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  • 159RBLA, Belo Horizonte, v. 10, n. 1, p. 159-177, 2010

    Vestibular da Unicamp: uma propostadialgica de redao

    Unicamp college entrance exame: a dialogicproposal for composition

    Lucas Vincio de Carvalho Maciel*UNICAMP

    RESUMO: Neste artigo, analiso uma dissertao do vestibular da Unicamp, apartir da concepo de dialogismo proposta pelos membros do Crculo deBakhtin. Procuro demonstrar como essa redao pode ser tomada como exemplodos aspectos dialgicos que regem a linguagem.PALAVRAS-CHAVE: dialogismo, gnero discursivo, Bakhtin, redao.

    ABSTRACT: In this paper, I analyze a Unicamp college entrance exam compositionby means of the notion of dialogism proposed by Bakhtins Circle members. Myaim is to show how this composition is able to point the language dialogic aspects.KEYWORDS: dialogism, discursive genre, Bakhtin, composition.

    Ser significa comunicar-se pelo dilogo.Quando termina o dilogo, tudo termina.

    (BAKHTIN, 1929/1963, p. 257.)

    Introduo

    Tendo como premissa a discusso sobre o dialogismo proposta pelosintegrantes do Crculo de Bakhtin, examino, neste artigo, uma redao dovestibular da Unicamp, que, espero, sirva como exemplo de uma enunciaodialgica.

    Primeiramente, procuro mostrar sucintamente como colocada aproblemtica do dialogismo no Crculo de Bakhtin, destacando a importnciado conceito de gnero do discurso para a compreenso desta questo. Issoporque nos elementos constituintes do gnero discursivo contedo

    * [email protected]

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    temtico, estrutura composicional e estilo possvel perceber o dialogismode maneira bastante clara, por meio de marcas que evidenciam o gnero comoum elo na comunicao humana.

    A partir, ento, de nosso entendimento do dialogismo, seguimosanalisando a redao do vestibular, procurando expor como essa redao umexemplo das relaes dialgicas estabelecidas entre os enunciados, na medidaem que o texto do vestibulando responde de maneira dialgica proposta daprova do vestibular e traz em sua concretizao vozes alheias.

    A ideia de dialogismo no Crculo de Bakhtin

    No incio do sculo 20, mais especificamente de 1919 a 1929,pensadores russos, entre os quais Mikhail Bakhtin, Valentin Voloshinov e PavelMedvedev, costumavam se reunir para debater questes filosficas, literriase lingusticas. A posteriori, a crtica adotou a denominao de Crculo deBakhtin para se referir a esse grupo, que nos deixou importante legado de suasdiscusses. A denominao, em que se destaca a figura de Bakhtin, justifica-se pela importncia de suas reflexes frente assembleia de amigos.

    Das diversas questes suscitadas no interior do Crculo, provavelmentea que mais provocou reflexes no campo dos estudos da linguagem, at mesmoporque conduz a uma nova forma de se enxergar os enunciados, aquela queversa sobre o dialogismo. Passemos a voz a Bakhtin (1929/1963, p. 42), paraque ele nos inicie nessa matria:

    As relaes dialgicas fenmeno bem mais amplo do que as relaesentre as rplicas do dilogo expresso composicionalmente so umfenmeno quase universal, que penetra toda a linguagem humana etodas as relaes e as manifestaes da vida humana, em suma, tudoque tem sentido e importncia.

    O dialogismo, fenmeno que penetra toda a linguagem humana, seriaa relao de dilogo entre os diversos enunciados. A exemplo de um dilogo,em que uma fala responde outra, um enunciado (um texto qualquer, umacarta, uma propaganda, etc.) sempre dialoga com outros enunciados, sejarespondendo aos enunciados precedentes, seja esperando as possveis respostasfuturas. como se cada enunciado fosse uma fala num dilogo: essa falaresponde a vozes anteriores e tambm poder ser respondida, posteriormente,por outras vozes.

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    Para entender melhor a ideia de resposta de um enunciado aosenunciados precedentes, precisamos ter claro que, ao enunciar, todo falantepressupe a existncia de enunciados antecedentes dos seus e alheios comos quais seu enunciado entra nessas ou naquelas relaes (baseia-se neles,polemiza com eles, simplesmente os pressupe j conhecidos do ouvinte)(BAKHTIN, [1952-1953], p. 272). Quando escrevo, por exemplo, aindaque implicitamente, necessariamente me reporto a enunciados precedentes comos quais concordo, discordo ou, enfim, suponho, de alguma forma, jconhecidos pelo leitor a quem me dirijo. Tambm, quando falo, sempreconsidero enunciados anteriores, pois nunca enuncio algo, radicalmente, novo.Como diria Bakhtin (op. cit., p. 272), o falante no o primeiro a ter violadoo eterno silncio do universo, ningum o mtico Ado, pronunciando apalavra pela primeira vez. Qualquer enunciado sempre retoma, de uma formaou de outra, enunciados anteriores.

    Qualquer texto sempre retoma palavras alheias. Isso, por exemplo, evidente nos textos acadmicos em que o enunciado est sempre perpassadopor vozes alheias. No caso do texto acadmico, essas vozes, em geral, aparecemnitidamente marcadas pelas citaes e referncias bibliogrficas. Entretanto,mesmo numa fala cotidiana, nosso enunciado est repleto de palavras alheias.At mesmo uma banal conversa acerca do aumento do preo do po na padariade nosso bairro est prenhe de enunciados precedentes. Podemos nos reportars notcias veiculadas em jornais televisivos, impressos ou digitais acercado aumento do preo da farinha. Tambm podemos nos reportar fala denosso vizinho que assegura que esse aumento vem do projeto do dono dapadaria de angariar dinheiro para uma futura reforma em seu estabelecimentocomercial, por exemplo. Em qualquer caso, estamos nos reportando a vozesque nos precedem.

    Alm de retomarmos vozes precedentes, quando enunciamos, tambmesperamos sempre uma resposta daquele (ou daqueles) a quem nos dirigimos.Ao enunciar, o sujeito no espera uma compreenso passiva, por assim dizer,que apenas duble o seu pensamento em voz alheia, mas uma resposta, umaconcordncia, uma participao, uma execuo, etc. (BAKHTIN, [1952-1953], p. 272). Falamos como falamos, pois sabemos que seremos (ou, pelomenos, pretendemos ser) compreendidos desta ou daquela forma. O enunciadotambm se constitui nas relaes dialgicas com os enunciados futuros quepoder suscitar.

    O dialogismo, portanto, a relao a exemplo de um dilogo queum enunciado mantm com outros enunciados, precedentes e futuros, que o

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    cercam. Retomando vozes precedentes e lanando-se a respostas futuras,concretizadas em outros enunciados. Desse modo, o dialogismo se mantmpela contnua retomada de um enunciado por outro.

    O gnero discursivo e os trs elementos constitutivos doenunciado

    Para os integrantes do Crculo de Bakhtin, o enunciado e seus elementosconstituintes s podem ser compreendidos de um modo mais amplo, quandose considera a complexa teia dialgica em que o enunciado se encontra. Oselementos do enunciado so abordados em obras de Voloshinov e deMedvedev, mas Bakhtin quem os estudar com mais profundidade. Segundoo intelectual russo (BAKHTIN, op. cit., p. 261-262):

    O emprego da lngua efetua-se em forma de enunciados (orais ouescritos) concretos e nicos, proferidos pelos integrantes desse oudaquele campo da atividade humana. Esses enunciados refletem ascondies especficas e as finalidades de cada referido campo no s porseu contedo (temtico) e pelo estilo da linguagem, (...) mas, acimade tudo, por sua construo composicional. Todos esses trs elementos o contedo temtico, o estilo, a construo composicional estoindissoluvelmente ligados no todo do enunciado e so igualmentedeterminados pela especificidade de um determinado campo dacomunicao. Evidentemente, cada enunciado particular individual,mas cada campo de utilizao da linguagem elabora seus tipos relativamenteestveis de enunciados, os quais denominamos gneros do discurso.

    Bakhtin, portanto, postula a existncia de trs elementos constitutivosdo enunciado: contedo temtico, construo composicional e estilo. Almdisso, destaca que os tipos relativamente estveis de enunciados sodenominados gneros do discurso. Se esses trs elementos constituem oenunciado e o enunciado deve ser tomado em suas relaes dialgicas, logo essestrs elementos tambm devem ser entendidos em suas relaes dialgicas. necessrio observar como cada constituinte do enunciado se comporta emrelao ao dialogismo que perpassa (necessria e inescapavelmente) todoenunciado. Precisamos compreender como o tema, a composio e o estilo seconstituem nas relaes dialgicas que permeiam os gneros. Ou seja, ver otema como o tema no dialogismo, a construo composicional como aconstruo composicional no dialogismo e, por fim, o estilo como estilo nodialogismo.

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    Dessa perspectiva, assumimos que o tema do enunciado sempre estligado a enunciados precedentes com os quais dialoga, pois, quando falamossobre algo, consideramos o que j foi dito sobre esse assunto. Segundo Bakhtin(1924-1993, p. 86):

    (...) todo o discurso concreto (enunciao) encontra aquele objeto parao qual est voltado sempre, por assim dizer, j desacreditado,contestado, avaliado, envolvido por uma nvoa escura ou, pelo contrrio,iluminado pelos discursos de outrem que j falaram sobre ele.

    Ou seja, quando discorremos sobre um tema, consideramos as diversasopinies (favorveis ou contrrias) que conhecemos a respeito dele, levamosem conta o que j foi dito sobre esse tema. Essas opinies no nos soindiferentes. Aquilo que lemos ou ouvimos acerca dele influencia nossa formade enunciar. O tema de nossa enunciao sempre est marcado pelos discursosde outrem que j falaram sobre ele. Quando algum fala ou escreve, estretomando ideias e pensamentos de outros (ou dele mesmo), est retomandovozes precedentes. Um texto ou um discurso, desde uma fala corriqueira ato anncio de uma descoberta cientfica, jamais indito no sentido maisradical do termo , ningum o primeiro a enunciar. Basta pensar, porexemplo, que mesmo no anncio da descoberta cientfica, o pesquisador sereporta a conceitos conhecidos pelos seus interlocutores.

    Alm da utilizao de vozes alheias na formulao de seu enunciadoprprio, todo falante realiza sua enunciao, aguardando as rplicas quesuscitar. Sua voz, que respondeu de algum, poder, agora, servir para asrespostas alheias, futuras. Mesmo numa situao cotidiana da vida, porexemplo, quando comentamos com nosso amigo a derrota de nosso time, noapenas lhe comunicamos esse fato. Esperamos sua resposta: desejamos quetambm nos acompanhe em nossa revolta contra a m arbitragem (a nosso ver),que compartilhe conosco o sentimento de desiluso frente ao ttulo perdido.No falamos por falar, falamos para sermos entendidos e aceitos; por issofalamos de determinado modo e no de outro. Mesmo nesse contexto digamos prosaico, importa-nos a opinio de nosso interlocutor acerca de ns,ou seja, acerca do que afirmamos. A avaliao de nosso interlocutor nos guiao tempo todo em nossa enunciao. O nosso enunciado se faz na expectativada rplica futura.

    Do mesmo modo que o tema, os aspectos composicionais s podemser compreendidos de uma maneira mais acurada se os entendemos nas relaes

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    dialgicas que os enunciados mantm entre si. Segundo Voloshinov, o temae a forma (...) esto indissoluvelmente ligados j que so as mesmas foras e asmesmas condies que do vida a ambos (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 1929,p. 47). Como esto unidos, incoerente acreditar que as condies enunciativasalcancem apenas o tema, sem igualmente se refletir na forma. Ao enunciar, osujeito retoma determinadas construes composicionais e espera respostas,que tambm viro sob determinadas formas de enunciado. O gnero semantm precisamente, porque, ao formular um novo enunciado, o falanterecorre s estruturas composicionais que conhece daquele gnero em quepretende concretizar sua enunciao. Alm disso, outro, no futuro, poderrecorrer a uma enunciao atual a fim de buscar nela bases para a composioestrutural de seu enunciado. A forma, como parte do enunciado, tem umpassado, um presente e um futuro que permitem a manuteno histrica dosgneros, pela retomada dialgica das estruturas de composio.

    Na passagem abaixo, Bakhtin (1929/1963, p. 106, grifo do autor)comenta o carter histrico dos gneros literrios, mas creio que possvelassumir que todos os gneros tm a sua historicidade:

    Por sua natureza mesma, o gnero literrio reflete as tendncias maisestveis, perenes da evoluo da literatura. O gnero sempre conservaos elementos imorredouros da archaica. (...) O gnero vive do presentemas sempre recorda seu passado, o seu comeo. o representante damemria criativa no processo de desenvolvimento literrio. precisamente por isto que tem a capacidade de assegurar a unidade ea continuidade desse desenvolvimento.

    Entre os elementos perenes do gnero, possvel supor que os aspectoscomposicionais tm grande peso, pois, conforme Bakhtin ([1952-1953],p. 261), os gneros so definidos acima de tudo, por sua construocomposicional. Caso no houvesse essa historicidade pelo menos, algumaperenidade na forma a comunicao seria impraticvel, pois o sujeito teriaque reinventar os gneros a cada nova enunciao.

    Se os gneros do discurso no existissem e se ns no os dominssemos,se tivssemos de cri-los pela primeira vez no processo do discurso, de construirlivremente e pela primeira vez cada enunciado, a comunicao discursiva seriaquase impossvel (BAKHTIN, [1952-1953], p. 283).

    O sujeito, ao enunciar por meio de um gnero, vale-se de sua construocomposicional tpica, j que os gneros do discurso (...) para o indivduofalante (...) tm significado normativo, no so criados por ele mas dados a ele

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    (BAKHTIN, [1952-1953], p. 285). O carter normativo, que o mantmrelativamente estvel durante o decorrer do tempo, deve-se ao dialogismo, jque essa manuteno depende da retomada das formas composicionaisestabilizadas. Assim, a composio do enunciado deve ser compreendida nasrelaes dialgicas que o enunciado mantm, retomando enunciados anteriorese prestando-se no futuro como base a novas enunciaes. O dialogismo quepossibilita a manuteno da composio caracterstica dos gneros.

    Como os demais elementos do gnero, o estilo s pode ser estudado aose levar em conta que seu funcionamento regulado pelas relaes dialgicas.O estilo de um enunciado um e no outro, porque seu autor considera, emsua enunciao, estes ou aqueles enunciados precedentes e porque pretendesuscitar certas respostas. Segundo Bakhtin: sem levar em conta a relao dofalante com o outro e seus enunciados (presentes e antecipveis), impossvelcompreender o gnero ou estilo do discurso ([1952-1953], p. 304, grifo doautor).

    Isso porque, conforme lembra Voloshinov, por sua estrutura semnticae estilstica, eles [os enunciados] so de fato essencialmente dialgicos (...) [pois]todo enunciado (discurso, conferncia, etc.) concebido em funo de umouvinte, ou seja, de sua compreenso e de sua resposta1 (VOLOSHINOV,1930, p. 292, traduo nossa). em funo dos seus parceiros de interlocuoque todo enunciado arquitetado, inclusive em termos das escolhas estilsticas.Os integrantes do Crculo de Bakhtin no negam totalmente a tradicionalviso do estilo como escolhas que singularizam o enunciado de umdeterminado sujeito, mas destacam que as escolhas no obedecem apenas svontades do autor, pois esto subordinadas situao de enunciao e soinfluenciadas pelos enunciados com os quais o falante se relaciona.

    O estilo compreende organicamente em si as indicaes externas, acorrelao de seus elementos prprios com aqueles do contexto deoutrem. A poltica interna do estilo (combinao dos elementos)determina sua poltica exterior (em relao ao discurso de outrem). Odiscurso como que vive na fronteira de seu prprio contexto e daquelede outrem. (BAKHTIN, 1934-1935, p. 92).

    1 (...)par leur structure smantique et stylistique, ils [os enunciados] sont en faitessentiellement dialoguiques (...) [pois] tout nonc (discours, conference, etc.) estconu en function dun auditeur, cest--dire de sa comprhension et de sa rponse.

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    O estilo, portanto, como elemento constitutivo do gnero deve serobservado no interior de suas relaes dialgicas. O sujeito relativamente livrepara selecionar os recursos lingusticos com os quais formular seu enunciado,mas o falante opta por este ou aquele modo de enunciar porque retoma certosenunciados (com seus estilos prprios) e porque espera provocar respostas emcertos gneros, com suas peculiares estilsticas. Ou seja, o estilo s se constituino dialogismo.

    Dos trs elementos do gnero o contedo temtico, a estruturacomposicional e o estilo , o primeiro aquele que mais me interessa discutirneste artigo. Isso porque, creio, a redao do vestibular da Unicamp, que abordoneste texto, possui caractersticas que a tornam especialmente interessante paraa anlise do dialogismo no que toca ao contedo temtico. Passemos, ento,a uma concisa descrio das caractersticas da proposta de redao dessevestibular.

    A redao no vestibular da Unicamp: indicaes das propostas euso da coletnea

    Na proposta de redao do vestibular da Unicamp, o candidato podeescolher entre trs gneros: dissertao, narrao e carta argumentativa.2 Para cadaum desses gneros, o candidato deve seguir a proposta de desenvolvimentotemtico indicada na prova. A anlise das redaes selecionadas como asmelhores e publicadas pela Comvest (Comisso Permanente para osVestibulares Unicamp) em coletneas mostra que essas redaes so umaespcie de resposta s propostas, na medida em que se percebe nitidamentenelas como os candidatos buscaram atender s indicaes da prova.3 A propostada redao a palavra alheia que antecede o enunciado do candidato e qual,por meio de sua redao, ele responde.

    Alm disso, o atendimento s indicaes da prova mostra como todoenunciado se lana s avaliaes futuras. O candidato atende proposta porquesabe que seu enunciado sua redao ser avaliado. Se mesmo numa situaocotidiana da vida, por exemplo, quando falamos acerca do aumento do po

    2 Para uma discusso mais completa sobre as propostas de redao do vestibular daUnicamp, indicamos nossa dissertao de Mestrado, Gnero e estilo nas melhoresredaes do vestibular Unicamp (MACIEL, 2008), realizada sob orientao daProf Dr Raquel Salek Fiad.3 Ver Maciel (2008).

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    com nosso vizinho, queremos ser bem avaliados, aceitos, enfim, ainda maisimportante essa avaliao em um contexto de prova como o vestibular. Oscandidatos guiam-se pelas instrues da prova de modo a conseguirem umbom julgamento de seus textos. A redao, assim, est nitidamente voltada futura correo a que estaro submetidos.

    Alm disso, a redao no vestibular da Unicamp tambm interessantepara anlise do dialogismo porque a coletnea simula uma dos fatoresimprescindveis da comunicao: o dilogo com vozes alheias. A coletnea novestibular da Unicamp um conjunto de textos e de excertos de textos, nosmais variados gneros, que abordam de diferentes formas o tema sobre o qualo candidato dever discorrer em sua redao.

    Na vida, nossos enunciados so sempre baseados em enunciaesprvias. Mesmo, por exemplo, uma conversa sobre a queda de temperatura emum determinado dia est saturada de enunciados precedentes. Podemos nosreportar s notcias veiculadas em jornais acerca dessa queda de temperatura,por exemplo. Tambm podemos retomar a fala de um conhecido que j nosadiantou que acreditava que neste dia as temperaturas estariam mais baixas. Nocaso da redao no vestibular, por meio da coletnea, o candidato tem a suadisposio uma srie de enunciados que poder retomar. Alm disso, essesenunciados, em geral, apresentam grande gama de pontos de vistas, de formaque o enunciador poder encontrar, na coletnea, enunciados com os quaisconcorda e outros de que discorda. Assim, como ns, que podemos acreditarno jornal, mas desconfiar de nosso conhecido.

    Entretanto, algo notrio divide nosso enunciado acerca da queda detemperatura e o enunciado do candidato em sua redao do vestibular.Enquanto podemos ocultar (deliberadamente ou no) nossas fontes, ocandidato precisar, necessariamente, explicitar seu dilogo com a coletnea.Podemos omitir quem nos adiantou sobre as temperaturas mais baixas, almdisso, tambm no seremos provavelmente indagados acerca das fontes (quaisjornais) em que buscamos as informaes sobre esse fenmeno climtico.Provavelmente porque, na comunicao cotidiana, pouco nos referimos sorigens de nosso discurso, que podemos acreditar que ele, nosso discursoatual, nosso, como se no fosse parcialmente tambm dos enunciados alheiosque o permeiam e que lhe do forma. pela dificuldade de buscarmos asorigens, muitas vezes remotas, de nossas palavras, que at chegamos a imaginarque no haja palavras alheias em nossos enunciados. Exatamente porque, novestibular, o uso da palavra do outro explcito que as redaes so um

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    material to interessante para se observar o dialogismo. Ao ler uma redao ea coletnea que deu margem sua formulao, podemos perceber claramentecomo as palavras alheias se tecem na voz do candidato. A coletnea, portanto,se ao vestibulando permite simular uma situao real de comunicao, poroutro lado, permite-nos, como estudiosos da linguagem, observar odialogismo de uma maneira mais clara, pois o dilogo com outras vozes bastante ntido.

    Desse modo, o atendimento s propostas da prova, o uso da coletneae a influncia da avaliao a que esto submetidas fazem das redaes dovestibular da Unicamp um oportuno material para que se estude o dialogismo.A seguir, analiso uma redao a fim de tentar mostrar como o dialogismo seexpressa neste texto.

    Um exemplo de dissertao: o trabalho humano visto de umaperspectiva menos otimista

    A seguir, so transcritas a proposta para dissertao do vestibularUnicamp de 2002 (COMVEST, 2002, p. 31-32) e, logo depois, uma redao(COMVEST, 2002, p. 53-57), eleita pela Comvest como uma das que melhoratenderam a essa proposta.

    O trabalho humano tem assumido mltiplas dimenses ao longo dahistria. As alternativas que tm sido postas disposio ou que tm sidonegadas aos indivduos ou espcie permitem amplo leque de avaliaes.Encontra-se tanto uma defesa incondicional das virtudes da vida laboriosaquanto o elogio do cio ou a defesa de um tempo de trabalho apenasindispensvel sobrevivncia.

    Levando em conta as presses histricas, sociais e mesmo psicolgicas quecondicionam estas vises, exemplificadas nos textos desta coletnea quepermitem uma discusso da questo em seus aspectos contraditrios, escrevauma dissertao sobre o tema:

    Trabalho: fator de promoo ou de degradao.

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    O trabalho: novo instrumento de degradao

    Fbulas, provrbios, ditos populares. O trabalho dignifica o homem,o trabalho liberta. A referncia ao trabalho constante na literatura e emoutras formas de expresso ideolgica. O trabalho e o homem parecemeternamente ligados. A caracterizao de um perodo histrico, de um modode produo, da estrutura e da conjuntura de dada poca passamnecessariamente pela caracterizao do tipo de trabalho realizado no perodo,tanto em relao sua forma de recompensa salrio, casa ou chibata quantoem relao sua produtividade e eficcia. Aparentemente, o homem sempremanteve relaes de trabalho. essa expresso eternizada do trabalho que cobea reflexo quanto validade do trabalho como atividade inerente ao homem.

    Primitivamente, o trabalho apresentava-se como necessidade sobrevivncia e seu fruto era repartido coletivamente. O trabalho visto comoatividade de mrito e remunerao individual, suprimindo qualquer ideriode comunidade e articulao social criao recente. O trabalho passou denecessidade imposta para sobrevivncia natural a necessidade imposta parasobrevivncia social. Com a deteno dos meios de produo por uma nicaclasse no interessada em qualquer ideia de coletividade primitiva otrabalho tornou-se a nica propriedade do proletariado, sua mercadoriapara a nova sociedade de classes, sua arma de sobrevivncia.

    Mas a aceitao do trabalho como atividade digna no foi imediata principalmente na sociedade brasileira, onde quem trabalhava (escravos)estava no ltimo degrau da classificao social, e a elite era compostajustamente pelos adeptos do cio (os grandes proprietrios).

    A viso negativa do trabalho, tpica da sociedade brasileira pr-republicana, um claro exemplo da influncia estrutural e ideolgica naformao de um conceito definido de trabalho (como degradante oudignificante). Portanto, at mesmo a viso atual de trabalho comonecessidade na formao moral do ser humano nada mais do que umaadaptao ideolgica a determinada estrutura econmica e social que temno trabalho e na produo de excedentes sua base de sustentao.

    Nesse contexto, o trabalho para produo de excedentes se tornou anica opo para insero social. Dessa forma, o trabalho dignifica ohomem, sim, no por sua essncia bruta, mas por ser condio obrigatria no marginalizao. Trabalhar manter-se vivo. Os desempregados exrcito de reserva ameaador servem como fora externa para coero do

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    indivduo a trabalhar cada vez mais, produzir o que no consome, recebercada vez menos, sujeitar-se ao sistema.

    E o homem, ex-sujeito da histria, tornou-se objeto do sistema. Atecnologia, as mquinas e robs seriam nossa salvao, enfim a liberdade dohomem em relao ao trabalho. Iluso. Tornaram-se apenas novas formasde coero, instrumentos mais eficazes para mastigar a dignidade ereproduzir a misria humana. Talvez o movimento ludista estivesse certo:a mquina inimiga do homem; a mquina, expresso mxima dodesenvolvimento tcnico humano, potencializa a ambio, geradora damisria humana.

    O resultado da assimilao da tecnologia aos meios de produo ilustraa relao atual do homem com o trabalho. Ao invs de utilizar-se da tcnicapara libertar-se da obrigao do trabalho, o homem utilizou-a paraimplementar a produo. O trabalho tornou-se obrigatrio e instrumentode opresso e distino social. O homem no mais trabalha para si, tornou-se escravo do trabalho, num ciclo de imposies sociais que mantm ostrabalhadores, como gado, submissos vontade do patro. E esse, por suavez, uma marionete do sistema, do mercado, do monstro que o homemimps a si mesmo: a ambio a mesma que conduziu o conceito detrabalho de atividade dignificante para relao obrigatria e degradante.

    Essa redao apenas um exemplo de como a instruo da propostadireciona fortemente a escrita dos escreventes.4 Ao falar sobre o trabalho,muitos vestibulandos, atentos proposta, trouxeram, em seus textos, visesnegativas sobre o trabalho. Embora possa parecer trivial assumir que o trabalhoencerra aspectos negativos, preciso lembrar que, em nossa sociedadecapitalista, em que, em geral, o trabalho praticamente o nico meio de vidadigna, a ideologia dominante a que defende aberta e ardorosamente otrabalho. Assim, supondo, por exemplo, que o tema fosse apenas fale sobre

    4 Outro exemplo da influncia das instrues pode ser visto em nossa dissertaode mestrado (MACIEL, 2008, p. 76), em que analisamos os textos dos candidatosque responderam ao vestibular de 2003. Embora a proposta para escrita de umacarta argumentativa trouxesse aos candidatos a possibilidade de serem favorveisou contrrios tese do articulista Rosenfield, que tem um artigo reproduzido nacoletnea, todos os candidatos foram contrrios ao articulista. Ao que nos parece,essa opo unnime decorre da prpria proposta da prova, que trazia elementosque serviam de auxlio para se combater a tese do articulista.

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    o trabalho, parece plausvel imaginar que haveria uma acentuada glorificaoda vida laboriosa, inclusive com crticas ao cio (preguia), sendo raras asmenes aos aspectos negativos do trabalho. o contrrio disso, porm, quese encontra na maior parte das redaes selecionadas para comporem acoletnea das melhores redaes do vestibular Unicamp.5 Em todas essasredaes h opinies contrrias glorificao do trabalho.

    A redao transcrita anteriormente um exemplo de como as instruesdo tema direcionam (e exatamente isso que esperado e cobrado) a realizaodos textos dos candidatos. A comear pelo ttulo O trabalho: novoinstrumento de degradao, v-se o dilogo da redao com a proposta, cujotema Trabalho: fator de promoo ou de degradao. Basta observar, porexemplo, que, se a proposta tratasse do trabalho apenas como fator depromoo, seria incoerente o ttulo ir precisamente contra essa perspectiva,contemplando as dimenses negativas do trabalho. A prpria discusso,elaborada ao longo de todo o texto, sobre trabalho como uma atividade muitasvezes degradante claramente uma resposta proposta.

    Atendendo ao que colocado para elaborao da redao, o candidatoj traz, no primeiro pargrafo, o debate sobre a validade do trabalho comoatividade inerente ao homem, relativizando, desde o incio de seu texto, essavalidade. Em sua reflexo quanto validade do trabalho, o candidatoabordar diferentes vises sobre o trabalho: desde sua glorificao at necessidade do cio. Isso mostra que, considerando a proposta da prova, elepassa pelas diferentes alternativas que tm sido postas disposio ou que tmsido negadas aos trabalhadores.

    O candidato segue descrevendo que:

    (...) primitivamente, o trabalho apresentava-se como necessidade sobrevivncia e seu fruto era repartido coletivamente. O trabalho vistocomo atividade de mrito e remunerao individual, suprimindoqualquer iderio de comunidade e articulao social criao recente.O trabalho passou de necessidade imposta para sobrevivncia naturala necessidade imposta para sobrevivncia social.

    Neste ponto, o candidato parece dialogar com a afirmao da propostade que o trabalho humano tem assumido mltiplas dimenses ao longo dahistria. Em seu texto, exemplifica como o trabalho pde assumir diferentes

    5 Ver Maciel (2008).

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    dimenses durante o decorrer histrico, como atesta a mudana na forma dese ver o trabalho: antes como atividade comunitria para sobrevivncia eatualmente como atividade individual e meritria.

    Continuando em seu panorama histrico, afirma que o trabalho deixade ser uma atividade coletiva e representa, agora, apenas um instrumento deavaliao social, por meio do qual aqueles que trabalham so vistos como maisdignos. Entretanto, o candidato far uma ressalva quanto a essa supostadignidade associada ao trabalho. Segundo ele, a aceitao do trabalho comoatividade digna no foi imediata principalmente na sociedade brasileira, ondequem trabalhava (escravos) estava no ltimo degrau da classificao social, e a eliteera composta justamente pelos adeptos do cio (os grandes proprietrios). Essaressalva certamente vai ao encontro da solicitao da prova de que na discussoda questo [do trabalho] em seus aspectos contraditrios, leve-se em contaas presses histricas, sociais e mesmo psicolgicas que condicionam estasvises [acerca do trabalho]. Por esse exemplo de como o trabalho era mal vistona sociedade brasileira escravista, no perodo pr-republicano, o candidatomostra como as presses histricas influenciam marcadamente as visessobre o trabalho: visto como indigno no passado, atualmente fator dereconhecimento social.

    Atento, portanto, as alternativas que tm sido postas disposio ouque tm sido negadas aos indivduos ou espcie, o candidato atesta que,hodiernamente, o trabalho a nica alternativa para a no marginalizao. Nobojo da discusso primordial da proposta sobre o discernimento do trabalhocomo fator de promoo ou de degradao, o vestibulando afirma que:

    (...) o trabalho dignifica o homem, sim, no por sua essncia bruta, maspor ser condio obrigatria no marginalizao. Trabalhar manter-se vivo. Os desempregados exrcito de reserva ameaador servemcomo fora externa para coero do indivduo a trabalhar cada vez mais,produzir o que no consome, receber cada vez menos, sujeitar-se aosistema.

    Ou seja, em sua concepo, o trabalho no uma opo, mas umaimposio, e seu carter, portanto, no de uma atividade dignificante; pelocontrrio, degradante. Desse modo, o autor responde explicitamente proposta e marca que, entre os dois modos de conceber o trabalho comodignificante ou como degradante , este ltimo que impera no cenrio atual,pois a ambio conduziu o conceito de trabalho de atividade dignificante pararelao obrigatria e degradante.

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    Por meio da parfrase do texto do candidato, retomando, a ttulo deanlise comparativa, a proposta, possvel notar como as indicaes da provaecoam em sua dissertao. No desenvolvimento de seu texto, o vestibulando,embasado pela proposta, discorreu sobre o tema, atendendo de perto sexigncias da prova. Sua escrita uma resposta quilo que colocado naproposta da prova: cada indicao da proposta extremamente importante naconfeco de seu texto, cada indicao criteriosamente respondida por ele. Suaredao, assim, um claro exemplo do dialogismo constitutivo da linguagem;ela dialoga com a proposta, um enunciado precedente, ao qual responde.

    Seguindo as instrues, o candidato cumpre, muito satisfatoriamente,aquilo que lhe foi sugerido na proposta. Entretanto, mesmo assim, poderia tersua redao anulada, caso no atendesse a uma imprescindvel exigncia daprova, a de que, em sua discusso, deveria buscar referncias sobre o trabalhoque so exemplificadas nos textos dessa coletnea [do vestibular].6 Por isso,alm do dilogo com a proposta, o texto traz vrios elementos da coletnea,o que nos possibilita observar a relao do candidato com vozes de outros.

    O autor abre seu texto citando vozes alheias que j falaram sobre otrabalho. Alis, essas diversas vozes falaram sobre esse tema em diferentesgneros: Fbulas, provrbios, ditos populares. Agora, cabe ao candidato, emseu enunciado, do gnero redao do vestibular se assim podemos cham-lo abordar esse mesmo objeto. Em enunciados alheios, em gneros outros,o candidato pode buscar as vozes com as quais dialogar em seu texto. Issodemonstra que, ao enunciar sobre um tema, podemos buscar vozes quetenham falado sobre ele em gneros diferentes daqueles em que concretizamosnossa enunciao.

    Nos ditos populares que o candidato elege a primeira voz claramentealheia que trar para seu enunciado, valendo-se do conhecido provrbiopopular O trabalho dignifica o homem. Na coletnea esse provrbio apareceparodiado por Maguila, ex-lutador de boxe, como o trabalho danifica ohomem; entretanto no ao provrbio parodiado que recorre o candidato,mas ao provrbio original, j que ele procura ilustrar com esse provrbio qual acepo mais comum sobre o trabalho, ou seja, como algo que dignifica. Aviso mais comum a que assevera que o trabalho liberta, como atesta areferncia que o candidato faz ao excerto trs da coletnea, em que se l:3. Arbeit macht frei (o trabalho liberta, divisa encontrada nos portes docampo de concentrao de Auschiwitz) (COMVEST, 2002, p. 33).

    6 Para acesso coletnea completa desse vestibular, ver Maciel (2008), p. 156-160.

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    Esses dois pontos de vista, o de que o trabalho liberta, bem como o deque o trabalho dignifica (ambos se aproximam por sua viso positiva dotrabalho) sero refutados pelo autor. Para ele, o trabalho tem, sim, aspectospositivos, mas tambm tem seus pontos negativos, muitas vezes esquecidos.Retomando a palavra alheia para contrapor-se a ela, o candidato demonstra quesabe utilizar a coletnea a partir de seu projeto discursivo, valendo-se, inclusive,da palavra do outro para neg-la. Ele se aproveita da voz do outro, insere-a emseu enunciado, mas nega essa voz. Isso um exemplo claro de como se d acomunicao humana, pois nos valemos dos enunciados alheios, inmerasvezes, com o objetivo de neg-los. Na dissertao do candidato, a voz dooutro, da qual discorda, est a servio de seu projeto discursivo, sendocontestada, pois, para o candidato, o trabalho no necessariamente bom, nemsempre liberta.

    O autor segue, em seu texto, comparando os modos pelos quais otrabalho pde ser visto ao longo do tempo, expondo como o valor do trabalhomudou com o transcorrer dos anos. Segundo ele, primitivamente, o trabalhoapresentava-se como necessidade sobrevivncia e seu fruto era repartidocoletivamente, enquanto, atualmente, com a deteno dos meios deproduo por uma nica classe (...), o trabalho tornou-se a nica propriedadedo proletariado, sua mercadoria para a nova sociedade de classes, sua arma desobrevivncia. Essa comparao, entre duas formas de se ver o trabalho, parecetrazer dissertao ideias expressas por Pierre Clastres no fragmento de seutexto A sociedade contra o Estado, reproduzido na coletnea. Para Clastres,no mundo primitivo havia ausncia de uma fora externa que obrigasse oshomens a trabalharem alm de suas necessidades. O candidato aproveita essaideia e sugere que a fora externa, no mundo atual, a deteno dos meios deproduo por uma nica classe, que obriga o homem ao trabalho, pois essa sua nica arma de sobrevivncia.

    Criticando ainda a atual acepo do trabalho como necessidade naformao moral do ser humano, o vestibulando lembrar que essa viso nadamais do que uma adaptao ideolgica a determinada estrutura econmicae social. Confirmao de que se trata to somente de uma adaptaoideolgica e no de algo realmente inerente ao trabalho o exemplo trazidoem sua dissertao de que a aceitao do trabalho como atividade digna nofoi imediata principalmente na sociedade brasileira, onde quem trabalhava(escravos) estava no ltimo degrau da classificao social, e a elite era compostajustamente pelos adeptos do cio (os grandes fazendeiros). Se a coletnea no

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    traz nenhuma referncia acerca do trabalho escravo no Brasil, isso no nosimpede de ver nesse exemplo histrico o dilogo do candidato com outrasvozes no caso, enunciados alheios que no esto presentes na coletnea. Oexemplo histrico confirma que apenas o infindvel dilogo pode manter vivaa memria de um povo, transmitindo (e recontando) de voz em voz um fatodo passado.

    Seguindo em sua retrospectiva histrica, o candidato declara ter sidoiluso acreditar que a tecnologia, as mquinas e robs seriam a nossa salvao,enfim a liberdade do homem em relao ao trabalho. Para o vestibulando,talvez o movimento ludista estivesse certo: a mquina inimiga do homem;a mquina, expresso mxima do desenvolvimento tcnico humano,potencializa a ambio, geradora da misria humana. Aqui, a referncia aomovimento ludista, mostra, mais uma vez, que o candidato dialoga com outrasvozes, alm daquelas expressas na coletnea, j que nesta no h meno algumas lutas de Ned Ludd e seus companheiros contra as mquinas. Como j ditoanteriormente em relao retomada das informaes histricas do perodoescravista no Brasil, ao se valer de fatos histricos para desenvolver sua tese, otexto do candidato nos exemplifica como as informaes de momentospassados podem ser retomadas por vozes atuais. pela contnua retomada deenunciados precedentes que a histria pode manter-se atravs do dilogoinfinito das vozes.

    Nesse dilogo, entra tambm a voz do candidato, materializada em suaredao no vestibular. Pela anlise de seu texto, procurei mostrar comoqualquer enunciado est sempre e necessariamente prenhe de enunciadosprecedentes. Evidncia disso so os excertos da coletnea retomados pelocandidato, bem como o recurso a exemplos histricos, que denotam como asinformaes do passado passam e se mantm atravs do fluxo contnuodo dialogismo.

    Alm disso, ao vermos como o candidato segue cuidadosamente asindicaes da proposta sobre o desenvolvimento do tema, podemos percebercomo os enunciados se voltam s respostas futuras. No caso da redao dovestibular, a resposta esperada pelo candidato sua nota e no realmente umaresposta, como num dilogo cotidiano. Exatamente por ser uma situao deavaliao que o vestibular se torna mais interessante para observar aexpectativa da recepo que todo falante tem ao enunciar. Em todacomunicao humana, sempre nos dirigimos a algum e esperamos suaavaliao acerca do que enunciamos. No caso da redao do vestibular, esse

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    aspecto da futura avaliao a que nossos enunciados esto sujeitos ainda maisclaro, porque o candidato precisa, para ser bem avaliado, seguir as instruesda proposta.

    A redao, portanto, como diria Bakhtin ([1952-1953], p. 289), maisum elo na cadeia da comunicao discursiva, retomando a coletnea eseguindo as indicaes da prova, visando a uma, futura, avaliao. Sua redao um exemplo de como um enunciado se constitui no dilogo com vozesprecedentes e futuras.

    Hoje ns tambm retomamos quela redao, escrita em novembro de2001, a fim de, agora, esmiu-la, analis-la, e nosso texto, este presente artigo,tambm poder ser, no futuro, retomado, respondido, constituindo-se emmais uma voz que integra o infindvel dilogo.

    Consideraes finais

    Em nossa exposio pretendemos exemplificar, por meio da anlise deuma redao, como um enunciado real mantm vnculos dialgicos. A escolhapela redao de exame de vestibular se deve ao fato de que esses vnculos so,neste caso, mais evidentes, pois a situao discursiva assim o exige: o candidatodeve responder proposta da prova e trazer, para seu texto, enunciados alheiosque compem a coletnea do exame vestibular.

    Se, em toda enunciao, o falante se preocupa com o julgamento de seuinterlocutor, mais ainda no contexto da prova de vestibular, em que ovestibulando sabe que, para ser bem avaliado, precisa seguir atentamente asindicaes da prova. Ou seja, o candidato est consciente de quanto sua redaodeve responder adequadamente proposta de escrita a que est submetido.Ilustra isso o fato de que, em sua redao, o autor se coloque contrariamente glorificao da vida laboriosa. Ao que nos parece, esse posicionamento sedeve bastante proposta da prova que, indo alm do senso comum de exaltaodo trabalho, apontava para a degradao a que o trabalho pode conduzir o serhumano.

    Explicitam tambm o carter dialgico dos enunciados, os elos que aredao mantm com enunciados precedentes. Em seu texto, o vestibulandose vale de vrias vozes alheias: algumas derivadas da coletnea de textos, outrasoriundas de seu conhecimento prvio. Utilizando essas vozes para dar vida aotexto, o candidato emprega-as a favor de seu projeto discursivo. Assim, conjugatanto enunciados alheios com os quais concorda quanto enunciados alheios deque discorda, usando aqueles para reforar sua tese e esses para critic-los.

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    Nosso estudo dessa redao, portanto, teve o intuito de explicitar comoas condies especficas da prova do vestibular da Unicamp favorecem aobservao do dialogismo que perpassa todas as enunciaes humanas.

    Encerramos, na esperana de que tambm nossa anlise se constitua emmais um elo na comunicao discursiva. Como personagem do cenriolingustico atual, nossa reflexo traz em sua voz ecos do passado, pois parte dediscusses tericas bastante difundidas atualmente no Brasil, e se lana arespostas futuras, trazendo a anlise dessa redao para a apreciao dosinterlocutores que dela se ocuparem.

    Referncias

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    ______. (1929/1963). Problemas da potica de Dostoivski. 2. ed. revista. Trad.Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1997. 379 p.

    ______. (1934-1935). O discurso no romance. In: BAKHTIN, M. M. Questesde literatura e de esttica: a teoria do romance. 3. ed. Trad. Aurora FornoniBernardini et al. So Paulo: Unesp; Hucitec, 1993. p. 71-210.

    ______. [1952-1953]. Os gneros do discurso. In: In: BAKHTIN, M. M.Esttica da criao verbal. 4. ed. Trad. Paulo Bezerra. So Paulo: Martins Fontes,2003. p. 261-306.

    BAKHTIN, M. M./ VOLOSHINOV, V. N. (1929). Marxismo e filosofia dalinguagem. 12. ed. Trad. Michel Lahud & Yara Frateschi Vieira. So Paulo:Hucitec, 2006. 203 p.

    COMVEST. Redaes do Vestibular Unicamp 2002. Pr-Reitoria de Graduao,Comisso Permanente para os vestibulares, Pr-Reitoria de Extenso e AssuntosComunitrios. Campinas: Editora da Unicamp, 2002. 250 p.

    MACIEL, L. V. C. Gnero e estilo nas melhores redaes do vestibular Unicamp.2008. 185 p. Dissertao (Mestrado em Lingustica Aplicada) - Instituto deEstudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2008.

    VOLOSHINOV, V. N. (1930). La structure de lnonc. In: TODOROV, T.(Org.). Mikhail Bakhtine: le principe dialogique. Paris: ditions du Seuil, 1981.p. 287-316.

    Recebido em 03/02/09. Aprovado em 30/06/09.