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A LEITURA INFINITA Bíblia e Interpretação Henrique Torres Ao considerar a Sagrada Escritura uma das formas mais eloquentes da expressão divina não é de estranhar que os textos bíblicos tenham sido indagados pelas mais diversas formas e pelas mais variadas razões, não seja este o Livro mais lido, interpretado e estudado pelo Homem, aquele a quem Deus deu a inspiração para a sua realização. O brilhantismo e o misticismo da Bíblia, bem como o seu carácter performativo e atual fazem um permanente convite à sua leitura e releitura. Muitos são os que se sentem provocados a ir mais longe estudando, analisando, investigando, refletindo e escrevendo sobre ela. No âmbito da disciplina de Revelação e Tradição foi proposto uma leitura seguida de resumo ou uma recensão sobre uma obra que fosse ao encontro da matéria trabalhada ao longo do semestre; após uma pesquisa, eis que encontrei um livro da autoria do Padre José Tolentino Mendoça que me chamou a atenção logo pelo seu título “A Leitura Infinita”. Nem mais a Bíblia é, sem dúvida , uma coletânea de livros que não se esgotam em si, infinitos! Podemos mesmo confirmar esta infinidade pelas palavras da Constituição Dogmatica Dei Verbum sobre a Revelação Divina que nos diz que A sagrada Tradição e a Sagrada Escritura constituem um só depósito sagrado da palavra de Deus, confiado à Igreja”. 1 Cativado pela obra elaborei a redação tendo em atenção o propósito do trabalho, no contexto da Tradição e Revelação, a redação procura uma aproximação com uma recensão. Sendo a Bíblia o “grande código da cultura ocidental”, segundo William Blake, é também o livro de todos, em especial os cristãos, aqueles que crendo no Verbo 1 IGREJA CATÓLICA. Papa, 1978-2005 (João Paulo II) – Constituição Dogmática, Verbum Dei, nº10 (1965) 1 Universidade Católica Portuguesa Porto, 28 de Janeiro de 2012

Trabalho de Propedeutica- Leitura Infinita1

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A LEITURA INFINITA

Bíblia e Interpretação

Henrique Torres

Ao considerar a Sagrada Escritura uma das formas mais eloquentes da expressão divina não é de estranhar que os textos bíblicos tenham sido indagados pelas mais diversas formas e pelas mais variadas razões, não seja este o Livro mais lido, interpretado e estudado pelo Homem, aquele a quem Deus deu a inspiração para a sua realização.

O brilhantismo e o misticismo da Bíblia, bem como o seu carácter performativo e atual fazem um permanente convite à sua leitura e releitura. Muitos são os que se sentem provocados a ir mais longe estudando, analisando, investigando, refletindo e escrevendo sobre ela.

No âmbito da disciplina de Revelação e Tradição foi proposto uma leitura seguida de resumo ou uma recensão sobre uma obra que fosse ao encontro da matéria trabalhada ao longo do semestre; após uma pesquisa, eis que encontrei um livro da autoria do Padre José Tolentino Mendoça que me chamou a atenção logo pelo seu título “A Leitura Infinita”. Nem mais a Bíblia é, sem dúvida , uma coletânea de livros que não se esgotam em si, infinitos! Podemos mesmo confirmar esta infinidade pelas palavras da Constituição Dogmatica Dei Verbum sobre a Revelação Divina que nos diz que “A sagrada Tradição e a Sagrada Escritura constituem um só depósito sagrado da palavra de Deus, confiado à Igreja”.1 Cativado pela obra elaborei a redação tendo em atenção o propósito do trabalho, no contexto da Tradição e Revelação, a redação procura uma aproximação com uma recensão.

Sendo a Bíblia o “grande código da cultura ocidental”, segundo William Blake, é também o livro de todos, em especial os cristãos, aqueles que crendo no Verbo Encarnado, fazem dele o seu código de vida, guia, almanaque de construção e orientação; pois as suas palavras inspiradas e reveladas pelo Pai são o alimento de vida e espiritualidade dos que acreditam no projeto salvífico do Pai.

Nesta obra de José Tolentino Mendonça encontramos uma coletânea de ensaios sobre teologia e exegese bíblicos; o autor procurará desmistificar e ajudar o leitor a ler a Bíblia, a interpretar e a transportar-se fazendo com que a palavra de Deus, que sendo também palavra humana, faça sentido na sua vida. Pois sendo o livro da vida, é o testemunho da vivência de um povo, o povo escolhido! O leitor é convidado a deleitar-se sobre um leque muito rico de elementos, escritos com especial clareza e simplicidade, oferecendo assim o alcance de uma sabedoria que está muito para além da superficialidade com que tantas vezes somos invadidos em domínios tão sérios como estes.

1 IGREJA CATÓLICA. Papa, 1978-2005 (João Paulo II) – Constituição Dogmática, Verbum Dei, nº10 (1965)

1Universidade Católica Portuguesa Porto, 28 de Janeiro de 2012

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O livro distribui-se em seis capítulos subdivididos em vários títulos em conformidade com o título do capítulo. São ensaios todos eles acolhedores e inesgotáveis que permitem ao leitor não uma mais várias leituras e sua exploração, uma vez que é frequente a relação que estabelece com a Bíblia através da menção de versículos. Introduz com um primeiro título “Elogio à Leitura” onde exulta a riqueza do livro sagrado e assume o papel revelador de Deus pela palavra; aborda vários aspectos que permitem melhor contextualizar e interpretar exemplificando o quão complexa pode ser a leitura da Bíblia; segue-se pelo “Escondimento e Revelação”, onde sentimos o exercício da “paternidade de Deus” até às sombras do carvalho de Mambré e da árvore da cruz e de “Ars Amatoria” sobre as declinações do amor, “A Cozinha e a Mesa”. Partindo de Santa Teresa de Ávila, que dizia “entendei que até mesmo na cozinha, entre as caçarolas, anda o Senhor”, começamos por deparar com o cru e o cozido de Levi-Strauss, para seguirmos criteriosa e lentamente as preocupações culinárias da Bíblia como grande livro civilizacional. Apresenta aqui, por um lado, a «face comestível» ou a «capacidade alimentícia» da Sagrada Escritura, e por outro o papel da refeição na vida cristã – sendo o mais significativo e representativo o sacramento da comunhão, a Eucaristia. E tudo isto recorrendo a série de alusões, citações, metáforas e comparações, bem como às referências, na própria Bíblia, à culinária e às refeições. No penúltimo capítulo “ No meio de vós está o que não conheceis” alude ao Verbo que se faz presente entre nós, dando voz a Deus que se apresenta entre o seu povo. A terminar este livro, três pequenos capítulos apresentam várias questões e respetivas respostas sobre o tema Bíblia: das suas formas de interpretação ou da sua sujeição à temporalidade.

Tolentino de Mendonça apresenta nestas páginas três capítulos de especial interesse e curiosidade sobre os quais irei explorar um pouco mais: “O Elogio da Leitura”; “ Ars Amatoria” e “A cozinha e a Mesa”.

“O auditor/leitor realiza a experiência de estar envolvido”

Num primeiro ensaio o autor faz um elogio à leitura da Bíblia, eis a razão pela qual ele o assim intitula.

A Sagrada Escritura é uma das mais brilhantes formas de comunicação de Deus com os homens. Deus faz uso da linguagem humana para se dar a conhecer. A riqueza e a diversidade de ferramentas usadas para a construção literária do texto bíblico tornam-no sublime, pois é nesta criatividade e liberdade literária que se dá a Revelação.

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A Bíblia solicita uma arte de interpretação, é impensável impor ao texto um programa de compreensão, “quando nos é pedido o contrário: que nos exponhamos ao texto, na nossa fragilidade, a fim de receber dele, e à maneira dele, um eu mais vasto”2.

Mais do que um livro, a Bíblia, é uma biblioteca de livros e é aí que está a riqueza do Mistério de Deus, é esta fonte inesgotável de palavras que nos interpelam e nos convidam a viver a experiência do Amor de Deus.

Escrito por diversos autores, em variados momentos e contextos concretos, é a expressão de uma vivência, numa linguagem humana e divina, a linguagem que Deus assim escolheu para se fazer apresentar ao seu povo. “A sua palavra aspira à categoria de não palavra ou não apenas palavra.”3É esta a riqueza expressiva da Sagrada Escritura, que antes do o ser já o era.

Quando esta Palavra assume forma, torna-se num texto sem fim, aberto a uma leitura inesgotável, esta é a sua singularidade. Ficando aberto o convite à sua permanente leitura e descoberta.

Na Bíblia são diversas as formas e os meios usados por Deus para se comunicar. As personagens, os contextos, as formas de expressão usadas mostram-nos e comunicam-nos a mensagem, este permanente contato entre o imanente e o transcendente, conduzem-nos e fazem-nos reviver e experimentar Deus, que manifestou nas suas vidas, e que continua a manifestar nas nossas.

“Os personagens da Bíblia são narrativamente desenhados com uma profundidade maior de consciência e destino.”4

A pluralidade de formas literárias dos textos bíblicos permite uma leitura diversa e em diferentes perspetivas. Hermann Gunkel considera a sagrada escritura um “documento religioso e literário”5 .

Eco de inspiração divina, a Bíblia é a revelação que Deus faz de si, as coisas reveladas por Deus na Sagrada Escritura, foram escritas por inspiração divina. Deus quis comunica-se com o seu povo e escolheu o Homem, o autor da sua revelação. Servir-se-á, em seu nome, para falar pelos profetas, ao seu povo eleito. Deus fala pela Palavra, este o veículo usado entre diversos outros

2 Mendonça, José Tolentino – ALEITURA INFINITA, Bíblia e interpretação. Lisboa: Assírio & Alvim, 2008. P.93 Ibidem, p.144 Mendonça, José Tolentino – ALEITURA INFINITA, Bíblia e interpretação. Lisboa: Assírio & Alvim, 2008. P.175 Ibidem, p.19

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e que melhor retrata o amor e a confiança que Deus delega no Homem, enquanto seu arauto. A Palavra torna-se veículo utópico. A Palavra, a possibilidade de Deus.

É interessante a analogia que o autor da obra faz usando Oscar Wilde, aludindo à frescura e o encanto dos Evangelhos6, o hálito de Deus que inunda de frescura as nossas vidas, e se faz sentir nas diversas formas da sua manifestação e que nos vai interpelando.

O acesso à Sagrada Escritura será uma das maiores preocupações do Concílio Vaticano II, era necessário que o povo de Deus tivesse acesso à sua Palavra, esta assumia assim um papel essencial! A Bíblia foi elevada ao centro da vida da Igreja7. Sendo Ela a expressão de fé de um povo, e a comunicação de Deus, revelada pela mão do Homem, deve estar disponível e acessível a todos os que dela quiserem enamorar.

No subcapítulo “A Bíblia, modos de usar” o Pe. Tolentino Mendonça alude não só à importância que é dada à Bíblia, como ressalva a forma como esta deverá ser usada, daí a importância da hermenêutica. A sua leitura não se trata de um processo simples, não é um texto que deva ser lido como um romance, não esqueçamos que se trata de Palavra de Deus, e como tal deve ser lida e interpretada à sua luz, à luz da época, do contexto da experiência que um povo fez de Deus. É uma descoberta continua!

“O texto relata uma experiência humana na sua complexidade, criando um universo próprio. No qual somos convidados a entrar.”8 O leitor não é apenas produtor ou consumidor , mas é produto do próprio texto”9. “O leitor é construído à medida que avança no texto”.10

O texto convida o leitor a fazer um exercício de entrega de si perante o texto, deixando-se levar pela sua Palavra, e deixando que esta sedimente em si, e faça frutos. “O ganho de uma leitura da Bíblia passa assim a ser proporcional áquilo que o leitor consente expor de si próprio, aos riscos que ele aceita correr tornando-se vulnerável no confronto com as palavras com as quais ele vai cruzar-se.”11 Assim quanto mais se expor ao texto, mais será rica será a experiência que fará do amor de Deus.

6 Cf. Ibidem, p.217 Cf. Ibidem, p.238 Mendonça, José Tolentino – ALEITURA INFINITA, Bíblia e interpretação. Lisboa: Assírio & Alvim, 2008. P.279 Ibidem, p.2810 Ibidem, p.2811 Ibidem, p.29

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O mistério da revelação de Deus ao longo da história, faz-nos sentir seguros e protegidos, como que um pai que protege o filho. É esta a experiência religiosa que fazemos pela fé, assim como o povo eleito o fez no passado.

O convite à leitura da Sagrada Escritura é permanente, como cristãos e não cristãos deveríamos olhar estes livros e estudá-los como quem estuda as grandes obras clássicas. Pois é numa leitura frequente e assídua que nos vamos deixando cativar pela Palavra e pela experiência da comunidade ou autor que a escreveu, que teve essa necessidade. As personagens da Bíblia não são acaso ou simples personagens, mas sim as escolhidas as eleitas por Deus conservam uma impenetrabilidade que as torna únicas.

A leitura da Bíblia é um exercício que deve ser cultivado, pois “a Bíblia está sempre por ler12”.

O leitor deve insistir, trabalhar, percorrer o longo caminho de aprendizagem que é a leitura das Sagradas Escrituras.

A riqueza dos escritos bíblicos está igualmente na palavra não escrita, sendo eco de uma experiência de relação do autor (o que escreve) nas diversas épocas com o Senhor , é impensável encontrar a totalidade dessa vivência ou experiência e o melhor com certeza da relação nunca foi escrito, aliás a passagem de Jo 20,30-31 é clara, referindo-se à palavra não escrita aos gestos não registados. “O Evangelho apresenta-se como uma escritura destinada a provocar da fé”13; a possibilidade de nos embrenhar no texto, de nos deixar interpelar e envolver numa leitura do que nunca foi registada, mas que foi texto antes de o ser. Os Evangelhos são livros abertos14 que procuram dar ao leitor a possibilidade de se encontrar com o texto, com o seu Autor Transcendente. “ O auditor/leitor realiza a experiência de estar envolvido. De lhe dizer respeito a história, sentindo-se, mais do que espetador, um verdadeiro ator imerso na palavra anunciada”.15

O Pe. José Tolentino Mendonça aborda a questão da estrutura abstrata do texto bíblico, que anuncia o texto propriamente dito, mas que não possui as condições de coesão e coerência entre os seus elementos para poder ser um conjunto organizado de signos, sendo assim “uma espécie de chave

12 Ibidem, p.3613Mendonça, José Tolentino – ALEITURA INFINITA, Bíblia e interpretação. Lisboa: Assírio & Alvim, 2008. P.4014 Cf. Ibidem p.4115 Ibidem p.44

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indispensável à decifração do real”16. “ O texto bíblico participa na construção do mundo, ao mesmo tempo que viabiliza a sua legibilidade”17. “Compreender a Bíblia é compreender-se”18. Este é o encanto dos escritos bíblicos, a permanente ligação entre o Homem e o seu Criador, a manifestação contínua e reveladora do Seu amor. É o convite permanente ao estreitamento de laços.

Outro aspeto ressalvado neste capítulo prende-se com a riqueza estética e a problemática que esta mesma pode assumir, se for mal interpretada e entendida como obra literária, narrativa poética, equiparada aos grandes clássicos literários, isto é a Palavra de Deus, enunciada nas Sagradas Escrituras, jamais poderá ser vista só nesse prisma pois esta é acima de tudo Palavra de Revelação, é Palavra que dá vida, que ilumina e dá sentido à criação.19A sua “inapagável identidade” não pode ser desvirtuada, é deveras importante que a exegese não caia num escolasticismo, que leve à deturpação e desvirtuamento dos escritos Bíblicos.20

O texto deve ser ouvido à luz de um contexto, de uma época, da realidade um povo, da esperança de salvação enunciada. Quando lido e relido, estudado e analisado à que ter em atenção os princípios hermenêuticos.21

O estatuto sagrado do texto, de texto inspirado exige uma atenção redobrada na sua leitura. “Ler estes textos separando-os da sua situação cultural de origem ou ocultando perante ele os nossos desejos é uma ingenuidade, quando não perversão.”22

“Deus não abandonou o mundo após o acto criador, mas continua a agir nele (…) manifestando a Sua solicitude paterna.”

No segundo ensaio o autor começa por falar do paraíso referenciando os Génesis na sequela da criação e da sua relação com o Homem, ao qual tudo

16 Ibidem p.4517 Ibidem p.4618 Ibidem p.4619 Cf. Ibidem p.5120 Cf. Ibidem p.5221 Cf. Ibidem p.5722 Ibidem p.59

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foi dado e que não se apercebendo da Graça Divina acabou por pecar desobedecendo ao seu Deus. É expulso do Éden e é a partir de então que se dá o primeiro, e misterioso, passo para a promessa. Este texto estabelece o vínculo de cooperação e relação entre a terra e o homem, que caminham mutuamente num entendimento permanente. “ A realidade desta aliança é descrita em termos de uma interacção dinâmica na narrativa de Gen 1, 28-31. Fala-se aí da vocação do Ser Humano, Mulher e Homem”23.

E nesta aliança o Homem tem uma grande responsabilidade que lhe é dada por Deus, dispor da criação, como integrante, mas em consciência de que sendo lhe dado ao seu dispor não é sua pertença, mas sua responsabilidade. “O homem emerge como pastor do criado. Faz as vezes de Deus, é seu lugar-tenente, seu representante e, nesse pressuposto, exerce a tarefa de cuidar”.24

“Neste amor o encontro é interminável, é sempre e ainda o desejo do encontro”

Num terceiro capitulo ao qual Tolentino Mendonça intitula de Ars Amatoria, a arte de amar, podia-nos levar à série de três livros do poeta romano Ovídio25, que escrita em versos tem como tema a arte de sedução; no entanto não é este o autor do qual ele nos fala mas sim de Deus, o qual podemos confundir o seu nome com a palavra Amor, pois é esta a sua maior forma de expressão quando se trata da sua criação .

Ars Amatoria fala-nos no amor de Deus que se revela permanentemente em nós. Neste capítulo o autor dedica-o quase exclusivamente ao livro Cântico dos Cânticos e ao testemunho do amor de Jesus entre os mais pobres e abandonados, na sua relação de amor gratuito e de entrega, sem medo nem pudor.

Controverso o livro bíblico do Cântico dos Cânticos que “ desde as hesitações que primeiro rodearam a sua integração no cânone sagrado, às

23 Mendonça, José Tolentino – ALEITURA INFINITA, Bíblia e interpretação. Lisboa: Assírio & Alvim, 2008. P.63

24 Ibidem p.25 Publius Ovidius Naso, conhecido como Ovídio nos países de língua portuguesa (Sulmo, 20 de março de 43 a.C. — Tomis, 17 ou 18 d.C.) foi um poeta romano que é mais conhecido como o autor de Heroides, Amores, e Ars Amatoria, três grandes coleções de poesia erótica, Metamorfoses, um poema hexâmetro mitológico, Fastos, sobre o calendário romano, e Tristia e Epistulae ex-Ponto, duas coletâneas de poemas escritos no exílio, no Mar Negro. Ovídio foi também o autor de várias peças menores, Remedia Amoris, Medicamina Faciei Femineae, e Íbis, um longo poema sobre maldição. Também é autor de uma tragédia perdida, Medeia. É considerado um mestre do dístico elegíaco e é tradicionalmente colocado ao lado de Virgílio e Horácio como um dos três poetas canônicos da literatura latina. In Wikipédia

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proibições ou, pelo menos, aos tácitos que o remeteram para um casulo de silêncio ; desde o desconcerto perante a linguagem ali utilizada à proliferação de alegóricas que, de certa forma , tentavam contornar ou substituir –se às dificuldades colocadas pelo texto.” 26 Pois bem nenhum outro texto bíblico conseguirá seduzir como este o fez, cativar a atenção do leitor para o amor como o que aqui é expresso, para o género de relação elevada ao ápice pelos sentimentos mais nobres; é um poema dotado de um exímio poder descritivo de um amor espiritual/carnal, que só tem expressão de igualdade em Deus, a sua leitura é inebriante, contagiante que nos eleva “há aqui um extraordinário trabalho de construção verbal que nos obriga a concluir que o autor anónimo seria um grande poeta”27

... o poema [Cântico dos Cânticos] irrompe igualmente com o seu quê de inesperado dentro do quadro bíblico. (...) As palavras como que se tornam de seda. Há aqui um extraordinário trabalho de construção verbal que nos obriga a concluir que o autor anónimo seria um grande poeta (ou uma grande poeta, como hoje se tem por provável). A sonoridade do original hebraico alcança um vigor musical, cheio de ressonâncias, mesmo para lá das rimas. E há uma acumulação de imagens, raras pela sua sensualidade, que balançam do corpo humano para o misterioso corpo da criação: por toda a parte, um colorido intrincado, vegetal; há os animais que pululam metafórica e literalmente; há perfumes que se derramam profusamente, tornando inebriante a própria leitura. (...) E "naturalmente" o Cântico é um epitalâmio, um canto de admiração trocado por dois enamorados, um sussurro e uma extraordinária meditação acerca do amor. (...) E o texto exprime com verdade a experiência de amor entre uma mulher e um homem. É assim que nos ensina que este amor natural é profundamente espiritual. (...)

Nos séculos V ou IV a.C., quando se calcula que este livro tenha sido escrito, a condição da mulher estava marcada por uma subalternidade em relação ao homem, e o espaço social em que se movia (salvo raras excepções) era restrito. Mas ela aqui alcança um protagonismo que a torna parceira autêntica do seu par. Nenhum outro texto bíblico dá a palavra à mulher numa tal proporção. Há uma acumulação de verbos na primeira pessoa, com a amada por sujeito. Ela busca e é buscada. Pede e é pedida. A sua palavra inaugura o canto. A mulher olha para o homem e avizinha-se a ele com a mesma impaciência e a mesma alegria de ele a ela. (...)

Neste amor o encontro é interminável, é sempre e ainda o desejo do encontro. Desejo vital, encravado no segredo do corpo como uma doença (...). O amor está sempre a ser proposto e reproposto: nunca é construção terminada. (...) O amor faz dos enamorados

26 Mendonça, José Tolentino – ALEITURA INFINITA, Bíblia e interpretação. Lisboa: Assírio & Alvim, 2008. P.11127 Ibidem p. 114

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nómadas, buscadores e mendigos. Todo o diálogo de amor é uma conversa entre mendigos: não entre gente que sabe, mas entre quem não sabe; não entre gente que tem, mas entre quem nada retém. Por isso, a maior declaração de amor não é uma ordem, é ainda um pedido: «Grava-me como selo em teu coração, como selo no teu braço, porque forte como a morte é o amor.» (Ct 8,6).

As mãos ardem folheando este livro que pede para ser lido por dentro dos olhos, este livro humano e sagrado, este cântico anónimo que todos sentem seu, este relato de um sucesso e de um naufrágio ao mesmo tempo manifestos e secretos, esta ferida inocente, esta mistura de busca e de fuga, este rapto onde tudo afinal se declara, esta cartografia incerta, este estado de sítio, este estado de graça, este único sigilo gravado a fogo, este estandarte da alegria, este dia e noite enlaçados, esta prece ininterrupta onde Deus se toca.

(...)

Enquanto «poesia corpórea», o Cântico «oferece sobretudo a possibilidade de nos reconciliarmos com a sexualidade» (G. Ravasi, Il linguaggio dell'amore, Bose, Qiqajon, 2005, 36), pois, na palavra que a proclama, os seres humanos emergem numa dignidade altíssima. (...) na experiência erótica, dá-se a aparição do Outro em toda a sua frágil vulnerabilidade, e esse acontecimento impele a que a distância seja elidida através de um gesto que nada mais quer além de ser amor.

(...)

O amor é a forma mais radical de hospitalidade.

Concluída a leitura deste capítulo alcanço o quão importante foram os conhecimentos adquiridos em contexto de aula, reconheço as minhas limitações nesta área e daí a importância da disciplina para uma análise mais coerente do capítulo escolhido. Esta obra do Pe. José Tolentino Mendonça está muito interessante e apelativa, e a sua linguagem acessível permite aqueles que, como eu, começam a dar os primeiros passos e a estreitar relações com a Palavra de Deus.

Henrique Ramos Torres

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