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    Volume 01

    Universidade de Uberaba

    UNIJUS

    Ministrio Pblico do Estado de Minas Gerais

    Revista Jurdica

    Marcelo PMarcelo PMarcelo PMarcelo PMarcelo PalmrioalmrioalmrioalmrioalmrioReitor da Universidade de Uberaba

    Miralda Dias DouradoMiralda Dias DouradoMiralda Dias DouradoMiralda Dias DouradoMiralda Dias DouradoPromotora de JustiaPresidente do Conselho Editorial

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    Nota: Os trabalhos apresentados exprimem conceitos da responsabilidade dosseus autores, coincidentes ou no, com os pontos de vista da redao da Revista.

    Frum Mello Viana

    Rua Lauro Borges, 974a Promotoria de Justia Ncleo de Estudos Jurdicos de UberabaUberaba MGcep: 38010-060

    Periodicidade: semestral

    Tiragem: 1.000 exemplares

    A Revista Unijus produzida pela Editora daUniversidade de Uberaba.

    Projeto Grfico: Studio Cone SulRua Monte Caseiros 275Cep:05590-130 Diagramao e editorao de textos: Ceclia Rangel

    Adroaldo Junqueira Ayres NetoDale Fonseca e Silva NunesGuido Luiz Mendona Bilharinho

    Joo DelfinoJoo Vicente DavinaVicente de Paulo Cunha Braga

    Promotoria de Justia de UberabaFone: (034) 3320878Fax: (034) 333- 8996

    Conselho Editorial

    Presidente:

    Miralda Dias Dourado

    Contato

    Endereo

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    D O U T R I N A

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    Homenagem a Luciano Justiniano Ribeiro7

    Apresentao

    17 A Unio Federal e o Controle da ConstitucionalidadeJoo Carlos Souto.

    30 Algumas Consideraes Sobre a Teoria Geral do ProcessoErnane Fidlis dos Santos.

    37 Cidadania e ConstituioCarmem Lcia Antunes Rocha

    53Consequncias do Abandono FamiliarRoberta Matos Pinheiro de Andrade.

    56 Consideraes sobre a Execuo AcidentriaCsar Antnio Cossi

    74Discricionaridade e Arbitrariedade: breves consideraes

    Wagner Guerreiro

    79

    Estatuto da Criana e do Adolescente Problema Menorista

    Brasileiro Violncia Urgncia na soluoMrcia Cristina de Melo Breves Alves Peixoto

    122Reviso e Soberania Popular

    Adalberto N. Amorim Jnior

    125Instrues aos colaboradores

    9

    A Cidadania e o Devido Processo Legal (Due Process of Law)como formas de conteo de PoderPaulo Fernando Silveira.

    SUM

    RIO

    67Da Teoria Prtica do Direito

    Gladston Mamede

    91O Conflito entre Liberdade de Comunicao e o Direito Liberdade

    Marcelo Bevilacqua Cunha

    96O Credor Hipotecrio e os Embargos de Terceiro

    Luiz Artur de Paiva Corra

    109Os pressupostos Processuais e as Condies da Ao

    Eduardo Augusto Jardim

    117Responsabilidade e Culpa

    Nanci de Melo e Silva

    101O Dano moral e sua Reparao

    Humberto Theodoro Jnior

    N o s s a R e v i s t a

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    Esta Revista foi instituda a partir de um convnio celebrado entre a Procuradoria Geral de Justiado Estado de Minas Gerais, por intermdio do Ncleo de Estudos Jurdicos de Uberaba Promotor deJustia Luciano Justiniano Ribeiro e a Universidade de Uberaba.

    O convnio revela, primeiramente, uma perfeita integrao entre os rgos mencionados e objetivosconvergentes, no que tange ao constante aprimoramento cultural, profissional e educacional.

    A Universidade de Uberaba tem procurado contribuir com o progresso desta regio, oferecendoum ensino de qualidade e colocando em prtica um programa de reformulao geral na sua estrutura

    acadmica, administrativa, pedaggica e urbanstica.A filosofia bsica da universidade garantir a excelncia e satisfao das necessidades de seus

    usurios. Dentre as diversas reformulaes que esto sendo realizadas, encontra-se o incentivo publicao de peridicos que, como esta Revista, estimulam o debate, o estudo e a produo cientfica.

    O Ministrio Pblico uma Instituio aceita universalmente como grande defensora de valores edireitos sociais. Desde a antigidade, quando encontramos o registro de figuras assemelhadas queexerciam funes tipicamente ministeriais, at os dias de hoje, o parquetrepresenta um defensor dasociedade.

    Atualmente, vem definido na Constituio da Repblica como instituio permanente, essencial funo jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurdica, do regime democrtico edos interesses sociais e individuais indisponveis (Artigo 127).

    Por parte do Ministrio Pblico, sempre houve a preocupao com o aperfeioamento cultural e

    profissional de seus membros, sendo freqentes a realizao de congressos e simpsios e a publicaode revistas.

    A novidade agora a descentralizao das publicaes, que deixam de ocorrer apenas na capitalpara, atravs de convnios, serem realizadas em algumas regies do Estado. Assim, o MinistrioPblico e a Universidade de Uberaba publicam esta Revista, com o objetivo de incentivar o estudo e oaperfeioamento cultural dos que militam no Direito.

    Com satisfao, apresentamos o primeiro volume da UNIJUS, que se revela, por ora, como uminstrumento de divulgao e informao, que rene artigos jurdicos qualificados e inteligentes, advindosde profissionais e estudiosos do Direito do Estado de Minas Gerais, aos quais agradecemosprofundamente. Esperamos que a unio, oportuna e feliz, das duas entidades possa alcanar o fimproposto e produzir bons frutos.

    Marcelo PalmrioReitor da Universidade de Uberaba

    Miralda Dias DouradoPromotora de JustiaPresidente do Conselho Editorial

    Apresentao

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    Coube-me em duas especiais oportunidades falar sobre o mestre Luciano Justiniano Ribeiro. Aprimeira, na missa em inteno de sualma, iluminada, quando de sua passagem desta para a ltimaComarca a ptria celeste; e agora, no momento da criao de uma Revista Jurdica.

    Naquele dia, o Ministrio Pblico chorou uma das suas personalidades, que mais retrataram o ser-Promotor de Justia.

    Dr. Luciano visto por ele mesmo era o Promotor de Justia.

    Identificava-se o homem com a funo: servidor do povo, consolador e defensor dos pobres; amigo esolicitado com respeito, transitava com sua individualidade entre juristas, polticos e poderosos, e ningumsubtraiu sua independncia. Os espinhos do cargo ele manejava sem se ferir, com maestria, como mineirice,matreiro e jeitoso; manhoso; culto e filosfico, humilde um sbio.

    Conheci-o numa galinhada, que cozinheiro era mancheia...Gostava de uma pimenta, no ponto, e apimentava pareceres, quando algum contrrio, confundindo-

    o pela sua singeleza de pessoa, ousava desafiar, ou os conhecimentos e energia do Promotor de Justia,ou a instituio, que ele defendia, como sacrossanta. Ento, o homem simples buscava nos clssicos dodireito, que conhecia com profundidade, as razes jurdicas, e mostrava na vida, na poesia e nas verdadeseternas, o fundamento da sua atuao, sempre correta.

    Costumava dizer, como filsofo nutriz dos novios do Ministrio Pblico, que o Parquetcaminhavadistante das vaidades humanas, iluminado que era pelo fulgor de estrelas desconhecidas. O Promotor

    seria o caminheiro, que todos os dias comeava a jornada percorrendo os tneis dos pretrios, onde asociedade mostra suas mazelas, temente a Deus, buscando a justia, sem nunca saber onde a encontrava,mas era preciso busc-la, incessantemente...

    Visualizava a grandeza do homem, com piedade do deliquente, sem contemporizar com as aescriminosas; no se abatia com os interesses menores, que passavam...como passa a noite dando lugarao dia... e achava natural seu impulso na defesa dos rus inocentes, como defesa da verdade e da

    justia, para conservao da prpria vida do corpo social. De uma certa forma, promovia a vida dos seuspares.

    Chefe de famlia e esposo exemplar, pai dedicado e amoroso, companheiro incomparvel, amigo...Era um visionrio do crescimento do parquet, laboriosa abelha, nascido que foi na mineira cidade de

    Arapu, somente alando vo para construir na pobreza e nas dificuldades de muitas Comarcas a baseslida do Ministrio Pblico de hoje, tendo marcado sua presena de ser humano, respeitado Promotorde Justia, em Itamarandiba, Carmo da Paranaba, Aiuruoca, Raul Soares, Arax e Uberaba. Promovidopara Belo Horizonte, no aceitou a honrosa vaga de Procurador, com naturalidade.

    Por tudo isso, pela magnitude da sua obra humana e ministerial, e importncia da sua pessoa,homenagear Luciano Justiniano Ribeiro adorna e eleva o primeiro nmero dessa Revista, nascido doNcleo de Estudos Jurdicos do Ministrio Pblico de Minas Gerais, que leva seu nome.

    Homenagem aLuciano Justiniano Ribeiro

    Dale Fonseca e Silva Nunes

    Promotora de Justia

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    Luciano Justiniano Ribeiro

    30.05.1925 a 23.02.1993

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    duas: a) - da soberania nacional: a Nao, comocomplexo indivisvel, que titular da soberania(Sieys); e b) - da soberania popular: pela qual elapertence a todos os componentes do povo. Apropsito ensina Rosseau: por esse contrato, ohomem cede o Estado parte de seus direitos naturais,criando assim uma organizao poltica com vontadeprpria, que a vontade geral. Mas, dentro dessaorganizao, cada indivduo possui uma parcela dopoder, da soberania, e, portanto, recupera a liberdadeperdida em consequncia do contrato social.

    H diversas outras teorias, entre as quais a dasoberania do Estado, de origem germnica (jeliinek,Hegel) pela qual o povo seria mero elemento daestrutura do Estado, ao lado do Governo e doterritrio; aqui no o povo que possui o Estado,mas o Estado que possui o povo.

    Em sntese, qualquer que seja a teoria adotadapara fundamentar a criao do Estado, o indivduoacha-se sujeito, desde o nascimento at a morte,

    1 - O INDIVDUO E O ESTADO

    Para Aristteles (Poltica), o Estado precedeao indivduo, como a famlia. Seria, a meu ver, comoo tijolo em relao casa. Quer dizer, o tijolo, emboraelemento singular, s tem sentido quando cumpresua destinao final: a obra.

    Para outros, porm, o Estado o coroamentohistrico do desenvolvimento poltico do homem.Deve ser entendido como conceito historicamenteconcreto e como modelo de domnio poltico tpicoda modernidade (Canotilho).

    O relacionamento do indivduo com o Estado (ouaquele que o representa) explicado atravs de vriasteorias, como a da origem divina do poder do rei,que deu suporte s monarquias absolutas, onde orei impunha, sem limites, sua dominao poltica. OEstado sou eu (Le tat Cest moi), dizia Luiz XIV.

    Por fora do iluminismo, surgiu a doutrinacontratualista democrtica, pela qual o povo teriatransferido ao Estado todo o seu poder poltico, semdele abdicar contudo. Essa corrente se desdobra em

    A cidadania e odevidoprocesso legal(DUE PROCESS OF LAW)como formas de poder

    Paulo Fernando Silveira

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    J urdica

    sua dominao inafastvel.A histria comprovou tambm alguns fatos: a) -

    o homem, que ocupa o poder, naturalmente procuraimpor sua concepo poltica; e b) - o Poder, quandosem limites, transforma-se em arbtrio; c) - paraconter o abuso do poder h necessidade de oposioativa; d) - o exerccio pleno da cidadania o modomais legtimo e eficaz de limitao do Poder Estatal.

    Relembre-se a advertncia de Montesquieu: aliberdade poltica somente existe nos governosmoderados. Mas nem sempre ela existe nos governosmoderados. S existe quando no se abusa do poder,mas uma experincia eterna que todo homem quedetm o poder levado a dele abusar: e vai at ondeencontra limites. Quem o diria? A prpria virtude

    precisa de limites. Para que no se abuse do poder necessrio que pela disposio das coisas o poderlimite o poder.

    2 - CIDADANIA

    A cidadania constitui, consoante nossa CartaPoltica, um dos fundamentos do EstadoDemocrtico de Direito, ao lado da soberania estatal,o pluralismo poltico, o respeito dignidade dapessoa humana e dos valores sociais do trabalho eda livre iniciativa (CF - art. 1o.).

    Cidadania a expresso da vontade poltica doindivduo, tanto para a constituio edesenvolvimento como para a conteno do poderpblico. Seu exerccio exige, sempre,comportamento ativo.

    Remonta participao de alguns do povo nasassemblias das cidades-estado gregas (polis) ondeos assuntos de interesse pblico eram debatidos.Em Roma, (civitas), em menor escala, o povo,reunido em comcios, votava algumas leiscolaborando ativamente no processo poltico.

    Em sua natural acepo, a cidadania se manifesta,dentro do contexto constitucional do EstadoDemocrtico de Direito, pela soberania popular(poder originrio) normalmente exercida pelosrepresentantes eleitos pelo povo, ou, eventualmente,diretamente por ele prprio, atravs do plebiscito, oreferendo ou a iniciativa legislativa popular (CF -art. 1o., IV e 14).

    O cidado, ao eleger seus representantes, exercitaa cidadania pelo sufrgio universal (Direito),

    materializado pelo voto direto e secreto (exerccio),com valor igual para todos. O eleito, por sua vez, dplenitude cidadania fundamentalmente ao participardo exerccio do poder para, satisfeito ouinconformado com a situao atual, manter oumodificar essa condio. Porm, no exerce acidadania quando promove apenas seus interessespessoais, ignorando o coletivo, pois foi eleito parapugnar pelas aspiraes dos representantes.

    A cidadania funciona ora como forma deconteno do poder, na medida em que no permitea violao das Leis e da Constituio, ora como ativoindutor de atuao do poder no sentido de seimplementar direitos programados na Constituio(reforma agrria p. exemplo).

    Como a lei, no sentido formal, legitimamenteeditada pelo Congresso Nacional, constitui, emprincpio, a expresso ostensiva da vontade damaioria do povo, h exerccio da cidadania quandoo indivduo procura faz-la ser cumprida, comoacontece, por exemplo quando atua para fazerprevalecer o Cdigo do Consumidor.

    Muitas das vezes, a cidadania se expressa demodo informal, atravs de reclamao direta aofornecedor do produto ou prestador do servio, oudenncia ao rgo do governo, no caso o PROCON.

    O acesso ao Judicirio, seja em defesa de direitos

    privados ou de interesses da coletividade, caracteriza,tambm, inegavelmente, o mais legtimo exerccioda cidadania. Aqui se insere, tambm, a dennciaao Ministrio Pblico Federa, que se apresenta, nocontexto da Constituio Federal de 1988, art. 127,como defensor da sociedade (defesa da ordem

    jurdica, do regime democrtico e dos interessessociais e individuais indisponveis).

    A cidadania, exterioriza-se, normalmente, almdo ato formal do voto, atravs de pronunciamentospblicos (cartazes, discursos, mdia) oumanifestaes populares pacficas (passeatas,comcios, cartas aos deputados etc.).

    na medida em que os interesses da sociedadeganham dimenso de conflito, geralmente porque oDireito Positivo - quando no revitalizado por novasinterpretaes do judicirio, que lhe d sobrevida,face realidade dinmica dos fatos sociais - nomais harmoniza os interesses em choque, usualmentemarginalizando uma grande maioria para manter umaminoria em condio de privilgio, a manifestao

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    da cidadania evolui para forma mais drstica,normalmente iniciando a violncia.

    A despeito de ser desconfortante e socialmente

    inconveniente, a violncia , s vezes - quando empequena escala, administrvel, episdica e tpica -necessria para, mediante alteraes do status quo,retomar-se o equilbrio social, mantendo sadio osistema democrtico. Da ter JEFFERSON, umpoltico democrata e liberal, afirmado que: umapequena rebelio, de quando em vez, boa medidae to necessria no mundo poltico como tempestadeno mundo fsico.

    Compete aos poderes constitudos -precipuamente ao judicirio, que tem a missoconstitucional de interpretar a lei de modo a sintoniz-

    la com a Carta Poltica, que expressa a vontade dopovo (cidadania primria e ltima) - atentos snecessidades atuais e reais da sociedade, deflagraro processo de harmonizao dos interesses,readaptando e dando nova dimenso s concepesvetustas do Direito, pacificando-se, com isso, oconflito e preservando-se a Democracia.

    Caso contrrio, instala-se e agrava-se a crisepoltica que, no sendo resolvida, final, pelosTribunais, onde prioritariamente deve desembocar,desborda na revoluo, que resulta, se vitoriosa, na

    opo por nova ordem jurdica ou, se sufocada, namanuteno do estado anterior ao conflito.Releva notar que a ditadura no expressa a

    cidadania coletiva porque no representa a vontadepoltica livre da maioria dos indivduos que compema Nao, mas apenas a de um grupo minoritriodominante, geralmente oligrquico, que se impe porse julgar superior, cultural e economicamente,arrogando a si a salvao do pas.

    Portanto, em tempo de crise poltica, a cidadania,em ltima instncia, se revela, sem qualquerformalismo, pela revoluo popular, voltando-se

    contra a situao dominante, impondo-se nova ordemjurdica. Exemplos so a revoluo americana (176),a revoluo francesa (1789) e a revoluo russa(1917). Mas, de qualquer modo, a vontade polticadominante se materializa e se veicula atravs dasnormas jurdicas, sujeitas, num Estado Democrticode Direito, apreciao do Poder Judicirio.

    Outra forma h, de expresso da soberaniapopular alm das j referidas. Trata-se da

    participao popular no Jri, mediante a soberaniados vereditos (CF - art. 5o., XXXVIII).

    II - JRIHistoricamente o jri foi a primeira forma de

    conteno do poder absoluto dos reis, como est aevidenciar Magna Carta Inglesa de 1215, que, naverso atualizada de 1226, assim disps em seu 39:

    Nenhum homem livre ser detido ou sujeito apriso, ou privado dos seus direitos ou seus bens,ou declarado fora da lei, ou exilado, ou reduzido emseu status de qualquer outra forma, nemprocederemos nem mandaremos proceder contra ele

    seno mediante um julgamento legal pelos seus paresou pelo costume da terra. (No free man shall beseized or imprisoned, or stripped of his rights orpossessions, or outlawed or exiled, or deprived ofhis standing in any other way, nor will we proceedwith force against him, or send other to do so, exceptby the lawful judgement of his equals or by the lawof the land).

    Esse documento histrico foi conquistado pelosBares face ao Rei Joo Sem Terra, exigindo-se,entre outras coisas, o julgamento legal pelos seus

    pares ou pelos costumes da terra. poca, legislaram para poucos. Mas a histriase incumbiria de estender os benefcios a todos, demodo que tambm ns devemos prestar homenagens Magna Carta Inglesa.

    Sendo a primeira e original manifestao dacidadania, o Jri se apresenta com face trplice: deum lado, garantia do cidado de no ser julgadopor um representante do Estado isoladamente, massim pelos seus pares; de outro, forma de contenodo poder estatal, ao no permitir a condenao deningum seno atravs desse Instituto processual

    penal, que goza, no Brasil, de foros constitucionais;finalmente, forma de democratizao do PoderJudicirio, que Poder no eleito, no permitindodiscriminao nas condenaes ou absolvies faceaos poderosos ou humildes.

    No primeiro caso, fundamentalmente, o julgamento pelo jri garantia constitucional docidado contra a atuao do Estado, atravs dedecises solitrias do juiz monocrtico que pode agir

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    J urdica

    IV - IGUALDADE

    Outra forma de exerccio da cidadania e

    conteno do poder a igualdade.Constituindo a igualdade uma das colunas quesustentam a democracia, ao lado da liberdade e davontade da maioria, pode-se afirmar que, excetuadoo direito fundamental vida, apresenta-se como omais relevante dos direitos individuais, tanto que aenumerao prevista no art. 5o, da ConstituioFederal comea por estabelecer esse direito.

    Visou a Carta Magna, com isso, preservar ademocracia como processo de convivncia socialem que o poder emana do povo e por ele h de serexercido, ainda que indiretamente, porm em seu

    nico proveito. Esse processo ampara-se sobre trsprincpios fundamentais: o princpio da vontade damaioria, o da igualdade perante a lei e o da liberdadede ao, exceto nos casos vedados em lei,observadas as franquias constitucionais. Mas essesprincpios podem ser reduzidos a um, na lio deAristteles, ou seja, o da igualdade, que constitui ofundamento e fim da democracia, que tanto maisser pronunciada quanto mais se avana na igualdade.Mas ressaltava que a alma da democracia repousana liberdade, sendo todos iguais. Na opinio deRousseau, a igualdade condio para a existncia

    da liberdade. Pode-se mesmo, atravs dademocracia, como observou Alexis de Tocqueville,imaginar um ponto extremo onde liberdade eigualdade se toquem e se confundam. Realmente,na democracia a liberdade conduz naturalmente igualdade; na ditadura, a pretexto de se alcanar aigualdade, sujeita-se o indivduo, pela violncia,inexoravelmente servido. A sociedade perfeitapressupe a igualdade, com liberdade, como pedrafundamental. As pequenas diferenas sociaisdecorrero, apenas, da inteligncia, criatividade,trabalho e honra.

    Todo privilgio implica o reconhecimento de umtipo de superioridade, com a imediata quebra daigualdade. A superioridade induz dominao, com graveofensa liberdade. Da por que todo o privilgio deveser combatido e totalmente extirpado, ou reduzido aomnimo tolervel, de modo a ampliar o mbito daDemocracia.

    Outras formas de conteno do poder se revelampelo federalismo, separao dos poderes e freios econtrapesos.

    ideolgica ou preconceituosamente contra oacusado, prejudicando-o, ou beneficiando ospoderosos, causando a impunidade. Na ltimahiptese versada, o Jri proporciona a indiscriminadaparticipao popular no exerccio do Poder Judiciriode forma a permitir a representao democrtica damanifestao dos valores culturais dos relevantesgrupos sociais, sem prejuzo ou marginalizao dasminorias. Segundo PAUL BREST (in Defense ofAntidiscrimination Principle) O princpio de que os

    jris devem representar, por amostragem, toda acomunidade reflete a convico de que os juradosextrados de diferentes grupos raciais, tnicos esocio-econmicos, tendem a ter opinies diferentes,as quais afetam suas percepes do fato e o exerccio

    do julgamento e, assim, o sistema funcionaria deforma mais precisa e justa se uma variedade de pontosde vistas suportar a deciso.

    Por ser o Jri mais primrio e fundamental colunada democracia, os Estados totalitrios tm verdadeiraaverso a ele.

    Por isso, defendo intransigentemente a extensodo Juri a todos os crimes, sem exceo, podendoisso acontecer imediatamente, bastando dar aseguinte interpretao ao texto constitucional (CF -art. 5o., XXXVIII): onde diz competncia para o

    julgamento dos crimes dolosos contra a vida

    entenda-se de forma obrigatria e, facultativamente,a critrio da defesa, nos demais casos.

    S assim os poderosos no mais escaparo daJustia. A impunidade, se houver, ser com orespaldo da prpria comunidade.

    Alegaro alguns que o Juri no funciona bem noBrasil. Tenho rejeitado esse argumento, que seassemelha ao utilizado pela Escola Superior deGuerra no tempo da ditadura, no sentido que o povono saberia votar, devendo uma elite decidir por ele.Hoje sabemos que o povo vota bem, apesar de que,atravs de uma legislao eleitoral deformada,usualmente frgil o rol dos candidatos que lhe soapresentados para escolha.

    As virtudes comprovadas do voto ocorrerotambm no jri.

    Com a constante participao do povo dentro doPoder Judicirio, esse poder revestir-se- de maiorlegitimidade, mesmo porque, certa ou errada, adeciso ser tomada por quem, originalmente, odono do poder: o povo.

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    V - FEDERALISMO

    O pleno exerccio da cidadania pressupe um

    regime democrtico, que em nosso pas assenta suaestrutura constitucional em trs pilares: a) - ofederalismo; b) - a separao dos poderes; e; c) - agarantia dos direitos individuais.

    O federalismo a pedra angular do sistema,porque reparte o poder entre o Governo Central e odos Estados de forma equilibrada, de modo a evitara concentrao do Poder, que conduz ditadura.

    Permite, ainda, que os Estados-Membros sejamautnticos laboratrios sociais e polticos, onde asintervenes podem ser testadas separadamente,multiplicando as oportunidades e minimizando os

    perigos de fracasso. O federalismo revitaliza eharmoniza os governos inferiores, que cuidam maisdiretamente das necessidades sociais.

    Desse modo, o indivduo deveria sujeitar-se aproximadamente 90% de leis locais (estaduais emunicipais) e, apenas, 10% de leis federais.

    Compete ao povo, no exerccio da cidadania,evitar a quebra do equilbrio federativo, que no Brasilocorre pela usurpao pela UNIO de poderesnitidamente de competncia estadual ou municipal.

    VI - SEPARAO DOS PODERES

    A separao dos poderes constitui a frmulaltima e refinada de conteno do poder, portanto,sendo modo de exerccio da cidadania. A separaodos poderes serve como poderoso controle contraaes arbitrrias.

    Como as opes e aes polticas se realizamatravs da lei, a deve recair o controle poltico dosoutros poderes pelo judicirio. Ao judicirio foiconstitucionalmente outorgado o poder de dizer oque a lei , na feliz frase de Marshall:

    enfaticamente rea de atuao e dever dodepartamento judicirio dizer o que a lei [...]. Seduas leis conflitam entre elas, as cortes devemdecidir o caso conforme as leis, desprezando aConstituio, ou conforme a Constituio,desprezando a lei; a Corte deve determinar qualdessas regras conflitantes devem governar o caso.Isso da prpria essncia do dever judicial. (It isemphatically the province and duty of the judicialdepartment to say what the law is [...]. If two laws

    conflict with each other, the courts must decide thatcase conformably to the law, disregarding theconstitution; or conformably to the constitution,disregarding the law; the court must determinewhich of these conflicting rules governs the case.This is of the very essence of the judicial duty.).

    No existem mais, na esfera dos outros ramosgovernamentais, aes exclusivas, no apreciveispelo Poder Judicirio, que o intrprete ltimo davontade constitucional (controle daconstitucionalidade das leis).

    Contudo, o Legislativo pode emendar aConstituio visando superar uma deciso incmodado Judicirio. Pode tambm editar lei, ampliando ouesclarecendo o fundamento judicial adotado.

    Da a importncia da doutrina dos freios econtrapesos.

    VII - FREIOS E CONTRAPESOS

    A combinao da doutrina da Separao dosPoderes com o princpio dos freios e contrapesospermite que nenhum ramo em que se desdobra oPoder Poltico possa exercer autoridade ditatorialsobre os trabalhos do Governo. Os poderes dadospela Constituio a cada um so delicadamentecontrolados pelo poder dos outros dois, evitando os

    excessos.Atravs dos freios e contrapesos, em combinao

    com a separao dos poderes, procura-se protegero cidado contra o surgimento de governo tirnico,ao estabelecer mltiplas cabeas de autoridade nogoverno, as quais se posicionam uma contra a outraem permanente batalha. A inteno da Carta negara uma delas a capacidade de permanentementeconsolidar toda autoridade governamental em simesma, enquanto permite no todo o desenvolvimentotranqilo do trabalho do governo.

    meio de restringir o poder governamental e

    prevenir abusos. exerccio de cidadania.

    VIII - DEVIDO PROCESSO LEGAL

    Mas a cidadania tambm se expressa atravs doprincpio do devido processo legal, que, pela suaabrangncia, encampa o prprio jri. Remonta aomesmo pargrafo 39, da Magna Carta Inglesa,quando ali foi dito que nenhum homem ser privado

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    11. Defesa contra excessivos valores de fianas,multas e punies cruis e no usuais (Emenda n.8).

    No Brasil, podemos extrair de nossa ConstituioFederal, exemplificativamente, algumas garantiasbsicas, protegidas pelo devido processo, semprejuzo de outras decorrentes dos princpiosadotados, ou mesmo concedidas pela legislaoordinria:

    a) decorrentes do direito vida ou liberdade(art. 5o):

    1. Priso somente em caso de flagrante delito oupor ordem judicial (art. 5, inciso LXI);

    2. Direito de permanecer o acusado calado e deter assistncia da famlia e de advogado (LXII);

    3. Direito de que a priso seja imediatamentecomunicada ao juiz competente e a membro da famliaindicado pelo acusado (LXIII);

    4. Proibio de tortura ou tratamento desumano(III);

    5. Inviolabilidade da residncia, exceto em casode flagrncia do delito ou desastre, ou, durante odia, mediante ordem judicial (XI);

    6. Inviolabilidade de correspondncia oucomunicaes telefnicas e dados, salvo por ordem

    judicial (XII);7. Direito a julgamento pelo juiz natural (aquele

    naturalmente investido no cargo) no se admitindotribunal de exceo (LIII);

    8. Proibio de uso de provas obtidas por meiosilcitos (LVI);

    9. Proibio de priso civil por dvida, salvo noscasos de inadimplemento voluntrio e inescusvelde obrigao alimentcia e da de depositrio infiel(LXVII);

    10. Julgamento por jri nos crimes dolosos contra

    a vida (XXXVIII);11. Proibio de lei penal retroativa (XL);12. Individualizao e proporcionalidade da pena:

    no atingir terceiros, nem poder deixar de levarem considerao a gravidade do delito (XLV eXLVI);

    13. Proibio de penas de morte (salvo em casode guerra), perptua, de trabalhos forados, debanimento e cruis (XLVII).

    de seus direitos ou bens, seno atravs de umjulgamento legal.

    Esse conceito, impregnado de justia e decncia,foi transplantado para a Constituio Americana de1787, onde atravs da Emenda n 5, inserida no Billof Rights, prev que ningum ser privado da vida,liberdade ou propriedade, sem o devido processolegal.

    O princpio foi adotado pela Constituio Brasileirade 1988, com quase oito sculos de atraso, quandodisps no art. 5:

    LIV - ningum ser privado da liberdade ou deseus bens sem o devido processo legal.

    Esse dispositivo constitucional vemcomplementado pelo inciso LV, assim editado:

    LV - os litigantes, em processo judicial ouadministrativo, e aos acusados em geral soassegurados o contraditrio e ampla defesa, comos meios e recursos a ela inerentes.

    Do preceito constitucional americano foramextradas as seguintes garantias bsicas do cidado,limitadoras da ao governamental:

    1. O direito do povo de estar seguro nas suaspessoas, casas, papis e efeitos contra desarrazoadabusca e apreenso (Emenda n. 4);

    2. Emisso de mandado de busca ou de prisosomente baseado em causa provvel, sustentada por

    juramento ou afirmao, descrevendoespecificamente o lugar, onde ocorrer a busca, e apessoa ou coisa a ser apreendida (Emenda n. 4);

    3. Indiciamento por grande jri para os crimeshediondo ou capital (Emenda n. 5);

    4. No ser julgado duas vezes pela mesma ofensa,colocando em risco sua vida ou parte do corpo(Emenda n. 5);

    5. Imunidade contra compulsria auto-incriminao (Emenda n. 5);

    6. Direito a um rpido e pblico julgamento, porum jri imparcial, no Estado e distrito onde o crime

    foi cometido (Emenda n. 6);7. Direito de ser informado da natureza e causa

    da acusao (Emenda n. 6);8. Direito do acusado de ser confrontado com as

    testemunhas favorveis ou adversas (Emenda n. 6);9. Direito a um processo compulsrio para obter

    as testemunhas em favor do acusado (Emenda n. 6);10. Direito a advogado nos casos criminais

    (Emenda n. 6);

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    b) oriundas do direito de propriedade

    1. Indenizao prvia, em dinheiro, no caso de

    desapropriao (CF, arts. 5, XXIV e 182, 3o

    )exceto do imvel rural improdutivo para fins dereforma agrria (CF, art. 184).

    2. Garantia da manuteno de bens e direitospatrimoniais j incorporados na esfera dedisponibilidade do indivduo (direito adquirido);

    3. a lei no violar o ato jurdico perfeito(contrato).

    c) comum:1. A sentena transitada em julgado no ser

    rescindida seno pelas causas e no prazo j estipulado

    em lei; lei nova no poder modific-la (XXXVI).Indissoluvelmente vinculado ao devido processo

    legal, sendo, inclusive, meio prprio para suaverificao, encontra-se a obrigao de todaautoridade (militar, policial, civil: administrativa ou

    judicial) de fundamentar suas decises, a fim de seaferir no s sua legalidade estrita, mas tambm a

    justia e moralidade do ato.A Constituio Federal trata do assunto no art.

    93:IX - todos os julgamentos dos rgos do Poder

    Judicirio sero pblicos, e fundamentadas todasas decises, sob pena de nulidade, podendo a lei, seo interesse pblico o exigir, limitar a presena, emdeterminados atos, s prprias partes e a seusadvogados, ou somente a estes;

    X - as decises administrativas dos tribunais seromotivadas, sendo as disciplinares tomadas pelo votoda maioria absoluta de seus membros.

    No obstante a garantia da motivao dos atosadministrativos e pronunciamentos judiciais noconstar tecnicamente das clusulas ptreas, cujoncleo imodificvel atravs de emendas

    Constit uio (CF. art. 60, 4), acha-seevidentemente a includa, por agregar-seinseparavelmente ao princpio do devido processo,que faz parte das garantias fundamentais.

    Embora inscrita no captulo destinado ao PoderJudicirio, essa garantia, imantada pelo devidoprocesso e pela clusula da igual proteo, se estende,como obrigao inafastvel, a toda autoridade daAdministrao Pblica.

    Tambm, o direito igualdade no se materializa juridicamente por si s, necessitando do manejo doprocesso, como instrumental garantidor de sua

    existncia onde, tanto no aspecto processual como nasubstancial, encontra-se abrangido pela clusula milenardo devido processo legal (Due process of law).

    Significa dizer que todas as garantiasfundamentais outorgadas pela Constituio - inclusivea coluna mestra da igualdade, colocada como a maiorde todas, tirante o direito vida - passaram a sevincular direta e objetivamente clusula do devidoprocesso e da igualdade, num vnculo de sujeio aessas, que passaram a dominar aquelas. Mesmo agarantia da igualdade, por j estar incorporada nodevido processo, sujeitou-se a ele.

    IX - DUALIDADE

    O princpio do devido processo legal comoinstituto de defesa da cidadania apresenta duasfaces: uma processual e outra substantiva.

    Atravs do devido processo legal procedimentalexige-se o tratamento igualitrio das partes noprocesso, o direito ao contraditrio e ampla defesa,encampando, na esfera criminal, o princpio dainocncia e a vedao de o acusado de produzir prova

    contra si, materializado no direito de permanecercalado.Portanto, privilegia-se a ampla defesa, o

    contraditrio, a motivao das decisesadministrativas e judicirias, o direito ao recurso,ao julgamento justo.

    A segunda forma de conteno do poder dosoutros dois ramos governamentais pelo PoderJudicirio, atravs da inconstitucionalizao de leisou de atos administrativos, em confronto vertical,como normas perifricas, como a regra matriz.

    No mbito substantivo, o devido processoautoriza ao Poder Judicirio, no exerccio de seupoder poltico como ramo do governo, aferir, a umtempo, a razoabilidade da lei, bem como exercerescrutnio estrito relativamente aquelas que violemas liberdades civis individuais e, por outro lado,exercer o controle sobre os outros doisDepartamentos do Governo, atravs da doutrina dosfreios e contrapesos (checks and balances).

    Sob esse aspecto, outros direitos podem ser

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    aflorados da zona de penumbra constitucional comoemanaes de correntes do princpio do devidoprocesso legal.

    IX - CONTROLE PELO JUDICIRIO

    O Judicirio, como poder fracionrio polticoindependente, exerce os freios e contrapesos atravsdo controle da constitucionalidade das leis e dos atosadministrativos.

    Esse controle se instrumentaliza atravs daclusula do devido processo legal, que em sua formasubstantiva permite ao Judicirio aferir e valorarpoliticamente os atos e opes dos outros ramosgovernamentais.

    O Juiz, como agente poltico, manifesta, ao julgaro caso concreto, seu modo pessoal de viso domundo, conservador ou progressista.

    to legtima essa postura do Poder Judicirio,como demonstra a Histria ConstitucionalAmericana, que o Judicirio, l, assentou dois modosde se encarar a lei face constituio:

    a) - Leis abordando aspectos econmicos: soconsiderados em princpio constitucionais, salvo seo demandante demonstrar que a lei no razovelaos olhos de um cidado comum (princpio darazoabilidade das leis);

    b) - leis que atingem direitos civis: soconsideradas a priori suspeitas, merecendo do

    judicirio um exame mais severo e estrito quanto sua constitucionalidade. Aqui compete ao Estadodemonstrar um relevante interesse pblico de modoa justificar que os direitos individuais sejam afetadosou restringidos.

    V-se que atravs da clusula do devido processolegal pode-se facilmente alcanar, entre outros, osseguintes objetivos:

    a) - dar nova dimenso luta do indivduo pela

    sua libertao, fornecendo como ferramenta jurdicao princpio do devido processo legal, cuja origemremonta Magna Carta Inglesa de 1215, e querepresenta uma das maiores conquistas do homemno sentido de, de um lado, ter um julgamento justoe imparcial e, de outro, conter a atuao estataldentro de limites aceitos pela sociedade democrtica;

    b) - evidenciar que o Poder Estatal deve serexercido limitadamente dentro do contextodemocrtico, dando-se relevncia s salvaguardas

    da separao dos poderes e do controle de um sobreos outros dois ramos, atravs da doutrina dos freiose contrapesos (Checks and Balances);

    c) - trazer a debate algumas estruturas existentes,evidenciando sua situao de incompatibilidade coma Democracia, que se assenta, sobretudo, naigualdade com a liberdade, visando aoaperfeioamento das Instituies polticas;

    d) - reavaliar, dentro dessa conjuntura, a posiodo Poder Judicirio, sugerindo-se uma mudanasubstancial: o juiz deixar de ser apenas um tcnicoem Direito passando a atuar como Agente Poltico,em correta correspondncia com sua participaofracionria do Poder Estatal. Adotando essa novapostura, o juiz deixar de ser um mero aplicador da

    lei, tornando-se, antes de tudo, um defensor dasinstituies democrticas e realizador da Justia.Assim, o Poder Judicirio passar a controlarefetivamente a atuao dos dois outros ramos doGoverno e, de outro lado, ao confrontarverticalmente a lei (regra perifrica) com aConstituio (norma matriz), dar prevalncia realizao dos preceitos da Lei Fundamental,realizando, com isso, a vontade do povo, que afonte primria de todo poder estatal;

    e) - democratizar o prprio poder judicirio,

    introduzindo nele a participao popular, dando-lhemaior legitimidade, de tal modo que sua atuaotambm fique sujeita ao debate e controle pblicos.

    Evidentemente essa abordagem no esgota aprofunda e ampla dimenso da clusula do devidoprocesso, cujo mundo fascinante dever serdescoberto e palmilhado por todos que amam aliberdade e detestam o arbtrio, que o inimigo maiorda cidadania.

    OBS.: Palestra proferida pelo Dr. PauloFernando Silveira - Juiz Federal deUberaba - MG, em 11.04.97, na

    Universidade de Uberaba, sob osauspcios da Escola de Governo do

    Tringulo Mineiro. Autor do livro DevidoProcesso Legal (Due Process of Law) eda premiada monografia Justia Federal:

    uma proposta para o futuro.

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    consideraes sobre o controle da constitucionalidadedas leis, naquilo que pertine ao interesse ecomportamento da Unio Federal na denominada

    jurisdio constitucional.Convm registrar com o fito de antecipar ao

    leitor uma pequena amostra da amplitude ecomplexidade do tema que a fiscalizao daconstitucionalidade no Brasil, ancorada no sistema

    jurisdicional, compreende o controle abstrato(genrico, concentrado) e o difuso (incidental,

    concreto). O primeiro se concretiza na ao direta deinconstitucionalidade interventiva; na ao direta deinconstitucionalidade; na ao direta deinconstitucionalidade por omisso e na aodeclaratria de constitucionalidade.2 Por sua vez, ocontrole difuso pode ocorrer em qualquer processo,sendo desinfluente a fase processual e o juiz ou tribunalque o preside. No sem razo que o Ministro SidneySanches, em palestra sobre o Supremo TribunalFederal, proferida na Universidade de Uberaba,afirmou que o Brasil possui o mais completo controlede constitucionalidade das leis do mundo.3

    2.SISTEMA DE CONTROLE DECONSTITUCIONALIDADE

    2.1. Na Europa.No Direito comparado mesmo nos pases

    ocidentais o sistema de controle deconstitucionalidade de leis varia de forma bastantesignificativa. Os franceses, por exemplo, alicerados

    1. CONSIDERAES GERAIS

    por demais desconfortante a posio do rgode defesa da Unio Federal nas aes diretas deinconstitucionalidade de lei ou ato normativo federalou estadual. O desconforto tem origem na atitude dolegislador constituinte de 1988 que imprimiu, a essaespcie de ao, uma dinmica que de to bizarramerece ser urgentemente supressa do textoconstitucional.

    Antes, porm, de ingressar nesse ponto nevrlgico,convm proceder a uma rpida anlise acerca dossistemas e tipos de controle de constitucionalidadede leis, o seu surgimento e qual a espcie adotadapelo Brasil.

    Para melhor fixar o conceito de controle deconstitucionalidade, permitam-me recorrer a umexemplo tomado do cotidiano. Imaginem um filtroque separa os dejetos imprestveis e transforma olquido impuro numa fonte de energia. Isso ocorrecom o filtro de gua, com o de leo e com os rinssadios de qualquer ser humano. A finalidade perspcuado filtro extirpar ou impedir que o corpo estranho,indesejvel e letal sade daquilo que se pretende

    proteger, permanea ameaando ou comprometendoa criatura, a mquina ou o prprio lquido.No campo da Cincia Jurdica, o controle das

    impurezas das normas que estejam em desacordo como texto da Constituio Federal se efetiva atravs demecanismos constantes na prpria Lei Fundamental,documento que se constitui, consoante definioprecisa do jurista Arx Tourinho, no maior referencial

    jurdico-poltico de um povo.1 Neste captulo como seu prprio ttulo j indica sero tecidas

    A UNIO FEDERALA UNIO FEDERALA UNIO FEDERALA UNIO FEDERALA UNIO FEDERALE O CONTROLE DACONSTITUCIONALIDCONSTITUCIONALIDCONSTITUCIONALIDCONSTITUCIONALIDCONSTITUCIONALIDADEADEADEADEADE

    Joo Carlos Souto

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    na crena de que a lei a expresso da vontade gerale, por conseqncia, o Parlamento o nico rgosoberano, nunca admitiram que a fiscalizao daconstitucionalidade das leis fosse outorgada aoJudicirio.4 Acreditavam, como ainda hoje acreditam,que admitir o contrrio seria legitimar a intromissodo Judicirio aos assuntos legislativos. Da porque,na Frana, a responsabilidade pelo controle daconstitucionalidade das leis toca a um rgo especial,o Conselho Constitucional, criado pela Constituiode 1958, aps experincias parecidas postas em prticapelas Constituies de 1852 e 1946.

    A soluo espanhola, adotada pela Constituio de1931, previa que o controle de constitucionalidade assim como o modelo francs tocaria a umtribunal especial. O que h de peculiar na experincia

    posta em prtica pela Espanha a diversidade dosmembros dessa corte especial. Dela faziam parterepresentantes eleitos pelo Poder Legislativo,funcionrios graduados do Poder Executivo,membros do Conselho de Advogados, professoresde Direito e representantes das regies territoriais daEspanha. Tambm na extinta Unio Sovitica aincumbncia era de um rgo especial, o SovieteSupremo.

    Contudo, a experincia europia, em sede decontrole de constitucionalidade das leis, no secircunscreve ao modelo francs, sovitico e espanhol.

    Outros pases erigiram sistemtica prpria, a exemplodo controle poltico que consistia em outorgar talatribuio ao prprio Poder Legislativo. Esse modelo,que vicejou no sculo XIX, no rendeu bons frutos,motivo pelo qual no floresceu at os dias atuais, pelomenos na sua forma primitiva, isto , o controleexercido isoladamente por rgo legislativo.

    A Sua, por seu turno, preferiu adotar o controlemisto, que se baseia numa certa hierarquizao dasnormas. Nesse sistema, a argio deinconstitucionalidade de leis federais apreciada pelaAssemblia Nacional, vale dizer, pelo PoderLegislativo, exemplo, pois, de controle poltico. Poroutro lado, no caso das leis locais o controle toca aosmembros do Poder Judicirio.

    2.2. O modelo norte-americanoPor fim, o controle jurisdicional que deita razes nos

    Estados Unidos e que consiste no monoplio do PoderJudicirio em declarar se um determinado ato normativo ou no constitucional, isto , se est ou no emconsonncia com os ditames da Lei Fundamental.

    De todos esses sistemas o que se revelou maiseficaz foi o norte-americano, que nasceu fruto dacoragem5 e argcia do justice John Marshall, 6 ao

    julgar, no ano de 1803, o clebre caso Marbury vs.Madison. 7 Marshall, ento presidente da SupremaCorte dos Estados Unidos, decidindo aparentementesem nenhuma pretenso doutrinria, porm muitomais voltado para um julgamento de grande interessee repercusso nacional, assinalou, como quemestivesse escrevendo posteridade:

    (...) The constitution is either a superiorparamount law, unchangeable by ordinary means, orit is on a level with ordinary legislative acts, isalterable when the legislature shall please to alter it.

    If the former part of the alternative be true, then

    a legislative act contrary to the constitution is notlaw: if the latter part be true, then writtenconstitutions are absurd attempts, on the part of thepeople, to limit a power in its own nature illimitable.

    Certainly all these who have framed writtenconstitutions contemplate them as forming thefundamental and paramount law of the nation and,consequently, the theory of every such governmentmust be, that an act of the legislature, repugnant tothe constitution is void. (...)

    So if the law be in opposition to the constitution;if both the law and the constitution apply to a

    particular case, so that the court must either decidethat case conformably to the law, disregarding theconstitution; or conformably to the constitution,disregarding the law; the court must determine whichof these conflicting rules governs the case. This is ofthe very essence of judicial duty.

    If, then, the courts are to regard the constitution,and the constitution is superior to any ordinary actof the legislature, the constitution, and not suchordinary act, must govern the case to which they bothapply..8

    Com essa lgica imbatvel de quem no precisausar escafandros para construir um raciocnioprofundo, John Marshall inaugurava importantecaptulo da histria poltica e constitucional dosEstados Unidos, tornando-os julgado e julgador referncias obrigatrias de qualquer autor que sedebruce sobre o tema controle de constitucionalidadedas leis. No sem razo a assertiva do constitucionalscholarCraig R. Ducat, de que provavelmente noh livro de prtica de direito constitucional que no

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    histrica deciso de chief justice John Marshall. Emsuma, o texto constitucional de 1787 fez surgir oambiente favorvel adoo do judicial review,cristalizado pelas mos de Marshall no polmico casoMarbury vs. Madison.

    3.O SISTEMA ADOTADO NO BRASIL

    3.1. Consideraes GeraisO controle da constitucionalidade das leis exercido

    pelo Judicirio hoje o mais difundido e, inclusive,adotado por vrios pases da Amrica Latina, almdo Canad, Austrlia e Japo, dentro outros. O Brasil,espelhando-se no exemplo norte-americano, acolheu-o h mais de um sculo, atravs do art. 59, 1 o, b,

    da Constituio de 1891.Todavia, de pouca utilidade teria sido o mencionadodispositivo constitucional da nossa primeira CartaRepublicana, se Ruy Barbosa no houvesse insistidona tese de que o Judicirio possua efetiva condiode declarar inconstitucionais os atos legislativos.Ocorre que no obstante a clareza do supracitadoart. 59, o Judicirio mostrava-se temeroso emincursionar pelo terreno novo e, de certo modo,desconhecido, do controle dos atos do Legislativo edo Executivo.

    A tibieza do Judicirio era de certo modo

    compreensvel, visto tratar-se de uma prerrogativarecente, poderosa e nunca antes exercitada em soloptrio. No se pode olvidar, tambm, que o regimeconstitucional que antecedeu ao de 1891 atribua aoLegislativo exercer o mumus de guardar a Constituio(Constituio de 1824, art. 15, 9o)11 e, ao Imperador,atravs do superpoder Moderador, a incumbnciade resolver os conflitos entre os poderes. Num cenriodesses e, ainda, levando-se em conta que o modelofrancs de controle no estava em mos de juzes,mas sim de um rgo especial, e o sistema inglssequer conhecia como ainda hoje desconhece o controle de constitucionalidade (dois pases queexerceram at ento enorme influncia sobre o Brasil),no era de se estranhar que o Judicirio brasileiro,pouco depois de promulgada a primeira ConstituioRepublicana, no se sentisse muito vontade paradeclarar invlidos, por vcio de inconstitucionalidade,atos emanados do Executivo e Legislativo.12

    Felizmente, a insistncia de Ruy Barbosa, f-lomudar de posio e, em fevereiro de 1895, o juiz

    inicie mencionando Marbury vs. Madison, (there issarcely a casebook on constitutional law that doesnot begin with Marbury vs. Madison). 9

    Portanto, a expresso e principalmente a tcnica- do controle jurisdicional de constitucionalidade dasleis (judicial review) legado do Direito Constitucionalnorte-americano, nascido no limiar do sculo XIX.Todavia, h um consenso, na doutrina especializada, sem, contudo, desmerecer o papel desempenhadopelo chief justice Marshall de que a sementedoutrinria j vinha sendo, em termos, semeadaalgumas dcadas antes do famoso julgamento de 1803.

    Benjamin F. Wright10 comentando a evoluo doDireito Constitucional norte-americano, assinala queas consideraes de SirEdward Coke, jurista ingls

    da metade dos sculos XVI e XVII, guardavam certasemelhitude com relao ao que mais tarde Marshallviria implementar. Em sntese, a opinio de Coke eraque o common law deveria prevalecer sobre os atosdo Parlamento e, se necessrio, torn-los ineficazes,sempre que o ato legislativo fosse contra o Direito ea razo, ou repugnante, ou impossvel de serexecutado..

    Note-se que, podemos assim dizer, a teoria deCoke no mencionava atos constitucionais, pelasimples razo de que o controle deconstitucionalidade das leis dificilmente encontraria

    ambiente favorvel em um pas como a Inglaterra,que no possua como ainda hoje no possui Constituio escrita. Contudo, a grande importnciadessa construo doutrinria era de que ela j acenavacom a possibilidade de controle sobre os atos doParlamento, no porque contrrios Constituio, masquando esses atos, por absurdo ou repugnncia,atentassem contra o direito costumeiro. H registrosde que algumas cortes inglesas implementaram a teoriaconstruda pelo citado jurista. Todavia, o Bill ofRights, fruto da guinada democrtica de 1688,robusteceu o Parlamento Ingls e profligou a liberdade

    do magistrado de julgar os atos do legislativo.Transportada para a Amrica, a teoria de EdwardCoke encontrou condies favorveis de ser postaem prtica, ainda na poca das Treze Colnias;despida, contudo, da fora dogmtica que, mais tarde,a Constituio de 1787 e a doutrina de Marshall viriamimplementar.

    A semente j havia sido lanada, porm, de nadaadiantaria esse gro sem o advento da Cartapromulgada pela Conveno de Filadlfia e sem a

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    exercitar o poder-dever que aquela Carta Poltica lheconferira. Desde ento o sistema brasileiro, originadodo norte-americano, tem se aperfeioado a cada passo,ou melhor, (sic) a cada nova constituio, at chegara atual, que inovou mais do que qualquer outro textoconstitucional do passado, alargando o campo dalegitimidade ativa para propor a ao direta deinconstitucionalidade e criando a figura do curadordo texto constitucional impugnado, ningum menosdo que o Advogado-Geral da Unio, ele prprio umasalutar e eficaz inovao 14 do constituinte daimpropriamente denominada dcada perdida.

    Advirta-se talvez j tardiamente que no seinsere entre os objetivos deste trabalho proceder aum levantamento histrico e minucioso sobre as

    questes referentes ao controle de constitucionalidadedas leis e como ele tem sido tratado pelas constituiesque sucederam a primeira Lei Fundamental daRepblica Federativa do Brasil.

    A anlise do tema sob a luz da Constituio de1988 15 afigura-se suficiente sua compreenso, semolvidar que, conforme j assinalado, o desideratumdestas linhas no o de dissecar o controvertido temade controle de constitucionalidade, mas sim o dedelinear o perfil da Unio Federal consoante os ditamesestabelecidos pela prpria Carta Magna.

    4. AO DECLARATRIA INCI-DENTAL

    4.1. Consideraes GeraisQualquer juiz ou tribunal pode, no curso de uma

    ao, proferir deciso declarando inconstitucional leiou ato normativo. Quando isso ocorre o magistrado ou o grupo de magistrados, se se tratar de tribunal estar exercendo o controle difuso deconstitucionalidade das leis, tambm chamado deconcreto ou incidental.

    A denominada fiscalizao concreta daconstitucionalidade um procedimento relativamentesimples e passvel de ser aplicado em qualquer umadas milhes de aes que tramitam perante o Judiciriobrasileiro. Para tanto, basta que o autor, o ru, olitisconsorte ou ainda o Ministrio Pblico, conjuntaou isoladamente, argua, numa situao concreta, emdefesa do seu direito, (na hiptese do M.P. ser odireito da sociedade) a inconstitucionalidade de umdeterminado dispositivo de lei, e o juiz 16 responsvel

    Henrique Vaz Pinto Coelho, acolheu a tese expendidapelo grande jurisconsulto baiano. A deciso do juizde primeiro grau fora posteriormente mantida peloSupremo Tribunal Federal, em julgamento datado de19 de setembro de 1895. O acrdo 13 encontra-seassim ementado: nulo acto do Poder Executtivoque reforma foradamente um official militar, forados casos previstos na lei. A Fazenda Nacional obrigada a pagar os vencimentos e vantagenspecunirias que deixou de perceber o officialreformado e que sero abonados enquanto perduraremos effeitos desse acto illegal. (texto original).

    3.2 Ruy e a apelao n. 112As consideraes tecidas pelo Supremo Tribunal

    Federal, ao analisar a apelao n. 112, proposta pelaFazenda Nacional, demonstram cabalmente que adoutrina de Marshall encontrara campo frtil na maisimportante Corte de Justia Brasileira. E no poderiaser de outra forma, porque abaixo da linha do Equadora lgica inexorvel do mais famoso chief justiceamericano estava impregnada com o brilho e aimpressionante capacidade de convencimento de RuyBarbosa, advogado do marechal Jos Almeida Barreto,na ao em que, pela primeira vez no Brasil, umtribunal de justia considerou um ato normativo eivadode inconstitucionalidade.

    A deciso do Supremo fora proferida em grau derecurso, posto que antes, como visto, Ruy Barbosa j houvera convencido o juiz Henrique Vaz PintoCoelho da inconstitucionalidade do decreto que haviaaposentado compulsoriamente o mal. AlmeidaBarreto. De sorte que a apelao da Fazenda PblicaNacional no surtiu efeito algum, a no ser o epossibilitar Corte Suprema a chance de pr emprtica o poder-dever que a primeira Constituiorepublicana lhe outorgara.

    O veridictum a que chegou o Supremo TribunalFederal no fora proferido unanimidade dosministros que participaram do julgamento, mas issono diminuiu a importncia da deciso tomada, atporque no divergiram acerca da possibilidade doexerccio do controle da constitucionalidade das lei,mas sim por outros detalhes.

    No Brasil, o controle de constitucionalidade dasleis sofreu, no decorrer deste sculo, uma longa elenta evoluo. O marco inicial, como visto, aprimeira Constituio Republicana, publicada em1891. Quatro anos mais tarde, o Judicirio passou a

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    A deciso do juiz singular, que declara ainconstitucionalidade de dispositivo de lei ou atonormativo, proferida incidenter tantum, isto , oobjetivo da ao no a declarao deinconstitucionalidade em si mesma, mas, uma situaode fato, um pedido concreto (e.g. a anulao de umcontrato, de uma multa, a repetio de indbito) noqual incidentalmente o autor ou ru, ou oslitisconsortes, pedem que seja reconhecida adesconformidade de um determinado texto legal emrelao Constituio. por isso que se denominatambm de controle incidental, porque est sempre

    jungido a uma situao concreta, constituindo-se adeclarao de inconstitucionalidade num incidentedo processo.

    4.2 Alcance da decisoNo controle incidental, a deciso proferida s faz

    coisa julgada entre as partes. No atinge terceirosnem vincula outros juzes a procederem da mesmaforma, ainda que o acrdo seja do Supremo TribunalFederal. Isso porque, no Brasil, no vigora o efeitovinculante das decises proferidas pelos tribunaissuperiores. De sorte que, se o Supremo entende quea lei X inconstitucional, e essa deciso for proferidano exerccio da fiscalizao concreta, qualquer outrorgo judicial ter toda liberdade de julgar de forma

    diversa, isto , pode, em outro processo, declararconstitucional a norma anteriormente defenestradapela mais alta Corte do pas.

    O que o juiz singular ou qualquer outro tribunalest impedido de fazer , no mesmo processo, naexecuo da deciso transitada em julgado, negar-sea dar andamento ao processo executivo por entenderque a norma inconstitucional. Nesse caso, omagistrado no pode proferir entendimento contrrioem razo da autoridade da coisa julgada que torna adeciso imutvel, s altervel na hiptese de aorescisria.

    Entretanto, possvel que o Supremo TribunalFederal, no exerccio de jurisdio constitucionaldifusa, ao julgar um recurso extraordinrio em quese discute a constitucionalidade de determinadodispositivo legal, profira deciso que, posteriormentevenha a ter eficcia erga omnes. Mas para isso imprescindvel a concorrncia de uma outra instnciade poder, no bastando a deciso isolada da CorteConstitucional. o que se infere do art. 52, X, da

    pelo caso, na deciso, acolha o pedido, declarandoque a norma inquinada de inconstitucional contrariaum determinado artigo da Lei Fundamental.

    desinfluente a origem da norma acoimada deinconstitucionalidade: ela pode ser federal, estadualou municipal. Da mesma forma, no importa a espciede Justia qual o magistrado esteja vinculado; tantofaz se ele federal, estadual ou pertena denominadajustia especializada: militar, do trabalho e eleitoral.Tambm no importa se se trata de juiz singular oudeciso colegiada, ainda que do Supremo TribunalFederal. Enfim, qualquer rgo judicial, dentro doslimites da sua competncia, pode exercer afiscalizao concreta.

    O rgo judicial de primeiro grau, ao declarar por

    sentena a inconstitucionalidade de ato normativo, noest obrigado a recorrer de ofcio, eis que no h incasu deciso genrica contra ente pblico, nos termosdo art. 475 do Cdigo de Processo Civil. 17 Nadaimpede, porm, a interposio de recurso pelosucumbente, que, na defesa do seu direito, pode,inclusive, submeter a sua tese ao julgamento doSupremo Tribunal Federal, por via do recursoextraordinrio. A competncia do Supremo em sedede controle difuso de constitucionalidade das leisencontra-se disposta no art. 102, III, b e c, da atualCarta Poltica: Art. 102. Compete ao Supremo

    Tribunal Federal, precipuamente, a guarda daConstituio, cabendo-lhe: (...) III - julgar, medianterecurso extraordinrio, as causas decididas em nicaou ltima instncia, quando a deciso recorrida: (...)b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou leifederal; c) julgar vlida lei ou ato de governo localcontestado em face desta Constituio..

    Entretanto, o controle incidental exercido peloSupremo Tribunal Federal no se restringe, como bvio, ao recurso extraordinrio previsto no art. 102,III, b, da Carta Poltica de 1988. Desse entendimento,compartilha Clmerson Merlin Cleve:

    evidente que o Supremo Tribunal Federal pode,incidentalmente, declarar a inconstitucionalidade de leiou ato normativo (federal, estadual ou municipal) emqualquer feito de sua competncia original, recursal,ordinria e recursal extraordinria). Entretanto, orecurso extraordinrio (art. 102, III, da Lei Fundamentalda Repblica) constitui o principal mecanismo, noscasos concretos, de encaminhamento de questesconstitucionais Suprema Corte.. 18

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    Fundamental, uma situao de extrema gravidade.O instituto, como visto, pode ser usado em

    diversas situaes admitidas pela Constituio Federal,contudo, s nos casos do art. 34, VII, que se faznecessrio o ajuizamento da ao direta interventiva,a ser proposta pelo Procurador-Geral da Repblica,perante o Supremo Tribunal Federal. essa espcieda interveno que interessa ao presente estudo.

    Ajuizada a ao direta interventiva, cabe aoSupremo Tribunal Federal julg-la procedente ouimprocedente, isto , acolher ou no o pedidoformulado pelo Procurador-Geral da Repblica.Manifestando-se pela procedncia, a Corte Supremacomunicar ao Presidente da Repblica o teor dadeciso e este suspender o ato julgado

    inconstitucional. Se a medida for suficiente, isto ,se o Estado-membro aceit-la sem resistncia, anormalidade constitucional estar restabelecida, desorte que no haver mais motivos para a interveno.Entretanto, se o Estado, parte r na ao interventiva,desconsiderar a suspenso determinada pelo chefedo Executivo Federal, a este no restar outraalternativa seno decretar a interveno com vistas atornar efetivo o acrdo do Supremo Tribunal Federal.

    5.1. PartesO texto constitucional (arts. 34, VII e 36, III) no

    deixa dvidas acerca de quem possui legitimidadepara requerer a ao direta interventiva. De sorte que,no plano federal, so partes a Unio, sempre naqualidade de autora, e o Estado-membro ou o DistritoFederal, como parte r.

    Sendo autora a Unio Federal, era de se esperarque a sua representao em juzo se desse emconsonncia com o art. 131 da Constituio daRepblica, que erigiu a Advocacia Geral da Uniocomo instituio que, diretamente ou atravs dergo vinculado, representa a Unio, judicial eextrajudicialmente. (...) No foi o que ocorreu. Arepresentao do ente federal, exclusivamente nessetipo de ao, toca (sic) Procuradoria-Geral daRepblica. Trata-se de enorme contra-senso. Se naao direta interventiva autora a Unio Federal, se ointeresse da pessoa jurdica de Direito Pblico, e nodiretamente da sociedade, a representao judicialdaquela s poderia recair sobre a instituio encarregadapela prpria Lei Fundamental em defender os seusinteresses dele ente federal em juzo.

    Carta Poltica de 1988, que faculta ao Senado Federala possibilidade de suspender a execuo, no todoou em parte, de lei declarada inconstitucional pordeciso definitiva do Supremo Tribunal Federal. Pordeciso definitiva entende-se aquela que precedidade outras decises, de sorte que o auxlio do Senados se torna necessrio nos casos de controleincidental.

    Com essas consideraes acerca do tema dafiscalizao concreta, possvel concluir que a UnioFederal no tem interesse direto sobre as aes emque se discute a constitucionalidade das leis de formaincidental, salvo, nos casos em que ela parte oulitisconsorte. Enfim, a Unio, no sendo parte oulitisconsorte na causa, no tem interesse genrico

    sobre essas aes, no exerce a atividade de curadorda norma quando se discute casos concretos.

    5. AO DIRETA INTERVENTIVA

    A ao direta interventiva, ou, como preferemalguns, representao interventiva, encontra-sedisposta no art. 36, III, da Carta Poltica de 1988.No se trata, porm, de inovao do constituinte defins da dcada passada. Desde 1934 que oordenamento jurdico brasileiro prev esse tipo deao. A partir de seu aparecimento, inmeras

    mudanas foram adotadas, contudo, a posio daUnio Federal (talvez fosse melhor dizer o interesse)permanece, desde ento, praticamente inalterada. Seo interesse do ente federal no sofreu alteraes derelevo, o mesmo no se pode dizer, como sedemonstrar a seguir, a respeito do rgo que deveriarepresent-la nessa espcie de ao constitucional.

    Antes, porm, de discorrer sobre essa questoatinente ao rgo de representao da Unio Federalnas aes interventivas, convm que se fixe, aindaque en passant, o seu objeto e caractersticas outras.

    A finalidade ltima da interveno (seja da UnioFederal nos Estados ou no Distrito Federal e dosEstados no Municpio) pr fim a uma situaoanormal que contraria o texto da Constituio ou darcabo ameaa a integridade do Estado, como noscasos de invaso estrangeira ou, ainda, impedir oconflito entre Estados Membros da Federao. , porconseguinte, uma providncia excepcional 19 que temoescopo de restabelecer a ordem e o imprio da lei,afastando, atravs de uma medida prevista na Lei

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    Supremo Tribunal Federal nos casos de impugnaode lei ou ato normativo federal ou estadual em faceda Lei Fundamental. Por outro lado, a competncia

    toca Justia Estadual, pelo rgo de cpula de cadaEstado (Tribunal de Justia) nas hipteses deinconstitucionalidade de lei ou ato normativo estadualou municipal em face da Constituio Estadual CF/88, art. 102, I, a e 125, 2o. Trata-se, em ambosos casos, de exerccio de jurisdio constitucionalconcentrada e abstrata, posto que deferidaexclusivamente a um rgo de cpula do Judicirio(federal e estadual) que apreciar o teor da norma,sem se ater a situaes concretas, prprias damodalidade jurisdicional difusa.

    O direito brasileiro de fins do sculo passado e

    incio deste desconhecia o controle concentrado deconstitucionalidade das leis. Ento o Judicirioapreciava as questes constitucionais somente noscasos concretos. Esse panorama s comearia amudar a partir de 193421 quando surgiu a ao diretade inconstitucionalidade interventiva e, tempos depoisa ao direta de inconstitucionalidade atravs daEmenda Constitucional 16,22 de 1965 - portanto j navigncia do Regime Militar.

    6.3. Legitimidadequela poca, meados da dcada de 60, at a

    promulgao da atual Constituio, a ao direta deinconstitucionalidade s tinha um titular, o procurador-geral da Repblica, rbitro da convenincia da suapropositura, consoante definio do Ministro MoreiraAlves23. De fato, o entendimento do chefe doMinistrio Pblico da Unio no sentido de que inexistiarazo para a propositura de uma ao direta deinconstitucionalidade era bice intransponvel aoajuizamento da referida ao24. Nessa hiptese anorma s poderia ser impugnada atravs do controledifuso, 25 apreciando, o Judicirio, atravs dequalquer juiz ou tribunal, a situao concreta eproferindo deciso vlida somente para as partes.

    O Estatuto Supremo de 1988 deu cabo a essasituao, introduzindo duas 26 modificaes de relevona ao direta de inconstitucionalidade. A primeiradelas refere-se ampliao significativa do rol delegitimados a prop-la. Antes, como visto, a atribuioera exclusiva do procurador-geral da Repblica.Cnscio de que essa situao de unicidade no traziabenefcios a ningum, o constituinte, numa atitude

    O equvoco do constituinte de 1988 no passouimpune observao precisa de Clve que, nesseaspecto, considerou a Constituio contraditria,porque, primeiro, veda aos membros do MinistrioPblico o exerccio da representao judicial deentidades pblicas (art. 129, IX, da CF) para, depois,dar ao procurador-geral da Repblica a titularidadeda ao direta interventiva (art. 36 da CF).. E omesmo autor completa:

    (...) a descaracterizao da ao direta interventivano comeou com a Constituio de 1988, senoantes, com a Constituio de 1969 quando, previstaa representao interventiva no plano estadual (art.15, da CF/69), atribuiu-se a titularidade da ao aoChefe do Ministrio Pblico local. Ou seja, a confuso,

    quanto titularidade da ao, iniciou-se em 1969 ecompletou-se em 1988. 20

    Assim, no seria absurdo registrar que a LeiFundamental de 1988 parece ter acolhido excees regra do art. 129, IX e art. 131, ao admitir que oMinistrio Pblico Federal (sic) represente a UnioFederal nas aes diretas interventivas e ao afastara Advocacia-Geral da Unio dessa atribuio. Pode-se afirmar, tambm, que as excees erigidasocorreram muito mais por impercia do que por umadeciso tcnica, consciente e amadurecida.

    6. AO DIRETA DEINCONSTITUCIONALIDADE

    6.1. Consideraes geraisA ao direta de inconstitucionalidade um dos

    mecanismos insertos na Carta Poltica de 1988, peloconstituinte originrio, com o fito de preservar acompatibilidade vertical do ordenamento jurdicobrasileiro. Em outras palavras: posto ser inaceitvela existncia de lei ou ato normativo contrrios aotexto constitucional (princpio da supremacia),

    criou-se com o escopo de proteg-lo e de mantera harmonia entre a norma superior e as demais quenela encontram fundamento uma providncia

    jurisdicional especial e clere, capaz de retirar decirculao lei ou ato normativo dissonante comnorma ou princpio da Lei Fundamental.

    6.2. CompetnciaA competncia para julg-la exclusiva do

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    democrtica e digna dos maiores elogios, entendeunecessrio dilatar o elenco dos legitimados e, comotal, previu, no art. 103, que alm do chefe doMinistrio Pblico da Unio tambm so aptos oPresidente da Repblica, a Mesa do Senado, a Mesada Cmara dos Deputados, a Mesa de AssembliaLegislativa, o Governador de Estado, o ConselhoFederal da OAB, partido poltico com representaono Congresso Nacional e confederao sindical ouentidade de classe de mbito nacional.27

    6.4. A posio do Advogado-Geral da UnioA segunda modificao significativa ainda que,

    como adiante se demonstrar, merea urgente reparo refere-se necessidade da defesa prvia do ato

    impugnado atravs da citao do advogado-geral daUnio, que, sob qualquer hiptese, tem obrigao dedefend-lo. Essa imposio ao Advogado-Geral da Uniodecorre de dispositivo constitucional, art. 103, 3o.

    Dessa forma, a atribuio do advogado-geral no secircunscreve a de chefe da instituio que, diretamenteou atravs de rgo vinculado, representa a Unio, judiciale extrajudicialmente (...). (CF/88, art. 131). Ele tambm o curador da presuno de constitucionalidade dalei,28 consoante acrdo do Supremo Tribunal Federal,fundamentado no artigo 103 supradito. Com isso, oconstituinte introduziu o contaditrio em sede de controle

    abstrato; assim, o julgamento de todo e qualquer atoimpugnado dever ser precedido de defesa apresentadapor aquela autoridade.

    Nesse mesmo acrdo o Supremo decidiu que oadvogado-geral negada a opo de defender ou no oato impugnado. No lhe cabem subjetividades, mas, to-somente cumprir o comando constitucional.

    Com essa deciso, alicerada no j mencionado 3o, do art. 103, do Estatuto Poltico, o Advogado-Geralda Unio no raro ter diante de si situaes de difcilsoluo, diria mais, verdadeiros dilemas, conseqnciada inabilidade do constituinte ao instituir o contraditrioem sede de ao direta de inconstitucionalidade.

    O texto constitucional reforado peloentendimento do Supremo Tribunal Federal, seu guardioe principal intrprete impe ao advogado-geral umcomportamento, em determinados casos, contraditrio.Suponha-se que ele sugira, atravs de parecer, que oPresidente da Repblica vete um determinado projetode lei, por consider-lo contrrio Constituio.Considere-se que, mais tarde, o veto seja derrubado pelo

    Legislativo e a lei, to logo promulgada pelo presidentedo Congresso, torne-se objeto de uma ao direta deinconstitucionalidade, movida pelo Presidente daRepblica e assinada pelo prprio Advogado-Geral.29 Ainterpretao literal do 3o do art. 103, tal como procedidapelo Supremo, impe ao advogado-geral ou aomenos a um de seus subordinados a defesa do atoconsiderado por ele prprio como inconstitucional.

    Haveria maior dilema para uma autoridade daenvergadura do Advogado-Geral da Unio, incumbidopela Lei Suprema, da nobre, rdua e gigante tarefa dechefiar a instituio responsvel pela defesa do patrimniopblico federal, do que ter que defender atoflagrantemente inconstitucional e por ele prpriopreviamente considerado como tal?

    Esse argumento, em termos, semelhante ao usadopela Procuradoria da Repblica no julgamento da Adin97-7/89, oriunda do Estado de Roraima. Ocorre que,em 1989, ano do julgamento da mencionada ao diretade inconstitucionalidade, a Advocacia-Geral da Unioainda no se encontrava instalada 30 e o papel deAdvogado da Unio continuava sob a responsabilidadeda Procuradoria-Geral da Repblica. Nos casos de aodireta de inconstitucionalidade, o chefe do MinistrioPblico da Unio designava um dos membros dainstituio para fazer as vezes de advogado-geral daUnio, defendendo o ato impugnado.

    Por ocasio do julgamento da Adin supracitada,ajuizada pelo Governador do Estado de Roraima, que seinsurgia contra ato normativo da Assemblia Constituintedaquela unidade da Federao, a procuradora daRepblica Odlia Ferreira, restituiu os autos ao SupremoTribunal Federal, argumentando, em sntese, que:

    (...) a ampliao da defesa exercida pelo advogado-geral da Unio s leis e outros atos normativos federadospoderia, em certas e no raras hipteses, criar um conflitocom as atribuies ordinrias do rgo por ele chefiado.

    Ao final, arrematou a ilustre procuradora: ainterpretao ampla da funo prevista no art. 103, 3o,porque estende a defesa exercida pelo advogado-geralda Unio e, ao mesmo tempo, restringeinjustificadamente a competncia dos procuradores dosEstados, fere, sem dvida, os interesses das unidadesfederadas. (grifou-se).

    Ora, essa hiptese ainda mais relevante do aquelaque utilizei linhas acima. Trata-se de restrio autonomiada unidade federada, princpio intocvel da LeiFundamental, consoante art. 60, 4o, I. Suponha-se

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    Unio ou a quem lhe faa s vezes, sentir-se toconstrangido, no se sentir em condies de funcionare pedir substituio. possvel que um dia nenhumadvogado da Unio se disponha a defender o atoacoimado de inconstitucional. A teremos de resolvero problema, que, no caso, ainda no surgiu.

    Mas, de qualquer maneira, por ora, acompanho oeminente Relator e os Ministros que me precederam.

    Ao ento ministro Francisco Rezek, o incmodo eo defeito da norma pareceram dificuldades superveis:

    H uma profunda coerncia entre o incmodocausado por esta norma e a gnese da prpria norma -que, por acaso, todos conhecemos. Acho, entretantoque, com todos os seus defeitos, ela no chega asabotar o sistema. Eu me sentiria menos seguro se o

    Ministrio Pblico fosse forado, pelo textoconstitucional, a exercer esse encargo; se ao fiscal dalei, quela instituio cujo comprometimento maior com a ordem jurdica, se houvesse imposto esse nus.As dificuldades me parecem superveis no caso daAdvocacia-Geral da Unio.

    Outro que preferiu crer numa soluo futura sno disse qual foi o Ministro Aldir Passarinho, quesalientou o carter surpreendente do mencionadodispositivo constitucional:

    Sr. Presidente, a norma do art. 131 da NovaCarta Poltica, de certo modo, chega a surpreender.

    que, por ela, a Advocacia-Geral da Unio almda funo de representar a Unio e de exercer asatividades de Consultoria e Assessoramento Jurdicodo Poder Executivo fica obrigada, tambm, adefender uma norma legal, mesmo estadual, quepossa entrar em conflito com a Constituio Federale que at diretamente possa contrariar os interessesda Unio Federal.

    (...) A Advocacia-Geral da Unio, pelo art. 103 daCF, encontrar ela o caminho prudente para exercersua funes, sem que ao mesmo tempo se violente,quando achar dificuldade na defesa de normaabsolutamente inconstitucional..

    Os votos supra reproduzidos dizem bem dacomplexidade do art. 103, 3o da Lei Fundamental e,por conseqncia, da extrema dificuldade de interpret-lo e o constrangimento em aplic-lo. De sorte que,se a norma constitucional incmoda, anmala,surpreendente, causa constrangimento e provocaum desarranjo sistemtico na Constituio, s restaao constituinte de segundo grau proceder a alterao

    devida se se quiser mant-la ou simplesmentesuprimi-la, haja vista no encontrar-se dentro do ncleoimodificvel do texto maior.

    Em outra ocasio, a impertinncia do art. 103, 3o, do texto constitucional foi objeto tambm dasconsideraes do ento Procurador-Geral da Repblica,Aristides Junqueira, em vitorioso parecer proferido naAo Direta de Inconstitucionalidade n. 51-9-RJ,proposta contra a Resoluo 02/88, do ConselhoUniversitrio da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

    Buscava a Procuradoria da Repblica, nessa ao,a declarao da inconstitucionalidade da citadaresoluo, que determinava a escolha do respectivoreitor e vice-reitor, atravs de processo eleitoral quedeveria iniciar-se e findar-se no mbito da UFRJ. A

    inconstitucionalidade, reconhecida pelo SupremoTribunal, residia justamente nesse item, posto que aautonomia concedida s universidades no alcana acompetncia de legislar sobre a matria (art. 22, XXIV,da CF) e no tem o condo de retirar do Presidente daRepblica o direito de nomear o Reitor escolhido pelainstituio.

    A invaso de competncia restava absolutamenteevidente e, mesmo assim, contrariamente aos interessesda Unio, ao advogado-geral cabia defender o textoimpugnado em cumprimento ao art. 103, 3o da LeiMaior. Sobre a contradio do texto fundamental disse

    o Procurador-Geral da Repblica:6. Manifestou-se, em seguida, a advogada-geralda Unio, em observncia ao disposto no artigo 103, 3o, da Constituio Federal, pugnando pelaimprocedncia da ao, em defesa do ato impugnado.

    7. Preliminarmente, com a vnia devida, no nosparece pertinente, aqui, a defesa, pela Unio, do atoimpugnado, dada a evidente oposio de interesses entreela e o seu ente autrquico.34

    At o presente momento, s trs constitucionalistasse ocuparam em alinhavar algumas brevesconsideraes em torno desse tema palpitante. Foram

    eles: Gilmar Ferreira Mendes, Nlson Jobim eClmerson M. Clve. Os dois primeiros, medianteartigo elaborado a quatro mos intitulado A reformado Judicirio: a jurisdio constitucional na revisoconstitucional de 1994 - parte 135 . O terceiro, nasua obra A fiscalizao abstrata deconstitucionalidade no Direito brasileiro.36 Emcomum, crticas ao texto e sugesto no sentido desuprimi-lo.37

    Nelson Jobim e Gilmar Ferreira Mendes me

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    pareceram mais incisivos e usaram de um termo:advocacia da inconstitucionalidade, por eles grifado, que seencaixa perfeitamente na desengrenagem insculpidapelo legislador constituinte originrio. Disseram eles:

    Pode-se indagar ainda se o advogado-geral daUnio deve defender, ato manifestamenteinconstitucional. Em princpio, no se pode exigir quergo institudo pela Constituio veja-se nacontingncia de propugnar pela legitimidade de atoscontrrios ao ordenamento bsico, em flagrante ofensaao postulado imanente da fidelidade constitucional. Sea resposta pudesse ser afirmativa, teramos dereconhecer que a Constituio brasileira acabou porinstituir a advocacia da inconstitucionalidade. Em verdade,tais consideraes parecem legitimar a idia de que, adespeito da concepo e formulao gravemente

    defeituosas, o constituinte somente pode ter asseguradoao advogado-geral da Unio um direito de manifestao,dentro dos limites impostos pelo prprio ordenamentoconstitucional..38

    Nessa passagem, atingiram o mago da questo,entretanto, talvez no af de contemporizar o erro doconstituinte, o co-autor do pargrafo suprareproduzido foi um deles - equivocaram-se no final dodiagnstico, ao conjecturar que o legislador originrioquis assegurar ao Advogado-Geral da Unio um direitode manifestao, dentro dos limites impostos peloprprio ordenamento constitucional.. Evidente que

    no. O constituinte, em verdade, quis erigir eefetivamente erigiu, ainda que por linhas tortas umcurador da norma acoimada de inconstitucionalidadee, ao faz-lo, no se apercebeu da brutal incoerncia aque submeteu aquela autoridade. Ademais, caberiamas seguintes indagaes: 1) Qual o escopo de seassegurar um direito de manifestao num processoreconhecidamente objetivo como o de controleabstrato das normas? 2) Qual a finalidade damanifestao de um advogado de pessoa jurdicaquase sempre39 interessada nas aes diretas deinconstitucionalidade dada a incontestvel volpia

    legislativa da Unio, que detm o inalcanvel ttulo demaior cliente do Supremo Tribunal Federal?40 3) Quesentido haveria nessa manifestao, se o MinistrioPblico Federal j atua nos processos de competnciado Supremo, na qualidade de fiscal da lei (CF/88, arts.103, 1o. e 129, II)?

    Clve, mesmo advogando a supresso pura esimples, admite numa nica hiptese: que o textoseja mantido, todavia, com uma profundamodificao. Na sua proposta o advogado-geral s

    defenderia o ato impugnado de inconstitucionalidadequando houvesse identidade entre sujeito ativo epassivo, ou ento seria o caso de se reservar aoadvogado-geral da Unio o papel de curador, apenas,em relao quelas situaes em que se manifesta umaidentidade entre os legitimados ativos e os passivos(lei delegada editada pelo Presidente da Repblica eimpugnada por seu sucessor). Aqui, como no haverrgo para produzir a defesa do ato impugnado, emerge,com efeito, a necessidade de um curador da presunode legitimidade do ato atacado..41

    O ilustre constitucionalista no atentou para odetalhe de que, quando o Presidente impugnasse umalei delegado do seu antecessor, f-lo-ia justamente porsugesto e atravs 42 do advogado-geral, rgo mximo

    da instituio constitucionalmente incumbida de entre outras relevantes atribuies assessorar o chefedo Executivo Federal. Destarte, o incmodo e aanomalia persistiriam, haja vista que haveriaidentidade entre o advogado do autor da ao e o rgoincumbido de defender o texto impugnado.

    lamentvel que diante de tantas evidncias e dascrticas tecidas ao mencionado pargrafo do artigo 103do Estatuto Poltico de 1988, a tese expendida peloprofessor da universidade de Tbingen, Otto Bachof,43

    sobre a possibilidade de existirem normasconstitucionais inconstitucionais dentro da prpria Lei

    Fundamental no encontre guarida na nossa CorteSuprema. No discuto nem de longe me arriscariaa faz-lo a razo pela qual o Supremo TribunalFederal inacolhe a doutrina do citado jurista germnico,entretanto, parece-me que em situaes tais algoprecisaria ser feito com o fito de harmonizar eracionalizar o texto constitucional ante a flagrante einiludvel incoerncia por ele acolhida.44

    Todavia, no se pode olvidar que a crtica maiordeve ser dirigida ao legislador. Primeiro, ao constituinteoriginrio, por nos ter legado um texto confuso eindigno da Lei Fundamental. Segundo, ao constituinte

    derivado, pela inrcia demonstrada aps decorrido maisde um lustro da promulgao da Constituio Cidad.

    Joo Carlos Souto Procurador da FazendaNacional e Professor de Direito Constitucional na

    UNIUBE. Membro do Instituto Brasileiro deDireito Constitucional e do Instituto dos Advogadosda Bahia. Especialista em Direito norte-americano

    pela University of Delaware (Newark-DE, EUA) .

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    1 A frase acima encontra-se inserida no seguinte e relevante

    contexo: Infelizmente, em noso pas, dominado por uma elitecultural, poltica e econmica insensvel, na maioria das vezes,aos problemas do cidado, que vive o dia-a-dia de amarguras edificuldades, os avanos se do de forma lenta em normasconstitucionais. Infelizmente, tambm, essa elite desmoraliza aConstituio, que deve ser o maior referencial jurdico-poltico deum povo. Fixam normas constitucionais, mas refreiam suaaplicabilidade, tornando-as ineficazes ou simples ornamentos deuma beleza estril e perdida (...). Cf. O cinqentenrio daConstituio brasileira de 1946 e as liberdades pblicas. Separata. Revista de Informao Legislativa, p. 122-3.

    2 O controle abstrato funo precpua do Supremo TribunalFederal. Entretanto, pode o Tribunal de Justia do Estado julgarao direta de inconstitucionalidade se o ato impugnado for estadualou municipal, em face da Constituio Estadual. Assim, ato estadualcontrrio Carta Poltica Federal, a competncia ser do Supremo.Cf. art. 102, I. a, e art. 125. 2o, ambos da CF/88.

    3 Sidney Sanches. O Supremo Tribunal Federal. PalestraPromoo: Ncleo de Estudo Jurdico Promotor de JustiaLuciano Justiniano Ribeiro MPE-MG, Universidade deUberaba, 08/11/96.

    4 Clmerson M. Clve. A fiscalizao abstrata deconstitucionalidade no Direito brasileiro. Revista dos Tribunais,So Paulo, 1995, p. 48.

    5 O substantivo no est aqui por acaso. O julgamento do casoMarbury vs. Madison, exigiu de Marshall inteligncia, bom sensoe coragem, considerando-se que qualquer deciso que tomassepoderia causar conflitos entre os Poderes da ento incipienteRepblica estadunidense. Para maiores detalhes sobre esse julgamento consultar: James V. Calvi e Susan Coleman. In: American law & legal systems. New Jersey: Prentice Hall/

    Englewood Cliffs, 1992, p. 120-3.6 Na terminologia jurdica norte-americana o termo justiceequivale ao de ministro da Suprema Corte e chief justice, ao seupresidente. Cf. Blacks Law Dictionary.

    7 Marbury vs . Madison. O texto completo da deciso deMarshall encontra-se publicado na obra de Walter E. Volkomer.Introduction to LAW a Casebook. New Jersey: Prentice Hall/Englewood Cliffs, 1994. p. 116.

    8 A Constituio ou uma lei superior e predominante, e leiimutvel pelas formas ordinrias; ou est no mesmo nvel juntamente com as resolues ordinrias da legislatura e, como asoutras resolues, mutvel quando a legislatura houver por bemmodific-la.

    Se verdadeira a primeira parte do dilema, ento no lei aresoluo legislativa incompatvel com a Constituio; se a segundaparte verdadeira, ento as Constituies escritas so absurdastentativas do povo para delimitar um poder por sua naturezailimitvel. Certamente, todos quantos fabricaram Constituiesescritas consideraram tais instrumentos como a lei fundamental epredominante da nao e, conseqentemente, a teoria de todo ogoverno, organizado por uma Constituio escrita, deve ser que nula toda a resoluo legislativa com ela incompatvel. (...)

    Assim, se uma lei est em oposio com a Constituio; seaplicadas ambas a um caso particular, o tribunal se v nacontingncia de decidir a questo em conformidade da lei,desrespeitando a Constituio, ou consoante a Constituio,desrespeitando a lei; o tribunal dever determinar qual destas regrasem conflito reger o caso. Esta a verdadeira essncia do Poder

    Judicirio. Se, pois, os tribunais tm por misso atender

    Constituio e observ-la e se a Constituio superior a qualquerresoluo ordinria da legislatura, a constituio, e nunca essaresoluo ordinria, governar o caso a que ambas se aplicam..

    9 Modes of constitutional interpretation. St. Paul, Minn.: WestPublishing Company, 1978. p.01.

    10 The growth of American Constitutional Law. New York:Reynal, 1942. p. 63.

    11 Art. 15, 9o: da atribuio da Assemblia Geral: (...) 8o -Fazer leis, interpret-las, suspend-las e revog-las. 9o - Velar naguarda da Constituio e promover o bem geral da Nao.

    12 A doutrina nacional costuma criticar o Judicirio do fim dosculo passado, por no ter assumido de imediato a posio que otexto constitucional lhe outorgara. Entendo que a crtica improcedente, principalmente por no levar em considerao oambiente supracitado. Por outro lado, at mesmo nos EstadosUnidos a poderosa Suprema Corte sofreu inmeras presses queprocuravam diminuir o seu poder de declarar inconstitucionaltoda e qualquer norma contrria Carta de Filadlfia, a exemploda insucedida reforma do Judicirio, pregada por Roosevelt, em1937, logo aps ter sido eleito para o segundo mandatoconsecutivo.

    13 Supremo Tribunal Federal. Jurisprudncia. Acrdosanexos ao relatrio apresentado pelo presidente do Tribunal.1985. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1987. p. 189-90.

    14 Parte da doutrina especializada ainda no atentou para arelevncia da posio do advogado-geral da Unio nas aes diretasde inconstitucionalidade, Jos A. da Silva um deles; ao discorrer,de forma breve, sobre as inovaes introduzidas pelo constituinteem sede decontrole de constitucionalidade de leis, o citado autormenciona, de modo muito tnue, a posio que aquela autoridadeassume nas ditas aes. Ao se referi