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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS CURSO DE DIREITO
TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO
DÉBORA ROCHA DE ABREU
Itajaí, novembro de 2008.
UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS CURSO DE DIREITO
TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO
DÉBORA ROCHA DE ABREU
Monografia submetida à Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, como
requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Direito.
Orientador: Professor Silvio Noel de Oliveira Júnior
Itajaí, novembro de 2008.
AGRADECIMENTO
Agradeço o apoio e compreensão dos meus pais e da minha irmã na realização deste trabalho.
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho à todos que sofreram e ainda sofrem com o trabalho escravo e também àqueles que se dedicam para a sua erradicação
definitiva no nosso país e no mundo.
TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE
Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo
aporte ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do
Vale do Itajaí, a coordenação do Curso de Direito, a Banca Examinadora e o
Orientador de toda e qualquer responsabilidade acerca do mesmo.
Itajaí, novembro de 2008.
Débora Rocha de Abreu Graduando
PÁGINA DE APROVAÇÃO
A presente monografia de conclusão do Curso de Direito da Universidade do Vale
do Itajaí – UNIVALI, elaborada pela graduanda Débora Rocha de Abreu, sob o
título Trabalho Escravo Contemporâneo, foi submetida em 20 de novembro de
2008 à banca examinadora composta pelos seguintes professores: Silvio Noel de
Oliveira Júnior (professor orientador) e Rosane Maria Rosa (professora
examinadora), e aprovada com a nota___________.
Itajaí, novembro de 2008.
Professor Silvio Noel de Oliveira Júnior Orientador e Presidente da Banca
Prof. MSc Antônio Augusto Lapa Coordenação da Monografia
ROL DE ABREVIATURAS E SIGLAS
CP Código Penal Brasileiro CRFB/88 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 MTE Ministério do Trabalho e Emprego OIT Organização Internacional do Trabalho
IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturas Renováveis INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
ANAMATRA Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho TRT Tribunal Regional do Trabalho CLT Consolidação das Leis do Trabalho ANPT Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho PGT Procuradoria Geral do Trabalho OAB Ordem dos Advogados do Brasil MPT Ministério Público do Trabalho
ROL DE CATEGORIAS
Rol de categorias que a Autora considera estratégicas
à compreensão do seu trabalho, com seus respectivos conceitos
operacionais.
Direito do Trabalho:
È o conjunto de princípios, regras e instituições atinentes à relação de
trabalho subordinado e situações análogas, visando assegurar melhores
condições de trabalho e sociais ao trabalhador, de acordo com as
medidas de proteção que lhe são destinadas.1
Direitos Humanos
É um conjunto mínimo de direitos que permitem ao ser humano viver com
dignidade. Nesses termos, cabe aduzir que é a dignidade o parâmetro
que pensamos deva ser utilizado para definir o que deve ser considerado
como integrante dos Direitos Humanos.2
Liberdade
Do latim libertas, de líber (livre), indicando genericamente a condição de
livre ou estado de livre, significa, no conceito jurídico, a faculdade ou
poder outorgado à pessoa para que possa agir segundo sua própria
determinação, respeitadas, entretanto, as regras legais instituídas. A
liberdade, pois, exprime a faculdade de se fazer ou não fazer o que se
quer, de pensar como se entende, de ir e vir a qualquer atividade, tudo
conforme a livre determinação da pessoa, quando não haja regra
1MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho .24. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p.16. 2FILHO, José Cláudio Monteiro de Brito. Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação, 2006. p. 126.
proibitiva para a prática do ato ou não se institua principio restritivo ao
exercício da atividade.3
Trabalho
Entender-se-á, todo esforço físico, ou mesmo intelectual, na intenção de
realizar ou fazer qualquer coisa. No sentido econômico e jurídico, porém,
trabalho não é simplesmente tomado nesta acepção física: é toda ação,
ou todo esforço, ou todo desenvolvimento ordenado de energias do
homem, sejam psíquicas, ou sejam corporais, dirigidas a um fim
econômico, isto é, para produzir uma riqueza, ou uma utilidade, suscetível
de uma avaliação, ou apreciação monetária.4
Trabalho Decente
É um conjunto mínimo de direitos do trabalhador que corresponde: à
existência de trabalho; à liberdade de trabalho; à igualdade no trabalho;
ao trabalho em condições justas, incluindo a remuneração, e a
preservação de sua saúde e segurança; à proibição do trabalho infantil; à
liberdade sindical; e à proteção contra os riscos sociais.5
3SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico,1996. p. 84. v. III. 4SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996. p. 392. v. III. 5FILHO, José Cláudio Monteiro de Brito. Trabalho com redução à condição análoga à de escravo: análise à partir do trabalho decente e de seu fundamento, a dignidade da pessoa humana. Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação. Gabriel Velosso, Marcos Neves Fava, coordenadores. São Paulo: LTr, 2006. p. 128.
SUMÁRIO
RESUMO ............................................................................................................... XII
INTRODUÇÃO ............................................... ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO.
CAPÍTULO 1.......................................................................................................... 04
PARTE HISTÓRICA ................................................................................................ 04 1.1 PARTE HISTÓRICA .......................................................................................... 04 1.2 PRÉ-HISTÓRICA .............................................................................................. 05 1.3 ANTIGUIDADE ORIENTAL .............................................................................. 06 1.3.1 EGITO ............................................................................................................ 07 1.3.2 MESOPOTÂMIA ............................................................................................... 08 1.4 GRÉCIA. ......................................................................................................... 08 1.4.1 GRÉCIA ANTIGA E PERÍODO HELENÍSTICA ............................................................ 08 1.4.2 ESPARTA ......................................................................................................... 09 1.4.2 ATENAS .......................................................................................................... 10 1.4.2.1 A escravidão por dívidas ................................................................... 10 1.5 ROMA ............................................................................................................. 11 1.6 IDADE MÉDIA ................................................................................................. 12 1.7 IDADE MODERNA .......................................................................................... 14 1.8 BRASIL ............................................................................................................ 15 1.8.1 A ESCRAVIZAÇÃO DO INDÍGENA ........................................................................ 16 1.8.2 A ESCRAVIZAÇÃO DO NEGRO AFRICANO............................................................. 18 1.8.2.1 ANTECEDENTES DA ABOLIÇÃO ......................................................................... 21
CAPÍTULO 2.......................................................................................................... 26
CONCEITOS CONTEMPORÂNEOS ...................................................................... 26 2.1 O RECONHECIMENTO DA EXISTÊNCIA DE TRABALHO ESCRAVO NO BRASIL ................................................................................................................ 26 2.2 O ESCRAVO CONTEMPORÂNEO ............................................................... 26 2.3 O ESCRAVIZADOR CONTEMPORÂNEO..................................................... 29 2.4 TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO .............................................. 32 2.4.1 DENOMINAÇÃO ADOTADA PELO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO ................ 35 2.4.2 TRABALHO EM COMDIÇÕES ANÁLOGAS À DE ESCRAVO ...................................... 35 2.4.2.1 TRABALHO FORÇADO ................................................................................... 38 2.4.2.2 RESTRIÇÃO DA LOCOMOÇÃO DO TRABALHADOR, POR QUALQUER MEIO, EM RAZÃO DE DÍVIDA CONTRAÍDA COM O EMPREGADOR OU PREPOSTO ........................................ 41 2.4.2.3 CONDIÇÃO DEGRADANTE DE TRABALHO ........................................................ 43 2.4.2.4 JORNADA EXAUSTIVA ................................................................................... 44 2.4.3 AS DIFICULDADES NA APLICAÇÃO DO ART. 149 DO CÓDIGO PENAL ..................... 45 2.5 REINCIDÊNCIA NA PRÁTICA DO TRABALHO ESCRAVO......................... 46
CAPÍTULO 3................................................... ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO.
INSTRUMENTOS JURÍDICO-INSTITUCIONAIS PARA A ERRADICAÇÃO DO TRABALHO EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS À DE ESCRAVO .... ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. 3.1 O TRABALHO ESCRAVO EM DIFERENTES SISTEMAS NORMATIVOS ..................................................................... ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. 3.2 O TRABALHO ESCRAVO NA NORMA CONSTITUCIONAL ....................... 49 3.2.1 O MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO .................. ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. 3.3 O TRABALHO ESCRAVO NO ÂMBITO INTERNACIONAL ......................... 55 3.3.1 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO - OIT .......................................... 58 3.4 AS MEDIDAS DE COMBATE AO TRABALHO EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS À DE ESCRAVO ADOTADAS NO BRASIL ................................... 60 3.4.1 GRUPO MÓVEL DE FISCALIZAÇÃO DO MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO ....... 60 3.4.1.1 A EXPERIÊNCIA DAS VARAS ITINERANTES DA OITAVA REGIÃO (PARÁ E AMAPÁ).. 63 3.4.2 GRUPO EXECUTIVO DE REPRESSÃO AO TRABALHO FORÇADO - GERTRAF ............. 65 3.4.3 O PRIMEIRO PLANO NACIONAL PARA A ERRADICAÇÃO AO TRABALHO ESCRAVO ... 67 3.4.4 O SEGUNDO PLANO NACIONAL PARA A ERRADICAÇÃO AO TRABALHO ESCRAVO ... 71 3.4.5 COMISSÃO NACIONAL DE ERRADICAÇÃO DO TRABALHO ESCRAVO - CONATRAE.... 75 3.4.6 CADASTRO DE EMPREGADORES QUE TENHAM MANTIDO TRABALHORES EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS À DE ESCRAVO - LISTA SUJA .................................................. 77
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 80
REFERÊNCIA DAS FONTES CITADAS ................................................................... 83
RESUMO
O Trabalho Escravo Contemporâneo é reconhecido a
partir do momento em que há o desrespeito ao atributo maior do ser
humano, que é a sua dignidade; tem origem eminentemente econômica
e como conseqüência a exclusão social. É considerado uma prática ilegal
sob vários aspectos: criminal, civil, trabalhista, administrativo e
constitucional. O artigo 149 do Código Penal Brasileiro buscou dar ao
trabalho escravo tratamento amplo, para isso, adotou a expressão
“trabalho análogo à de escravo”, assegurando proteção à liberdade
plena do trabalhador e das condições dignas para o exercício do
trabalho. Desta forma, temos quatro modalidades que, de forma isolada,
ou integrada, podem caracterizar o trabalho como análogo ao de
escravo, que são: Trabalho Forçado; Jornada Exaustiva; Condição
Degradante de Trabalho; e Restrição da Locomoção do Trabalhador, por
qualquer meio, em razão de dívida contraída com o empregador ou
preposto. Atualmente no Brasil estão em curso diversas iniciativas para a
erradicação do trabalho escravo, dentre as quais, o Segundo Plano
Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, o Cadastro de
Empregadores que Tenham Mantido Trabalhadores em Condições
Análogas à de Escravo e o Grupo Móvel de Fiscalização do Ministério do
Trabalho e Emprego.
INTRODUÇÃO
A presente Monografia tem como objeto a
investigação dos aspectos fundamentais do Trabalho Escravo
Contemporâneo no Ordenamento Jurídico Brasileiro, assim como apontar
Instrumentos Jurídico-Institucionais para a sua erradicação definitiva no
Brasil Contemporâneo.
O estudo desse tema é de extrema significância para
o ordenamento jurídico vigente, justificando uma pesquisa aprofundada,
não somente por sua importância social, mas por ser considerado uma
prática ilegal perante a norma constitucional, legislação
infraconstitucional e normas internacionais.
Esta pesquisa tem como objetivos: institucional,
produzir monografia para obtenção do grau de bacharel em Direito, pela
Universidade do Vale do Itajaí – Univali; geral, investigar as peculiaridades
do Trabalho Escravo Contemporâneo no Brasil; específicos, 1) Identificar as
quatro modalidades de trabalho em condições análogas à de escravo
previstas no artigo 149 do Código Penal (ilícito penal); 2)identificar a
ilicitude do Trabalho Escravo Contemporâneo perante a Constituição
Federal vigente e legislação infraconstitucional; e, 3) investigar algumas
das mais relevantes formas de prevenção e repressão ao Trabalho Escravo
no Brasil.
A pesquisa foi desenvolvida tendo como base os
seguintes problemas:
1ª Qual é a origem do trabalho escravo
contemporâneo?
2ª Quais são as ações pró-ativas adotadas pelo Poder
Judiciário visando o combate do trabalho escravo?
3ª Por que mesmo diante de medidas repressivas
observa-se a reincidência na prática da escravidão?
Diretamente relacionadas a cada problema
formulado, foram levantadas as seguintes hipóteses:
a) O trabalho escravo contemporâneo tem origem
eminentemente econômica;
b) O Poder judiciário adota uma postura ativa e
transformadora em face à prática de trabalho
escravo, com ações repressivas e preventivas capazes
de provocar mudanças sociais necessárias e urgentes;
c) A problema da reincidência na prática do trabalho
escravo coloca em discussão a efetividade dos
mecanismos de repressão adotados no Brasil.
Para a investigação do objeto e alcance dos objetivos
propostos, adotou-se o método indutivo6, operacionalizado com as
técnicas7 do referente8, da categoria9, dos conceitos operacionais10 e da
pesquisa bibliográfica, dividindo-se o relatório final em três capítulos.
6 O método indutivo consiste em ‘pesquisar e identificar as partes de um fenômeno e colecioná-las de modo a ter uma percepção ou conclusão geral’. [Pasold, 2001, p. 87]. 7 “Técnica é um conjunto diferenciado de informações reunidas e acionadas em forma instrumental para realizar operações intelectuais ou físicas, sob o comando de uma ou mais bases lógicas investigatórias”. [Pasold, 2001, p. 88]. 8 Referente “é a explicitação prévia do motivo, objetivo e produto desejado, delimitando o seu alcance temático e de abordagem para uma atividade intelectual, especial-mente para uma pesquisa”. [Pasold, 2001, p. 63]. 9 Categoria “é a palavra ou expressão estratégica à elaboração e/ou expressão de uma idéia”. [Pasold, 2001, p. 37]. 10Conceito Operacional é a “definição para uma palavra e/ou expressão, com o desejo de que tal definição seja aceita para os efeitos das idéias que expomos”. [Pasold, 2001, p. 51].
No primeiro capítulo tratar-se-á sobre a parte histórica
do trabalho escravo no mundo, com ênfase na apresentação das
particularidades inerentes de cada época sobre a prática do trabalho
escravo, inicia-se, portanto pela Pré-História, seguida pela Antiguidade
Oriental, Grécia, Roma, Idade Média, Idade Moderna e chegando ao
Brasil Colonial até a Abolição da Escravatura em 1888 pela Lei Áurea.
No segundo capítulo, discorrer-se-á sobre o Trabalho
Escravo Contemporâneo no Brasil, abordando-se as características
contemporâneas de quem é o escravo, daquele que escraviza, de que
forma e em que local se realiza e a ilicitude penal, abordando as
características das quatro modalidades de trabalho com redução
análoga à de escravo admitidas pelo art. 149 do Código Penal.
No terceiro e último capítulo, investigar-se-á a
ilegalidade do trabalho escravo perante a norma constitucional, normas
internacionais e legislação infraconstitucional; e os instrumentos jurídico-
institucionais adotados para a sua erradicação.
O presente relatório da pesquisa se encerra com as
considerações finais, nas quais são apresentados pontos conclusivos
destacados, estabelecendo-se breve síntese de cada capítulo, seguidos
da estimulação à continuidade dos estudos e demonstração sobre as
hipóteses básicas da pesquisa, verificando se as mesmas restaram ou não
confirmadas.
CAPÍTULO 1
PARTE HISTÓRICA
1.1 PARTE HISTÓRICA
“Antiga instituição na história da humanidade, a
escravidão, em cada época, tem apresentado as suas
particularidades”.11
“Daí a necessidade de analisar como a escravidão era
vivenciada e como foi transformando até atingir o perfil atual.”12
“O estudo do passado, longe de ser operação
saudosista, [...] pode ser uma arma para abrir caminho aos grandes
movimentos democráticos integrais [...].”13
Mas surge aqui uma dúvida: o que reacende com tanto vigor esta matéria quando, ao estudarmos a evolução da civilização brasileira sobre o tema, iremos nos deparar com o fato de que a escravidão nunca deixou de existir no Brasil?Talvez não seja possível dizer se o panorama social melhorou, mas com certeza, o fenômeno da escravidão é mais sutil, mais dissimulado. [...] Se algum dia conseguirmos erradicar com qualquer espécie de trabalho escravo, o homem que viver nesta época irá também voltar seus olhos indignados para este passado da nossa atual história.14
11CARLOS, Vera Lúcia. Estratégia de atuação do Ministério Público do Trabalho no combate ao trabalho escravo urbano. In: VELLOSO, Gabriel; FAVA, Marcos Neves (Org). Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação. São Paulo: LTr, 2006. p. 269. 12PEDROSO, Eliane. Da negação ao reconhecimento da escravidão contemporânea. In: VELLOSO, Gabriel; FAVA, Marcos Neves (Org). Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação. São Paulo: LTr, 2006. p. 19. 13PEDROSO, Eliane. Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação, 2006.p. 17. 14PEDROSO, Eliane. Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação, 2006. p. 19.
1.2 PRÉ-HISTÓRIA
O período registrado desde o aparecimento do homem na Terra até a invenção da escrita é convencionalmente conhecido como Pré-História e se divide em três períodos: Paleolítico ou período da pedra lascada, que se estendeu por mais de 2,5 milhoes de anos; Neolítico ou período da pedra polida, que teve inicio há mais de 20 mil anos; e Idade dos metais. A esses períodos correspondem as denominações: selvageria, barbárie e civilização.15
Deste longo período, o que merece nosso destaque é
a Idade dos Metais, isso porque foi o primeiro registro de trabalho escravo.
Porém, para entendermos como surgiu este instituto,
faz-se necessário o entendimento dos outros dois períodos anteriores, pois,
a maneira como o homem passou a organizar a vida em sociedade, a
relação dele com o meio ambiente e a conquista de novas áreas, são
fatores determinantes para a prática do trabalho escravo, independente
da época histórica, conforme veremos no decorrer do trabalho.
Iniciaremos pelo período Paleolítico na
contextualização histórica de Arruda e Pileti:
O Paleolítico é o período mais extenso período da história da humanidade[...]. Sem conhecer a agricultura e a criação de animais, eles se alimentavam da caça, da pesca e da coleta de frutos, o que os obrigava a uma vida nômade. Uma descoberta-chave nesse período foi o domínio do fogo. [...] Os instrumentos utilizados, a princípio, eram de osso e madeira; depois, de pedra e marfim.16
15MOTA, Myriam Becho; BRAICK, Patrícia Ramos. História: das cavernas ao Terceiro Milênio. São Paulo: Moderna, 1998. p. 04, grifo dos autores. 16ARRUDA, José Jobson de A.; PILETTI, Nelson. Toda a História: História Geral e História do Brasil. 8. ed. São Paulo: Ática, 2000. p. 10.
Passamos então para as características dos dois
períodos seguintes, Neolítico e da Idade dos Metais, na concepção de
Mota e Braick:
A característica fundamental do período neolítico pode ser atribuída às transformações aceleradas nas relações entre o homem e o ambiente. A prática da agricultura e a domesticação dos animais permitiu às sociedades primitivas o controle da produção de alimentos, a sedentarização e, conseqüentemente, o aumento da população. [...] Os bandos nômades cederam lugar às tribos que passaram a viver em aldeias, em casas feitas de madeira, barro ou adobe. Os grupos neolíticos aperfeiçoaram as técnicas de construção de armas e utensílios, construíram canoas, jangadas e barcos, importantes para suas migrações e a conquista de novos espaços. [...]A Idade dos Metais ocorreu ao mesmo tempo que a revolução urbana, com a transformação das aldeias agrícolas auto-suficientes em aglomerados urbanos. Os instrumentos de pedra foram aos poucos substituídos pelos de metal, primeiro pelo cobre (6000 a. C.), depois pelo bronze e, mais tarde, de ferro. [...] O uso de armas de metal favoreceu a prática da guerra, possibilitando a dominação de um povo sobre outro, com a conquista de cidades e territórios e a escravização dos vencidos. Foi neste contexto que se desenvolveram as grandes civilizações da Antiguidade Oriental. 17
1.3 ANTIGUIDADE ORIENTAL
A história do Egito e das outras sociedades orientais da
Antiguidade são objetos de estudo de muitos pesquisadores do mundo
todo, porque “a civilização ocidental tem suas raízes nos povos do
Oriente, que nos deixaram uma herança inestimável.”18
17MOTA, Myriam Becho; BRAICK, Patrícia Ramos. História: das cavernas ao Terceiro Milênio. São Paulo: Editora Moderna, 1998. p. 5-7. 18MOTA, Myriam Becho; BRAICK, Patrícia Ramos. História: das cavernas ao Terceiro Milênio, 1998. p. 12.
Nesta época houve registros de trabalho escravo,
conforme Vera Lúcia Carlos:
Na Idade Antiga, por conseqüência direta das guerras travadas entre os povos e tribos, o extermínio do inimigo vencido deu lugar ao aprisionamento e escravização dos mesmos. Os inimigos-escravos passaram a ser utilizados na realização de serviços agrícolas, nas construções, nas atividades domésticas e em outras áreas da conveniência dos respectivos dominadores, ou seja, passaram a substituir os dominadores nas atividades laborais. 19
1.3.1 Egito
O Egito está localizado no Nordeste da África, sua
economia se baseava na agricultura, pois tinha solo fértil, sua sociedade
era hierárquica e tendia ao imobilismo, vejamos sua organização social na
descrição de Arruda e Piletti:
No Egito, o faraó ocupava o topo da hierarquia social. [...] A população estava organizada em diversas camadas sociais, como o dos sacerdotes, nobres, escribas, soldados, camponeses, artesãos e escravos. [...] Os escravos, inteiramente dependentes de seus senhores, eram em geral bem tratados. Os egípcios, mais tolerantes que os outros povos contemporâneos, consideravam-se obrigados a oferecer certa segurança aos escravos – que eram numerosos em época de guerra.20
A procedência dos escravos no Egito, segundo
Mocellin, “eram a captura na guerra, o comércio, a prole dos escravos e
o tributo das regiões dominadas que incluía cativos. [...] O escravo egípcio
tinha personalidade jurídica [...].”21
19CARLOS, Vera Lúcia. Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação, 2006, p. 269. 20ARRUDA, José Jobson de A.; PILETTI, Nelson. Toda a História: História Geral e História do Brasil, 2000, p. 20-21. 21 MOCELLIN, Renato. História: ensino médio. São Paulo: IBEP, 2004. p. 30.
1.3.2 Mesopotâmia
Aproximadamente na mesma época em que se
desenvolveu a sociedade egípcia, outros povos também começaram a se
organizar na região que recebeu o nome de Mesopotâmia, e que
também teve a escravidão presente na sua organização social, conforme
podemos verificar na obra de Arruda e Piletti:
Na Mesopotâmia – que em grego significa entre rios – viveram muitos povos. A região, localizada entre os rios Tigre e Eufrates, era fértil e menos protegida que a do vale do rio Nilo, o que facilitava a fixação de populações, a formação de cidades e uma intensa disputa pelas melhores terras. [...] A organização social dos povos mesopotâmicos estava sedimentada na antiga estrutura tribal, dividida em clãs e famílias. [...] O rei impunha-se pelo caráter divino de sua missão, mas não era considerado um deus, como entre os egípcios. Acumulava riquezas fabulosas, tinha palácios e uma corte. Ligado ao Estado, surgiu um grupo social formado por nobres, funcionários e sacerdotes, que usufruíam dos impostos arrecadados. [...] Na Mesopotâmia predominavam as pessoas livres. Os escravos surgiram sobretudo durante as guerras e pertenciam a comunidade. [...] Os escravos eram utilizados nos trabalhos mais duros, como o das minas. Vendidos como animais, andavam sempre de cabeça raspada e podiam ter a testa marcada a ferro quente. Muitos eram antigos homens livres que, para fugir à pobreza, acabaram se vendendo como escravos. 22
1.4 GRÉCIA
1.4.1 Grécia Antiga e Período Helenístico
A história da Grécia Antiga estende-se do século XX ao
século IV a.C., e é normalmente dividida em quatro períodos, Pré-
Homérico, Homérico, Arcaico e Clássico. 22ARRUDA, José Jobson de A.; PILETTI, Nelson. Toda a História: História Geral e História do Brasil, 2000, p. 24-26.
No período Pré-Homérico não há vestígios de trabalho
escravo, somente encontramos a escravidão no período Homérico, mas
só se recorria ao trabalho de escravos em casos excepcionais, como por
exemplo, quando a família não era numerosa ou não dominava
determinada técnica de produção.
Somente a partir da segunda metade do século IV a.
C., período conhecido como Helenístico, é que os escravos aparecem
como fonte de mão-de-obra, mas eles constituíam uma pequena parcela
da população e não tinham grande importância na vida econômica das
cidades-estados. Portanto, ainda não havia uma sociedade escravista.
1.4.2 Esparta
Localizada na península do Peloponeso, a cidade de
Esparta foi fundada pelos invasores dórios no século IX a. C., na planície
fértil da Lacônia, que dominaram os antigos habitantes e manteve seu
domínio através de uma ação militar permanente, pois se consideravam
descendentes dos dórios, de quem herdaram o espírito guerreiro e
encontravam na guerra sua vocação. Sobre a organização social
adotada nesta sociedade, descrevem Arruda e Piletti:
Foi uma das primeiras pólis a surgir na Grécia. [...] O crescimento da população e o esgotamento das terras levaram os espartanos a empreender, em fins do século VIII a. C., novas campanhas de conquistas a oeste do Peloponeso, dominando a Messênia. Em 650 a.C., os messênios revoltaram-se contra Esparta, numa guerra que durou cerca de trinta anos. Ao final, vencidos, foram reduzidos à condição de escravos. O grande número de escravos passou a representar para Esparta um perigo permanente. Com medo de revoltas, os dórios voltaram-se inteiramente para o controle dessa população. As guerras de conquista foram interrompidas e as intervenções externas limitadas às cidades próximas, apenas para garantir a hegemonia na região. [...] A economia e a
sociedade espartana sofreram profundas transformações. [...] Os escravos, conhecidos como hilotas, passaram a ser também propriedade do Estado e foram distribuídos à razão aproximadamente de seis por lote. Eles eram obrigados a pagar uma renda fixa a quem detinha usufruto do lote. Essa renda era composta por cevada, frutas, vinho, azeite e produtos artesanais de uso diário. Com o tempo, passaram a ter de entregar metade da produção do lote. Os dórios não podiam matá-los nem mutila-los, a não ser por ordem do Estado. Com pequena proteção da lei, as condições de vida desse grupo social eram das mais miseráveis do mundo antigo. 23
1.4.3 Atenas
Em Atenas, hoje capital da Grécia, no período clássico,
predominou o modo de produção escravista.
Os escravos eram geralmente capturados na guerra
ou adquiridos por compra e trabalhavam em todas as atividades. Não
eram considerados cidadãos, como também as mulheres e crianças.
1.4.3.1 Escravidão por dívida
Em Atenas, também se admitiu a modalidade de
escravidão por dívida.
A origem desta modalidade estava diretamente
relacionada com o poder econômico e político da aristocracia, pois
quando o rei passou a acumular funções de chefe religioso, militar e
jurídico, a aristocracia se fortaleceu em detrimento dos reis e das
camadas menos favorecidas da sociedade. Isto porque estes acabaram
recorrendo àqueles para resolverem seus problemas e conseqüentemente
isto não era gratuito, nem uma troca de favores, pois eles davam como
garantia suas terras ou a liberdade. 23ARRUDA, José Jobson de A.; PILETTI, Nelson. Toda a História: História Geral e História do Brasil, 2000, p. 45.
Consecutivamente, veremos justificações idênticas na
obra de Arruda e Piletti e na de Mota e Braick para a criação desta
modalidade de escravidão:
No século VIII a. C., a economia ateniense era essencialmente rural. A camada social dominante era constituída pelos eupátridas, os bem-nascidos. Eram proprietário de terras férteis, cultivadas pos escravos, rendeiros ou assalariados. [...] Outra camada da sociedade ateniense era formada pelos proprietários de terra pouco férteis localizadas junto às montanhas. Com o aumento da atividade comercial, a situação desse grupo tornou-se difícil, pois os cereais importados passaram a concorrer com seus produtos. Quando a colheita era ruim, esses proprietários recorriam aos empréstimos dos eupátridas. Como garantia, davam a terra ou o próprio corpo. Como resultado muitos perdiam suas propriedades e tornavam-se rendeiros. Se tivessem empenhado o corpo tornavam-se escravos e podiam ser vendidos. 24
À medida que a nobreza se apropriava das terras cultiváveis e, conseqüentemente, adquiria maior poder político, os pequenos proprietários empobreciam e se endividavam. Não conseguindo saldar as dívidas, perdiam suas propriedades e até mesmo a liberdade. Era a escravidão por dividas. Gregos tornavam-se escravos de gregos, ao lado de cativos de outras origens, como os prisioneiros de guerra e escravos adquiridos em mercados especializados. [...] Em 594 a.C. a eleição de Sólon trouxe reformas socioeconômicas e políticas, como o fim da escravidão por dividas e a libertação de todos devedores escravizados. 25
1.5 ROMA
Em Roma, a partir do século III a. C., o modo de
produção escravista passou a predominar e o escravo exercia diversas 24ARRUDA, José Jobson de A.; PILETTI, Nelson. Toda a História: História Geral e História do Brasil, 2000, p. 47. 25MOTA, Myriam Becho; BRAICK, Patrícia Ramos. História: das cavernas ao Terceiro Milênio, 1998, p. 38. grifo dos autores.
funções em diferentes setores: de agricultor a professor; de artesão a
carregador. Além disso, o tráfico de escravos foi um importante setor do
comércio romano.
Michèle Ducos aborda sobre a situação jurídica do
escravo em Roma:
O escravo pertencia a um senhor e, juridicamente, era definido como uma res, ou seja, um bem sobre o qual se exerce plenamente o direito de propriedade. Isso significava que ele podia ser vendido, comprado ou alugado e mesmo compartilhado por dois senhores. Além disso, ele era objeto de reivindicação na justiça. Seu senhor possuía sobre ele um poder absoluto, expresso, em geral, pelo termo potestas. Este substantivo, utilizado por designar todo o poder reconhecido pelo Direito, aparece para manifestar o direito do senhor, que é o de coerção e de vida e de morte. Uma situação assim implicava, para o escravo, um dever de obediência que, durante muito tempo não sofreu exceção, mas parece abrandar-se com o tempo [...] Progressivamente, o fato de o escravo ser considerado uma res foi sendo esquecido e ele começou a ser visto como ser humano, suscetível de ser protegido pelo poder imperial. [...] Uma atitude assim não está relacionada apenas com a integridade física do escravo. Este possuía também a inteligência, o que diferenciava de um objeto inanimado.26
1.6 IDADE MÉDIA
É o período compreendido do século V ao século XV.
Seu início foi marcado pela queda do Império Romano
do Ocidente, em 476; e o fim, pela tomada de Constantinopla pelos
turcos, em 1453.
26DUCOS, Michèle. Roma e o Direito. Tradução Silvia Sarzana; Mário Pugliesi Netto. São Paulo: Madras, 2007. p. 52-53.
O feudalismo foi o sistema econômico, político, social e
cultural característico da Europa na Idade Média.
Para o nosso trabalho o mais importante para se
destacar deste período é como se deu a passagem do trabalho escravo
para a servidão, que foi a forma de trabalho característica do feudalismo.
Mocellin aborda didaticamente esta transição:
Como vimos anteriormente, no Mundo Romano predominou o modo de produção escravista. A partir do século III, o escravismo romano entrou em crise. A produção agrícola caiu. O comércio e a produção artesanal urbana retraíram-se. Para sustentar a crise, os imperadores do século proibiram os colonos de abandonarem as terras onde trabalhavam e fixaram pessoas às suas profissões e ofícios. Nesta época, muitos senhores libertaram seus escravos, transformando-os em colonos. Os colonos eram ex-escravos ou camponeses livres, aos quais um grande proprietário arrendava parcela de suas terras, recebendo em troca a renda correspondente, quase sempre em gênero.
Embora esta mudança do modo de produção tenha
sido bem ilustrada por Mocellin, faz-se necessário a complementação de
Vera Lúcia Carlos:
A passagem do regime de escravidão para a servidão foi gradativa, sendo representada pela transferência da relação de domínio da pessoa para a propriedade. Assim, os servos não eram mais escravos, mas, na verdade, acessórios das propriedades dos senhores feudais.27
Apesar do modo de produção feudal ter tido o seu
apogeu no século XIII, esta forma de trabalho predominou até os séculos
XIV – XV, quando a Europa passou por uma série de transformações
econômicas, políticas, sociais e culturais, com as quais “se iniciou o
27CARLOS, Vera Lúcia. Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação, 2006, p. 269.
processo de desintegração do sistema feudal, possibilitando o
desenvolvimento do capitalismo comercial e da centralização política.”28
1.7 IDADE MODERNA
Neste período, os particularismos feudais e o
universalismo da Igreja foram superados pela centralização monárquica e
o conseqüente fortalecimento do poder real. A dissolução das relações
de servidão foram um dos motivos dessa centralização.
Sendo extremamente necessário destacar que a
constituição das monarquias nacionais “é um processo histórico muito
mais amplo, que, em hipótese alguma, se limita apenas ao período de
transição do feudalismo ao capitalismo,”29que se deu de forma bem
complexa, pois envolveu uma grave crise econômica e social, de
enormes proporções, que se passava na Europa, marcada por guerras,
rebeliões populares, diminuição da produção agrícola, fome prolongada
e uma epidemia de peste negra. Uma das saídas encontradas para a
superação das crises foram as Grandes Navegações.
Apenas os Estados efetivamente centralizados tinham condições de levar adiante tal empreendimento, dada a necessidade de um grande investimento e principalmente de uma figura que atuasse como coordenador – no caso, o rei. [...] Portugal foi o primeiro país a iniciar a expansão ultramarina. Isso foi favorecido por sua privilegiada posição geográfica [...] e por sua precocidade no processo de centralização monárquica [...]. A primeira conquista portuguesa foi Ceuta (primeiro centro de atração para os portugueses, por ser o ponto de confluência de duas importantes rotas terrestres: de especiarias e sedas orientais; e de ouro e escravos da África negra.), em 1415. [...] A rota
28PAZZINATO, Alceu Luiz; SENISE, Maria Helena Valente. História Moderna e Contemporânea. 11. ed. São Paulo: Ática, 1997. p. 7. 29FARIA, Ricardo de Moura; MARQUES, Adhemar Martins; BERUTTI, Flávio Costa. História.. Belo Horizonte: Editora Lê, 1993. p. 24. 3. vol.
do ouro sudanês, controlada pelos árabes, foi então desviada de Ceuta para o interior do Marrocos. Isso obrigou os portugueses a continuarem sua expansão marítima em direção ao sul da África [...], assim os portugueses iniciaram o périplo africano (contorno da costa africana), dominando as zonas litorâneas e as ilhas do Atlântico. Em seguida, fundaram entrepostos comerciais (feitorias) em toda a costa, o que lhes permitiu aumentar o volume de comércio, com a aquisição de ouro, escravos e especiarias. [...] A descoberta do Brasil em 1500 foi, uma conseqüência da expansão ultramarina portuguesa.30
Na Idade Moderna, a escravidão dos negros, oriundos
da África, bem como dos indígenas, mostrou-se presente. Porém, neste
período o trabalho dos escravos adquiriu outra característica e
justificativa, diretamente relacionada com o mercantilismo e com o
Sistema Colonial, porque passaram a dar ênfase à escravidão, não como
forma de “exclusão dos cidadãos do labor, como nos casos das
civilizações da Antiga Grécia, mas como fonte de lucro, por representar
mão-de-obra barata.31
1.8 BRASIL
Nesta parte será abordada a escravidão no Brasil do
Período Colonial, passando pelo Período Imperial, até a sua abolição, em
13 de maio de 1888, quando a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea.
“A contextualização histórica é necessária para uma
visão globalizante do problema, assim como o relato da situação do
trabalho em condições análogas às de escravo na atualidade no Brasil.”32
30PAZZINATO, Alceu Luiz; SENISE, Maria Helena Valente. História Moderna e Contemporânea, 1997. p. 12. 31CARLOS, Vera Lúcia. Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação, 2006. p. 270. 32SIMÓN, Sandra Lia; MELO, Luis Antonio Camargo. Produção, consumo e escravidão – restrições econômicas e fiscais. Lista suja, certificados e selos de garantia de respeito às leis ambientais trabalhistas na cadeia produtiva. In:
No início da colonização, a economia brasileira se
desenvolveu ligada aos interesses mercantilistas que vigoravam em
Portugal e em toda a Europa.
Portugal não tinha interesse em povoar as suas
colônias, mas sim prosseguir em busca do ouro e da prata, além de
desenvolver contato com novos mercados produtores e consumidores.
Conforme explica John Manuel Monteiro, a origem da
escravidão “encontrava-se na articulação de um sistema colonial que
buscava criar excedentes agrícolas e extrativistas, transformando riqueza
comercial, e apropriar-se dele.”33
A colônia deveria atender aos interesses da metrópole
através do chamado pacto colonial, no qual a Coroa Portuguesa detinha
monopólio sobre o comércio do Brasil. Desta forma, o colonizador europeu
vinha para cá em busca de lucro fácil. Porém, havia escassez
populacional, o que levou a Coroa Portuguesa, inicialmente, logo após o
descobrimento, em 1500, a utilizar a mão-de-obra indígena para o corte e
transporte do pau-brasil para o litoral. Por isso, os portugueses impuseram
aos índios o trabalho forçado.
Esta mão-de-obra escrava do indígena foi substituída
pelo trabalho do negro africano, pois era economicamente mais atraente,
como veremos na próxima seção.
1.8.1 A escravização do indígena
A escravidão indígena, apesar de ter sido intensa, é
pouco conhecida e tratada de forma rápida e superficial pela
historiografia. VELLOSO, Gabriel; FAVA, Marcos Neves (Org). Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação. São Paulo: LTr, 2006. p. 223. 33MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 129.
Com um estudo mais avançado e aprofundado
verificamos como se deu esta substituição, no artigo de Elaine Pedroso:
[...] é bem mais correto dizer que as vantagens inerentes à escravização dos negros contribuíram para a substituição da mão-de-obra indígena do que afirmar que foi um mau negócio representado pela escravização indígena que obrigou os portugueses a encontrar novas fontes de mão-de-obra mais favoráveis ao lucro imensurável. [...]Como se viu, o que reduz a escravização dos índios, transformando-a em uma fonte secundária de exploração da mão-de-obra [...] foi um conjunto de fatores marcados pela dizimação dos nativos, as fugas constantes, as insurreições belicosas que perturbavam a paz nos engenhos, o aumento das distâncias e dos custos para o aprisionamento de índios e a tumultuada administração que não conseguia solucionar os conflitos inter-relacionados entre colonos, índios e jesuítas. Neste contexto, a escravização de índios, que no início parecia barata e lucrativa, tornava-se dispendiosa e desgastante, ao passo que a escravização de negros poderia solucionar, pelo menos à primeira vista, todos estes males, o que, sem dúvida, substitui todo o interesse da escravização de índios, que só continua a existir em regiões menos prósperas e, mesmo assim, através de proprietários pouco abastados. 34
Geralmente costumam reforçar a idéia de que índio foi
culpado pelo insucesso, por ser preguiçoso ou agressivo, e que não servia
para o trabalho, e por isso logo foram substituídos pelos escravos negros,
mas o que pesou nesta substituição foi uma decisão puramente
econômica.
Impõe-se, porém, concluir relembrando dois importantíssimos dados, poucos reconhecidos socialmente, e não poucas vezes pela história, mas que não podem deixar de ser incutidos na nossa memória, para sempre, em respeito às origens do povo brasileiro: a mão-de-obra
34PEDROSO, Eliane. Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação, 2006. p. 37, 49-50.
indígena foi um fator de contribuição decisivo no desenvolvimento econômico da colônia e o escravismo praticado levou a um efetivo genocídio do indígena de proporções incomparáveis.35
Vista a transição da mão-de-obra escrava indígena
para a do negro africano, passemos para esta modalidade na próxima
seção.
1.8.2 A escravização do negro africano
Como vimos acima, os portugueses foram os primeiros
europeus a explorar a costa da África; estes iam em busca de riquezas,
principalmente do ouro, mas descobriram que o tráfico de escravos
poderia ser também uma ótima fonte de lucros.
A escravidão já era utilizada por eles (portugueses e
outros europeus), desde o século XV, mas a partir de 1550, os escravos
negros começaram a ser enviados também para as suas colônias na
América, para substituir a mão-de-obra escrava do indígena.
Desta forma, a escravidão foi uma das atividades
comerciais mais lucrativas da Idade Moderna. Permitia lucro duplo aos
portugueses, que ganhavam com o tráfico e com a exploração de sua
mão-de-obra na colônia.
Para entender como os negros africanos foram
submetidos à escravização pelos europeus, em especial neste caso pelos
portugueses, faz-se necessário saber que a escravidão também já existia
na África. Entretanto, com características diferentes das encontradas nas
sociedades européias, na adaptação de Jonh Thornton citada por
Azevedo e Seriacopi, poderemos entender essas diferenças:
35PEDROSO, Eliane. Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação, 2006. p. 50.
A escravidão na África estava enraizada em estruturas legais e institucionais arraigadas das sociedades africanas, e sua operacionalização se diferia muito da que subsistia nas sociedades européias. A escravidão era difundida na África atlântica porque os escravos eram a única forma de propriedade privada reconhecida pelas leis africanas que produzia rendimentos. Em contraste, nos sistemas legais europeus a terra era a principal forma de propriedade privada lucrativa, e a escravidão ocupava posição relativamente inferior. De fato, a posse de terras em geral era uma precondição na Europa para a utilização produtiva de escravos, ao menos na agricultura. Nesse sentido, foi a ausência de propriedade de terras – ou, para ser mais preciso, foi a propriedade corporativa de terra – que levou a escravidão a ser tão difundida na sociedade africana. O sistema colonial africano não era retrógrado ou igualitário, mas apenas legalmente divergente, o que permitiu às elites políticas e econômicas da África vender um grande número de escravos e, assim, fomentar o comércio atlântico de escravos. Essa característica legal expandiu a escravidão, seu comércio e seu papel em produzir uma riqueza estável, aliada ao desenvolvimento econômico. 36
Diversas foram as formar com que os portugueses
capturaram os negros africanos. Iniciaram com ataques às aldeias
situadas no litoral, depois passaram a fazer aliança com chefes tribais e
reis e trocavam escravos por mercadorias, passaram inclusive a estimular
guerras entre as tribos africanas para estimular a venda dos escravos
vencidos, mas a forma mais utilizada era a contratação de mercadores
que compravam escravos no interior do continente africano em troca de
mercadorias e os levavam para o mercado de escravos no litoral.
Os negros eram trazidos para o colônia de Portugal,
hoje Brasil, acorrentados, em navios negreiros, em condições degradantes,
como descreve Gislane Azevedo e Reinaldo Seriacopi: 36THORTON, John. A África e os africanos na formação do mundo atlântico. Rio de Janeiro: Campus, 2004. p. 125-7 apud AZEVEDO, Gislane; SERIACOPI, Reinaldo. História: série Brasil. São Paulo: Ática, 2005. p. 201.
A maior parte dos navios negreiros era de pequeno porte. [...] Amontoados nos porões, durante o percurso os escravos tinham de permanecer sentados, acorrentados uns aos outros e com a cabeça inclinada. A alimentação era composta quase sempre de uma tigela de mingau cru de milho e pequenas porções de água. Por ingerirem pouco líquido, muitos cativos de desidratavam; outros enjoavam com o movimento do navio e vomitavam; outros ainda, eram acometidos de diarréia. [...] As estimativas indicam que de 15% a 20% dos africanos escravizados morreram nessas viagens durante o período em que durou o tráfico negreiro. 37
Os negros, que sobreviviam à esta terrível e
degradante viagem, começavam a chegar no Brasil no século XVI, para
trabalhar principalmente nos engenhos de açúcar que se localizavam no
litoral, sobretudo nas capitanias de Pernambuco e da Bahia. Porém o
trabalho escravo também era utilizado nos mais variados fins: no engenho,
no canavial, na casa grande, como pedreiro, carpinteiro, pintores de
parede, carregadores, remadores, vendedores ambulantes, etc. Não
houve atividade em que o negro não fosse utilizado.
Quando a economia se deslocou do nordeste para o
sudeste, entre os séculos XVIII e XIX, para a exploração das minas e
diamantes na região das Minas Gerais e para a produção do café, a
mão-de-obra escrava também foi largamente utilizada.
“O tratamento dispensado aos escravos era
extremamente desumano. Via de regra, eles cumpriam jornadas de
trabalho de até dezoito horas diárias.”38
37AZEVEDO, Gislane; SERIACOPI, Reinaldo. História: série Brasil. São Paulo: Ática, 2005. p. 203. 38AZEVEDO, Gislane; SERIACOPI, Reinaldo. História: série Brasil, 2005, p. 206.
Os negros além do excesso de trabalho, eram
submetidos à violência física quando não executassem as tarefas do
modo correto, cometessem furtos, tentassem fugir ou se rebelassem.
Estas foram as condições de vida e de trabalho desses
escravos, que procuraram, durante este longo período, muitas formas de
resistir à esta forma cruel de domínio: fugindo, reduzindo o ritmo de
trabalho, paralisando a produção, sabotando máquinas, incendiando
plantações, destruindo ferramentas, entre outras formas.
Os escravos que fugiam se escondiam nas florestas e
serras, em comunidades conhecidas como quilombos. O mais famoso
deles da história foi o de Palmares, no qual viviam cerca de 20 mil
africanos ou afrodescendentes.
1.8.2.1 Antecedentes da abolição
O comércio de escravos africanos foi, até o começo
do século XIX, uma atividade extremamente lucrativa, visto maciçamente
nas seções acima, porém para entendermos os antecedentes da
abolição da escravatura no Brasil faz-se necessário entender o panorama
econômico mundial, em especial o que chamamos de Revolução
Industrial.
Em linhas gerais, “convencionou-se chamar de
Revolução Industrial o processo de transformações econômicas e sociais,
caracterizadas pela aceleração do processo produtivo e pela
consolidação da produção capitalista”.39
Foi um movimento que se iniciou na segunda metade
do século XVIII na Europa, que teve como pioneira a Inglaterra.
39 MOCELLIN, Renato. História, 2004. p. 299.
“Constata-se, nessa época, que a principal causa
econômica do surgimento da Revolução Industrial foi o aparecimento da
máquina a vapor como fonte energética.”40
O trabalho passou a ter uma nova conotação a partir da Revolução Industrial, [...] quando uma série numerosa de inventos, com destaque para o aproveitamento da energia a vapor, transformou radicalmente o modo de produção. Houve uma passagem da produção manufatureira para a produção industrial, com o uso cada vez mais aperfeiçoado de máquinas. Aos poucos a força física do homem foi sendo substituída pela força das máquinas e o homem passou a ser colocado a serviço das máquinas. Não é mais o homem que produz. É a máquina. [...] O trabalho é colocado a serviço da máquina. Capital e trabalho passam a viver intimamente associados, como uma espécie de verso e anverso de uma mesma moeda, de forma que o capital não vive sem o trabalho e este não tem espaço fora do capital. Como a fonte geradora de lucros, no sistema capitalista, é a máquina, o trabalho e o trabalhador passaram a ser tratados como adendos do capital.41
“A Revolução Industrial acabou transformando o
trabalho em emprego. Os trabalhadores, de maneira geral, passaram a
trabalhar por salários.”42 Passou-se a entender o trabalho como uma
mercadoria, com preço estipulado pelas leis de mercado.
Se a oferta de trabalho superasse a procura o preço do trabalho tenderia a subir. Na razão inversa, o valor do trabalho teria tendência em baixa. Como a procura pelo trabalho sempre foi superior à oferta, o liberalismo econômico pouco valorizou o trabalho. Assim, houve um aumento espantoso dos lucros, para os donos do capital,
40 MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho, 2008. p. 5. 41GIRARDI, Leopoldo Justino. O trabalho no Direito. São Paulo: Coli Gráfica e Editora Ltda, 2005. p. 15. 42MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho, 2008. p. 5.
em detrimento da valorização do trabalho, uma mercadoria barata provocada pelo excesso de oferta.
Segundo Sérgio Pinto Martins:
Afirma-se que o Direito do Trabalho e o contrato de trabalho passaram a desenvolver-se com o surgimento da Revolução Industrial. [...] Passa-se, portanto, a haver um intervencionismo do Estado, principalmente para realizar o bem-estar social e melhorar as condições de trabalho. O trabalhador passa a ser protegido jurídica e economicamente. [...] A lei passa a estabelecer normas mínimas sobre condições de trabalho, que devem ser respeitadas pelo empregador. 43
Na mesma linha leciona Leopoldo Justino Girardi:
É nesta sociedade, envolta na Revolução Industrial, que surgirá o direito do trabalho, um conjunto de normas, protegendo os trabalhadores, vinculados à pressão das organizações dos operários, com apoio de entidades preocupadas com as conseqüências da questão social e à intervenção dos poderes públicos no campo econômico, estabelecendo limitações ao poder dos donos do capital atingindo a jornada de trabalho, a remuneração, o descanso, os intervalos, as condições de trabalho. O Estado, consciente de que não pode deixar o mundo do trabalho à mercê dos interesses dos donos do capital, intervém no mercado de trabalho e impõe limites à liberdade do empregador.44
“Com a mudança, houve uma nova cultura a ser
apreendida e uma antiga a ser desconsiderada.”45Por isso, muitos ingleses
passaram a combater o tráfico de escravos e a escravidão, pois se os
escravos se transformassem em trabalhadores assalariados, poderiam
tornar-se consumidores, em especial das manufaturas britânicas.
43MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho, 2008. p. 5-6. 44GIRARDI, Leopoldo Justino. O trabalho no Direito, 2005. p. 24. 45MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho, 2008. p. 5.
O governo britânico proibiu em 1807 o tráfico de
escravos para suas colônias, e em 1826 conseguiu do Brasil um tratado
que, em três anos após a sua ratificação, declararia ilegal o tráfico
negreiro. Esta lei não foi cumprida.
Em contrapartida, o Parlamento Britânico, em 1845,
aprovou a lei proposta pelo deputado George Aberdeen, que legitimou o
ataque a navios negreiros como se fossem navios piratas.
O Brasil não agüenta a pressão e em 1850, o então
ministro da Justiça, Eusébio de Queirós, apresenta ao Parlamento um
projeto de Lei para acabar com o tráfico de escravos, que foi aprovado, e
o referido projeto converte-se em Lei, em setembro do mesmo ano e leva
o nome do seu autor, Lei Eusébio de Queirós. Esta lei foi a primeira que
antecedeu a abolição, três séculos após a sua instituição aqui no Brasil,
antes colônia.
Em 1865, os Estados Unidos aboliram a escravidão e
esta notícia reacendeu aqui no Brasil o debate sobre a abolição, e logo
depois, com o fim da Guerra do Paraguai (1870), o movimento
abolicionista ganhou força. A maneira que o governo encontrou de
conciliar os interesses conflitantes, dos abolicionistas e dos fazendeiros, foi
com a promulgação de outras leis.
Com “a Lei n. 1.695 de 15 de setembro de 1869, é que,
nas vendas de escravos, passou a ser proibida a separação de casais,
bem com filhos menores de quinze anos.”46
A próxima lei que foi promulgada foi a Lei Rio Branco,
mais conhecida como Lei do Ventre Livre - Lei ordinária, número 2.040 de
28 de setembro de 1871, que estabelecia que os filhos de escravos
46PEDROSO, Eliane. Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação, 2006. p. 52.
nascidos a partir daquela data seriam considerados livres, mas deveriam
permanecer sob os cuidados de seus senhores até completarem 8 anos
de idade.
O movimento abolicionista não se deu por contente, e
a partir de 1880 ganhou força e apoio dos mais diversos setores da
economia, e em 1883 formam a Confederação Abolicionista, configurado
como um movimento com grande apelo popular.
Em 02 de outubro de 1885, é promulgada a Lei Saraiva-
Cotegipe, mais conhecida como Lei dos Sexagenários, pois libertava os
escravos com mais de 60 anos de idade. A alforria para este grupo não
era imediata, pois deveriam trabalhar por mais três anos a titulo de
indenização. A critica em cima desta lei consiste em que esta medida
favorecia os latifundiários e não os escravos, pois livres, eles iriam morrer
como indigentes.
O golpe final contra a escravidão no Brasil só foi dado
em 13 de maio de 1888, trezentos e oitenta e oito anos após o seu início,
quando, a Princesa Isabel (à frente do governo na ausência de D. Pedro
II), assinou a Lei Áurea, abolindo definitivamente a escravidão no Brasil.
No próximo capítulo abordaremos o trabalho escravo
no Brasil Contemporâneo, ou seja, após a sua extinção formal, em 1888,
com a promulgação da Lei Áurea. Antes disto, nos resta apenas parar e
refletir que a referida lei colocou fim a escravidão, o que é de
fundamental importância, mas não veio acompanhada de nenhum outro
tipo de Lei ou de política pública para amparar essas pessoas, que eram
trabalhadores escravos e agora se tornam homens livres, sujeitos de
direitos e obrigações.
CAPÍTULO 2
CONCEITOS CONTEMPORÂNEOS
2.1 O RECONHECIMENTO DA EXISTÊNCIA DE TRABALHO ESCRAVO NO BRASIL
Embora o Brasil tenha abolido oficialmente a
escravidão em 1888, com a promulgação da Lei Áurea, o trabalho
escravo ainda continua existindo em nosso país, em pleno século XXI.
No dia 08 de março de 2004, em Genebra, na Suíça, por ocasião de reunião realizada na sede da Organização das Nações Unidas, o Embaixador brasileiro Tadeu Valadares, chefe da divisão de Direitos Humanos do Itamaraty, reconheceu a existência de trabalho em condições análogas à de escravos no Brasil. O mérito, desse fato, é que pela primeira vez um país admite a existência desse trabalho em seu território, o que demonstra a intenção brasileira na erradicação dessa prática vergonhosa em nosso país. 47
A escravidão contemporânea no Brasil se manifesta de
forma mais sutil, mais dissimulada, pode-se dizer até de forma mascarada,
porque é uma prática ilegal sob vários aspectos (criminal, constitucional,
civil e trabalhista) e a sua erradicação “revela-se como uma das diretrizes
da legislação pátria e internacional, não apenas como forma de garantir
um trabalho decente, mas, sobretudo, para se promover a efetivação dos
Direitos Humanos”.48
2.2 O ESCRAVO CONTEMPORÂNEO
Iniciaremos com o conceito de Vera Lúcia Carlos:
47CARLOS, Vera Lúcia. Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação, 2006. p. 279-280. 48DELGADO, Gabriela Neves; NOGUEIRA, Lílian Katiusca; Melo Nogueira; RIOS, Sâmara Eller. Trabalho Escravo: Instrumento Jurídico-Institucionais para a Erradicação no Brasil Contemporâneo. Revista Magister de Direito Trabalhista e Previdenciário. Porto Alegre, n. 1. p. 57, julho-ago. 2004.
Na sua definição etimológica, originária, clássica, escravo é
aquele que está inteiramente sujeito a um senhor, como
propriedade dele. Não é considerado uma pessoa, mas um
objeto que tem um proprietário, um “senhor”. Escravo é
alguém sem qualquer tipo de direitos, sem liberdade, sujeito
à opressão e a dependência. Aquele que trabalha em
demasia. A força do trabalhador é voltada para os fins
econômicos daqueles que são seus “donos”.49
“A figura jurídica do escravo, enquanto sujeito de
propriedade, não mais existe desde a Lei Áurea.”50 Diversos autores
buscam identificar quem é atualmente o escravo no Brasil, e seus estudos
trazem esta definição, que pouco diferem entre si.
Vejamos como Bastos conceitua:
(...) iniciaria afirmando que, no meu entender, o escravo é o
excluído socialmente falando, o insignificante da história, na
melhor expressão de Dom Tomaz Balbuíno, os pobres e os
famintos, que vão aumentando em profusão, e isto se dá
em função do mercado perverso, incondicionado, sem
restrições. Sabemos que são vítimas principalmente da
fome, e que pertencem a grupos vulneráveis, mas que não
dependem mais de cor, mas do nível de pobreza.(...) são
vítimas desse mal homens, mulheres, crianças, índios,
garimpeiros, prostitutas e principalmente, em maior número,
49CARLOS, Vera Lúcia. Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação, 2006. p. 270. 50LIMA, Maurício Pessoa. O Trabalho em Condições Análogas à de Escravo no Brasil Contemporâneo. Oficina do Fórum Social Mundial 2003 da Organização Internacional do Trabalho, OIT.. Disponível em: . Acesso em 05 de setembro de 2008.
http://www.oitbrasil.org.br/trabalho_forcado/brasil/documentos/trab_esc_
os irmãos nordestinos. São aqueles invisíveis, inexistentes, as
vezes sem qualquer registro civil. 51
Que é o mesmo entendimento de Jorge Antonio
Ramos Vieira:
[...] o escravo moderno pode ser entendido como o trabalhador, de qualquer idade ou sexo, que, não tendo como subsistir em sua cidade de origem, é levado pela necessidade a procurar trabalho em regiões distantes, através de aliciamento feito por pessoas que lucram com o fornecimento e a utilização de sua força de trabalho em propriedades rurais, geralmente localizadas na Região Amazônica, onde o acesso é difícil ou quase impossível, dadas as enormes distâncias a serem percorridas e as dificuldades impostas pela própria floresta, o que impossibilita a fuga do trabalhador escravo ou suas localização e resgate, pois, na maioria das vezes, sequer sabe, ou pode-se saber, onde se encontra, sendo inútil fugir, ou procurá-lo, até porque não teria mesmo para onde ir, ou como ser encontrado não fossem as denúncias dos poucos que conseguem escapar e chegar até um órgão confiável. Fuga sempre perigosa e muito arriscada. Assim, o “escravo moderno” é menos que o boi (que é cuidado, vacinado e bem alimentado), que a terra (que é protegida e bem vigiada) e que a propriedade (sempre defendida com firmeza).52
Completamos com o entendimento de Patrícia Audi:
A escravidão contemporânea no Brasil então persiste e ainda insiste, de forma mais cruel e sutil daquela abolida pela Princesa Isabel em 1888: os escravos modernos são pessoas descartáveis, sem valor agregado a produção – simplesmente não valem nada e por isso, não merecem
51BASTOS, Guilherme Augusto Caputo. Trabalho Escravo: uma chaga humana. Revista LTr. vol. 70. n. 3. p. 368, março. 2006. 52VIEIRA, Jorge Antonio Ramos. TRABALHO ESCRAVO: Quem é o escravo, quem escraviza, e o que liberta. OIT.Disponível em: . Acesso em 05 de setembro de 2008.
http://www.oitbrasil.org.br/trabalho_forcado/brasil/documentos/amb_escravos
segundo uma lógica puramente econômica, nenhum tipo de cuidado ou garantia de suas vidas. O fenômeno acontece com mais freqüência, sutilmente nos rincões distantes do meio rural brasileiro, sem que a sociedade tenha conhecimento e acredite na perversidade de sua prática. Persistem situações em que milhares de brasileiros vivem sem liberdade, milhares de quilômetros de seus municípios de origem, no meio da floresta, sem que tenham a possibilidade de fugir ou deixar as fazendas, rompendo assim, essa relação fraudulenta de trabalho. [...] Esses humildes brasileiros, recrutados em municípios muito carentes, de baixíssimo IDH, são oriundos principalmente dos estados do Maranhão, Piauí, Tocantins e Pará. Caracterizam-se por serem pessoas iletradas, analfabetas ou com pouquíssimos anos de estudo. Quando traçamos um perfil de gênero, descobrimos que são homens em sua grande maioria (98%), entre 18 e 40 anos (75%), que possuem como único capital de trabalho a força bruta e por isso são utilizados em árduas tarefas, principalmente na derrubada da floresta ou na limpeza da área já devastada (o conhecido roço da juquira) para o plantio de pastos (80% dos casos) ou de insumos agrícolas.53
Segundo dados do Relatório Global de 2005 da
Organização Internacional do Trabalho, “a estimativa do número de
trabalhadores mantidos sob as condições análogas à de escravidão no
Brasil chega a 25.000 (vinte e cinco mil) pessoas”, principalmente nos
estados do Pará e Mato Grosso. 54
2.3 O ESCRAVIZADOR CONTEMPORÂNEO
A figura clássica daquele que escraviza é o sujeito
conhecido como “gato”, que recruta trabalhadores em regiões muito
53AUDI, Patrícia. Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação, 2006. p. 76-77. 54VIDOTT, Tárcio José. Exploração de crianças e adolescentes em condições análogas à de escravo. In: VELLOSO, Gabriel; FAVA, Marcos Neves (Org). Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação. São Paulo: LTr, 2006. p. 139.
pobres para trabalhar em local bem distante da contratação, onde ele
“vende” as suas aquisições aos futuros exploradores da força de trabalho.
No início eles “prometem bons salários, boas
condições de trabalho e algumas vezes até adiantam algum dinheiro à
família, iniciando assim o ciclo de servidão por dívida.”55Eles se aproveitam
da vulnerabilidade de pessoas desempregadas e sem perspectiva de
emprego para a prática do trabalho escravo. São verdadeiros aliciadores.
Mas não trabalham sozinhos, como podemos verificar no artigo de Patrícia
Audi:
Esse aliciamento, onde toda uma rede criminosa existe para transportar trabalhadores ilegais com fim de explorá-los pode facilmente ser identificado como tráfico e deve ser motivo de atenção por parte da sociedade, do Governo e alvo de criação de políticas públicas específicas para sua repressão e prevenção.56
A rede criminosa que a autora acima se refere é
descrita por Guilherme Augusto Caputo Bastos:
[...] quem escraviza nunca está só, sendo trabalho de uma rede criminosa, organizada, composta por vários agentes, cada um com uma finalidade própria. Assim, há os que aliciam os trabalhadores, há os que disponibilizam os locais para facilitar o aliciamento, e há aqueles que se utilizam do trabalho escravo que ainda mantém as cantinas onde vendem bens que deveriam ser oferecidos gratuitamente.57
Faz-se necessário destacar que como não existe mais a
figura da propriedade como elo entre senhores e escravos desde a
55AUDI, Patrícia. Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação, 2006. p. 78. 56AUDI, Patrícia. Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação, 2006. p. 78. 57BASTOS, Guilherme Augusto Caputo. Trabalho Escravo: uma chaga humana. Revista LTr. vol. 70. n. 3. p. 369, março. 2006.
abolição da escravatura, estes atualmente “continuam ligados através de
artifícios, tais como dívidas, ameaças e violência e estas circunstâncias,
igualmente, cerceiam à liberdade individual.”58
Apesar de já termos visto na primeira abordagem de
Guilherme Augusto Caputo Bastos sobre quem escraviza, o referido autor,
trabalha neste mesmo artigo outros “sujeitos” que também escravizam,
vejamos:
[...] já se pode vislumbrar uma resposta bastante palpável [sobre quem escraviza]: é o sistema, é o capital selvagem, insensível e desumano, sem responsabilidade social alguma. É a mais valia buscada pela classe dominante de forma cruel. A obtenção de lucros exagerados, a diminuição de despesas, a viabilização de empreendimentos econômicos no campo e na cidade. [...] Quem escraviza é a brutal concentração de renda em nosso país [...], são as estruturas e mecanismos repressivos ineficientes – fiscalização, polícia e Ministério Público. [...] quem escraviza é o próprio Estado que, devendo coibir esta prática desumana de trabalho, não o faz [...]. É o estado, então, quem, em última análise, que escraviza, porque se mostra frágil ou inexistente, incapaz de impor suas próprias regras e cumprir com seus objetivos.59
Esta crítica acima ao sistema e estrutura
socioeconômica em que vivemos pode parecer um pouco severa,
entretanto devemos admitir que o autor não está criticando de forma
isolada um único responsável pela prática do trabalho escravo, mas
responsabilizando diversas entidades e organismos, que também é o
entendimento de outros diversos autores, que são unânimes em concluir e
admitir que somente uma ação conjunta de toda a sociedade brasileira,
envolvendo o Poder Público, Organizações Não Governamentais, 58PEDROSO, Eliane. Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação, 2006. p. 68-69. 59BASTOS, Guilherme Augusto Caputo. Trabalho Escravo: uma chaga humana. Revista LTr. vol. 70. n. 3. p. 369, março. 2006.
Organismos Internacionais, entidades de classe, sindicatos e cidadãos em
geral, é que permitirá que esta chaga humana seja erradicada
definitivamente de nossa realidade.
2.4 TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO
O trabalho escravo contemporâneo tem origem
eminentemente econômica e é um dos principais exemplos de
exploração humana na contemporaneidade. É neste sentido o
posicionamento de Valena Jacob Chaves:
Hoje, a conotação para trabalho escravo é outra, mas o significado é o mesmo: exploração pelo poder econômico do homem, oprimido pela falta de opções, de profissão, de expectativas e pela miséria. [...] o fenômeno da escravidão moderna surge no seio do sistema capitalista de produção, em que predomina a racionalidade econômica do cálculo que visa a otimização e a maximização de seus lucros. [...] porque a dinâmica na prática do trabalho escravo acompanha a dinâmica econômica da reprodução de capital. 60
O modo contemporâneo de escravização do homem,
sem a sua classificação em um grupo inimigo, surge como um dado a
mais para que se observe a gravidade com que este fato social está
transformando o seu modo. Pois as diferenças étnicas não são mais
fundamentais para escolher a mão-de-obra. A seleção se dá pela
capacidade da força física de trabalho
Não estamos justificando a escravização de pessoas
externas ao grupo, seja pela raça, credo ou cor (como ocorreu em
diversos momentos históricos - vistos no capítulo anterior), mas apenas
relatando que sob a ótica da nossa civilização contemporânea, este tipo 60CHAVES, Valena Jacob. A utilização de mão-de-obra escrava na colonização e ocupação da Amazônia. In: VELLOSO, Gabriel; FAVA, Marcos Neves (Org). Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação. São Paulo: LTr, 2006. p. 90-94.
de escravização, de pessoas externas ao grupo não existe mais, ocorreu
uma mudança neste sistema, podemos dizer que atingiu uma das suas
piores formas, e na obra de Elaine Pedroso podemos identificar esta
significante diferença:
No Brasil já não há mais a escravização de um grupo por outro, mas de modo cada vez mais mesquinho, mais sem móbil, escraviza-se qualquer homem, de qualquer grupo, até mesmo do próprio grupo a que pertence o escravizador, basta para tanto que as circunstâncias favoreçam esse objetivo. Talvez esta seja a razão para que, após mais de um século após a abolição da escravatura, o trabalho escravo seja uma das grandes preocupações nacionais.61
O trabalho escravo atualmente alcança de forma
desproporcional os grupos socialmente mais vulneráveis, como as
mulheres, as meninas, as populações afro-descendentes e as populações
socialmente excluídas, como vimos nas seções acima, pois a
“vulnerabilidade facilita a criação de condições propicias à prática do
trabalho escravo”62.
O exemplo clássico de escravidão contemporânea
ocorre geralmente em remotas áreas rurais, consistindo basicamente em
pessoas que são empregadas em condições degradantes e perigosas,
com ou nenhuma compensação, desta forma, constitui uma grave
violação dos direitos humanos e uma restrição da liberdade do
trabalhador, independente da sua modalidade.
Segundo Vera Lúcia Carlos:
Em razão do vasto território brasileiro é difícil fiscalizar o trabalho escravo ou de situação análoga à de escravidão,
61PEDROSO, Eliane. Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação, 2006. p. 19. 62AUDI, Patrícia. Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação, 2006. p. 78.
pois, estes, ocorrem em todos os Estados, com maior incidência em madeireiras do sul do Pará e parte do Amazonas, além dos Estados de Pernambuco, Mato Grosso e Tocantins. No entanto, apesar de ser mais comum em grandes pedaços de terra, longe dos centros urbanos, tal prática também existe na área urbana, normalmente com estrangeiros em situação irregular trabalhando na confecção e na venda de vestuário bem como também na venda de produtos ilegais, (“piratas”). 63
Flávio Piovesan expõe de maneira objetiva e didática
a violação aos direitos humanos e fundamentais do homem que a prática
do trabalho escravo faz:
Sob o prisma da concepção contemporânea de direitos humanos e da indivisibilidade e interdependência desses direitos, conclui-se que o trabalho escravo constitui flagrante violação aos direitos humanos, sendo ao mesmo tempo, causa e resultado de grave padrão de violação de direitos. Vale dizer, o trabalho escravo se manifesta quando direitos fundamentais são violados, como o direito a condições justas de um trabalho que seja livremente escolhido e aceito, o direito à educação e o direito à uma vida digna.64
“O trabalho em condições análogas à de escravo
estará presente sempre que [...] se verifique o trabalho humano em que
haja negação ao seu principal atributo do ser humano, a sua
dignidade.”65
63CARLOS, Vera Lúcia. Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação, 2006. p. 278. 64PIOVESAN, Flávia. Trabalho escravo e degradante como forma de violação aos direitos humanos. In: VELLOSO, Gabriel; FAVA, Marcos Neves (Org). Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação. São Paulo: LTr, 2006. p. 163-164. 65FILHO, José Cláudio Monteiro de Brito. Trabalho com redução à condição análoga à de escravo: análise à partir do trabalho decente e de seu fundamento, a dignidade da pessoa humana. Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação. Gabriel Velosso, Marcos Neves Fava, coordenadores. São Paulo: LTr, 2006. p. 137.
2.4.1 Denominação adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro
O ordenamento jurídico brasileiro utiliza a expressão
“trabalho análogo ao de escravo”, pois abrange uma série de situações
próximas à escravidão, e não somente o “trabalho escravo”.
Sobre a denominação que se adota no Brasil, José
Cláudio Monteiro de Brito Filho nos ensina a diferença entre elas:
A denominação própria para o ato ilícito em gênero é trabalho em condições análogas à de escravo. Nada impede, todavia, que se utilize essa expressão de forma mais reduzida, ou seja, trabalho escravo. É preciso ter em mente, entretanto, que esta é apenas uma redução da expressão mais ampla e utilizada pela lei. É que, não sendo a escravidão prática admitida no ordenamento jurídico, não se pode admitir que a pessoa humana, mesmo em razão da conduta ilícita de outrem, possa vir a ser considerada escrava, no máximo ela estará em condição análoga à de escravo. Trabalho escravo, entretanto, é expressão que tem conotação forte, sendo quase impossível não utilizá-la; apenas, deve-se ter em mente seu efetivo sentido. 66
Esclarecida a questão relativa à denominação,
passemos para a tipificação penal, na próxima seção.
2.4.2 Trabalho em condições análogas à de escravo
O delito de redução à condição análoga à de
escravo é definido pelo artigo 149 do Código Penal, que teve sua
redação alterada pela Lei n. 10.803, de 11 de setembro de 2003:
Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua
66FILHO, José Cláudio Monteiro de Brito. Trabalho com redução do homem à condição análoga à de escravo e dignidade da pessoa humana. Revista Mestrado em Direito. Osasco, vol. 1. n. 137. p. 677, maio. 2004.
locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. § 1o Nas mesmas penas incorre quem:
I - cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; II - mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. § 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: I - contra criança ou adolescente; II - por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem. 67 O legislador buscou uma proteção legal ampla, pois
assegura proteção à liberdade plena do trabalhador e das condições
dignas para o exercício do trabalho. Desta forma, temos quatro
modalidades que, de forma isolada, ou integrada, podem caracterizar o
trabalho como análogo ao de escravo, que são: Trabalho Forçado;
Jornada Exaustiva; Condição Degradante de Trabalho; e Restrição da
Locomoção do Trabalhador, por qualquer meio, em razão de dívida
contraída com o empregador ou preposto.
No entanto, com relação às modalidades acima citadas, podemos dividi-las ainda em dois grupos; um primeiro grupo, em que a coerção física ou moral faz-se claramente identificada e necessária, e, um segundo grupo, em que, para a caracterização do delito, referidas normas de coação, em tese, não seriam expressamente exigidas, bastando a ocorrência de uma das hipóteses previstas. O primeiro grupo é formado pelas modalidades condizentes ao trabalho forçado e à restrição, por qualquer meio, da liberdade de locomoção do trabalhador, em razão de dívida, as quais possuem, necessariamente, como requisito
67 BRASIL, DECRETO-LEI NO 2.848/1940. Código Penal. Disponível em: . Acesso em 31 de outubro de 2008.
http://www.presidencia.gov.br/legislacao/>
caracterizador a coerção física ou moral por parte do empregador. [...] Fazem parte do segundo grupo as modalidades relativas à Jornada Exaustiva e à Condição Degradante de Trabalho, bastando para fins de caracterização do ilícito, a ocorrência de uma delas.68
“Enfim, todo trabalho que reduz o ser humano a
condição análoga à de escravo é degradante, priva sua liberdade,
sujeitando-o a condições indignas de sobrevivência.”69
Antes de abordamos as diferentes modalidades,
vejamos sobre as características gerais deste delito, conforme leciona Júlio
Fabrini Mirabete:
O bem jurídico protegido é a liberdade individual, em especial a status libertatis do homem, que á de ser livre de servidão ou do poder de fato de outra pessoa. [...] Qualquer pessoa pode ser sujeito ativo do delito, excetuados os casos em que, sendo o agente funcionário público, pode ocorrer delito especial (art. 350 do Código Penal, por exemplo).70Sujeito ativo do crime é aquele que pratica a conduta descrita na lei, ou seja, o fato típico. [...] O conceito abrange não só aquele que pratica o núcleo da figura típica (o que mata, o que subtrai etc.), como também o co-autor ou partícipe, que colaboram de alguma forma na conduta típica. Sujeito passivo do crime é o titular do bem jurídico lesado ou ameaçado pela conduta criminosa. 71 Todo ser humano, sem distinção de raça, sexo ou idade pode ser vítima do delito, não importando que seja pessoa civilizada ou não. A inconsciência da vítima de estar em condição análoga à de escravo não elide o crime. Também o consentimento da
68CARLOS, Vera Lúcia. Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação, 2006. p. 271-272. 69DELGADO, Gabriela Neves; NOGUEIRA, Lílian Katiusca; Melo Nogueira; RIOS, Sâmara Eller. Trabalho Escravo: Instrumento Jurídico-Institucionais para a Erradicação no Brasil Contemporâneo. Revista Magister de Direito Trabalhista e Previdenciário. Porto Alegre, n. 1. p. 60, julho-ago. 2004. 70MIRABETE, Júlio Fabrini. Manual de Direito Penal. 15. ed. São Paulo: Atlas, 1999. p. 190. v. II. 71MIRABETE, Júlio Fabrini. Manual de Direito Penal. 22. ed. São Paulo: Atlas, 2005. p. 122 -125. v. I.
vítima não retira a ilicitude do fato, pois o status libertatis, ao contrário da mera liberdade individual de locomoção, é de interesse do Estado. A conduta típica é a de sujeitar alguém totalmente à vontade do agente [...]. Refere-se a lei à condição análoga à de escravo por não mais existir a situação jurídica de escravo no país. [...] Trata-se de crime doloso em que se exige a consciência do agente de estar reduzindo alguém a um estado de submissão com a supressão do status libertatis. 72
O Código Penal dispõe sobre o dolo no seu artigo 18,
vejamos:
Art. 18 - Diz-se o crime: Crime doloso I - doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo.73
“Como resultado deve-se entender a lesão ou perigo
de lesão de um bem jurídico.”74
Consumado está o crime quando o sujeito passivo passa ao domínio de outrem, suprimindo que foi seu status libertatis. [...] Ocorre a tentativa quando o agente não consegue o resultado de submissão à sua vontade apesar da prática de atos de execução (violência, ameaça etc.)Pode haver concurso com outros delitos tais como lesões, homicídios etc.75
Passemos para as próximas seções que abordaremos
sobre as características de cada uma das quatro modalidades de
trabalho análogo ao de escravo.
2.4.2.1 Trabalho Forçado
72MIRABETE, Júlio Fabrini. Manual de Direito Penal, 1999. p. 190-191. v. II. 73BRASIL, DECRETO-LEI NO 2.848/1940. Código Penal. Disponível em: . Acesso em 31 de outubro de 2008. 74MIRABETE, Júlio Fabrini. Manual de Direito Penal, 2005. p. 140. v. I. 75MIRABETE, Júlio Fabrini. Manual de Direito Penal, 1999. p. 192. v. II.
http://www.presidencia.gov.br/legislacao/>
O trabalho forçado também pode ser denominado de
trabalho obrigatório. “Podemos encontrar, a