a integridade revolucionria doregime, embora dif icilmente seja menos personalista e autoritria que o sistemacoreano. Sua engenhosa estratgia tornar-se, mais uma vez, um grande resortinternacional. Embora o turismo seja a indstria do futuro, no seguro queos hotis de praia possam ser um modelo social de mdio prazo16.

    5. Mais uma dif iculdade para a esquerda: as polticas econmicas neo-liberais trouxeram de fato algumas recompensas materiais e no puderamser denunciadas de forma crvel como um fracasso completo da direita. Osgovernos neoliberais conseguiram debelar a inflao, e isso foi um grandecapital poltico nos anos 1990 na Argentina, na Bolvia, no Brasil, no Peru eem outros pases. A abertura dos mercados mundiais signif icou novas opor-tunidades para um grande nmero de pessoas. Algumas privatizaes forambem-sucedidas, no s porque promoveram mais privilgios para poucos,

    mas tambm porque estimularam investimentos e forneceram servios. Astelecomunicaes so o exemplo mais notvel.

    6. Os acontecimentos geopolticos no nvel do Estado pesaram muito sobre acorrelao de foras mundial entre esquerda e direita. Uma lista breve deve bastarpara lembrar. O racha sino-sovitico, repetido depois no conflito entre Pol Pot eo Vietn, dividiu e desmoralizou a esquerda e fortaleceu enormemente a direita.Os colapsos dos Estados na frica independente, comeando no Congo no ou-tono de 1960, deixaram pouco espao para a poltica e as polticas de esquerda

    no continente uma restrio que o alinhamento geopoltico de alguns lderes URSS ocultou por algum tempo. A derrota catastrf ica imposta por Israel

    16 Os melhores hotis cubanos so em grande parte, se no a maioria, de propriedade pblica,mas em geral so administrados por alguma empresa capitalista estrangeira.

  • 7/23/2019 THERBORN, Gran - Do Marxismo Ao Ps-marxismo

    30/154

    D - 31

    na guerra de 1967 desacreditou e desmoralizou a esquerda rabe secularizada ealimentou os fundamentalismos religiosos de rabes e judeus.

    Alm dos fracassos e sucessos, devemos registrar como os parmetros do

    campo poltico em geral se alteraram nesse perodo. Mais uma vez, s temosespao aqui para apontar os efeitos de algumas dessas dinmicas no balano dedireita e esquerda. Em primeiro lugar, houve avano da poltica ambiental, quesurgiu no rastro da crise do petrleo, em meados dos anos 1970. Embora sejaem geral mais crtica ao capital do que ao trabalho, essas correntes questionarama perspectiva fundamentalmente desenvolvimentista da esquerda industrial emostraram-se mais tolerantes com o desemprego e a desigualdade econmica doque a esquerda tradicional. Em segundo lugar, as polticas de identidade tnica

    e sexual ganharam importncia considervel em algumas partes do mundo.Sua relao com as questes socioeconmicas frequentemente ambgua porexemplo, so crticas no que diz respeito s desigualdades que atingem sua co-munidade ou grupo, mas no em relao s desigualdades que afetam os outrosou desigualdade em geral.

    A

    O pensamento crtico depende de solo cultural para crescer. Para fazer sen-tido, a crtica deve partir de certas premissas ou princpios incorporados nessetema. O Iluminismo e suas tradies subsequentes do o ponto inicial ideal parao pensamento crtico de esquerda. Os questionamentos crticos, dif icultados porcrenas e autoridades, foram conservados no prprio mago do Iluminismo Sapere aude!(Ouse saber!). Seu princpio universalista da razo produziu umtribunal de acusao crtica contra a sabedoria ancestral e os autoproclamadosherdeiros do Iluminismo.

    A modernidade europeia desenvolveu-se, cultural e f ilosof icamente, doIluminismo e, politicamente, da Revoluo Francesa. Sua cultura polticaconcentrou-se na confrontao do povo/nao contra o prncipe, o meio mo-nrquico da aristocracia e as altas camadas clericais. Embora as foras do statusquodesfrutassem de slidos recursos institucionais e intelectuais, a cultura damodernidade europeia foi um terreno frtil para o pensamento crtico radical;aps 1789, a Europa tornou-se o palco principal do confronto ideolgico. Oque aconteceu ento com os direitos do povo, a liberdade, a igualdade e a fra-

    ternidade, sob a poltica do capitalismo industrial e dos proprietrios de terras?O conceito de classe foi forjado antes de Marx, no primeiro irromper da mo-dernidade europeia, nas reflexes sobre a Revoluo Industrial na Inglaterra e naRevoluo Francesa. O valor dado ao progresso tendia a corroer as premissasbsicas do conservadorismo.

  • 7/23/2019 THERBORN, Gran - Do Marxismo Ao Ps-marxismo

    31/154

    G 32

    Como defendi mais detalhadamente em outros contextos, a ruptura modernacom o passado percorreu diferentes rotas, em diferentes partes do mundo arota europeia, a rota dos colonizadores do Novo Mundo, a rota colonial e a rota

    da modernizao reativa pelo alto.Nos novos mundos dos colonizadores das Amricas aps a independncia,

    o pensamento moderno tornou-se o mainstreamconvencional, desaf iado apenaspelo clericalismo catlico na Colmbia e em alguns outros pases da Amrica La-tina. A principal questo nas Amricas no era Quais so os direitos do povo?,mas Quem o povo?. Povo inclui os indgenas? Os negros? Os rudes recm--chegados? Num resumo esquemtico da cultura poltica do Novo Mundo, doisaspectos se destacam. O liberalismo no sentido amplo da defesa da liberdade

    (anseios privados, propriedade privada, crenas privadas) e do compromisso coma cincia e o progresso (a razo) teve uma aderncia intelectual muito maisf irme do que na Europa, frequentemente se no sempre obscurecendo ascrticas socialistas. Em segundo lugar, pelo fato de as divises ideolgicas serembem menos pronunciadas na Amrica, o pensamento e a poltica marxista ti-veram mais facilidade para fundir-se ocasionalmente com as correntes polticasdo mainstream, como o liberalismo do New Deal, o populismo criolloem Cuba,na Guatemala e na Argentina nos anos 1940 ou o radicalismo chileno nos anos

    1960 e incio dos 1970.O modernismo anticolonial do colonizado uma perspectiva adotada

    tambm na Amrica Latina por aqueles que rejeitaram a criollidadedos povoa-dores era altamente propcio ao radicalismo. Os colonizados modernos agerao de Nehru, Sukarno, Ho Chi Minh e Nkrumah eram provavelmenteo povo diante da experincia das contradies da modernidade liberal europeiaem sua forma mais aguda. De um lado, eles se identif icaram com o agressormoderno, o poder colonial aprendendo sua linguagem, sua cultura, seus

    princpios polticos de nao/povo, direitos e autodeterminao. De outro,eles experimentaram a negao dos direitos e da autodeterminao ao seuprprio povo, a face arrogante e o punho de ferro do imperialismo liberal.O radicalismo socialista, tanto o comunista quanto o no comunista, foiuma caracterstica frequente do nacionalismo anticolonial aps a SegundaGuerra Mundial.

    A modernizao reativa pelo alto, ao contrrio, deixou pouco espao para opensamento radical. Por def inio, consistiu numa instrumentalizao da nao,

    da poltica, da cincia e do progresso, com o intuito de preservar o regime real ou imaginrio sob a ameaa imperialista externa. J que a liberdade, aigualdade e a fraternidade foram predef inidas na cultura dominante como ummeio de fortalecer o regime, suas contradies sociais intrnsecas foram mantidasfora de vista ou margem desde o incio. claro que isso no evitou que as

  • 7/23/2019 THERBORN, Gran - Do Marxismo Ao Ps-marxismo

    32/154

    D - 33

    correntes radicais abrissem caminho, ao lado das ideias modernas em geral, noJapo, no Sio*, na urquia e no mundo rabe no colonizado. Ali, eles encon-traram solo infrtil, bem como uma vigilncia repressiva.

    O modernismo com seu compromisso com a razo, a cincia, a mudana,o progresso e o futuro no foi inerentemente de esquerda. (O captulo 3 exa-mina as diferentes narrativas da modernidade e sua relao com o marxismo).No f im do sculo XIX, o conservadorismo tradicionalista foi pouco a poucosuplantado e, nas Amricas, foi sobrepujado por um modernismo de direita queexortava os direitos preferenciais dos mais fortes e mais preparados. Esse foi odarwinismo social e a nova linguagem do imperialismo liberal, ambos ingre-dientes importantes do fascismo no sculo XX. No entanto, aps Stalingrado

    e Auschwitz, esse modernismo racista, imperialista e militarista foi derrotado ecompletamente desacreditado. O laissez-faire no militarista do darwinismosocial, promulgado, entre outros, por Herbert Spencer e muito influente nosEstados Unidos, viu sua tese sobre o antagonismo entre o industrialismo e omilitarismo ser refutada pela Primeira Guerra Mundial e suas credenciais eco-nmicas serem destrudas pela depresso de 1930.

    Aps a Segunda Guerra Mundial, o modernismo foi majoritariamente decentro-esquerda em todas as partes do mundo, exceto pelos pases envolvidos

    na modernizao reativa. Depois, por volta de 1980, houve a avalanche do ps--modernismo. O mesmo perodo que assistiu ao eclipse do marxismo polticotestemunhou tambm a negao da modernidade em nome da ps-moderni-dade e o surgimento do ps-modernismo. Este ltimo tem pelo menos duasorigens diferentes17. A primeira esttica: a mudana da sucesso modernistadas vanguardas, que se desenvolveu mais claramente no campo da arquitetu-ra, como uma reao ao austero alto modernismo de Mies van der Rohe e oestilo internacional. A segunda est ligada f ilosof ia social, uma manifestao

    do esgotamento e do desencanto dos ex-esquerdistas. A f igura-chave aqui foio ltimo f ilsofo francs, Jean-Franois Lyotard, um militante desiludido dogrupo de extrema-esquerda Socialisme ou Barbarie18.

    Por que o ps-modernismo se tornou um desaf io to grande? Por que aps-modernidade foi to necessria, intuitivamente esperada e desesperada-mente procurada, como af irmou um antigo devoto, com a vantagem de um

    * Atual ailndia. (N. .)17 Ver a arqueologia crtica inigualvel de Perry Anderson, Te Origins of Postmodernity(Londres,

    Verso, 1998). [Ed. bras.:As origens da ps-modernidade, Rio de Janeiro, Zahar, 1999.]18 Jean-Franois Lyotard, Te Postmodern Condition: A Report on Knowledge(trad. G. Bennington

    e B. Massumi, Minneapolis, University of Minnesota Press, 1984). [Ed. bras.:A condio ps--moderna, 10. ed., So Paulo, Jos Olympio, 2008.]

  • 7/23/2019 THERBORN, Gran - Do Marxismo Ao Ps-marxismo

    33/154

    G 34

    olhar mais ctico19? A atrao esttica facilmente entendida como, acima detudo, mais uma manifestao do incansvel impulso modernista para a inovao;que influncias suas formas especf icas teriam em oposio a seu predecessor/ini-

    migo imediato, bem como ao contexto sociocultural. Mas a questo do signif ica-do terico e poltico do ps-modernismo permanece. Aqui, Jeffrey Alexandercaptou um ponto importante quando conclui que a teoria ps-moderna [...]pode ser vista [...] como uma tentativa de trazer de volta o problema do sig-nif icado criado pelo fracasso da experincia dos anos 196020.

    udo isso envolveu uma conjuno notvel de brilhantismo e miopia. Naesfera cultural, mudanas importantes ocorreram claramente entre o trabalhode Mies van der Rohe e Robert Venturi, ou Jackson Pollock e Andy Warhol,

    mudanas que surgiram nos anos 1960 e estabeleceram um novo tom estticopara as dcadas seguintes. Esses desenvolvimentos garantiram anlises da produ-o cultural de um novo modo, como o Ps-modernismo, de Fredric Jameson21.Mas at as melhores tentativas de relacionar as anlises culturais com a mudanasocioeconmica nunca conseguiram articular totalmente a ligao entre as duas.Jameson baseia seu balano em O capitalismo tardio, de Ernest Mandel, um re-trato da economia mundial do ps-guerra que se originou nos anos 1960 e foca,em grande medida, a regulao estatal do capital e seus limites intransponveis;

    portanto Jameson no discute o capitalismo tardio ps-1975 ou o surgimentodo modernismo neoliberal de direita22. Apesar de sua frtil contribuio, o ps-modernismo tornou-se um conjunto de ataques poltico-culturais moderni-dade e ao moderno um mal-estar no interior da analtica acadmica23. Almdo pblico especf ico de arte e arquitetura, dirigia-se amplamente esquerda e ex-esquerda, inclusive o feminismo, e deu uma ateno assombrosa ao cres-cimento simultneo do modernismo de direita na forma do neoliberalismo oucapitalismo assertivo24.

    19 Zygmund Bauman e Keith ester, Conversations with Zygmunt Bauman(Cambridge, Polity,2001), p. 71. [Ed. bras.: Bauman sobre Bauman, Rio de Janeiro, Zahar, 2011.]

    20 Jeffrey Alexander, Modern, Anti, Post, Neo, New Left Review, Londres, Verso, n. 210, mar.--abr. 1995, p. 82.

    21 Fredric Jameson, Postmodernism, Or, Te Cultural Logic of Late Capitalism (Londres, Verso, 1991).[Ed. bras.: Ps-modernismo: a lgica cultural do capitalismo tardio, 2. ed., So Paulo, tica, 2007.]

    22 O livro O capitalismo tardio, de Ernest Mandel, foi publicado em ingls em 1975; a edioalem apareceu em 1972, pela Suhrkamp. Segundo o prefcio do autor, os principais elementos

    da teoria do capitalismo tardio foram concebidos entre 1963 e 1967. [Ed. bras.: O capitalismotardio, 2. ed., So Paulo, Abril Cultural, 1982.]

    23 Ver tambm Linda Hutcheon, Te Politics of Postmodernism(Londres, Routledge, 2002) e PaulineMarie Rosenau,Post-Modernism and the Social Sciences (Nova Jersey, Princeton University Press, 1991).

    24 O prprio Jameson refuta de maneira depreciativa os atrativos intelectuais da doutrina:Ningum vai me persuadir de que existe algo glamoroso a respeito do pensamento de um

  • 7/23/2019 THERBORN, Gran - Do Marxismo Ao Ps-marxismo

    34/154

    D - 35

    O ps-modernismo, pelo contrrio, alimentou-se da desmoralizao e daincerteza da esquerda durante a euforia do f im dos anos 1960 e comeo dosanos 1970. Sua crtica razo e racionalidade se fortaleceu na maquinaria

    de imagens da sociedade televisiva, dando suporte aos estudos culturaisacadmicos25. Havia, alm disso, outros dois pilares no novo edifcio da ps--modernidade. Um foi a reestruturao social que seguiu a desindustrializao uma poca de mudana social. O outro foi a crtica ao progresso modernistaque surgiu com as preocupaes ecolgicas que, por sua vez, intensif icaram-secom a crise do petrleo dos anos 1970 e incio dos anos 1980. O ambientalismopode ter tido dif iculdade para florescer no ambiente esotrico da especulaof ilosf ica ps-modernista, mas seus adeptos se mostraram receptivos ao ps-

    -modernismo. Na verdade, os movimentos contrrios [blowback] ao imaginriodo mercado de massa, desindustrializao e ecologia serviram como umacaixa de ressonncia social para o discurso ps-modernista de desorientaoda (ex-)esquerda. Contra esse pano de fundo, o moderno o alvo dos ataquesps-modernistas foi def inido de vrios modos. Por exemplo, emModernidadesingular, enquanto nota agudamente as recentes regresses de um consensoprvio em torno da plena ps-modernidade, Jameson cita o asceticismo domodernismo, seu falocentrismo e seu autoritarismo, a teleologia de sua esttica,

    seu minimalismo, seu culto inteligncia e as demandas desagradveis quefaz audincia ou ao pblico26.

    Embora a onda intelectual do ps-modernismo tenha baixado, a retomadada modernidade pela direita persiste. Enquanto a contaminao do darwinismosocial pelo fascismo escondida debaixo do tapete, a globalizao representadacomo a sobrevivncia dos mais aptos, livre do pacif ismo spenceriano e acom-panhada, ao contrrio, de um sonoro rufar de tambores neoimperialistas. Omoderno est se tornando propriedade da reao liberal. A modernizao do

    mercado de trabalho signif ica frequentemente mais direitos para o capital e paraos empregadores. A modernizao dos servios sociais signif ica privatizaoe cortes nos servios pblicos. A modernizao do sistema de aposentadoriassignif ica em geral menos direitos para os idosos. Raramente o termo signif icamais direitos para empregados, desempregados e pensionistas, menos direitos

    Milton Friedman, um Hayek ou um Popper no dia e tempo presentes. Ver Fredric Jameson,

    A Singular Modernity(Londres, Verso, 2002), p. 2-3. [Ed. bras.:Modernidade singular, SoPaulo, Civilizao Brasileira, 2005.]

    25 Perry Anderson, Te Origins of Postmodernity, cit., p. 88.26 Fredric Jameson,A Singular Modernity, cit., p. 1. Mas a austeridade, o falocentrismo e o au-

    toritarismo eram realmente mais caractersticos e mais universais nas culturas e nas sociedadesmodernas do que nas pr-modernas?

  • 7/23/2019 THERBORN, Gran - Do Marxismo Ao Ps-marxismo

    35/154

    G 36

    para o capital ou mais servios pblicos. Se o modernismo socialista fosse umaespcie, ele estaria beira da extino.

    A cultura acadmica progressista tem decado em todo o mundo, en-

    quanto o ps-modernismo tem se convertido em estudos socioculturais,uma tendncia que tem mais a ver com as sombrias perspectivas polticasextra murosdo que com o tipo de antiesquerdismo interno virulento que seencontra na academia francesa e, com certeza, nos meios ps-comunistas.O Japo, que foi uma slida base universitria da economia marxista e so-breviveu ao grande boomdo ps-guerra, perdeu o brilho; a historiograf iaradical na ndia parece ter perdido seu impressionante vigor; e os ensaiospoltico-intelectuais de esquerda saram de moda na Amrica Latina. As

    universidades pblicas tm perdido muitos de seus alunos mais brilhan-tes para instituies privadas de direita. O marxismo de massa europeu elatino-americano de estudantes e professores acabou. No s os estudantesuniversitrios foram despolitizados, como seus movimentos se diversif ica-ram e agora incluem os batalhes que saem s ruas para pedir mudanas deregime liberal-democrticas e pr-Estados Unidos na Srvia, na Gergia ena Ucrnia, assim como a oposio anti-chavista na Venezuela.

    As academias, os think tankse os institutos de pesquisa pblicos ainda do

    suporte a uma ampla gama de pensamentos marxistas e de esquerda. As univer-sidades anglo-saxs, politicamente mais isoladas, saram-se melhor nesse sentidodo que as latino-americanas, que so sempre mais suscetveis aos desenvolvi-mentos polticos e s ambies. O no conformismo ainda bem representadoem Oxbridge* e na Ivy League**, bem como nas melhores universidades de SoPaulo e Seul, por exemplo. Parte de sua fora vem de uma gerao madura, queorientou intelectualmente os estudantes radicais no f im dos anos 1960 e comeodos 1970 e atingiu os nveis mais altos da docncia. Mas nos ltimos cinco ou

    dez anos tem florescido uma nova, apesar de diminuta, gerao intelectual decentro-esquerda.

    ambm tem havido uma inovao institucional. Um exemplo a revita-lizao do Clacso (Conselho Latino-americano de Cincias Sociais), lideradapor Atilio Boron e, mais recentemente, Emir Sader, e f inanciada pelos suecose outros fundos pblicos externos. O Clacso tornou-se importante inspirao ef inanciador de pesquisas empricas progressistas; seu trabalho envolve, entreoutras coisas, o monitoramento de movimentos de protesto na Amrica Latina,

    * Referncia s universidades inglesas de Oxford e Cambridge. (N. .)** Grupo de oito universidades norte-americanas: Harvard, Yale, Princeton, Brown, Dartmouth,

    Penn, Cornell e Columbia. (N. .)

  • 7/23/2019 THERBORN, Gran - Do Marxismo Ao Ps-marxismo

    36/154

    D - 37

    que realizou um grande nmero de aes nos anos 2000, e a promoo dos con-tatos Sul-Sul27. Um equivalente africano mais fraco do Clacso, o Codesria*, comsede em Dacar, foi reformulado h pouco tempo. Atualmente, nos departamen-

    tos de pesquisas da ONU, tambm h vrios produtos da era progressista, emparticular do erceiro Mundo, que esto realizando um excelente trabalho,enquanto praticam a cautela diplomtica. A Amrica Latina tambm tem sidoum grande centro de pensamento e anlise das culturas da globalizao, comopode ser visto, por exemplo, nos trabalhos de Octavio Ianni e Renato Ortiz, noBrasil, e Nstor Garca Canclini, no Mxico28.

    Sempre existiu um forte antimodernismo subalterno ao qual a histria daclasse operria de E. P. Tompson** e os vrios volumes da Subaltern Studies***,

    de Ranajit Guha e seus colegas, deram eloquente expresso, e do qual JamesC. Scott tem sido um terico entusiasta29. O movimento trabalhista marxistapde acomodar-se frequentemente a ele por sua crtica socialista ao capitalismoindustrial. Mas agora que a dialtica marxista perdeu grande parte de sua fora, necessrio lanar um olhar sistemtico, embora breve, s atuais implicaespolticas do antimodernismo.

    Estamos interessados aqui nos movimentos crticos ao modernismo que noso, contudo, defesas de direita do privilgio e do poder tradicionais. Existem

    muitos desses movimentos e eles tendem a se dividir em dois grupos: um desaf ia oclamor por progresso, desenvolvimento e crescimento; o outro questionao racionalismo mundano e o secularismo.

    27 Ver Atilio Boron e Gladys Lechini (orgs.), Polticas y movimientos sociales en un mundo hege-mnico(Buenos Aires, Clacso, 2007).

    * Conselho para o Desenvolvimento da Pesquisa em Cincia Social na frica (Council for theDevelopment of Social Science Research in Africa). (N. .)28 Nstor Garca Canclini, Culturas hbridas(So Paulo, Edusp, 2006); Octavio Ianni,A sociedade

    global(Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1992); e Renato Ortiz,Mundializao e cultura(So Paulo, Brasiliense, 1994).

    ** Edward Palmer Tompson, A formao da classe operria inglesa(So Paulo, Paz e erra,1997). (N. .)

    ***Subaltern Studies uma coleo de livros que comeou a ser publicada em 1982 pela OxfordUniversity Press India, em Nova Dlhi, e depois por outras editoras em outros pases. O volu-me 12 foi o ltimo publicado (org. Shail Mayaram, M. S. S. Pandian e Ajay Skaria,Muslims,

    Dalits and the Fabrications of History, Nova Dlhi, Permanent Black e Ravi Dayal Publisher,2005). (N. .)

    29 O trabalho clssico de James Scott Weapons of the Weak(New Haven e Londres, Yale UniversityPress, 1985); mas sua obra [oeuvre] tambm inclui Domination and the Arts of Resistance (NewHaven e Londres, Yale University Press, 1992) e Seeing like a State(New Haven e Londres,

    Yale University Press, 1999).

  • 7/23/2019 THERBORN, Gran - Do Marxismo Ao Ps-marxismo

    37/154

    G 38

    Entre as crticas ao progresso e ao desenvolvimento, h uma que acompa-nhou a Revoluo Industrial no mundo ps-industrial: a defesa do modo devida tradicional de artesos, camponeses, pequenos agricultores, pescadores e

    comunidades tribais. Essa defesa facilmente apoiada pela esquerda anticapita-lista que se encontra na oposio e tem sido adotada pelo atual movimento doFrum Social: No queremos desenvolvimento. Queremos apenas viver, diziaa faixa no palco principal do Frum Social Mundial de 2004, em Mumbai. Mas,quando colocado em termos fortes e no qualif icados, isso no faz sentido paraas massas do mundo que esto lutando para sair da pobreza. Como movimento,o antidesenvolvimento fragmenta-se com frequncia em batalhas isoladas deminorias com apoio inef iciente e limitado.

    Os Fruns Sociais Mundiais da dcada de 2000 deram origem a movimentossimilares de protesto antimodernista em diferentes pases e continentes e tmtambm plataformas e audincia entusiasmada. Mas isso s possvel porqueos Fruns Sociais Mundiais so um frum, um lugar de encontro de longeo mais excitante das duas ltimas dcadas , e no um movimento ou mesmouma fora de ao comum. A cultura crtica criada nos fruns tem sido a daresistncia ao modernismo neoliberal. A amplitude global da ltima ofensivagerou uma ampla gama de perdedores e crticos que foram postos lado a lado em

    2001, com talento latino, por uma coalizo diversif icada de movimentos sociaisbrasileiros, acadmicos e jornalistas franceses, unidos em torno do Le MondeDiplomatique30. Uma infraestrutura organizacional signif icativa foi disponibili-zada por governos do Partido dos rabalhadores (P) em Porto Alegre e no RioGrande do Sul, por franceses e outros trotskistas do movimento alterglobalistaAttac e pelo Partido Comunista da ndia (Marxista) PCI(M) em Mumbai.Mas em seu ecumenismo ideolgico, na falta de um centro de controle nicoe de um carter verdadeiramente global, os Fruns Sociais Mundiais represen-

    tam um fenmeno novo na histria da esquerda mundial. Por outro lado, umespao cultural estimulante no em si uma ao transformadora, o que temlevado a debates tensos dentro do