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UM HOMEM, DUAS MULHERES Margaret Way Bianca 201 Copyright: Margaret Way Título original: “Black Ingo” Publicado originalmente em 1977 pela Mills & Boon Ltd. - Londres, Inglaterra Tradução: Nina Horta Copyright para a língua portuguesa: 1984 Abril S.A. Cultural — São Paulo. Esta obra foi integralmente composta e impressa na Divisão Gráfica da Editora Abril S.A. Foto da capa: Keystone Ingo, um homem rico, fascinante, desejado por duas mulheres: mãe e filha! Felicity, a mãe, mulher fútil e ambiciosa, queria o poder, a riqueza de Ingo; Genny, meiga, romântica, sonhava apenas com os beijos, os carinhos e o amor de Ingo. Como uma jovem pura, tímida, sem maldade, poderia lutar com o destino que a colocara como rival de sua própria mãe? E Ingo? Ele dizia gostar de Genny, mas havia algo muito forte, vindo do passado, que o ligava a Felicity… Algo duradouro, traumatizante, capaz de destruir a felicidade de todos, envolvendo-os num mar revolto de remorso, amor, ódio e pecado! PROJETO REVISORAS

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UM HOMEM, DUAS MULHERESMargaret Way

Bianca 201

Copyright: Margaret WayTítulo original: “Black Ingo”Publicado originalmente em 1977 pela Mills & Boon Ltd. - Londres, InglaterraTradução: Nina HortaCopyright para a língua portuguesa: 1984 Abril S.A. Cultural — São Paulo.Esta obra foi integralmente composta e impressa na Divisão Gráfica da Editora Abril S.A.Foto da capa: Keystone

Ingo, um homem rico, fascinante, desejado por duas mulheres: mãe e filha! Felicity, a

mãe, mulher fútil e ambiciosa, queria o poder, a riqueza de Ingo; Genny, meiga,

romântica, sonhava apenas com os beijos, os carinhos e o amor de Ingo. Como uma jovem pura, tímida, sem maldade, poderia lutar com

o destino que a colocara como rival de sua própria mãe? E Ingo? Ele dizia gostar de

Genny, mas havia algo muito forte, vindo do passado, que o ligava a Felicity… Algo

duradouro, traumatizante, capaz de destruir a felicidade de todos, envolvendo-os num mar

revolto de remorso, amor, ódio e pecado!

PROJETO REVISORAS

Este livro faz parte de um projeto sem fins lucrativos. Sua distribuição é livre e sua comercialização estritamente

proibida. Cultura: um bem universal.

Digitalização: Palas AtenéiaRevisão: Raquel

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Um homem, duas mulheres

CAPÍTULO I

Felicity Russel pôs o copo sobre a mesa e ajeitou os óculos no nariz pequeno e arrebitado.

— Um caso de amor pode me trazer emoções novas — leu no horóscopo. — Que maravilha!

— Nem pense nisso em Tandarro! — disse Genny, secamente, agradecendo sua sorte.

— Se pelo menos Ingo não fosse meu primo! — gemeu Felicity, triste, mas resignada, começando a ler o horóscopo de novo. Levava tudo a sério, todas as promessas e dificuldades, e as decisões importantes que precisavam ser adiadas. Aos trinta e nove anos, quase quarenta, Felicity era bela, sonhadora e frágil, como uma dama dos gloriosos anos 20. Podia ser avoada, mas era simpática, totalmente sem malícia e irresistível ao macho da espécie, desde que dera seu primeiro soluço rouco. O médico, na época, simplesmente declarou que era o bebê mais bonito que já pusera no mundo. E as enfermeiras confirmaram.

Genny, que amava e protegia como uma leoa sua linda e ingênua mãe, não queria continuar pensando nesse assunto. Os amores da mãe, apesar de excitantes, para ela, haviam causado um sem-número de problemas. Felicity, durante toda sua vida, tinha deixado os homens tomarem conta dela e se apaixonarem perdidamente. Foi assim com os três maridos. O primeiro deles, o pai de Genny, Felicity deixou contra a vontade dele. Do segundo também se divorciou, e o terceiro morreu. Felicity podia ser um colírio para os olhos, mas, muitas vezes, feria os corações, e isso angustiava Genny. Ela era o homem da casa. Parecia estranho, mas era assim que se sentia: a protetora.

Felicity olhou dentro dos olhos da filha, fazendo um beicinho com os lábios rosados.

— Ingo é um homem e tanto!— E acha que você é uma perfeita boba! — disse Genny.— Querida! — A mãe interrompeu seu devaneio. — Que malcriada! Você

não costuma ser assim!— Desculpe mãe, você sabe o que quero dizer! Ingo Faulkner acha todas

as mulheres idiotas.— Você está sendo dura demais com ele.— E ele não é comigo? Como foi que me chamou da última vez? Aquela

menina doida. E falou pelas costas, ainda por cima. E eu só peguei o cavalo dele.

— E você se machucou com aquele brutamonte!— Não, foi só um tombo, e não me machuquei. Era um animal bonito —

suspirou Genny. — Eu odeio é Ingo. Quanto mais o vejo, mais quero dar um pontapé nas suas canelas.

— Ora, vamos isso é infantil. Sei por que Ingo a irrita tanto… Mas não pode tratá-lo mal. Lembre-se de que é seu primo também querida.

— Corrija. O primo é seu. E em segundo grau. Eu puxei pelo lado de meu pai.

— Meu Deus! — O rosto de Felicity mostrou toda sua mágoa. — Você precisa me lembrar dele?

— Podia ter continuado com ele, se quisesse.— Francamente, querida, se começar com isso outra vez, eu vou me

levantar e ir embora. Não foi de todo mau, admito. Todos os italianos são

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loucamente apaixonados. Cario me amava, me queria bem. Estava apaixonado, mas era tão ciumento que você não pode nem imaginar. As pessoas que se deixam dominar pelo ciúme são tão cansativas… Só tive um pouco de paz quando fiquei grávida. Ele ficou uma seda, porque eu estava horrorosa, e ele sossegou. Mas já o perdoei. Você tem aqueles olhos negros dele e meu cabelo louro. Deu uma bela combinação.

— Deve ter dado mesmo, se a convenceu a usar lentes de contato escuras!

— Ah, foi só de brincadeira! — Felicity sacudiu a mão. — E sempre me dei muito bem com meus olhos azuis.

— Disso eu sei!— Minha queridinha! Por que não é romântica, meu bem? Deveria ser.

Para que nasce uma mulher, senão para grandes romances? Tudo isso me interessa e me perturba. Fui muito burra na escola, acredita? Ficaria muito triste, se você não tivesse herdado minha beleza!

— Não me pareço muito com você. Felicity sorriu.— Somos muito próximas para você perceber alguma coisa, querida. As

outras vêem. É claro que se parece um pouco com seu lindo pai, no tom de pele moreno-pálido. Eu sempre tive que fugir do sol. Sou só uma florzinha frágil que passou a vida na sombra.

— Então, por que ir para Tandarro? Só Deus sabe como o sol brilha lá. Nunca vi tanta luz.

— Tandarro é um lugar maravilhoso, e você sabe disso. Minha família tem orgulho de seus reis do gado!

— Negro Ingo! — caçoou Genny.— Não insista na mesma tecla e não deixe que ele a escute dizer isso.— Já escutou!— Você não é muito esperta em relação a Ingo — comentou Felicity, séria.— Realmente? — disse Genny, sarcástica, e sorriu.— Ora, Ingo… Não consigo imaginar um sujeito mais fino e um homem

mais forte.— Eu também não. Acontece que o odeio assim mesmo.— Bem, ele não odeia você. — Aliás, ele a adorava quando era menina.

Conversavam tanto! Nem acredito nessas coisas horríveis que dizem um do outro, agora. Não gosto que fale mal dele e Tandarro é um oásis de paz e beleza. Vou ficar forte outra vez, e você deveria estar muito grata por ele ter deixado que a gente fosse para lá. Não sei como pode esquecer o quanto lhe devemos.

Genny virou o rosto, engolindo uma exclamação. Ingo a revoltava, mas era primo de sua mãe e, tinha que admitir, um bom amigo. Aliás, ninguém conseguia ser inimigo de Felicity. Ela era tão distraída que nem notaria um adversário, por mais ferrenho que fosse.

— Pensar que estarei lá dentro de poucos dias! — exclamou Felicity. — Muito obrigada outra vez, meu bem, por ir comigo. Sei que queria ir para Bali nas férias da universidade!

— É, queria mesmo! — suspirou Genny. — Mas o médico disse que você precisava de cuidados e que o vírus era perigoso. É uma coisinha tão frágil que é difícil acreditar que é mãe de alguém.

— Ah, foi Cario quem decidiu, e não eu. É claro, meu amor, que eu adoro você desde o primeiro momento em que a vi. Fui muito fraquinha, quando criança. Sei que está brincando e que não quer me assustar, mas preciso mesmo ser tratada como um bibelô. Você é tão maravilhosa, para mim, como

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mamãe foi. Que Deus a tenha!— E pensa que não sei? Sem mim, tenho certeza de que já teria morrido.— E teria mesmo. Quer encher meu copo, de novo?— Não, chega.Felicity olhou-a, espantada, e Genny cedeu.— Está bem. Só a metade. Fico satisfeita por você estar contente de ver

Ingo outra vez.— Ele tem sido bom para mim — suspirou Felicity, sem mencionar o

quanto era bom, ou o fato de que Ingo as sustentava desde que o pobre Hughie morrera sem deixar dinheiro. Felicity teve um choque quando soube da verdadeira situação de Hughie Russel. Sempre tinham vivido muito bem e Hughie nunca lhe negava nada. Fazia o impossível para oferecer-lhe um alto padrão de vida e isso, sem dúvida, deve ter contribuído para sua morte precoce. Era, é claro, vinte anos mais velho, mas muito jovem e cheio de vida para morrer assim, de repente. Ela nunca o amou, é claro. Pela primeira vez em sua vida, Felicity usou a cabeça, ao se casar, e também não tinha dado certo. O que demonstrava que até a sensatez podia trazer danos.

— Só espero agüentar a barra! — murmurou Genny, sinceramente.— O problema, querida, é que Ingo atrai seu lado pior. Você parece uma

maluquinha, perto dele. Deve ser seu tempestuoso lado italiano. Até seus cabelos brilham de raiva, e fica cheia de manchas vermelhas no rosto. Ora, ele não é tão ruim assim! Mesmo seus olhos destreinados devem perceber que ele é extremamente atraente!

— É ele parece um ator de cinema — respondeu Genny.— Que bobagem, meu bem! Ele é um vaqueiro. Tomar conta de uma

grande fazenda de gado é a vida dele. Sei que pode ser muito austero, mas, quando quer, hipnotiza até os passarinhos nas árvores. Acho que ele tem o maior charme!

— Então, acho que temos que agradecer a Deus por ele ser seu primo e considerar você, decisivamente, como alguém da família. Um apêndice. Uma responsabilidade.

Entendo querida. Você às vezes é engraçada!— Você é que me fez engraçada. Não é fácil ter uma feiticeira sedutora

como mãe.— Eu nunca fiz a menor sombra a você, meu bem. Genny jogou os cabelos

louros para trás e riu. — Não aceito. É corujice de mãe.— Acho que nenhuma de nós duas é vaidosa, não é verdade?— E por que seríamos? É um dom dos deuses. E a beleza, muitas vezes,

machuca.— Nunca me machucou — disse Felicity, ingenuamente, sem perceber

bem o que Genny queria dizer. — Mas você é tão mais inteligente do que eu… E também, acredite amor, sem brincadeira: é muito mais bonita. Só que ainda não descobriu.

— Não gosto de me queixar, mas sei que Ingo não quer saber de mim, lá.—Mas, querida, que bobagem! A carta de Ingo só pergunta sobre você…Genny virou-se para a mãe, atônita, com os olhos aveludados muito

abertos.— Que carta?— Ora, a carta que mandou no outro dia — respondeu a mãe, disfarçando.— Ninguém me mostrou.

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— E ninguém lhe disse que eu sou a dona da casa? Pelo menos em matéria de censura. — Ora, pensou Felicity, se Genny soubesse que Ingo, além de tudo o que lhes dava, também pagava seus estudos, ia logo querer arranjar um emprego. Mas Ingo era cúmplice. Genny não devia saber disso. Às vezes ocorria a Felicity que Ingo até apreciava o orgulho feroz de Genny. Parecia-se com o pai Cario sem dúvida a grande paixão da vida de Felicity. Quando ela o deixou, por não agüentar mais seus ciúmes, ele ameaçou dar um tiro na cabeça, mas acabou decidindo voltar para os verdes campos da Itália e até se casou com uma conterrânea. O planeta estava cheio de mulheres, comentou Ingo, que já era cínico naquela época.

Aos vinte e três anos, divorciada, Felicity ficara curtindo uma filhinha linda, com os cílios compridos, os olhos derretidos do pai e uma leve covinha no queixo, e acabou se casando com outro tipo nada recomendável, apesar de descender de nobres escoceses. Era uma réplica de Cario. Felicity aprendeu alguma coisa com essas experiências. Quando se casou de novo, aos trinta e poucos anos, escolheu um homem muito menos bonito que Cario e Stewart e muito mais estável. Hughie era um homem bom e tratou-a com doçura e afeto, nem chegando a perceber que ela não o amava. Era tudo muito triste, pois Hughie tratara Genny como se fosse sua própria filha.

O único casamento que teria funcionado, e ele resolveu morrer! Será que sua sina era encantar os homens e depois destruí-los? Esse pensamento deixava Felicity entre orgulhosa e infeliz.

— Em que está pensando, Flick? — perguntou Genny ternamente, admirando as mudanças no rosto bonito e expressivo da mãe.

— Estava pensando em Hughie. — Coitado do Hughie, que Deus o abençoe… Até Ingo gostava dele, e isso

não é coisa fácil.— Eu o fiz feliz, não, meu bem? Genny riu.— Fez, sim. Hughie não seria mais feliz nem que tivesse se casado com

Helena de Tróia.— Você diz as coisas mais agradáveis, às vezes. Não precisei me esforçar

muito com Hughie. Sou tão frágil! Quando me lembro da força bruta de Cario!— Está indo longe demais. Já estou com vinte anos!— Estávamos falando de seu pai — repreendeu-a Felicity. — Não é preciso

falar na sua idade ou na minha.— Bem, no lugar para onde vamos não é preciso esconder muita coisa. Já

nos conhecem há muito tempo. Negro Ingo me balançava nos joelhos. Devo tê-lo deixado exausto. Agora, o único objetivo dele é me jogar no chão.

— Ufa! — Felicity enrugou o narizinho arrebitado. — Não sei o que vocês dois querem provar, mas gostaria que se comportasse melhor, desta vez.

— Não simplifique as coisas. Ingo faz tudo para me provocar.— Concordo em que é verdade, até certo ponto. Sei que vivo lhe

lembrando isso e que você não gosta, mas ele salvou sua vida.— Não é motivo para ele se comportar como se tivesse nascido só para

cumprir essa missão! — replicou Genny, malcriada.— Fico doente só de pensar! — gemeu Felicity, transportada pela memória

para o dia em que a pequena e indomável Genny passara na frente de um cavalo a galope. Ingo, o único que não se imobilizou de medo, reagiu com uma rapidez inacreditável, segurou-a nos braços e atirou-se para longe. Genny ficou grudada nele o dia inteiro. Era ridículo o modo como brigavam, agora.

Já Felicity sentia uma onda de prazer, só ao pensar em vê-lo de novo. Ingo divertia-se com ela, bem sabia, achando que era uma borboleta inconseqüente

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com atração pelo abismo, mas Felicity sentia, com uma mistura de orgulho e gratidão, que ele as considerava uma responsabilidade especial… Felicity até achava que às vezes ambas tocavam o coração dele, o que não era muito fácil. Ingo se tornara um homem rude e desconfiado com todas as mulheres do mundo. Sua história era conhecida. Marianne, a mãe, uma mulher nascida e criada na cidade, sentia-se perdida na vasta desolação do deserto. Seu lar era o único baluarte de civilização.

Um dia, depois de doze anos de casamento, levantou-se decidida a não agüentar mais aquele isolamento. Pegou o filho e a filha e fugiu de Tandarro sem explicações, mas Marc, o pai de Ingo, a pegou a tempo. Não conseguiu convencê-la a ficar, mas exigiu os filhos. Com pena da mulher, acabou deixando que ficasse com Patrícia e levou Ingo de volta para a fazenda. Tia Evelyn, uma verdadeira megera, aos olhos de Felicity, o criou. Mais tarde, apareceu uma madrasta na vida de Ingo, uma mulher com quem nunca se envolveu. Ninguém podia tomar o lugar da mãe dele e ninguém jamais tentou.

Ingo cresceu um rapaz seguro, auto-suficiente, com uma grande força de vontade e capacidade de agüentar toda espécie de provação, mas continuava distante das mulheres. E, no entanto, exercia uma atração estranhamente grande em relação ao sexo que ele dizia desprezar. Ninguém resistia a seus olhos acinzentados, um foco de luz no rosto contido e queimado de sol, nem ao sorriso quase hipnótico.

Felicity muitas vezes tinha testemunhado a perturbação que provocava nas mulheres. Se não pensasse nele como alguém da família, a própria Felicity teria sucumbido. Só Genny não apreciava aquela espécie de cinismo que estava sempre em seus olhos. Mas o engraçado, pensava Felicity, é que Ingo se envolvia completamente e não ficava nada indiferente à menina rebelde, que não desobedecia a apenas uma, mas a todas as ordens do chefe.

Genny, depois dos catorze anos, foi ficando cada vez mais inquieta e cheia de opiniões, na presença de Ingo. O estágio adorável de menininha já se fora, época em que achava Ingo um grande herói, coisa que ele aceitava muito satisfeito. Agora, eram antagonistas, animados por todo e qualquer motivo de briga que aparecesse.

Felicity suspeitava, porém, que nenhum dos dois odiava as brigas como fingiam odiar. Talvez fosse um joguinho estranho entre eles, pois Ingo já demonstrara várias vezes entender Genny melhor do que ela se entendia, o que a irritava ainda mais. Nenhuma mulher podia se fingir de misteriosa e distraída com Ingo nem esperar uma vida calma ao lado dele. Sempre estava acontecendo alguma coisa. Mesmo assim, Felicity sabia que não havia um lugar onde ela mais quisesse ficar, por algum tempo, do que em Tandarro, onde era servida e adulada como uma rainha em visita. Era uma delícia, e aquele vírus antipático fizera com que tomasse mais cuidado ainda com sua saúde. Uma febre reumática, quando criança, complicara sua vida e todos a tratavam como porcelana imperial. Era uma bênção que Ingo fosse tão rico e generoso.

Felicity nunca trabalharia para viver, entende-se. Quando se sentisse melhor, no futuro, tentaria agarrar outro homem bom como Hughie Russell, porém, mais moço e com uma fortuna sólida e estabelecida. A mulher não é nada sem o homem, pensou Felicity, e Genny, quando for um pouco mais velha, vai mudar suas opiniões sobre a independência e o bem que ela faz ao coração.

Só ser amada é que deixava Felicity feliz. Precisava de beijos, carícias e mimos como um bebê precisa de alimentação regular. Uma obra de arte

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nascera para ser admirada e viver no luxo. Outras mulheres podiam fazer o serviço da casa ou contentar-se com uma carreira. Felicity fizera tudo para evitar as duas coisas. Uma faxineira vinha duas vezes por semana e Genny tinha sempre um bom estoque de luvas de borracha para proteger as mãos enquanto limpava a casa nos outros dias. Sabia-se muito bem que Felicity não era suficientemente forte para tarefas mais pesadas do que arrumar flores, o que fazia com perfeição.

A voz suave de Genny trouxe Felicity de volta ao presente:— Desculpe-me querida, eu estava sonhando de novo? — perguntou meio

tonta.— Certo.— Sinto muito. Minha cabeça oscila entre vários assuntos. Penso em tanta

coisa e em tanta gente! Nunca tenho tempo de ficar chateada. — Felicity tomou um gole do copo grande e gelado, fez um biquinho de aprovação e recostou-se em sua cadeira reclinada, cruzando as pernas esguias e olhando-as com o prazer de sempre. — É uma delícia não precisar de regime para emagrecer. Toda a minha família é formada de puros-sangues feitos para correr.

— E, eu já ouvi dizer que você foi meio sapeca, mesmo — Genny disse, piscando o olho.

— Eu me casei com cada um deles… Carlo. Stewart e Hughie, mas não vou negar que tive muitos admiradores. Eles viviam aos pés de sua mãe.

— Ingo vem nos buscar? — Genny perguntou quase irritada. Aborrecia-se, quando a mãe começava a contar seu sucesso com os homens.

— Ora, Genny, você bem sabe como ele é ocupado, nesta época do ano. Vamos pegar o vôo para Warrego e ele nos encontra lá. —Você quer ir mesmo?

— Querida, não há outro lugar que eu mais queira ver. Adoro Tandarro. É de uma beleza tão estranha! O contraste entre a casa e a natureza que a cerca já me deixa louca. E não vamos ficar sozinhas nem um minuto, com as férias chegando e o Natal também. Trish e as crianças vão também, eu já contei?

— Não contou, não. Aliás, você nunca me conta nada sobre o que Ingo manda dizer.

— Tenho que ficar quieta. Ele quase só fala sobre você!— Incrível! Por carta, só fala em mim. Perto, parece mais o diabo. Negro

Ingo, o indomável. Acho que tenho um pouco de medo dele.— Acredito que ele não acharia muita graça neste apelido dele. Negro…

Como? Coração preto? Alma preta?— Nenhum dos dois — disse Genny, de rosto virado. — Negro, no sentido

de tortuoso, profundo, complicado. Difícil de entender. Nem tenho palavras para descrever Ingo.

A mãe olhou-a por algum tempo.— Ah, é? Não é minha impressão, nem agora nem nunca. Você tem uma

lingüinha de cobra. Chama-o de Negro Ingo e eu o chamo de primo. Uma jóia.— Os olhos dele, sim, são como jóias.— Ah, acha! — disse Felicity — já vi muitas mulheres se apaixonarem por

Ingo, inclusive a madrasta dele.— Que bom que a gente não a vê mais! Na verdade, acho que Ingo foi

muito cruel com ela.— Mas tinha toda a razão. Ela era uma verdadeira peste. Marc jamais teria

se casado com ela, se não estivesse tão amargo e desiludido com Marianne. Ingo também sofreu, de certo modo. Só tinha dez anos, quando Marianne foi embora e se sentiu abandonado pela mãe que adorava. Não havia ninguém de

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quem Marc gostasse mais do que Ingo, mas Marc não sabia dizer as coisas. O velho Faulkner, o avô, era um excêntrico. Criou-os a todos Marc, Kel e Evelyn de modo militar, e nunca aprovou Marianne. Podia ser bonita e bem relacionada, mas era mulher de cidade, e a terra, por si mesma, não a interessava. Tandarro sempre foi um drama, em sua vida. Deve ter sido muito difícil para ela. Pobre Marianne!

— Não entendo Ingo! — continuou Genny, calorosa. — Porque não vê a mãe? Deixa Trish e sua família irem para a fazenda.

— É diferente. Trish é irmã dele. Lembre-se de que ela sofreu tanto quanto Ingo. As crianças não têm nada a ver com as situações criadas pelos adultos. Trish ficou de coração partido, ao se separar de Ingo.

— Mas os pais deixaram que isso acontecesse.— Não podiam ficar juntos, Genny. Lembre-se de que o velho era hostil a

Marianne e tinham de morar na casa dele até que ele morresse, nem ele nem Marc jamais teriam deixado Tandarro, de modo que Marianne teve que ir. Ingo, como herdeiro de uma grande fortuna, tinha que ficar com o pai. Deus sabe que ele ama o lugar tanto quanto o avô. E nunca perdoou a mãe…

— Eu sei — concordou Genny. — Cada centímetro dele, daquela altura toda, rejeita a integridade de uma mulher. Ele às vezes é tão neutro e, de repente… fica o mais, o mais…

— Charmoso?— Esse Ingo é um demônio! Ele domina tanto as pessoas que, mesmo não

querendo, não podem ficar longe dele. É um enigma.— E você não consegue ganhar dele.— Tento.Felicity sentou-se e curvou o pescoço de cisne.— É você, geralmente, quem começa tudo. Por que tanto atrevimento? Sei

que Ingo até se diverte, mas não é homem de brincadeiras, querida. Por que você não começa um novo relacionamento ou volta à paz da infância? Você o conquistava com toda a facilidade, naquela época. Ainda posso vê-la, uma criança encantadora, com aqueles radiantes cabelos claros e os olhos aveludados do pobre Cario. Não era de admirar que Ingo a chamasse de anjo!

— O que ele não faz mais!— Por sua culpa. Você fica contra ele o tempo todo. Por que não imita meu

modo de ser?— Ah, nada tão combustível! — disse Genny, sorrindo. — Posso não ter

seu encanto cheio de mormaço, mas não me importo!— Então não transforme Tandarro num campo de batalha. Você tem meu

rosto de camafeu, o que quer dizer alguma coisa. Sei que pode ser tão doce quanto mel, quando quer. E o arrogante Ingo não permitiu que você convidasse toda a sua turma de intelectuais para um mês dourado em Tandarro?

— Nessa ele não cai mais. Felicity começou a rir.— E você o culpa? Aquela moça bobinha, chamada Perry, não largou o pé

dele.Genny deu de ombros.— Ela é muito inteligente, e não sei o que lhe deu na cabeça de se

apaixonar por Ingo.— Ora, vamos! Não vamos nos enganar. Ingo é muito atraente, além de

ser o rei do gado, um homem poderoso… Toda mulher, menos você, fica doida por ele — disse a mãe.

— Conheço-o muito bem.— Não o conhece absolutamente. Genny espreguiçou-se.

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— Evelyn vai estar lá?— Infelizmente, vai. Ele não podia mandá-la embora como mandou

Bárbara. Mas ela não atrapalha muito.— Verdade. É muito sem vida.— Acho que já teve um pretendente, uma vez — disse Felicity — mas

Evelyn sempre foi orgulhosa demais para ser prática. Ninguém chegava aos pés de seu pai e de seus irmãos.

— O que ela era e o que é foi obra deles. Uns homens implacáveis, muito seguros de si. Pobre da velha Evelyn! Nunca teve nenhuma chance, apesar de ser Evelyn Faulkner de Tandarro. Não tinha direitos entre os Faulkner, os homens têm todos os direitos. Todos são arrogantes, bonitos e fortes!

— Estou toda do lado deles — disse Felicity, e Genny ficou furiosa.— Eu não. Estou mudando completamente minha visão sobre os homens e

o casamento. Sei que ainda vivemos num mundo de homens, mas precisamos continuar resistindo. Veja a vida na fazenda: o homem e o todo-poderoso; só sua força física já faz com que seu papel seja vital. Tem o perigo e a excitação e o poder. Ninguém quer saber das mulheres, a não ser para tomar conta da casa e dos filhos. Que sejam bonitinhas, se possível. Mas um dia isso vai mudar, em toda parte.

— Isso acontece em todos os lugares. O que há de errado em ser bonita?— Só espero ser mais do que um rosto bonito. Tenho uma cabeça! Tenho

um papel importante a exercer. Adoro crianças e quero tê-las, mas não quero me limitar a ser mãe, na vida. Sou uma pessoa inteira e quero ser aceita assim, neste mundo dominado pelos homens.

— Quer ser igual a Ingo? — perguntou Felicity.— Alguém pode ser igual a Ingo?— Se eu fosse você, preferiria ser uma mulher num pedestal. Nunca me

fez mal nenhum.— Temos naturezas diferentes. Seria muito difícil viver perto de um

homem arrogante e prepotente — argumentou Genny.— Marianne nunca se amedrontou. Era muito sensível, mas não era fraca.

Simplesmente cansou, num esforço desesperado para sobreviver num mundo estranho. Tomar conta de uma fazenda do tamanho de Tandarro não deixa muito tempo livre a um homem. As mulheres deles sempre sofrerão de solidão e sentimento de rejeição. Marc a amava, tenho certeza. Tornou-se um homem diferente, depois que ela o deixou, e era muito orgulhoso para lhe pedir o amor de volta. Os dois usaram Ingo e Trish como armas, principalmente o menino, porque herdaria Tandarro. Se você acha que Ingo é dominador demais, ele acha que as mulheres usam seu poder para manipular os homens. E é verdade, uma mulher atraente pode transformar um homem forte numa criança, e vice-versa. Depende da mulher. A influência da mulher na vida de Ingo tem sido destrutiva. Você vê que ele nunca diz uma palavra sobre sua mãe, e não é que a tenha abandonado. Ao contrário, ele fez dela uma mulher rica. Você está certa, quando diz que Ingo é um enigma, mas é lindo. Eu o amo. Está a léguas de distância dos homens que conheço. Na verdade, só de saber que ele está fora de meu alcance, fico triste. Se eu fosse quinze anos mais moça, juro que esqueceria que é meu primo.

— Não adiantaria nada — disse Genny. — Ingo já está vacinado para a vida toda. Se ele se casar, e vai fazê-lo, por causa de Tandarro, vai ser com uma eguazinha fácil de ser domada.

— Genny! Genny! — disse Felicity, chocada. — Sabe menina, vou lhe dar uma informação importante: Sally Lloyd está de volta. Não é bem uma égua,

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como você sugeriu, apesar de ter um corpo forte e de ser capaz de encher Tandarro de herdeiros.

Genny riu.— É como se fosse à realeza em pequena escala. Tandarro, o lugar ao sol

dos Faulkner! É preciso que se assegure um herdeiro a Ingo, quer ele queira ou não.

— Bem, amor, ele pode não confiar tanto em nós, mas se consolou todos esses anos.

— Mas sem conseqüências embaraçosas. Ingo se cuida bem.— É muito auto-suficiente. E isso, por acaso, é ruim?— Não sei — murmurou Genny. — Quem lhe contou sobre Sally?— Trish.— Ah, Trish! Ela e suas orelhas vigilantes. Será que ela nunca se distrai e

larga seu posto?— Trish faz muito bem. O que mais esperava dela?— Que estudasse, arranjasse um emprego, qualquer coisa.— Com aquele dinheiro? Queria, por Deus, que Hughie… — Felicity

interrompeu-se.— Vamos, continue que Hughie o quê?— Nada — disse Felicity, e deu de ombros.— Você me deu a entender que Hughie nos deixou bem — insistiu Genny.— E deixou, mas não deve confundir o dinheiro de Hughie com a fortuna

dos Faulkner. Trish deve ser uma das mulheres mais ricas do país. — Felicity falava depressa. Agora, depois de tanto tempo, não queria começar uma discussão sobre a verdadeira origem do dinheiro delas. Genny sabia que Ingo lhes dava um cheque gordo de tempos em tempos; o que não sabia era dos cheques mensais, fixos. Queria mudar de assunto de qualquer jeito. — Acha que pode ficar sem Dave por algum tempo?

— Dave é só um amigo! — respondeu Genny, continuando a procurar alguma coisa nos lindos olhos azuis da mãe.

— Gostaria que você fosse pelo menos normal! — suspirou Felicity. — Dave está apaixonado por você.

— Que bom!— Isso não quer dizer nada? — implorou Felicity. — Ele é tão atraente e

vem de uma família tão boa, e eu gosto tanto dele.— Você gosta de qualquer homem que saiba agradá-la. Dave também

aprecia você.— Eu sei, e ele está sofrendo, querida. Por que não o tira dessa agonia?

Os olhos escuros de Genny estavam graves e levantou as sobrancelhas delicadas.

— Nunca sei sobre o que está falando. Quer que eu me case com ele?— Por que não? Pelo menos ficar noiva.— Flick, você está louca! — disse Genny, solenemente. — Sou muito moça

para me casar, mesmo que amasse Dave, e não o amo!— Na sua idade eu já era mãe! — anunciou Felicity, trêmula de emoção.— Os tempos eram diferentes — murmurou Genny, lacônica.— Sinto muito por Dave. Toda mãe quer um médico na família.— É uma pena, Flick. Gosto de Dave. Mais ainda, estou interessada nele,

mas não o amo. Se ele fosse para a América do Sul para estudar doenças tropicais, eu compraria umas botas de borracha com todo prazer. Eu posso ficar sem ele, esse é que é o ponto.

— É uma boba por deixá-lo escapar — advertiu Felicity. — Você já está

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quase formada. É um crânio, e tenho certeza de que já passou em todos os exames.

— Quero meu diploma e talvez uma pós-graduação — disse Genny, teimosa.

— Mas por que, querida? — Felicity piscou os olhos e balançou as mãozinhas delicadas. — As moças são tão diferentes, hoje em dia! Toda essa preocupação intelectual! Tenho certeza de que isso vai atrapalhar você. Você é a moça mais bonita de seu grupo, mas tão distante que duvido que Dave já tenha tido coragem de beijá-la.

— Ah, pois saiba que teve. Eu até gosto, mas nada de diferente acontece. As estrelas não brilham os sinos não badalam. Gosto de Dave e o admito; é engraçado, esperto e inteligente. Já vi que o, homem de quem a gente gosta não precisa ser aquele que se ama. O amor deve ser uma coisa muito importante, ou então os autores famosos estão nos enganando. Talvez ele só exista no papel. Por outro lado, acho que uma grande paixão me amedrontaria um pouco.

— Felizmente, nunca me amedrontou! — disse Felicity.— Não, você parece capaz de agüentar tudo o que é espécie de castigo,

Flick.— Castigo, não, querida. As mulheres gostam de sofrer.— Está brincando!…— Não, não estou. Se sofrêssemos do jeito que fingimos, é claro que

morreríamos. É só um jogo de momento. Sempre se pode virar a esquina e achar um novo amor. Convide Dave para ir a Tandarro, Genny, e tenho certeza de que Ingo não vai se importar. Quando você sorri, consegue tudo dele.

— Ah, como eu gostaria que fosse verdade! — disse Genny, apertando os olhos.

— E por quê?— Seria um sucesso. Ingo não é como Dave. Dave é um rapazola.— Ingo é só uns seis ou sete anos mais velho — comentou Felicity.— Ah, mas é tremendamente maduro. É o observador cínico que fica de

longe, olhando para todo mundo. Ingo não vai se perder numa louca paixão. É brilhante, um homem à parte. É claro que vai se divertir e destruir alguns sonhos, mas não se abandonará à mulher nenhuma. Gosta de sorrir para elas, ironicamente, com aqueles olhos claros e brilhantes.

Felicity estava surpresa.— Você presta muita atenção em Ingo, não? Nunca percebi. Assim,

atenção de mulher para homem. Acho que deve estar crescendo e, se não parecesse tão ridículo, eu diria que está apaixonada por ele há muito tempo.

Genny ficou até gagá de raiva.— Está louca?— Não sei, não! — brincou a mãe.— Credo, mamãe!— Pronto, olhe seus olhos fuzilando. Só conheço uma pessoa que põe fogo

em você. Ingo. Como eu disse, ele não é só bonito. Se Ingo a beijasse, veria estrelas e raios num céu de verão.

— Pare de falar bobagens, Flick. Ele nem vai prestar atenção em nós duas. — Vermelha e zangada, Genny ficava linda, uma réplica tão forte de Cario que Felicity fechou os olhos para evitar a visão.

Aposto que Sally vai pescar um convite! Sorte dela! — disse Genny, indicando justamente o contrário, pelo tom de voz.

Eu gosto de Sally! — disse Felicity, não muito sincera.

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Ela se esforça demais! — continuou Genny. — Gostaria de dizer a ela que é um erro ser tão boa para Ingo. Devia dar a ele o mesmo tratamento que recebe.

— Não ia gostar nada de ouvir isso. Convide Dave. Ele é uma ótima companhia e tão atencioso que faz com que eu me sinta jovem de novo.

— Mas você é jovem — sorriu Genny. — Vai ser jovem sempre. É minha mãe e eu a amo, minha delinqüente juvenil!

— Obrigada, querida. Sei que você é que sabe das coisas.— É melhor eu esperar e perguntar a Ingo, primeiro, se Dave pode ir.— Ah, não seja boba. Ele não vai se importar. Ele espera por isso.

Tandarro pode abrigar um exército e alimentá-lo. Aliás, eu já contei a ele sobre Dave.

— Contou o quê? — Genny estendeu a mão e pegou um bocado de cabelo da mãe. — Não há nada a contar, não é?

Felicity bateu na mão de Genny.— Lembra-se de quando demorou a voltar da casa dos Hastings? Dave

falou o que queria. Fiquei com lágrimas nos olhos. Quer se casar com você, Genny. É muito prático e tem montes de planos. Gosto disso. Todos os meus planos vão sempre por água a baixo.

— E você disse isso a Ingo?— Não sou boba. Ingo gosta de saber de tudo, e quem sabe ele não vai

querer ser o padrinho da noiva…— E o que foi que ele disse? — perguntou Genny.— Para falar a verdade, não gostou muito — disse ela, desviando os olhos.— Acha que ele ficaria feliz por mim?— Ele acha que você precisa de uma mão forte.— Não será a de Dave. A mulher que se casar com Dave tem que estar

preparada para ser a chefe. Dave não gosta de confusão, compra sua paz por qualquer preço.

— Achei que apreciava isso.— Gostava mesmo, antes de encontrar Ingo.— Você lembra desse primeiro encontro? Você só tinha quinze meses,

quando eu a levei a Tandarro — disse Felicity.— Eu me lembro.— Ingo se lembra. Mesmo quando pequeno, lembrava-se de muita coisa.

Viu todos os seus períodos de crescimento. Você não pode esconder nada de bom ou de ruim de Ingo.

— Ah, esqueça!— Tudo bem. Tenho que evitar tudo o que diga a respeito do meu primo.

Convide Dave. — Talvez. Que sorte a minha! Você me arranjou um noivo!— Foi tão bem nos estudos que achei que merecia um presente — caçoou

Felicity. — E que tal umas roupas novas? Vamos fazer umas compras, amanhã, porque esta é uma época animada, na fazenda. Estou louca para chegar. Ah, não podemos esquecer de comprar calças próprias para você cavalgar. Aliás, não esqueça a quem deve agradecer por saber cavalgar como o vento. Deve pelo menos isso a ele.

— É, mas da última vez que nos vimos ele me culpou por isso.— E eu entendo perfeitamente porquê. A queda deixou você inconsciente.

Não foi falta de aviso dele.— Ingo não suporta qualquer tipo de rebelião.— Às vezes você precisa mesmo de um puxão de orelhas — disse a mãe.

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— Eu sei, eu sei! Foi minha culpa. Achei que daria conta do alazão e não dei, foi só.

— Só Ingo pode montá-lo. É cavalo de um só montador. Todo mundo sabia disso e você deixou Timmy em má situação. Por favor, não repita isso. Ingo ficou furioso.

— Não gostei de cair e, mesmo assim, Ingo perguntou se eu estava tentando o suicídio, com os olhos fuzilando, como se quisesse me assassinar.

— Ingo sempre se considerou seu guardião — lembrou Felicity. — Devia ficar muito feliz.

— Então, por que não fico?— Porque é teimosa e não há dúvida de que Ingo é muito exagerado em

suas emoções.— A arrogância de Ingo desesperaria qualquer mulher. Acho que as coisas,

entre nós, nunca mais terão jeito. — Ingo não se sente à vontade com você, também. Você o adorava e

agora explode cada vez que ele fala. É incoerente. Incrível! Os dois me confundem.

— É inacreditável que ele ainda me queira lá. Ingo é o último homem de quem eu abusaria.

— Minha filhinha, quer se acalmar? Ingo insistiu em que você fosse. Apesar do jeito dele, gosta de você. Acredite em mim — disse Felicity, com absoluta sinceridade.

Genny ficou vermelha. Mesmo com a enorme distância que os separava, Ingo a inflamava. O relacionamento cheio de paz que compartilharam na infância agora era só uma doce lembrança; os olhos de Ingo a queimavam como fogo. Era estranha a violência que surgia entre eles, junto com um encanto e uma mágica inesquecíveis.

Tandarro fora quase uma religião, para ela. Tandarro com seus deuses tribais e sua paisagem lindíssima, as estações imprevisíveis, a crueldade da seca, a espontaneidade das paisagens cobertas de flores selvagens. Tandarro era violenta e trágica, enchendo os olhos; a inevitabilidade final era que Ingo fosse tão forte. Sua imagem estava sempre na cabeça de Genny, desafiando-a a rejeitá-lo.

Estranho, como persistia, como um esboço em branco e preto, perfeito em todos os detalhes. Não compreendia o significado de tudo aquilo. Ingo, se ela enfraquecesse, faria dela o que quisesse. Tinha um poder hipnótico, uma personalidade forte que estava ligada a seu passado, à sua criação. Ela simplesmente entraria de volta naquele reino dourado? Era muita coragem dela, porque o perigo era real. Não podia conversar sobre isso, e não era normal, mas cada minuto com Ingo era carregado demais. Qualquer que fosse a causa ela sempre fazia qualquer coisa imprudente que gelava os olhos cinzentos dele. O rosto bonito veio à sua mente e a boca jovem e fresca contraiu-se de dor. Ingo era uma febre, e ela ainda não tinha encontrado o remédio.

CAPÍTULO II

Genny apertou os olhos, fitando aquele céu azul; o cabelo louro, como uma nuvem fina, brilhava ao sol quente. Alguns passos atrás dela, Felicity

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descansava à sombra da única árvore do aeroporto de Warrego, fresca como uma margarida. As duas olhavam o céu, mas Felicity estava alegre, tinha o coração leve, enquanto Genny se sentia invadida por uma perturbação crescente. Os olhos atrás dos óculos escuros estavam firmes e intensos, como todo o seu rosto. Era um absurdo, mas estava tão excitada que o coração batia. Tudo isso porque daí a instantes veria Ingo, seu conhecido de uma vida inteira! Não fazia sentido, mas alguma coisa estranha a impulsionava, fazia seu sangue ferver.

Felicity, em seu oásis verde, parecia uma garota. Estava muito elegante, com uma calça larga, camisa branca, aberta, um bustiê azul e branco por baixo. Tinha feito um corte de cabelo bem moderno, curto, o que valorizava ainda mais seu rosto miúdo e bonito. Seu corpo era tão bem-feito e quase tão jovem quanto o de Genny, só faltando o tom bronzeado.

Felicity era uma belíssima mulher, pensou Genny, orgulhosa. Não era de admirar que em todo lugar a julgassem sua irmã. Agora mesmo, no aeroporto, tinha acontecido. Este tipo de engano era comum, e Felicity sorria sempre, encantadoramente charmosa. Achava muito bom parecer quinze anos mais moça do que realmente era. Mesmo belezas sensacionais nem sempre se mantinham tão bem conservadas.

Genny andava de lá para cá, sem esconder sua ansiedade. De repente, escutou o barulho conhecido do motor e viu o sol brilhar na fuselagem do avião de Ingo. Genny sentia o suor na testa grudando seu cabelo.

— Comece a abanar a mão, que ele está chegando — disse para a mãe.— Eu não — disse Felicity, ficando em pé e tirando os óculos.Uma funcionária veio pedir que não se aproximassem e as três

observaram o aviãozinho de três lugares aterrissar com perfeição e estacionar em frente ao enorme hangar.

— Exatamente na hora! — disse a encarregada.— É Ingo. — Felicity saiu correndo para o avião, louca para ver o primo.

Sua pequena figura quase não tocava o chão, tão leve era. Genny, com medo de fazer algum movimento errado, ficou bem para trás, observando a cena do encontro dos dois e no fundo desejando aquele abraço apertado com que Ingo envolvia Felicity, pequena e frágil.

“O primo de minha mãe. Negro Ingo. Incrível!”, pensou Genny, começando a respirar fundo. Mesmo à distância, ele a atraía e a deixava cheia de tensão. Os dois vieram em sua direção. Genny teve receio de desmaiar.

— Oi, Giannina! — Só ele a chamava assim, pelo nome que o pai tinha escolhido e que só ele usara. Felicity e os outros só a chamaram de Genny.

— Oi, você!— Como está vindo? Amiga ou inimiga?— Depende inteiramente de você.— Como achar melhor. Não cresceu nem um pouquinho.— Deveria crescer? Já estou com vinte anos.— Eu sei. Felicity começou a olhar ansiosa de um para o outro.— Ela foi muito bem nos exames finais — anunciou.— Os resultados não saíram ainda, Flick! — murmurou Genny.— Não importa. Você vai se sair bem, de qualquer jeito — disse Ingo, os

olhos brilhantes brincando com ela. — De todas as criaturas de Deus, as mais bonitas e as mais suscetíveis são as mulheres.

— Então você não é cego, querido! — disse Felicity, rindo com dentes perfeitos.

— Veja só essa daí, um dos espécimes mais belos. Você está linda como

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sempre, Flick. Se quiserem subir ao avião subam, eu não demoro. Vou dar uma palavrinha com eles, lá dentro, e pegar a bagagem. Tenho que estar de volta a Tandarro lá pelas três horas. Um comprador americano. Dan Howell vai chegar. Vocês não o conhecem. Vai ficar alguns dias, acho eu.

— Um homem solitário? — perguntou Felicity.— Isso mesmo, e não se envolva com ele. Disse alguma coisa, Giannina?— Não.— Mas ficou quieta demais. Depois me conte o que pensou. Ouvi dizer que

tem um namorado.— O que é muito natural, não é?— Acho que sim, olhos de gazela. Vai ter um monte deles.— Nem posso esperar.— Um triste destino. Não seria melhor acomodar-se com um homem só?— Talvez eu já tenha me acomodado — disse Genny, levantando os olhos

para ele, por um segundo.— Se você já encontrou alguém e sabe disso, é muito bom — respondeu

ele.— A que estão querendo chegar? — perguntou Felicity. — Não outra briga

daquelas, é?— É claro que não. Ingo gosta de bancar o machão, não é, Ingo?— Claro, anjo!— Você não me chama assim há muito tempo.— É sua discrição, quando abaixa esses fogosos olhos amedrontados. Vá

com Flick e seja boazinha. Dispensarei toda minha atenção a vocês quando chegarem em casa.

Assim que Felicity saiu, Ingo segurou Genny pelo braço e disse:— Senti saudades suas.— Eu estava com medo de voltar! — respondeu Genny, maliciosa. Era

assim; diante dele, ficava atrevida.— Pois é Genny, pode se preparar para o ataque!— Talvez eu o machuque.— Não tem perigo, menina, por mais tentadora que a idéia seja. Depois de

uma ausência tão longa, podia pelo menos se dignar a me olhar.— Sou muito esperta. Tenho medo de ficar hipnotizada.— Tente.— Sou páreo para você.— Não há dúvida. Quem será que teve a idéia de misturar esses olhos que

escurecem cada dia com cabelos dourados?— O mesmo Ser misterioso que pôs contas prateadas em seu rosto. Olhos

brilhantes, o que é uma desvantagem, pois enxergam demais.Ingo levantou-lhe o queixo, com o polegar pressionando a covinha do

meio.— Uma grande e feliz família outra vez, Giannina?— Não me chame assim!— Por que não? É seu nome e até combina com você. Uma mistura

exótica. É claro que, se preferir que eu a chame de moleque, tudo bem. Seu cabelo está igualzinho a quando tinha cinco anos.

— Por incrível que pareça, ele nasce assim, não é culpa minha.— Como algodão doce. — Pegou um cacho e puxou com força.— Eu não estou procurando briga — gritou ela, inclinando-se um pouco

para frente.— Como não, Giannina? Há sempre confusão a seu lado, não sabe? Flick,

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perto de você, é uma gatinha mansa.Ela puxou a cabeça e exclamou com a voz abafada:— O melhor é deixar você falar, falar, falar… Qualquer coisa que eu

responda deixa você furioso!— Não, adoro suas respostas. — Riu. — Mas, se não sorrir para mim, sou

capaz de jogá-la do avião.— Achei que desprezava o sorriso das mulheres.— Não os seus. Lembre-se de que vi suas primeiras risadinhas

desdentadas. É uma surpresa, para mim, ver como se comporta agora.Genny jogou a cabeça para trás.— Talvez eu o recompense de algum modo.— Já sei como. Acabei de ter uma idéia, quer ouvir?— Não, muito obrigada, Ingo! — disse ela, fria.— Bem, fiz o possível. Vê-se que quer continuar a ser uma pequena

selvagem.— Ah, muito engraçado!— Muito! — O sol batia no rosto moreno dele. — Você pode não querer,

mas vai ter que enfrentar essas férias.— E enfrentar você.— Talvez seja a mesma coisa. Ela fez um gesto com a mão, confusa, e ele

a segurou.— E agora?— Na hora em que me vê já quer me transformar numa marionete —

exclamou ela. — Giannina!— Flick está olhando para nós. Não vamos brigar.— Certo! Também não é importante. Temos muito tempo. Entre no avião.

Flick criou uma moça inteligente, mas não ensinou tudo o que as mulheres devem saber, fazer e falar. Você vive gaguejando.

— Confesse que muita conversa deixa você doido, Ingo! Não negue! Eu o conheço.

— É, o silêncio às vezes acalma! — Os olhos brilhantes a estudaram com atenção.

— Sally não tem a língua solta, tem? — explodiu Genny.— Agora que mencionou o fato, pensando bem, ela até que fala demais.— Você é um demônio!— Meu Deus! — caçoou ele.— E estou falando sério!— Por quê?— Sally está apaixonada por você. Seria a coisa mais fácil do mundo tirá-la

dessa desgraça.— Como? — perguntou Ingo.— Casando-se com ela. Acontece, às vezes. Lembre-se de que Tandarro

precisa de um herdeiro.— Vou ficar solteiro por muito tempo ainda, Giannina.— Mas quer um filho, não quer?— Claro que sim. Quero também a mulher certa.— Não acredito! — desafiou-o Genny, de olhos estatelados.— Para um bom cruzamento, é o que quero dizer.— Ah! — disse ela, impaciente e irritada. — Toda vez que vejo você tenho

uma vontade louca de lhe dar um pontapé nas canelas.— Não tem coragem, gatinha.

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— Acho que vou tentar a qualquer momento!— Lembre-se da última vez! — avisou ele, sério.— Eu me lembro. Tem gente que acha você um herói, um rei do deserto,

mas não conhecem seu outro lado. — Pelo menos você conhece. Agora que sugeriu, vou pensar nesse

casamento com Sally. Acho que ela daria uma excelente mãe.— Verdade. Você não precisa de uma mulher! — Por que isso a magoa tanto? - Genny tentou desvencilhar-se.— Ah, vá para o inferno, Ingo!— Não me preocupo, acho que me seguiria até lá. E que tal esse

namorado, ou amante, sei lá o quê?— Na verdade, é só meu amigo, como sabe muito bem. Aí o convidei para

passar as férias aqui.— Ah, meu Deus, e meu lado ciumento, como é que fica?— Engraçadinho!— Quem é você para dizer se tenho ou não ciúmes? Eu gosto muito de

você. Quando sair desse período de escolar indisciplinada vou tratá-la de outro jeito, completamente diferente.

— Já sou adulta e sabe disso.— Vou tratá-la como devo — insistiu ele. — Não está me pedindo desculpas, está?— Não, a guerra continua. Eu poderia acabar com todas as barreiras, mas

quero que você faça isso. Você chora quando dorme? perguntou, de repente.— Não por você!— Gostaria de ter certeza, mas chega de conversa. A pobre Flick está

fazendo toda espécie de sinais, pela janela.— Provavelmente, não sabe mais o que fazer. Vou indo, Ingo. — Ótimo. Eu vou em seguida.“Será que não vou aprender nunca?”, pensou Genny, andando em direção

ao avião, vendo que Felicity a olhava intrigada. Jogou cabeça para trás e sorriu, fingindo alegria. O céu azul brilhava, sem nuvens, sobre a terra vermelha como sangue. Genny tremia de incerteza. Subiu ao avião e sentou ao lado da mãe.

— O que foi que houve? — perguntou Felicity. — Demorou tanto!— Sabe como é Ingo tinha umas coisas para me contar. Adoro ver você

tão bem.— Continue. Adorável Ingo! — disse Felicity, espreguiçando-se.— Como será esse tal de Howell?— É importante para você? — perguntou Genny. — Não seja burrinha, querida. Uma companheira interessante é sempre

uma maravilha. E imagino que, se ele está comprando gado em Tandarro, deve ter dinheiro.

— Dinheiro sempre sobra, por aqui. E, se você gosta tanto, podia tentar encontrar um marido rico. Felicity ficou feliz.

— Ótimo, querida. Estava com receio de que me desejasse uma viuvez monótona e triste.

— Nunca seria feliz, assim — disse Genny, suspirando.— Ingo está mais doce do que nunca. Lindo, lindo de morrer! — disse

Felicity. — Ingo, doce? Arranjaria dez mil palavras para descrevê-lo, mas doce é

demais.— Ele é terno comigo.— Só com você, Flick. Você não acorda o animal que há nele.

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— Nem tenho motivo para tanto. Não agüento esperar o dia em que vão começar a se dar bem outra vez. Podia ter sorrido para ele, querida. Por que aquela cara?

— É o único jeito que tenho de me controlar. Lá vem o grande homem. — Genny virou o rosto e ficou olhando para ele, sem querer.

Mais alguns segundos e Ingo juntou-se a elas, concentrado, virando o avião no caminho do sol. Genny amarrou o cinto e reclinou-se, mais tranqüila, sabendo que, durante a viagem, não precisaria falar. Era tarefa de Felicity responder a tudo o que Ingo perguntasse e contar todas as novidades e fofocas da civilização. Era estranho que ele escutasse e ainda achasse graça. Alguma coisa na mãe fazia os homens se sentirem à vontade, relaxados, sem contar o prazer de olhar uma figura encantadora como ela. Genny fixou os olhos nas nuvens abaixo, sentindo-se só. Não interromperia a mãe por nada, mas bem que tinha vontade. Felicity estava transmitindo a Ingo uma impressão errada sobre muitas coisas, principalmente sobre ela, Genny.

Paciência pensou. Eu é que não vou abrir a boca e correr o risco de provocar uma briga neste aviãozinho. Ele cai.

Genny recostou a cabeça no espaldar. Não era uma grande viajante. Ficava logo com sono. Vinte minutos depois, a voz de Ingo a tirou de seus sonhos.

— Não vai nos dar uma colher de chá, Genny? Não vai contribuir nem com uma palavrinha para essa conversa, ou só veio para recuperar o sono atrasado?

— Não, vim pelo prazer sem fim de sua companhia! — disse ela, docemente, passando a mão nos olhos.

— Pelo menos, seu coração está no lugar certo!— Genny é a filha mais perfeita que conheço! — disse Felicity, orgulhosa.— Escutou, Giannina?— Obrigada, Flick!— Acho que é preciso alargar os horizontes. — provocou Ingo.— Vai ser fácil fazer isso, aqui, Ingo querido!— Não havia outro lugar para ir, não é, Giannina?— Não ouviu o que Flick disse? Havia Bali.— Chove demais, lá.— E aqui também!— Não, aqui temos as quatro estações do ano em um dia só.— Quando é que. Trish chega? — perguntou Felicity, tentando distraí-los.— Lá pelo meio da semana que vem Flick — respondeu Ingo. — Por que não convida sua mãe? — perguntou Genny. Ele se virou como

um raio. — Ensaiou essa pergunta?— Não, saiu sem eu querer. Você é uma pessoa difícil, não, Negro Ingo?— Sou. Bruto e selvagem, e você tem medo. Apesar disso, escolha muito

bem os momentos para me irritar. Por que me provoca Genny?— Genny, Genny, o que deu em você? Onde está sua educação?! —

gemeu Felicity.— Tudo bem, Flick — disse Ingo. — Gosto de mulheres briguentas. Gosto

de segurá-las pelo pescoço como a gatinhos que miam e ver o ódio delas.— Acontece, Ingo, que eu estava falando sério. Se sua mãe é bonita, como

todo mundo diz que é…— Chega! — A palavra vibrou como uma chicotada. Ela o olhou e levantou

as duas mãos.

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— Está bem, está bem! Não irritarei mais o poderoso barão do gado. — Olha, querida, você está me deixando envergonhada — disse Felicity,

baixinho.Genny deu de ombros.— Então, peço desculpas por ter cochilado. Não faz a menor diferença eu

estar aqui ou não. Você e Ingo são adultos.Inesperadamente, Felicity teve um ataque de riso.— Menina, não seja boba!— Menina, é isso que ela é. Uma criança trágica. Precisa de muito mimo —

caçoou Ingo.— Sou mulher o suficiente para detestá-lo, Ingo querido. — Detestar-me e o que mais?— Ela não detesta você coisa nenhuma, Ingo — disse Felicity — mas às

vezes acho que vai se comportar assim a vida inteira.— É, Giannina curte isso. Quem sabe umas boas palmadas…— E você gostaria de dá-las? — murmurou Genny, rebelde.— Escute. O problema é que eu não conseguiria parar.— Entendo. Um homem pode se sentir um cavalheiro feudal, nessas

bandas.— Por que acha que é um crime tão imperdoável?— Porque é! Odeio ditadores.— Quietinha! Quietinha!— Nem mais uma palavra, por favor. — Felicity virou-se para Genny

zangada.— Por que só eu levo bronca, Flick? Ingo também tem culpa.— Mas estamos voando sobre meu território, mocinha. Meu mundo. Você

está sendo muito atrevida com o tirano sobre o solo dele. Isso não me parece inteligente.

— Estamos mesmo sobre Tandarro? — exclamou Felicity. — Quero ver.— Não dá, Flick. Vai ter que esperar até descermos. Estamos no limite do

deserto e entrando em Tandarro agora.O rosto de Felicity iluminou-se, excitada.— Ai, que delícia! Qual é o sabor da riqueza e do poder, Ingo?— Maravilhoso.— Ninguém deveria ser tão rico, quando há tanta pobreza no mundo —

disse Genny, severa.— Cale a boca, Genny! — disse ele. — Não morda a mão que alimenta

você.— É exatamente o que não faz!— O que ela quer dizer com isso, Flick? — perguntou Ingo à prima.— Não sei, querido, não ligue, você sabe que Genny é muito voluntariosa.— Sei que ela está louca para me morder — comentou ele.— Pois eu achei que ela ia começar uma greve de fome — disse Flick.— Preciso de muita paciência com vocês dois! — disse Genny, rindo.— Assim, mocinha, conserve o riso. Está uma beleza.— Obrigada, Ingo. Reservo os melhores sorrisos para você.— Vai ver que tenho uma surpresa.— Ah, e o que é? — Inclinou-se para frente, virando a cabeça para olhá-lo.

Esperava que ele risse ou dissesse qualquer coisa sarcástica, mas ele só a encarou de um modo que a desconcertou e ela se mexeu, nervosa. — O quê, Ingo? — sussurrou, a boca entreaberta, os olhos escuros atentos. Se estivesse em pé, perderia o equilíbrio.

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— Uma coisa boa demais para você.— Fala de Tandarro? Eu não precisei que me convencessem a vir para cá.

Gosto daqui.— Ah, é?— Você sabe.— Troca de emoções como troca de roupa? — perguntou ele.— Não sei o que está dizendo.— Está terna, doce, submissa.— Está mesmo! — confirmou Felicity. — Devia vê-la com Dave.— Ele é pra valer? — perguntou Ingo.— Ele me ama! — explodiu Genny, dizendo a última coisa que queria

dizer.— Então é noventa e nove por cento maluco!— Depende de como me vê.— É patético o modo como os rapazes se apaixonam e ela nem dá bola —

disse Felicity.— Os rapazes se apaixonam por ela? Não seja tão idiota, Flick.— Não é tão estranho, querido. Genny é uma moça muito bonita.— E nada madura e preparada para o casamento e o amor.— Como você! — gritou Genny, de coração disparado.— Talvez tenhamos medo, meu bem. Nós dois.— Ingo, está me culpando por alguma coisa que fiz com Genny?— Por seus casamentos catastróficos?— Deixe Flick em paz — disse Genny, segurando a mãe pelo ombro.Ele apertou seus dedos com força.— Cuidado que, quando se der conta, vai estar sobre meus joelhos.— Está me machucando, Ingo.— Desculpe-me, por favor! — Puxou a mão dela e levou-a a boca. Ela

sentiu uma pontada de dor tão forte que quase gemeu.— Me larga!— Vocês dois são doidos! — exclamou Felicity. Genny puxou a mão,

depressa. Estava tremendo.— Está bem, Flick. Ele ganhou, mas espere pelo próximo capítulo!— Vocês me dão medo!— Não ligue, Flick — disse Ingo, com um sorriso bonito e raro.— Sua tranqüilidade é irresistível, depois das atitudes malucas de Genny.

Gosto de seu penteado novo. Está lindo! A última novidade em charme.Felicity corou de prazer.— Não gostava um pouquinho mais comprido?— Não. Está mais moça do que nunca. Até eu me sinto velho!— Você? Como? É o homem mais dinâmico que conheço!— Dá para me esquecerem? Vou ficar maluca com tanta bobagem! pediu

Genny.— Então, deite aí sua cabecinha loura e esqueça-se de nós — sugeriu Ingo.

— Se não está querendo elogios, eu estou, e nem penso em recebê-los de você.

— Acho que é muito bonito, Ingo, mas não vai aparecer uma mulher que faça você se render.

— Render-me?— É, render-se. Ficar de joelhos, atingido por uma flecha de Cupido.— Meu Deus! — exclamou ele, divertido.— Adoraria ver isso acontecer! — disse Genny.

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— Até eu quero ver.— Aposto que Sally arranjou um convite para vir para cá! — disse Felicity.— Andou jogando indiretas — confirmou Ingo.— Por que não se casa com ela?— Tenha pena de mim. Flick!— Lembre-se de que é um rei! — intrometeu-se Genny.— Uma enorme responsabilidade, eu lhe garanto.— E que requer algumas ações monstruosas — disse ela, azeda.Ele riu, inesperadamente. Ingo rindo era irresistível; os olhos brilhantes

dançavam e a boca firme e bonita se tornava terna e suave. Fragmentos de encanto. De mágica. Voltavam às velhas lembranças, Ingo ensinando-a a nadar e mergulhar, como andar a cavalo e laçar gado. Ingo fazendo uma coroa de flores do campo para enfeitar seu cabelo. Ingo mostrando os desenhos da caverna e explicando velhos mitos e lendas. Ingo mostrando o Sky Country. Aquele Ingo ela amava.

Pronto, tinha dito a palavra proibida. Ingo não tinha lugar, em sua vida, para o amor ou sentimentos mais brandos. Era um homem de comando, livre da escravidão das mulheres. Só uma o tinha magoado, sua própria mãe, a mulher adorada de quem nascera. Nenhuma outra teria novamente a oportunidade de ser amada por ele.

Como se adivinhasse o que ela estava pensando, Ingo virou a cabeça, de repente.

— Você está com lágrimas nos olhos!— Não estou! — disse ela, piscando furiosamente.— Sua bobinha!— Crianças, crianças, parem com isso! — gritou Felicity, desarmada.— Umas poucas lágrimas não podem incomodar você, não é?— Se são suas, incomodam, sim!— Fica com raiva, não é? Eu estava chorando por você, Ingo, como deve

saber!— Não posso imaginar por que — disse Felicity, virando-se e olhando a

filha, preocupada. — Mas o que é querida?— Nada de importante!— Talvez seja o primeiro casinho de amor dela. Dizem que as pessoas

ficam nervosas — disse Ingo.— E o que é que você acha? — perguntou Genny. — Ou nunca namorou

ninguém?— Sou um covarde.— Talvez seja. Não deixa ninguém chegar perto de você!— Pois você, Giannina, está dentro de meu coração!— Tudo isso é muito estranho! — disse Felicity, sem saber o que fazer

para acalmar aqueles dois.Ingo olhou e viu a perturbação dos olhos azuis.— Felicity, a terna, a gentil, como foi ter uma gata brava como filha?— Ela não é assim. Só com você.— Então eu levo toda a culpa? Felicity riu.— Parece, querido. Fantástico, não é?— É, alguma coisa mudou nos últimos anos, e foi com você — disse

Genny, com desprezo. — Você é que se transformou completamente. Eu ainda sou a mesma.

— Você se importaria de repetir? — Ingo pediu, irônico. — É quase impossível acreditar!

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— Eu disse que ainda sou a mesma. Acabei de perder meu companheiro e mais querido amigo.

— Não acha que é por que é bonita e mulher? Genny fez uma careta.— Ah, entendo! Mulher! O resto todo se apaga!— Mistério! Eu ainda a amo, menina, acredite ou não!— O que é raro num homem: fidelidade — disse Felicity.Ingo sorriu para ela e Felicity ronronou, satisfeita. A conversa continuou,

em paz, e Genny não os atrapalhou mais.Apesar de Felicity nunca falar nada de muita importância e evitar assuntos

controversos como se fossem pragas, tinha um grande círculo de amigos e até de amigas, e homens de todas as idades achavam graça nela. Até Ingo. Talvez pudesse aprender com ela, pensou Genny, meio amarga. Por doloroso que fosse aceitar tal coisa, os homens não gostavam de mulheres seguras ou inteligentes demais. Podiam negar completamente e escrever longos e complicados artigos sobre igualdade e liberdade, mas, no fundo do coração, era tudo mentira. Os artigos vendiam, mas não passavam de hipocrisia. Nada tinha mudado, desde o tempo das cavernas.

Ingo, aliás, se sentiria em casa, naquela época, desafiando os elementos, os animais predatórios, juntando e liderando uma comunidade, puxando uma mulher pelos cabelos. Ingo era violento. Parecia o homem mais elegante e civilizado do mundo, mas isso era só um verniz. Havia alguma coisa em Ingo que Genny temia. Ele a perturbava demais, e o pior é que a atraía também.

Deu o gemido de fêmea de um homem das cavernas e se ajeitou na cadeira. Logo chegariam a Tandarro, a capital do mundo de Ingo. Sabia que estava correndo um enorme perigo, ao entrar na arena dele, o lugar mais misterioso e bonito do mundo.

CAPÍTULO III

Dan Howell nunca se sentira tão bem na vida, cercado por duas louras atentas a cada palavra dele. Se não tivesse cinqüenta anos e muito juízo, teria perdido a cabeça. Texano, com muito orgulho, era a réplica do herói de filmes de faroeste. Tinha um rosto marcado pelo sol, um corpo forte e bem plantado, começando a engordar, o cabelo muito claro e aqueles olhos azuis, acostumados a sondar grandes distâncias, com rugas marcadas nos cantos, mas cheios de calor humano, penetrantes. As duas mulheres gostaram dele na hora, e até a tia Evelyn ficou levemente interessada.

Com tanta atenção, Dan multiplicou histórias, em seu sotaque agradável, tomando cuidado para não falar do tamanho do Texas diante da enormidade do Estado australiano de Queensland e o império de gado que visitava, mas oferecendo-lhes exemplos de fortunas adquiridas, aventuras e iniciativas. Escutando Dan, que tinha enfrentado dificuldades para construir uma fazenda boa e moderna, elas podiam até ver tudo o que ele falava acontecendo na frente de seus olhos. Dan era um contador de histórias nato, com um enorme senso de humor. Ingo também estava cativado por Howell e o encorajava a contar seus casos, sem pensar no comprador, mas porque gostava do homem e apreciava sua companhia.

— Meu Deus, posso ver tudo como se estivesse lá — exclamou Felicity.— Obrigada, senhora!

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— Vocês falam assim mesmo? — perguntou, encantada.— Falamos. E nunca vi uma mulher mais bonita. Felicity corou inteira.— Ora, Dan, estou imunizada contra a lisonja.— É a pura verdade — confirmou ele.O prazer correu pelas veias de Felicity como champanhe.— Você não mencionou a Sra. Howell?Dan sacudiu a cabeça. — Não foi uma omissão proposital. Não há uma

Sra. Howell, porém, mais cedo ou mais tarde, é preciso que haja uma.— Não acredito, Dan, que você seja um solteirão!— E me pescaram hoje!Evelyn fungou sarcástica, e Ingo parecia se divertir, extremamente

atraente, com um sorriso irônico ao encarar Genny.— Quer ver o céu noturno? — sugeriu Felicity, que tinha descoberto, com a

experiência, que a abordagem direta funciona melhor.— Nós todos? — perguntou Ingo, irônico.— Você já viu antes e Dan pode não estar acostumado com o espetáculo

de nosso céu — Felicity disse, não se deixando intimidar.— Certo. Nunca vi o Cruzeiro do Sul apontando para mim. — Dan sorriu

um pouco desconcertado pela leve tensão que percebeu no rosto de Genny. Achou-a fascinante, com aqueles cabelos dourados tumultuados à volta do rosto provocante, os olhos tão escuros que qualquer um se afogaria neles. Era muito bonita, com a juventude e a italianidade à flor da pele, mas seu rosto não era alegre. Apaixonado, fogoso, os lábios grossos, o queixo dividido pela covinha, mas não era um rosto feliz. Havia nele uma espécie de tristeza, apesar do sorriso calmo e sedutor. Um coração partido, talvez. Mocinhas levavam as coisas muito a sério. Mas por que ela estaria olhando para o estranho no meio delas com um temor tão controlado? Dan sorriu para ela, querendo reassegurá-la, confortá-la, sem saber bem porquê. Ela sorriu de volta e ele ficou sem fôlego.

Ingo interceptou o olhar fascinado de Dan.— Tudo bem, Dan, pode ser que uma experiência como esta custe a

aparecer outra vez. Flick tenho que avisá-lo, é uma destruidora de corações.— Pronto, Dan, já o avisaram! — disse Felicity, alegre.— Por Deus, não há nada que eu mais queira fazer do que ir olhar o céu!

Um dia desses quero ter a oportunidade de lhes mostrar o céu do Texas. É enorme! Você já o viu Ingo, conte para elas!

Ingo riu.— Francamente, não sei qual dos dois é mais bonito.— Você não quer dizer para não dar briga — provocou Felicity.— Mas, de qualquer jeito, você está conversando com um homem de peso.

Dan tem uma propriedade muito grande.— Bem, talvez não seja do tamanho da sua. Até eu não me acostumo com

esses imensos territórios ocupados que vocês têm aqui. A casa de minha fazenda não pode se comparar com este palácio, com certeza. É incrível uma coisa dessas no meio do mato. Não entendo como há tantas mansões inglesas em pleno interior da Austrália.

— Saudades de casa — disse Ingo, acabando sua bebida. — O desejo profundamente enraizado de recriar o lar ancestral no mato. Todo mundo sabe como os ingleses são excêntricos; não poupam nada para impor ordem e bom gosto nos lugares mais improváveis. Acho que fizemos um bom trabalho aqui.

— É um lugar incrível! — disse Dan, francamente impressionado com a mansão dos Faulkner, seus grandes candelabros e os retratos de família,

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dentro de molduras douradas que eram verdadeiras obras de arte. Mesmo quem não entendesse perceberia seu valor. Dan resolveu imediatamente redecorar a casa da fazenda, quando voltasse. Talvez arranjar gente boa para fazer isso. Tinha dinheiro, podia bem gastá-lo em boa mobília, quadros, tapetes. As mulheres é que geralmente se encarregavam desse tipo de coisa, mas, na realidade, Tandarro fora projetada, construída e decorada de alto a baixo por George Douglass-Faulkner, um inglês saudoso da casa de dois andares onde nascera, herdada por Edward, seu irmão mais velho. O desejo de encontrar seu caminho e construir sua própria dinastia levou-o à Austrália, primeiro a Nova Gales do Sul e depois a Queensland, onde estavam arrendando extensos e magníficos pastos. A intenção original de Faulkner era investir em carneiros, mas acabou comprando gado e tornou-se tão rico que, depois de alguns anos, pôde trazer os dois irmãos menores e suas famílias.

Dan, particularmente, considerava o tamanho da sala de jantar, com sua opulência sólida, escura e a pesada mobília vitoriana, como muito “Velho Mundo”, muito rica e maciça para seu gosto, mas tinha que admitir que Faulkner parecia se sentir tão em casa, na cabeceira da comprida mesa, como na sela de um cavalo. Dan era um grande admirador do rapaz, como criador de gado. E agora, de perto, Ingo Faulkner parecia-se muito com a idéia que Dan fazia de um aristocrata inglês, mas mais solto, descontraído. Havia muitos homens, no Texas, que viviam como reis, e acontecia o mesmo em Tandarro, uma propriedade tão grande que era como um reinado fechado em si próprio. Faulkner era o benévolo, mas todo-poderoso ditador. Evelyn, a tia mais velha, apesar de ainda bonita, era o tipo de mulher que Dan evitava sempre, mas Felicity e a filha Genny eram perfeitas, delicadas e femininas, e cuidadosamente protegidas como qualquer outra propriedade dos Faulkner.

Dan achou curiosa a relação entre os dois primos. Não os entendia muito bem, mas percebia qualquer coisa diferente no rosto de Faulkner cada vez que ele olhava para sua prima mais moça. Era uma criatura tão bela e inteligente que Dan teria adorado ter como parente, mas Faulkner parecia nem perceber sua pose aristocrata, seu porte de princesa, e lhe lançava mil pequenas indiretas a que ela respondia imediatamente. Ele jamais tratara uma mulher assim, Gostava de colocá-las num pedestal. Felicity também, achou ele, estava intrigada com o constante duelo do rapaz e da moça.

Depois que os dois saíram, de jipe, instalou-se um silêncio pesado na sala. Até que Evelyn não agüentou e exprimiu sua indignação com o comportamento de Felicity.

— Por mim, podemos não vê-los nunca mais, mas, se fosse você, Genny, não me preocupava desnecessariamente. Ela volta.

— Claro Evelyn. Você conhece Flick! Ela só ficou lisonjeada.— A vida que você levou às vezes me faz chorar.— Evelyn, não se excite! — disse Ingo.— Não dá para evitar. A atitude de Felicity me lembrou a última vez.— Hughie?— Não, Hughie não, o outro, como era o nome mesmo?— Stewart — disse Genny.— É humilhante! O homem vem comprar gado e Felicity foge com ele.— Por favor, tia Evelyn, gosto de minha mãe mais do que de qualquer

coisa no mundo. Ela é como uma criança. Nem percebe que nos deixa apreensivos.

— Vamos lhes dar uma hora e depois saímos atrás deles! — disse Ingo, meio brincando, meio a sério. — Eu diria que Dan achou Flick a mulher mais

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bonita que já viu, mas você, pequena Giannina reprimida, deixou o sujeito bobo, de boca aberta.

— Como? — Genny virou a cabeça.— Você sabe muito bem que, quando um homem olha você, encolhe-se

toda.— Só que não percebi ninguém me olhando — respondeu.— Pois eu percebi — disse a tia Evelyn, severa. — É uma boa coisa que

seja só uma menina.— Não, Evelyn, houve uma mudança nos últimos anos. Nada de grandes

progressos em outros aspectos…— Se me dá licença, tia Evelyn, vou sair um pouco — disse Genny,

apressada. — Espero que goste dos discos que eu lhe trouxe.— Minha querida menina, obrigada outra vez. É tanta bondade sua pensar

em mim… e todos aqueles livros de meus autores favoritos!— Lembre-se dela quando fizer seu testamento! — disse Ingo, com os

olhos brilhantes.— Como você sabe, eu já o fiz, mas papai não me deixou muito dinheiro —

replicou a tia Evelyn.— Achei que era uma mulher rica! — riu Ingo.— Fiz uma divisão justa: uma parte para você, meu querido sobrinho, e a

outra para Giannina, que talvez precise dele, com a mãe que tem.Ingo balançou a cabeça, com o rosto moreno cheio de vivacidade. — Evelyn tenho orgulho de você. Prometo que vou gastar tudo com muito

juízo. Quanto a Giannina, que está sem fala pela primeira vez na vida, devia cair de joelhos e agradecer a você. Com todo esse dinheiro, não vai nem precisar se casar.

Tia Evelyn pôs as mãos para o céu.— Deus me livre, se ela ficar solteirona. Olhe para mim! Papai sempre

dizia que ninguém era digno de se casar comigo.— Você não podia decidir isso sozinha?— Deveria ter decidido. Poderia ter filhos meus. No entanto, gosto de

vocês dois, apesar de viverem brigando.— Eu não acho que ser solteira seja uma desgraça! — disse Genny, séria.

— É melhor do que ser casada e infeliz.— Deve ser! — respondeu tia Evelyn, calma. — É que eu nunca…— Eu sei, eu sei. — Genny, com seu bom coração, saiu de seu lugar e foi

passar os braços em volta dos ombros magros da tia Evelyn, com os olhos cheios de lágrimas.

— Meninas, meninas, parem com isso, senão daqui a pouco desato eu a chorar. Vamos, Evelyn, você pode se sentir frustrada por ser uma solteirona, mas não se esqueça que me criou. Já é alguma coisa.

— Claro, e tenho orgulho de você. Sei como você é bom e generoso — disse a tia.

— Vai ter que me contar isso melhor, um dia, porque não consigo perceber estas qualidades. — Genny não pôde perder essa oportunidade.

A tia Evelyn bateu em sua mão, forçando um sorriso.— Acho que consegue. Meu pai era um homem de idéias rígidas e

antiquadas sobre as mulheres, um homem notável, forte, mas Ingo tem algo que nem meu pai e nem o dele tinham.

— Não conte Evelyn. Deixe que ela descubra por si só.— Pode ser a melhor coisa. Agora, se me dão licença, vou começar um dos

livros novos que Genny trouxe para mim. Sou fã de Mary Stewart,

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especialmente nos romances de suspense.— Muito próprio para uma mulher. Onde estaríamos nós, sem romance? —

Ingo segurou a cadeira da tia, curvando-se para roçar a boca na sua bochecha sem rugas. — Não se preocupe com Flick. Ela sempre cai de pé.

— Não estou tão preocupada com Felicity, mas com essa menina aí.— Pode deixar que eu tomo conta dela — afirmou Ingo.— Sei que toma. — Tia Evelyn foi indo embora, sorridente, com a cabeça

grisalha bem levantada.Genny observava, aflita.— Pobre tia Evelyn! — disse terna. Ingo balançou a cabeça.— Sinto muito não ter pena de Evelyn Faulkner de Tandarro. Por outro

lado, teria pena do marido dela.— Que maldade está dizendo!— Meu bem, Evelyn está se tornando cada vez mais boazinha e mansa.

Era uma peste, na juventude, e incrivelmente altiva e arrogante.— Como poderia ser de outro jeito, criada como foi?— Todos nós sofremos de um jeito ou de outro. Olhe para você.— É, olhe para mim.— Olhei a noite inteira.— E tomou cuidado para que eu não percebesse.— Claro! Gosto desse jeito de princesa. Não combina nada com essa boca

apaixonada.— Pare de falar bobagem!— Dave nunca lhe disse?— Esse assunto nunca entrou em nossa conversa.— Agora está me deixando aflito. Conte-me tudo sobre ele. — Você não vai arruinar nenhum namoro meu!— Seus namoros! — caçoou ele, estendendo a mão e puxando-a para

perto. Ela engoliu em seco, sentindo-se pegar fogo ao seu toque, e, obedecendo

a um instinto incontrolável, começou a dar socos nele com a mão livre, até que ele a virou como uma boneca, fazendo-a prisioneira do círculo forte de seus braços. Genny se concentrou furiosamente para empurrá-lo. Não dava para agüentar ficar tão perto dele.

— Pare com isso! — Enfiou as unhas nele, que a segurou com mais força.— Se quer que eu a trate com carinho, Genny, não é assim que vai

conseguir isso.— Você é tão… tão…— Continue.— Largue-me, Ingo! — disse ela, respirando fundo. Jogou a cabeça para

trás e olhou-o dentro dos olhos. O brilho metálico, prateado, a assustou, e a vitalidade turbulenta que emanava dele a ameaçou. Ficou branca. — Por favor, Ingo! — sussurrou sem querer desafiá-lo mais.

— De que está com medo? — perguntou ele. — Até seus cílios estão molhados.

Ela virou a cabeça e a encostou em seu peito duro, a voz abafada.— Eu não quero fazer o que faço. Arranhei você? Sinto muito.— Não me console — disse ele, azedo. — Sou Negro Ingo, lembre-se.— Mas eu o amo! — respondeu ela, apaixonada. — Pelo menos eu o

amava só que aconteceu alguma coisa entre nós. Mostre-me sua mão.— Ah, vá para o inferno! — disse ele, duro.— Você me confunde — persistiu ela. — Fica implicando comigo. Quanto

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acha que eu agüento?— Que você agüenta? Meu Deus! Vamos refletir no assunto. Desta vez,

quanto tempo foi? Seis ou sete horas, e já quero estrangular você.— Mas é tão cruel comigo!— Foi você que me provocou, não sei se lembra.— Foi mesmo. E não sei como você me agüenta aqui.— Nem eu. Ela tomou fôlego, como uma criança chorosa, e deixou que ele

a abraçasse.— O que é isso? Uma espécie de recompensa?— Você não ligava antes!— Nem acredito. Talvez porque você não tivesse esse corpo tão esguio e

bonito. O que diria Dave, se nos visse agora?__ O que quer dizer? — Ela levantou a cabeça.__ Dá licença, Giannina — disse ele, afastando-a dele. — Falamos disso

depois, talvez daqui a um ano. Está uma noite muito bonita para ficar dentro de casa. Quer andar a cavalo?

— Um passeio?— Diabos, não foi o que eu disse?! Vai ter que tirar essa roupinha

elegante. Vamos pegar os cavalos.— Que idéia maravilhosa!— A única que tive para salvar minha alma.— Aonde vamos?— Não se preocupe. Não vou arrastá-la para… Ela esticou o braço e lhe

tocou a mão, rapidamente.— Sinto muito.— Vou me vingar, não se preocupe. Vamos depressa, Genny. Estamos

cheios de desejos selvagens. Vá na frente. Você não tem idéia de como parece frágil.

— Não devíamos esperar por Flick aqui? Ingo franziu a testa.— Flick pode tomar conta de si. Imagino que, para surpresa dela,

descobriu que Dan é um cavalheiro.— Não seria maravilhoso, se fosse verdade?— E é. Ainda existem alguns de nós.— Ah, seu convencido! — Deu uma volta na sala, como uma garota de dez

anos, e a saia de chiffon rodopiou. — Quero só cinco minutos!— Achei que lhe tinha dado a vida inteira!— E deu. É que tenho que me livrar por um instante de seu domínio,

entende?— Não.— Tenho certeza de que isso vai passar Ingo.— Se não passar, um dia vou ter que limpar essa cabeça de todas as

confusões.— Não, vou ter que fazer minha cabeça sozinha. Por favor, faça um

curativo nesse arranhão. Está horrível.— Prometo que farei depois. Agora eu quero olhá-la e fazer com que você

o olhe. Dói tanto que é uma sorte eu estar vivo!— Podia ser pior — disse ela. — Claro, nunca se sabe.— Tenho certeza de que já o arranhei antes.— Muito tempo atrás. Tinha uns catorze anos, na época, e estava se

transformando numa moleca terrível. Seu futuro marido deveria treinar para tornar-se um faixa-preta.

— Conte a ele o tipo de família na qual está entrando!

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— Ele já sabe há muito tempo! — Agora vou me vestir. Se não estiver nos estábulos em dez minutos, não

espero.— Espera, sim. Estou acostumado com suas ameaças. Aproveite e corte as

garras.— Eu vou trazer um remédio! — prometeu ela, indo para o quarto.— Está bem — disse ele, secamente. — Seria fatal não cuidar de suas

arranhadas!A noite estava uma beleza, com o céu coberto por milhões de estrelas que

brilhavam sobre as dunas e o fantástico labirinto de canais e riachos. O ar estava carregado com o cheiro dos lírios que cresciam entre o junco dos regatos. O mais impressionante, porém, era ver o Cruzeiro do Sul dominando o céu. Suas estrelas foram adoradas durante milhares de anos, antes da história escrita. Jirrunjoonga, a estrela-guia. Jirrunjoonga, o lar brilhante do Povo do Céu.

Tandarro era maravilhosa todas as horas, mas à noite era especialmente mágica. Talvez por causa da música que vinha de fogueiras distantes, do riso das hienas, do canto do vento. Genny não entendia bem, mas se emocionava. O cavalo, Gaspian, corria como o vento, ela adorava a velocidade. Cavalgava com prazer.

Se ela subisse no pico da montanha mais alta, talvez alcançasse uma estrela inatingível, um diamante perfeito, imaginou feliz. O vento em seu cabelo, e ela recordava todas as suas aventuras em Tandarro! O brilho imenso das estrelas a estava hipnotizando, e queria deixar-se levar por esse mundo fantástico, o mundo que conhecera na infância.

Sua voz clara elevou-se contra o vento:— Vou apostar corrida com você até aquele bosque.Se Ingo a entendeu ou não, não chegou, a saber, mas ele lhe deu

vantagem e mudou do passo para o galope.Genny chegou debaixo das árvores e virou o cavalo.— Ingo, onde você se enfiou?Estava um silêncio estranho e a brisa sussurrava à volta dela. Não era

possível que ele ainda estivesse atrás. Sabia como ele cavalgava sem falar na rapidez de Red Dust, o belo alazão. Assim mesmo se preocupou.

__ Ingo, onde se meteu? Eu sei que ganhei e você detesta perder!— Sua voz vibrava um pouco aflita, inexplicavelmente amedrontada pelo

escuro. Um vaga-lume passou por sua cabeça, e ela bateu com a mão, quase assustando o cavalo. — Ingo!

— Perdeu alguém? — Apareceu perto dela, de repente, a pé, tirando-a da sela, as mãos apertando sua cintura fina. — Não se engane mocinha, não consegue ganhar de mim em coisa alguma!

— Juro que ainda ganho!— Vamos até a água. Lá está muito fresco.— Depois dessa corrida louca, eu até tomaria um banho.— Não sou páreo para tanto! Muito perturbador.— Tudo bem, mas, pelo amor de Deus, eu passei anos jogando água em

você!— Outros tempos, mocinha. Você cresceu. Até meu autocontrole tem

limites.— Você era tão bom para mim, naquela época! Consolava-me e me dava

ânimo — disse ela, melancólica.— E você era uma criança doce, um anjo cor-de-rosa. A mudança violenta

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chegou aos treze ou catorze anos, não tenho certeza. Você começou a me odiar.

— Não!— Ah, sim! — disse ele, calmo. Ela o olhou, surpresa.— Estranho você se incomodar com isso, já que nada na vida o incomodou

antes!— Sua malcriada! Mas desta vez não vou entrar na sua e estragar essa

visão. — O lago brilhava profundo, e aparecia todo, à luz da Lua. — por segurança, vamos só sentar na margem!

Aquele lugar era mágico. O lago era inteiramente cercado de acácias em flor e lírios d’água. De lá, se ouvia o canto variado de muitos pássaros, gritos, arrulhos, assobios. Genny se sentia flutuar.

Ingo encostou-se num tronco de árvore e puxou Genny para perto de si virando sua cabeça para que descansasse em seus joelhos dobras. Pegou umas pedrinhas na mão e jogou-as uma a uma sobre a lagoa prateada.

— Que prática! — comentou ela, preguiçosa.— É uma coisa que não posso lhe ensinar, as mulheres são péssimas

nisso.— E, assim mesmo, conseguem o que querem — disse ela.— E eu não sei!— É um lugar lindo! — disse Genny. — Mágico. Lembra-se do passarinho

que fazia seu ninho aqui?— Subiu o riacho acima. Com os pelicanos.— Acho que eu podia ficar aqui para sempre — disse ela, olhando as

estrelas. — Escute só a água escorrendo por aquelas pedras. Música, pura música! O barulho do vento e o brilho das estrelas. Eu nunca me sinto tão livre assim, na cidade. Não há essa comunhão maravilhosa com a natureza. Olhe só como esses chorões caem sobre o lago. Não é aqui a casa da ninfa da água?

— A que se transforma em íbis branca, diz a lenda. Às vezes pode ser vista, dançando do outro lado.

— Você já a viu?— Não, o que é uma pena. Sonhava com isso desde pequeno.— Mudando de assunto, como estará Flick?— Dan já deve estar sob a influência dela. O feitiço das mulheres

consegue tudo. Até do Povo do Céu.— É incrível como as coisas não a tocam com profundidade. O pobre

Hughie morreu há menos de um ano.— O suficiente. Você não espera que eu faça comentários, não é,

Giannina? Sempre tive a forte impressão de que não tolera a menor crítica a Flick.

— Não estou criticando, só falando, e só para você que a entende, apesar de não aprovar tudo o que ela faz. — Ela deu um leve suspiro. — É estranho mesmo como as coisas não a afetam em profundidade.

— E as ações repercutem fundo em você. Não se pode fazer nada com Flick. É muito doce e adorável, mas é um castigo.

— Não diga isso! — protestou, rapidamente.— Está vendo como não se pode falar nada sobre Flick com você,

Giannina? Não quero brigar, quero aproveitar nossa harmonia tão rara.— Então vamos nos beijar e fazer as pazes! — disse ela, conciliadora.— Que boa idéia! Ficou tensa.— Eu estava só brincando. Nunca fizemos isso.— O quê?

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— Beijar e fazer as pazes. Nunca fomos do tipo beijoqueiro. Ele inclinou a cabeça.

— Seria engraçado, se fosse verdade.— Sabe o que eu quero dizer. Não estou falando em Sally e em todos

aqueles objetos sexuais. Estou falando de nós.— Você está começando a me preocupar. Flick pode ter feito mais

estragos do que imaginei.— Pensando nisso, beija Flick a toda hora. E por que não a mim?— É fácil cobrir Flick de beijos — disse ele, de leve.— E eu sou como uma Medusa, com a cabeça cheia de cobras!— Vamos ver! — Enfiou os dedos por sua cabeleira sedosa. — Não, o

mesmo cabelo fino de algodão. E se eu começar a beijar você como beijo Flick?— Vamos deixar as coisas como estão — disse ela, rapidamente.— Eu disse que precisava alargar seus horizontes. Já me esforcei tanto em

sua infância… Posso continuar. Tem certeza de que Dave tem sangue vermelho nas veias?

— Sádico!— Não gosto que me chame assim. Diz as coisas mais imperdoáveis.— E eu não gosto de ser vítima de suas gracinhas.— Não estou rindo, nem você — disse ele.— Acho que foi uma besteira vir aqui com você.— Agora é tarde para se arrepender! — Na voz dele havia uma nota de

sensualidade que a encheu de pânico. — Está muito corada — disse ele, displicente. — Sua pele está quente.

— Meu sangue esquenta com muita facilidade.— Somos dois.— Esquece que estou acostumada com você.— Ah, é? Você nem sabia com certeza se seria bem-vinda e diz que me

conhece tanto… Sei que faz as coisas mais imprevisíveis e estranhas! Absolutamente. Isso vem vindo há muito tempo. Aliás, estou cansado dessa farsa.

— Não se atreva a fazer nada comigo! — gritou ela, desesperada.— Até você sabe quando chega a hora de parar de representar, Giannina.— Por favor, Ingo! — Pôs a mão no rosto dele. — Peço desculpas por tudo

o que já fiz e já esqueci o que foi.— Eu não esqueci, mas aceito suas desculpas. Acontece, Giannina, que

você não pode parar o que está acontecendo. Na verdade, não tem escolha. Desista, porque não há saída.

Ela apertou os dedos dele, convulsivamente, tentando acalmá-lo, mas ele forçou a cabeça dela para trás, segurando-a, e a boca macia abriu-se com o leve puxão de cabelo.

— Você vai se arrepender! — jurou ela, com raiva.Ele só riu, antecipando sua luta, mantendo-a quieta. Depois passou os

lábios bem de leve em seu pescoço, na boca, um simples toque que a abalou tanto quanto um ato de amor.

Genny deixou escapar um suspiro, tremendo violentamente, detestando-o por estar brincando com ela como gato e rato. Não era uma boneca para Ingo brincar, mas uma mulher livre. Ele tinha um jeito todo especial de desencadear a violência dela, como se gostasse daquilo, segurando seus pulsos com uma força que não dava para vencer.

— Você não sabe o que quer, sabe? — disse ele, entre dentes, levantando-a com um só e perfeito movimento e colocando-a sobre os joelhos.

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— Você acha que pode fazer tudo o que quer?! — Genny gritou, com a voz trêmula e os olhos brilhando de lágrimas.

— Estou só fazendo o que nós dois queremos há muito tempo! — Procurou sua boca com paixão.

Ela sentiu seu corpo amolecer, a boca se abrir com suavidade e desejo. Era uma excitação sem fim, uma paixão louca que mexia com seu corpo e tomava conta de seus sentidos, A fome e a urgência que ele estava criando nela pediam muito mais do que aquele beijo. Genny respondia sem fôlego, sem ar, e depois se envergonharia de tudo. Esqueceu todos os beijos que já dera e recebera antes, em sua vida, Ingo a segurava como se a amasse. Seu corpo se apertava ao dele cheio de desejo. Havia algo de culpado, porém, como se eles fossem proibidos um ao outro. Nada era real para ela, muito menos sua própria entrega. De repente, Ingo mudou de atitude, cortando o encanto abruptamente. Genny abriu os olhos, tão perto dele que não conseguia focalizar seu rosto.

— Ah, meu Deus! — disse ela, com a voz trêmula.— Sinto muito, menina, não é uma boa idéia ficar aqui.— Por que não? Onde mais tocam os sinos e batem os tambores? Um de

nós está louco, talvez os dois.— Você é quem sabe. Mas meu desejo não conhece limites.Ela respirou fundo, exausta.— Diga-me, ó todo-poderoso, como vamos resolver este último

acontecimento desastroso?— Fácil. Não se esqueça do efeito que teve sobre nós. E a luz do dia

sempre traz esclarecimentos.— Não acredito! Nem sinto que este corpo é meu.— Eu entendo muito bem — disse ele.— O que está querendo dizer?— Você já foi beijada antes.— Mas hoje foi a melhor coisa que me aconteceu na vida. Vou voltar para

buscar mais.— Não posso prometer nada com certeza. Tenho que trabalhar. Não posso

ter um anjinho louro me separando de Tandarro.Ela olhou as estrelas, meio tonta, sentindo que o encanto tinha acabado e

estavam outra vez na estaca zero. — Esse é o jeito de me tratar, depois de todos esses anos?— Só me pergunto por que esperei tanto tempo. Agora tenho que saber se

você reage assim com outros homens.— E se eu respondesse que reajo?— Eu a estrangularia aqui e agora.— Tudo por causa de um beijo? Gostei muito e obrigada.— Pena que deu para mentir, agora. Que boca linda você tem… Quase

entrei em choque.— Talvez tenha sido mútuo.— Infelizmente, não posso beijá-la de novo. Uma vez é o suficiente.— Eu nunca gostei de drogas e não quero me viciar em seus beijos.

Quanto a mim, foi uma experiência inesquecível, e é melhor que não se repita.— Vamos ver se agüenta cumprir a promessa!— Então, por favor, me largue.— Tem certeza de que não quer me beijar de novo? — Ficou de pé num

movimento muito bem coordenado, levantando-a junto com ele.— Dave vem na semana que vem — anunciou ela, equilibrada. — Nem

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posso esperar até lá.— Vai poder mostrar a ele grandes progressos.— Isso é assunto meu.— Você poderia me agradecer.— Não vou cair nessa armadilha. Você pode achar que pode me dominar,

mas não pode. Nenhum homem, muito menos um homem como você pode passar por cima de minha personalidade, meus objetivos e ambições. Não vou virar um nada, um zero à esquerda, uma propriedade dos Faulkner.

— Giannina, você não consegue ser séria?— Você nunca é sério!— Talvez eu não queira que você saiba quanto eu quero você! É muito

moça e ainda estuda. É até minha prima. Sabe como as pessoas falam!— Ninguém fala como você. Gostaria que fosse embora.— É a única coisa que não faço. Acha que consegue subir? — perguntou,

apontando para o cavalo.Ela puxou a mão, lutando por sua segurança, e escutou a caçoada:— Dave anda a cavalo?— É um profissional — respondeu concisa.— Eu perguntei se Dave anda a cavalo.— Não. É médico.— Não vou usar isso contra ele. Você pode ensinar, é claro, apesar de

achar que seria um suicídio. Talvez queira que eu ensine? Ingo subiu no seu cavalo.

— De agora em diante, vou começar a ignorar você.— Talvez seja melhor. Dave tem dinheiro?— Como é que eu posso saber? Nunca perguntei.— Não posso entender Giannina — disse ele, continuando a conversa. —

Você viveu muito bem, até hoje. Você precisa ter certeza de que ele pode sustentar você do modo ao qual se acostumou.

— Hughie não era rico! —- explodiu ela, como se precisasse se explicar. — Só estava bem de vida. É claro que Flick ainda tem dinheiro dela, mas eu não ligo se perder alguns luxos. Nunca tivemos nada com Tandarro, você sabe. Aliás, construir uma casa dessas, hoje, arruinaria até um milionário.

— Uma coisa de cada vez, Genny! — disse ele, acalmando-a. — Fico contente por ter convidado Dave. Não me perguntou nada, mas, assim mesmo, estou contente. Vai me dar a oportunidade de agir como seu parente mais próximo, pelo menos neste país. Acho que tem um monte de parentes na Itália. Cario era só um jovem, quando Flick o abandonou. Vou ver se esse Dave serve se é capaz de sustentar você. Espero que ele saiba quem é você. A maioria dos homens teria até medo de se aproximar.

— Os médicos não se amedrontam com facilidade.— Tem isso, é claro, mas eles só têm na cabeça dor de estômago e

alergias. Por que você insistiria em se casar com alguém tão pouco romântico?— É romântico o bastante para mim. Você é que devia se envergonhar de

você mesmo.— Eu não! — respondeu, rindo.— Pois deveria.“Um solitário por escolha!”, pensou ela, triste. “Não pense que estou aqui

para ameaçá-lo, Ingo Faulkner. Por mim, pode morrer solteiro, incapaz que é de permitir que alguém rompa sua couraça.”

— Me envergonhar de quê? — perguntou. — Não vai dizer que abusei de sua ingenuidade? — perguntou.

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— Não, fatos são fatos.— Essa é que é minha boa menina.— Eu me considero tão independente como você.— Seja tudo o que quiser cara de anjo, desde que esqueça o que sente em

meus braços.— Não espere me ver neles outra vez.— Por que precisa me desafiar desse jeito? Nenhum homem é

completamente previsível, especialmente em noites estreladas. Vamos para casa ver se Flick está pensando em mudar de endereço.

— Não diga isso! Já estou ansiosa demais.— Não era melhor prestar mais atenção a seu próprio problema? —

perguntou Ingo. — Que é?— Espera que eu lhe dê todas as respostas?— Você não é todo-poderoso, senhor sabe-tudo?— Quem manda ficar por perto?— Gosto de cores, excitação e perigo.— O que não é novidade!— Você não tem que ser sarcástico. Como está o arranhão?— Vou pedir ao Dr. Dave que dê uma olhada.— Vai estar bom, quando ele chegar aqui.— É bom eu saber. Quando ele chega?— Lá pela sexta-feira, e fica uma semana — respondeu Genny.— Quem toma conta dos doentes? Ou eles ficam melhor sozinhos?— Ele vai tirar uma semana de férias do hospital — disse ela, fingindo que

não estava ligando. — Ainda não começou a trabalhar em sua clínica particular.— Que pena! Tenho certeza que o mundo lucraria com ele.— Flick gosta dele.— Seria muito estranho se não gostasse. Deve ser um rapaz bonito,

simpático, de boas maneiras e com uma boa dose de malícia.— Por favor, Ingo!— O que é que há? — Os olhos prateados dele brilhavam no escuro como

os de um gato.— Não estou me sentindo bem. Sinto até vontade de chorar.— Você só chora de raiva. — Estou com uma espécie de raiva, agora.— Talvez esteja à beira de se descobrir. — Mamma mia você não é fácil! — gemeu ela. Ele deu aquele sorriso

brilhante, amigo e relaxado.— O esforço tem que ser todo seu, Giannina.Estavam cavalgando lado a lado pela noite mágica, os cavalos a passo.

Genny ficou perdida em seus pensamentos. Ingo parou a seu lado e inclinou-se para olhar dentro de seus olhos.

— No que está pensando?— Não consegue adivinhar?— Conte para mim. — Pegou as rédeas dela.— Achei que foi um grande erro ter me beijado.— Realmente? Para mim foi uma maravilha.— Então estou sofrendo sozinha.— Muito bem! — Sacudiu os ombros largos. — Quem foi que pôs a idéia na

minha cabeça, em primeiro lugar? — E por isso eu imagino que você vai me culpar…

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— Exatamente.Genny queria ver a expressão dele, mas estava escuro e só podia ver o

brilho malicioso de seus olhos. Levantou a cabeça com orgulho.— Estou desapontada com você, Ingo. Nunca pensei que uma mulher

conseguisse tentá-lo.— Nenhuma melhor do que você, criança!— Que triunfo!— Mas não conte a ninguém.— E Sally? — perguntou ela. — Ficaria tristíssima.— Eu sei. Ela tem montes de planos.— O que não vai ajudá-la em nada — sorriu Ingo.— Então por que não lhe diz? — perguntou Genny, sentindo a hostilidade

crescer.— Tenho certeza de que ela não escutaria nada do que tenho a dizer.

Conhece as mulheres!— Nós duas sabemos que você as conhece.— O que quer dizer com isso?— Esqueça! É um homem terrível! Se eu não gostasse tanto daqui, não me

veria nunca mais. Tandarro deve ser o melhor lugar do mundo!— Acho que sim — disse ele com voz aveludada.— Mas já levou muitas vidas e toma todo o seu tempo e sua energia. É tão

grande! Acho que Dave vai ficar até nervoso.— Não é possível!— Para vocês, ricos, é impossível se espantar com essa casa e o tamanho

da fazenda, porque nasceram em lugares assim. Não dá para ver? Acho que não. Está acostumado. Viveu aqui a vida inteira. O queixo de Dave vai cair. Até Dan, que tem dinheiro, não imaginava o que fosse a fortuna dos Faulkner.

— Posso garantir que foi a primeira vez que escutei isso.— Acredito. Pois se prepare, porque é Dave que vai fazer papel de bobo,

com a boca aberta dois dias seguidos.— Contanto que ele não desmaie imediatamente! — disse Ingo. — Mas,

pelo menos, vem de um ambiente agradável?— Muito agradável, mas isto aqui é luxo demais. Se não sabe, não dá para

explicar. É seu lar e você só consegue vê-lo nessa perspectiva.— Errado. Não é meu lar, é minha paixão — corrigiu ele.— É — disse ela, sombria. — Você é um homem poderoso e seu poder é

real.— Não abuso dele, Giannina. Você conhece bem meu estilo. Quando eu

dou alguma ordem, tem que ser obedecida.— E é! — disse ela, apoiando a cabeça no ombro dele, meio séria, meio de

brincadeira. — Somos todos seus, Ingo Faulkner, e tome conta de mim com carinho.

— Já tomei conta de outro jeito? — perguntou tenso. — É de conhecimento comum, anjo, que foi terrivelmente mimada.

— Não é verdade — disse calorosa, levantando a cabeça.— Isso é que é o pior.— O que quer, afinal? Ser meu dono?— Talvez fosse até melhor assim.— Olhe, você é mesmo um louco Ingo sei o tipo de homem que é.— Sei como todo mundo, aqui, adora até o chão em que você pisa, e por

que não? Você sustenta e apóia até o último empregadinho, mas eu sou

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diferente. Pode ter o direito de dizer que milhares de léguas são suas, mas, goste ou não, jamais serei sua propriedade.

— Não foi o que me deu a entender, alguns minutos atrás. Eu podia jurar que tinha sido feita sob medida para mim. Vamos, vamos correr. Vai levar algum tempo, já vi.

— O que vai levar tempo?— Domar você. Mas não dá para ter tudo. Gosto de muita energia, mesmo

que seja difícil controlá-la.— Porque é um homem realmente violento. Não é a primeira vez que

penso nisso. Toda essa pose, a classe, o estilo, são vernizes. Você não passa de um selvagem!

— Você ainda precisa descobrir quanto, e vai descobrir. Provavelmente, vai ser sua primeira grande emoção de mulher.

— Não me ameace!— E não vou prestar a menor atenção a você, também. Pelo menos agora.

Quando voltarmos, vou tomar uns uísques puros, que estou precisando.— Então vamos voltar para o lugar a que você pertence! — gritou Genny

para ele, já sentindo de volta toda a tensão do começo daquele dia. Bateu de leve no cavalo e disparou na frente. Agora, pela primeira vez, Tandarro parecia muito grande, inconquistável, hostil demais para as mulheres.

Correu tão depressa quanto podia, mas, ao saltar a cerca, o alazão de Ingo passou por ela, confiante. Red Dust era o único cavalo da fazenda que ela estava proibida de montar. Genny foi para o estábulo tomando cuidado para não se encontrar com Ingo.

CAPÍTULO IV

Na manhã seguinte, Genny estava chegando perto dos pastos cercados quando encontrou Dan. Seguiram juntos, conversando, em direção a um lugar atrás do estábulo onde ficavam os cavalos selvagens que iam ser domados. Era muito cedo, mas já estava quente, e o céu, azul e sem nuvens. Os pássaros caíam aos bandos dos galhos das árvores. Cacatuas negras, com lindas penas vermelhas, gritavam curiosas. Bem no alto, pairavam as águias e os gaviões.

Dan, olhando para cima, tropeçou, e Genny riu também, abrindo os braços para toda a beleza que o cercava.

— É estonteante, não é?— É a reação de todo mundo — sorriu Genny. — Esta região é famosa pela

quantidade de aves. O Channel County é um dos maiores sítios de acasalamento, principalmente para aves aquáticas, nômades, que aparecem da noite para o dia. As colônias de pelicanos são as únicas que é preciso procurar. Aninham-se em charcos remotos, mas saem quando eles começam a secar. Há grandes bandos de íbis nos charcos, assim como colhereiros, garças e patos. São selvagens e muito espertos. Todos os passarinhos, tentilhões, carriças, são tão prolíficos que nem mesmo as águias e os gaviões conseguem acabar com eles. Se quiser chegar até o rio, posso lhe mostrar os coolibahs, cobertos de plumas, parecendo enormes flores brancas. Nem sei como conseguem encontrar lugar em galhos, pois são tantos! Se você bate palmas e os assusta, saem todos voando, deixando a árvore vazia outra vez. E temos também os papagaios. Adoramos nossas aves e as protegemos, mas tem

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gente que as rouba para vender no exterior. É ilegal, é claro, prender nossos lindos papagaios, mas os negociantes de aves fazem um bom dinheiro, pois há uma demanda constante de aves engaioladas. O golden shoulder da península de Cape York alcança três mil dólares, na Europa. Apesar das leis de proteção, os contrabandistas continuam agindo do mesmo jeito. Eles drogam as aves e saem com elas de uma maneira ou de outra. Alguns são presos, aparecem outros. E o que está em jogo é simplesmente uma ameaça à sobrevivência de uma ave de grande beleza. Gostaria de ver alguém tentando pegar nossos pássaros, Ingo lhes arrancaria a pele.

— Claro que sim! — disse Dan, rindo. — Vocês têm aqui quase um santuário.

— Quase, não. É um santuário! — disse Genny. Aquela paisagem fazia seu sangue esquentar. “Uma vista tão maravilhosa que pode dar sentido à vida de um homem, ou então esmagá-lo”, dissera Ingo uma vez.

Genny sabia também que era uma terra de extremos. Passada a estação das chuvas, a seca podia deixar as planícies ressecadas e cobertas de ossos brancos de gado morto, e tapetes infinitos de flores selvagens que brotavam milagrosamente do chão vermelho e rachado.

Mas, quaisquer que fossem as desvantagens, as tragédias da enchente e da seca e as desgraças pessoais, era algo promissor, para homens como Ingo, descendentes das grandes famílias pioneiras, que conquistaram aquela terra, adquirindo força dela. As mulheres que nasciam lá tinham a mesma ligação com a terra que os homens, apesar de, como em toda parte, desempenharem papéis secundários. Mas a maior parte das mulheres criadas na cidade, e que se casavam com esses fazendeiros, não se acostumavam com o isolamento e tinham medo de doenças e de acidentes, principalmente porque podia demorar horas conseguir cuidados médicos. É verdade que as coisas estavam melhorando. Agora havia o serviço do “Doutor Voador”, feito por pequenos aviões, e o amplo serviço de rádio que unia as extensas regiões. Além disso, todas as grandes propriedades tinham aviões para uso pessoal e pilotos particulares. A distância foi sendo conquistada pouco a pouco. Voar para algum lugar era o mesmo que tomar um ônibus ou trem, naquele lado. Dan se interessava por quase tudo, e sua voz cantada e seu bom-humor soavam agradavelmente aos ouvidos de Genny. Os empregados, em seus vários serviços, os cumprimentavam com calor. Dan respondia no mesmo tom. Como todos os homens, ele usava jeans, uma camisa xadrez e botas de cano alto, e a única diferença era a cor de marfim, imaculada, de seu chapéu de abas largas. Depois de uns quinze minutos, aliás, seu chapéu ficaria bem parecido com os outros, sujo de poeira e puxado para a testa, para proteger mais o rosto.

Genny estava vestida para montar, de jeans e com uma camisa azul, de algodão, um lencinho vermelho no pescoço e um cinto de couro largo na cintura fina. Seus olhos escuros brilhavam, cheios de vitalidade, e uma cor saudável iluminava sua pele de pêssego. Dan a achava linda fácil de se conviver e totalmente feminina. Gostaria de ver Felicity assim.

— Onde está Felicity, hoje? — perguntou, a propósito. Genny sorriu, já esperando a pergunta.

— Flick sempre dorme até tarde e, de todo jeito, você nunca a encontraria por aqui, um lugar com todo esse pó e atividade.

Dan estudou-a de perto, por um momento.— Você não se parece muito com sua mãe.— Pois é — disse Genny, rindo.— Nunca vi duas mulheres tão bonitas.

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— Nem de longe, Dan? — caçoou ela.— Talvez no cinema. Vou lhe dizer uma coisa: Felicity parece uma menina.— Parece mesmo.— Espero não tê-la chateado, na noite passada. Falei, falei, falei, sobre

tudo, todas as coisas do mundo.— Felicity sabe escutar — concordou Genny.— Exatamente. Uma mulher muito compreensiva e linda. Engraçado,

fiquei solteiro tanto tempo que geralmente me fecho, na companhia de mulheres, mas não me senti tímido nem por um instante, com sua mãe. Só Deus sabe por quê. Ela é tão linda que deixa um homem até mudo.

— Tenho certeza de que não precisa se preocupar quanto a prender a atenção de uma mulher, Dan. Você é um homem muito interessante.

— Falo pelos cotovelos, quando tenho companhia. É quando estou sozinho com alguém que a coisa muda. É o mal de ter ficado solteiro. Minha mãe morreu com oitenta e oito anos. Era minha estrela-guia.

— Morava com você, Dan?— Morava, e tinha uma das melhores cabeças que já conheci. Você teria

gostado dela. De vez em quando me fuzilava com os olhos e dizia: “Por que não volta para casa com uma noiva?” Eu era o único de seus filhos que não tinha mulher e filhos, e ela não gostava disso. Passei a vida inteira construindo aquela fazenda. Acho que agora está na hora de pensar no assunto. Não é justo, agora que ela já se foi, mas…

— Cabeça fresca, Dan! Calma! — avisou Genny. — O casamento não é aquela maravilha que anunciam!

— E como sabe mocinha?— Observação! Olho vivo! — disse Genny, percebendo, pela expressão do

rosto de Dan, que ele tinha falado tudo isso a Felicity na noite anterior. O método infalível de minha adorável mãe pensou deixar que o homem fale primeiro e só muito depois dar alguma informação sobre ela, como, por exemplo, seus três casamentos anteriores. Seria uma pena atrapalhar os planos de Dan, mas Felicity era irresponsável como uma criança. O amor estava sempre ali na esquina, para ela, e Dan tinha o direito de ser avisado.

— Ora, vamos!— Dan chegou mais perto, intrigado. — Você, sendo filha única, só deve ter conhecido uma vida feliz, em casa.

— Não é tão lógico assim, Dan. Acho que muitos filhos únicos têm problemas. E o pior, Dan, é que Flick não lhe contou muita coisa.

— Uma mulher como Felicity não teria nada para esconder! — protestou ele.

— Não, só uma ou duas coisinhas!— Tais como? — perguntou Dan, sorrindo.— Flick casou-se três vezes. Dan fez uma cara de total espanto.— É, três vezes — disse Genny, calmamente.— E o que aconteceu a todos eles? — perguntou Dan, finalmente.— Flick divorciou-se de dois. O primeiro divórcio foi de meu pai, e o último

marido morreu. Talvez ela tivesse ficado com Hughie para sempre, mas foi o que aconteceu. Está muito surpreso?

— Sim e não — admitiu ele.— Vai fazer diferença, Dan? — perguntou Genny.— Sei que acha Flick muito atraente, e ela própria lhe contaria isto tudo, é

claro.— Um casamento seria o suficiente para mim — disse Dan, assustado.

Desculpe-me, não quis ofender ninguém.

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— E ninguém se ofendeu, Dan. Talvez ache que eu não tinha nada que lhe contar?

— Não, não, eu queria saber. Felicity não disse uma palavra.— Bem, acabou de encontrá-la, Dan. Fui impulsiva, reconheço, mas eu

acho que você pode influenciar a vida de Flick, e eu a amo muito.— E de que foi que Hughie morreu? — perguntou Dan, quase falando

consigo mesmo.— O coração. Teve um enfarte fulminante. Flick ficou arrasada chegou a

adoecer. Ficamos preocupados. Ingo insistiu para que ela viesse para cá se tratar. Sempre tomou conta de mamãe.

— É um homem muito generoso — disse Dan, vagamente.— Você parece desapontado, Dan… Chocado.— Não, veja bem, Genny, Gosto de tudo em sua mãe, menos do fato de

ela ter tido três maridos. Ela, na realidade, me deu vontade de começar uma família. Gosto de sinceridade e…

— Dan — disse Genny com firmeza. — Flick lhe teria dito tudo sobre ela, mas você e eu nos entendemos e queria prepará-lo. Flick é especial, mas precisa que tomem conta dela e tenho feito isso já há algum tempo. Os acontecimentos da vida dela são a minha vida. Não quero que a magoe nem que seja magoada. Se for possível manter segredo, ninguém sairá ferido. Flick pode ser muito insinuante.

— Como uma feiticeira — disse Dan. — Aqueles inocentes olhos azuis!— São inocentes mesmo — confirmou Genny.— Talvez ela nunca tenha encontrado o homem certo — disse ele,

pensativo.— Teve mais oportunidades do que a maioria das pessoas. O flerte é um

estilo de vida, para Flick. Acho que seria uma daquelas belles de seu Sul. É frágil e terna, e só quis ser feliz na vida.

— É, ela é realmente preciosa! — disse Dan. — Não tem estabilidade e equilíbrio, e isso só o homem certo pode dar.

— Se é o que acha Dan — disse Genny, cansada, percebendo que a expressão no rosto de Dan desafiava o bom senso. Bem, tinha feito sua parte. Flick não lhe teria dito nada até que ele estivesse bem fisgado, e Ingo não teria interferido de modo nenhum. Flick tinha feito outra conquista e estava escrito no rosto sonhador de Dan. O tempo não era nada, em relação à atração. Talvez Dan fosse o começo de alguma coisa importante ou talvez sumisse no esquecimento. Genny estava convencida de que Dan já estava inscrito nas páginas do diário de Flick.

Atrás do estábulo, Billy Swan, o domador de cavalos, comandava seus nervosos animais. Eles corriam em largos círculos à volta do terreno, levantando grandes nuvens de pó vermelho, relinchando alto, com medo e raiva, as crinas e rabos ao vento, sacudidos pelos movimentos bruscos. Genny foi até a cerca, subiu nela e segurou-se, com as botas entre as tábuas.

— Tem certeza de que está segura aí, meu bem? — perguntou Dan.— Estou, até que Ingo chegue — respondeu ela.— Onde está ele? — perguntou Dan, juntando-se a ela.— Não tenho idéia, Ingo se levanta com os passarinhos.— Eu também, lá em casa. Olhe só aquele ali! Parece mau.— Parece mesmo! — Genny olhou para um grande cavalo selvagem,

preto, com uma perna branca, girando furioso, pronto a sair da manada e avançar sobre Billy. Billy enfrentou sua carga dinâmica com muita calma, dando um passo de lado com a graça natural de um dançarino, preparando-se

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para passar o laço no pescoço dele.A corda caiu com precisão e o cavalo empinou e saracoteou, continuando

depois sua louca corrida pelo lugar, e o esguio Billy segurou a corda que escorregava em metros por sua mão enluvada. Tinham capturado uma manada inteira, e separaram o líder para domá-lo primeiro. O resto deles foi levado para o outro pátio, relinchando seu desafio e incitando o líder a resistir.

— É meio triste, não é? — disse Dan.— Billy não é cruel. Ele realmente ama esses cavalos. Esse mesmo

garanhão vai se transformar num bom cavalo, forte e seguro. — Genny deu de ombros. — Acho que não é natural tentar quebrar o espírito orgulhoso deles. Não admira que pareça tão furioso.

— Vai ficar cansado logo. Como uma criança quando entra na escola.Enquanto Billy trabalhava, alguns vaqueiros subiram na cerca para dizer a

ele:— Atenção! Cuidado!Depois de um minuto mais ou menos, Genny e Dan começaram a dar

conselhos também. A força de um cavalo é uma coisa amedrontadora. Um coice daqueles cascos voadores mataria Billy, mas ele chegava mais perto e mais perto do animal aterrorizado, esticando o braço e acariciando seu pescoço suado. Um fio fluente de palavras carinhosas, a mais incrível mistura de inglês, dialeto e pragas faziam um cantochão suave. Do outro lado, o assistente de Billy, Lofty, um sujeito alto e magro, movia-se silenciosamente, como uma sombra, chegando com o bridão, que, quase como num milagre, encaixou-se na cabeça do garanhão e na sua boca.

— O primeiro passo! — disse Dan, calmo. — Provavelmente, vai mastigá-lo como um bebê faz com sua chupeta.

De fato, em vez de empinar-se como um doido, ou tentar cuspir o estranho objeto, o garanhão o aceitou e começou a mastigar ritmicamente, explorando a sensação nova e não de todo desagradável. Billy continuou acariciando seu pescoço e dizendo palavras doces, enquanto Lofty, sorrateiramente, começou a arrumar as correntes, deixando o animal quase impotente. Mais um minuto e o garanhão tentou mover as pernas, aparentemente sem suspeita do que havia acontecido. Armou-se a confusão.

Genny tirou seu lenço de seda e amarrou-o no nariz e na boca, como um pequeno bandido. A poeira se levantou, quando o garanhão tentou empinar e escoicear, as correntes batendo, os olhos selvagens e protuberantes. Babava e tropeçava na violência de sua impotência. Os companheiros, do outro lado da cerca, relinchavam e bufavam, acompanhando o sofrimento do outro.

— Que cavalo forte! — disse Dan.— Espero que ele sossegue logo — respondeu Genny. — O coração dele

deve estar a pique de estourar.Billy esperava justamente esse momento, recostado na cerca, fumando

seu cachimbo. Quando o cavalo ficou exausto, ele se aproximou do animal cheio de baba e bateu a mão nele com carinho, dando-lhe parabéns; depois tirou a parafernália e deu-lhe um empurrão no traseiro, fazendo-o atravessar o portão aberto por Lofty.

— Para ele, chega por hoje! Mande entrar o próximo!Dan, na cerca, segurava-se, a fim de não se oferecer para domar um

deles. Apesar de lidar com cavalos durante a vida inteira e poder cavalgar como um vaqueiro, nunca tinha domado um cavalo bravo. Teve uma idéia.

— Pergunte a Billy se tem mais um — pediu, de repente, a Genny.— Mais um o quê? — perguntou ela.

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— Um cavalo bravo. Estou louco para montar um.— Cuidado, chefe! — avisou Billy, lacônico, com seus ouvidos que

escutavam uma folha cair.— Você é bom — Dan disse —, mas eu não sou tão ruim como pensa.— Vamos, Billy o que está esperando? — gritou Lofty, olhando da cerca

com certa simpatia por Dan. Todos eles adoravam se expor àquele perigo, de modo que o capricho de Dan não parecia nada absurdo. Billy hesitou assim mesmo, pensando no que diria o patrão. Talvez não se importasse. Se o texano queria algumas emoções, por que não? Tinha que ser um bom cavaleiro, vindo daquela parte do mundo. É claro que era um pouco velho para levar um tombo, mas ninguém podia chamar o homem de velho, quando queria experimentar alguma coisa. Billy correu os olhos pelos cavalos, procurando a égua malhada. Parecia mansa, mas era a mais brava.

— Não faça bobagem, Dan! — aconselhou Genny.— Qual é que vai me dar, Billy? — perguntou Dan, sem escutá-la.— Só uma coisinha manchada! Nem mesmo eu tentaria montá-la, patrão!— Já tentaram pôr uma sela nela? — perguntou Dan.— Claro, mas os cavaleiros caem todos. Lofty caiu ontem. É louca como

toda fêmea. Não é melhor esperarmos pelo patrão?— Ora, Ingo não ligaria a mínima! — exclamou Dan, dando um tapa na

coxa, satisfeito. — Disse para eu me sentir em casa na fazenda e eu quero montar!

— Viva! — gritaram os homens, contentes.— Ponham a malhada aqui.Dan olhou para Genny, lá na cerca, que pensava em qual seria o resultado

daquilo tudo. Estava fora de seu controle. Não podia dizer a ele para parar, os homens não aceitavam a intervenção feminina em sua sabedoria superior. Além disso, ela não queria ofendê-lo. Já tinha falado muito, de manhã. Um homem como Dan, provavelmente criado sobre uma sela, não precisava de supervisão. Lofty vinha trazendo a égua encilhada, com um saco sobre a cabeça. Ela andava devagar, quase tranqüila.

— A última cavalgada de Lassiter! — gritou um dos rapazes, morrendo de rir.

Dan virou-se e sacudiu o punho fechado para ele, sem saber quem era Lassiter, mas imaginando seu trágico fim.

— Não há esperança pra ele! — avisou Lofty, enquanto Dan subia na sela, num só movimento de cavaleiro experiente.

— Força, vaqueiro! — gritavam todos, em coro, surpresos ao verem Dan ainda sobre a montaria.

A égua estava quieta, carregando o enorme Dan, como se posasse para uma foto. Dan parecia colado sobre ela, quadris e ombros duros. Genny sentiu uma onda de calor no rosto. Os homens não tinham juízo. Por que Dan queria arriscar a vida, bem agora, quando pensava em se casar? Começou a mexer os lábios, sem som. A malhada era uma patife e incrivelmente esperta. A metade dos empregados largara tudo para vir observar a cena, mas ela parecia não querer exibir-se para a platéia. Dan deu-lhe uma cutucada e ela levantou as orelhas, a única indicação de que estava se divertindo. Dan começou a suspeitar de um trote, de uma brincadeira, e esporeou com mais força. A égua saiu como uma mula, com o rabo entre as pernas traseiras, corcoveando de verdade e voando para o lado oposto à cerca.

De repente, um par de braços tirou Genny da cerca com uma espécie de fúria gelada, segurando-a com firmeza. Os olhos prateados de Ingo estavam

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fixos no meio daquele picadeiro. Dan tinha certeza, seria jogado no chão, apesar de ser rijo como couro velho e muito experiente, antecipando cada jogada do animal. A poeira rodopiava, sujando a cara dos vaqueiros, já um pouco aflitos, agora que tinham visto o chefe. Pela primeira vez lhes ocorria que, apesar de o grande texano ser bom, não era jovem como Billy e estava se cansando. Aqueles repelões poderosos em seus braços e na coluna teriam quebrado qualquer homem. A briga estava no meio e a égua ainda conservava quase toda a sua energia.

Genny sentia a raiva silenciosa de Ingo. A malhada, sentindo que o cavaleiro enfraquecia, começou a pular de tal jeito que lançou Dan com toda a força na poeira vermelha. Caiu de lado, com um barulho seco, e ficou lá.

— Pegue aquela égua infernal! — gritou Ingo, numa voz que trouxe até o resto dos homens para a cerca.

Genny, aterrorizada, com medo de que Dan fosse pisoteado, conseguiu escapar de sua prisão, correu para a cerca, subiu e pulou para o outro lado, ignorando o grito de Ingo que levou todos à ação, acenando e empurrando a égua, com gritos e berros, para um canto, onde Billy a montou, desviando-a para outro cercado.

Quanto a Dan, isso foi o insulto final. Ficou lá, gemendo, esfregando a clavícula, com o orgulho e o ombro fraturados. O rosto ansioso de Genny oscilou diante de seus olhos, fora de foco, e ele tentou sorrir para ela.

— Onde é que dói? — Ela lhe tocou o rosto arranhado, gentilmente. — Foi maravilhoso, Dan!

Pela segunda vez, Ingo carregou-a, tirando-a de cima de Dan e passando as mãos experientes sobre os membros machucados do outro.

— Nada quebrado! — anunciou nervoso. — Nada de importante, pelo menos. Só sua clavícula.

— Agora veja rapaz, ninguém me forçou — disse Dan.— Eu sei. Pode se levantar?— Claro. Só um momento, estou meio tonto. Viu aquele desgraçado do

Billy sair montado naquela égua danada?— Ela já estava exausta — respondeu Ingo.— Não sou mais o homem que era! — exclamou Dan, desgostoso. — Não

vou ter cara para enfrentar ninguém.— Prometemos não contar — disse Ingo. — Podia ter quebrado o pescoço.

Teve sorte!— Aquela malhada estava possessa! — Dan olhou de Ingo para Genny. —

Não está com pena de mim, está, Genny?— Vai ter pena dela própria antes de chegar em casa! — respondeu Ingo,

secamente.— Já estou me sentindo bem! Ajude-me aqui.— Com prazer.— Lá vou eu! — disse Dan, pálido.— Como está, Dan? — perguntou Genny, aflita. Ingo virou-se para ela, o

olhar gelado.— Traga o jipe até aqui e botamos Dan lá dentro. As chaves estão nele.

Vamos, depressa! É muito boa para correr até o perigo, mas, na hora de ajudar, nem se mexe.

— Já vou! Já vou!— Não faça isso com ela — disse Dan, observando Ingo. — Parece que vai

bater nela com uma vara de marmelo, e é tão bonitinha! É boa também!Ingo não respondeu. Com o sol batendo no rosto de Dan percebeu que

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sofria muito. Lofty veio chegando com o chapéu dele.— É bom vê-lo em pé de novo. Que osso é esse, para fora? — perguntou.— É a clavícula dele — explicou Ingo, com uma voz de gelar qualquer um.

— Se não tem perguntas melhores, por que não volta para o trabalho?— Já vou indo, patrão — respondeu Lofty.Acabada a aventura a cavalo, todo mundo se dispersou com incrível

rapidez. Genny trouxe o jipe até os paddocks e abriu a porta para Dan se ajeitar no lugar, com um pouco de ajuda.

— Há trinta anos que não me acontece um acidente! — gemeu ele.— Vai se sentir melhor depois de tomar um trago — Genny lhe disse,

subindo no banco de trás sem que a mandassem. Ingo estava furioso com ela, mas, na verdade, não tinha corrido perigo. Lofty e alguns dos rapazes já estavam pegando a égua malhada, quando ela havia pulado para dentro da cerca. Tinha agido num impulso. Agora, só de olhar para a cara de Ingo, sabia que ia levar a maior bronca. Dan virou-se para ela, fazendo uma careta.

— Não se preocupe! — sussurrou cúmplice.Ela sorriu para ele cruzou com os olhos de Ingo no espelho retrovisor,

muito calmos e decididos. Uma brisa fresca começou a soprar, arrepiando seu cabelo e a gola da blusa. O lenço vermelho caiu sobre o decote e ela o arrumou, dando um nozinho chique, no pescoço.

— Muito bem, Ingo — disse displicente —, pode começar a fazer o sermão.— Vou fazer isso num lugar em que ninguém a escute gritar.— Você não vai dizer que foi culpa de Genny! — exclamou Dan, surpreso e

pronto para defender a moça.— Absolutamente! — disse Ingo, suavemente. — O que você não viu Dan,

deitado lá no chão, foi Genny soltar-se de mim e entrar no picadeiro antes que a malhada estivesse sob controle. São momentos como esses que matam um homem do coração. Tenho muitas cicatrizes, a maioria por causa de Genny. Ela tem um amor pela imprudência que eu só aprecio de vez em quando!

— Sou impulsiva, talvez, mas nunca quis ser imprudente.— De qualquer modo, fico irritado.— Fica com ódio, é o que quer dizer!— Também!Genny deu de ombros.— Flick vai ficar preocupada — comentou com Dan.— Por minha causa? — perguntou Dan, todo feliz.— Espere e veja.— Se vai preocupá-la, não devemos contar a ela! — atalhou Dan.— Temos que contar. Ainda não se viu no espelho.— Não estou desfigurado, estou?— Não, parece um herói de guerra. Sua clavícula está aparecendo e um

lado de seu rosto está cortado. Lindo de morrer!— Quando chegarmos — disse Ingo, interrompendo Genny — vou chamar

um médico pelo rádio. Não vai precisar de raios X, mas ele pode vê-lo e engessá-lo.

— Que coisa desagradável para você! — desculpou-se Dan. Ingo deu um dos raros sorrisos.

— Acho que estamos ambos acostumados a toda espécie de acidente. Só sinto ter acontecido aqui e estragado sua visita. De nosso ponto de vista, ficamos até contentes com sua companhia. Com esse tombo, vamos ter a oportunidade de aproveitá-lo mais um pouco! Dan ficou vermelho até as orelhas, morto de prazer.

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— Você não está sendo muito diplomata?— Não, ele está falando a verdade — disse Genny, com firmeza.— Obrigado, Giannina — disse Ingo. — Assim não me repito. Sei que Flick

achou suas histórias sobre o Texas muito emocionantes e românticas.— Mas são românticas, mesmo! — disse Dan, arrastando as palavras em

seu sotaque sulino, orgulhoso.Os olhos de Genny brilhavam.— Gostaria de conhecer o Texas, um dia, Dan. Tudo o que sei vi no

cinema; os conquistadores espanhóis, John Wayne e os índios; as missões espanholas, as grandes fazendas e os poços de petróleo; o deserto e as montanhas, a fronteira do México e o golfo da Luisiana. Ingo trouxe umas bolsas daquela loja de Dallas… esqueci o nome… E Austin, Houston, El Paso, San Antonio, Glen Campbell e Galveston!

— Ele está esperando por você, lá! — prometeu Dan. Eu lhe mostrarei tudo o que há no Texas. Não há um melhor lugar na terra do que a fazenda de Lone Star, a não ser Tandarro!

— Você está certo! — Genny inclinou-se, sorridente. — As pessoas geralmente gostam mais do lugar onde nasceram.

— Eu me sentiria uma espécie de traidor, se não fosse assim — disse Dan, e passou a mão no queixo, desconfiado. — Será que meus dentes não estão todos aqui?

— Um dente a mais ou a menos não faz diferença — brincou Genny.— Os dentes são tudo, Genny. Preferia quebrar uma perna a perder um

dente. São muito importantes. Tenho todos os meus.— Conte para ver se não está faltando nenhum — sugeriu ela.— Que pestinha que você é, Giannina! — disse Ingo. — O velho Dan já tem

muitos problemas e não precisa de suas gracinhas.— Não ligo a mínima! — Dan gemeu de dor. — Até gosto. Só não quero

incomodar Felicity. Ela é uma coisa frágil e delicada.Pronto, ele realmente já estava apaixonado. Flick continuava a mesma

mulher sedutora de sempre. Quem diria que seria capaz de seduzir até um fazendeiro um tanto caipira? Ele tinha sido fisgado, engolira o anzol, a linha e a vara, coisa estranha no caso de um homem tão tímido com mulheres.

Quando chegaram à sede, Flick apareceu com o lindo rostinho preocupado, os olhos não vendo nada, a não ser o homem machucado. Levou-o até uma poltrona e mimou-o de tal jeito que não era preciso mais ninguém! Ingo ficou por ali uns instantes, olhando o gracioso borboletear de Felicity e a reação comovida de Dan, com a cara divertida e cínica, como se já conhecesse aquela cena há anos. Na verdade, maravilhava-se sempre com a capacidade da prima de se relacionar com as pessoas. Seus sentimentos podiam ser superficiais, mas a enchiam de prazer, vivendo sempre os sonhos secretos de outras mulheres. Seria até engraçado, se não afetasse a vida de Genny. Só por isso não tinha vontade de rir.

— Se não há nada mais que eu possa fazer — disse ele — Vou voltar ao serviço. Spook e os rapazes vão levar uma manada até outra fazenda. Flick, se precisarem de mim, é só avisar. Genny já deve ter falado com o Doutor Voador.

— Não se preocupe querido! Eu tomo conta dele! — prometeu Felicity, com uma voz eficiente, calma, tranqüilizadora. — Se você não fosse um homenzarrão tão forte. Dan, eu estaria muito preocupada. Acabou de chegar e acontece essa coisa horrível! Tome mais um golinho de conhaque!

Genny veio rápida pelo corredor, sem ar, e parou subitamente, dando com as costas de Ingo. Segurou-o pelo braço.

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— E então, Giannina?— Vem o Dr. Murray! Vai gostar dele, Dan. É um ótimo médico e o homem

mais engraçado que conheço. Vai caçoar de você, mas vai curá-lo.— Genny, querida! Chega! — disse Felicity, firme, como se Dan tivesse

sofrido um ferimento fatal e não pudesse ser contrariado.— Está bem, Flick, se não precisa de mim, vou com Ingo para chateá-lo

mais um pouco.— Você está bem, querida? Está se comportando tão estranhamente!— Posso falar com você um pouco, Ingo? — perguntou Genny, ignorando o

comentário da mãe.— Só um pouco.— Nada mais do que isso?— Nada mais, se eu quiser acabar meu trabalho. Vamos, Giannina, seu

monstrinho!— Não vai se sentir sozinho, Dan? — perguntou Genny.— Faça-me um favor, Ingo! Leve-a embora! — implorou Felicity.— Se é tão necessário, eu levo. Ela só se salva por causa desse jeitinho

mimoso. Não se importa de ficar com Flick, não é, Dan? Até que o médico chegue?

Felicity olhou-o, pasmada com esse ataque frontal.— O que aconteceu com vocês dois? Francamente, às vezes parecem

farinha do mesmo saco!Dan levantou o copo vazio numa saudação.— Obrigado por tudo, Ingo e Genny! Não estou acostumado a ter uma

mulher me paparicando. Ultimamente pelo menos, depois que mamãe morreu. Felicity faz com que eu me lembre, de alguma maneira.

— Está escutando, Flick? — perguntou Ingo. — É uma declaração!— Estou e fico muito feliz.— Bom, é melhor eu começar a trabalhar. Logo veremos o avião

chegando. Convide o doutor para almoçar, Flick, se ele tiver tempo. Peça a Maggie para fazer alguma coisa gostosa. Trago Genny comigo a uma e meia, está bem?

— Ótimo! — respondeu Felicity.Dan, para um homem com dores, estava até radiante. — Meu Deus, Dan

está perdido! — disse Genny, quando já estavam lá fora.— Só posso invejar o futuro róseo dele! — comentou Ingo.— O que está querendo dizer com isso?— Ora, vamos, menina. Flick vai fazer as mesmas palhaçadas com ele que

fez com os outros. O que dirá, quando souber sobre Cario, Stewart e Hughie, sem comentar o resto da fila?

— Já lhe contei tudo — disse Genny, com simplicidade.— O quê? — Pegou seu braço com tanta força que quase a levantou no ar.— Escutou. Isso mesmo que eu falei.— Bom trabalho, anjo! E por que fez uma coisa dessas?— Você conhece Flick. É muito envergonhada para contar seu passado.— Eu conheço Flick! — reforçou ele. — O cérebro dela está novinho, de tão

pouco que o usa.— Você está me magoando, Ingo. Pensei que gostasse de Flick —

protestou ela.— E gosto! Quero ignorar é sua vida amorosa! Dan é meu hóspede e

também um bom cliente. Não quero perdê-lo.— Talvez até ganhe um primo. O que quer dizer um a mais, hoje em dia?

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Elizabeth Taylor já se casou seis vezes.— Não acredito que Flick queria quebrar seu recorde! — Ingo largou-a de

repente, esticando o braço e arrumando alguns cabelos soltos.— Flick é uma mulher adulta. Se quer casar com Dan e morar no Texas,

quem pode impedir?— Você não vai casar também?— Com os diabos! Eu não! Ele levantou uma sobrancelha.— Por que tanto medo? E Dave? Não pode ficar daqui para lá com Flick.

Não vou permitir.— Acho que vai ter que me compartilhar com Dave por umas duas

semanas.— Não sou tão generoso! — Puxou-a para si. — O que é meu é meu para

sempre.— Só Deus sabe por que você acha que sou propriedade sua!— Não esperei todos esses anos à toa. — Puxou-a para mais perto ainda.

Era incrível como ele conseguia aumentar sua emoção, e ela respirou fundo, acesa por uma onda quente de desejo, querendo estar a sós com ele, sem precisar negar nada.

— Você construiu um abrigo muito frágil. Não conte muito com ele. Vamos, Giannina, não podemos ficar aqui o tempo todo. Não posso tomar conta de você e da fazenda, ao mesmo tempo.

— Você vive me dando bronca! — disse ela, desesperada.— Não vai ser por muito tempo. Está se tomando uma mulher, diante de

meus olhos assombrados. Só Deus sabe que já esperei, e bastante, para que isso acontecesse.

Decididamente, passou o braço pelos ombros dela e foram indo para o jipe.

— Você acha que sou bonita, Ingo? Acha? — Linda!— Obrigada. — Um de nós tem que ser amável. Eu estou tentando. Ele a levantou como

a um peso-pena para dentro do jipe e deu um beijo na boca entreaberta. — Não se esforce demais!

— Por que não? — perguntou ela, tocando com a ponta dos dedos na boca em fogo.

— Não seja tão ingênua, garota. Posso estar perdidamente apaixonado por você.

— E está?— Meu Deus, que pergunta!— Vejo que a resposta é não!— Você poderia partir um homem em pedaços, se quisesse!— E isso não vai acontecer com você?— Minha vida está em Tandarro. O que é meu é meu e nunca fugirá de

mim.— Isso é um aviso? — Encarou-o, o rosto pegando fogo.— Um aviso que você não pode ignorar.— Por que me beijou, Ingo?— Foi uma noite especial.— Por que não conversa comigo? Você nunca me diz nada. Não sei

absolutamente nada sobre você.— Agora quer que eu fique falando sobre mim! Giannina, querida, você

não existe!

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— Estou só tentando ser agradável.— Pois está partindo meu coração! — caçoou ele.— Duvido que tenha um.— E de verdade. Quem pegava você no colo, quando estava chorando?

Não era Flick.— Você gostava de mim. Eu me transformei tanto assim?— Mudou muito.— O que me deixa sem nada a dizer — concluiu Genny.— É uma promessa? Não vai falar mais?— Dê partida no jipe, Ingo. Se eu ficar aqui mais tempo, vou pegar fogo.— Onde está seu chapéu?— Não quero nem saber.— Menina, você tem a pele mais bonita do mundo. Vai querer que vire um

couro duro?—E você se importa muito! — disse malcriada.— Me importo, sim. — Ele se inclinou para trás, no jipe, ao ver que Genny

não se mexia; pegou o chapéu de gaúcho e enfiou-o em sua cabeça.— E agora? — disse ela, agressiva, cara a cara.— Bem, a vontade que eu tenho é fugir para um lugar onde ninguém nos

encontre, mas não vou fazer isso!— Bom para você, porque eu não o seguiria.— É o que diz! Por que não pode se comportar como uma mulher?— Você não precisa de mulher. Tandarro é sua vida.— Não quer compartilhar isso? Ou quer ser sustentada a vida inteira?— Você não nos sustenta, não é, Ingo? Ou sustenta?— Por que isso preocupa você?— Sabe perfeitamente que posso arranjar um emprego, se precisar.— Não, não sustento. Flick tem o dinheiro dela e de vez em quando eu lhe

mando alguma coisa. Todo mundo sabe disso e não é da sua conta. Flick, apesar de tudo, é uma de minhas grandes favoritas.

— Eu me importaria muito! — exclamou Genny.— Que idéia mais patética, essa de ir trabalhar…— Mas eu podia muito bem…— Já ouvi. Mas, sabendo que é uma moça tão inteligente, vou insistir para

que acabe seus estudos. A mulher de um médico precisa ser culta. Aliás, por falar em seu querido noivo, já pensou em alguma coisa para diverti-lo?

— Nada em particular. A casa vai estar cheia com Trish, as crianças, Sally e agora Dan, que parece estar adorando a idéia de ficar, apesar das circunstâncias.

— É uma casa cheia, realmente. Assim que é bom. Até Evelyn perguntou se podia convidar a velha lady Maxwell.

— Com ela, vai ficar cheia demais! — disse Genny, surpresa.— Pode ser que ela não venha. Mas Evelyn pediu minha permissão, coisa

que você não fez.Genny teve uma idéia que fez seus olhos brilharem:— Que tal dar um baile de gala e convidar todo mundo? Podíamos abrir o

salão. É tão lindo e não é usado nunca!…— Por minha culpa. Meu modo de vida não dá oportunidades para dançar.

Nem sei por que foi construído. Deve ter havido algum tipo de loucura na família!

— Havido? Acho que há, ainda. Ingo riu.— Verdade! Com certeza, Flick vai querer anunciar seu noivado. Se eu

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achasse isso, começaria a chorar aqui e agora.— É melhor não começar. Posso ter que parar e consolar você.— Nada me faria cair em seus braços outra vez!— Aposto que um dia cai. — O sorriso dele deixou-a louca.— Sorria para mim desse jeito — disse ela, devagar — e me apaixono por

você.— Nada me surpreenderia em você. Sabe acender suas próprias fogueiras.— O que não é nada seguro!— Você está é se divertindo, brincando comigo.— Estou à procura de mim mesma.— Eu sei.— Você me conhece demais, para seu gosto.— Talvez já conheça Genny, a menina. Tenho que alcançar Giannina, a

mulher. — Ele lhe segurou o queixo e levantou a cabeça dela por instantes. É muito temperamental, tenho que admitir. Mas, em compensação, é linda de morrer!

— Sou?— Vamos mudar de assunto, por favor! — gemeu Ingo, que começava a

ficar excitado e inquieto.— Prefiro não mudar! — protestou ela.Ele a olhou sério, desviou o jipe da estrada e parou debaixo de uma árvore

copada. Desligou a chave e se virou para ela.— Não me use, não brinque comigo! — gritou ela, febril, sensível à força

amedrontadora dele. — Só porque Sally não está por aqui.— Quem é Sally?Ela fechou as mãos, socou-o no peito.— Ah, Ingo, você dá medo!Ele a largou, de repente, e a decisão perigosa desapareceu de seu rosto.— Entendo o que diz — falou, em voz baixa e calma. — Sossegue anjo, não

está em perigo. Esse alarme em seus olhos é cem por cento genuíno. Até me confunde.

Trêmula, ela escorregou para seu lugar outra vez, tombando o rosto sobre o ombro dele.

— Eu nunca pensei que, depois de todos esses anos… É impossível! Não entendo nada do que está acontecendo!

— Você me ama e nós dois sabemos disso! Ela virou a cabeça para trás, encarando-o.

— Não, eu não sei.— O que é que sente?— Só uma grande reação. Você me faz ficar viva. Muito viva. Fico sem ar,

como se estivesse acontecendo um desastre. Nada é a mesma coisa. Mas eu sou quase uma criança, como sempre fui. Você está na minha frente, muito seguro de si, pronto para tudo. Pode ser um brinquedo novo para você. Treinou anos e anos para conseguir um controle de ferro e não precisa de ninguém!

— Não fale uma coisa destas! — disse ele, zangado.— Será possível que eu tenha conseguido magoá-lo? Ele pegou de novo

seu rosto, virando-o para ele.— Acha que eu deixaria menina bobinha? Diga-me uma coisa, como é que

seu Dave a beija?— Mais ou menos assim — murmurou ela, beijando-o de leve no canto da

boca. — Agradável. Um calor gostoso sabe como é. Mas com você, não, tem que ser tudo exagerado. É como lutar para sobreviver.

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— Que exagero!— Se deixasse você à vontade, eu ficaria em pedaços!— Pobrezinha da Giannina! Que pesadelo! Seduzida pelo primo perverso!— É um modo de se ver as coisas. Como é muito mais velho do que eu

será sempre mais esperto.Ele estava se divertindo, mas não era só isso.— E o que devo dizer? Tchau, mocinha, vejo-a daqui a algum tempo? Não

sabia que estávamos envolvidos numa guerra dos sexos?— O que o faz achar que tem que ser sempre o patrão? — desafiou-o ela.— Porque sou um dos felizardos, dos escolhidos. Sou assim. Quer ser

tratada como um homenzinho? O problema das mulheres é que querem tudo. São as verdadeiras ditadoras, já viu como Maggie manda em Ted? Metade do tamanho dele, e não o deixa nem murmurar uma palavrinha.

— Mas ela é uma cozinheira maravilhosa e só se zanga com Ted. Acho que ele até gosta.

— Deus me livre! Seria impossível tolerar uma coisa dessas. Ela tirou o chapéu da cabeça e recostou-se no ombro dele. De repente, fico achando que vivo reclamando de nada!

— E eu não sei! — disse ele.— Você é fisicamente perfeito, para mim. De fato, é um homem muito

bonito — ela disse, passando a mão pelo rosto dele.— Um homem nunca é bonito — ele levantou a cabeça dela, pôs a mão

em sua nuca e aproximou lentamente seu rosto. Ela sabia perfeitamente o que ele ia fazer, entreabriu os lábios, instintivamente, aceitando-o, antes que a tocasse. Apesar de tudo, ia deixar que essa torrente de emoção a sufocasse. Levantou a mão, num transe para baixar a cabeça dele, dependurar-se em seu pescoço, abraçando-o com força. Se isso era ser possuída, não ia mais escapar. Estava presa a Ingo por toda a sua vida. Tentou resistir por um segundo, mas logo se deixou envolver novamente. Dizia o nome dele suavemente, repetia-o junto de sua boca, com o coração, disparado, batia como louco.

— Genny?Ela se recostou nele, com os olhos escuros muito abertos, cheios do

desejo que corria por seu corpo.— Eu preciso desesperadamente de você. Está sendo cruel!— Se sou cruel, sou cruel para nós dois.— Queria estourar pelo céu como um foguete! — disse ela.— Arranjo tudo para você, menos isso — murmurou ele.— Seu nome é Ingo, não é?— E o que sabe sobre mim?— Estou aprendendo depressa.— É para isso que está aqui.— O mundo está girando ou somos nós? — perguntou ela.— Você está delirando, querida! — disse ele, enfiando a mão por seus

cabelos.— Pronto, começou tudo de novo. Eu sou a idiota e você é um diabo de

um adulto.— Há horas em que é preciso deixar que o fogo se apague. Eu tenho um

conjunto de regras, leis e princípios e você é minha doce menina Genny, e muito inocente, apesar de toda a pose.

Ela tentou sentar-se, fracassou da primeira vez e deixou que ele a ajudasse.

— Não vou arriscar nenhum comentário. E o que fazemos agora?

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— Pensei que não ia perguntar nunca. Quero ir com Spook e os rapazes até metade da viagem. Pode vir também.

— Que bom! Obrigada!— Ponha o chapéu!— Sim senhor patrão — disse ela, imitando com perfeição a voz

melancólica de Spook. Ele olhou para ela divertido, notando que ela estava particularmente bonita. Já tinham deixado o passado para trás

CAPÍTULO V

Felicity e Dan continuaram aproveitando as emoções da paixão durante a semana que se seguiu. Se não havia nada de estranho nisso para Felicity, tratara-se de um autêntico e original caso de amor para Dan. De acordo com seus planos, ele já deveria ter voltado para o Texas, mas, em vez disso, continuava na Austrália, se divertindo e usufruindo da companhia de uma linda mulher. Era simplesmente um milagre, pois tinha a certeza de que iria morrer solteiro. Ter quebrado a clavícula não tinha sido um desastre, afinal. De fato, Dan achava que era nada mais nada menos do que uma intervenção divina, com certeza inspirada por sua mãe. Ela sempre soubera tecer seus planos, enquanto era viva.

Até a história dos três maridos de Felicity tinha ficado em segundo plano, embora Dan não esquecesse. Em resumo, ele estava preso na teia da fascinação de Felicity e temporariamente cego. Para ele, como para todos os outros homens que se apaixonavam por Felicity, ela era uma mulher linda e inocente que tinha sido infeliz até então.

Genny, com medo de que a mãe magoasse Dan, chegou à conclusão de que era melhor conversar com a mãe.

Quando Genny entrou em seu quarto, naquela noite, antes do jantar, Felicity estava escovando seu lindo cabelo.

— Entre, meu amor, e feche a porta. Evelyn pode passar por aí. Acho que meu cabelo fica bem assim, não acha? Cabelo curto é sempre mais bonito, no verão.

— Está linda, Flick — Genny fechou a porta devagar e entro» no quarto enorme. Puxou uma poltroninha, coberta de brocado, afundou nela, de costas para o espelho antigo.

— O que acha que devo usar hoje? Uma estupidez, aquilo que aconteceu, com o vestido verde.

— Nunca dei nada para Melly passar — respondeu Genny. — Ora, achei que não ia fazer um buraco nele. É tão boazinha.

— É que não é serviço dela, Flick. Ela só ajuda Maggie na cozinha, como sabe. Deixar cair coisas no chão faz mais o gênero de Melly. Toda e qualquer louça tem a maior sorte, se sobreviver nas mãos dela. Mas eu queria falar com você sobre outra coisa.

— Sobre Dave? — disse Felicity, com olhos provocantes.— Não, vou começar pelo começo. Que tal o cowboy solitário?— Ah, que homem mais fascinante! E aquele sotaque cantado! Eu podia

escutá-lo a vida inteira. É tão musical!— Ótimo, estou mais contente.— Por que está falando neste tom, querida?

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— Então vou soletrar com maiúsculas. Dan está apaixonado por você, Flick.

Felicity deu um sorrisinho enigmático e pegou a escova de novo.— Não dê risada, Flick. É sério.— Vai fazer bem a ele! — disse Felicity, imperturbável.— Acho que sim. Só que provavelmente vai pedi-la em casamento —

informou a filha.— Tudo bem!— Você se casaria com ele?— Andei pensando no assunto.— Pensou seriamente?— Não acha que…— Você não o ama, Flick — disse Genny, calma. Felicity parou.— O que é o amor? Diga-me, minha flor, o que é o amor?— O maior desafio que há no mundo.— Exatamente.— Não estamos falando a mesma coisa. Felicity encontrou os olhos da

filha no espelho.— Não vamos estragar uma noite deliciosa, querida. Você tem uma

consideração profunda demais sobre todas as coisas. Às vezes, eu tenho até que fechar os olhos para não ver Cario na minha frente.

— Dá para parar de falar mal de meu pai?— Mas eu o amava! — protestou Felicity, abrindo muito os olhos.— Você não está procurando briga, está, Genny? Sabe como sofro de

enxaqueca. E só dá briga, quando você começa a considerar as coisas muito profundamente. — Felicity levantou-se e ficou na ponta dos pés, vestida de renda e chiffon, esguia e graciosa como uma menina.

— Dan tem muito dinheiro — disse, afinal, pensativa.— Faz parte do negócio? — perguntou Genny, desolada.— Sim, senhora! — exclamou Felicity, esperando que Genny risse, mas

não foi o que aconteceu e seus olhos ficaram mais escuros ainda.— Mas, Flick, você está bem! Tem tudo! Não pode querer mais, nem é

decente…— A verdade é querida, que não tenho um pingo de decência, quando se

trata de dinheiro. E quero dinheiro meu.De repente, Genny compreendeu tudo. Estava completamente chocada.— Quer dizer, mãe, que o dinheiro com o qual vivemos não é nosso?— Nunca lhe disse antes, mas agora já sabe. Fiquei completamente falida.

Pelos nossos padrões, é claro.— Não acredito — murmurou Genny, sentindo-se subitamente vazia. —

Todo mundo pensa que temos dinheiro.— É parte do jogo de manter as aparências. É dinheiro dos Faulkner,

Genny. Ingo é o patrão, entende?— Se é verdade vou morrer de vergonha.— Não vai morrer, não, senhora — insistiu Felicity, olhando a filha de

perto. —- Por que Ingo não pode nos sustentar? Tem toneladas de dinheiro, você nem acredita.

— Mas Hughie… — gaguejou Genny.— Hughie foi um amor, vivia com dinheiro que não tinha, não deixou

quase nada. Mal pude comprar dois vestidos.— Você paga demais por suas roupas, Flick, sempre lhe digo isso. Ingo

paga minha faculdade também?

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— Claro. Eu não tenho dinheiro. E não acho que moças devam estudar tanto. Ficam insatisfeitas. E não se incomode com Ingo, ele se sente bem.

— Mas eu não me sinto!— Ah, você é um vulcãozinho pronto a entrar em erupção a qualquer

momento. — Que mal há em Ingo nos dar dinheiro? É meu primo e riquíssimo. Não é razoável que fique tudo para ele. Somos duas pobres e frágeis criaturas.

— Ainda bem que somos só duas! — disse Genny, séria. — Não pode se casar com Dan por segurança, Flick. Tem que respeitar a profundidade do sentimento dele por você. Não o desrespeite.

— E não me diga como fazer um homem feliz. Afinal de contas, casei-me três vezes.

— Quando você se cansa deles, Flick — atalhou Genny —, joga-os pela janela, mas nunca se livrará de Dan, assim. Ele não é tão manso como parece. Há um homem de ferro, debaixo daquele jeito delicado. Não feche os olhos para a realidade. A mulher que se casar com Dan vai ter que ficar na linha.

— Bem, se quer saber, não quero me casar com Dan só por segurança, apesar de ser um bom motivo, na minha idade.

— Nunca escutei você falar em idade, antes! — surpreendeu-se Genny.— Bem, eu posso parecer uns doze anos mais moça, mas não sei quando,

no futuro, vou envelhecer. Vivi de minha beleza toda a vida e fui amada por ela, mas Dan é o tipo de homem que vai me amar, apesar de velha.

— Também é verdade que ele vai querer jogo limpo — disse Genny.— Ora, menina, não há necessidade de me dizer isso. Você e Ingo me

tratam como se eu não tivesse miolos, e a pobre Evelyn nem me olha, como se eu fosse uma devoradora de homens!

— Então nos perdoe Flick. Eu só estava com medo de que estivesse apenas se divertindo com Dan.

— Estou também me divertindo. E por que não? A vida é um jogo maravilhoso, Genny. Você é tão séria!

— Gostaria que fosse também! Se casar com Dan, vai morar do outro lado do mundo.

— E qual é o drama? Os americanos são tão civilizados como nós. Já vi você se divertindo na companhia de Dan.

— Ora, gosto dele. Nós todos gostamos. É uma ótima pessoa, inteligente, simpático e solitário.

— E então?— Não está sendo muito sensato, em seu caso. Vou sentir muito sua falta,

Flick.— Mas, querida! — Felicity levantou as mãos para o ar. — Você iria junto.

Sei que Dan adoraria ter você conosco. É tão linda que até poderia entrar para o cinema.

— Este é meu país, Flick. Sou australiana. Eu escolhi a Austrália. Tenho uma grande fé em meu país. É um gigante adormecido, no momento, e quero estar por perto quando ele acordar! Eu o amo!

— Eu também! — protestou Felicity, embaraçada com tanto patriotismo.— Então, o negócio com Dan é sério?— Eu não disse exatamente isso.— Não o magoe, Flick! — implorou Genny. — Ele é um bom homem.— É adulto o bastante para se cuidar.— Devia ser, mas não se surpreenda se reagir como um menino. Já lhe

contou sobre seus outros casamentos?— Devia ter contado?

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— Acho que devia ser honesta com ele…— Dan já passou do estágio de se importar com isso. Vou contar, sem

pressa. Tenho certeza de que vai entender a pouca sorte que tive na vida, todos os fracassos e…

— Vai tentar mais um?— É assunto meu. Não é melhor você não se meter nisso, minha flor?— Já estou metida até o pescoço, Flick. Eu gosto de você e já passamos

por muita coisa, juntas. Por que nunca me disse que Ingo nos sustentava?— Ingo quis que fosse assim e eu aconselho você a não contar a ele que

sabe de tudo. Genny, para uma moça inteligente, você demorou demais para descobrir, sabendo que jogo dinheiro fora como confete.

— O fato de o dinheiro não ser nosso não a incomoda nem um pouco?— E por quê? Ingo é meu primo e meu maior amigo. Gosta de mim e de

você também. Pensando bem, quando você era criança, gostava mais de você do que da irmã dele. Eu me lembro que Trish ficava histérica de ciúme por causa disso. Graças a Deus, sossegou agora. O casamento teve isso de bom, e vai ser ótimo vê-la aqui com as crianças. Gosto do menininho. Sabe, ainda estou em tempo de ter outro filho!

Genny derrubou um enfeite da mesinha ao lado, de susto.— Você está brincando!— Não é tão raro uma mulher de minha idade ter um filho, não sei se

sabe.— Flick você nunca pára de me surpreender. De fato, estou muda, sem

fala.— Eu também estou assustada. Faz mil anos que não chego perto de um

quarto de criança.— Se está pensando nisso, tem certeza de que não ama Dan?— Acho que ele é um homem maravilhoso. Posso até dar um filho a ele!— Meu Deus, que desafio!— É uma pena que não haja outro método de se colocarem crianças no

mundo! Detesto estragar meu corpo, mas seria temporário. Eu me alimento como um passarinho, você sabe.

— Não sei, não. Sempre achei que tinha um ótimo apetite! Bem, Flick, é melhor eu me vestir para o jantar.

— Use aquele vestido amarelo que comprei para você. Não gosto de ficar falando sobre o Texas, mas não há uma canção lá sobre uma rosa amarela?

— Tem, sim — disse Genny, levantando-se e virando a poltrona para a lareira. Peça a Dan para cantá-la para você, quando estiverem de mãos dadas na varanda.

—Entendo sua amargura, meu bem. Está se sentindo só. Pense como vai ser bom quando Dave chegar. Por falar nisso, Ingo vai pegar Trish e as crianças. Vai levar você.

— Ele não me disse nada. .— Ora, você conhece Ingo — sorriu Felicity. — Faz planos para todo

mundo.— Deve ser um traço de família,— Engraçadinha!— Estou começando a me sentir como uma marionete.— Venha, venha. Você é minha filha querida. Vai adorar o Texas.— É melhor esperar até que a peçam em casamento, Flick.— Nunca ninguém lhe disse que sou eu que peço os homens?— Ouça um conselho de sua filha — disse Genny. — Deixe Dan fazer as

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coisas do jeito dele. Está acostumado a ser o machão.Felicity deu uma risada, feliz.— Você não me disse o que eu devo usar. Que tal o tomara-que-caia? —

Felicity, de repente, olhou bem nos olhos da filha. — Você parece nervosa, querida. Será saudade de Dave?

— Adiantaria eu dizer que não? — disse Genny, cansada. — Use o tomara-que-caia, Flick, Dan vai achá-lo incrível.

— Poderíamos ser irmãs! — exclamou Felicity, vivendo somente para ser amada e admirada.

— É como penso em você, Flick. Uma irmã mais moça. Nunca quis uma mãe. Não é um artigo totalmente necessário.

Lá fora, no corredor, Genny limpou as lágrimas com um lenço. Estava ficando emotiva demais. Com a cabeça baixa, trombou com Ingo, que a pegou pelos ombros.

— O que foi que aconteceu?— Nada, absolutamente nada!— Não gosto de vê-la assim. Saiu do quarto de Flick, chorando.— Não tenho um único amigo! — explodiu ela.— Genny! — Levou-a delicadamente para o sofá. — Eu estou aqui. Você

não está completamente solta, neste mundo cruel.— Por que não me contou?— Contar o quê? — perguntou desesperado, inclinando-se e levantando o

rosto dela.— Que você é o poderoso chefão!— Então, Flick lhe contou.— Não exatamente. Escapou sem querer.— E como se sente?— Horrível — confessou.Ele fez um gesto arrogante com a cabeça.— Você realmente achou que eu a deixaria lutar pela vida?— Deveria ter me contado Ingo. Eu tinha o direito de saber.— O que eu quero saber é por que Flick lhe contou isso, agora.— Flick está pensando em ir para o Texas.— Flick gosta de sonhar acordada — respondeu calmamente.— Acho que ela está falando sério.— Pobre Dan!— Não há nada de errado com Flick.— Acha que não?— Pensei que ia me consolar.— E vou. Por que está chorando?— Deve ser da idade. Acho que vou ficar neurótica.— Flick deve ter levado você à exaustão. Se ela quer ir para o Texas,

devemos deixá-la ir.— Quer que eu vá também! .— Ah não! — disse ele, enfático. — Vai ficar aqui, e Flick tem que

entender.— É ótimo que eu já esteja nos exames finais. Estudei muito durante o ano

todo e…— E o que vai acontecer, agora?— Vou arranjar um emprego, é claro.— É, a maioria das pessoas trabalha. Já é hora de você justificar sua

existência. E Dave?

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— Não quero falar de Dave.— Você o convidou para vir aqui. Vai chegar logo.— Pare com isso, Ingo! — falou ela, desesperada. — Estou deprimidíssima!

Quer escutar outra? Felicity está pensando em ter um filho!Ele ficou imóvel por um instante e depois pôs a mão em seu ombro.— Ajude-me a sentar.— Pode até ser perigoso, na idade dela!— Meu Deus! — riu baixinho e lhe abraçou os ombros. — Uma das coisas

que admiro em Flick é a habilidade que ela tem para assustar você. Será que ela ficou doida? Uma gata seria melhor mãe do que ela.

Genny caiu no choro, soluçando.— Pare com isso, Genny. Não suporto, vê-la chorando! Escute, Flick adora

você, mas do jeito dela. Ninguém nem nada conseguem interessar Flick mais que ela própria.

— Espero que ninguém, jamais, diga isso sobre mim. Ele balançou a cabeça.

— Você é tão diferente de Flick… E carregou-a nas costas por muito tempo. Se Dan quer levá-la, que o faça logo.

— Flick é minha mãe! — disse ela, começando a chorar de novo. — Minha mãe, Ingo, não entende isso? Não quero que caia em outro erro.

Ele levantou o rosto molhado de lágrimas.— Já percebeu que ela escapa de tudo sem um arranhão? Você é que fica

com as cicatrizes. A fragilidade de Flick é falsa. Ela é ótima para se sair de todas as encrencas em que se mete. Já passou por poucas e boas. Não fique assim, Genny. Eu nunca senti o gosto de suas lágrimas e você vai me fazer querer experimentá-las já, e daí não vou parar mais.

Ela olhou nos olhos dele.— O que aconteceria, se estivéssemos completamente sozinhos?— Nada de que você se arrependesse.— Você é estranho e atraente — disse ela, aflita. — E tão conhecido

também! Nem posso explicar. Quando você me toca, é como se um raio tivesse caído sobre mim. Não vejo nada, só sinto. É uma coisa que nunca aconteceu antes e me dá medo. Pareço uma mariposa atraída pela luz. É tão esquisito! — Genny aninhou-se no peito de Ingo e ficou assim.

Ele não falou nada, por uns instantes; depois ela escutou sua voz bonita.— Está gostoso aí?— Claro. É absurdo como dependo de você. Nesses momentos, não

entendo todas as brigas que já tivemos!— Foram boas, também. Estou pensando em uma coisa: quem disse que

Flick está fazendo uma bobagem? Dan é um homem bom. Talvez até conseguisse fazer Flick se comportar.

— Nenhum dos anteriores conseguiu.— Não acha que Dan é mais maduro do que todos? Flick não é tão moça

quanto antes. Acho que está percebendo que é hora de se acomodar, mas, se quiser romper com tudo, você não estará incluída.

— É melhor eu me acostumar a viver sozinha.— Você é quase totalmente minha — murmurou Ingo. — Vou pegar Trish e

as crianças amanhã. Quer ir junto?— Não é melhor ir sozinho?— Não. Trish gosta de você e as crianças também. Além disso, quero sua

companhia.— Acho que nunca vou conseguir pagar tudo o que fez por mim.

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— Tudo o quê?— Tem feito minha vida suportável há tantos e tantos anos. E fez muito

por Flick.— Por Flick, não. Por você. Fiz tudo por você.— Por mim? — perguntou ela, levantando a cabeça.— Não posso mentir. Teria ajudado Flick, é claro, mas era você que

precisava de proteção, de alguma espécie de família!— Muito bem, Ingo Faulkner! — disse ela, esfregando o rosto na camisa

dele. — Agora vou me sentir melhor.— Você tem um traço de melancolia que me faz um mal terrível. Reaja,

anjo! Vamos ter que trocar de roupa para o jantar.— A que horas sairemos de manhã? — perguntou ela.— Nove, nove e pouco. Trish poderia vir sozinha, mas faço questão de ir

buscá-la. As crianças vão adorar viajar no nosso avião.— Trish tinha ciúme de mim.— Eu sei.— Nada é muito simples, não é verdade?— Trish era uma criança deslocada, acho que até se saiu muito bem,

considerando tudo pelo que passou. Ian e as crianças ajudaram muito.— E sua mãe, não?— Não quero conversar sobre minha mãe, Genny.— É triste. Ela também ficou dilacerada, entre vocês, bem que sabem.— É, foi muito infeliz, acho eu.— Ela não podia ter querido…— Me deixar? — respirou fundo e cerrou os dentes. — Não devia ser muito

ligada a mim.— Seu pai era um homem muito poderoso. Ela não podia ter ido contra

ele.— Você deixaria seu filho? — Os olhos prateados a perfuravam. — Não,

Genny, não deixaria. Eu conheço você. Minha mãe me deixou, e eu não quero vê-la nunca mais.

— Mas Trish está com ela, sempre.— O que Trish faz é da conta dela, mas eu não vou gastar tempo ou amor

com minha mãe. Tem como viver regiamente, mas nunca vai pôr os pés em Tandarro outra vez.

— Está falando sério, não é?— Estou.— Mas ela tem sofrido tanto, durante estes anos todos, Ingo!— Um argumento que não me comove.— Ela nunca se casou de novo — lembrou Genny.— Bem pensado, da parte dela. Eu não lhe daria um tostão, se o fizesse.— Você não é seu pai, Ingo! Ele não deixou nada para sua mãe, mas você

a amparou. Não pode ser mais tolerante e generoso, agora, perdoando-a?— Não, não posso, e é bom esquecermos este assunto. Está se sentindo

melhor?Ela suspirou.— Que tal minha cara?— Igualzinha, desde quando era criança. Já estou começando a me

perguntar se algum dia vi alguém que não fosse você.— Bem, eu sempre fui seu alvo preferido. Acho que é por isso que Trish

ficava magoada.

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— Trish teve uma infância infeliz e tudo a magoava, mas agora está fazendo de seu casamento um sucesso e isso lhe dá segurança.

— Mas você nunca foi dela!— Ora, cale a boca! — disse ele, bravo. — Fique contente porque você foi

e pronto!A viagem para Adelaide começou muito bem. O vôo foi tranqüilo e um

carro os esperava no aeroporto para levá-los ao bairro onde Ian e Trish moravam. Estava um lindo dia, brilhante e ensolarado, e Genny gostava muito de Adelaide, uma cidade bonita, próspera e espaçosa. Ingo também se sentia solto e calmo.

Quando chegaram à casa de Trish, não havia sinal de crianças, o que era incrível, pois adoravam o tio, sem contar a expectativa de voarem em seu avião de luxo até a fazenda maravilhosa. Genny esperava acrobatas no gramado, e não aquela paz de passarinhos cantando, abelhas, e alguém puxando um cortador de grama lá longe, num dia preguiçoso de verão.

— Tem certeza de que estamos na casa certa? — perguntou Genny, sorrindo.

— É, concordo que está diferente. Onde estarão as crianças? Prometi essas coisas aqui, para eles…

— Vou entrar e perguntar — disse Genny.— Diga a Trish que quero uma xícara de café forte.— As mulheres sempre pensam nessas coisas.— Só lembre a ela. Adora ficar sentada, conversando.— Raios, ela precisa pelo menos dizer alô! Por que os homens são tão

apressados?— E por que as mulheres não cedem logo e fazem o que mandamos?— Certo patrão! — Saiu andando de nariz empinado, enquanto Ingo saía

do carro e ia até o porta-malas, onde pusera um monte de coisas que as crianças tinham adorado na última visita. Genny bateu na porta da frente e deu um passo para trás admirando todas as flores.

Um segundo depois Trish apareceu, escancarou a porta em boas-vindas. Estava nervosa, frágil como um pássaro. Genny inclinou-se e pegou a mão dela.

— Você tem certeza de que chegamos no dia certo? Alguma coisa não vai bem, Trish?

— Não, claro que não. Entre, Genny. Você está linda, como sempre, me faz sentir como uma horrível dona-de-casa.

— Que conversa tonta! Deve ser uma delícia ser a dona de uma casa tão linda, com marido e filhos que são um sonho. Onde estão as crianças? Estou louca para vê-las!

— Lá em cima — respondeu Trish.— Credo! Você os amarrou, tenho certeza.— Descem logo.— Ótimo. Ingo já está chegando. Trouxe uma caixa de bobagens para eles;

tudo aquilo com que se encantaram da última vez.— Não me lembro — disse Trish, vagamente.— Eu me lembro — disse Genny. — Tive que me sentar com eles e contar

pedrinhas redondas até me cansar,Foi até a sala e então viu uma mulher sentada numa poltrona, a cabeça

alta, quase uma rainha. Genny não estava preparada para aquele encontro e levou um susto.

— Sra. Faulkner! — disse, aflita.

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A mulher sorriu.— Tem que ser Genny — disse, numa voz bonita, educada, baixa. — Como

é linda, minha querida! As fotos não fazem justiça ao seu colorido incrível!Genny reagia automaticamente, pegou a mão estendida, de dedos longos

e finos, que tremia.— Ingo está comigo — disse nervosa.— Eu sei. — Marianne olhou para ela com uma expressão terrivelmente

triste.— Ele não mudou Sra. Faulkner.— Sei o que está tentando me dizer, minha filha. Genny engoliu em seco.— Acha que deve se expor a mais sofrimento?— Nunca tive ocasião de pedir seu perdão!— Por favor, Sra. Faulkner! — disse Genny, desesperada, querendo

protegê-la.— Não se preocupe, não se preocupe. Eu confio em você, Genny. Tem uns

olhos tão carinhosos! E a vida não tem sido fácil para você também. Vejo traços de Felicity, esse nariz, as maçãs do rosto, o talhe esbelto. Mas o cabelo de Flick nunca foi da cor do seu; assim, tão dourado. Como vai ela?

— Está bem e feliz, Sra. Faulkner. Direi que perguntou por ela.— Faça isso. Eu sempre gostei dela. — A conversa era um esforço valente

para que tudo parecesse normal, mas seus dedos finos tremiam.— Eu acho que vou desmaiar — disse Trish, olhando para o chão de

propósito. — Ingo não vai gostar.— Foi minha idéia. Eu é que quis que isso acontecesse — disse Marianne

Faulkner, muito calma. — Quero ver meu filho.— E vai ver! — disse Genny, com a mesma intensidade, pegando nas

mãos frágeis da mulher.Da porta da entrada escutaram a voz de Ingo, atraente, sorridente.— Onde diabos está todo mundo? Genny? Trish? Que belas boas-vindas eu

mereço!— Estamos aqui! — disse Genny, a única a achar a voz. Sentiu que a Sra.

Faulkner tremia de emoção. Parecia tão vulnerável que Genny sentia muita pena. Trish estava encolhida, no outro lado da sala, tão atormentada quanto a mãe. O coração de Genny pulava no peito.

Ingo entrou bonito e seguro de si, feito a imagem do pai, com os olhos da mãe. As mãos de Marianne apertavam as de Genny, como querendo sugar força e vitalidade.

Ingo parou na porta, duro como uma estátua, e jogou a cabeça para trás, exatamente como um puro-sangue, os olhos brilhantes de raiva, tão furioso que podia ter cortado a todos em tiras. Perto dele branca como papel, Trish começou a falar rapidamente:

— Por favor, Ingo, pense o que pensar, mas seja bondoso!Ele nem a olhou; a bondade não era uma de suas virtudes, naquele

momento.— Genny vamos embora — disse ele, numa voz forte e impassível.— Sinto muito! — Trish começou a chorar com grandes soluços. Genny

sentiu o coração doendo no peito. Não queria fazer isso, mas não tinha alternativa. Soltou a mão de Marianne, depois de lhe dar um aperto carinhoso.

— Sinto muito, Sra. Faulkner. Acredite em mim.Marianne não respondeu. Continuava ali, em pé, sem oscilar, como uma

vítima enfrentando o pelotão de fuzilamento.— Já vi que não vai comigo, Trish — disse Ingo.

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Não era uma pergunta e sim uma afirmativa e Trish entendeu muito bem o que significava.

— Mas eu queria tanto! — exclamou ela.— Deixe-a ir! — implorou Genny.— Sinto muito desapontar as crianças. Ia ser muito bom. Fica para outra

vez. — Estendeu a mão e apertou os dedos no pulso de Genny, machucando-a sem saber. Genny viu que Ingo estava cego e surdo para qualquer apelo. Assim mesmo tentou: — Não podemos levá-los? Não podemos esperar no carro? Fizemos toda essa viagem!

— A culpa é toda minha! — disse Marianne Faulkner, dirigindo-se ao filho. — Ingo, você não pode, não quer conversar comigo?

— Sinto muito, senhora — respondeu ferino —, mas eu não a conheço.— Por que não tem coração, Ingo? — A irmã correu para ele e puxou seu

braço. — Está se parecendo com papai!— Saia da minha frente!Estava violento, e Genny começou a tremer. Ele percebeu e controlou-se.

Olhou-a, afastou o braço da irmã com delicadeza. Os olhos de Trish escureceram e falou:

— Sempre Genny! A pequena Genny, de cabelinhos de bebê! Odiei você durante anos, mas não era sua culpa. Não pediu o coração frio de Ingo, ele sempre foi seu. Mamãe e eu somos mendigas. Você e papai nos marcaram. O que perderam, na realidade? Têm Tandarro. E papai só gostava de você, Ingo, eu não era mais do que uma menina. Supérflua. Por que não escuta a história de minha vida? Sempre a segunda! Para mamãe, para papai, para você! Era sua irmã, mas gostava de Genny. Onde está ela, agora? Em Tandarro! Deveria ser meu mundo, mas eu sou a exilada! — Virou-se de repente para Genny, tomada pelo demônio do ciúme, ainda não de todo exorcizado. — Pois é, Genny! Olhos de amor-perfeito, rostinho triste, sexy como ninguém. Genny que tem pena de todo mundo, mas que não é nem um pouco boba. Ele está apaixonado por você, não sabe? E não me olhe desse jeito. Não é ridículo e sei disso há anos. Não esta interessada ou já é dele há muito tempo?

— Patrícia!Trish virou-se para a mãe, piscando, os olhos cheios de lágrimas.— Não tente me impedir nada, agora, mamãe. Já lhe contei tudo sobre

Genny. Esqueça os babadinhos e os olhos grandes. Odeio essa mulher. É uma oportunista, tal como a mãe.

O tapa de mão aberta de Ingo fez com que ela cambaleasse. Caiu numa cadeira, soluçando amargamente, e ávida. Genny pegou a mão de Ingo, segurou-a com força, com medo de que ela prosseguisse. Os olhos dele cintilavam estranhamente.

— Não devia ter feito isso! — protestou.— Ela merecia, essa pestinha chorona, miando como um gato. É de se dar

os parabéns à mãe dela. Que belo exemplo de moça bem-criada. Um caso sério de instabilidade emocional!

— Por favor, Ingo! — Marianne Faulkner foi até a filha, dignamente, para consolá-la. — Ela só está lutando por um pouco daquilo a que tem direito.

— Verdade? Pensei que as duas tinham sido generosamente recompensadas.

— Estou falando de amor!Fez-se silêncio, mas Ingo rompeu-o com um riso de desprezo.— Tenho certeza de que não entendem muito do assunto.

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— Nós vamos embora, Sra. Faulkner — disse Genny, desesperada. — As coisas só estão ficando piores! Sinto muito!

— Eu só queria ver meu filho! — disse Marianne, numa voz magoadíssima, de costas para eles.

— E a senhora o viu. Acha que valeu a pena? — perguntou Ingo.— É claro que sim.— Venha comigo, Ingo. Já — disse Genny.— Vão para o inferno! — explodiu Trish, violenta.— Seria melhor do que o paraíso com você — disse Ingo, cruelmente. —

Mandarei um postal.Era como um pesadelo e tinha que ter fim. Genny levantou a cabeça,

escutando. Uma porta se abriu no andar de cima, pezinhos desceram a escada correndo, fazendo um barulhão. Logo depois, duas crianças excitadíssimas apareceram, um menino de sete anos, Sean, e uma menina de cinco anos, Sarah. Pararam na porta para tomar fôlego, antes de se jogarem sobre o tio, com, os olhos brilhando de felicidade.

— Tio Ingo!— Oi, crianças! — disse ele, calmo, segurando os dois pelos ombros.Encantados como estavam o cumprimento seco não os surpreendeu

muito.— Alô, Genny! Estamos prontos! — Sean informou feliz. — Mamãe nos

disse para esperar um pouco lá no quarto, mas estava demorando muito. O que está dentro da caixa, no corredor?

— Tudo o que vocês queriam trazer da última vez! — disse Genny, sorrindo, tentando agir com naturalidade.

— Opa! — gritaram os dois juntos, olhando o tio com amor e orgulho. — Não vai se levantar mamãe? — perguntou Sean.

— Nós não vamos — disse Trish, sem comentários, com receio de chorar.Sean olhou para ela, atônito.— Está brincando! Já fizemos as malas! Eu fiz todas as minhas lições e

Sarah tomou todo o leite. Queremos tanto, tanto ir!— Houve uma mudança de planos — respondeu Trish, interrompendo o

filho.— Mas já fizemos as malas! — protestou Sean, inconformado.O rosto radiante de Sarah enrugou-se e ela começou a chorar tão fininho

que parecia que ia ensurdecer todo mundo.— Pare com isso! — explodiu a mãe.— Eles não podem ir? — perguntou Genny, impulsivamente. — Estão

prontos. É uma pena! Tomo conta deles como se fossem meus! Não podem ir, Trish?

Trish pensou um pouco.— Sean pode ir! — anunciou, afinal.— Os dois ou nenhum! — disse Genny firmemente, sem se importar com a

reação de Sarah, que começara a berrar outra vez.— Está bem, leve-os! — gritou Trish, sentida. — Eles também não me

querem.— Mostre um pouco de bom senso, querida — advertiu Marianne Faulkner,

baixinho. — As crianças só têm pensado nisso. Nunca a perdoariam se não os deixasse ir.

Trish riu, sem humor.— Eu nunca poderia encarar isso — disse ela, com amargura nos olhos.Ingo virou-se de costas para todos, cortando as despedidas.

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— Mostre-me onde estão as coisas, Sean. Vou colocá-las no carro!— Sim, senhor! — Sean saiu correndo na frente, mostrando duas malas

novas, uma delas com uma bela boneca vitoriana que os observava com os olhos redondos.

— Dê a boneca a Sarah. É melhor que ela a carregue. — Sem olhar para trás, Ingo saiu do carro, escutando Genny dizer às crianças:

— Beijem a mamãe e a vovó. — Sua boca contraiu-se ao ver a ironia da coisa. Havia tanta raiva em seu coração, e Genny, uma menina rebelde, que costumava desafiá-lo, estava ali, incrivelmente tolerante e compassiva. Podia incendiar-se e ser muito, muito doce também.

Ela chegou antes que ele alcançasse o carro, com Sean, Sarah e Irene, a boneca.

— Subam crianças — disse Genny, abrindo a porta de trás do carro e acomodando os dois.

Ingo encarou-a de frente, o olhar tão intenso que parecia querer atravessá-la.

— Trish a magoou, não foi?— Esqueça.— E quem é ela, com todas aquelas invejas mesquinhas? Achei que já

tinha superado tudo aquilo. Comparada com você, levou uma vida de princesa.Genny pôs a mão na testa.— Se alguém falar mais qualquer coisa sobre minha mãe, eu grito!— Pode gritar até ficar sem fôlego, que a verdade não vai mudar. Eu podia

estrangular Flick, pelos perigos a que expôs você.— Que perigos?— Não me venha com essa! — disse ele, bruto, jogando as malas lá atrás.

— Tire a mão daí.— Sei cuidar de mim, Ingo! — respondeu, afastando-se.— Não sabe nada sobre você. Só o pobre Hughie é que foi um homem de

bom senso e inteligente. Ah, esqueça. — Mordeu o lábio com força. — Há anos que me preocupo com você.

— Eu tenho me arranjado, apesar de ter me esquecido do que é um dia alegre na vida. Aliás, você não ajuda muito!

— Vamos embora daqui. É uma delícia ter uma irmã tão maravilhosa! Estou pela tampa!

— Ela não sabe o que faz Ingo. Tenha calma com ela.— Teve sorte por eu não assassiná-la!Só depois que todos estavam sentados no carro é que Trish veio fechar a

porta e acenou com a mão. As crianças responderam mais interessadas no passeio que na complicação dos adultos. Partiam para uma maravilhosa aventura e Sarah contava à boneca tudo o que iria acontecer.

Genny não queria pensar nas acusações de Trish. Sua frustração invejosa usava qualquer arma. De algum modo, Trish, aos vinte e oito anos, ainda era uma criança desajustada. Genny olhou para frente, mais ferida do que queria admitir. Ingo nem se deu ao trabalho de olhar para a irmã, manobrando o carro rumo à estrada.

Marianne Faulkner estava atrás de Patrícia, tremendo de sofrimento, mas incapaz de reprimir a vontade de ver o filho pela última vez. Estava muito desapontada com a filha.

— Foi imperdoável o que disse a eles, Trish. Era realmente necessário?— Só Deus sabe! — disse a moça, numa voz baixa, humilhadíssima. —

Agora me arrependo. Viu o rosto dele? É como papai. Ele nos jogaria aos leões,

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por Genny. Nenhum homem jamais me olhou daquele jeito ou me defendeu com aquela fúria.

— Meu filho é um homem de paixões fortes — disse Marianne, docemente. — Sei que ele nunca me perdoará. Compreendo. Eu o deixei sozinho, quando era bem menino. Nunca me perdoará, por mais que Genny faça força.

— E por que ela defenderia sua causa?— Porque vejo sua alma através dos olhos. Não tinha idéia de que ela

ficasse assim tão bonita. Imaginei que se parecia mais com Felicity. A doce e boba Flick, de quem sempre gostei. A filha é de outro tipo. Não deve ter sido fácil, para ela, viver com Flick.

— Ah, é a queridinha de todos, mesmo. É tão pura!— Devia ser grata a ela.— Nunca! — disse Trish, com ódio. — Eu não sei o que Ian vai dizer.

Aceitou o convite também e as férias dele começam em duas semanas. Todo mundo quer ver Ingo! Estar com ele! Eu, inclusive!

— Que pena! A culpa foi toda minha. O que é que eu estava fazendo aqui, Trish?

A dor no rosto da mãe comoveu Trish. Aproximou-se dela, com ternura, pôs as mãos em seus ombros e a levou até a sala.

— Você própria já o disse: tem o direito de ver seu filho.— Não, Trish. Direito, não. Já abdiquei disso há muito tempo. Agora é

inevitável que eu arque com a culpa e a dor.— E, enquanto isso, Genny tem Ingo, Tandarro e meus filhos! — disse

Trish, violenta.— Faça um esforço para se ajudar, Trish. Não tem a menor razão para

falar assim de Genny. Podia ser sua amiga. Não deixe que o ciúme destrua tudo o que é bom em você.

— Você não entende mamãe — disse Trish, desesperada.— Ah, entendo! Ele foi bom para nós, apesar de tudo.— Ele sustenta Flick e Genny há anos. Agora elas estão decididas a se

mudar para lá e você ainda diz que é bom para nós?— Por que deixou as crianças irem?— Quero que freqüentem Tandarro. Marianne Faulkner fechou os olhos,

exausta.— Você quer que Ingo goste delas!— Genny não pode ter tudo. Tenho uma carência afetiva enorme. Ingo

sempre foi uma grande parte de minha vida. Mesmo longe, nunca ficamos livres da presença dele e de papai. É uma pena que tenhamos saído daquele nosso mundo.

— Bem, minha querida — disse Marianne Faulkner, com os olhos nadando em lágrimas —, já não podemos fazer mais nada. Todos nós sofremos pelo que eu fiz. Na época parecia que era a única coisa a fazer. Marc não tinha tempo para suportar meus medos bobos. O pai dele jamais gostou de mim. Evelyn tentou ser boa, mas estava sob a influência do pai. Com mais maturidade, eu não teria feito isso, mas não me deram uma segunda chance. Marc me amava, mas estava cansado do que chamava de minhas fraquezas. Nunca percebeu a extensão do antagonismo do pai. Foi uma história triste e você não vai querer escutá-la de novo. Seu pai não era o homem duro e impiedoso do qual se lembra. Era orgulhoso, e eu o magoei muito. É incrível que eu tenha errado tanto. Devia ter ficado e triunfado, e sido mais esperta do que o velho. Nunca deveria ter deixado Ingo sem mãe e você sem pai e irmão. Por minha causa, por minha causa…

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CAPÍTULO VI

O susto e a tristeza do incidente de Adelaide não diminuíram com o tempo, como os pesadelos, nem perderam a importância. Os dias se transformavam em semanas e Genny mais e mais se perturbava com a lembrança de tudo aquilo. Trish tinha assumido o papel de carrasco, matando toda a possibilidade de amizade entre elas.

O incidente não parava de martelar na cabeça de Genny e esta começou a perder o apetite e o sono. Como conseqüência, emagreceu, ria pouco, com mil dúvidas atrapalhando sua vida. É claro que expusera a Flick e à tia Evelyn uma versão mais suave da visita, e elas não deram muita importância, acostumadas aos desagradáveis ataques que Trish dava de vez em quando. Disseram que, sem dúvida, Trish logo escreveria pedindo desculpas por sua atitude. Ninguém queria falar sobre Marianne Faulkner e nada mais havia a se fazer, no caso. Conheciam Ingo há muito tempo e sabiam disso. Quanto às crianças eram a alegria da casa.

Trish escreveu mesmo uma carta se desculpando. Ingo leu com ironia e jogou na cesta de papéis, com uma expressão tão distante que Genny desviou o olhar e foi embora. Com seu coração terno, ela se perguntava se algum dia uma mulher conseguiria de novo, tocar o coração dele. Ingo era impiedoso, amargo e desiludido. O mais trágico é que fazia parte dele, e isso se chamava amor. O poder que ele exercia sobre ela era constante como uma grande teia de aranha tecida desde a infância. Ela não conseguia impedir isso. Seria como fazer parar o sol. Ingo tinha mesmo a capacidade de envolver completamente as pessoas, deixando-as à sua mercê. Com ela, fez isso com tanta naturalidade que só agora se apercebia, tarde demais.

Foi um alívio ver Dave chegar e preencher seu tempo. Ele adorou o lugar, foi um sucesso com as crianças e mostrava seu prazer com tanto charme que até tia Evelyn aprovou-o imediatamente, o que não era pouco. Sally, que chegou alguns dias depois, não era tão querida, o que não importava muito, porque ficava quase o tempo todo ao lado de Ingo, cavalgando com ele, muito bem vestida, e até o acompanhava na visita de caridade semanal à fazenda do coronel Hastings, velho amigo de seu avô. Sally se encaixara confortavelmente no ritmo de tudo, cheia de entusiasmo. Vivia dando risadas gostosas, um completo contraste com Genny, que tinha se tornado triste e calada.

Dave, felicíssimo por estar em sua companhia outra vez, comentou isso, enquanto tomavam conta das crianças, que se banhavam na parte rasa da lagoa de águas cristalinas. Com expressão profundamente angustiada, Genny olhava as crianças, que riam e jogavam água uma na outra, como ela costumava fazer quando pequena.

Dave pegou a mão dela, levou os dedos aos lábios e mordiscou-os.— Em que está pensando, Gen?— Sinto muito. Eu me distraí?— Sabe que sim. Aliás, está muito preocupada, desde o dia em que eu

cheguei.— Ah, me desculpe, Dave, quero muito que se divirta.— Meu amor, não pense que estou me queixando. Estou aproveitando

demais. Conhecer uma propriedade destas é incrível! Ninguém sabe como a

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vida é diferente, aqui. É de não se acreditar! O tamanho do lugar, milhares e milhares de milhas quadradas! É fantástico. Uma dimensão extra. Seu primo não é um sujeito comum, disso tenho certeza.

— Não, não é — confirmou Genny, inexpressiva.— E até entende bastante de medicina. As coisas devem ter sido bem

diferentes, antes de haver assistência médica por aqui.— A maioria dos fazendeiros aprendeu a se arranjar em todos os sentidos.

São criativos e cheios de iniciativa. Sem o Doutor Voador, no entanto, pouco poderiam fazer, em alguns casos graves. Ele representa a diferença entre a vida e a morte, é um amigo e um salvador. Um dos maiores amigos de Ingo é Bob Melville, o chefe dos médicos, que muitas vezes desce aqui para uma visitinha. As enfermeiras voadoras também! Todo mundo é muito unido, no interior da Austrália. Somos tão poucos que temos que ser assim.

— É. Não há outro jeito. E a caixa de medicamentos que vocês têm não é brincadeira.

Genny concordou:— Todo mundo tem. Cada item é numerado. Fica mais fácil para o médico.

Algumas doenças podem ser tratadas em casa; você escutou as mães falando com os médicos sobre seus bebês. Até a fazenda mais isolada pode entrar em contato com um médico dentro de minutos, e você pode imaginar o que isso significa para nós. É um elo com o resto do mundo. Pode imaginar como era a vida aqui, antes disso? O sofrimento e as tragédias desnecessárias? As crianças pequenas morrem, com muita facilidade. Tandarro tem algumas sepulturas.

— Mas estão bem equipados em matéria de aviões, não é? Dois aviões particulares e um helicóptero.

— Ingo usa o Cessna e o helicóptero para administrar a fazenda, inspecionar o gado e a propriedade, esse tipo de coisa. Não dá para ele ir a cavalo, não é? Só o veríamos de ano em ano.

— Devem ter custado um dinheirão! — insistiu Dave, fascinado por tudo o que via na fazenda.

Genny deu de ombros.— Eles se pagam pelo que fazem. Parece que o custo dos Doutores

Voadores, só em nosso setor, é de uns mil dólares por dia, sete dias por semana, só para voarem. Usamos o Baron para visitas à cidade ou alguma visita a outras fazendas, corridas de cavalos, um baile… Temos reuniões sociais aqui, também. O salão de baile não é lindo?

— A fazenda é inacreditável! — exclamou Dave.— Há outras propriedades magníficas. Aqui é o lar dos reis do gado.— Estão de parabéns. Vivem mesmo como reis. Seu primo é um dos

solteirões mais cobiçados por aqui?— Deve ser! — concordou Genny.— Mas não por muito tempo. Nossa Sally parece decidida a colocá-lo

dentro de uma gaiola.— Não dá nem para imaginar! — disse Genny, abanando a mão para as

crianças.— Seria difícil, concordo. Mesmo uma gaiola de veludo seria um problema

para ele. É um homem duro, não é? Superindependente o tipo de sua vida o torna muito liberal para com as mulheres. Dono de um grande conglomerado como este, o seu poder é enorme.

— Não é isso. Aqui o mundo é dos homens. Foram eles que abriram este país. As mulheres o tornaram habitável, mas nenhuma delas tem a força física

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de um homem, nem a resistência. — Genny sorriu. — Além disso, sabe como são os homens; acham mais fácil se entenderem entre eles. Ingo herdou tudo isso. Nunca conheceu outra coisa nem saberia se comportar como um homem comum.

— E não é difícil conviver com ele?— Difícil é viver sem ele.— Bem, Sally está tentando agarrá-lo. Força um pouco a barra, mas é

interessante e glamourosa. Gosto dela. Acha que tem chances?— De quê? — perguntou Genny, amassando uma flor.— De ganhar o prêmio de um milhão de dólares, imagino eu.— Não sei. Não é fácil nem seguro casar com Ingo.— O que quer dizer? — perguntou Dave, intrigado com a seriedade e a

tristeza daquele perfil puro. — Achei que vocês dois eram muito próximos. Sei que ele a protege demais, talvez até com uma atitude excessivamente paternalista.

— É o que eu digo. Ingo é um homem muito complexo. Não se parece com você, por exemplo.

— Podia me dar um beijo de agradecimento!— Não, as crianças podem ver.— Está bem. Depois, então. Pensando nisso, não a beijei direito nem uma

vez. Você está me evitando. O que é que há Gen? Sabe que eu a amo e quero casar com você. É meu sonho ou minha ilusão não sei.

— Sabe o que penso do casamento, Dave.— Já sei. É a própria menina confusa. A felicidade é sorte de pouca gente,

concordo, mas quase todo mundo prefere o casamento.— Não sou contra, Dave. Só tenho medo.— É claro! — disse Dave, olhando-a, compreensivo.— Não diga nem mais uma palavra! — implorou ela.— Eu não ia falar nada, minha flor. Adoro sua mãe, como sabe. Acho

impossível que ela seja mãe de alguém. Vestida como estava hoje de manhã, parece ter a idade de Sally, talvez pareça até mais moça. Vai fazer o maior sucesso, no Texas.

— Por que diz isso? — perguntou Genny.— Porque é verdade, minha flor. Estou aqui há uma semana e tive tempo

de estudar Dan bem de perto. Ela o está levando por uma coleira. Muito engraçado, se considerarmos o tamanho dele. De qualquer jeito, é uma grande melhora em relação a Hughie.

— Não é o primeiro a dizer isso — observou Genny.— Aposto que o outro foi seu primo. Ele está muito por dentro da coisa

toda. Será que alguma coisa escapa daqueles olhos de diamante? — São perfuradores. O meu chefe tem olhos assim, só que azuis. E não gosta muito de mim.

— Ingo gosta.— Parece! — concordou Dave, contente. — Percebi sua grande

hospitalidade, o que não significa que ele me ache um bom partido para você.— Não falou uma palavra sobre o assunto. Também, quase não o tenho

visto.— Vai falar não se preocupe. Eu o admiro, mas não gostaria de ir contra

ele. Percebi que é o tipo de homem que luta em espaço aberto. Acho que é até capaz de me picar em pedacinhos. Vou custar a conseguir tirar você daqui.

— Está me desapontando, Dave! — caçoou ela. — Achei que ia simplesmente ignorar Ingo.

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— Ignorá-lo? Está brincando. Não se ignora esse tipo de homem. Fugir também não adiantaria. Ele iria atrás até nos pegar. Não me entenda mal amor sou corajoso, mas não quero contrariá-lo. É mais homem do que eu.

Genny escutou-o com o coração pequeno. Cada dia era mais difícil fingir-se de corajosa quando se sentia mais vulnerável a cada hora que passava. Era verdade que quase não via Ingo. Ela o estava evitando de propósito, ajudada por Dave e as crianças, com quem passava a maior parte do tempo. Só o via no jantar. Ele saía de manhã cedo e não vinha almoçar, nem para agradar Sally.

O lago estava uma beleza, um paraíso, com aquele sol constante, as árvores nativas e a água fresca e limpa na forma de uma lua cheia, começando rasinha e ficando mais funda a cada passo. Como Dave, Genny já dera um mergulho e agora o sol batia nela, dourando seu cabelo e sua pele.

Em seu biquíni preto sobre a pele morena, estava provocante e delicadamente sensual, e Dave começava a sentir o sangue batendo nas têmporas. Genny simplesmente não sabia o poder que tinha de deixar os homens loucos.

É uma moça conservadora, pensou Dave, nada parecida com as enfermeiras das quais tenho quase que fugir.

Genny nunca dava o primeiro passo e, em dois anos, Dave não fizera mais do que beijar aquela boca bonita. Mas para Dave isso significava o mesmo que suas outras aventuras. Não estavam noivos, nem comprometidos, mas ele estava resolvido a conseguir um sim dela, para seu pedido de casamento. Um médico em ascensão precisava de uma mulher. Talvez não tão bonita. Com um rosto como aquele, poderiam ter dúvidas sobre ela. Acontece que era a moça mais inocente que ele já conhecera, o que era inacreditável, tendo em vista a mãe que tinha. Flick precisava de um homem para amá-la, como um nadador precisa de ar. Era uma pena que Genny insistisse em levar aquelas crianças para onde quer que fossem. Não que não gostasse de Sean e Sarah, eram interessantes e bem-comportados, só que não davam cinco minutos de sossego e Dave já estava achando que cinco minutos era um bom tempo para ficar com Genny.

Alguma coisa havia acontecido com ela. Mudara, e ele ainda não descobrira como. Podia até ter se apaixonado violentamente, tão perdida estava em seu próprio mundo, mas não era provável. Só havia ali o primo Ingo, que poderia excitar qualquer mulher, mas fazia parte da família. Não havia dúvidas quanto à sua atitude em relação a Genny, e Dave tinha que respeitá-lo. A amizade deles começara na infância de Genny e, além de tudo, Sally estava louca por ele e era dez vezes mais experiente do que Genny. Se não era uma paixão, seria o quê? Talvez sua mãe, pensou. Genny provavelmente está preocupada com o futuro desse novo caso de Felicity. Pelo menos, o grande americano era alguém que se podia admirar. Não era nenhum bobo, mesmo que estivesse bancando um, no momento. Na hora que pusesse a aliança no dedo de uma mulher, ela teria que se comportar.

Dave se tranqüilizou com essa explicação para a distância de Genny e achou que devia continuar a insistir.

— Por favor, olhe para mim, Gen! É uma dificuldade não tocar em você. Tem a pele mais bonita do mundo. Fico até sem ar.

— É melhor eu vestir a saída-de-praia — respondeu ela, prosaica.— Não. Não faça isso. Além de tudo, é transparente. Que milagre é o corpo

de uma mulher! Perfeitamente formado para o amor. Mas não me ama, não é, Genny?

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— O que é o amor? — perguntou ela, séria como uma criança, os olhos escuros tão profundos como o meio do lago.

— O que estou sentindo neste momento! — disse Dave, rouco.— Não será um envolvimento físico e só?— Ora, menina, é mais do que você pensa.— Acredite-me, não estou apaixonada mesmo! — Estremeceu ao sol

quente, ainda sentindo o redemoinho de emoções que Ingo causava nela, só de olhá-lo.

— Não quer se casar? — perguntou Dave, acariciando o ombro acetinado.— Está louco! — disse ela, tentando sorrir.— Raios, meu bem, isso não é jeito de responder. Várias moças amigas

minhas ficariam felizes de estar aí em seu lugar!— Acredito. Você é muito charmoso. Acredito mesmo. Um doutor bonitão,

moço, um grande hospital, as enfermeiras famintas de sexo…— Pois acontece! — respondeu Dave.— O que está tentando dizer? E fique com a mão aí, onde estava!— Quero que se case comigo — respondeu desgostoso. — Papai está

pensando em comprar um consultório para mim, no ano que vem.— Por que não se liga ao Doutor Voador?— Não sou tão corajoso. Gosto da cidade, do trabalho da cidade. Não me

diga que você pretende ficar sempre aqui. Sabe Genny, se não fosse uma loucura, diria que perdeu a cabeça por seu primo.

— Ingo não suportaria isso! — disse Genny, sacudindo a cabeça.— Ele é muito importante para você, não é?— É claro! — disse ela, secamente. — Já viu alguém mais esplêndido do

que Ingo?Foi a vez de Dave sacudir a cabeça.— Não, não vi, e isso me intriga. Fico contente por ele não trabalhar no

hospital. As enfermeiras nem olhariam para mim. Sei que você tem um relacionamento todo especial com ele, conheceu-o a vida toda, órfã de pai e sem irmão. As pressões de sua infância, talvez, diria um psiquiatra. Alguma coisa a fez muito medrosa para encarar o amor e o casamento, mas seu primo é um homem notável. Deixa todos os outros homens apagados e sem graça. Tem classe demais, e Sally também acha.

Genny mexeu-se, aflita, empurrando os dedos pelos cabelos que secavam.— Vamos cortar essas suspeitas pela raiz. Ingo e eu não temos nada de

romântico entre nós dois.— Graças a Deus — disse Dave. — Eu também achava. Sabe, é quase

incestuoso. Só achei que devia perguntar, até porque me lembro de você ter contado alguma coisa sobre ele e a madrasta, como é que se chama mesmo? Você já me disse.

— Bárbara. Tio Marc casou-se com ela para ferir Marianne. Mas passou a ignorá-la desde o dia do casamento. Era uma mulher muito atraente e ficou apaixonada por Ingo!

— Céus! E ele?— Ingo a odiava. Mandou-a embora logo que pôde. Ele não tem muito

tempo de sobra para as mulheres.— Seja ele como for só sei que é tiro e queda com elas. Preciso aprender o

jeito.Genny sorriu.— Você teve uma vida muito diferente, Dave. Cheia de paz, feliz. Seu pai e

sua mãe o adoram.

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— Eles me acham mais brilhante do que sou.— Ingo envolveu-se em brigas enormes entre os pais. Lá no fundo tem

tanto medo quanto eu. Vai fazer trinta e quatro anos e já houve uma procissão de Sallys. Nunca se casou com nenhuma delas.

— Espero que tudo dê certo, desta vez. Eu gosto dela. É divertida Um tanto agressiva para meu gosto, mas, assim mesmo, uma ótima companhia. Acho que ele bem que gostaria de uma mulherzinha submissa.

— Não há muitas, vai ser difícil achar uma.— Não, acho que ele vai preferir sensualidade e inteligência. E pensando

bem, não é o caso de Sally — disse ele.— Ela sabe exatamente o que quer e como conseguir. Diferente de muitos

homens, Ingo nem sempre reage às táticas comuns. Esse caso vem se arrastando há anos. Sally é da idade de Trish e mais teimosa do que as outras.

— Pense que delícia se fôssemos casados, Gen! — disse ele, olhando-a de um modo levemente perigoso.

— Muita gente desejaria nunca ter se casado.— Sua mãe, o tempo todo. Opa! — Bateu a mão na cabeça. — Sinto muito

ter dito isso.— De certo modo, eu não a culpo. Flick é diferente. Pode se envolver sem

grandes exigências. Mesmo quando se casa não se envolve profundamente. Eu gostaria que ela fosse diferente, mas eu a amo assim mesmo. Se ela se decidiu por Dan, acho que meu coração vai explodir.

— E por que pelo amor de Deus? — perguntou Dave, pegando a mão dela.Ela balançou a cabeça, incapaz de responder. Cheio de ternura, ele a

beijou no rosto.— Hum! — Moveu a boca do rosto para o pescoço e de volta, sabendo o

que ia acontecer dali a pouco. Genny era a moça mais excitante do mundo, para ele. Até beijar o rosto dela o deixava bambo de emoção.

— Sinto muitíssimo interrompê-los!A voz alegre vinha da extremidade do lago. Eles se entreolharam e

viraram a cabeça. Dave, frustrado, e Genny, tão vazia quanto estava antes, viram Sally, sorridente como sempre, e Ingo, atrás dela, sem qualquer expressão no rosto.

— Oi, meninos! — disse Sally, aproximando-se. — Estávamos andando a cavalo, passamos por aqui e achamos que deveríamos dar uma espiada. Que lugar maravilhoso! Que pena eu não ter trazido meu biquíni!

— Eu também acho — disse Dave, decidido a ser agradável. Ingo não disse nada, e instintivamente Genny pegou sua saída e a vestiu. Era muito chique e nada prática, feita de um tecido leve e transparente.

— Oi — disse Dave, olhando para Ingo e sem a menor idéia do que diria depois. Será que beijar Genny ia fazer tanta diferença assim?

— É melhor tirar as crianças da água, Genny. Já tomaram muito sol, hoje.Genny levantou-se, olhou para ele e foi andando para a margem do lago,

chamando as crianças, que abanavam a mão e jogavam água nela, mas não se mexiam para sair. Ela hesitou só um pouquinho, mergulhou até eles, pegando cada um pela mão e trazendo-os de volta.

— O tio Ingo acha que já tomaram sol bastante. Vamos nos enxugar e ir para casa almoçar. Depois disso, Sarah tira uma soneca e vamos visitar as grutas.

— Ah, que delícia! — exclamou Sean, exagerado, e depois saiu gritando como um índio até o tio, contando tudo o que acontecera de manhã, até das pedrinhas coloridas que achara,

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Sally nem fingia estar escutando com indulgência as histórias confusas da criança excitada e começou a conversar com Dave, levando-o até o riacho cheio de lírios perfumados que se sacudiam levemente na brisa fresca. Ele colheu um e o deu para ela, que se encantou com o gesto. Genny, enquanto isso enxugava e vestia Sarah.

— Pronto, meu amor, é melhor enfiar o chapéu, agora. Mamãe não vai ficar feliz, se você encher esse rostinho de sardas.

— Eu não me importo! — Sarah inclinou-se e beijou a ponta do nariz de Genny. — Adoro sardas. Minha melhor amiga, Melissa, tem tantas sardas que eu nem sei o que é pele e o que é mancha.

— Melissa é ruiva, não é?— É.— É importante que as ruivas ponham chapéu, quando se expõem ao sol.

Sean? — Virou a cabeça, sem olhar para Ingo.Sean veio obediente; ela pegou a camiseta, enfiou-a por sua cabeça e lhe

alisou o cabelo, que se enroscava em cachinhos.— Ponha o chapéu. Isso! Agora peguem suas coisas como duas; crianças

boazinhas. Podem usar meu chapéu de palha para levar as pedras.— Obrigada, Genny.— Você não vai ficar — disse Ingo, aproximando-se.— É uma pergunta ou uma ordem? — explodiu ela.— Por que você sempre exagera?— Eu conheço você, Ingo! — disse feroz. — Quer assustar o pobre Dave.— Sally toma conta dele um pouquinho.— Azar seu! — disse ela, sarcástica.— Sorte minha! — retrucou irônico, com desprezo.— Credo, que homem mais sem coração!— Eu convidei Sally para vir aqui? Responda imediatamente.— Cuidado. Eles já devem estar voltando.— Parece que você vai desatar a chorar! Há duas semanas que está

assim.— Acha? — revidou ela, no mesmo tom baixo, já brigando.— Calma, Giannina, calma! — aconselhou ele. — Foi um dia difícil.— Ora, eu achei que estava se divertindo, Sally é muito atraente e

simpática.— Como milhares de outras mulheres. Só não quero saber delas aqui. A

fazenda era um lugar calmo e gostoso. Agora não estou agüentando. Vou até o lago Fronte ver como Jock está. Vou já. Quer ir? Quero conversar com você. Parece que não conversamos há anos.

— Sally vai ficar desapontada! — hesitou ela.— E eu não vou mudar de idéia por isso.— E Dave?— Fica aqui com Sally, apesar de ser uma pena separar vocês dois. Ela

toma conta das crianças por uma hora ou duas. Para variar.— Eu prometi que os levaria até as grutas.— Sally sabe o caminho — disse Ingo. — Mas não vai querer levar.— Já ouviu dizer que gosto de fazer o que quero? — perguntou tenso.— Sei que é muito mandão isso sim.— Vem ou não vem? — perguntou ele, com os olhos brilhantes no rosto

dela.— Vou.

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— Por que o sussurro?— Eu me sinto assim, com vontade de falar baixo.— Anda bem nervosa, ultimamente. Não sei se quero bater em você ou

fazer um amor violento. — A tensão dele foi embora, como por milagre. Pôs a mão no ombro dela, acariciando seu pescoço com as pontas dos dedos. — Sabe, invejo um pouco seu amigo.

— E ele está ocupadíssimo, invejando você.— Ninguém quereria meu emprego. Trabalho vinte e quatro horas por dia,

com montes de decisões difíceis a tomar. Sinto-me enjoado, cansado. Só quero dar uma olhada em Jock,

— Vai lhe dizer aonde vamos?— Por que não? Acho que posso tê-la na minha companhia de vez em

quando.— Ultimamente não parecia me querer.— Mas quero. Só não faço propaganda, como seu amigo.— Ora, sou bem importante para ele. Quer casar comigo.— Quanta bondade dele! — A mão esgueirou-se até sua nuca e fez com

que ela virasse a cabeça. — Pena que vai receber um inevitável não!— Tem certeza?— Você é que deve ter certeza.— Está me machucando — queixou-se ela.— Não o bastante. Queria que você chorasse!Ela deu uma risadinha, piscando muito, com aqueles cílios compridos.— E eu não sei?— Cuidado, eles estão voltando.Sally vinha com o lírio na mão, falando alguma coisa engraçada, pois ele

ria um riso satisfeito e espontâneo. Sally os olhou e assoprou um beijo.— Gosto de seu namorado, Genny! Quando é que vamos fazer a festa?— Infelizmente, eles são apenas bons amigos — disse Ingo, displicente.— É o que você acha — brincou Sally, com uma pequena reprimenda

estampada no rosto. — Não sei como Genny tolera você, como anjo da guarda dela.

— Não tem muita escolha.— Estou começando a acreditar — respondeu Sally, séria. — Sabe, você é

quase um tirano com ela. Como é que costumava chamá-lo, Gen?— Negro Ingo. Ainda chamo.— Com motivos. Vocês são dois primos muito complicados.— Mas gostamos um do outro — disse Ingo, suavemente. — Vou levar

Genny até o lago Frome, hoje à tarde. Será que poderiam ficar como babás por umas duas horas?

— Mas é claro! — respondeu Dave, rapidamente, ansioso para agradar.— Você podia vir conosco, se quisesse, Dave — disse Ingo —, mas não

vamos ficar muito tempo. Genny prometeu mostrar as grutas às crianças e você podia acompanhar Sally nesta aventura. Ela sabe o caminho!

— Eu não estou muito contente com o arranjo! — anunciou Sally. — Sem ofensa, Dave!

— Pode falar, esteja à vontade — disse ele, divertindo-se com o embaraço dela.

— Não estou mesmo — sorriu ela de volta, gostando da esportividade dele. — Tudo bem, Ingo Faulkner, você sempre faz o que quer. Dave e eu vamos ficar bonzinhos e fazer o que mandar patrão!

— Podem até se divertir — comentou ele.

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— Pois eu já estou até bem interessado! — disse Dave.Sally, mesmo em seus melhores dias, não chegava nem perto de Genny,

mas ele gostava daquele cabelo louro e da pele de pêssego. Não ia se sentir sozinho, absolutamente.

As crianças voltaram e aceitaram a mudança de planos sem perguntas, pulando como diabinhos quando Ingo disse que voltariam a cavalo, Sarah com ele e Sean com Sally, que era ótima amazona. Genny e Dave voltaram de jipe.

Genny sabia que cada minuto com Ingo trazia complicações, mas uma leve excitação a tomava. Seria bom compartilhar algumas horas com ele, tão bom. Dave ficou pensando na luz que a iluminava por dentro, substituindo a melancolia. Estava animada, agora, e ele não era tão cego a ponto de não ver qual era a causa.

Quando se encontraram outra vez para jantar, Genny parecia milagrosamente feliz. Sally, ótima cozinheira, tinha insistido em preparar a comida. Apesar de ser uma mulher charmosa e muito viajada, ela ardia, por dentro, para ter uma vida plácida e doméstica, e era perfeitamente capaz de dirigir uma grande fazenda.

Os pratos se sucediam, cada um mais gostoso que o outro, elogiadíssimos, e Sally não se mostrava nada modesta a respeito de suas habilidades. A conversa fluiu animada durante todo o jantar, com ótimos vinhos para acompanhar. Dave estava convencido de que tratava com pessoas que não viviam como mortais comuns, e no momento a vida dele estava deliciosa.

Olhava Genny com uma devoradora admiração. Ela usava um vestido da cor da hortênsia, de um azul tendendo para o violeta, leve, solto, mostrando os braços e o começo da curva dos seios. Os grandes olhos escuros tinham um toque do mesmo azul nas pálpebras, e os cabelos sedosos formavam uma auréola brilhante no rosto corado. Dave estava com dificuldade em controlar suas emoções, sem perceber quanto estava deixando transparecer. Genny tinha uma beleza tão viva, tão cheia de graça, que ele seria uma pedra, se não soubesse apreciar aquilo tudo.

Disciplinada e linda, Sally também brilhava, saudável, a figura alta aparecendo melhor sob um vestido de jérsei justo, mas Genny ganhava de todo mundo. Dave queria estar longe dali, sozinho com ela, de preferência num oásis do deserto.

Faulkner também mudara um pouco. Estava sentado à cabeceira da mesa, intensamente vigoroso. Havia uma segurança arrogante, naquele homem, que Dave gostaria de ter. Dave só sabia que estava feliz por não ter que competir com Faulkner pela mão de Genny. Seria como ter que lutar com um leão.

Ninguém conseguia sair da mesa, discutindo vários assuntos, sérios, frívolos. Até tia Evelyn ria com freqüência, para espanto de Dave. Tinha chegado à conclusão de que era uma senhora inatingível, como uma grande duquesa russa, com aquela voz educada que o fazia prestar mais atenção a seu sotaque. Nessa ocasião, ela estava até bonita, engraçada, de um jeito antigo. Genny gostava dela e ele tinha que prestar atenção a isso. Havia tanto a aprender que estava começando a perder o pé, como um novo embaixador na corte que não soubesse se ia ser aceito ou ser jogado pela janela.

Dan, que na verdade concordava com a opinião de Dave sobre a Sra. Faulkner, tentava explicar um pouco da política americana para ela, concordando em que o mundo devia demais à Inglaterra, por muita coisa. Tia Evelyn representava a excentricidade, a força e a segurança dos ingleses. Dan olhou para Felicity como se tivessem combinado alguma coisa. Felicity sorriu para ele, fez um movimento com a mão, indicando que queria silêncio, e cortou

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os exemplos que tia Evelyn dava do heroísmo britânico e de outras qualidades excelsas dos ingleses, corada como uma rosa.

— Dan e eu temos algo importante a contar para vocês! — disse em sua vozinha doce, sobre a mesa. — Resolvemos casar!

Dave reagiu diplomaticamente, murmurando algumas palavras da congratulação, no exato momento em que Genny, que sempre tomava tanto cuidado com tudo o que era de Tandarro, deixou cair a taça de cristal, que se arrebentou contra o centro de mesa, fazendo com que Faulkner se levantasse.

— Não mexa nos cacos, Genny.Ela pareceu não escutá-lo, tentando juntar os pedaços, automaticamente.

O sangue jorrou de seu dedo, e ela puxou a mão, abrigando-a como se fosse um passarinho doente.

— Já falei para não mexer! Sally dá um jeito. Toque a campainha para mim, Sally. — Enquanto falava, amarrou um lenço na mão de Genny, puxando-a da cadeira. — Só um minutinho, por favor. Nós não demoramos e vocês contam tudo, Flick. Parece que Genny se machucou um pouco.

— Quem é o médico nesta casa, afinal de contas? — perguntou Sally, virando-se para tocar a campainha.

— Qualquer um sabe mexer com um band aid! — disse Ingo, como se ela realmente não precisasse de uma resposta.

— Não sei por que não nos deu uma dica antes, Flick.— Queria fazer uma surpresa! — disse Felicity com os olhos azuis cheios

de preocupação e confusão.— Espero, francamente, que fiquem todos felizes — disse Dan, como uma

criança, sem querer que estragassem sua alegria.— Claro que estamos felizes! — informou Ingo. — Estamos de seu lado,

Dan. Você pode ajudar muito Flick. Meus sinceros parabéns aos dois e meus melhores votos de felicidade. E que tal pedir uma garrafa de champanhe? Duas! Das melhores!

— Ótima idéia! —disse Sally, alegre, sem se importar ao mínimo se Felicity ia se casar ou não. — Posso ir pegar Ingo? Sei me mexer naquela adega escura. Pode vir também, Dave, no caso de haver uma aranha ou duas. Não viu a adega ainda, não é?

— Ainda não! — murmurou Dave, enciumado por Genny estar com o primo, mas sem força para separá-los.

— Então vai adorar! — disse Sally, tomando-o pela mão. — Tem um melhor estoque do que muitos pubs ingleses.

— O que foi que ela disse? — perguntou tia Evelyn, gelada. Ninguém respondeu e Ingo foi indo com Genny em direção à porta.

— Agüente a conversa aí, Ev, como uma boa anfitriã. Que tal começar com a invasão romana e chegar até 1066? Voltamos, já, já! — No hall de entrada ele se zangou com Genny.

— Não vá desmaiar aqui comigo!— Não vou desmaiar! — disse ela, num sussurro feroz.— Espero que não. Foi um cortezinho à-toa!— E eu estou me queixando? — perguntou ela.— Não, mas ficou lívida.— Por causa do susto.— Você já sabia que ia acontecer só que foi fora de hora. Flick sempre foi

desajeitada.— Não quero nem conversar sobre isso!— É óbvio! — Ingo parou na porta da enfermaria e acendeu a luz.

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— Claro você não se importa! — disse Genny, entrando e apoiando-se na mesa.

— Tem toda razão. Por mim, eu poria Flick num foguete para Marte.— É que ela já cansou você também. Tem que me perdoar por estar me

sentindo mal. Eu adoro minha mãe, é a única que tenho. Não quero que voe para o outro lado do mundo, quanto mais para Marte!

— Venha até a pia! — disse ele, ignorando seu rosto trágico. — Alegria, criança, eu posso até deixar você visitá-la de vez em quando.

Ela estendeu a mão para ele, estremecendo.— Nada vai continuar igual. Tudo vai mudar!— Sinceramente, espero que não. O passado não foi uma festa. Pronto!

Fique com a mão longe do vestido. Não quero vê-lo estragado e acho que Dave também não. Estava devorando você com os olhos na última meia hora. Fiquei de dentes cerrados. Tive vontade de dizer qual era minha posição, mas me segurei.

— E qual é? — perguntou ela, fazendo uma careta, enquanto ele passava o esparadrapo em seu dedo.

— Ora, dizer que sou seu primo bárbaro e selvagem e que não permito nem que converse com outro homem.

— Só lamento que ele não seja maior do que você — disse ela.— Gostaria de me ver levar um soco no nariz? Pois não vai acontecer.— Eu sei — concordou Genny. — Dave também não ia querer atacá-lo.

Sally, já não garanto. Ah, meu Deus, o que vou fazer? Acho que não posso voltar para aquela mesa de jantar.

— Pode, sim — disse ele, desafiando-a com o olhar. — Pode não se sentir muito bem, mas agüenta. Não agüenta, Giannina? — Virou o rosto dela para ele, observando-a.

Ela baixou as pálpebras.— Não agüento, não. Quero chorar e chorar, toda encolhida.— Estou com você.— É bom saber. — Encostou o rosto no peito dele e sentiu os braços

envolvendo sua cintura. — Não agüento mesmo!— Então vá embora com ela!— Estou cansada de morar com os maridos de minha mãe! — gemeu.— Talvez você dormisse melhor com um marido só seu!— Vai demorar anos, ainda!— Quer apostar?Ela nem ligou para a brincadeira dele e virou a cabeça, em seu peito.— Fique me segurando, assim. Às vezes, você me assusta tanto que tenho

medo, e às vezes é o ponto onde me sinto mais segura.— Ora, ora. — Ele riu junto de seu cabelo, e ela sentiu o hálito quente. —

Não deve ter sido fácil, para você, admitir isso!Ela concordou.— É, os sustos soltam a língua!— Pois soltam! Especialmente a de meninas como você. Não podemos

ficar aqui, Giannina. Flick quer nos contar o resto de seus planos. Com certeza, uma cerimônia civil no jardim, ao pôr-do-sol. O que seria mais romântico do que isso?

— Ah, cale a boca!— Deixe-me olhar seu rosto para ver se está corada de novo. Ela levantou

a cabeça, sentindo-se fraca como uma doente.— Vai ser um sacrifício. Deus permita que ela esteja fazendo a coisa

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certa…Ingo grunhiu.— Se temos que falar em sacrifícios, tem sido difícil ver Dave fazendo

força para não tocar em você. Pensei que um médico teria mais controle.— Você achou? — Olhou-o espantada, pois tinha falado meio zangado.— Não avisei que era ciumento?— Não em relação a mim.— Para uma moça inteligente, você não é abençoada com as percepções

das mulheres mais velhas. Acho que você nem sabe o que é ser mulher. Todos os seus dons são naturais, caídos do céu, sem nenhum trabalho. Não tem a menor consciência de você, como se tivesse dez anos. Não sabe nem flertar. Sarah é mais sensual do que você!

— E por que isso deixa você zangado?— Quem está zangado? Vai me ver zangado, um dia. Bom, vamos indo.

Não sei por que começo essas conversas!Genny fez o possível, mas o resto da noite foi horrível e o champanhe não

adiantou nada. Parecia incrível que outro homem tivesse capturado o coração de Flick; pior ainda perceber que Flick estava preparada para deixá-la. Sentia-se como uma mãe cuja filha favorita tivesse acabado de anunciar que ia casar e morar na África. A sugestão de Ingo de uma cerimônia civil no jardim coincidiu com os desejos de Felicity. Ela e Dan queriam que fosse o mais depressa possível. Dan lhe assegurou que, daquele dia em diante, não precisava se preocupar com coisa nenhuma. A casa, a mobília, suas roupas podiam pegar fogo. Ele providenciaria tudo, comprando coisas novas.

Felicity não agüentava esperar para arranjar sua vida de novo em Rio Grande. Não era a primeira vez que Genny se magoava muito com o comportamento da mãe, mas achava que ela tinha o direito de viver sua própria vida. Mas, de repente, não agüentou mais, saiu da mesa sem pedir desculpas, sentindo-se burra e sentimental, perto da felicidade brilhante de Felicity.

Trancou a porta de seu quarto com cuidado, mas ninguém se lembrou dela, deixando-a curtir a dor sozinha.

Só de pensar no dia do casamento, seus olhos se encheram de lágrimas, e jogou-se na cama, dizendo de si para si que filhas e mães se, separavam todos os dias. Provavelmente, dentro de seis meses, Flick nem se lembraria mais dela.

CAPÍTULO VII

Genny não sabia as horas, só sabia que seu coração batia forte. Exaurida por uma tempestade de emoções conflitantes, conseguira cair no sono. Agora, parada, olhando o dossel florido sobre sua cabeça, resolveu procurar o relógio e se levantou. Havia um grande carrilhão no corredor e dois relógios de parede do século XIX em seu quarto, mas nenhum deles se importava muito com a precisão e todos seguiam seu próprio ritmo, sonhando com tempos e lugares distantes. Passava da meia-noite. Genny mal podia acreditar. Pôs o relógio de volta no lugar e começou a descer a fina alça do vestido. Deveria ter tirado a roupa, mas não sabia que ia cair no sono. Noite após noite, nas últimas semanas, sua cabeça era como um pião rodando desesperado, girando por

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todos os acontecimentos do dia e por coisas do passado que ficariam melhor esquecidas. Pelo menos, não havia deixado o candelabro aceso, só as figuras de bronze que o cercavam, aladas, homem e mulher, cada um segurando uma tocha elétrica brilhante. Raramente sofria de dores de cabeça, mas nessa noite estava com uma das fortes. Não tinha sido capaz de agüentar o tranco como o faria uma verdadeira Faulkner. Havia embaraçado a todos, uma vergonha! A todos, menos a Ingo, que era imune às emoções comuns a todo mundo. Só se irritava.

— Ah, meu Deus, tenho que tomar alguma coisa para esta maldita dor de cabeça — falou em voz alta.

Saiu para buscar um comprimido, pensando em Flick. Só lhe desejava uma vida inteira de felicidade, mas o sofrimento não queria ir embora.

Algumas arandelas davam ao longo corredor uma luz frouxa. Os homens e as mulheres Faulkner a observavam de suas molduras douradas. As luzes sempre ficavam acesas, quando havia hóspedes na casa que não conheciam bem o lugar dos interruptores. Genny foi se esgueirando como uma ladra calçada só de meias sem fazer barulho nenhum. Não queria e não suportava ver ninguém. Quase correu escada abaixo, encostada na parede, e parou, hesitando, em frente à biblioteca. Alguém estava andando por ali. Seu coração se apertou e ela voltou para a penumbra da escada. Não queria ver ninguém. Ninguém! Pôs as mãos no rosto e, quando as tirou, um braço apertava seu ombro.

— Sabe que pensei que era um fantasma? — disse Ingo, tão baixinho que quase não dava para escutar.

— Assustei você?— Não. É imperdoável, eu sei, mas não tenho medo nem de fantasmas. Já

é mais do que meia-noite e ainda está de vestido. Qual o problema?— A maior enxaqueca do mundo — confessou ela.— Não é de surpreender. Além das novidades, você bebeu mais do que de

costume. Não vamos acordar o resto da casa, pelo amor de Deus… Eu não suportaria ver todo mundo. Vá para o estúdio e eu levo lá alguns comprimidos.

— Deus o abençoe! — disse ela, andando em direção à sala iluminada.A porta estava aberta, a lâmpada iluminando os livros encapados de couro

nas prateleiras que iam até o teto. Era um lugar atraente e convidativo. Sempre tinha gostado de lá, daquelas grandes proporções reduzidas pelas cores masculinas e os móveis confortáveis. Foi até o sofá xadrez escuro e afundou nele, inclinando a cabeça para trás e fechando os olhos. Se Ingo não se importasse, podia ficar ali. Com a ajuda dos comprimidos, dormiria mais algumas horas. Estaria pronta para pedir desculpas, de manhã, por seu comportamento misterioso.

Ingo, voltando para a sala, olhou seu rosto pequeno e quieto.— Vamos, Genny, tome isto!Ela abriu os olhos e pegou os comprimidos da mão dele, deixando que

segurasse o copo.— Você achou que eu ia suportar com facilidade, que ia enfrentar a

barra…— Eu estava errado — admitiu ele.— Não adianta mais falar sobre o que já passou. Onde você andou? Mudou

de roupa?— Minha querida criança — disse ele cansado —, enquanto chorava até

não poder mais e dormia como uma criança exausta fui apagar um incêndio.— Onde? — perguntou atônita.

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— Num dos almoxarifados onde guardam as selas. Alguém se descuidou, mas amanhã vão ouvir.

— Mas não escutei nada! — disse incrédula. — Nem um barulhinho! Sinto muito!

— Por quê? O que teria feito? Apagado o fogo comigo?— Causou muito estrago?— Podia ter causado. Foi bom que Spook estivesse por lá.— Ele não dorme nunca? — perguntou ela.— Acho que não. Mas trabalha bem de dia, que é o que importa. Lembre-

me de comprar para ele um tabaco especial para seu cachimbo. Engula isso, em vez de ficar me olhando estatelada!

Genny pegou o copo de água, engoliu os comprimidos e relaxou, como se tivesse certeza de que a dor ia passar.

— Vou passar a noite aqui. Não se importa?— Não — murmurou ele.— Dan ficou chateado? — continuou ela.— Ficou. Para um homem de meia-idade, ele é ingênuo como uma criança.

É até comovente.— E Flick?— Flick acha que você tem direito a algumas lágrimas.— Você é um demônio sarcástico! Lembra-se de quando ela nos disse que

ia se casar com Hughie?— Lembro até que você jogou uma cadeira em cima deles!— Então acha que estou fazendo tempestade em copo d'água?— Acho que sim. Já tem muita experiência no assunto.— E bem na hora em que Evelyn tinha começado a contar uma história

comprida. Estraguei a noite de todo mundo.— Evelyn está do seu lado, como sempre esteve. Aliás, não é nem um

pouquinho romântica.— Como é que sabe? Ela tem um monte de cartas numa caixa de laça, no

quarto. Seriam cartas de amor? Você não sabe de tudo.— Acredite, mas são as cartas diárias de vovô quando ia para a Inglaterra.— Ah, não!— Ah, sim!— Pobre Evelyn! Não somos todas dominadas? — perguntou triste. — Olhe

só o retrato do tio Marc! — Passou os olhos pelo quadro grande do pai de Ingo.Ingo não virou a cabeça.— O que está tentando me dizer?— Alguma bobagem, com certeza. Você se parece demais com ele.

Impiedoso. Teimoso!— E quer me mudar?— Pelo menos em relação a uma coisa, mas já está zangado, ante de eu

falar!— Como sabe?— Pelos seus olhos. Fuzilam centelhas. Diga-me, como se separaram, hoje

à noite?— Muito bem! — disse ele. — Mais ou menos lá pelas dez horas. Dave

estava chateado por você não estar lá. Uma pena que não possa ficar para o casamento. Flick o convidou, mas são regras do hospital, sabe. Ele tem que voltar.

— Não quero falar sobre o assunto. — Genny pegou outra almofada e escondeu a cabeça nela, dobrando as pernas debaixo do corpo e se

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encolhendo no canto do sofá.— Então, vai ser uma luta. Evelyn também não quer falar no assunto e eu

não vou perder meu tempo precioso preparando uma cerimônia.— Eu disse para você parar!— A quem está dando ordens? — Ele sentou-se no sofá ao lado dela,

pesadamente. Como vai a dor de cabeça?— Está um pouco melhor, e não fale comigo como se estivesse zangado.— É, mas eu estou, e não tente provocar uma briga.— É muito tarde para isso — disse ela, virando a cabeça, com o cabelo

brilhante todo despenteado.— É mesmo. Venha aqui, Genny.— Para me dizer o que tenho que fazer? Não se preocupe, eu arranjo tudo.

Você está pagando, é claro. Pensando bem, até que Trish tinha razão.— Venha cá! — disse ele, levantando-a nos braços sem fazer força

nenhuma. — Acho que minha paciência está se acabando.— Como está se sentindo? — Violento.Ela levantou a cabeça e tocou no rosto de Ingo, traçando com os dedos a

curva de sua boca, as emoções intensas e à flor da pele, tão nuas que deviam brilhar em seus olhos. — A vida seria impossível, sem você, violento ou não.

— E intolerável comigo? Esta é a minha impressão.— Você é um homem muito duro!— Claro. — A boca bonita se contraiu. — Não preciso de ninguém. Só de

você.— Por que sou tão importante? — Falava suave e intensamente, e os olhos

escuros procuravam o rosto dele.— Você me prende com toda a força, Genny. Desde menina. Não devia ter

vindo, sabe? O resto do mundo parece tão longe de mim, neste momento.— O que quer de mim?— Quero que me ajude talvez mais do que possa. — Onde está o medo em

seus olhos? Não o vejo mais.— Não estou com medo — respondeu terna.— Pois deveria estar.Ela inclinou a cabeça sobre seu braço.— Me ame, Ingo, por favor. Quero que me ame.— Acho que não sabe a profundidade de meus sentimentos. Não posso

amá-la como quero sem possuí-la inteiramente!— Mas eu quero você! Eu não me importo.— Mas eu me importo, e muito.— Ah, Ingo, deixe-me ficar aqui! — Abaixou a cabeça dele, levantou a

boca, os olhos escuros ardentes e tão cheios de amor que ele não podia escapar. Beijou-a, faminto, incendiando mais o desejo louco dela. Genny rendeu-se ao prazer, sem vergonha e sem pensar nas conseqüências. Essas emoções profundas, esse louco desejo a completavam como mulher. Ela queria se entregar ao homem que amava e nem podia tentar negar-se a ele. ,

Luzes arrebentavam dentro de sua cabeça, luzes brilhantes, uma multiplicidade de sensações que fundiam os dois num só ser. Poderia ter sido tudo um sonho fantástico, só os desejos insistentes eram reais. Só queria que Ingo a possuísse. Procurara e esperara por isso durante toda a sua vida. Só queria ser de Ingo. Só queria isso no mundo.

O gemido agudo era seu, e o coração batia, solto. Mas por que Ingo parava? Não queria que ele parasse exatamente quando não agüentava mais.

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Era intolerável ir tão longe e não satisfazer o desejo que deixava os dois assim ofegantes, molhados de suor, transtornados.

Palavras sacudiram a cabeça de Genny. Uma voz…Do delírio, foi trazida para um presente confuso. Ingo ainda a segurava,

uma das mãos em sua cabeça, aninhando-a em seu peito, mas era tia Evelyn que falava, com o rosto fino e bonito extremamente perplexo.

— Eu bati, mas parece que ninguém escutou. O que está acontecendo aqui, Ingo? Vi a luz acesa.

— O que lhe parece, Evelyn? — perguntou Ingo, com sua arrogância habitual.

— No meu tempo, chamava-se de um caso de sedução.— Tenho que admitir que estava chegando perto. Que bom você ter

aparecido!— Genny! — A voz de tia Evelyn tremia.Genny não se mexeu, ainda tomada pela mais deliciosa sensação.— Não se preocupe, Ev — disse Ingo —, ela está bem, mesmo que você

tenha se decepcionado muito.— Querida criança, não quer subir comigo, agora?— Estou tentando lhe dizer, Ev, que ela está bem!— Ela não pode falar? — perguntou tia Evelyn, intercedendo por Genny.— Está tremendo tanto que acho que não pode. Genny é minha, Ev. Você

sabe disso!— Então insisto em que se case com ela! Genny sentiu o riso profundo

sacudindo-o internamente.— Eu posso amá-la acima de tudo, mas acha que devo me casar, Ev?Alguma coisa doeu no coração de Genny, como uma ferida causada por

algo afiado. Pôs a mão no cabelo embaraçado e Ingo olhou-a, sorrindo e arrumando a alça do vestido em seu ombro.

— Eu não me casaria com você mesmo que fosse o último homem do mundo! — disse furiosa.

— Achei, mesmo. E você sabe que gosto de colocar minha marca em tudo, Genny. Quem sabe muda o nome para Faulkner, e pronto? Ela tentou desvencilhar-se dele, que a segurou pelos pulsos. — Você é linda, Genny. Não posso olhar para outra mulher, no mundo, depois de você.

— Genny, querida — disse tia Evelyn, lá de longe. — Deixe que eu a leve de volta para o quarto. — Fico surpreendida por não ter defendido sua honra, querida.

— Não está escutando, Ev? Ela nunca a perdeu!— Você pare de rir! — zangou-se Genny, conseguindo soltar uma das

mãos e tentando bater nele.— Isso, menina! — disse ele, pegando sua mão e levando-a aos lábios. —

Sabia que não tinha se esquecido de como se briga.— Por que desceu, minha querida? — perguntou tia Evelyn, preocupada. —

Todo mundo achou que estava na cama. Ingo não deixou que eu fosse até lá!— Estava com dor de cabeça! — disse Genny, parecendo tão frágil e tão

exoticamente bonita, com aqueles enormes olhos escuros, que Ingo a carregou como se fosse uma criança. O rosto dele estava curiosamente vivo, sem pressões, despreocupado.

— Muito bem, Ev, já que se transformou em anjo da guarda, vá na frente e eu ponho Genny em sua caminha e ela tranca a porta atrás de mim.

— E é assim mesmo que deve ser! — zangou tia Evelyn. — Realmente, os vestidos que esta menina usa! Só podem dar nisso! — Devo apagar as luzes

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daqui?— Faça o favor.Evelyn virou-se e foi andando na frente, magra, empertigada como um

militar. Ingo pôs Genny na cama.— Durma bem, querida! Você me ama, saiba disso!— Não me faça lembrar!— Nunca vou deixar que se esqueça. Se não fosse a velha Evelyn, já seria

minha.— E vai me acusar disso para o resto da vida?— Não se esqueça de que eu não a larguei. Foi Ev que atrapalhou tudo.

Não tem importância, anjo. Um dia desses consigo você inteirinha para mim, sem ninguém para salvá-la. Minha para sempre!

— Contanto que não tenha que se casar comigo? — perguntou ela.— Se pensarmos em filhos, vamos ter que nos casar! — caçoou ele.— Vá embora! — disse ela, vermelha.— Se vocês dois realmente vão se dar boa-noite, acho que já vou indo —

disse tia Evelyn, com um estranho sorriso dispersando as nuvens pretas de seu rosto. — Estou me sentindo demais! Que noite atarefada!

— Não houve nada de tão ruim, Ev. Genny não nasceu para espectadora. É uma chama. De qualquer jeito, foi mútuo e muito forte e intenso. Acontece que você apareceu na hora certa. Eu quase não toquei nela e ela literalmente me enlouquece!

— Nesse caso, Ingo querido, se você vai fazer as coisas direito, não ofereça a ela nada menos do que casamento. Sei o que sente por Genny. Eu sempre soube.

Genny sentou-se na cama, e a luz suave acentuava o escuro de seus olhos; o vestido azul clareava sua pele e seu cabelo.

— Não aceito ser tratada como uma débil mental. Sempre achei que Ingo se comportava comigo como um demônio.

Tia Evelyn sorriu.— Ora, querida, os demônios passam a vida mimando menininhas? Acho

que ele tem sido muito tolerante, por agüentar você, com suas má-criações, por tanto tempo.

— Obrigado, Ev! — disse Ingo, displicente. — Deus sabe que você é a única que me defende.

— Eu gosto de você, esse é o motivo, e Genny também. Faça a minha vontade e corte esse boa-noite para cinco minutos. Posso dormir melhor, agora. Vai ter que me ajudar, Genny, com todos esses preparativos de casamento. Felicity não serve para nada e jamais conseguirá se casar sem nós duas.

— Boa noite, tia Evelyn — disse Genny, agradecida.— Boa noite, minha querida. Tirou um grande peso das minhas costas! —

Na porta, virou-se e sorriu para o sobrinho. — Sabe Ingo, acho que é preciso lhe dizer como precisa ser amado por alguém como Genny!

— Mas ela me ama? — perguntou ele.— Pelo que eu vi, parece que sim. Fico surpresa por perguntar. Boa noite!Depois que ela se foi, Ingo sorriu.— Bom, é melhor eu me juntar a você ou ir embora! Ela desviou o rosto.— Acho que devia fazer o que tia Evelyn mandou.— Não vejo o porquê! — Seu olhar brilhante percorreu o corpo esguio dela,

trouxe-a até ele, sem fazer um movimento.Ela exclamou confusa:

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— Você nunca diz exatamente o que quer dizer, não é?— Vou lhe dizer uma coisa: não agüento mais. — Abaixou-se e lhe deu um

rápido beijo na boca. — Durma bem. Eu não vou conseguir dormir.— Eu amo você — disse ela, quando ele se afastou. — É a verdade. Eu

adoro você.Ele sorriu.— Pensa que não sei?— Quero ouvir você dizer que me ama também!— Meu bem, já é hora de você ir dormir. — Foi até a porta e, quando se

virou, não dava para ler a expressão em seu rosto. — Cuidado com Flick, amanhã. Ela não agüenta uma conversa muito séria. Acho que vai sossegar com Dan, porque vai ser difícil não obedecer a ele. Ele não é exatamente quem ela pensa. De fato, quando toda a euforia ceder, Flick vai ver que se casou com um homem de verdade.

— Posso convidar Trish e Ian? — perguntou Genny.— Se quiser, não tenho objeções. Trish pode ter aprendido a lição. Duvido,

mas, pelo menos, garanto que vai se comportar.— Eu desconfio que ela nunca vai gostar de mim! — disse Genny, olhando

o dossel florido da cama.— Então você terá que entender.— Não estou preocupada com Trish, e sim com você. Talvez Ev tenha me

salvado mesmo!— Conte-me sobre isso numa noite escura! — revidou ele, sorrindo com

charme.— Sabe Ingo — disse ela, corando sob o olhar penetrante —, você não

passa de um vilão, não pense que eu não sei a diferença entre amor e paixão.— Não se pode ter um sem o outro.— E não pode me possuir sem casar comigo!— Por que é que não posso? — perguntou ele, com os olhos brilhantes.— Prefiro morrer. Você se importaria? Ele parou de rir.— Sua boba, você está magoada. Até o fundo do coração. Tão séria, nessa

cama imensa, que é difícil não dar uma resposta idiota. É claro que vou me casar e, quando eu puder, aviso.

— Mande-me um telegrama! — retrucou ela. — Vou embora assim que Flick casar.

— Boa idéia. Vai ser uma luta para eu me conservar longe de você!— Se eu fosse mais velha…— Eu poderia conversar seriamente com você — atalhou ele. Do jeito que

vai, só falamos bobagens.Ela saiu da cama, de repente, tomada por uma força incontrolável.— Não vá!Ele se virou, com os olhos prateados brilhando no rosto forte e moreno.— Vê por que não posso me conduzir por sua cabeça? Ela ficou lá, em pé,

com os olhos fixos nele.— O que está acontecendo comigo?— É fácil, mas não posso ajudá-la em nada, no momento. Vá para a cama,

anjo, parece morta de cansada.— Eu nunca quis me sentir assim! — Pôs as mãos nas têmporas, tremendo

e consciente da presença dele, tomada, de angústia.— É melhor fazer o que digo — falou ele, tão hesitante que ela achou

melhor sair de sua própria crise.— Boa noite, Ingo! — disse ela, como uma menina cansada e obediente.

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— É tudo muito cruel, mas necessário, criança!A breve cerimônia acabou. Dan e Flick eram marido e mulher. Os

convidados começaram a se divertir, passeando pela casa e pelos jardins magníficos. Estavam vestidos a rigor e, como havia sido solicitado no convite, todas as mulheres usavam flores nos cabelos, de modo que o jardim parecia um renascimento da primavera, com vestidos de todas as cores, de fazendas leves, de verão.

Depois de um ano difícil e complicado em seu escritório, Ian decidiu que não podia perder aquele casamento por nada deste mundo. O desfile de beleza e de conversas se insinuava por todos os cantos daquela atmosfera única que era Tandarro. Ele esvaziou o primeiro copo e o prazer o envolveu, acalmando seus sentidos.

Flick andava de cá para lá, entre os hóspedes, ainda no vestido de chiffon azul-céu, com um grande chapéu coroado de rosas. O novo marido, Dan Howell, sobreviveu à cerimônia e agora ria contente, aceitando os parabéns e os tapas nas costas.

Um homem simpático e bonitão pensou Ian, que certamente dará a Felicity felicidade e segurança. Esperava por isso sinceramente, pois sempre gostara da mãe de Genny. Era uma mulher linda, sem idade.

As crianças, de roupa nova, começavam a brincar e a correr pelo jardim, e Trish foi atrás delas. Ele e a mulher tinham chegado um dia antes, de táxi aéreo, e os primeiros momentos críticos já haviam passado. Quando Trish parasse de ter ciúmes de Genny e de falar mal dela no ouvido dele, ia se sentir muito mais feliz. Sempre achara Genny um espetáculo e talvez o seu tipo de beleza não a ajudasse a ser amiga de outras mulheres. Ian, que só via problemas em sua profissão, entendia muito de ciúme e de seus efeitos desastrosos. Seguiu a mulher com os olhos, com uma mistura de censura e aprovação. Estava bonita, naquele vestido de cintura baixa e babados na saia, o cabelo preto muito bem penteado, com flores douradas caindo por ele. Parecia calma, relaxada, e há semanas não a via assim.

Sem querer, Ian pensou na sogra. Pobre Marianne! Morria um pouquinho a cada dia, consumida pela vontade de fazer as pazes com o filho. Aquela história toda era uma tragédia que Ian já vira se repetir muitas vezes, nos casos de divórcio. Ele enxergava os dois lados, o de Marianne e o de Ingo, que ele admirava tremendamente. Só havia uma pessoa que podia mudar a cabeça de Ingo, e Ian resolveu, ali, naquela hora, que não ouviria mais uma palavra de crítica sobre ela. Até Trish tinha admitido que provavelmente fora Genny quem convencera Ingo a deixá-la vir, e Ian estava grato. Tandarro era um milagre, uma volta aos antigos dias românticos da colônia, com aquela casa imperial e os imensos jardins. Um lugar irresistível ao qual ele se rendia apaixonado, cada vez que o via.

O sol brilhante já sumia, colorindo sensualmente os rostos e as roupas de todos. Logo o feliz casal sairia para a primeira etapa de viagem até os Estados Unidos, parando, à noite, em Adelaide, antes do vôo do dia seguinte. Era o quarto casamento de Flick, mas por seu ar de felicidade parecia o primeiro. Várias mulheres choraram, incluindo Trish, para surpresa de Ian. Genny, belíssima num vestido branco de seda, com uma rosa branca atrás da orelha, tentava bravamente não mostrar sua ansiedade.

Sua beleza parecia enfatizada pelo coração partido. Como Flick, que ganhou de Ingo um colar de pérolas, ela também usava algumas jóias dos Faulkner, cochichou Trish no ouvido de Ian. O colar e os brincos de diamantes e esmeraldas parte de um conjunto de quatro peças, pertenceram à bisavó

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deles. Se ele não acreditasse, podia ir olhar o grande retrato do corredor, disse ela, mas Ian não achou necessário. Na verdade, conhecia o retrato e o colar. Ficava muito bem em Genny, brilhando contra sua pele bronzeada. Trish, com seu ciúme doentio, esqueceu que Ingo lhe dera várias peças de jóias da família, quando casara. Ela quase nunca as usava, mas eram dela e não tinha por que se queixar. Ingo a seu modo, tinha sido muito bom com a mãe e a irmã. Agora, daí a Marianne imaginar que conseguiria seu perdão, era o mesmo que tentar atingir a Lua de balão. De todo jeito, Ian havia contado a Trish, no quarto, que, ao primeiro sinal de uma birra dela, levaria todos para casa e acabaria com as férias. Parece que o efeito sobre ela foi benéfico, até que viu as esmeraldas em Genny. Afinal de contas, Genny não ia casar, sussurrou baixinho, e Ingo a estragava com mimos.

Quando Felicity desceu, vestida para ir embora, o rosto corado e jovem, jogou o buquê com mira certeira. Genny, desequilibrada, não tomou nenhuma iniciativa, e foi Ingo, que estava atrás dela, que pegou o buquê e o colocou em sua mão.

Todo mundo riu e bateu palmas, e fez os comentários de praxe; todo mundo menos Genny, que estava linda e distante, os enormes olhos pretos olhando tudo sem ver nada. A vista de todos, Ingo fez um carinho em sua nuca, melhorando sua tensão, sem ligar para o que as pessoas pudessem pensar sobre o relacionamento entre ele e sua jovem prima.

Só Ingo era capaz de fazer Genny segurar o choro. Ela se apoiou nele para agüentar os últimos momentos difíceis. Mas foi Felicity quem começou a chorar. Seu novo marido consolou-a e se despediu, dizendo a todos que seriam bem-vindos a qualquer hora.

Ingo e Genny acompanharam os recém-casados até a pista do avião. Ingo providenciou para que nada demorasse, evitando cenas de tristeza entre mãe e filha. Genny, ele percebia, estava exausta aparentemente convencida de que a mãe ia sumir da sua vida. Não era o que ele achava, acostumado com Flick, mas não disse nada; estava até convencido de que Felicity ia ter um futuro mais comedido. Estava preocupado com Genny. Logo sua coragem se acabaria.

O piloto esperava na pista, sorrindo calorosamente, com os olhos brilhantes, ao lado do avião de seis lugares do serviço de táxi aéreo. Genny e Flick se abraçaram sem coragem de dizer nada, com receio de chorar. Ingo virou-se para Dan, cumprimentou-o, afastou Genny da mãe, levantou o rosto de Felicity com um gesto elegante e beijou sua boca, de leve.

— Cuide-se, Flick! Não se preocupe com Genny! Está comigo!— Eu sei querido! — Flick disse displicente como sempre, mas de repente

parou, franzindo a testa ao ver sua expressão. — Escute querido, o que quer dizer?

— Hora de ir embora! — disse Dan, possessivo, pegando a mulher pelo cotovelo e dando uma beijoca no rosto de Genny. — Vamos ter muito tempo para estarmos juntos. Não fique triste, menina vou cuidar de sua mãe.

Genny tentou sorrir, com os lindos olhos afogados em lágrimas, mas o som dos motores não os deixava escutar nada. Ingo a puxou para trás, enquanto Felicity e Dan entravam pista adentro, subiam na cabine e fechavam a porta. Mais um momento e reapareceram na janela, olhando para eles. O piloto acenou com a mão e o avião tomou velocidade, os dois motores começando a espalhar poeira.

— Agora sou órfã mesmo — disse Genny, atordoada. — Não quero ver levantar vôo. Parece que foi ontem que Flick falou sobre um novo caso de amor

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e agora está casada, voando para uma nova vida. É uma loucura e eu a perdi.— Quieta, quieta! — Ingo pôs as mãos nos ombros dela, que se

aconchegou junto dele como uma criança triste, vendo o avião subir na tarde cor de malva, transformando-se rapidamente num pontinho preto. — Pronto! — disse zonza.

— Minha pobre Giannina! — Ingo virou-se e passou os braços à sua volta. — Vai ver Flick outra vez a qualquer hora que quiser, são poucas horas de avião…

— Acha que ela vai ser feliz? Agüentarei melhor, se acreditar nisso.— Querida, não acha que Dan vai amarrá-la com uma corda, não é? É

exatamente o que Flick queria. Você a viu. Estava maravilhosa. Nada de arrependimentos, a não ser por deixar você. — Ele hesitou. — Você podia ter ido com ela, sabe disso. Dan tentou falar comigo, sobre o assunto, mas eu o evitei de todo jeito, o que não foi muito educado. Flick está feliz, muito feliz, e Dan também.

Genny concordou:— É. É preciso experimentar, às vezes. A quarta experiência dela!— Mas não pense que você vai experimentar mais do que uma vez. Aliás,

tenho uma coisinha para você.— Já não me deu o suficiente? — disse triste. — Nem posso usar estas

jóias fabulosas…— Por que não? Ficam ainda mais lindas, em sua pele. Além de tudo, as

jóias estão na moda, outra vez, pelo menos é o que me dizem. Dê-me sua mão.Tirou do bolso o grande anel de esmeralda, parte do conjunto que ela

estava usando. Resplandecia, em verde-escuro, contra a pele morena de sua mão. Ela olhou, quase sem compreender, aquela gema rodeada de diamantes que luziam azulados.

— É hora de parar de fazer graça, Ingo!— Nunca fui tão sério em minha vida toda, apesar de ter que admitir nossa

velha inimizade. E sabe o quanto ele vale? É praticamente sagrado. O broche virá depois, vamos ficar só com o anel, agora. É minha marca. Queria colocá-lo aqui há muito tempo. Ora, Genny, você não está me encorajando nem um pouco! — Enquanto falava, Ingo punha o anel em seu dedo.

Ela piscou.— Não estou entendendo. O que fiz para merecê-lo?— Não fez nada. Considere-se de sorte por eu estar tão apaixonado por

você.— Mas eu não posso lhe dar nada em troca.— Quer me dar?— Quero. Tudo. Quero mimá-lo completamente.— Que alívio! — disse ele, com os olhos marotos. — Não descobriu que

não posso ficar sem você nem um minuto?— Acho que é o contrário. Eu é que…— Temos o resto da vida para provar isso. Preciso demais de você e juro

que jamais escapará de mim. E é só o começo…Genny sacudiu a cabeça, percebendo que ele estava falando sério.— Você quer me deixar? Não vou dizer que deixo, mas mesmo assim, faço

a pergunta.— Não, nunca! — disse ela, encostando a cabeça nele. — Por que acha

que lutei contra você durante esses anos todos?— Era muito menina para qualquer outra coisa. Já é uma razão suficiente!

— disse ele, com a mão em seus cabelos macios. — Eu tinha que entender mal

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seus sentimentos. Sempre soube quais eram os meus!— E por que não falou com Flick?— Vai desconfiar quando estiver no Pacífico Sul, mais ou menos —

assegurou ele.— Diga que me ama! — disse ela, com ardor. — Quero escutar de sua

boca.— Como é bom poder dizer isso! — riu ele. — Eu amo você, Genny.

Sempre amei e sempre vou amar, porque sou assim, completamente fiel.— Então posso lhe pedir uma coisa? — perguntou ela, rouca, olhando seu

rosto moreno. — Um dia, não agora, mas no futuro, por favor, faça as pazes com sua mãe. Acho que ela já sofreu o suficiente. Por favor, Ingo, por mim. Eu prometo que amarei tanto você que haverá amor para todos os lados, amor de sobra. Por favor, diga que sim!

Ele desviou a cabeça, resistindo, os olhos bonitos muito duros.— Está pedindo muito, Giannina.— Um dia, já amou sua mãe!— E daí?— Não pode deixar que ela passe o resto da vida no purgatório.— Acha que é isso que está acontecendo? — desafiou ele levantando a

cabeça imperiosa de um jeito que ela conhecia muito bem.— Sou mulher e amo você, também. Sei exatamente como sua mãe se

sente.— É melhor que me conte, então.— Por favor, meu amor, por favor!Ele a tomou nos braços e beijou-a como se não pudesse parar, um pouco

cruel, machucando sua boca macia, só desistindo quando ela já estava exausta de tanta doçura.

— Talvez no primeiro batizado — disse ele, secamente.— É uma promessa e vai ter que cumpri-la — disse ela, respirando

ofegante, corada.— Mas vai demorar muito — replicou ele imediatamente. — Quero você só

para mim. Nunca vou ter o bastante e não quero perder muito tempo. É impossível tê-la tão junto de mim de dia, sem tê-la comigo à noite também. Quero você sempre em casa, quando eu voltar. Quero que me ame como eu a amo!

— E por que não começa já? — perguntou ela, com a boca muito terna e doce. — Uma mulher é uma grande responsabilidade!

— Acho que vou me sair bem.— Então que seja logo! — sussurrou ela. — Estou perdida de tanto querer

você!Ele inclinou a cabeça, sua expressão espelhando a paixão que sentia por

ela, encontrando-lhe a boca com uma brutalidade refinada que parecia tão natural a ela. Genny encostou-se nele, tranqüilizando-o até sentir sua completa rendição. Ele a acariciava com uma ternura febril e perguntou, quase sem parar de beijá-la:

— Sinto muito, querida, será que a estou machucando?— Não! — sorriu ela.— É a fome que sinto por você. Como eu te amo!— Eu sei. E eu sempre me dirigi para um só objetivo: você. — Olhou o céu

que escurecia. — É melhor irmos para casa.— Exatamente. Para casa! — disse ele, com um sorriso possessivo,

abraçando-a pelos ombros e levando-a para o carro.

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