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311 Coleção ComuniCação em Cena V. 5 • CARTAS DE TARÔ E IMAGENS NA MÍDIA: UMA COMPARAÇÃO Ana Cristina Vidal de Castro Ortiz (Titi Vidal) As cartas do tarô O tarô é um baralho composto de 78 cartas, sendo 22 chama- das maiores, ou principais, e as outras 56 menores, ou secundárias. As cartas do tarô contém imagens simbólicas, também conhecidas como arquétipos. Sua origem é um tanto incerta. Como diz Liz Greene (2003, p. 7), “as origens das cartas do Tarô, ou seja, quem as teria imaginado, onde, quando e com que objetivo, ainda são muito vagas e obscuras”. Há que afirme que o tarô nasceu como um jogo, assim como o ba- ralho que ainda usamos nos dias de hoje com essa finalidade. Outros entendem que o tarô possui uma origem iniciática, tendo sido feito desde o início para transmitir um conhecimento oculto através dos seus símbolos, acessíveis apenas aos iniciados e imunes à perseguição político-religiosa. Ou seja, apenas quem conhecesse os símbolos e signos ali presentes teria acesso àquelas informações. Nesse sentido, existe até uma versão que diz que o tarô teria surgido como um livro de gravuras que escaparia à visão dos inquisi- dores e continuaria “vivo”, transmitindo às pessoas as verdades pro- fundas da vida e o significado do ser. Ou, de alguma maneira, as car- tas do tarô seriam uma “velada comunicação de ideias em desarmonia com a igreja estabelecida” (NICHOLS, 2006, p. 20). Já para quem acredita ter nascido o tarô dos jogos, a explicação para sua linguagem simbólica e arquetípica estaria na sabedoria dos artistas da época, que colocaram nas cartas destinadas aos jogos seu conhecimento. O fato é que não há muitos registros sobre sua origem, nem livros que falem sobre o assunto, que são poucos e muito recentes,

Titi Taro Midia

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    Cartas de tar e imagens na mdia:uma Comparao

    Ana Cristina Vidal de Castro Ortiz(Titi Vidal)

    As cartas do tar

    O tar um baralho composto de 78 cartas, sendo 22 chama-das maiores, ou principais, e as outras 56 menores, ou secundrias. As cartas do tar contm imagens simblicas, tambm conhecidas como arqutipos.

    Sua origem um tanto incerta. Como diz Liz Greene (2003, p. 7), as origens das cartas do Tar, ou seja, quem as teria imaginado, onde, quando e com que objetivo, ainda so muito vagas e obscuras. H que afirme que o tar nasceu como um jogo, assim como o ba-ralho que ainda usamos nos dias de hoje com essa finalidade. Outros entendem que o tar possui uma origem inicitica, tendo sido feito desde o incio para transmitir um conhecimento oculto atravs dos seus smbolos, acessveis apenas aos iniciados e imunes perseguio poltico-religiosa. Ou seja, apenas quem conhecesse os smbolos e signos ali presentes teria acesso quelas informaes.

    Nesse sentido, existe at uma verso que diz que o tar teria surgido como um livro de gravuras que escaparia viso dos inquisi-dores e continuaria vivo, transmitindo s pessoas as verdades pro-fundas da vida e o significado do ser. Ou, de alguma maneira, as car-tas do tar seriam uma velada comunicao de ideias em desarmonia com a igreja estabelecida (NICHOLS, 2006, p. 20).

    J para quem acredita ter nascido o tar dos jogos, a explicao para sua linguagem simblica e arquetpica estaria na sabedoria dos artistas da poca, que colocaram nas cartas destinadas aos jogos seu conhecimento.

    O fato que no h muitos registros sobre sua origem, nem livros que falem sobre o assunto, que so poucos e muito recentes,

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    contendo especulaes sobre a histria das cartas. Por isso, como define Sallie Nichols (2006, p. 18), o tar um baralho de cartas misterioso de origem desconhecida.

    Na coleo de muitos reis e nobres de sculos anteriores existiam cartas de tar feitas por artistas renomados da poca, algumas inclusive folhadas a ouro. o caso de Visconti Sforza, do sculo XV, cujas cartas ainda hoje encontram-se em museus na Europa e Estados Unidos.

    Figura 1: Tar Visconti Sforza, de Milo, sculo XV.

    O uso divinatrio do tar, aplicado leitura do momento e do futuro das presentes, teria tido origem no sculo XVIII. Pelo menos desta poca que datam os primeiros registros.

    Hoje o tar utilizado de diversas maneiras. H muitos es-tudiosos sobre o assunto e muitos textos tm sido produzidos. As cartas, nos dias atuais, so muito utilizadas com fins divinatrios. Ou seja, os chamados tarlogos ou cartomantes usam as cartas para aces-sar o inconsciente e o futuro de seus clientes. Mas, ao contrrio do que equivocadamente as pessoas em geral divulgam, isso feito por conta da linguagem simblica e arquetpica dos arcanos, e no por

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    dons msticos ou especiais. O tar tambm utilizado como ferra-menta por muitos psiclogos e terapeutas e tem sido estudado por especialistas em linguagem simblica, interessados em suas narrativas.

    A linguagem simblica do tar inclui a presena dos arqutipos e smbolos ricos que derivam de um nvel de experincia humana co-mum a toda a humanidade (NICHOLS, 2006, p. 23). Citando Jung, a estudiosa do tar Sallie Nichols (2006, p. 23) fala sobre os smbolos existentes nas cartas, lembrando que representam alguma coisa que no pode ser apresentada de nenhuma outra maneira e cujo signifi-cado transcende todos os especficos e inclui muitos opostos aparen-tes. Ou seja, as figuras nos Trunfos do Tar contam uma histria simblica (NICHOLS, 2006, p. 23).

    Para compreender o tar e sua simbologia, podemos conectar seu significado

    atravs da analogia com mitos, contos de fadas, dramas, quadros, acontecimentos histricos, ou qualquer outro material com motivos similares, que evocam universalmente grupos de sentimentos, intui-es, pensamentos ou sensaes. (NICHOLS, 2006, p. 23)

    Assim podemos fazer o caminho contrrio, buscando nas di-versas narrativas presentes na vida humana e na mdia as conexes com a simbologia dos arcanos do tar.

    Imagens complexas e tar

    Josep M. Catal Domnech diz que as imagens contempo-rneas dificilmente so percebidas de maneira isolada (2005, p. 46, traduo nossa). Ele apresenta a ideia de constelaes visuais, nas quais as imagens so abertas e tendem plenitude. Ou seja, podem ser preenchidas por vrias coisas e dependem tambm do que Catal Domnech chama de mirada complexa, isto , da viso e comple-xidade de quem observa.

    Nesse sentido, Catal Domnech diz que todas as imagens so temporais, seja porque incorporam a durao atravs do movi-mento, seja porque expressam distintas camadas de memria (2005, p. 49, traduo nossa).

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    Alm disso, Catal Domnech fala sobre a tendncia de todas as imagens relao, rede. Para ele, a imagem contempornea se move entre o tempo-movimento-durao e o tempo-esttico-memria. Segundo Catal Domnech, no apenas a imagem contempornea, como tambm a percepo contempornea e com ela a epistemologia contempornea. Assim, ele conclui que a imagem contempornea inevitavelmente complexa (2005, p. 50, traduo nossa).

    Mas talvez no apenas as imagens contemporneas sejam complexas. As imagens do tar tambm so abertas, possuem diver-sas camadas de memria e sua interpretao depende de um olhar complexo, capaz de compreender todo o seu simbolismo. A inter-pretao de cada carta do tar depende do olhar complexo de quem observa, bem como do contexto e da relao de cada uma delas com os outros arcanos.

    As imagens do tar possuem todas as caractersticas apontadas por Josep M. Catal Domnech para que sejam consideradas comple-xas: opacidade, exposio, reflexividade e interatividade.

    Para Catal Domnech, a imagem no mais uma janela para o mundo, um lugar de trnsito at uma determinada realidade. Ao contrrio, a imagem hoje seria uma estao final, j que h que se parar para iniciar uma explorao que nos levar a compreender pro-fundamente o real (CATAL DOMNECH, 2005, p. 71, traduo nossa). A opacidade inclui o tempo do observador sobreposto ao tempo da imagem. necessrio contemplar para compreender.

    As imagens complexas tambm possuem a qualidade expositi-va, ou seja, so capazes de revelar estruturas internas de conhecimen-to. Essas imagens contm mltiplos nveis de significado. A qualidade expositiva, segundo Catal Domnech (2005, p. 75, traduo nossa), se deriva da opacidade.

    Outra qualidade da imagem complexa a reflexividade. Isso faz com que as imagens complexas possam ser consideradas multi--imagens (CATAL DOMNECH, 2005, p. 80, traduo nossa). Ou seja, so imagens formadas por um conjunto de imagens. Alm disso, podem ser consideradas imagens sintticas que se constituem uma porta ou interface que d acesso a outros elementos que formam um conglomerado intertextual.

    Por fim, as imagens complexas tambm so interativas, sen-do que o processo de interao pressupe a interface. Esta, por sua

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    vez, permite que a informao seja organizada e transmitida, e ento compreendida pelo usurio ou observador, que tambm pode atuar sobre a mesma. Assim, a imagem complexa no esgota seu significa-do na simples visualizao. Pelo contrrio, sua estrutura visual serve de conexo com outros meios, como o som ou o texto, por exemplo (CATAL DOMNECH, 2005, p. 82, traduo nossa).

    A interface, para Catal Domnech, um modelo de imagem que se transforma em modelo mental. As imagens complexas permi-tem uma interpretao infinita e dependem tambm do observador e de seu olhar complexo.

    As cartas do tar apresentam imagens complexas, tendo em vista que contm suas qualidades essenciais, especialmente por suas camadas de informao, que permitem grande reflexo e interpreta-o infinita, dependendo do olhar de cada observador.

    O tar na mdia

    As imagens do tar, incluindo seus arqutipos, significados e simbologia, esto amplamente presentes na mdia, seja em msicas ou filmes, ou em acontecimentos importantes noticiados em todo o mundo.

    O tar na msica

    Um exemplo do tar na msica Cartomante, msica de Ivan Lins e Vitor Martins, que ficou famosa na voz de Elis Regina:

    Nos dias de hoje bom que se protejaOferea a face a quem quer que sejaNos dias de hoje esteja tranquiloHaja o que houver pense nos seus filhosNo ande nos bares, esquea os amigosNo pare nas praas, no corra perigoNo fale do medo que temos da vidaNo ponha o dedo na nossa ferida... Ah...

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    Nos dias de hojeNo lhes d motivoPorque na verdadeEu te quero vivoTenha pacincia Deus est contigoDeus est conoscoAt o pescoo J est escritoJ est previstoPor todas videntesPelas cartomantesEst tudo nas cartasEm todas as estrelasNo jogo dos bziosE nas profecias... Ah...Cai o Rei de espadasCai o Rei de ourosCai o Rei de pausCai, no fica nada!!

    Figura 2: Reis de espadas, ouros e paus, Tarot of the Old Path.

    Outros dois exemplos so as msicas Alegria, alegria, de Caeta-no Veloso, e A balada do louco, dos Mutantes. Ambas, apesar de no citarem expressamente o tar, descrevem perfeitamente os significados presentes no arcano nmero zero, o Louco, totalmente livre e desapegado.

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    Figura 3: Algumas reprodues da carta do Louco, arcano zero do tar.

    O tar vai ao cinema

    So inmeros os filmes nos quais a presena do tar se faz pre-sente, seja de forma expressa, com a presena de suas cartas, seja por suas imagens, que aparecem como elementos da construo narrativa.

    Um bom exemplo o filme O Hobbit, no qual podemos en-contrar o sbio Gandalf, o prprio Eremita, arcano nmero nove do Tar. No filme, o velho sbio reproduo fiel tanto imagem quan-to ao significado da carta do tar, smbolo de sabedoria, cautela e experincia, entre muitos outros.

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    Figura 4: Cena do filme O Hobbit e um exemplo do arcano nove, o Eremita.

    Ainda neste filme, a presena da sbia Galadriel, que tanto em termos de imagem como de contedo retrata o arcano nmero dois do tar, a Papisa ou Sacerdotisa, smbolo do conhecimento intuitivo proveniente do feminino, a conhecedora dos mistrios, do oculto, que carrega o livro da vida.

    Figura 5: Cena do filme O Hobbit (Galadriel) e dois exemplos do arcano dois do tar, a Sacerdotisa ou Papisa.

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    Outro filme que contm forte simbologia das cartas do tar Melancolia, de Lars Von Trier. A cena final do filme apresenta o dez de paus, arcano menor do tar, que simboliza o fim. Essa carta represen-ta um fim difcil, depois de muita luta e esforo. Pode simbolizar o al-vio pelo fim depois de tantos obstculos ou a dificuldade de finalizar depois de lutar para que aquilo no acabasse. No filme, duas irms e um menino esperam o fim do mundo. Uma das irms est tranquila, pois sabe que no h como fugir disso. A outra sofre. As duas faces da mesma carta do tar em uma imagem que visualmente mostra a carta como ela .

    Figura 6: Cena final do filme Melancolia e alguns exemplos do dez de paus, arcano menor do tar.

    Em As aventuras de Pi, um menino, durante uma viagem, precisa conviver com um felino que faz parte da tripulao do barco. Para so-breviver, ambos precisam conviver. A imagem lembra o arcano onze do tar, a carta da Fora, que mostra a necessidade de domnio inteli-gente sobre os instintos como forma de sobrevivncia.

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    Figura 7: Cena do filme As aventuras de Pi e um exemplo da carta da Fora do tar (que em alguns baralhos

    o arcano oito e em outros o onze).

    O filme brasileiro Natimorto tambm contm as cartas do tar, sendo o prprio cartaz de divulgao uma representao do arcano doze do tar, o Enforcado.

    Figura 8: Cartaz do filme Natimorto e dois exemplos do arcano doze do tar, o Enforcado ou o Pendurado.

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    Muito interessante o uso do tar como ferramenta para a con-duo da narrativa no filme O violino vermelho, que conta a histria de uma mulher grvida que vai a uma cartomante para saber o futuro de seu filho. A cartomante diz no poder olhar o futuro de seu filho, mas faz previses para a mulher. A consulente, no entanto, morre no parto, assim como o beb. Seu marido, que estava construindo um violino para o futuro filho, decide pintar o instrumento com o sangue da mulher e do filho. A partir da, a narrativa vai sendo conduzida a partir das cartas do tar, contando a histria do violino vermelho ao longo de cinco sculos, sendo cada um deles uma das previses feitas pela cartomante para a mulher no passado. Cada sculo, uma carta. Cada carta, uma histria, em uma narrativa conduzida pela simbologia dos arcanos do tar.

    Figura 9: Cenas do filme O violino vermelho.

    Os acontecimentos do mundo nas cartas do tar

    Muitos dos acontecimentos noticiados na mdia tambm re-metem a cartas do tar. Um exemplo recente foi a palavra eleita pelo dicionrio Oxford como a palavra de 2013: selfie, o autorretrato feito para ser postado nas redes sociais. No tar, o jovem pajem de copas, que faz referncia ao mito de Narciso, fala da necessidade de auto-contemplao e de mostrar a prpria imagem.

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    Figura 10: O pajem de copas em Tarot of the Old Path e no tar mitolgico mito de Narciso.

    Vejamos tambm o padre brasileiro que decidiu voar amarrado a bales de ar e que acabou caindo em algum lugar do oceano. Ele retrata o arcano zero, o Louco, que parte em aventura sem saber para onde vai e est prestes a cair num abismo.

    Imagem 11: O padre que tentou voar com os bales, cena do filme Up Altas aventuras e dois exemplos do arcano zero do tar, o Louco.

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    Mas o exemplo mais marcante o atentado de 11 de setembro de 2001 s Torres Gmeas.

    Imagem 12: Imagens do atentado s Torres Gmeas e exemplos de imagens do arcano nmero dezesseis do tar, a Torre.

    Basta olhar as imagens para notar a semelhana entre elas. A carta da Torre vem logo depois do Diabo, arcano quinze do tar. O arcano anterior, o Diabo, tambm chamado de Tentao em alguns baralhos, representa o auge do poder. uma carta cuja simbologia remete s tentaes, ambies e o poder, especialmente o ligado ao sexo e ao dinheiro. Quando o poder vivido de forma excessiva, a carta seguinte, a Torre, avisa que a ambio em excesso pode ser pu-nida. Como uma espcie de castigo divino, a torre construda alta demais pode ser destruda.

    O arcano dezesseis do tar, a Torre, mostra a elevao do ho-mem, uma tentativa de unir a terra e o cu e de chegar ao topo. Ori-ginariamente chamada a casa de Deus, a imagem da carta mostra um raio vindo do cu que atinge a torre, derrubando a construo e todos que estavam dentro dela.

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    O atentado de 11 de setembro de 2001 certamente teve por objetivo atingir as Torres Gmeas no apenas por sua construo, mas pelo que representavam. Smbolo do poder e do capitalismo americano, as Torres Gmeas foram atingidas por um raio divino, como na carta do tar. Os avies que vieram do cu acertaram em cheio seu alvo, surpreendendo no apenas quem ali estava, mas todo o mundo, que assistiu, ao vivo, o atentado segunda torre. No ca-ram apenas as Torres, mas tambm muito do que representavam. Foi um evento que fez o mundo repensar muita coisa.

    A carta da Torre em uma leitura de tar chama para a realida-de. Faz repensar tudo que estamos vivendo. Indica uma grande crise em que todos os valores e conceitos precisam ser revistos. Mostra a iluso das nossas construes, sejam elas internas ou externas, e pede desapego e libertao. A carta seguinte, a Estrela, em uma narrativa bastante coerente trazida pelos arcanos do tar, mostra uma mulher nua despejando dois potes de gua, um deles na terra, o outro na gua, lembrando que, aps a destruio do que no tinha base nem estrutura para se manter em p, fica apenas a essncia e aquilo que vale a pena. tambm uma carta que fala da f e da esperana que precisamos ter em meio ao caos e depois que perdemos tudo, pois nada fica como era antes aps um evento da proporo que a carta da Torre apresenta.

    Para Sallie Nichols (2006, p. 279), simbolicamente, a torre era concebida, a princpio, como veculo para ligar o esprito matria. O portugus Paulo Cardoso (1991, p. 27) lembra que

    qualquer torre exprime um desejo de elevao do Homem para alm da sua natureza. Ela traduz, simbolicamente, a sua inteno de se aproximar da entidade divina. Representa a tentativa humana de estabelecer uma ponte de ligao ao cu, ao cosmos, ao infinito... No Tarot, ela simbolizada pelo Arcano XVI [...] e a evidente o sentido de destruio daquela edificao.

    De acordo com Jean Baudrillard, os atentados do 11 de se-tembro tm a ver tambm com a arquitetura (BAUDRILLARD, 2004, p. 32). Segundo ele,

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    dois dos edifcios mais importantes de Nova York foram destru-dos e foi uma certa arquitetura que foi atingida ao mesmo tempo que todo um sistema de valor ocidental e uma ordem mundial. (BAUDRILLARD, 2004, p. 32)

    Para ele, as torres tambm significaram uma pausa na vertica-lidade, j que foram construdas de forma diferente que os arranha--cus j existentes. Por sua construo em duplicidade e sem rosto, no reflexo exato de uma sobre a outra, fazem desaparecer a ret-rica do espelho, fazendo com que restasse

    somente uma espcie de caixa-preta, uma srie fechada no nme-ro dois, como se a arquitetura, imagem do sistema, fosse pro-veniente de clonagem ou de um cdigo geneticamente imutvel. (BAUDRILLARD, 2004, p. 32)

    Baudrillard tambm afirma que Nova York a nica cidade no mundo que retraa [...] a forma atual do sistema e todas as suas peripcias. Por isso,

    o desmoronamento das torres acontecimento em si mesmo sem par na histria das cidades modernas prefigura uma forma de fina-lizao dramtica e [...] de desaparecimento ao mesmo tempo dessa forma de arquitetura e do sistema mundial que ela encarna. Na pura modelizao informtica, bancria, financeira, contvel e numrica elas eram, de alguma forma, o crebro desse sistema e, atacando-as, os terroristas atacaram o crebro, o centro nevrlgico do sistema. (BAUDRILLARD, 2004, p. 34)

    Baudrillard acrescenta que se a violncia mundial passa tam-bm pela arquitetura, a contestao violenta dessa globalizao pas-sa tambm pela destruio dessa arquitetura (2004, p. 34).

    Indo ao encontro do simbolismo da carta da Torre, o atentado s Torres Gmeas trouxe o medo e a necessidade de repensar tudo. Se antes a ambio era chegar ao topo, agora existe um medo de se fechar e morrer dentro da torre. Ou, nas palavras de Baudrillard, o atentado gerou o pavor de morrer nessas torres, sendo esse pa-vor inseparvel do pavor de viver nelas. Para ele o pavor de viver

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    e de trabalhar nesses sarcfagos de concreto e de ao (2004, p. 35) passou a fazer parte do imaginrio coletivo.

    Baudrillard aborda tambm a fascinao ambgua desperta-da pelas Torres Gmeas, um sentimento contraditrio de atrao e de repulsa, e, pois, em algum lugar, um desejo secreto de v-los desa-parecer (2004, p. 35).

    A carta da torre tambm gera essa espcie de atrao e repulsa, especialmente se pensamos nela dentro de sua narrativa natural, pois a carta anterior, o Diabo, fascina e assusta. Queremos viver seus pra-zeres e desejos, somos tentados por seu poder. Por outro lado, teme-mos o que pode acontecer, pois podemos ser destrudos ou punidos por nossos excessos.

    Para Baudrillard tambm a prpria forma simtrica das Torres foi perfeita para atrair o atentado, oriundo tambm da tentao de quebrar sua simetria e restituir uma assimetria e uma singularidade (2004, p. 35). Segundo ele, a prpria destruio das torres respeitou a assimetria delas: dupla agresso com alguns minutos de intervalo (2004, p. 35). O suspense entre os dois impactos foi importante, j que aps o primeiro poder-se-ia ainda acreditar num acidente. Mas, apenas o segundo impacto assina o ato terrorista (2004, p. 36).

    Seguindo sua linha de raciocnio, Baudrillard afirma que o desmoronamento das torres o acontecimento simblico mais im-portante (2004, p. 36). Nesse sentido, ele nos convida a imaginar o que teria acontecido caso as torres no tivessem desmoronado. Segundo ele, de alguma forma o efeito teria sido o mesmo, mas a prova evidente da fragilidade da potncia mundial no teria sido a mesma, j que as torres, que eram o emblema dessa potncia, encarnaram-na ainda no fim dramtico que tiveram. Para ele, isso se assemelha a um suicdio, o que ficou claro para quem assistiu o desmoronamento delas por si mesmas, como numa imploso, passando a impresso de que elas se suicidavam, em resposta aos suicdios dos avies-suicidas. Ento, vem a pergunta: As Twin To-wers foram destrudas ou desmoronaram?. Ele continua explican-do sua pergunta: as duas torres so, ao mesmo tempo, um objeto fsico arquitetnico e um objeto simblico (smbolo do poderio fi-nanceiro e do liberalismo mundial). Assim, continua Baudrillard, o objeto arquitetnico foi destrudo, mas o objeto simblico que era visado e queriam aniquilar. Seu pensamento leva concluso

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    de que poder-se-ia pensar que foi a destruio fsica que levou ao desmoronamento simblico. No entanto, na realidade, ningum nem mesmo os terroristas contava com a destruio total das torres. Assim, foi seu desmoronamento simblico que levou ao desmoronamento fsico e no o contrrio (2004, p. 36-37).

    Baudrillard (2004, p. 37) fala, ainda, da potncia que possua essas torres perdesse bruscamente toda energia, toda fora, como se essa potncia arrogante arrogante tal qual o Diabo do tar ce-desse bruscamente sob o efeito de um esforo intenso demais: justa-mente o de querer sempre ser o nico modelo do mundo.

    E ento Baudrillard conclui que as torres, cansadas de serem esse smbolo pesado demais para ser carregado, desmoronaram, desta vez fi-sicamente, totalmente (2004, p. 37). Mais uma curiosa conexo com a carta da Torre, que afirma um peso pesado demais, algo que no pode mais ser suportado e ento desmorona, em geral por si mesmo, apesar da aparente interveno de um raio divino que coloca tudo abaixo.

    como se o desmoronamento simblico tivesse acontecido por uma espcie de cumplicidade imprevisvel como se o sistema inteiro, por causa de sua fragilidade interna, entrasse no jogo de sua prpria liquidao, isto , no jogo do terrorismo (BAUDRILLARD, 2004, p. 37). Ou seja, uma espcie de acordo com o prprio Diabo, que antecede ao grande desmoronamento, a carta da Torre do tar. Ou, nas palavras de Baudrillard, bastante lgico e inexorvel que o poder crescente da potncia exacerbasse a vontade de destru-la. Mais do que isso, de alguma forma ela cmplice de sua prpria destrui-o (2004, p. 37).

    muito interessante a constatao de Baudrillard sobre o quanto esse atentado j estava no imaginrio coletivo. Para falar sobre isso ele lembra os inmeros filmes-catstrofes do testemunho desta fantasia, que conjuram pela imagem e pelos efeitos especiais (2004, p. 38). H aqui, tambm, uma interessante conexo com a narrativa presente no tar, cujas cartas existem pelo menos desde o sculo XIV ou XV, com uma imagem que reproduz literalmente o atentado que aconteceu no incio do sculo XXI.

    Baudrillard conecta essa fascinao e essa presena prvia do atentado no imaginrio coletivo a uma denegao de todo sistema, inclusive a denegao interna, sendo tanto mais forte quanto mais ele se aproxima da perfeio e do poder absoluto (2004, p. 38).

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    Outro ponto interessante abordado por Baudrillard sobre a questo de saber o que ser preciso reconstruir no lugar das torres. Para ele, esta uma questo insolvel, j que no se pode imaginar nada de equivalente que valha a pena ser destrudo que seja digno de ser destrudo. De acordo com seu pensamento, as Twin Towers valiam a pena ser destrudas (2004, p. 38). Tal qual a simbologia do arcano dezesseis do tar, a Torre, depois da destruio nada mais fica como era antes. preciso reconstruir de outra maneira e no h mais como voltar atrs.

    O atentado de 11 de setembro realmente foi um acontecimen-to nico no mundo, e acontecimento e imagem estiveram juntos. Para Baudrillard (2004, p. 41), na verdade, a prpria imagem transformou--se no acontecimento. Ele ainda aponta a superfuso do real e da fico presente nesse acontecimento. Ou seja, foi um acontecimento simblico total. O atentado remete tambm a uma fico que ul-trapassa a fico (2004, p. 44), j que foi imaginado como roteiro [...] por Hollywood ou pela CIA, mas jamais foi imaginado como pos-svel. A no ser nas cartas do tar, cuja narrativa sempre alertou para o risco da destruio vinda por um raio divino, ou algo vindo do cu, capaz de desmoronar todo um sistema e fazer com que nada mais seja como era antes.

    O atentado, de certa forma, acordou o mundo e fez com que todos ficassem tocados, refletindo sobre o possvel e o impossvel, sobre os sistemas e valores, sobre vulnerabilidade e poder e sobre tantas outras coisas.

    No livro Meditaes sobre os 22 arcanos maiores do tar, de autor desconhecido, o dcimo sexto arcano maior do tar, a Torre, visto como uma advertncia para todos os autores de sistemas que do papel importante mecanicidade: sistemas intelectuais, prticos, po-lticos, sociais e outros.

    Conhecer a simbologia do tar e saber o significado da Torre, no apenas por si mesma, mas dentro de toda a sua narrativa, ajuda a compreender a importncia e as origens desse acontecimento nico na histria, que, apesar do caos, do medo, do sofrimento e da morte, trouxe oportunidade para repensar e transformar, pois uma vez que as estruturas so abaladas e destrudas outra forma de construo precisa surgir e, com isso, o mundo precisa mudar.

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    Algumas consideraes sobre o tar e a mdia

    A simbologia do tar pode ser analisada como uma narrativa, uma das muitas formas de compreenso da vida humana. Mas, para que isso seja possvel, os arcanos devem ser analisados de forma con-junta. Como diz Alejandro Jodorowsky (2010, p. 39, traduo nossa), para compreender esses mltiplos smbolos h que ser visto como um smbolo final, que forma a totalidade de elos, uma mandala. Ele ainda cita Carl Gustav Jung, lembrando o significado da mandala, que uma representao da psique.

    Por ser uma forma de narrativa repleta de smbolos e signifi-cados, o tar pode ter conexo com outras reas do conhecimento e, ainda, ser utilizado como uma forma de compreenso da vida humana e dos acontecimentos mundanos. Isso fica especialmente claro em um evento to marcante como o atentado de 11 de setem-bro, que sculos antes j estava representado de forma simblica nas cartas do tar.

    Seja pela natureza simblica ou oracular, seja pela complexida-de das imagens presentes em suas cartas, o tar permite uma narrao profunda e complexa dos acontecimentos e uma melhor compreen-so do que vemos em muitos filmes, por exemplo, alguns com a re-presentao fiel daquilo que est contido nos arcanos.

    Assim, podem ser feitas infinitas relaes entre tar e mdia, seja por seus arqutipos e natureza simblica, seja pela narrativa pre-sente em suas cartas, cuja simbologia est fortemente presente na mdia, das mais diversas formas, sendo que em muitos casos com imagens que permitem a conexo imediata, at mesmo para quem no tenha tanto conhecimento sobre a simbologia de tais arcanos e arqutipos.

    Referncias

    BAUDRILLARD, Jean. A violncia do mundo. In: BAUDRILLARD, Jean; MORIN, Edgar. A violncia do mundo. Rio de Janeiro: Anima, 2004. p. 32-56.CARDOSO, Paulo. Mar portuguez e a simblica da Torre de Belm. Lisboa: Estampa, 1991.

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    CATAL DOMNECH, Josep M. La imagen compleja: la fenomeno-loga de las imgenes em La era de La cultura visual. Barcelona: Ed. Universitat Autnoma de Barcelona, 2005.______. La imagen interfaz: representacin audiovisual y conocimiento em la era de la complejidad. Bilbao: Universidad del Pas Vasco, 2010.GREENE, Liz. O tar mitolgico. So Paulo: Arx, 2003.JODOROWSKY, Alejandro. La via del Tarot. Espaa: Desolsillo, 2010.NICHOLS, Sallie. Jung e o Tar: uma jornada arquetpica. So Paulo: Cultrix, 2006.MEDITAES sobre os 22 arcanos maiores do tar. So Paulo, Paulus: 2005.

    Figuras

    Figura 1: Tar Visconti Sforza, Milo, sculo XV (disponvel em: ; acesso em: 23 nov. 2013). Figura 2: Reis de espadas, ouros e paus. Tarot of The Old Path, Cos-Tarot of The Old Path, Cos-mic Tarot, Editora U. S. Games Systems Inc.Figura 3: O louco, arcano zero. Tars Rides Waite, Csmico e ou-tros. Imagem do site disponvel em: ; acesso em: 22 out. 2014.Figura 4: Cena do filme O Hobbit (disponvel em: ; acesso em: 28 ago. 2014) e o Eremita (Tarot of The Old Path. Editora U. S. Games Systems Inc.).Figura 5: Cenas do filme O Hobbit (disponvel em: ; acesso em: 28 ago. 2014) e a Papisa (Tarot of The Old Path e Rider Waite).Figura 6: Cena do filme Melancolia (disponvel em: ; acesso em 28 ago. 2014) e alguns exemplos do dez de paus (Tarot of The Old Path, Rider Waite, Mitolgico e outros).

  • 331Coleo ComuniCao em Cena V. 5

    Figura 7: Cena do filme As aventuras de Pi (disponvel em: ; acesso em 28 ago. 2014) e a carta da Fora (Tarot of The Old Path).Figura 8: Arcano o Enforcado (Tarot of The Old Path e Marselha) e cartaz do filme Natimorto (disponvel em: ; aces-so em 28 ago. 2014).Figura 9: Cenas do filme O violino vermelho (disponveis em: ; acesso em: 28 ago. 2014).Figura 10: Pajem de copas (Tarot of The Old Path e Mitolgico).Figura 11: Figura do padre que tentou voar com bales e caiu (dispo-nvel em: ; acesso em: 26 nov. 2013), cena do filme UP Altas aventuras (Pixar, diretor Pete Docter) e o Louco (Tarot of The Old Path e Marselha).Figura 12: Imagens do atentado de 11 de setembro s Torres Gmeas (disponveis em: ; acesso em: 25 nov. 2013) e cartas da Torre (Tarot of The Old Path, Marselha, Carbnico, Rider Waite e outros).

    Filmes

    O violino vermelho. Direo: Franois Girard. Canad/Itlia/Reino Uni-do: Warner Bros, 1998.O Hobbit. Direo: Peter Jackson. Nova Zelndia/Reino Unidos/Es-tados Unidos: Warner Bros, 2012.Melancolia. Direo: Lars Von Trier. Dinamarca/Sucia/Frana/Ale-Dinamarca/Sucia/Frana/Ale-manha: Califrnia Filmes, 2011.

    Site

    Clube do Tar. Disponvel em: . Acesso em: 25 nov. 2013.

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    Ana Cristina Vidal de Castro Ortiz (Titi Vidal)

    Astrloga, tarloga e terapeuta. Atende e ministra cursos e palestras. Foi vice-coordenadora do Estado de So Paulo e Vice--Presidente da CNA Central Nacional de Astrologia. Colunista de sites, revistas, jornais e televiso. Autora do CBA Caderno Brasileiro de Astrologia n. 19: Amor e Astrologia: em busca de relacionamentos me-lhores. Coautora dos livros Comunicao em Cena volumes 2 e 4, com os textos Astrologia nas redes sociais: uma nova forma de compartilhar o cu e Do olhar crtico viso compreensiva: olhando a Astrolo-gia atravs da(s) janela(s). Formada em Direito, atuou como advoga-da especialista em Direito da Famlia e das Sucesses. Ps-graduada em Comunicao Social, rea Comunicao Jornalstica, e mestranda em Comunicao, rea Comunicao na Contemporaneidade, na Fa-culdade Csper Lbero. Autora do site: www.titividal.com.br.

    Contatos: [email protected].