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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ ANITA KONS DA SILVEIRA A INTERVENÇÃO HUMANITÁRIA COMO FORMA LEGÍTIMA DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS São José 2008

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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ

ANITA KONS DA SILVEIRA

A INTERVENÇÃO HUMANITÁRIA COMO FORMA LEGÍTIMA DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

São José

2008

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ANITA KONS DA SILVEIRA

A INTERVENÇÃO HUMANITÁRIA COMO FORMA LEGÍTIMA DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

Monografia apresentada à Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI , como requisito parcial a obtenção do grau em Bacharel em Direito. Orientador: Prof. Dr. André Lipp Pinto Basto Lupi Co-orientador: Prof. Dr. Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo

São José 2008

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ANITA KONS DA SILVEIRA

A INTERVENÇÃO HUMANITÁRIA COMO FORMA LEGÍTIMA DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

Esta Monografia foi julgada adequada para a obtenção do título de bacharel e aprovada pelo

Curso de Direito, da Universidade do Vale do Itajaí, Centro de Ciências Sociais e Jurídicas.

Área de Concentração: Direito Público/Direito Internacional Público: Integração, Intervenção e

Direitos Humanos

São José, 17 de novembro de 2008.

Prof. Dr. André Lipp Pinto Basto Lupi UNIVALI – Campus de São José

Orientador

Prof. Dr. Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo UGF – Universidade Gama Filho do Rio de Janeiro/RJ

Co-orientador

Bel. Camila Bibiana Freitas Baraldi UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina

Membro

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À minha família.

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AGRADECIMENTOS

Ao prof. Dr. Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo pela atenção dispensada, pelas

preciosas sugestões e correções, pela relação de amizade e respeito, mas principalmente, por me

fazer acreditar que sou capaz de alçar vôos jamais imaginados.

Ao prof. Dr. André Lipp Pinto Basto Lupi por ter aceitado a orientação deste trabalho

quando há muito já tinha se iniciado, pelas importantes sugestões e correções.

Ao meu colega de trabalho Cláudio Haase pelas constantes palavras de incentivo, pelas

longas conversas acerca do tema e pela leitura dos meus manuscritos.

À minha amiga Rosane Nienchoter pelo auxílio desde a fase de projeto desta pesquisa,

pelo incentivo nas horas de desânimo e pelas acaloradas discussões acerca das mazelas do

mundo.

À minha prima Lílian Guimarães Gomes, que mesmo distante, sempre me dispensava

palavras de conforto e incentivo, pela leitura dos meus manuscritos e sugestões de fontes de

pesquisa, mas principalmente, por plantar neste mundo, quase ao final desta batalha, mais um

motivo de alegria a nossa família e uma pequena esperança de um mundo melhor: sua filhinha

Catarina.

Ao meu querido amigo Lucas Correa Babeto, por sempre demonstrar acreditar na minha

capacidade e esforço, pelas longas conversas sobre o tema e por se mostrar disposto a me prestar

auxílio em todos os momentos.

Ao meu tio Daniel Guimarães e minha tia Abigail da Silveira Guimarães, pelas risadas e

companhia, por conseguirem transformar qualquer fase ruim em piada, por acreditarem

constantemente no meu esforço e capacidade, e pelo auxílio material que tanto ajudou na

conclusão deste curso.

Ao meu pai João Moraes da Silveira e minha mãe Lourdete Kons da Silveira, pelo

conforto nas horas tristes, pelo amor e carinho presente em cada palavra de apoio e incentivo. Por

sempre acreditarem nos meus sonhos, esforços, nas minhas mudanças e capacidade. Por

caminharem ao meu lado em todas as escolhas. Por continuarem acreditando em mim, quando

nem eu mais acreditava, e nunca deixarem transparecer suas fraquezas e incertezas. Por

compartilharem do suor dos seus trabalhos e relegar muitos dos seus desejos em favor dos meus.

Pela proteção, apoio incondicional, educação exemplar, preocupação, renúncias, conforto e

doação. Ser filha de vocês é a minha maior satisfação.

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À minha irmã Kátia Kons da Silveira pelas risadas e companhia, por escutar minhas

divagações sobre as incertezas do futuro, pela leitura e elogios aos meus manuscritos e por

sempre demonstrar orgulho e respeito pelos meus estudos e atitudes.

Aos meus colegas de trabalho do BRDE, pela tolerância e compreensão em relação as

minhas ausências devido aos meus compromissos acadêmicos e pessoais neste derradeiro ano de

curso.

A todos os meus amigos, pelas memoráveis horas de lazer, pelas divagações sobre

questões universais, incertezas e coisas banais. Pelas constantes palavras de consolo, incentivo e

apoio, mas principalmente por fazerem parte da minha vida.

À Deus, seja lá a que etnia ou religião pertencer, pela inspiração e lampejos de lucidez,

pela humildade para aprender, pela força nas horas de cansaço, por não permitir que eu desistisse

e por me instigar a estudar um meio de proteger o ser humano.

A todos, o meu único desejo é que vivam em paz.

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“O mal que existe no mundo provém quase sempre da ignorância, e a boa vontade, se não for

esclarecida, pode causar tantos danos quanto a maldade. Os homens são mais bons que maus, e

na verdade a questão não é essa. Mas ignoram mais ou menos, e é a isso que se chama virtude

ou vício, sendo o vício mais desesperado o da ignorância, que julga saber tudo e se autoriza a

matar. A alma do assassino é cega, e não há verdadeira bondade nem belo amor sem toda a

clarividência possível.”

Albert Camus

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TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE

Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo aporte

ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do Vale do Itajaí, a

coordenação do Curso de Direito, a Banca Examinadora e o Orientador de toda e qualquer

responsabilidade acerca do mesmo.

São José, 17 de novembro de 2008.

Anita Kons da Silveira

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RESUMO

O presente trabalho visa demonstrar a legalidade1 e a legitimidade da intervenção com

propósitos humanitários, à luz da Carta da Organização das Nações Unidas de 1945 e do

comportamento da comunidade internacional desde a sua adoção. Para tanto, faz-se necessário

analisar a oposição entre, de um lado, a soberania e os seus princípios correlacionados, e, de

outro lado, os direitos humanos, uma vez que existe um extenso conjunto de normas

internacionais que estabelecem condutas e reforçam o princípio da soberania estatal, mas ao

mesmo tempo, expressões como “direitos fundamentais do homem”, “direitos humanos” e

“dignidade da pessoa humana” aparecem expressamente em diversos documentos internacionais,

bem como na própria Carta da ONU. As disposições sobre direitos humanos, apesar das suas

limitações e a falta de instrumentos que proporcionem a sua efetiva aplicação, não se constituem

em meras recomendações aos Estados, pelo contrário, fazem parte dos propósitos da ONU e

todos os Estados-membros devem colaborar para eles sejam satisfeitos. O respeito e promoção

dos direitos humanos, portanto, integram da pauta de interesses da comunidade internacional e

não mais pertencem aos assuntos de exclusiva jurisdição doméstica dos Estados. Assim, apesar

da falta de regulamentação do direito/dever de intervenção humanitária, não há dúvidas de que

devido à internacionalização dos direitos humanos, a comunidade internacional poderá agir

diante de violações em larga escala de direitos humanos dentro das fronteiras estatais, desde que

os Estados não possam ou não queiram contornar a situação. Portanto, a investigação dessa

possibilidade necessariamente passará pelo exame das situações em que os princípios

relacionados à soberania estatal, esculpidos na Carta poderão ser relativizados para proporcionar

a proteção dos direitos humanos. Para tanto, primeiramente analisar-se-á o princípio da não-

intervenção e sua necessidade na regulação das relações internacionais. Após, serão delineados os

casos em que o referido princípio já foi ou poderá ser relegado em virtude do direito de

assistência humanitária e ao final, será apresentada a análise da possibilidade da intervenção

humanitária, limitada pelos princípios da soberania e não-intervenção, ter se tornado uma norma

internacional costumeira.

Palavras-chave: Intervenção, cooperação, direitos humanos, assistência humanitária, soberania.

1 O sentido de legalidade proposto neste trabalho é em relação à conformidade ao Direito e não à lei em sentido estrito.

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ABSTRACT

The present work has the main aim to demonstrate the legality and legitimacy of the intervention

with humanitarian purposes according to the United Nations Charter from 1945 and the way the

if International Community behaves since its adoption. For this, it is necessary to analyze the

controversy between sovereignty and its correlatives principles and human rights according to an

extent sets of international related principles and human rights as there is an enormous set of

international documents for setting out behaves and reinforce the state sovereignty principles.

This expressions as ‘Fundamental Human Rights’, ‘Human Rights’, Human Person Dignity’ for

the time being, evolve from a great series of international documents, as the United Nations

Charter itself. The main rules concerned with human rights, although they are limited by lack of

tools for its effective application, they are not only recommendations to the nations but, they are

part of the United Nations main objectives and all of states must show good will to achieve them.

The fulfilment and observance of human rights are part of the interests of international

community and are not only a subject of domestic jurisdiction of the states. Thus, despite the lack

of regulation of the right/duty to humanitarian intervention, there is no doubt that although the

internationalization of human rights the international community can act to face the violations in

large escale of human rights within the state borders, since the states can’t or don’t want to stop

the situation. So the investigation of this possibility will pass by the exam of the situations in

what the related principles of state sovereignty that are written in the Charter can be posted to

give protection of the human rights. For this, first we will analysis the non-intervention principle

and its need for regulation of international relations. After this, will be outlined the cases in

which this principle has already been or can be relegated under the law of humanitarian

assistence and at the end, will present an analysis of the possibility of an humanitarian

intervention, limited by the sovereignty principles an non-intervention, being an international

rule.

Keywords: Intervention, cooperation, human rights, humanitarian assistence, sovereignty.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO............................................................................................................................... 1 Capítulo 1: O PRINCIPIO DA NÃO-INTERVENÇÃO................................................................. 4 1.1 O princípio da não-intervenção na Carta da ONU .................................................................... 4 1.2 A Declaração sobre Relações Amistosas adotada pela Assembléia Geral da ONU em 1970. 13 1.3 O caso das atividades militares e paramilitares na Nicarágua (Nicarágua v. Estados unidos) 19 1.4 O domínio reservado dos Estados e os direitos humanos........................................................ 23 Capítulo 2: A RELATIVIZAÇÃO DO PRINCÍPIO DA NÃO-INTERVENÇÃO NA PRÁTICA DOS ESTADOS E DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS ......................................... 28 2.1 As intervenções humanitárias autorizadas pelo Conselho de Segurança na década de 1990.. 28 2.1.1 Iraque .................................................................................................................................... 29 2.1.2 Somália ................................................................................................................................. 31 2.1.3 Bósnia ................................................................................................................................... 34 2.1.4 Haiti ...................................................................................................................................... 36 2.1.5 Ruanda .................................................................................................................................. 39 2.1.6 Breves considerações sobre a prática do Conselho de Segurança no pós-Guerra Fria ........ 42 2.2 As intervenções humanitárias consideradas lícitas.................................................................. 44 2.3 O direito de assistência humanitária........................................................................................ 50 Capítulo 3: A REVISÃO DO PRINCÍPIO DA SOBERANIA FRENTE ÀS POSSIBILIDADES LEGÍTIMAS DE INTERVENÇÃO HUMANITÁRIA ................................................................ 55 3.1 A competência do Conselho de Segurança da ONU ............................................................... 55 3.2 A revisão do conceito de soberania ......................................................................................... 65 3.3 A proposta para a controvérsia entre intervenção e soberania sob a ótica do relatório do ICISS....................................................................................................................................................... 72 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................................ 83 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................ 94

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INTRODUÇÃO

Os direitos humanos são inerentes ao gênero humano e por isso considerados universais.

Constituem-se um conjunto interdependente e indivisível de direitos mínimos relacionados com a

dignidade da pessoa humana e são patrimônio de toda a humanidade, fruto das suas lutas

históricas por justiça e melhores condições de vida. A recente internacionalização desses

direitos implicou deixar de lado a prerrogativa quase absoluta dos Estados de dirigir os seus

assuntos internos, para progredir na direção de estabelecer uma regulação internacional que

definisse limites e obrigações dos Estados nas suas relações com os indivíduos. Em assim sendo,

internamente, os Estados são responsáveis perante seus próprios cidadãos e externamente o são

perante a comunidade internacional, consubstanciada na Organização das Nações Unidas. Esta

visão contemporânea exige que o princípio da soberania estatal deva ser reconstruído, de modo a

ceder lugar às demandas de paz e segurança internacionais. Logo, na existência de violação a

direitos humanos, qual seria o limite de razoabilidade e como poderia ocorrer uma interferência

humanitária de forma legítima a combater essa situação?

Esta pesquisa pretende responder a esta questão, por meio da análise da legalidade e

legitimidade das intervenções humanitárias internacionais para a proteção dos direitos humanos,

à luz do princípio da soberania estatal e da Carta da Organização das Nações Unidas de 1945. A

metodologia utilizada é a indutiva, pois serão analisadas as intervenções humanitárias que já

ocorreram, a fim de se comprovar a legalidade destas à luz das disposições insertas na Carta da

ONU e o princípio da soberania estatal. Os procedimentos investigatórios adotados consistem na

pesquisa de documentação direta, como a Carta da ONU e outros documentos normativos

internacionais, tais como as resoluções da Organização das Nações Unidas e decisões

jurisprudenciais e indireta, notadamente na pesquisa de bibliografia relacionada ao tema.

Saliente-se a inexistência de normas no ordenamento jurídico internacional que

disponham com clareza sobre o direito/dever de intervir quando constatada grave violação dos

direitos humanos. No entanto, uma intervenção poderá ser empreendida, dentro da

discricionariedade do Conselho de Segurança - órgão competente para determinar o que consiste

ameaça à paz, quebra da paz ou ato de agressão - nos moldes do art. 39 da Carta das Nações

Unidas, quando este julgar que a violação dos direitos humanos em determinado Estado está por

ameaçar a paz e segurança internacionais. É justamente esta questão que dificulta a visualização

das intervenções humanitárias como atitudes legais ou ilegais frente ao aparato judicial interno de

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cada Estado considerado individualmente, uma vez que o Conselho de Segurança é um órgão

eminentemente político e, em assim sendo, suas decisões são de cunho político. Porém, na

medida em que a intervenção humanitária tem por escopo única e exclusivamente a proteção da

integridade da pessoa humana, a preservação de sua dignidade e a prevenção de violações

maciças aos direitos humanos, deve-se considerá-la como um instrumento legal e legítimo, caso

seja empreendida pelas Nações Unidas.

A fim de comprovar que, apesar da inexistência de normas que disciplinem a

intervenção com propósitos humanitários, ela efetivamente deve ocorrer em determinados casos,

analisar-se-á no primeiro capítulo desta pesquisa o princípio da não-intervenção, esculpido na

Carta da ONU e seu assentamento jurisprudencial, bem como a interpretação que inicialmente foi

conferida ao referido princípio pelos Estados e pela própria ONU.

No segundo capítulo, serão analisados os pontos que permitem inferir que esse princípio

foi relativizado diante das demandas de estabelecimento de paz, decorrentes de graves violações

dos direitos humanos ocorridas nos anos 1990, pois é fato que o modo encontrado pela ONU para

a resolução dos conflitos verificados nessa época, - por meio da competência do Conselho de

Segurança - foi associar as graves violações de direitos humanos à manutenção da paz e

segurança internacionais. Também serão abordadas as intervenções humanitárias realizadas pelas

Organizações não governamentais, mormente a atuação da Cruz Vermelha, cuja legalidade das

ações nunca foi contestada, a fim de comprovar que as organizações de socorro humanitário

enfrentam problemas, em determinados casos, para cumprir suas tarefas, sendo muitas vezes

necessário que se utilize a força para facilitar os seus trabalhos de proteção humanitária e conferir

certa ordem aos territórios em que ela é praticamente nula ou inexistente. Ao cabo deste capítulo,

ainda será objeto de análise a possibilidade da existência de um direito costumeiro à assistência

humanitária, apoiado nas Resoluções da Assembléia Geral que consagram o princípio do livre

acesso às vítimas e os corredores humanitários, os quais foram invocados nas diversas

Resoluções do Conselho de Segurança que autorizaram as intervenções humanitárias dos anos

1990.

No derradeiro capítulo desta pesquisa, será realizada uma abordagem hodierna acerca do

princípio da soberania estatal. Primeiramente, será verificada a competência do Conselho de

Segurança para relegar o referido princípio em virtude da defesa e promoção dos direitos

humanos, e ordenar uma intervenção de caráter humanitário. Após, será revisto o princípio da

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soberania, uma vez que a sua relativização se impõe como pressuposto para a construção e

evolução do direito internacional, principalmente na área humanitária. Por fim, analisar-se-á a

proposta da Comissão Internacional sobre Intervenção e Soberania Estatal (ICISS – sigla em

inglês) para a resolução da controvérsia ainda existente entre intervenção e soberania.

Para a conveniência do leitor, optou-se por traduzir os textos em língua estrangeira, e,

salvo indicação em contrário, a responsabilidade pelas traduções recai inteiramente sobre a autora

da presente pesquisa.

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1. O PRINCIPIO DA NÃO-INTERVENÇÃO

1.1 O PRINCÍPIO DA NÃO-INTERVENÇÃO NA CARTA DA ONU

No Direito Internacional contemporâneo, o termo “Guerra2” caiu em desuso3. Embora a

convicção predominante no século XIX e no início do século XX era a de que todo Estado tinha o

direito de entrar em guerra independentemente da motivação4, após a I Guerra Mundial, diante

das proporções devastadoras do conflito, o direito internacional começa a se ocupar ainda mais

com a regulamentação deste instituto. A constituição da Sociedade das Nações, em 1919, visava

principalmente regulamentar a guerra, mas não foi capaz de torná-la ilegal. Aliás, percebe-se que

naquele período não era possível um pacto que alcançasse esse escopo5, visto que a guerra era

considerada expressão da soberania estatal e, assim, a liberdade legal de utilizá-la por qualquer

razão estava inserida no sistema jurídico internacional6. O Pacto da Sociedade das Nações tinha

como principal objetivo dificultar ao máximo a possibilidade de recorrer à guerra, tornando-a

uma espécie de ultima ratio à qual os Estados poderiam recorrer para a resolução dos seus

conflitos7, mas, devido às disposições abstratas e sujeitas à inúmeras interpretações que trouxe

em seu bojo, acabou por qualificar de forma mais abrangente o direito de ir à guerra e permitiu

que a liberdade de recorrer a ela permanecesse praticamente intacta8.

Mais tarde, em 1928, foi assinado o Pacto de Paris - mais conhecido como o Pacto de

Briand-Kellog - pela conjugação dos nomes dos ministros do exterior da França e dos E.U.A -

que foi ratificado pela quase-totalidade das soberanias da época e representa um grande progresso

na condenação da guerra. Os países pactuantes não só a condenavam como a ela renunciavam, e

dispunham9:

2 “O conceito jurídico de “guerra” requer tanto um elemento material – o emprego efetivo da força armada – como um elemento subjetivo – a intenção de fazer guerra, o animus in belli.” (Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. A ingerência humanitária e a guerra justa. in Direitos Humanos e Direito Internacional.Curitiba: Juruá, 2006. p. 146). 3 Ibidem. p. 145. 4 Cf. DINSTEIN, Yoram. Guerra, agressão e legítima defesa. Trad. Mauro Raposo de Mello. Barueri: Manole, 2004. p. 105. 5 Cf. DELGADO, José Manuel Avelino de Pina. Regulamentação do Uso da Força no Direito Internacional e Legalidade das Intervenções Humanitárias Unilaterais. Dissertação de Mestrado. Florianópolis: UFSC, 2003. p. 83. 6 Cf. DINSTEIN, Yoram. Op. Cit. p. 106. 7 Cf. DELGADO, José Manuel Avelino de Pina. Op. Cit. p. 83. 8 Cf. DINSTEIN, Yoram. Op. Cit. p. 114. 9 Cf. REZEK, José Francisco. Direito Internacional Público. 11ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva: 2008. p. 373.

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Art. 1º. As Altas Partes contratantes declaram solenemente, em nome dos respectivos povos, que condenam o recurso à guerra para a solução das controvérsias internacionais, e ela renunciam como instrumento de política nacional nas suas mútuas relações. Art. 2º. As Altas Partes contratantes reconhecem que o ajuste ou a solução de todas as controvérsias ou conflitos de qualquer natureza ou origem, que se suscitem entre elas: nunca deverá ser procurado senão por meios pacíficos 10.

Com a adoção do referido Pacto, o Direito Internacional progrediu do jus ad bellum para o

jus contra bellum, mas, embora proibida, a guerra permaneceu legal sob algumas circunstâncias,

pois este documento apresentou algumas falhas, a saber: a) a questão sobre a legítima defesa não

foi claramente referenciada no texto e nenhuma disposição foi capaz de abolir o recurso à guerra

nesta situação. O principal problema, neste caso, é que não foram estabelecidos critérios para

determinar se o Estado que inicia as hostilidades estaria agindo em legítima defesa, ou,

manifestamente desrespeitando o Pacto. Além disso, não foi criada uma instituição competente

para avaliar se as intenções do Estado que recorreu à utilização da força eram legítimas ou não;

ou seja, nenhum consenso com relação a limites foi estabelecido sobre a legalidade da guerra

como instrumento de política internacional; b) a proibição da guerra não considerou toda a

comunidade internacional. O Pacto a renunciou somente entre as partes contratantes e nada

regulou quanto à liberdade de guerra entre estas e as partes não-contratantes e vice-versa e c)

medidas de força de característica breve, como as represálias e intervenções pontuais, nem foram

mencionadas nas disposições11.

Destarte, percebe-se que a principal controvérsia dos termos do Pacto diz respeito à

faculdade de cada Estado em utilizar a força, pois se verifica que não há consenso em relação à

imposição de limites para cada parte contratante recorrer à guerra12. As falhas apontadas em seu

texto, a conseqüente ausência de qualquer sistema de sanções quando houvesse violação dos

termos do Pacto e a dúvida se a renúncia à guerra incluiria outras formas de utilização da força

armada, como represálias e intervenções pontuais, além do exacerbado idealismo da Sociedade

10 TRATADO DE RENÚNCIA À GUERRA. Pacto de Paris ou Briand-Kellog de 1928. Disponível em: <http://64.233.169.104/search?q=cache:WDQl7BB0WJQJ:www2.mre.gov.br/dai/renguerra.htm> Acesso em: 11 de junho de 2008. 11 Cf. DINSTEIN, Yoram. Op. Cit. p. 118/119. 12 Ibidem. p. 120.

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das Nações podem ser considerados os motivos responsáveis pelo fracasso em impedir uma nova

conflagração mundial13.

A Carta da Organização das Nações Unidas, entre outros objetivos, pretendeu sanar as

falhas do Pacto Briand-Kellog e sustentar a ilegitimidade do jus ad bellum através da redação do

art. 2º, §4º, que assim dispõe:

Os membros da Organização, em suas relações internacionais, abster-se-ão de recorrer à ameaça ou ao uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado, ou de qualquer outra forma incompatível com os propósitos das Nações Unidas14.

Este artigo não se aplica somente aos membros da Organização das Nações Unidas, mas

vincula toda a comunidade internacional. Ele proíbe o recurso à força pelos membros da ONU

contra qualquer outro Estado, sendo este membro ou não, uma vez que a Carta da ONU estatui

em seu art. 2º, §6º que a Organização se compromete em assegurar que os Estados que não são

seus membros ajam de acordo com os princípios erigidos na Carta, visando à manutenção da paz

e segurança internacionais15. A guerra, assim, tornou-se um ilícito internacional e a Carta da

ONU teve a oportuna cautela de não se referir nominalmente à guerra, mas à ameaça ou

utilização da força, algo bem mais extenso e abrangente16. O termo “Guerra” ainda é conservado

para designar as grandes guerras mundiais, mas a expressão que deve ser empregada atualmente é

“conflitos armados internacionais”17.

Segundo o art. 2º, §4º, qualquer uso da força no cenário internacional empreendido pelos

Estados-membros, independente da razão, é vedado, a menos que expressamente permitido pela

Carta. Assim, existem exceções à proibição do uso da força nos seguintes casos18: no exercício da

legítima defesa (art. 5119 da Carta da ONU) e nas situações previstas no art. 3920 da Carta,

13 Cf. VIOTTI, Aurélio Romanini de Abranches. Ações humanitárias pelo Conselho de Segurança: entre a Cruz Vermelha e Clausewitz. Brasília: Funag, 2004. p. 81. 14 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Carta das Nações Unidas. Disponível em: <http://www.unhchr.ch/spanish/html/menu3/b/ch-cont_sp.htm> Acesso em: 30 de maio de 2008. 15 Cf. DINSTEIN, Yoram. Op. Cit. p. 129/130. 16 Cf. REZEK, José Francisco. Op. Cit. p. 375. 17 “Diversos outros conflitos, como a luta contra o colonialismo, intervenções e represálias, não se conformam ao conceito jurídico de guerra. Por isso, tem preferido-se empregar a expressão “conflito armado internacional”, que seria mais abrangente.” (Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Op. Cit. p. 146). 18 Cf. DINSTEIN, Yoram. Op. Cit. p. 124. 19 Art. 51. Nada na presente Carta prejudicará o direito inerente de legítima defesa individual ou coletiva, no caso de ocorrer um ataque armado contra um membro das Nações Unidas, até que o Conselho de Segurança tenha tomado as medidas necessárias para a manutenção da paz e da segurança internacionais. As medidas tomadas pelos membros no exercício desse direito de legítima defesa serão comunicadas imediatamente ao Conselho de Segurança e não

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quando o Conselho de Segurança, para resolução de situações específicas autoriza o recurso à

força para o efetivo cumprimento dos propósitos das Nações Unidas. Há controvérsias sobre a

definição legal de força inserida no artigo, mas no que se coaduna com a definição de agressão

fornecida pela Resolução 3.314 adotada pela Assembléia Geral, entende-se que esta proibição

está adstrita à força armada e não incluiria a pressão diplomática ou econômica21.

Obviamente que o disposto no artigo 2º, §4º refere-se somente aos membros das Nações

Unidas, mas não à própria Organização22. Consiste num dispositivo que deve ser analisado à luz

de um sistema que foi criado para a prevenção de conflitos armados internacionais, em

continuidade aos esforços empreendidos, porém não exitosos, no período entre-guerras. É com a

redação dele que se cristaliza o princípio da resolução pacífica das controvérsias23, que é

complementado pelo princípio da não-intervenção, consolidado no art. 2º, §7º da Carta, que

dispõe:

Nenhuma disposição da presente Carta autorizará as Nações Unidas a intervir em assuntos que dependam essencialmente da jurisdição interna de qualquer Estado, ou obrigará os membros a submeterem tais assuntos a uma solução, nos termos da presente Carta; este princípio, porém, não prejudicará a aplicação das medidas coercitivas constantes do Capítulo VII.

Uma vez proscrita a guerra, emerge este princípio como expressão da autonomia estatal e

para impossibilitar que grandes potências, sob a alegação de defesa de qualquer interesse,

interviessem por ameaça ou utilização da força nos assuntos domésticos ou externos de outro

Estado de forma arbitrária e prejudicial à liberdade e independência das nações24.

A evolução do princípio da autodeterminação dos povos levou à independência de

inúmeras colônias que viviam sob o jugo das potências coloniais e, uma vez proscrito o uso da

força, ocorreu uma revitalização e fortalecimento de mecanismos para a resolução pacífica de

deverão, de modo algum, atingir a autoridade e a responsabilidade que a presente Carta atribui ao Conselho para levar a efeito, em qualquer momento, a ação que julgar necessária à manutenção ou ao restabelecimento da paz e da segurança internacionais. 20 Art. 39. O Conselho de Segurança determinará a existência de qualquer ameaça à paz, ruptura da paz ou ato de agressão e fará recomendações ou decidirá que medidas deverão ser tomadas de acordo com os artigos 41 e 42, a fim de manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais. 21 Cf. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Assembléia Geral. Resolução 3.314 de 14 de dezembro de 1974. Disponível em: <http://daccessdds.un.org/doc/RESOLUTION/GEN/NR0/743/93/IMG/NR074393.pdf> Acesso em 30 de maio de 2008. p. 151. 22 Cf. DELGADO, José Manuel Avelino de Pina. Op. Cit. p. 104. 23 Ibidem. p. 92. 24 Cf. VIOTTI, Aurélio Romanini de Abranches. Op. Cit. p. 92/93.

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controvérsias e a criação de novos meios para assegurar a observância do Direito Internacional25.

Assim, o princípio da não intervenção é considerado corolário lógico da proibição do uso da

força e é conquista dos países de Terceiro Mundo, haja vista que estes foram os principais alvos

de intervenções por parte das grandes potências. As lutas colonialistas por independência e a

introdução do princípio da autodeterminação numa época em que o mundo era dividido em

fronteiras artificiais, desenhadas por grandes potências coloniais, consolidou a defesa do direito

de não-intervenção como um fator essencial para a preservação das soberanias que nasciam26.

Entende-se intervenção como a ação de um Estado ou grupo de Estados que interfere em

outro Estado soberano ou independente, para impor a sua vontade nos assuntos internos e

externos, sem o respectivo consentimento, a fim de manter ou alterar um estado de coisas. É,

portanto, uma prática ilícita, pois contraria o consagrado princípio da não-intervenção. Contudo,

a própria Carta da ONU só proíbe a intervenção nos assuntos internos e é a ONU quem decide se

a matéria pertence ou não à jurisdição doméstica dos Estados27.

No modelo jurídico idealizado pela Carta da ONU, o Estado é o ator principal das

relações internacionais e a não-intervenção é, nesse sistema, corolário lógico do conceito de

soberania, pois vincula explicitamente o direito de um Estado à independência ao dever de

respeitá-la por parte dos demais28. O princípio da não-intervenção está diretamente ligado ao

princípio da soberania dos Estados e constitui uma necessidade no atual sistema internacional.

Sua observância é de suma importância, pois no momento em que o referido princípio deixar de

ser respeitado, a ordem deixa de ser internacional, e o direito regulador passa a ser o direito

interno de um Estado universal. A soberania estatal é tão necessária ao sistema jurídico

internacional29, que se encontra positivada em diversos textos legais internacionais, inclusive na

própria Carta da ONU que, em seu art. 2º, §1º, dispõe: “A organização é baseada no princípio da

igualdade soberana de todos os seus membros”.

Entretanto, a noção de soberania é relativa, uma vez que depende do momento em que se

encontra a sociedade internacional. Os Estados menos favorecidos é que geralmente necessitam

25 Cf. VIOTTI, Aurélio Romanini de Abranches. Op. Cit. p. 87. 26 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Segurança Internacional e Direitos Humanos: A prática da Intervenção Humanitária no Pós-guerra fria. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 102. 27 Cf. MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Direitos humanos e conflitos armados. Rio de Janeiro: Renovar. 1997. p. 45. 28 Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. O Direito de Assistência Humanitária. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. (Coleção Biblioteca de Teses). p. 156. 29 Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Op. Cit. p. 148.

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da soberania para se defenderem de uma eventual intervenção realizada em benefício de algumas

grandes potências30. Na verdade o princípio da não-intervenção tem, para os países do Terceiro

Mundo, as funções de manifestar oposição às pressões das antigas potências coloniais, conter a

influência das grandes potências e garantir o processo de descolonização, sem qualquer

interferência externa. Para os novos Estados independentes, quase sempre vulneráveis às pressões

estrangeiras, o princípio em comento constitui defesa dos fracos contra os abusos dos fortes31.

Importantes contornos do princípio da não-intervenção foram definidos nas decisões da

Corte Internacional de Justiça nos casos do Estreito do Corfu e Nicarágua. No acórdão que

inaugura a sua jurisprudência, a Corte assevera:

O pretenso direito de intervenção não pode ser entendido senão como a manifestação de uma política de força, política que no passado deu lugar a graves abusos e que não poderia encontrar qualquer lugar no direito internacional, quaisquer que sejam as deficiências atuais da organização internacional

32.

Na sua decisão para o Caso Nicarágua, o órgão da justiça internacional reforça este

argumento ao sustentar que:

[...] ação em apoio de forças de oposição dentro de outro Estado pode constituir intervenção, mesmo se o próprio apoio é de um tipo não-militar; se tem caráter militar mas se limita a um apoio indireto como o fornecimento de armas ou apoio logístico, pode constituir não só intervenção mas também uma ameaça ilícita33

[...] (grifo nosso)

Percebe-se, de acordo com a interpretação da Corte Internacional de Justiça, que o

princípio da não-intervenção é um dos pilares fundamentais do sistema internacional. A Corte

ainda sublinha, no julgamento deste último caso, que o emprego da força de forma direta ou

indireta é a essência da intervenção ilícita34. Assim, as pressões políticas, econômicas e

diplomáticas violam também o art. 2º, §7º, quando tiverem o sentido de verdadeiro ultimato, isto

é, sempre que puderem ser comparadas ao uso da força devido à efetiva imposição da vontade de

30 Cf. MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Op. Cit. p. 46. 31 Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Op. Cit. p. 157. 32 Cf. CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Caso do Estreito de Corfu (Reino Unido v. Albânia). Decisão de 15 de dezembro de 1949. Disponível em: <http://www.icj-cij.org/docket/files/1/11885.pdf> Acesso em: 30 de maio de 2008. p. 1). 33 Cf. CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Caso das atividades militares e paramilitares na e contra a Nicarágua (Nicarágua v. Estados Unidos). Decisão de 27 de junho de 1986. Disponível em: <http://www.icj-cij.org/docket/files/70/9973.pdf> Acesso em: 30 de maio de 2008. p. 14. 34 Ibidem.

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um Estado sobre outro para que este faça ou deixe de fazer algo, por meio da eliminação ou

restrição das opções que se oferecem ao governo estrangeiro numa conjuntura particular

histórica. Pode-se afirmar, portanto, que se abster de medidas coercitivas é elemento essencial

para definir o dever de não-intervenção que se impõe aos Estados35.

No entanto, a letra da Carta cria uma exceção à regra ao prescrever no próprio artigo que

o consagra: “esse princípio não poderá prejudicar a aplicação das medidas executórias do capítulo

VII”; de forma que não há controvérsia quanto à possibilidade das Nações Unidas, amparada no

capítulo VII, autorizar o uso da força contra algum Estado-membro. A intervenção, portanto, só é

considerada ilícita quando a força é utilizada nas hipóteses não autorizadas pelo Capítulo VII da

Carta. O problema proposto neste caso é identificar quais são os assuntos de domínio reservado36

dos Estados que não podem sofrer a interferência da Organização37. Neste ponto, verifica-se que

o respeito aos direitos humanos é um dos principais propósitos consagrados na Carta da ONU, e,

além dela, vários outros documentos internacionais expressam a obrigação dos Estados em

respeitar as disposições internacionais humanitárias.

Ademais a expressão “ações incompatíveis com os propósitos das Nações Unidas”, inserta

no artigo 2º, §4º, reflete uma “abertura” nos termos da Carta, uma vez que o dispositivo permite

incluir várias situações imprevistas e vindouras, que podem ser enquadradas na norma e permitir

que a Organização atue em determinados casos. As ações incompatíveis com os propósitos das

Nações Unidas são aquelas contrárias ao disposto no primeiro artigo38 da Carta, ou seja: a) atos

contrários à paz e segurança internacionais; b) solução não-pacífica de controvérsias; c) ações

contrárias à autodeterminação dos povos; d) ações contrárias à igualdade de direitos dos povos e

35 Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Op. Cit. p. 166. 36 “Domínio reservado é um conceito jurídico que assim foi definido pelo Instituto de Direito Internacional: “O domínio reservado é o das atividades estatais em que a competência do Estado não está vinculada pelo direito Internacional” [...] Dessa forma, as matérias que constam de um domínio reservado são aquelas que ainda não se tornaram objeto de um compromisso internacional.” (Grifo no original) (Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Op. Cit. p. 149). 37 Cf. DELGADO, José Manuel Avelino de Pina. Op. Cit. p. 127. 38 Art. 1º, § 1º. Manter a paz e a segurança internacionais e, para esse fim: tomar, coletivamente, medidas efetivas para evitar ameaças à paz e reprimir os atos de agressão ou outra qualquer ruptura da paz e chegar, por meios pacíficos e de conformidade com os princípios da justiça e do direito internacional, a um ajuste ou solução das controvérsias ou situações que possam levar a uma perturbação da paz; § 2º. Desenvolver relações amistosas entre as nações, baseadas no respeito ao princípio de igualdade de direitos e de autodeterminação dos povos, e tomar outras medidas apropriadas ao fortalecimento da paz universal; § 3º. Conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário, e para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião; e § 4º. Ser um centro destinado a harmonizar a ação das nações para a consecução desses objetivos comuns.

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e) violações aos direitos humanos e às liberdades fundamentais. A inclusão destas expressões

demonstra a preocupação de proibir a ameaça ou utilização da força não somente nos casos de

integridade territorial ou independência política de qualquer Estado, mas, em qualquer ação

militar que fosse contrária aos propósitos das Nações Unidas39.

Ressalta-se que a partir da criação da ONU os direitos humanos passam a ter status

internacional e a fazer parte da pauta de interesses da comunidade internacional, uma vez que

suas normas têm a aceitação de quase todos os Estados. A universalidade dos referidos direitos é

reconhecida a tal ponto que os Estados se comprometeram em eleger a sua proteção e promoção

como primeira responsabilidade de todos os governos, o que se evidencia com a assinatura da

Declaração de Viena40 que determina que independente da perspectiva particular de cada cultura,

caberá à sociedade internacional fiscalizar o cumprimento dos direitos humanos, bem como,

condenar as violações maciças e persistentes, inclusive em conflitos armados. Sendo assim, se os

Estados contraíram esta obrigação perante a comunidade internacional, não é possível afirmar

que os direitos humanos pertençam ao domínio reservado dos Estados, tampouco que a soberania

estatal poderá ser invocada para justificar o descumprimento das normas internacionalmente

consagradas41. Contudo, é fato que os mesmos textos que atestam a internacionalização dos

direitos humanos reforçam a prevalência do princípio da não-intervenção, de modo que a questão

da intervenção humanitária reflete um choque entre os princípios já consagrados no Direito

Internacional do respeito à soberania e à não-intervenção nos assuntos internos de outros Estados,

contra um dever moral, cada vez mais reforçado no cenário internacional, de se evitar a violação

em massa dos direitos humanos42.

Desta forma, o disposto no art. 2º, §7º da Carta da ONU tende a ceder frente à constatação

da existência de uma ameaça contra a paz, de uma ruptura da paz ou de um ato de agressão; casos

39 Cf. DELGADO, José Manuel Avelino de Pina. Op. Cit. p.115. 40 “A fim de coordenar os múltiplos instrumentos de proteção dos direitos humanos e torna-los mais eficazes, a Assembléia Geral convocou a Segunda Conferência Mundial dos Direitos Humanos, realizada em Viena em 1993. Além de participarem delegações de 171 países, oitocentas organizações não-governamentais também estiveram presentes. A Declaração e Programa de ação de Viena consagra em seu preâmbulo princípios como o compromisso de tomar medidas para assegurar maior progresso na observância universal dos direitos humanos. O primeiro parágrafo [...] reafirma o caráter universal dos direitos humanos e o parágrafo quinto afirma, além da universalidade, o dever de todos os Estados, independente de seus sistemas políticos, econômicos e culturais, de promover e proteger todos os direitos humanos, sem deixar de levar em conta as particularidades nacionais e regionais de cunho histórico, cultural e religioso.” (Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 68/69). 41 Ibidem. p. 69/70. 42 Cf. TSCHUMI, André Vinícius. Princípio da segurança coletiva e manutenção da paz internacional. Curitiba: Juruá, 2007. p. 221.

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em que as Nações Unidas, por meio da atuação do Conselho de Segurança, poderão empreender

ações, armadas inclusive, em conformidade com o Capítulo VII da Carta, a fim de manter ou

restabelecer a paz internacional43. A propósito, o referido capítulo dispõe em seu art. 39:

Art. 39 – O Conselho de Segurança determinará a existência de qualquer ameaça à paz, ruptura da paz, ou ato de agressão e deverá fazer recomendações, ou decidir que medidas devam ser tomadas de acordo com os Artigos 41 e 42, para manter ou restaurar a paz e segurança internacionais.

Constatada qualquer das condições disciplinadas neste artigo, o Conselho de Segurança

tem poderes discricionários para adotar as medidas previstas na Carta, estas de caráter provisório

(art. 4044) ou coercitivas como as sanções econômicas (art. 4145) e a utilização da força (art. 4246).

Portanto, é da competência do Conselho de Segurança apreciar situações que possam ameaçar a

paz e a segurança internacionais e determinar que medidas sejam tomadas para assegurar que os

Estados cumpram, dentro de suas fronteiras, as disposições dos documentos de que fazem parte47.

Importa ressaltar que a dinâmica do cenário internacional trouxe à tona o fato de que os

Estados não podem abordar por si questões que imponham diálogo e concerto em escala

universal, o que cuidou de modificar o entendimento tradicional de que as relações internacionais

se regem por regras derivadas inteiramente da livre vontade dos Estados. Porém, há que se

considerar que a internacionalização dos direitos humanos não possui o condão de autorizar um

outro Estado a se erigir como juiz da questão para determinar se existe ou não violação destes em

um caso concreto; só a própria ONU pode agir nos casos em que considerar uma ameaça à paz e

à segurança internacional. Em todo o caso, a resposta ao aludido conflito de normas - entre o

princípio consagrado da não-intervenção e da soberania estatal em face da intervenção

43 Cf. DINH, Nguyen Quoc; DAILLER, Patrick; PELLET, Alain. Direito Internacional Público. Trad. Vítor Marques Coelho. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003. p. 457. 44 Art. 40. A fim de evitar que a situação se agrave, o Conselho de Segurança poderá, antes de fazer as recomendações ou decidir a respeito das medidas previstas no artigo 39, instar as partes interessadas a aceitar as medidas provisórias que lhe pareçam necessárias ou aconselháveis. Tais medidas provisórias não prejudicarão os direitos ou pretensões nem a situação das partes interessadas. O Conselho de Segurança tomará devida nota do não cumprimento dessas medidas. 45 Art. 41. O Conselho de Segurança decidirá sobre as medidas que, sem envolver o emprego de forças armadas, deverão ser tomadas para tornar efetivas as suas decisões e poderá instar os membros das Nações Unidas a aplicarem tais medidas. Estas poderão incluir a interrupção completa ou parcial das relações econômicas, dos meios de comunicação ferroviários, marítimos, aéreos, postais, telegráficos, radioelétricos, ou de outra qualquer espécie, e o rompimento das relações diplomáticas. 46 Art. 42. Se o Conselho de Segurança considerar que as medidas previstas no artigo 41 seriam ou demonstraram ser inadequadas, poderá levar a efeito, por meio de forças aéreas, navais ou terrestres, a ação que julgar necessária para manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais. Tal ação poderá compreender demonstrações, bloqueios e outras operações, por parte das forças aéreas, navais ou terrestres dos membros das Nações Unidas. 47 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 71.

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humanitária - deve ser dada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas – órgão responsável

pela manutenção da paz e segurança mundiais – uma vez que cabe a este órgão considerar se um

determinado caso de violação dos direitos humanos se constitui uma ameaça a paz e segurança

internacionais, questão que se sobrepõe ao dever de não-intervenção. Frise-se que o artigo que

consagra este princípio (art. 2º, §7º) estabelece que as medidas coercitivas do Capítulo VII da

Carta se situam acima da jurisdição dos Estados. Logo, quando autorizada pelo Conselho de

Segurança, a intervenção com o propósito de fazer cessar as violações dos direitos humanos em

um Estado é considerada legal, e em caso contrário, as ações militares contra um Estado só serão

consideradas legais se utilizadas dentro das exceções previstas na própria Carta (art. 51 - legítima

defesa e aplicação do art. 3948)49.

É verdade que o direito à intervenção humanitária ainda não está regulamentado pelos

instrumentos necessários, mas, diante da indubitável internacionalização dos direitos humanos,

essa falta de regulamentação não constitui, de forma alguma, a priori, obstáculo à existência

desse direito, conforme se demonstrará ao longo desta investigação.

1.2 A DECLARAÇÃO SOBRE RELAÇÕES AMISTOSAS ADOTADA PELA ASSEMBLÉIA GERAL DA ONU, EM 1970

A “Declaração Relativa aos Princípios do Direito Internacional que regem as Relações

Amistosas e Cooperação entre os Estados conforme a Carta da ONU”, aprovada pela Resolução

2.625 da Assembléia Geral em 24 de outubro de 1970, consistiu num exame detalhado do

desenvolvimento do Direito Internacional desde a Conferência de São Francisco, quando foi

aprovada a Carta da ONU, até a atualidade daquele período, e reflete a percepção e a prática dos

Estados sobre os princípios do Direito Internacional contemporâneo50. Oportuno esclarecer que

para o escopo deste trabalho, importa comentar os princípios da proibição do uso ou ameaça da

força e o da não-intervenção, haja vista que se pretende defender a legalidade das intervenções

48 “Embora a Carta tenha previsto a criação de um contingente militar permanentemente à disposição das decisões do Conselho de Segurança, isto ainda não foi possível, o que agravou as questões relativas ao comando e controle das operações. As nações querem ditar onde seus contingentes vão servir e que tarefas vão desempenhar e a ONU não tem nenhum poder para manter as nações sob determinado contrato. Integrar soldados de diversos países, que nunca trabalharam juntos, não é tarefa fácil de ser alcançada e aumenta os riscos de controvérsias durante as operações.” (Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 182/183). 49 Cf. TSCHUMI, André Vinícius. Op. Cit. p. 222. 50 Cf. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Op. Cit. p. 92.

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humanitárias internacionais para proteção dos direitos humanos, questão que frontalmente põe à

prova os referidos princípios.

A fim de desmistificar a função que a Carta das Nações Unidas deveria exercer na prática

do Direito Internacional e das relações internacionais em geral, é que a Assembléia Geral da

ONU, por ocasião do vigésimo quinto aniversário das Nações Unidas, propôs o estudo de uma

lista de princípios a serem cuidadosamente examinados. A concepção de coexistência pacífica de

todos os Estados necessitava de uma análise frente aos novos Estados independentes que

prenunciavam a era das descolonizações, o fenômeno do impasse nuclear, o movimento do não-

alinhamento e, por assim dizer, uma maior mobilização dos Estados em prol de princípios que

efetivamente permitissem a coexistência pacífica entre eles. Havia também a necessidade de se

reconhecer a existência e igualdade, perante o sistema jurídico internacional, dos diferentes

sistemas políticos, econômicos e sociais dos Estados. Tudo isso culminou nos trabalhos de

elaboração da Declaração de 1970 que resultou na primeira interpretação detalhada, desde a

Conferência de São Francisco de 1945, dos princípios erigidos pela Carta da ONU51.

Importante ressaltar que a adoção da Declaração de 1970 não é um processo de emenda

informal da Carta da ONU, mas se trata de uma interpretação de seus princípios, levando-se em

conta os seus propósitos, a fim de reduzir a distância entre a realidade social e o ordenamento

jurídico internacional52. Com efeito, os princípios consagrados na referida Declaração, não são

idênticos aos dispostos no art. 2º da Carta da ONU, quais sejam: a igualdade de todos os

membros das Nações Unidas, o cumprimento de boa fé das obrigações assumidas de acordo com

a Carta, a solução pacífica de controvérsias internacionais, a não-utilização e não-ameaça da

força contra a integridade territorial ou independência política de qualquer Estado, a assistência

às Nações Unidas em ação a que recorrer a Organização, a garantia de que os Estados não-

membros ajam de acordo com tais princípios, e a não-intervenção pelas Nações Unidas em

assuntos do domínio reservado de qualquer Estado (excetuadas as medidas coercitivas do

capítulo VII da Carta)53.

A seu turno, a Declaração de 1970 consagrou sete princípios fundamentais, a saber: a

proibição ou renúncia do uso ou ameaça da força nas relações internacionais, a solução pacífica

de disputas internacionais, a não-intervenção, a cooperação internacional, a igualdade de direitos

51 Cf. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Op. Cit. p. 98. 52 Ibidem. 53 Ibidem. p. 100/101.

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e a autodeterminação dos povos, a igualdade soberana dos Estados e a boa fé no cumprimento das

obrigações internacionais54.

Percebe-se que a Declaração de 1970 deixou de reafirmar alguns princípios esculpidos na

Carta da ONU, mas frisou o dever dos Estados de cooperação internacional e o princípio da

igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos, questões mais atuais à época e de suma

importância, uma vez que a Declaração foi resultado da participação nos trabalhos dos países

recém-emancipados politicamente55.

O princípio da proibição do uso ou ameaça da força foi considerado um dos principais

fundamentos da ordem jurídica internacional. Além de estar previsto no artigo 2º, §4º da Carta,

este princípio já se encontrava no Pacto de Briand-Kellog e em vários outros documentos

internacionais, dada a importância da sua reafirmação, principalmente em um mundo de Estados

interdependentes, no qual se vivenciava, durante a Guerra Fria, uma corrida armamentista.

Acerca do princípio em análise, algumas exceções foram suscitadas, principalmente pelos países

recém-emancipados. Como exemplo, tentou-se relacionar o uso da força em situações coloniais

com o princípio da igualdade de direitos e autodeterminação dos povos. Assim, o direito de

legítima defesa, amparado no art. 51 da Carta abarcaria o direito dos povos de defenderem-se

contra a dominação colonial e, conseqüentemente, o fato de poderem lutar pelo seu direito de

autodeterminação. A legítima defesa contra a dominação colonial deveria ser encarada como uma

exceção à regra geral, uma vez que o colonialismo era um ato de força e deveria ser considerado

como um ato de agressão. Sobre este ponto, restou acertado que as relações entre um território

sem governo próprio e uma autoridade encarregada de sua administração é de caráter

internacional e, por sua vez, de responsabilidade das Nações Unidas, obrigação imposta pelo

Capítulo XI da Carta. Assim, não se justifica a utilização da força no exercício do direito de

autodeterminação dos povos56.

De outra banda, a condenação à guerra de agressão e ao uso da força em represálias foi

peremptória. Enfatizou-se a necessidade de responsabilizar os Estados que deflagrassem este tipo

54 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Assembléia Geral. Resolução 2.625 de 24 de outubro de 1970. Disponível em: <http://daccessdds.un.org/doc/RESOLUTION/GEN/NR0/352/86/IMG/NR035286.pdf> Acesso em: 30 de maio de 2008. p. 130. 55 Cf. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Op. Cit. 101. 56 Ibidem. p. 107.

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de conflito ou que cometessem crimes contra a paz, uma vez que, no Direito Internacional

contemporâneo a proibição do uso da força se tornou uma norma de jus cogens5758.

No tocante à utilização da força pelas Nações Unidas, ressaltou-se que a Carta conferiu

poderes e autoridade aos seus organismos para a manutenção da paz e segurança internacionais,

de forma que o uso da força baseado na decisão do Conselho de Segurança é legal59.

A principal controvérsia surgida na elaboração da Declaração em tela foi com relação ao

sentido que deveria ser atribuído ao termo “força”. Inicialmente, definiu-se que o termo cobria

somente a força armada, mas várias delegações argumentaram a necessidade de se incluir na

acepção do termo as pressões política e econômica dirigidas contra a integridade territorial e a

independência política de outro Estado. Contudo, a Declaração de 1970 não conseguiu fornecer

uma definição clara a esse respeito e adotou uma redação abstrata que não foi capaz de solucionar

a controvérsia60.

Tampouco a definição de agressão, adotada pela Resolução nº 3.314 da Assembléia Geral

das Nações Unidas em 1974, forneceu uma resposta inteiramente satisfatória à questão, mas de

qualquer forma, manifestou um consenso mínimo sobre a matéria, o que já é um fator positivo. A

definição de agressão não fez referência alguma à intervenção econômica e se limitou a um

conceito restrito de agressão pela utilização da “força armada” em violação da soberania estatal.

Insta salientar que a definição adotada e a enumeração dos atos de agressão não são exaustivos

conforme advertiu o próprio art. 4º, da Resolução in análise, o qual atribui ao Conselho de

Segurança a faculdade de determinar quaisquer outros atos que porventura pudessem constituir

agressão conforme as disposições da Carta da ONU61. A Resolução constitui uma simples

recomendação da Assembléia Geral das Nações Unidas ao Conselho de Segurança, ou seja, é soft

law e, por sua vez, não vincula esse organismo a exercer suas funções somente dentro dos seus

termos. Por isso, a enumeração das ações que configuram agressão, listadas no art. 3º, não é

57 Jus Cogens é uma norma imperativa de Direito Internacional geral, é uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados como um todo, como norma da qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por norma ulterior de Direito Internacional geral da mesma natureza. (Cf. CONVENÇÃO DE VIENA SOBRE O DIREITO DOS TRATADOS. Disponível em: <http://www2.mre.gov.br/dai/dtrat.htm> Acesso em 30 de maio de 2008). 58 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Assembléia Geral. Resolução 2.625 de 24 de outubro de 1970. Op. Cit. p. 130. 59 Ibidem. p. 131. 60 Cf. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Op. Cit. p. 107. 61 Cf. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Assembléia Geral. Resolução 3.314 de 14 de dezembro de 1974. Op. Cit. p. 151.

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taxativa, e o Conselho de Segurança pode proceder à sua interpretação tanto num sentido

restritivo como extensivo, tendo em conta, logicamente, as circunstâncias pertinentes, de modo

que ele pode tanto desconsiderar um ato que à primeira vista se configuraria como um ato de

agressão (art. 2º), como considerar quaisquer outros atos como agressão, em conformidade com

as disposições da Carta62.

O dever de não-intervenção nos assuntos internos dos Estados foi outro princípio

amplamente defendido pelos Estados recém-emancipados, sobretudo pelos Estados latino-

americanos e do Leste Europeu. Para eles, o princípio se constituía na tradução da sua própria

história e na defesa de sua independência e soberania. Ressaltou-se que qualquer atividade de um

Estado contra o sistema político, econômico ou social de outro, ou quaisquer tentativas de impor

uma forma específica de organização ou governo, deverão ser consideradas ilegais63. A fim de

delimitar o princípio da não-intervenção, foi necessário estabelecer o alcance do domínio

reservado dos Estados. De modo geral, restou ventilado que atos como o genocídio64, crimes

contra a humanidade65, denegação do direito de autodeterminação dos povos ou atos cometidos

em violação aos acordos internacionais não recairiam sob o domínio reservado dos Estados. Ou

seja, o princípio em questão não pode permitir que um país viole os direitos humanos dos seus

cidadãos sem que essas violações tornem-se objeto de preocupação legítima da comunidade

internacional66.

A interpretação dada pela Declaração de 1970 sobre o princípio da não-intervenção, ao

final dos trabalhos, considera que a intervenção armada e todas as outras formas de interferências

ou atentados contra a personalidade do Estado ou contra seus elementos políticos, econômicos e

culturais são consideradas contrárias ao Direito Internacional. Assim, nenhum Estado pode

suscitar ou utilizar medidas econômicas, políticas, ou de qualquer outra natureza para coagir

outro Estado a fim de obter a sua subordinação ou extrair vantagens. Finalmente, o texto

asseverou que todos os Estados têm o direito inalienável de escolher seu próprio sistema político,

social e cultural sem a interferência de qualquer outro. Entretanto, frisou-se que a interpretação 62 Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Op. Cit. p. 146. 63 Cf. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Op. Cit. p. 112/113. 64 Segundo o art. 6º do estatuto do Tribunal Penal Internacional, genocídio significa qualquer ato cometido com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, ético, racial ou religioso. (Cf. TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL. Estatuto da Organização Internacional do Tribunal Penal. Disponível em: <http://www.icc-cpi.int/library/about/officialjournal/Rome_Statute_English.pdf> Acesso em: 05 de agosto de 2008). 65 Segundo o art. 6º do estatuto do Tribunal Penal Internacional, genocídio significa qualquer ato cometido com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, ético, racial ou religioso. (Ibidem). 66 Cf. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Op. Cit. p. 119.

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dada a este princípio pela Declaração de 1970 não deverá afetar as disposições da Carta das

Nações Unidas relativas à paz e segurança internacionais67.

E ainda, a Resolução nº 2.625, proclamou como um princípio o dever de não-intervenção

nos assuntos da competência nacional de um Estado, ao afirmar:

Nenhum Estado ou grupo de Estados tem o direito de intervir direta ou indiretamente, por qualquer motivo, nos assuntos internos ou externos de outro Estado. Em conseqüência, não apenas a intervenção armada, mas também qualquer outra forma de ingerência ou ameaça, dirigida contra a personalidade de um Estado ou seus elementos políticos, econômicos ou culturais, são contrárias ao direito internacional68.

Ligado ao princípio da não-intervenção, foram ventilados os princípios da igualdade de

direitos e da autodeterminação dos povos. Este foi considerado, à época da Declaração de 1970,

um princípio em franca evolução, haja vista que os movimentos de emancipação nacional

possibilitaram a vários países a conquista de sua independência e soberania. A autodeterminação

dos povos tornou-se uma regra de aplicação universal no Direito Internacional contemporâneo, de

forma que todo Estado tem o dever de não intentar qualquer ação que se mostre contrária ao

exercício deste direito69.

Por derradeiro, cabe ressaltar que a Declaração relativa aos princípios do Direito

Internacional que regem a relações amistosas e cooperação entre os Estados, do ano de 1970,

consistiu numa tentativa exaustiva de sistematização dos princípios erigidos na Carta da ONU e

se mostrou adequada às exigências e necessidades da época. Além disso, ela representou um

progresso, visto que considerou a prática internacional desde a adoção da Carta das Nações

Unidas até aquela época, e conferiu à Carta o tratamento de fonte formal do Direito Internacional.

Apesar de suas imperfeições e insuficiências, por intermédio da declaração de 1970 é que foi

possível detectar a opinio juris da comunidade internacional da época sobre as matérias

abordadas70.

Quanto aos princípios aqui analisados, cumpre reafirmar que as Delegações optaram por

uma redação abstrata do princípio da proibição do uso ou ameaça da força, de modo a superar o

impasse entre as interpretações restritiva e ampla do termo “força”. Ainda assim, a Declaração

proibiu a utilização da força contra a integridade territorial dos Estados e esclareceu que o

67 Cf. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Op. Cit. p. 121. 68 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Assembléia Geral. Resolução 2.625 de 24 de outubro de 1970. Op. Cit. p. 131. 69 Cf. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Op. Cit. p. 123/124. 70 Ibidem. p. 129/130.

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território de nenhum Estado poderá ser objeto de ocupação militar ou de aquisição por outro, por

meio do emprego da força armada. Da mesma forma, a utilização da força para interferir nos

assuntos de domínio reservado dos Estados é proibida, haja vista que os povos não poderão ser

privados do seu direito à independência e, por conseguinte, do poder de escolher livremente o seu

próprio sistema político, econômico, social e cultural71. O tratamento conferido ao princípio da

não-intervenção, por sua vez, dissipou todas as dúvidas, na medida em que condenou, em todas

as suas formas, seja ela política, econômica ou cultural, a intervenção nos assuntos internos dos

Estados72.

1.3 O CASO DAS ATIVIDADES MILITARES E PARAMILITARES NA NICARÁGUA (NICARÁGUA V. ESTADOS UNIDOS)

Este caso é paradigmático para o presente estudo, pois a Corte Internacional de Justiça

pôde se manifestar sobre o princípio da não-intervenção, de forma que serão expostas e

analisadas somente as questões de mérito relativas ao desrespeito do referido princípio.

O caso em tela ocorre em meados da década de 1980 no contexto da corrida armamentista

da Guerra Fria, e consiste numa das respostas conservadoras do então governo dos Estados

Unidos, presidido por Ronald Reagan, aos movimentos revolucionários da América Central. A

Nicarágua caiu em mãos adversas aos estadunidenses no ano de 1979, quando ocorreu a vitória

definitiva da Revolução Sandinista, comandada pela Frente Sandinista de Libertação Nacional

(FSLN). Automaticamente, os Estados Unidos a interpretaram como uma ameaça “soviético-

cubana” à paz do hemisfério. Era necessário enfrentar política e militarmente a ameaça do perigo

vermelho à segurança do continente, pois o regime que se instaurou na Nicarágua acabou por se

integrar ao bloco socialista. Os Estados Unidos, então, iniciam uma série de ofensivas militares e

políticas contra esse país, com o intuito de desestabilizar o governo revolucionário sandinista73.

O caso foi posto à análise da Corte em 09 de abril de 1984, sob as alegações

nicaragüenses de que os EUA deveriam ser responsabilizados pelos atos cometidos em seu

território. Os fatos imputados aos EUA foram os seguintes: a) instalação de minas nos portos e

71 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Assembléia Geral. Resolução 2.625 de 24 de outubro de 1970. Op. Cit. p. 131. 72 Ibidem. p. 138. 73 SEBRIAN, Raphael Nunes Nicoletti; LEITE JÚNIOR, José Hugo. O “tribunal permanente dos povos” e a intervenção dos EUA na Nicarágua. Disponível em: <http://www.unicentro.br/editora/revistas/guairaca.pdf> Acesso em: 27 de maio de 2008.

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mar territorial da Nicarágua, feita por militares americanos ou por nacionais de países latino-

americanos financiados pelos Estados Unidos, cuja explosão causou danos pessoais e materiais

irreparáveis e implicou riscos que ocasionaram a alta das taxas dos seguros marítimos; b)

operações contra instalações petroleiras e bases navais da Nicarágua; c) sobrevôos em seu espaço

aéreo realizado por aeronaves militares americanas; d) manobras militares efetuadas juntamente

com o Estado de Honduras, pelos Estados Unidos em território hondurenho, próximo da fronteira

entre Honduras e Nicarágua; e) criação, organização e apoio ao exército mercenário chamado

força “contra” e f) medidas de caráter econômico como a suspensão da assistência econômica e

oposição dos EUA à concessão à Nicarágua de empréstimos por instituições financeiras

internacionais, além de um embargo total sobre o comércio com a Nicarágua por decisão do

presidente dos Estados Unidos74.

A seu turno, os Estados Unidos sustentaram que seus atos constituíam legítima defesa

coletiva, uma vez que a Nicarágua fornecia apoio aos grupos armados que operavam nos países

vizinhos75, sobretudo em El Salvador. Também responsabilizaram a Nicarágua por ataques

militares transfronteiriços dirigidos contra Honduras e Costa Rica. Além disso, alegaram que seus

atos no território da Nicarágua visavam à proteção dos direitos humanos no país, uma vez que o

atual presidente violava certas garantias dadas pelo seu predecessor imediato e os Estados Unidos

acreditavam possuir responsabilidade particular quanto ao respeito desses compromissos76.

Em suma, a Corte afastou a alegação americana de legítima defesa e considerou que esta,

quer seja individual ou coletiva, só pode ocorrer na seqüência de uma agressão armada, conforme

a definição da Resolução 3.314 da Assembléia Geral, o que não ficou caracterizado no presente

caso. A Corte entendeu que no Direito Internacional contemporâneo, os Estados não têm

nenhum direito de resposta armada “coletiva” a atos que não constituam uma agressão armada77.

Decidiu que os EUA, ao treinar, armar, equipar, financiar e prover as forças “contras”, e ao

encorajar, apoiar e assistir de qualquer outra maneira as atividades militares e paramilitares na

Nicarágua e contra ela, violaram a obrigação que lhes impõe o direito internacional costumeiro de 74 Cf. CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Caso das atividades militares e paramilitares na e contra a Nicarágua (Nicarágua v. Estados Unidos). Op. Cit. p. 9/10. 75 “Após a revolução de 1979, o novo regime introduziu a sociedade nicaragüense num processo de ruptura com o sistema capitalista. [...] Enquanto isso, em El Salvador, Guatemala e Honduras, em menor proporção, havia luta armada. A administração norte-americana constituiu então uma frente contra a penetração soviética no continente.” (Cf. SEBRIAN, Raphael Nunes Nicoletti; LEITE JÚNIOR, José Hugo. Op. Cit. p. 57). 76 Cf. CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Caso das atividades militares e paramilitares na e contra a Nicarágua (Nicarágua v. Estados Unidos). Op. Cit. p. 11/12. 77 Ibidem.

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não intervir nos assuntos internos de um outro Estado78; que ao ordenar ou autorizar o sobrevôo

do território nicaragüense e ao instalar minas nos portos e mar territorial, violaram a soberania

estatal da Nicarágua; e ainda, que pelos atos de intervenção que implicaram no emprego da força,

violaram também, a obrigação internacional de não recorrer à força contra outro Estado79.

Mais especificamente, com relação ao princípio da não-intervenção, a Corte esclareceu

que esse princípio envolve o direito de qualquer Estado soberano de conduzir seus assuntos sem

qualquer ingerência externa, e ressaltou a sua incorporação em diversas declarações e resoluções

internacionais, das quais são partes os Estados envolvidos neste litígio. Considerou, então, que os

referidos textos testemunham a aceitação pelos Estados Unidos e pela Nicarágua desse princípio

como costumeiro e universalmente aplicável80.

Sobre o conteúdo do princípio em análise, a Corte estabeleceu os elementos constitutivos

aplicáveis ao caso, e assim, considerou que uma intervenção proibida deve ser aquela que incide

em matérias sobre as quais o princípio da soberania dos Estados permite a cada um decidir

livremente sobre a escolha do seu sistema político, econômico, social e cultural, bem como, sobre

a formulação e condução de suas relações exteriores. A intervenção é ilícita, portanto, quando se

utiliza, em relação às mencionadas escolhas, de métodos de coerção, principalmente a força, seja

sob sua forma direta (ação militar), seja sob sua forma indireta (apoio de atividades subversivas

no interior de outro Estado)81.

A Corte observou que no decorrer dos anos anteriores ao julgamento, várias intervenções

estatais ocorreram e visavam à destituição de um governo de outro Estado, mas esta prática não

permite concluir que o Direito Internacional contemporâneo preveja um direito geral de

intervenção em favor da oposição existente em outro Estado82. Assim, a intervenção americana

foi considerada condenável porque foi constatado que o governo dos Estados Unidos, pelo apoio

fornecido aos “contras”, pretendia exercer pressão sobre a Nicarágua nos domínios em que cada

Estado goza de inteira liberdade de decisão, pois ficou claro que a intenção dos “contras” era a de

depor o governo instaurado na Nicarágua. Ela asseverou que se um Estado fornece seu apoio a

grupos armados cuja ação tende a depor o governo de outro Estado, resta configurada uma

78 Cf. CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Caso das atividades militares e paramilitares na e contra a Nicarágua (Nicarágua v. Estados Unidos). Op. Cit. p. 17. 79 Ibidem. p. 15/16. 80 Ibidem. p. 14. 81 Ibidem. 82 Ibidem. p. 15.

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intervenção em seus assuntos internos, independente do objetivo político do Estado que oferece

esse apoio. Concluiu, portanto, que o apoio dado pelos Estados Unidos às atividades militares e

paramilitares dos “contras” na Nicarágua sob forma de financiamento, treinamento, fornecimento

de armas, informações e meios logísticos, constitui uma violação indubitável do princípio da não-

intervenção83.

Inobstante, a Corte assegurou que uma intervenção é lícita quando tem como único fim o

fornecimento de uma ajuda humanitária, ou seja, que para não ter o caráter de uma intervenção

condenável nos assuntos internos de outro Estado, a assistência humanitária deve se limitar aos

fins reconhecidos pela prática da Cruz Vermelha e, sobretudo, ser concedida sem discriminação.

Assim, a alegação americana de que interveio na Nicarágua para proteger direitos humanos não

encontrou respaldo, uma vez que o congresso dos Estados Unidos abriu crédito apenas para uma

“assistência humanitária” aos “contras”, o que comprova que essa ajuda foi discriminatória e

visava somente à continuação (apoio) das atividades destes. Além disso, a Corte esclareceu que o

emprego da força pelos Estados Unidos não poderia ser considerado o método apropriado para

assegurar o respeito dos direitos humanos84.

Em opinião separada, o juiz presidente ainda ressaltou que a solução pacífica dos

conflitos, principal objetivo almejado pelo Direito Internacional contemporâneo, repousa na

observância dos princípios da não utilização ou ameaça da força e não-intervenção nos assuntos

internos dos Estados, mormente neste último, cuja observância é vital para a co-existência

saudável e pacífica dos países na comunidade internacional85.

A decisão analisada não forneceu uma definição inquestionável do princípio da não-

intervenção, mas é preciso admitir que ela foi capaz de fornecer algumas importantes

considerações sobre os seus elementos constitutivos. Primeiramente, restou claro que são

matérias de domínio reservado a escolha do sistema político, econômico, social, cultural e a

formação das relações exteriores, questões sobre as quais a intervenção deve ser considerada

ilícita. Ressaltou-se também que o fornecimento de ajuda estritamente humanitária não poderia

ser considerado contrário ao Direito Internacional, porém não foram delineadas as situações em

83 Cf. CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Caso das atividades militares e paramilitares na e contra a Nicarágua (Nicarágua v. Estados Unidos). Op. Cit. p. 17. 84 Ibidem. p. 18/19. 85 Cf. CORTE INTERNACIONAL DE JUSTICA. Caso das atividades militares e paramilitares na e contra a Nicarágua (Nicarágua v. Estados Unidos). Decisão de 27 de junho de 1986: Resumo dos pareceres anexados ao acórdão. Disponível em: <http http://www.icj-cij.org/docket/files/70/9973.pdf> Acesso em: 30 de maio de 2008. p. 1.

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que esta ajuda estaria plenamente autorizada86. Além disso, a afirmação de que a utilização da

força militar não pode ser considerada meio hábil para garantia do respeito aos direitos humanos

pode facilmente ser contestada, uma vez que o recurso à força armada pode ser essencial nos

casos de violações sistemáticas e em larga escala dos referidos direitos. Em situações como o

genocídio ou crimes contra a humanidade, por exemplo, a não utilização da força perde

completamente o seu sentido, pois entra em conflito com o objetivo último de proteger as vítimas

do conflito87. De todo o modo, verifica-se que a decisão proferida por ocasião do julgamento em

análise, mostrou-se evolutiva ao reconhecer que uma ajuda estritamente humanitária não poderia

ser considerada uma intervenção ilícita.

1.4 O DOMÍNIO RESERVADO DOS ESTADOS E OS DIREITOS HUMANOS

Como já aventado, a Carta das Nações Unidas proíbe a ingerência nos assuntos internos

ou políticos de outros Estados por meio do disposto no art. 2º, §7º, que consagra ao mesmo

tempo, o princípio da não-intervenção e a noção de domínio reservado dos Estados. Isto porque, a

idéia de domínio reservado está estreitamente relacionada ao princípio da não-intervenção, o qual

proíbe que a ONU e, de acordo com a interpretação mais estendida que o referido dispositivo

obteve com a Declaração de 1970, qualquer Estado, intervenham em matérias sujeitas à ordem

interna das nações88. No entanto, o referido dispositivo carece de uma definição exata dos

critérios jurídicos com que deve ser interpretado e aplicado, e ainda não se mostrou viável

determinar o exato alcance e conteúdo do domínio reservado, pois as questões que são

essencialmente de jurisdição interna são relativas e dependem do desenvolvimento do Direito

Internacional89.

A noção de domínio reservado de Estado está intimamente ligada ao conceito de

soberania. Esta consiste na liberdade que os Estados têm de decidir, embora submetidos ao

Direito Internacional, sobre suas competências e atribuições. O domínio reservado, portanto, diz

respeito a determinadas matérias nas quais os Estados têm inteira liberdade de decisão, ou seja,

são questões em que ainda não se verifica uma limitação imposta pelo Direito Internacional e, em 86 Cf. DINH, Nguyen Quoc; DAILLER, Patrick; PELLET, Alain. Op. Cit. p. 453/454. 87 Cf. VIOTTI, Aurélio Romanini de Abranches. Op. Cit. p. 73. 88

Cf. GARCIA, Emerson. Proteção internacional dos direitos humanos: Breves reflexões sobre os sistemas convencional e não-convencional. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2005. p. 112. 89 Cf. SALCEDO, Juan Antonio Carrillo. Soberania de los Estados y derechos humanos em derecho internacional contemporâneo. 2ª Edição. Madrid: Tecnos, 2004. p. 40/41.

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assim sendo, trata-se de um conceito jurídico e não político. A sua existência e reconhecimento se

coadunam com a supremacia do Direito Internacional e é este quem determina, em última

instância, a sua extensão90.

Segundo o Instituto de Direito Internacional, domínio reservado é o das atividades estatais

em que a competência do Estado não está vinculada pelo direito internacional. Sua extensão

depende do direito internacional e, consequentemente, do seu desenvolvimento91. Assim, a

composição de um compromisso internacional em matéria até então dependente do domínio

reservado92, automaticamente submete as questões nele aventadas ao Direito Internacional, o que

impossibilita para as partes obrigadas a argumentação da exceção de domínio reservado com

relação a qualquer controvérsia que eventualmente possa decorrer do referido compromisso93. A

conseqüência da extensão do domínio reservado conferida aos Estados é impedir a ingerência dos

demais países em matérias pertencentes ao direito interno de outros94. Na realidade, o propósito

do §7º do art. 2º da Carta da ONU não é outro senão a proteção da soberania interna dos Estados,

isto é, a salvaguarda das competências exclusivas para exercer a autoridade estatal dentro de suas

fronteiras95. O problema que se propõe é que a redação do referido dispositivo procurou limitar a

atuação da ONU nos assuntos de competência exclusiva dos Estados, ao mesmo tempo em que

lhe conferiu poderes para coagir estes últimos nos casos em que se verificar ameaça à paz e

segurança internacionais, uma vez que estabelece como ressalva as medidas coercitivas previstas

no capítulo VII da Carta. Assim, o princípio da não-intervenção é limitado pela competência do

Conselho de Segurança em definir uma ameaça à paz e segurança internacionais, e esta é limitada

pelo princípio da não-intervenção. Trata-se de uma incongruência. Desse modo, a questão se

resume à interpretação que o próprio Conselho de Segurança conferir à sua competência para a

manutenção da paz e segurança internacionais96.

90 Cf. DINH, Nguyen Quoc; DAILLER, Patrick; PELLET, Alain. Op. Cit. p. 449. 91 “[…] a evolução do direito internacional é a resultante do comportamento dos Estados quer pela sua prática convencional – conclusão de tratados em matérias inéditas -, quer pelo seu apoio às atividades e às iniciativas das organizações internacionais.” (Ibidem. p. 451). 92 “É muito possível que numa matéria como a da nacionalidade, que não é, em princípio, regulamentada pelo direito internacional, a liberdade do Estado de dispor à sua vontade seja, todavia, restringida por compromissos que este teria tomado para com outros Estados. Neste caso, a competência do Estado, exclusiva em princípio, encontra-se limitada por regras de direito internacional.” (Ibidem.). 93 INSTITUTO DE DIREITO INTERNACIONAL. Resolução sobre domínio reservado e seus efeitos. Disponível em: <http://www.idi-iil.org/idiF/navig_chron1953.html> Acesso em: 01 de novembro de 2008. 94 Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Op. Cit. p. 149. 95 Cf. SALCEDO, Juan Antonio Carrillo. Op. Cit. p. 40. 96 Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Op. Cit. p. 150.

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Importa ressaltar que o Direito Internacional contemporâneo irradiou-se por diversas áreas

e regulamentou muitas questões que outrora não escapavam à teoria do domínio reservado.

Matérias como desarmamento, soberania territorial e, principalmente, direitos humanos não

fazem mais parte do domínio reservado dos Estados. É possível afirmar que as matérias que ainda

pertencem ao domínio reservado dos Estados são aquelas que não se tornaram objeto de qualquer

compromisso internacional assumido por estes. Desta feita, não nos parece viável determinar o

exato alcance e conteúdo do domínio reservado, pois é problemático dissociar as atividades

internas e externas de um Estado de maneira segura e objetiva97.

Ainda assim, está cristalizado pela doutrina, e as declarações dos últimos secretários da

ONU confirmam esta afirmação, que a proteção dos direitos fundamentais dos indivíduos não

pode ser considerada matéria pertencente ao domínio reservado dos Estados98. A obrigação destes

em assegurar e proteger direitos humanos decorre do reconhecimento da dignidade da pessoa

humana pela própria Carta da ONU99, de modo que nenhum Estado poderá esquivar-se da

responsabilização internacional pela violação dos referidos direitos, sob o pretexto de que esta

matéria é essencialmente de sua jurisdição interna100. Ademais, é certo que os seres humanos não

podem ser submetidos às arbitrariedades dos seus governantes que, ao invocar a barreira imposta

pela soberania, agem de maneira inaceitável, num completo desrespeito as regras jurídicas

estabelecidas pela comunidade internacional101. De fato, eventual alegação de competência

exclusiva dos Estados ou de ofensa à soberania estatal para justificar o desrespeito aos direitos

humanos, não é mais possível; primeiro, porque não são atos justificáveis, segundo, porque se

verifica a aceitação da quase totalidade dos Estados do mundo na regulamentação da matéria por

meio de tratados ou convenções internacionais dos quais fazem parte. É importante frisar, que a

atuação de um Estado na celebração dos mencionados documentos decorre da própria atividade

soberana do Estado, de forma que resultaria paradoxal e contraditório invocar o princípio da

soberania para evadir uma responsabilidade assumida em seu pleno e livre exercício102.

97 Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Op. Cit. p. 149. 98 Ibidem. p. 152. 99 Em seu preâmbulo, a Carta da Organização das Nações Unidas propõe, entre outros, o seguinte objetivo: “reafirmar a nossa fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, assim como das nações, grandes e pequenas”. 100 Cf. SALCEDO, Juan Antonio Carrillo. Op. Cit. p. 42. 101 Cf. RAMOS, Adriana. Intervenção Humanitária. Disponível em: <http://www.viannajr.edu.br/revista/dir/doc/art_10013.pdf> Acesso em 22 de novembro de 2007. p. 2. 102 Cf. RAMOS, André de Carvalho. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 78/79.

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Uma vez que os direitos humanos não mais fazem parte do domínio reservado dos

Estados, a presunção de ilegalidade das intervenções para a proteção dos direitos humanos não

poderia decorrer, pois, da alegação de que são atos que violam a soberania de um Estado. Com

efeito, o direito de intervenção humanitária, fora dos mecanismos da ONU, não encontra amparo

legal devido à proscrição geral da ameaça ou uso da força (art. 2º, §4º)103, mas a ONU poderá

intervir, inclusive com a utilização de força militar, amparada pelo Capítulo VII da Carta, nos

casos em que a violação dos direitos humanos for considerada pelo Conselho de Segurança uma

ameaça à paz e segurança internacionais104.

É importante destacar que a proteção dos direitos humanos é um dos pilares do sistema de

segurança coletiva105 erigido pela Carta das Nações Unidas e, dentro dessa perspectiva, o

Conselho de Segurança é o titular do direito de utilizar medidas coercitivas para restabelecer a

estabilidade internacional. Contudo, no período da Guerra Fria, este sistema quedou paralisado,

uma vez que qualquer ação empreendida pelas Nações Unidas em prol da paz era imediatamente

bloqueada pelos Estados Unidos ou pela União Soviética, por meio do direito de veto no seio do

Conselho de Segurança. Desta forma, durante este período, ocorreram apenas alguns

envolvimentos esparsos106, mas em termos práticos, o sistema não evoluiu muito107. Acrescente-

se a isso a defesa do direito de não-intervenção pelos países recém emancipados, que, numa

tentativa de se firmarem como nações independentes, afastavam qualquer possibilidade de

intervenção. Com o fim da Guerra Fria, percebe-se a aceitação da primazia da proteção dos

103 Cf. VIOTTI, Aurélio Romanini de Abranches. Op. Cit. p. 94. 104 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 100. 105 “Segurança coletiva é um princípio do direito internacional público contemporâneo que incita uma organização internacional, com o apoio obrigatório dos seus membros, a implementar medidas coercitivas para repelir um ataque armado não-justificado ou outra ação que viole a paz internacional. Por “ataque armado não justificado ou outra ação que viole a paz internacional”, entende-se qualquer medida baseada no uso da força ou da violência que esteja em desacordo com as regras do direito internacional. Excetuando-se as ações autorizadas pelo Conselho de Segurança.” (Cf. TSCHUMI, André Vinícius. Op. Cit. p. 17). 106 A Resolução 84, aprovada pelo Conselho de Segurança, em 07 de julho de 1950, determinou a constituição de uma força das Nações Unidas, sob o comando dos Estados Unidos, para ajudar a Coréia do Sul a repelir um ataque injusto (a Coréia do Norte, de influência comunista, atacou a Coréia do sul, aliada dos Estados Unidos). Trata-se de um caso isolado, pois é sabido que os EUA aproveitaram a momentânea ausência do representante da União Soviética dos trabalhos do Conselho de Segurança para apresentar e fazer aprovar o projeto de resolução que autorizou a intervenção. Nas décadas de 1960 e 1970, medidas foram tomadas contra os governos racistas da Rodésia do Sul, atual Zimbabwe e da África do Sul. Em relação à primeira, o Conselho de Segurança decidiu impor, não sem inúmeras críticas em relação a real existência de ameaça a paz e segurança internacionais, um embargo econômico e de venda de armas, além de ter autorizado o uso limitado da força para fazer cumprir a Resolução. Contra a segunda, além da proibição de venda de armamento, também vedou qualquer tipo de ralação entre os Estados-membros e a África do Sul no tocante a desenvolvimento de reatores nucleares. (Cf. DELGADO, José Manuel Avelino de Pina. Op. Cit. p. 98/100). 107 Ibidem. p. 101.

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direitos do homem e a concordância de que o sofrimento humano e a segurança internacional são

assuntos intimamente ligados e correlatos ao sistema de segurança coletiva das Nações Unidas. É

a partir deste momento, que os direitos humanos passam a integrar a agenda internacional e

definitivamente são excluídos das matérias pertencentes ao domínio reservado dos Estados108. A

Organização das Nações Unidas, então, começa a adotar mecanismos capazes de compelir os

Estados a se submeterem as suas decisões e, assim, ordena intervenções que permitiram o uso da

força e vincularam a ameaça à paz e segurança internacionais às questões humanitárias109.

Na década de 1990, o Capítulo VII foi invocado diversas vezes pelo Conselho de

Segurança da ONU para justificar intervenções militares onde as condições humanitárias

demandavam ajuda internacional110. As principais resoluções adotadas nesse sentido foram as

seguintes: 661 de 1990 para o Iraque, 713 e 757 respectivamente de 1991 e 1992 para os Estados

sucessores da ex-Iugoslávia, 733 de 1992 para a Somália, 748 e 883 respectivamente de 1992 e

1993, para a Líbia, 788 de 1992 para a Libéria, 841 de 1993 para o Haiti, 918 de 1994 para

Ruanda, 1.054 e 1.070 ambas de 1996 para o Sudão, 1.132 de 1997 para Serra Leoa, 1.160 de

1998, para Kosovo, na Iugoslávia e 1.267 de 1999, para o Afeganistão, diante da não extradição

de Osama Bin Laden. Trata-se de um conjunto bastante extenso de resoluções ligadas à

manutenção da paz e segurança internacionais, o suficiente, inclusive, para constituir uma prática

reiterada, elemento material do que poderá se tornar um costume111 internacional112. A explicação

para este impulso humanitário consiste na interpretação flexível que o Conselho de Segurança

conferiu ao conceito de ameaça à paz e segurança internacionais, prevista no art. 39 da Carta,

haja vista que o sentido original deste dispositivo pressupunha a existência objetiva de uma

ameaça de agressão de um Estado contra outro, e, conseqüentemente, o perigo real de travar-se

qualquer tipo de conflito armado internacional113. Por ora, cumpre ressaltar que essa mudança de

tratamento dispensado pela ONU às questões de cunho humanitário pode contribuir para o

surgimento de um direito/dever de intervenção humanitária, e é a partir da análise que se fará no

108 Cf. RAMOS, Adriana. Op. Cit. p. 12/14. 109 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 111. 110 Ibidem. p.114. 111 Alberto do Amaral Júnior explica que o costume decorre de uma prática reiterada, comportamentos que se repetem no tempo e revelam uniformidade. Manifesta-se quando presentes o elemento material, que se constitui pela repetição constante e uniforme de determinados atos durante certo período e o elemento psicológico que se manifesta pela convicção de que tais atos correspondem à execução de uma obrigação jurídica. (Op. Cit. p. 251). 112 Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Op. Cit. 162. 113 Cf. RAMÍREZ, Frederico Arcos. Guerras en defensa de los derechos humanos: Problemas de legitimidad em las intervenciones humanitárias. Madrid: Dykinson, 2002. p. 90.

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segundo capítulo deste trabalho, acerca das modalidades de intervenção humanitária e das

supracitadas resoluções aplicadas pelo Conselho de Segurança que será possível verificar se as

situações em que elas foram adotadas são capazes de legitimar a utilização do referido instituto,

como medida para a salvaguarda dos direitos humanos.

2 A RELATIVIZAÇÃO DO PRINCÍPIO DA NÃO-INTERVENÇÃO NA PRÁTICA DOS ESTADOS E DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS

2.1 AS INTERVENÇÕES HUMANITÁRIAS AUTORIZADAS PELO CONSELHO DE SEGURANÇA NA DÉCADA DE 1990

Como já é possível perceber, a manutenção da paz e segurança internacionais é um dos

propósitos fundamentais do sistema jurídico da ONU e, para tanto, a Organização se propõe a

agir em situações que geram crises passíveis de ameaçar a estabilidade do sistema. Observa-se

que a Carta da ONU procurou transferir o poder de coerção dos Estados-membros para as Nações

Unidas, que desse modo, tornaram-se a única entidade competente para tratar questões relativas

ao uso da força no Direito Internacional, bem como para tomar medidas destinadas a combater a

sua utilização ilegal. Muito embora exista previsão na Carta de um importante mecanismo para

estabelecer uma força militar própria no artigo 43114, apta à implementar as resoluções das

Nações Unidas tomadas sob o capítulo VII, infelizmente, isso ainda não foi possível. Mas, ainda

assim, o Conselho de Segurança mantém o dever de garantir a segurança de todos os Estados-

membros e deve fazê-lo por intermédio dos meios disponíveis. A necessidade imperiosa da paz e

da segurança mundiais justifica o emprego de um meio não previsto na Carta, de modo que o

Conselho de Segurança não está adstrito ao art. 43 da Carta. A ação coercitiva conduzida por

Estados-membros, desde que autorizada pelo Conselho de Segurança, é válida, uma vez que os

Estados agem em nome de toda a coletividade, sob a bandeira das Nações Unidas115.

Desta feita, na década de 1990, uma série de questões relacionadas à proteção de civis em

conflitos armados foi objeto de discussão no Conselho de Segurança. Em alguns casos, este órgão

se mostrou bastante disposto em atuar diretamente frente a graves violações dos direitos humanos

114 Art. 43, § 1º. Todos os membros das Nações Unidas se comprometem, a fim de contribuir para a manutenção da paz e da segurança internacionais, a proporcionar ao Conselho de Segurança, a seu pedido e em conformidade com um acordo ou acordos especiais, forças armadas, assistência e facilidades, inclusive direitos de passagem, necessários à manutenção da paz e da segurança internacionais. 115 Cf. DELGADO, José Manuel Avelino de Pina. Op. Cit. p. 120/124.

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e ao Direito Internacional Humanitário, e obteve os mais variados resultados. Em outros casos,

entretanto, mostrou-se hesitante e deixou a impressão de que a sua atuação serviu mais para a

satisfação perante a opinião pública internacional ou para a concretização de interesses

tradicionais dos Estados, do que, propriamente, na preocupação quanto à sorte de indivíduos em

países distantes e pouco conhecidos116. Não obstante, diferente do período da Guerra Fria em que

a questão humanitária estava divorciada da dimensão política e de segurança da sociedade

internacional, a ligação entre esses dois temas surge, em 1990, como uma possível solução para a

garantia da ordem internacional117. Verifica-se neste período, por ocasião das crises humanitárias,

que o Conselho de Segurança buscou identificar uma relação de causalidade entre a supressão das

liberdades internas e instabilidade internacional, o que evidenciou o fato de que o desrespeito aos

direitos humanos pode colocar em risco a paz e segurança internacionais118. Essa foi a razão

encontrada pelo Conselho de Segurança, como se verá a seguir, para intervir em várias crises

humanitárias recentes.

2.1.1 IRAQUE

A primeira vez que o Conselho de Segurança autorizou o uso da força para proteger

direitos humanos foi no Iraque. Logo após a Guerra do Golfo, os aliados optaram por não invadir

o Iraque para depor o governo de Saddam Hussein, mas incentivaram a revolta das minorias

curda e xiita a fazê-lo. O exército iraquiano, na ocasião, não teve problemas para esmagar a

oposição119 e, após a rebelião frustrada, as pessoas começaram a fugir em massa para as

fronteiras do Irã e da Turquia a fim de evitar represálias. Estima-se que, em abril de 1991, mais

ou menos um milhão de refugiados estavam concentrados ao longo dessas fronteiras120. A

condição extrema de fome e doença desses indivíduos provocou a reação dos países ocidentais,

principalmente porque a insurgência dos curdos foi encorajada pelos aliados, o que os tornou

indiretamente responsáveis pela eclosão do conflito. Outro fator de grande importância para a

116 Cf. VIOTTI, Aurélio Romanini de Abranches. Op. Cit. p. 109. 117 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 111. 118 Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Op. Cit. p. 189. 119 Cf. DELGADO, José Manuel Avelino de Pina. Op. Cit. p. 160. 120 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 115.

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compreensão do envolvimento do ocidente foi o papel da mídia na formação de uma opinião

pública doméstica que tornou insustentável a inércia das potências do Conselho de Segurança121.

Dentro desse contexto, o órgão aprovou uma de suas primeiras resoluções destinadas a

autorizar a utilização da força para a proteção dos direitos humanos122. Na Resolução 688, de 05

de abril de 1991, o Conselho de Segurança se mostra seriamente preocupado com os atos de

repressão perpetrados contra a população civil iraquiana, em muitas localidades do Iraque,

principalmente nas zonas de povoação curda, o que gerou um fluxo maciço de refugiados até e

entre as fronteiras internacionais, e ameaçou a paz e segurança na região. Mais à frente, a

resolução em análise condena todos os atos de repressão cometidos contra a população civil

iraquiana e ordena que o Iraque ponha fim imediatamente a esses atos e que seja estabelecido um

diálogo com a finalidade de garantir que se respeitem os direitos humanos e políticos de todos os

cidadãos iraquianos. Insiste para que o Iraque conceda às organizações de alívio humanitário

internacionais, acesso imediato a todos aqueles que necessitem de assistência em seu território e

que ponha à disposição dessas organizações as instalações necessárias para a prestação da

assistência humanitária. Finalmente, solicita ao Secretário Geral da ONU que se utilize de todos

os meios necessários para enfrentar, com urgência, as necessidades dos refugiados e da população

iraquiana afetada pelo conflito e convoca os Estados e as organizações humanitárias a envidar

esforços na organização da tarefa de socorro as vítimas, sob a exigência de que o Iraque coopere

com o Secretário Geral para a consecução de tais finalidades123.

É perceptível que a Resolução 688 associou os abusos maciços e sistemáticos de um

Estado contra os direitos de seus próprios nacionais à problemática da segurança internacional e,

conseqüentemente, sinalizou para uma mudança no papel do Conselho de Segurança no que se

refere à limitação da jurisdição doméstica estatal em face da proteção internacional dos direitos

humanos124. A França, Grã-Bretanha e os EUA, que já haviam sinalizado a intenção de conceder

auxílio à população curda afetada pelo conflito, passaram a ter, com a aprovação da referida

Resolução, respaldo legal para promover a ajuda necessária125. As tropas tiveram o apoio de

alguns outros países para o transporte de alimentos, roupas e medicamentos para a população

121 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 119. 122 Cf. DELGADO, José Manuel Avelino de Pina. Op. Cit. p. 160. 123 Cf. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Segurança. Resolução 688 de 05 de abril de 1991. Disponível em: <http://daccessdds.un.org/doc/RESOLUTION/GEN/NR0/597/50/IMG/NR059750.pdf> Acesso em: 28 de agosto de 2008. 124 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 121. 125 Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Op. Cit. p. 197.

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refugiada. Além disso, centros de ajuda humanitária foram instalados para permitir o retorno dos

curdos refugiados na Turquia e Irã por meio de “corredores humanitários”126 até as zonas de

segurança127, locais em que havia a proibição de toda e qualquer atividade militar por parte do

governo iraquiano, além de uma zona de exclusão aérea para monitorar a submissão do Iraque ao

cumprimento da Resolução. Estima-se que a operação permitiu o acesso de sete mil toneladas de

suprimentos para um total de um milhão e meio de refugiados128. Cabe ressaltar que apesar dessa

ação ter dado início ao ativismo do Conselho de Segurança na área humanitária129, a Resolução

apenas solicita permissão para que as organizações humanitárias prestem auxílio e, assim sendo,

ela não pode ser considerada stricto senso uma intervenção humanitária130, uma vez que a

utilização da força foi autorizada somente de modo implícito131.

2.1.2 SOMÁLIA

Um exemplo mais claro de intervenção humanitária é o caso da Somália, que ocorreu um

ano após a intervenção no Iraque132. A Somália é formada por diferentes clãs e, desde 1969, foi

governada pelo general Mohammed Siad Barre, que instaurou uma ditadura e buscou banir o

sistema de clãs em conjunto com os partidos políticos. A partir de 1988, a insurgência contra Siad

Barre se intensificou da mesma forma que a repressão estatal aos revoltosos, o que ocasionou um

grande número de exilados e refugiados nos países vizinhos. Em 1991, o presidente é deposto por

facções rivais, que logo entram em conflito entre si e, com isso, eclode uma guerra civil

sustentada pelos diferentes clãs. Pouco tempo depois, a Somália havia se tornado uma zona de

guerra, destituída de administração política, sem polícia e, tampouco, judiciário133. O clima de

guerra e a fome contribuíram para a formação de grandes contingentes de refugiados famintos. O

trabalho das agências de alívio humanitário começou a ser dificultado pelos clãs que exigiam

126 Demarcação de determinada área que deve permanecer livre do conflito para facilitar o acesso e a entrega do auxílio humanitário. (Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Op. Cit. 159). 127 “A compulsoriedade é o traço primordial que as caracteriza. A sua criação ocorre quando se decide delimitar uma área geográfica específica, independentemente da concordância do Estado envolvido, para oferecer abrigo a parcela da população civil, livrando-a, ao mesmo tempo, das conseqüências nefastas dos conflitos armados. Evidencia-se, nesse caso, a incapacidade do Estado em manter a ordem e prover a segurança dos cidadãos.” (Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Op. Cit. p. 267). 128 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 121/122. 129 Cf. DELGADO, José Manuel Avelino de Pina. Op. Cit. p. 161. 130 Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Op. Cit. 162. 131 Cf. DELGADO, José Manuel Avelino de Pina. Op. Cit. p. 161. 132 Ibidem. 133 Cf. VIOTTI, Aurélio Romanini de Abranches. Op. Cit. p. 110.

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dinheiro para permitir que a ajuda chegasse aos necessitados, com a finalidade de realimentar e

incrementar o conflito e muitas vezes confiscavam os gêneros alimentícios e medicamentos134.

Em 1992, o Conselho de Segurança adota a sua primeira Resolução referente à crise na

Somália. A Resolução 733 expressava a preocupação do Conselho com a rápida deterioração da

ordem na Somália, com as grandes perdas materiais e de vidas humanas, e salientava que a

continuidade dessa situação ameaçava a paz e segurança na região. Mais adiante, o Conselho

ressalta a necessidade das partes cooperarem com o esforço humanitário e faz referência ao

Capítulo VII, apenas para apelar a todos os Estados para que procedessem à instauração imediata

de um completo embargo ao suprimento de armas e equipamentos militares para a Somália135.

Após intensas negociações, as duas facções principais assinaram, em março de 1992, um

acordo de cessar-fogo e permitiram o desembarque de observadores desarmados da ONU na

capital, Mogadishu, para monitorar o cumprimento do referido acordo. As hostilidades, porém,

não cessaram e a distribuição de ajuda humanitária continuava cada vez mais difícil. A principal

problemática se resumia em encontrar um modo de resolver a situação mesmo sem a existência

de um governo a ser pressionado. Foi neste contexto de extrema violência civil, pilhagem e roubo

de suprimentos e medicamentos, que o Conselho de Segurança adotou a Resolução 794 de 03 de

dezembro de 1992, sob os auspícios do capítulo VII da Carta, para autorizar o estabelecimento da

Operação Restaurar Esperança ou UNITAF (Unified Task Force)136. Referida Resolução

reconheceu a natureza complexa e extraordinária da situação na Somália e a necessidade de uma

resposta imediata e excepcional. Considerou que a magnitude da tragédia humana causada pela

guerra civil em curso fora exacerbada pelos obstáculos que haviam sido criados à distribuição de

assistência humanitária, o que atentava contra a paz e segurança internacionais. E, assim, sob o

comando do capítulo VII da Carta, autorizou o Secretário-Geral e os Estados-membros a

utilizarem todos os meios necessários para estabelecer, o quanto antes, um ambiente seguro para

as operações de ajuda humanitária na Somália137.

134 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 126/127. 135 Cf. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Segurança. Resolução 733 de 23 de janeiro de 1992. Disponível em: <http://daccessdds.un.org/doc/RESOLUTION/GEN/NR0/013/14/IMG/NR001314.pdf> Acesso em: 28 de agosto de 2008. 136 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 126/127. 137 Cf. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Segurança. Resolução 794 de 03 de dezembro de 1992. Disponível em: <http://daccessdds.un.org/doc/UNDOC/GEN/N92/772/14/IMG/N9277214.pdf> Acesso em: 28 de agosto de 2008.

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A UNITAF ficou conhecida como a maior operação de assistência humanitária de caráter

militar realizada pelas Nações Unidas e, graças ao apoio internacional, estima-se que mais de

setenta mil toneladas de alimentos e remédios foram distribuídos no período em que durou a

operação138. No entanto, logo ficou claro que estabelecer um ambiente seguro exigia mais do que

transportar suprimentos para os centros de distribuição139. Assim, em 26 de março de 1993, foi

aprovada a Resolução 814 que criou uma força especial (UNOSOM II - Operação das Nações

Unidas para a Somália II) encarregada de substituir a UNITAF e efetuar o controle do armamento

pertencente às facções em conflito, desativar as minas instaladas em várias localidades e

continuar a proteger a concessão de assistência humanitária140. A atuação da UNOSOM II

abrangeu quase toda a Somália e se concentrou, principalmente, no objetivo de desarmar os

grupos internos141.

A crise na Somália trouxe à baila a relação entre o caos interno, evidenciado pela ausência

de um governo central e a ameaça à estabilidade internacional, representada pelo grande número

de refugiados nos países vizinhos. É inegável que a atuação das Nações Unidas se mostrou

bastante positiva. A fome foi quase totalmente erradicada, programas de vacinação ajudaram a

diminuir a mortalidade infantil, escolas foram reabertas, além do progresso no desarmamento da

população e o estímulo à reconstrução do sistema judicial142. Não obstante, a participação inicial

da ONU gera divergências quanto ao real interesse da Organização pelas vítimas da crise

humanitária no país. O período compreendido entre a eclosão do conflito e a adoção da

Resolução 794 é marcado pela falta de vontade política das grandes potências e pela inação e

desorganização das agências operacionais da ONU. Cabe mencionar ainda que a situação na

Somália era de extrema calamidade e por motivos muito menos expressivos a sociedade

internacional se mobilizou em torno da questão curda, no Iraque. Assim, embora tenha marcado

um importante avanço na articulação entre segurança internacional e crise humanitária, o caso da

intervenção na Somália serve também como um exemplo de que há necessidade de reformulação

138 Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Op. Cit. p. 208/209. 139 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 128. 140 Cf. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Segurança. Resolução 814 de 26 de março de 1993. Disponível em: <http://daccessdds.un.org/doc/UNDOC/GEN/N93/226/20/IMG/N9322620.pdf> Acesso em: 30 de agosto de 2008. 141 Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Op. Cit. p. 209. 142 Ibidem. p. 211.

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e aperfeiçoamento do aparato humanitário da ONU e, principalmente, de melhora no tempo de

resposta dos órgãos responsáveis pela ajuda143.

2.1.3 BÓSNIA

A seu turno, a participação das Nações Unidas no conflito bósnio foi muito mais intensa e

prolongada. A federação multi-étnica da Iugoslávia, mantida pelo Marechal Tito, ruiu após a

Guerra Fria com as seguidas secessões da Eslovênia, Croácia e Bósnia-Herzegovina. Com

relação às duas primeiras, após a ocorrência de alguns confrontos, os problemas se resolveram

com relativa brevidade. Na Bósnia, entretanto, local em que viviam pessoas de etnia sérvia,

croata e muçulmana em proporções quase idênticas, ocorreram conflitos e perseguições étnicas

de grandes proporções144. O Conselho de Segurança se manifestou por meio da Resolução 713

de 25 de setembro de 1991, que opôs embargo à venda de armas e equipamentos militares à ex-

Iugoslávia, ressaltou que a continuidade do conflito ameaçava a paz e segurança internacionais e

recomendou que o Secretário-Geral oferecesse assistência ao esforço empreendido pela

Comunidade Européia, para restabelecer a paz e o diálogo145. A despeito de um acordo de paz

entre as partes, intensifica-se a política de limpeza étnica146, assassinatos, torturas, estupros,

tratamento desumano aos prisioneiros de guerra e bombardeio de alvos civis147. Em resposta, o

Conselho de Segurança adotou a Resolução 743 de 21 de fevereiro de 1992 que criou a Força de

Proteção das Nações Unidas (UNPROFOR), cuja finalidade era criar áreas protegidas pela ONU

em locais estratégicos. Assim mesmo, os conflitos continuavam a se intensificar. Então, em 13 de

agosto de 1992, o Conselho aprova a Resolução 770, fundamentada no capítulo VII da Carta, que

exigia que as partes colocassem um fim imediato às hostilidades, que concedessem ao Comitê

Internacional da Cruz Vermelha acesso livre e seguro às vítimas do conflito e convocava os

143 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 130/131. 144 Cf. DELGADO, José Manuel Avelino de Pina. Op. Cit. p. 163. 145 Cf. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Segurança. Resolução 713 de 25 de setembro de 1991.Disponível em: <http://daccessdds.un.org/doc/RESOLUTION/GEN/NR0/597/75/IMG/NR059775.pdf> Acesso em: 30 de agosto de 2008. 146 “[...] eliminação efetuada por um grupo étnico que exerce o controle de determinado território, dos membros dos demais grupos, pela morte ou pela expulsão do seu local de origem.”(Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Op. Cit. p. 200). 147 Ibidem.

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Estados a utilizarem todos os meios necessários para facilitar a distribuição de ajuda humanitária

aos civis necessitados148.

Diante da má vontade dos países em colaborar com a implementação da referida

Resolução e da oferta da força aérea por parte da OTAN, o Conselho de Segurança, por meio da

aprovação da Resolução 781, criou zonas de exclusão aéreas monitoradas pelos aviões da OTAN,

cuja finalidade era escoltar os comboios de ajuda humanitária. Depois de verificada a ocorrência

de inúmeras violações às determinações desta Resolução, o Conselho votou a Resolução 816, de

31 de março de 1993, em que autoriza expressamente a utilização da força para a defesa da

região, sem, contudo, permitir o bombardeio de alvos no solo149. Desta feita, a ONU

proporcionou, por via aérea, a distribuição de medicamentos e gêneros alimentícios aos povoados

muçulmanos inacessíveis por meios terrestres e a UNPROFOR estabeleceu algumas áreas de

segurança para a proteção de civis150.

Inobstante, e em função das ofensivas realizadas contra as referidas áreas, o Conselho de

Segurança, outra vez sob o comando do Capítulo VII, adota a Resolução 819, em 16 de abril de

1993, a qual transformava a cidade de Srebrenica e seus arredores numa área de segurança sob a

proteção da ONU, livre de ataques armados ou quaisquer atos hostis. Mas, novamente as forças

rebeldes desrespeitaram a Resolução e efetuaram um verdadeiro massacre no local. Isto motiva a

aprovação da Resolução 836151, de 04 de junho de 1993, em que o Conselho de Segurança decide

estender o mandato da UNPROFOR para deter os ataques contra as áreas de segurança, retirar as

forças militares e paramilitares desses locais, monitorar o cessar-fogo, ocupar alguns pontos

estratégicos e continuar a entrega de ajuda humanitária para a população. Esclarece que as zonas

de segurança são medidas provisionais que têm como objetivo eliminar as conseqüências da

utilização da força e permitir que os refugiados regressem as suas casas em paz, ao passo que

autoriza a UNPROFOR a utilizar todos os meios necessários, inclusive a força, para proteger

148 Cf. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Segurança. Resolução 770 de 13 de agosto de 1992. Disponível em: <http://daccessdds.un.org/doc/UNDOC/GEN/N92/379/69/IMG/N9237969.pdf> Acesso em: 30 de agosto de 2008. 149 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 157. 150 Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Op. Cit. p. 203. 151 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 158.

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essas zonas152. A essa altura, os embargos econômicos decretados pelas Resoluções 787 e 820

surtiam dramáticos efeitos, o que fez com que o governo central aceitasse as propostas de paz153.

O conflito teve um resultado lamentável: além do elevado número de refugiados e mortos,

afundou a antiga Iugoslávia num completo caos econômico e social. A participação do Conselho

de Segurança, como já se disse, foi bastante ativa, uma vez que adotou cerca de 50 resoluções a

respeito do conflito, nas quais considerava a questão humanitária como uma ameaça à paz e

segurança internacionais e autorizava a utilização da força, sob a autoridade do Capítulo VII da

Carta para viabilizar a proteção dos civis e a distribuição de socorro humanitário. Entretanto, a

ausência de interesse das grandes potências mundiais no conflito e a falta de consenso quanto às

metas a serem alcançadas e aos meios a serem empregados fez do envolvimento internacional por

si mesmo um problema. Acrescente-se a isso o fato de que membros de menor peso no Conselho

de Segurança estavam dispostos a empreender ações que poderiam ser consideradas mais

eficazes, mas não podiam patrociná-las. De todo modo, observa-se uma vez mais a articulação

entre direitos humanos e segurança internacional nas decisões do Conselho de Segurança154.

2.1.4 HAITI

Outro caso em que se observa esta conexão é o do Haiti, no qual a violação sistemática de

direitos humanos - embora também tenha sido enfatizado o restabelecimento da democracia - é o

principal ponto de ligação entre a crise haitiana e a atuação do Conselho de Segurança.

No início da década de 1990, o presidente legalmente eleito pelo povo haitiano, Jean

Bertrand Aristide, após oito meses no poder, sofre um golpe das forças militares, sob o comando

do general Raoul Cédras e se refugia nos EUA. Antes de requisitar ajuda à ONU, o presidente

eleito acionou a Organização dos Estados Americanos (OEA) na tentativa de negociar,

pacificamente, o retorno ao seu cargo de direito. A OEA, entretanto, falhou ao tentar negociar um

acordo com os golpistas e decidiu solicitar a cooperação da ONU155, que, em princípio, mostrou-

152 Cf. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Segurança. Resolução 836 de 04 de junho de 1993.Disponível em: <http://daccessdds.un.org/doc/UNDOC/GEN/N93/330/24/IMG/N9333024.pdf> Acesso em: 30 de agosto de 2008. 153 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 159. 154 Ibidem. p. 161/163. 155 Cf. MAIDANA, Javier Rodrigo. Contra fatos não há argumentos: Princípio da não-intervenção, ONU e Haiti, um novo estudo nas resoluções de auxílio internacional. In Direito Internacional: análises e reflexões. Curitiba: Íthala, 2008, p. 224.

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se reticente em empreender qualquer medida coercitiva, visto que a China e outros países do

Terceiro Mundo alegaram que a questão tinha natureza doméstica e não se encontrava no âmbito

da competência das Nações Unidas. Com o decorrer do tempo, a pedido do presidente deposto e

diante da contínua deterioração das condições humanitárias no Haiti, verifica-se a mudança no

comportamento das Nações Unidas em relação ao conflito156.

O Conselho de Segurança, então, aprovou por unanimidade em 16 de junho de 1993, a

Resolução 841, que invocava o disposto no Capítulo VII da Carta e impunha uma dura sanção

econômica ao Haiti, que impedia a nação de adquirir petróleo e seus derivados, armas e

munições, veículos e peças de reposição, equipamentos militares e, ao mesmo tempo, decretava o

congelamento dos bens haitianos depositados em instituições financeiras localizadas no

exterior157. O resultado deste intolerante embargo econômico foi o acordo Governors Island

Agreement, negociado em Nova Iorque, em 03 de julho de 1993, entre Aristide e Cédreas, que

previa o retorno do presidente deposto ao país, a reabertura do parlamento e a nomeação de um

novo primeiro-ministro. Após a celebração do acordo, a ONU e a OEA suspenderam as sanções

econômicas anteriormente adotadas porque, a princípio, tudo indicava que a paz seria

restabelecida, e o referido instrumento seria integralmente cumprido. Subitamente, porém, novo

ciclo de violência é iniciado por bandos armados que espalhavam o terror ao cometer assassinatos

contra os partidários de Aristide158. Assim, diante desse novo cenário, o Conselho de Segurança

adota a Resolução 867, de 23 de setembro de 1993, que autoriza o envio imediato da Missão das

Nações Unidas para o Haiti (UNMIH) por um período inicial de seis meses para assessorar e

orientar a polícia haitiana em suas operações, modernizar as forças armadas, de forma a reduzir a

violência no país e reconstruir a infra-estrutura afetada pela prolongada crise institucional159. E,

por meio da Resolução 873, de 13 de outubro de 1993, restabelece as sanções econômicas

156 Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Op. Cit. p. 218. 157 Cf. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Segurança. Resolução 841 de 16 de junho de 1993. Disponível em: <http://daccessdds.un.org/doc/UNDOC/GEN/N93/354/61/IMG/N9335461.pdf> Acesso em: 30 de agosto de 2008. 158 Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Op. Cit. p. 219. 159 Cf. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Segurança. Resolução 867 de 23 de setembro de 1993. Disponível em: <http://daccessdds.un.org/doc/UNDOC/GEN/N93/515/33/PDF/N9351533.pdf> Acesso em: 30 de agosto de 2008.

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impostas pela Resolução 841 e declara que o não cumprimento do acordo Governors Island

Agreement se constitui uma ameaça à paz e segurança na região160.

As sanções econômicas provocaram uma infinidade de danos à população civil. Embora

os embargos não tenham se referido aos bens estritamente humanitários, ampliaram-se os

problemas de saúde e houve considerável aumento de casos de desnutrição e mortalidade infantil.

Assim, diante do preocupante quadro de afetação, principalmente à população civil, e da

solicitação por carta realizada pelo presidente Aristide, o Conselho de Segurança aprovou em 31

de julho de 1994, a Resolução 940, que autorizou a intervenção militar no Haiti161. Esta reiterava

o pedido para que a comunidade internacional prestasse assistência e apoio ao desenvolvimento

econômico, social e institucional no Haiti. Declarava que a situação neste país possuía um caráter

singular de natureza complexa e extraordinária, que exigia uma reação excepcional, haja vista

que representava uma ameaça à paz e segurança da região. E assim, sob a regra do Capítulo VII

da Carta, a fim de auxiliar o governo legítimo do Haiti a restabelecer a ordem pública, autorizava

os Estados-membros a integrar uma força multinacional com poderes para recorrer a todos os

meios necessários para garantir o cumprimento do acordo de Governors Island Agreement, ou

seja, propiciar um ambiente seguro e estável para o pronto regresso do presidente

democraticamente eleito e facilitar a partida dos golpistas do país. Decidiu também que, após o

regresso do presidente eleito, o mandato da UNMIH deveria se estender para prestar assistência

ao governo democrático e auxiliar as autoridades legítimas a organizar nova eleição presidencial,

sob a observação da ONU162.

A operação obteve êxito. O parlamento logo foi reaberto e aprovou a anistia dos militares

derrotados, cuja extensão não alcançou os crimes de homicídio, estupro e corrupção. O presidente

Aristide retornou ao Haiti, após três anos de exílio. A realização de novas eleições levou o novo

presidente eleito a assumir o poder no princípio do ano de 1996163.

É importante observar o caráter peculiar da crise no Haiti, uma vez que, pela primeira vez,

o Conselho de Segurança se considerou competente para dispor a respeito de golpes de Estado,

160 Cf. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Segurança. Resolução 873 de 13 de outubro de 1993. Disponível em: <http://daccessdds.un.org/doc/UNDOC/GEN/N93/555/44/PDF/N9355544.pdf> Acesso em: 30 de agosto de 2008. 161 Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Op. Cit. p. 220. 162 Cf. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Segurança. Resolução 940 de 31 de julho de 1994. Disponível em: <http://daccessdds.un.org/doc/UNDOC/GEN/N94/312/25/PDF/N9431225.pdf> Acesso em: 30 de agosto de 2008. 163 Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Op. Cit. p. 221.

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questão que, até então, era considerada exclusivamente de domínio reservado dos Estados.

Todavia, é fato que a instalação de governos opressivos e ditatoriais, em regra, ceifa os direitos

mais básicos da população e, assim sendo, só se verifica o respeito aos direitos humanos e às

liberdades fundamentais quando se vive num regime democrático, no qual a pluralidade de idéias

e comportamentos não é encarada como atentatória à segurança do Estado e, tampouco, sujeita a

punições. Destarte, a intervenção no Haiti enquadra-se à definição de intervenção humanitária,

haja vista que o governo do Estado haitiano não só rompeu com as instituições democráticas do

país, como instalou uma condenável política de perseguição à população164.

A atuação da ONU, por sua vez, restou marcada pelas ambigüidades da comunidade

internacional sobre como e quando intervir numa crise humanitária. Isso se evidencia pela mora

da organização para adotar a primeira medida realmente eficaz contra os golpistas haitianos, bem

como para proporcionar o retorno de Aristide ao poder. Interessante perceber, porém, que os

Estados do Terceiro Mundo, defensores veementes do princípio da não-intervenção, apoiaram as

sanções aplicadas para permitir a recondução ao poder do presidente deposto, o que demonstra

uma significativa alteração da posição dos referidos países com relação às intervenções165.

2.1.5 RUANDA

O caso ruandês, apesar da sua gravidade, evidenciou os limites políticos da perspectiva de

recorrer à força armada com objetivos humanitários. A população ruandesa é composta de

maioria hutu (cerca de 85%) e minoria tutsi166. As tensões entre essas duas etnias têm suas raízes

na época colonial, quando os alemães transformaram os tutsis no grupo que concentrava o poder

político, econômico e militar da colônia. Com a derrota da Alemanha na I Guerra Mundial, os

belgas ocuparam o país e favoreceram a formação de um grupo hutu forte, que se revoltou contra

o governo tutsi. Com a descolonização em 1962, as elites políticas hutus substituíram os belgas

numa violenta competição política que gerou centenas de mortes de tutsis e causou milhares de

refugiados espalhados nos países vizinhos, principalmente no Burundi, Tanzânia e Uganda167.

Em 1973, por meio de um golpe de Estado, o governo é tomado por Juvenal

Habyarimana, que estratificou a sociedade ruandesa com a formalização de cotas étnicas para

164 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 150. 165 Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Op. Cit. p. 222/223. 166 Cf. VIOTTI, Aurélio Romanini de Abranches. Op. Cit. p. 115. 167 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 132.

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empregos e oportunidades educacionais, além de favorecer uma minoria de hutus no norte do

país, mormente os membros do seu próprio clã, o que agravou ainda mais as diferenças entre as

etnias168. Nos anos 1980, os exilados tutsi de Uganda iniciam a formação de um exército rebelde

intitulado Frente Patriótica de Ruanda (FPR), que aliado à dissidência interna, dá azo em 1990, à

guerra civil contra o governo hutu. Após três anos de confrontos, os dois lados assinaram o

Acordo de Paz de Arusha, em que se comprometiam a cessar as hostilidades, repatriar os

refugiados e instaurar um governo de transição no qual Habyarimana dividiria o poder com a

oposição moderada hutu e a FPR169. Na ocasião, a ONU envia uma missão de observadores para

Uganda e Ruanda (UNOMUR) com o propósito de garantir o cessar fogo, vigiar a fronteira entre

os dois países e impedir o transporte de todo e qualquer tipo de material que pudesse ser utilizado

com fins militares170. Alguns meses depois, decide estabelecer uma nova missão intitulada

Missão de Assistência das Nações Unidas a Ruanda (UNAMIR) para garantir a segurança da

capital ruandesa, acompanhar a desmilitarização do país e garantir o integral cumprimento do

acordo de Arusha171.

Porém, em 1994, as hostilidades recomeçaram com a morte do presidente Juvenal

Habyarimana num acidente aéreo. Os extremistas hutus assumiram o poder e acusaram a minoria

tutsi de ter provocado o acidente. Inicia-se então uma torrente de violência e mortes que assume

conotações políticas e étnicas e transparece no excesso de crueldade utilizado para dizimar os

adversários. Nos três meses que se seguiram, o número de mortes de tutsis e hutus moderados

chegou a ultrapassar a casa do milhão e a UNAMIR – que garantiu o cessar-fogo em 1993 –, bem

como o governo interino, revelaram-se incapazes de evitar o genocídio172. Assim, em 17 de maio

de 1994, o Conselho de Segurança, por meio da Resolução 918, declara-se profundamente

preocupado ao constatar que a situação em Ruanda tem causado a morte de milhares de civis

inocentes, além do deslocamento de uma proporção considerável da população para os países

vizinhos, o que representa uma crise humanitária de enormes dimensões, cuja persistência se

constitui uma ameaça à paz e segurança na região. Deste modo, invoca a regra do capítulo VII 168 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 133. 169 Cf. VIOTTI, Aurélio Romanini de Abranches. Op. Cit. p. 116. 170 Cf. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Segurança. Resolução 846 de 22 de junho de 1993. Disponível em: <http://daccessdds.un.org/doc/UNDOC/GEN/N93/366/34/IMG/N9336634.pdf> Acesso em: 02 de setembro de 2008. 171 Cf. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Segurança. Resolução 872 de 05 de outubro de 1993. Disponível em: <http://daccessdds.un.org/doc/UNDOC/GEN/N93/540/66/PDF/N9354066.pdf> Acesso em: 02 de setembro de 2008. 172 Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Op. Cit. p. 212/213.

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para impor um embargo comercial de armamentos e equipamentos militares, e decide estender o

mandato da UNAMIR para aumentar o número de homens em sua composição para proteger

civis e prover segurança e suporte para as operações de ajuda humanitária173. Malgrado a

disposição da ONU, o apoio logístico e financeiro não era suficiente, e a morosidade na formação

e atuação das forças levou ao seu completo insucesso. A situação se deteriorava a cada dia e a

morte de civis inocentes parecia não ter fim174.

Diante deste quadro, em 22 de junho de 1994, o Conselho de Segurança aprova a

Resolução 929, que reconhece que a singularidade da situação em Ruanda exige uma resposta

imediata da comunidade internacional, pois se constitui ameaça à paz e segurança da região, e

autoriza uma operação humanitária multinacional, neutra e imparcial, de caráter temporário para

a proteção e segurança dos refugiados e civis175. Referida Resolução conferiu o fundamento legal

necessário para que a França176, que já havia manifestado o seu interesse de intervir em Ruanda,

pudesse instaurar a Operação Turquesa, cujo mandato se restringia a pôr fim aos massacres,

proteger as populações em áreas ainda controladas pelo governo e depois retornar a

responsabilidade para a UNAMIR. Contudo, a operação durou apenas dois meses, uma vez que já

não havia muito a ser feito. Em julho, a FPR se instalou no poder, e o novo governo declarou

unilateralmente um cessar-fogo, reafirmou seu compromisso de cumprir integralmente o acordo

de Arusha e terminou com o conflito. Apesar disso, a vitória da FPR levou milhares de hutus a

fugirem do país com medo de represálias, e muitos morreram pela falta de condições básicas de

subsistência e socorro médico. A UNAMIR ainda permaneceu em Ruanda até março de 1996

para promover o retorno dos refugiados e garantir segurança e auxílio humanitário177. Destarte,

cabe ressaltar que a Operação Turquesa poderia ser considerada como um bom exemplo de

173 Cf. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Segurança. Resolução 918 de 17 de maio de 1994. Disponível em: <http://daccessdds.un.org/doc/UNDOC/GEN/N94/218/39/PDF/N9421839.pdf> Acesso em: 02 de setembro de 2008. 174 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 136. 175 Cf. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Segurança. Resolução 929 de 22 de junho de 1994. Disponível em: <http://daccessdds.un.org/doc/UNDOC/GEN/N94/260/30/PDF/N9426030.pdf> Acesso em: 02 de setembro de 2008. 176 “A pressão pela intervenção [em Ruanda] foi especialmente forte na França por causa do amplo suporte que o direito de ingerência tem no país e porque as forças hutus que promoviam o genocídio tinham sido treinadas e armadas pelo governo francês, o que criou um elemento de responsabilidade pelo conflito.” (Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 138). 177 Ibidem. p. 137/139.

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intervenção humanitária se não tivesse ocorrido tão tardiamente178, visto que, quando as forças

chegaram, já não havia praticamente nada a ser feito. As próprias partes em conflito chegaram à

resolução da situação sem que a comunidade internacional tivesse feito algo realmente útil para o

alcance desta finalidade. De todo modo, a Resolução que autorizou a intervenção tinha

características nitidamente humanitárias, uma vez que vinculou a questão da crise humanitária à

manutenção da paz e segurança internacionais e permitiu a utilização de todos os meios

necessários para o restabelecimento de um ambiente pacífico e seguro179.

2.1.6 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A PRÁTICA DO CONSELHO DE SEGURANÇA NO PÓS-GUERRA FRIA

Com o decorrer do tempo, o número de operações empreendidas pelas Nações Unidas

motivadas por questões humanitárias caiu significativamente. Ainda assim, o Conselho de

Segurança, por meio da Resolução 1.080 de 15 de novembro de 1996, autorizou uma operação

liderada pelo Canadá no leste do Zaire180 que nunca chegou a ser implementada. Referida

Resolução apelava para o uso de todos os meios necessários para aliviar o sofrimento dos

refugiados e civis no leste do Zaire181. A operação na Albânia, em 1997, autorizada pela

Resolução 1.101, tinha poderes limitados, uma vez que estabelecia uma força de proteção

multinacional para, de forma neutra e imparcial, realizar o socorro humanitário pelo período de

três meses182. Mais tarde, em 1999, o Conselho de Segurança autorizou, a pedido da Indonésia,

por meio da Resolução 1.264, o estabelecimento de uma força multinacional apta a tomar todas

178 “[...] o papel das Nações Unidas foi globalmente negativo. As tentativas de intervenção armada foram seguidamente bloqueadas no Conselho de Segurança e a omissão acabou por ajudar o genocídio, em uma situação que seria facilmente contornável.” (Cf. DELGADO, José Manuel Avelino de Pina. Op. Cit. p. 165). 179 Ibidem. p.165/166. 180 O Zaire deixou de existir com a vitória dos revolucionários liderados por Laurent Desiré Kabila, que depuseram o então presidente Mobuto Sese Seko e criaram novo governo, que alterou o nome do país para República Democrática do Congo. (Cf. PENNA FILHO, Pio. Conflitos e estabilidade no continente africano nos anos 1990. Disponível em: <http://64.233.169.104/search?q=cache:sF2tO3FayH0J:www.africamerica.net> Acesso em: 01 de novembro de 2008). 181 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Segurança. Resolução 1.080 de 15 de novembro de 1996. Disponível em: <http://daccessdds.un.org/doc/UNDOC/GEN/N96/323/35/PDF/N9632335.pdf> Acesso em: 01 de novembro de 2008. 182 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Segurança. Resolução 1.101 de 28 de março de 1997. Disponível em: <http://daccessdds.un.org/doc/UNDOC/GEN/N97/084/40/PDF/N9708440.pdf> Acesso em: 01 de novembro de 2008.

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as medidas necessárias para facilitar as operações de assistência humanitária no Timor Leste, e

deixou claro que anuía a operação por contar com a aquiescência do país atingido183.

Todavia, as autorizações concedidas pela ONU para utilização da força com a finalidade

de proteger direitos humanos ou para facilitar a entrega de auxílio humanitário, conforme

observado nos casos relatados - os quais, ressalta-se, constituem os mais importantes - tornou-se

comum a partir da década de noventa do século passado. A repetição dos casos permite a

visualização de uma nova norma costumeira, segundo a qual, em situações de gravíssima

emergência humanitária, a ONU teria competência para empreender por si própria, de

preferência, ou delegar poderes a Estados, para a utilização da força com o intuito de proteger

indivíduos vítimas de perseguição ou necessitados de ajuda184. A base legal para tanto se

construiu a partir da constatação de que as conseqüências geradas pelo desrespeito maciço aos

direitos humanos e ao direito humanitário, como, por exemplo, o descontrolado fluxo de

refugiados e o desequilíbrio regional, podem constituir séria ameaça à paz e segurança do sistema

mundial. Desta forma, conflitos intraestatais, que outrora não se enquadravam na competência do

Conselho de Segurança, assumiram caráter transnacional e se tornaram objeto das resoluções

fundadas no Capítulo VII da Carta185, o que evidencia o reconhecimento do vínculo existente

entre o plano doméstico e a realidade internacional. É verdade que a atuação do Conselho de

Segurança nas crises humanitárias dos anos 1990 não está isenta de críticas, mas o balanço geral

das ações realizadas é bastante positivo, visto que ajudou a reduzir os efeitos das tragédias

humanas em áreas de combate186.

É importante destacar que a doutrina majoritária ainda é reticente em aceitar as

intervenções humanitárias sob o comando da ONU, principalmente devido ao caráter não

democrático do Conselho de Segurança e a falta de instrumentos da Organização para limitar a

influência das relações de poder entre os países187. Por exemplo, em relação aos atentados de 11

de setembro de 2001, nos EUA, a Resolução 1.368 aprovada pelo Conselho de Segurança

qualificou as medidas que este país estaria autorizado a tomar como “legítima defesa”, sem

constatar, contudo, contra quem as medidas deveriam ser tomadas, uma vez que não determinou

183 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Segurança. Resolução 1.264 de 15 de setembro de 1999. Disponível em: <http://daccessdds.un.org/doc/UNDOC/GEN/N99/264/84/PDF/N9926484.pdf> Acesso em: 01 de novembro de 2008.. 184 Cf. DELGADO, José Manuel Avelino de Pina. Op. Cit. p. 167. 185 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 178/179. 186 Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Op. Cit. p. 282. 187 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 180.

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expressamente de onde partiu a agressão188. A Resolução 1.373 alargou ainda mais os poderes do

Conselho de Segurança ao determinar que quaisquer atos de terrorismo internacional constituem

uma ameaça à paz e, portanto, são passíveis de uma ação preventiva empreendida sob o comando

do órgão189. Destarte, o grande problema que se verifica na atuação do Conselho de Segurança é

a falta de parâmetros. Como as resoluções indicam, o desrespeito maciço de direitos humanos

constitui ameaça à paz e segurança internacionais, mas o mesmo se aplica à ruptura da ordem

democrática e a quaisquer atos terroristas190.

Entretanto, apesar das decisões de intervir terem sido tomadas por um pequeno número de

países, membros do Conselho de Segurança, há que se ressaltar que inúmeras outras nações

participaram das operações, inclusive Estados do Terceiro Mundo. Assim, pode-se afirmar que a

intervenção humanitária começa a ser vista pela sociedade internacional como uma possível

medida de assistência humanitária e, conseqüentemente, de defesa dos direitos humanos; é

indubitável que o que precisa ser desenvolvido para a sua completa aceitação é uma estrutura

adequada que garanta a imparcialidade da utilização do instituto191. De todo o modo,

seguramente, as mais importantes modalidades de intervenção são aquelas realizadas pela Cruz

Vermelha, cuja legalidade nunca foi contestada192 e que se passará a discorrer no próximo tópico

deste trabalho.

2.2 AS INTERVENÇÕES HUMANITÁRIAS CONSIDERADAS LÍCITAS

A chamada “Assistência Humanitária” realizada pela Cruz Vermelha é lícita e tem mais

de um século de existência193. A fundação do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) é

resultado dos esforços para conquistar a paz no Mundo e deve suas origens à visão e

determinação do cidadão suíço Henry Dunant. Em 1859, em Solferino, na Itália, os exércitos

austríaco e francês travavam uma dura batalha entre si, e após 16 horas de lutas, o terreno estava

188 Cf. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Segurança. Resolução 1.368 de 12 de setembro de 2001. Disponível em: <http://daccessdds.un.org/doc/UNDOC/GEN/N01/533/85/PDF/N0153385.pdf> Acesso em: 01 de novembro de 2008. 189 Cf. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Segurança. Resolução 1.373 de 28 de setembro de 2001. Disponível em: <http://daccessdds.un.org/doc/UNDOC/GEN/N01/557/46/PDF/N0155746.pdf> Acesso em: 01 de novembro de 2008. 190 Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Op. Cit. p. 163. 191 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 180/181. 192 Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Op. Cit. p. 154/155. 193 Ibidem. p. 155.

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repleto de feridos e mortos. Na ocasião, Henry Dunant passava pelo local a trabalho e ficou

horrorizado ao ver milhares de soldados, de ambos os exércitos, abandonados à própria sorte

devido à falta de serviços médicos. Resolveu então, solicitar à população local auxílio para cuidar

dos feridos, independentemente do exército a que estes pertenciam. Quando regressou à Suíça,

Henry Dunant publicou um livro intitulado “Uma recordação de Solferino”, no qual apelou

enfaticamente para que fossem constituídas, em tempo de paz, sociedades de socorro formadas

por profissionais prontos para tratar dos feridos em tempo de guerra e para que os voluntários

chamados para assistir os serviços médicos do exército fossem reconhecidos e protegidos através

de um acordo internacional. A obra ganhou rápida repercussão e teve tamanha influência que, em

1863, a Sociedade Pública de Genebra, uma associação de beneficência com sede nesta cidade,

criou uma comissão de cinco membros para refletir sobre a forma de como as idéias de Dunant

poderiam ser executadas. Referida comissão, formada pelos suíços Gustave Moynier, Guillaume-

Henri Dufour, Louis Appia, Théodor Maunoir e pelo próprio Dunant, fundou o Comitê

Internacional para Socorro aos Feridos, que mais tarde veio a se transformar no Comitê

Internacional da Cruz Vermelha (CICV)194.

Os cinco fundadores continuaram os seus trabalhos pra assegurar que as idéias propostas

no livro de Dunant se tornassem realidade e no mesmo ano organizaram uma conferência

internacional em Genebra, na qual se fazem representar dezesseis Estados e representantes de

quatro instituições. Foi nesta conferência que decidiram utilizar o emblema distintivo – uma cruz

vermelha sobre o fundo branco195, em homenagem ao Estado suíço – e a Cruz Vermelha nasce

efetivamente. Com o intuito de formalizar a proteção aos serviços que seriam prestados e obter o

reconhecimento internacional da organização, bem como, dos seus ideais, o governo suíço

convocou outra conferência internacional no ano de 1864, na qual representantes de doze

governos tomaram parte e adotaram um tratado nomeado “Convenção de Genebra para o

melhoramento das condições dos feridos nos exércitos no campo”, que veio a ser o primeiro

tratado sobre Direito Internacional Humanitário196. Mais tarde, outras conferências aconteceram e

194 Cf. COMITÊ INTERNACIONAL DA CRUZ VERMELHA. Descubra o CICV. Disponível em: <http://www.icrc.org/web/por/sitepor0.nsf/html/Descubra_o_CICV/$File/Descubra%20o%20CICV.pdf> Acesso em 07 de setembro de 2008. p. 7. 195 “posteriormente, para que não tivesse um caráter estritamente cristão, a pedido dos países islâmicos, optou-se também pelo símbolo do crescente vermelho: a meia lua vermelha sobre o fundo branco.” (Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Op. Cit. p. 155). 196 “O Direito Internacional Humanitário, também conhecido como o direito dos conflitos armados ou direito da guerra é o conjunto de regras que em tempo de guerra protegem as pessoas que não participam ou que já não

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estenderam o direito básico de proteção a outras categorias de vítimas. Na seqüência da II Guerra

Mundial, uma Conferência Diplomática deliberou durante quatro meses, antes de adotar as quatro

Convenções de Genebra de 1949, as quais reforçaram a proteção dos civis em tempo de guerra e,

em 1977, as Convenções receberam dois protocolos adicionais que as completaram197.

A Cruz Vermelha é uma organização não-governamental dotada de personalidade jurídica

internacional e possui capacidade para celebrar tratados, além de assento como observador na

Assembléia Geral das Nações Unidas. Cabe ao CICV prestar assistência em conflitos armados

internacionais, conflitos armados não-internacionais e catástrofes naturais. O art. 4º, “c”, do seu

estatuto, vincula o órgão diretamente às Convenções de Genebra de 1949 e seus protocolos, que

não se aplicam somente aos casos de guerra. Cabe ainda à organização, funcionar como “potência

protetora”198, para observar o cumprimento das disposições do Direito Humanitário, conforme

dispõe o art. 10 das Convenções de Genebra de 1949, desde que presente o necessário

consentimento das partes199.

Atualmente, o Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho está

ativo e presente em quase todos os países do mundo e pauta sua atuação em sete princípios

fundamentais: humanidade, imparcialidade, neutralidade, independência, serviço voluntário,

unidade e universalidade. Estes princípios constituem, no seu conjunto, uma norma universal de

referência para todos os seus membros. A finalidade central das atividades da Cruz Vermelha é

evitar e aliviar os sofrimentos humanos, sem discriminação e proteger a dignidade humana200.

Referidos princípios, mormente a independência, neutralidade e a imparcialidade são essenciais

para o desenvolvimento do trabalho do CICV, uma vez que a organização não intenta qualquer

ação com caráter de intervenção201. O CICV necessita da expressa anuência dos Estados

participam nas hostilidades. Ele limita os métodos e os meios utilizados na guerra. A sua finalidade central consiste em limitar e evitar o sofrimento humano, em tempo de conflito armado. As regras devem ser observadas, não só pelos governos e pelas suas forças armadas mas também por grupos da oposição armados e por quaisquer outras partes num conflito.” (Cf. COMITÊ INTERNACIONAL DA CRUZ VERMELHA. Op. Cit. p. 14). 197 Ibidem. p. 7. 198 “Um dos meios que pode ser utilizado para controlar as atividades das partes em conflito em relação à aplicação das Convenções de Genebra de 1949 é o instituto da potência protetora. Previstas no art. 8 da I, II e III Convenções e art. 9 da IV Convenção, a potência protetora tem a missão de salvaguardar os interesses das partes em conflitos, sendo “um país neutro no que se refere ao conflito, o qual uma das partes encarrega de proteger os seus interesses no território da outra”. [...] em decorrência de determinação das próprias Convenções de Genebra de 1949, o CICV pode ser indicado como substituto das potências protetoras.” (Cf. CHEREM, Mônica Teresa Costa Sousa. Direito Internacional Humanitário. Curitiba: Juruá, 2003. p. 81). 199 Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Op. Cit. p. 155/156. 200 Cf. COMITÊ INTERNACIONAL DA CRUZ VERMELHA. Op. Cit. p. 8. 201 Cf. CHEREM, Mônica Teresa Costa Sousa. Op. Cit. p. 123.

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interessados em seu trabalho para que possa exercê-lo e é justamente o consentimento destes, que

diferencia suas ações que são de assistência humanitária, das intervenções humanitárias, nas

quais um Estado soberano se opõe à ingerência externa202. Sua atuação e competências são

reconhecidas pela sociedade internacional, que lhe outorga as possibilidades específicas para o

desenvolvimento do seu trabalho.

Ser aplicador do Direito Internacional Humanitário é a mais significativa das funções do

CICV, mas a organização está presente em todas as situações que demandam sofrimento humano,

seja em caso de conflitos armados ou em catástrofes naturais. Os delegados do CICV visitam os

prisioneiros de guerra para verificar as condições em que estão encarcerados, promovem

assistência médica aos feridos, procuram meios de proteção para a população civil, tentam reunir

famílias dispersas por meio da busca de pessoas desaparecidas, enfim, realizam uma série de

atividades para o alívio do sofrimento humano, as quais, inúmeras vezes são negligenciadas pelos

Estados envolvidos nos conflitos203.

De fato, o principal problema enfrentado pela Organização é que os Estados podem alegar

questões de ordem interna para fugir de suas obrigações internacionais, neste caso, a

implementação do Direito Internacional Humanitário. Eles tendem a considerar qualquer

violência interna como assunto de sua soberania e temem restringir a sua capacidade de resposta

em caso de insurreição, ou conferir reconhecimento internacional aos rebeldes204. Somado a isso,

no caso de conflitos não-internacionais, a distinção entre combatentes e não-combatentes se torna

obscura: no lugar de soldados de um Estado inimigo, contra o qual se está em guerra, os

adversários são antigos vizinhos, co-nacionais, muitas vezes não uniformizados. Além disso, as

características discriminatórias de tais conflitos muitas vezes tornam os civis os verdadeiros alvos

das ações armadas, o que se verifica nos casos de genocídio e limpeza étnica205. Assim, a prévia

anuência do Estado no qual se constata a necessidade de socorro humanitário, em virtude da

violação maciça dos direitos humanos pode impedir completamente a prática assistencial, uma

vez que, não raro, é o próprio Estado o responsável pela referida violação206. Foi o que ocorreu na

tentativa de secessão da província nigeriana de Biafra (1967 – 1970) onde num conflito de

natureza civil, ocorreram ações genocidas e o governo nigeriano negou o consentimento para a

202 Cf. CHEREM, Mônica Teresa Costa Sousa. Op. Cit. p. 65. 203 Ibidem. p. 143/144. 204 Cf. VIOTTI, Aurélio Romanini de Abranches. Op. Cit. p. 52. 205 Ibidem. p. 61. 206 Ibidem. p. 63.

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atuação do CICV207. Nessa ocasião, nasceu a organização humanitária “Médicos sem fronteiras”

como uma nova forma de promover a assistência humanitária sem a necessidade da prévia

aquiescência do Estado. Entretanto, sua atuação foi considerada ilegal208. A questão da anuência

estatal também foi ventilada pela Comissão Independente sobre as Questões Humanitárias

Internacionais (CIQHI), instituída pela Assembléia Geral da ONU em 1983, que considerou essa

necessidade uma grave lacuna do Direito Internacional Humanitário, uma vez que a soberania

não pode se sobrepor à urgência das demandas humanitárias, e advogou no sentido de que a ajuda

deve chegar no lugar em que for necessária, independentemente da condição social ou posição

política dos necessitados209.

Destarte, verifica-se que as crises humanitárias geradas por conflitos domésticos

representam o maior desafio das organizações humanitárias, haja vista que além da dificuldade de

conseguir a anuência do Estado - que muitas vezes é o maior violador das normas de direitos

humanos e do Direito Internacional Humanitário - para a prática da assistência humanitária, é

extremamente difícil distinguir civis de combatentes, e estes simplesmente desprezam os mais

básicos princípios do direito humanitário. Isso tem alterado significativamente a visão

completamente pacífica das referidas organizações em face das crises humanitárias recentes.

Como exemplo, as ONG’s que inicialmente se opunham à utilização da força na antiga

Iugoslávia, mudaram de postura ao constatar que os constantes massacres e as campanhas de

limpeza étnica, além de espalharem o horror e a barbárie210, representavam perigo à segurança

dos seus membros, uma vez que habitações e infra-estrutura foram completamente destruídas, e

os comboios humanitários eram bloqueados, pois o que se objetivava era a “purificação étnica”, o

que tornava os civis alvos diretos do conflito e, por conseguinte, dispensava qualquer respeito

pela ajuda que se estava a fornecer211. O genocídio em Ruanda compeliu os “médicos sem

fronteiras” a reivindicar o emprego da força para interromper as atrocidades cometidas212. Com

relação à Somália, o critério do consentimento do Estado teve de ser relegado pela falta de um

governo em funcionamento que pudesse concedê-lo ou recusá-lo213. Na ocasião, a distribuição da

ajuda humanitária foi muito difícil, uma vez que a própria Cruz Vermelha deixou de lado seus

207 Cf. MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Op. Cit. p. 50. 208 Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Op. Cit. p. 157. 209 Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Op. Cit. p. 247. 210 Ibidem. p. 273. 211 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 157/158. 212 Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Op. Cit. p. 273. 213 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 55.

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princípios norteadores e pagou aos guerrilheiros para que efetuassem a segurança dos

suprimentos e de seus membros, pois era a única alternativa viável para que a ajuda humanitária

pudesse chegar aos necessitados214. Nessas ocasiões, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha

tem observado que a utilização da força não deve ser descartada215 principalmente porque, sem a

imposição de um mínimo de paz, não é possível garantir a segurança e eficácia das operações de

assistência humanitária.

Portanto, quando as normas de proteção de civis começaram a ser desrespeitadas de forma

maciça e o acesso das organizações de apoio começou a ser impedido ou dificultado pelos

rebeldes, as crises tomaram tal magnitude que provocaram a reação da sociedade internacional e,

conseqüentemente, foram consideradas pelo Conselho de Segurança uma ameaça à paz e

segurança da região onde estavam situados os países em conflito. Deste modo, a provisão de

assistência humanitária foi elencada como parte do esforço para reconstruir a ordem, e a

promoção da assistência humanitária, como instrumento de defesa dos direitos humanos das

populações submetidas aos conflitos internos, passou a se tornar um motivo viável para a

autorização da intervenção armada, o que demonstra uma significativa alteração na postura das

potências do Conselho de Segurança em relação à proteção dos indivíduos e grupos minoritários

dentro das suas fronteiras estatais. Na medida em que as organizações não-governamentais e as

agências de assistência se tornaram impotentes diante do grau de violência observado nos novos

conflitos intraestatais, a intervenção militar surgiu como alternativa para garantir à população

civil o acesso à ajuda humanitária. A ONU, como guardiã da paz e segurança internacionais se

tornou o meio de manifestação deste novo instituto ao conferir legitimidade à violação da

soberania em nome da defesa dos direitos humanos216. Pode-se afirmar, portanto, que os

sucessivos envolvimentos da organização com relação à proteção dos direitos humanos

possibilitam a visualização de uma suposta garantia de um direito de assistência humanitária,

assegurado por uma norma costumeira, derivada das reiteradas Resoluções do Conselho de

Segurança na matéria, conforme será demonstrado a seguir.

214 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 126/127. 215 Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Op. Cit. p. 273. 216 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 180.

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2.3 O DIREITO DE ASSISTÊNCIA HUMANITÁRIA

A relação entre as ONG’s e o sistema da ONU no campo da assistência humanitária têm

se pautado por um significativo progresso. É fato que aquelas possuem habilidade para responder

às catástrofes humanas de forma rápida, devido a sua centralidade de comando e liberdade de

ação em contraste aos procedimentos burocráticos das organizações internacionais. Ademais,

estão presentes em inúmeras situações de catástrofes naturais, industriais e políticas217 e muitas

vezes, ao recorrer à opinião pública para denunciar abusos e violações a direitos humanos,

conseguem uma participação mais efetiva das organizações internacionais para aliviar o

sofrimento humano. Acontece, porém, que muitas vezes, como já ressaltado no tópico anterior, as

ONG’s são impedidas de levar socorro as milhares de vítimas de conflitos internos, como

ocorreu, por exemplo, no Camboja, no Timor, no Burundi e na Etiópia. Neste último, inclusive,

algumas organizações não-governamentais, a exemplo do que também ocorreu na Somália,

tiveram que recorrer à cooperação das organizações rebeldes para poder ajudar um número

incontável de pessoas vítimas da fome e da guerra civil. Assim mesmo, o governo etíope utilizou

bombardeios aéreos para impedir que os comboios de ajuda pudessem chegar aos seus destinos.

Por conseguinte, verifica-se que a maior dificuldade das referidas organizações consiste em obter

a anuência do Estado necessitado da ajuda e a solução plausível para tanto é a existência de um

direito de acesso às vítimas sem a necessidade de permissão do governo do Estado que se

pretende ajudar218.

O esforço para o reconhecimento do direito/dever de assistência humanitária, com a

conseqüente necessidade de se romper com o princípio do consentimento estatal quando as

organizações não-governamentais e os Estados desejam prestar assistência humanitária neutra e

imparcial, deu-se, primeiramente, no ano de 1987, por iniciativa do então presidente da ONG

“Médicos do Mundo” Bernard Kouchner e o jurista Mário Bettati, que realizaram em Paris a

Primeira Conferência Internacional de Direito e Moral Humanitária. Na ocasião, sustentou-se que

o homem tem direito a solicitar a assistência humanitária e o Estado deve respeitar os direitos das

vítimas de recebê-la219. Mário Bettati, assim, consegue influenciar a política externa francesa, que

é bem sucedida em aprovar as resoluções 43/131 de 08 de dezembro de 1988 e 45/100 de 14 de

217 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 86/87. 218 Ibidem. p. 87. 219 Ibidem.

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dezembro de 1990, na Assembléia Geral da ONU, as quais tratam do acesso às vítimas em

situações de urgência220.

Cumpre informar que já em 1981, a Assembléia Geral da ONU manifesta, muito embora

de forma vaga e imprecisa, o desejo de repensar a assistência humanitária, por meio da Resolução

36/136, intitulada “Nova Ordem Humanitária Internacional”221. Esta Resolução reconhece a

importância de aperfeiçoar os instrumentos existentes relacionados a questões humanitárias,

assim como, a necessidade de se ocupar dos aspectos que ainda não foram adequadamente

tratados. Expressa que seria necessário fortalecer as atividades e arranjos institucionais dos

órgãos governamentais e não-governamentais a fim de que atuem de forma eficaz nas situações

que demandem medidas humanitárias. Apela, finalmente, para que o Secretário Geral solicite as

opiniões dos governos sobre a proposta de promover uma nova ordem humanitária

internacional222.

A seu turno, a Resolução 43/131, de 08 de dezembro de 1988, intitulada “Assistência

humanitária as vítimas de desastres naturais e situações de emergência similares” dispõe sobre o

auxílio aos grupos atingidos pelas catástrofes naturais e industriais e se funda no pressuposto de

que as catástrofes naturais e as situações de urgência da mesma ordem têm conseqüências graves

no plano internacional para todos os países envolvidos. Ademais, o socorro aos necessitados é

corolário lógico do direito à saúde e à dignidade humana previstos na Declaração Universal dos

Direitos Humanos de 1948223. Assim, a referida Resolução recorda que um dos propósitos das

Nações Unidas é possibilitar a cooperação internacional na solução de problemas internacionais

de caráter econômico, social, cultural e humanitário, mormente estimular o respeito aos direitos

humanos e as liberdades fundamentais de todos, sem fazer qualquer distinção por motivos de

raça, sexo, idioma ou religião. Reafirma a soberania e a integridade territorial e reconhece que

incumbe aos Estados, em primeiro lugar, assistir as vítimas de desastres naturais e situações de

emergência similares que se produzam em seu território, mas admite que a comunidade

internacional poderá fornecer importante apoio à proteção dessas vítimas, cuja vida e saúde

podem estar gravemente ameaçadas. Ressalta que deixar as vítimas de desastres naturais e

220 Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Op. Cit. p. 158. 221 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 88. 222 Cf. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Assembléia Geral. Resolução 36/136 de 14 de dezembro de 1981. Disponível em: <http://daccessdds.un.org/doc/RESOLUTION/GEN/NR0/414/97/IMG/NR041497.pdf> Acesso em: 17 de setembro de 2008. 223 Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Op. Cit. p. 248.

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situações de emergência similares sem assistência humanitária representa uma ameaça à vida e à

dignidade humana. Além disso, a Resolução demonstra a preocupação com as dificuldades que

podem obstar o recebimento de ajuda humanitária e ressalta que para a prestação dessa

assistência, principalmente o fornecimento de alimentos, medicamentos e atendimento médico, é

indispensável que os Estados permitam o acesso as vítimas, para que a ação seja rápida e evite o

aumento do número de flagelados. Desta forma, exorta que a ação conjunta dos governos e das

organizações governamentais, intergovernamentais e não-governamentais que atuem com fins

estritamente humanitários, pautadas nos princípios da humanidade, neutralidade e imparcialidade

poderá conferir rapidez e eficácia à assistência humanitária e, por conseguinte, evitar ou amenizar

as conseqüências de uma grande tragédia224.

A Resolução sob análise consagra o princípio do livre acesso às vítimas e estabelece uma

forma de tornar efetivo o direito à assistência humanitária, uma vez que deixa muito claro que

nem os Estados receptores, tampouco, os Estados vizinhos poderão impedir que a ajuda chegue

até as vítimas. Trata-se, portanto, de um dever de cooperação internacional para organizar o

socorro aos necessitados225, cujos dispositivos parecem incluir, implicitamente, as catástrofes

causadas pelo homem, como os conflitos armados226. A medida proposta pela Resolução em

apreço é inovadora e de suma importância, pois não raro, o Estado receptor desvia as provisões,

as vende ou as utiliza contra o próprio grupo necessitado227. De modo geral, desejou-se, com a

adoção dessa Resolução, evitar que os governos, por interesse ou extravagância, bloqueiem a

implementação das medidas necessárias para a realização da assistência humanitária228.

Todavia, o princípio do livre acesso às vítimas seria um instituto inútil sem a inovação

produzida pela Resolução 45/100, de 14 de dezembro de 1990 que disciplinou os corredores

humanitários. Esta Resolução se utiliza do mesmo roteiro da Resolução 43/131 e deste modo,

também reafirma a soberania estatal e delega primeiramente aos Estados afetados, a organização

e coordenação da prestação de assistência humanitária em seus respectivos territórios, mas

sinaliza a importância da ajuda realizada pelos governos e organizações intergovernamentais e

não-governamentais, desde que atuem de maneira imparcial e com fins estritamente

224 Cf. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Assembléia Geral. Resolução 43/131 de 08 de dezembro de 1988. Disponível em: <http://daccessdds.un.org/doc/RESOLUTION/GEN/NR0/538/03/IMG/NR053803.pdf> Acesso em: 17 de setembro de 2008. 225 Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Op. Cit. p. 158. 226 Cf. KOLOSOV, Youri. Op. Cit. p. 65. 227 Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Op. Cit. p. 158. 228 Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Op. Cit. p. 248.

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humanitários. Convida os Estados, cujas populações necessitem de assistência humanitária a

aplicar a Resolução 43/131 e instalar, a título provisional e de forma acertada entre os governos

afetados e organizações intergovernamentais, governamentais e não-governamentais interessadas,

onde quer que seja necessário, os corredores de socorro, a fim de facilitar a distribuição de

alimentos, medicamentos e atendimento médico. Finalmente, roga aos Estados situados nas zonas

afligidas por desastres naturais e situações de emergência semelhantes, principalmente no caso de

regiões de difícil acesso, para que participem ativamente dos esforços internacionais de

cooperação com o objetivo de facilitar, na medida do possível, o trânsito da assistência

humanitária229.

A inovação trazida pelos corredores humanitários consiste na obrigação de preservar

determinada localidade livre da violência dos conflitos para facilitar o acesso do auxílio

humanitário. Trata-se de um direito limitado no tempo, uma vez que deve durar somente o tempo

necessário para a concessão do socorro; limitado no espaço, pois só pode ser exercido nas áreas

do trajeto previamente demarcado; limitado pelo objeto e exercício porque possui como única

função o transporte de suprimentos médicos e alimentares e toda e qualquer outra atividade não

relacionada ao socorro é proibida, além disso, deve minorar a confusão e dispersão da ajuda para

que não haja a discriminação da vítima. Cumpre informar, que a instauração dos corredores

humanitários não pode ser recusada pela autoridade local e, tampouco, poderá ser revogada a

qualquer tempo. Deve vigorar enquanto a ajuda for necessária, haja vista que se trata de uma

obrigação de resultado e não de meio. Por conseqüência, existem três espécies de corredores

humanitários: os de simples acesso, que favorecem a chegada do socorro às vítimas; os de

evacuação que permitem a fuga das pessoas em perigo iminente e os de retorno, que possibilitam

o regresso dos refugiados230. Cada qual possui um regime jurídico próprio, formalidades

administrativas e especificidades logísticas diferentes, e podem se realizar por via marítima,

fluvial ou aérea231.

O princípio do livre acesso às vítimas e dos corredores humanitários foram

constantemente invocados nas diversas resoluções do Conselho de Segurança, aprovadas nos

anos 1990. Quando da repressão aos curdos no Iraque, o Conselho de Segurança ordenou que

229 Cf. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Assembléia Geral. Resolução 45/100 de 14 de dezembro de 1990. Disponível em: <http://daccessdds.un.org/doc/RESOLUTION/GEN/NR0/572/63/IMG/NR057263.pdf> Acesso em: 17 de setembro de 2008. 230 Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Op. Cit. p. 159. 231 Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Op. Cit. p. 258.

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fosse permitido às organizações internacionais humanitárias o acesso livre e imediato a todos

quantos carecessem de ajuda232. A Resolução nº 688 instituiu a “estrada azul” destinada a prover

ajuda aos flagelados e assegurar o retorno dos refugiados. A ofensiva dos rebeldes em Ruanda

reclamou a organização de um corredor humanitário, uma vez que era grande o receio de

represálias, e a precariedade dos campos de refugiados no Zaire, onde se alastrava a cólera e

outras doenças, foi determinante para a criação de um corredor de retorno para dispensar auxílio

e facilitar o repatriamento dos refugiados. Na ocasião, a organização de corredores aéreos

também teve grande importância233. Na Somália, a ONU tratou de garantir um ambiente seguro

para que se efetivasse a assistência humanitária234. A organização de corredores aéreos, e a

reabertura do porto da capital Mogadishu, desempenharam papel significativo na diminuição da

catástrofe humana235. No instante em que a crise na Bósnia se agravou, o Conselho de Segurança

determinou que as forças da ONU promovessem a distribuição de alimentos e remédios às

populações necessitadas. Providência similar foi tomada na crise da Libéria, em 1993, quando a

ONU ordenou que as partes em conflito cessassem com a prática de ações que obstavam a

prestação de assistência humanitária236. Após a Resolução nº 761 autorizar a UNPROFOR a

proteger a região do aeroporto de Sarajevo, na Bósnia, a ponte aérea foi instalada e a coordenação

da assistência humanitária coube à Cruz Vermelha. O corredor aéreo abrangia uma área de dez

quilômetros de largura e cento e vinte quilômetros de comprimento. A despeito dos constantes

incidentes que a interromperam em várias oportunidades, esta foi a maior ponte aérea da história

e contou com mais de doze mil vôos que transportaram em torno de cento e cinqüenta mil

toneladas de auxílio humanitário e evacuaram milhares de feridos237.

Destarte, percebe-se que ambas as resoluções foram obrigadas a fazer “concessões” ao

princípio da não-intervenção, muito embora tenham feito expressa referência à soberania estatal e

enfatizado o caráter excepcional da decisão, a qual deve ser tomada somente em situações de

extrema emergência238. De todo o modo, o princípio do livre acesso às vítimas e dos corredores

humanitários foram consagrados por meio das inúmeras resoluções adotadas pelo Conselho de

Segurança nos anos 1990, o que lhes conferiu caráter de regras costumeiras, cuja obrigatoriedade

232 Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Op. Cit. p. 248. 233 Ibidem. 258. 234 Ibidem. p. 249. 235 Ibidem. p. 259. 236 Ibidem. p. 249. 237 Ibidem. p. 259. 238 Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Op. Cit. p. 158.

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é expressão da relevância que a comunidade internacional concede à assistência humanitária239. O

direito à ajuda humanitária constitui-se, no atual estágio de desenvolvimento da humanidade,

uma regra de jus cogens, que conduz à anulação qualquer tratado ou ato jurídico internacional em

conflito com este direito ou com medidas exigidas para a sua aplicação240. Não obstante a

consagração do princípio do livre acesso às vítimas e dos corredores humanitários, o maior

problema enfrentado para a prática da assistência humanitária ocorre quando os Estados

receptores decidem, pela força, impedir o auxílio241. Neste caso, o Conselho de Segurança é

competente para lançar ou aprovar uma intervenção humanitária com vistas a opor-se a violações

do direito à assistência humanitária ou de qualquer outra norma do Direito Humanitário

Internacional, que considerar uma ameaça à paz e segurança internacionais242. A solução,

portanto, seria confundir as fronteiras da assistência humanitária com a intervenção humanitária

e, conseqüentemente, o Conselho de Segurança legitimar as forças armadas de um ou mais

Estados para efetivar a intervenção243. Por este motivo, faz-se necessário a análise da

competência do Conselho de Segurança para impor a observância do direito de assistência

humanitária, o que se fará no próximo capítulo deste trabalho.

3 A REVISÃO DO PRINCÍPIO DA SOBERANIA FRENTE ÀS POSSIBILIDADES LEGÍTIMAS DE INTERVENÇÃO HUMANITÁRIA

3.1 A COMPETÊNCIA DO CONSELHO DE SEGURANÇA DA ONU

Conforme já aludido ao longo deste trabalho, constata-se que o Conselho de Segurança

possui competência para determinar o que consiste uma ameaça à paz e a segurança

internacionais, consoante o comando do capítulo VII da Carta. Entretanto, importa analisar qual

seria o sistema de “freios e contrapesos” necessários para tornar suas decisões, que são de cunho

político e consideradas parciais pela grande maioria da doutrina, - uma vez que direcionadas aos

interesses das potências que são membros permanentes do Conselho de Segurança e detêm o

239 Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Op. Cit. p. 254. 240 Cf. ESPIELL, Héctor Gros. Op. Cit. p. 22. 241 Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Op. Cit. p. 160. 242 DINSTEIN, Yoram. As conseqüências jurídicas das violações do direito de assistência humanitária. In: COLÓQUIO INTERNACIONAL SOBRE O DIREITO À ASSISTÊNCIA HUMANITÁRIA. O direito à assistência humanitária. Trad. Catarina Eleonora F. da Silva, Jeanne Sawaya. Rio de Janeiro: Garamond, 1999. p. 56. 243 Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Op. Cit. p. 160.

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poder de veto - em decisões imparciais e norteadas estritamente às necessidades humanitárias. O

problema que demanda resolução é identificar se os poderes concedidos pela Carta permitem ao

Conselho de Segurança autorizar a utilização da força contra os membros da ONU para proteção

dos direitos humanos. Muito embora as resoluções dos anos 1990 tenham legitimado ações

armadas para a proteção dos referidos direitos, importa analisar os limites da discricionariedade

do Conselho de Segurança na matéria e em que medida suas ações são revestidas de

imparcialidade e possuem por único escopo a proteção dos seres humanos.

É certo que o Conselho de Segurança encontrou na sua discricionariedade para determinar

o que consiste ameaça à paz, quebra da paz ou ato de agressão, conforme disposição do art. 39 da

Carta, a legitimidade para autorizar as intervenções humanitárias ocorridas nos anos 1990. Neste

viés, o referido órgão, em todas as resoluções que aprovou, teve a preocupação de fazer sempre

menção, por mais sutil que fosse ao capítulo VII da Carta e à existência de situação considerada

como grave ameaça à paz e segurança internacionais. Ao agir desta forma, o Conselho de

Segurança endossou a tese de que perseguições a populações e minorias resultam em efeitos

transfronteiriços e afetam não só os países envolvidos, mas plantam o gérmen de um conflito

internacional244. Entretanto, a problemática central revela-se no fato de que a ONU não possui

meios para empreender essas ações245, mas pode autorizar um ou mais países para representá-

la246. A questão se resume às condições em que a ONU pode promover essa delegação247, visto

que a organização não possui a logística necessária para ações impositivas, ela se torna

dependente da oferta de países “interessados” e “capazes” e, conseqüentemente, o resultado disso

são resoluções conduzidas conforme a proposta dos referidos Estados. Essa delegação de

poderes, portanto, acaba por favorecer a inconsistência das decisões do Conselho de Segurança e

confere-lhe caráter legitimador de políticas nacionais, em detrimento da importância substantiva

de suas funções248.

Como a Resolução 3.314 que define agressão, conforme já aludido neste trabalho, é

meramente exemplificativa, o Conselho de Segurança não está adstrito aos seus termos para 244 Cf. DELGADO, José Manuel Avelino de Pina. Op. Cit. p. 167/168. 245 Como já aventado neste trabalho, embora a Carta tenha previsto um contingente militar próprio para atuar em nome da organização (art. 43), isto ainda não foi possível. 246 “Essa delegação de competência não suplanta a ONU; em vez disso, o Estado a substitui por subrogação. Pela lei do “desdobramento funcional”, os órgãos estatais exercem um duplo papel, simultaneamente nacional e internacional, e os Estados se tornam criadores, aplicadores e destinatários dessas normas internacionais.” (Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Op. Cit. p. 161). 247 Ibidem. 248 Cf. VIOTTI, Aurélio Romanini de Abranches. Op. Cit. p. 142.

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definir o que consiste ameaça à paz e segurança internacionais e assim, pode incluir matérias não

cobertas pela Resolução e desqualificar outras expressamente previstas. Por conseguinte, cabe

inteiramente a este órgão interpretar sobre o que se constituiria uma agressão passível de abalar a

estabilidade internacional. Todavia, ressalta-se que, conforme o art. 24249, o Conselho de

Segurança detém responsabilidade primária na manutenção da paz e segurança internacionais, o

que não significa que é exclusiva. A Assembléia Geral está autorizada, desde que o Conselho não

esteja a apreciar a matéria (art. 12250) a fazer recomendações aos Estados-membros ou ao

Conselho ou a ambos em qualquer questão ou assunto (art. 10251)252. Ademais, os poderes

discricionários conferidos ao órgão pelo art. 39 da Carta são limitados pelos princípios e

propósitos das Nações Unidas, consoante o disposto no art. 24, §2º e, em assim sendo, o

Conselho de Segurança não poderá tomar medidas que se contraponham aos princípios e

propósitos das Nações Unidas253. Especificamente em relação às intervenções humanitárias, não

resta dúvida de que isso não ocorreria, uma vez que conforme o art. 1º, §3º254, a promoção e

encorajamento aos direitos humanos e liberdades fundamentais fazem parte do rol de propósitos

da Organização. Inobstante, o dispositivo é de aplicação muito relativa, pois não parece autorizar

249 Art. 24. § 1º. A fim de assegurar uma ação pronta e eficaz por parte das Nações Unidas, os seus membros conferem ao Conselho de Segurança a principal responsabilidade na manutenção da paz e da segurança internacionais e concordam em que, no cumprimento dos deveres impostos por essa responsabilidade, o Conselho de Segurança aja em nome deles. § 2º. No cumprimento desses deveres, o Conselho de Segurança agirá de acordo com os objetivos e os princípios das Nações Unidas. Os poderes específicos concedidos ao Conselho de Segurança para o cumprimento dos referidos deveres estão definidos nos capítulos VI, VII, VIII e XII. § 3º. O Conselho de Segurança submeterá à apreciação da Assembléia Geral relatórios anuais e, quando necessário, relatórios especiais. 250 Art. 12. §1º. Enquanto o Conselho de Segurança estiver a exercer, em relação a qualquer controvérsia ou situação, as funções que lhe são atribuídas na presente Carta, a Assembléia Geral não fará nenhuma recomendação a respeito dessa controvérsia ou situação, a menos que o Conselho de Segurança o solicite. § 2º. O Secretário-Geral, com o consentimento do Conselho de Segurança, comunicará à Assembléia Geral, em cada sessão, quaisquer assuntos relativos à manutenção da paz e da segurança internacionais que estiverem a ser tratados pelo Conselho de Segurança, e da mesma maneira dará conhecimento de tais assuntos à Assembléia Geral, ou aos membros das Nações Unidas se a Assembléia Geral não estiver em sessão, logo que o Conselho de Segurança terminar o exame dos referidos assuntos. 251 Art. 10. A Assembléia Geral poderá discutir quaisquer questões ou assuntos que estiverem dentro das finalidades da presente Carta ou que se relacionarem com os poderes e funções de qualquer dos órgãos nela previstos, e, com exceção do estipulado no artigo 12, poderá fazer recomendações aos membros das Nações Unidas ou ao Conselho de Segurança, ou a este e àqueles, conjuntamente, com a referência a quaisquer daquelas questões ou assuntos. 252 Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Op. Cit. p. 161. 253 Cf. DELGADO, José Manuel Avelino de Pina. Op. Cit. p. 168. 254 Art. 1º Os objetivos das Nações Unidas são: [...] § 3º. Realizar a cooperação internacional, resolvendo os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário, promovendo e estimulando o respeito pelos direitos do homem e pelas liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião.

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a utilização da força para implementar esses propósitos, uma vez que a própria Carta teria que se

opor ao princípio inserido no seu art. 2º, §7º que, como já visto, não autoriza as Nações Unidas a

intervir em questões que são essencialmente da jurisdição interna de qualquer Estado. Entretanto,

pelo fato do disposto neste mesmo princípio se auto-limitar pela ressalva de que “este princípio

não poderá prejudicar a aplicação da imposição das medidas do capítulo VII”, nada obstaria que

o Conselho de Segurança determinasse, como efetivamente tem feito, que determinadas situações

de caráter iminentemente humanitário se constituem ameaças à paz e segurança internacionais e

assim, autorizasse a utilização da força para contorná-las255.

Contudo, critica-se que mesmo que a crise humanitária seja a oportunidade por trás da

decisão coletiva de intervir, por meio do disposto no capítulo VII da Carta, automaticamente,

reconhece-se a adequação da ação bélica para proteger o indivíduo e fortalece-se a expectativa de

recorrer à força armada para proteger direitos humanos. Tal posicionamento acabaria por

expandir as exceções legais à proscrição do uso da força esculpido no art. 2º, §4º da Carta e seria

insustentável negar a possibilidade de intervenção armada unilateral no caso de divergência sobre

o grau de envolvimento internacional em determinada questão no Conselho de Segurança256. Tal

assertiva não prevalece, mesmo porque, a Carta da ONU permite somente ao Conselho de

Segurança, por meio da derradeira disposição do art. 2º, §7º em conjunto com o art. 39, a intervir

nos casos em que julgue ameaça à paz e segurança internacionais, o que desqualifica por

completo uma ação estatal não rechaçada pelo referido órgão. Deve-se reiterar que todas as

operações autorizadas pelo Conselho de Segurança para tratar de questões humanitárias por meio

da utilização da força, como já visto, seguiram esse padrão.

Ademais, o envolvimento do Conselho de Segurança em conflitos domésticos, em

particular, é assegurado por três motivos. Primeiro, caso tenham efeitos transfronteiriços, a

prática da Organização cedo reconheceu que podem ameaçar a paz e segurança internacionais,

pelo risco de envolvimento de outros Estados. Segundo, caso os efeitos não ultrapassem as

fronteiras, o que é contestável, - haja vista o fenômeno dos refugiados - o fato de envolverem

ameaças ou violações aos direitos humanos assegura a competência do Conselho de Segurança

sob o capítulo VI da Carta, mesmo que a paz internacional não esteja diretamente ameaçada.

Terceiro, caso considere que a situação chegue a ameaçar a paz e segurança internacionais, o

255 Cf. DELGADO, José Manuel Avelino de Pina. Op. Cit. p. 168/169. 256 Cf. VIOTTI, Aurélio Romanini de Abranches. Op. Cit. p. 142/143.

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Conselho de Segurança, sob o Capítulo VII da Carta, poderá agir frente a questões domésticas,

independentemente do consentimento do Estado257.

Efetivamente, em muitos dos conflitos ocorridos nos anos 1990, especialmente os da

Somália e Haiti, não havia risco iminente à segurança internacional, mas assim mesmo as

operações foram autorizadas. Na ocasião, tentou-se evidenciar que o Conselho de Segurança se

amparava muito lateralmente na pressuposição da existência de tal ameaça, quando na verdade

pretendia utilizar a força unicamente para proteger os direitos humanos que estavam sendo

maciçamente violados. Assim, faz-se necessário identificar se os poderes discricionários

concedidos pela Carta ao Conselho de Segurança permitem autorizar a utilização da força contra

os Estados-membros para proteger direitos humanos mesmo na eventualidade de não haver

nenhum nexo causal entre a situação de grave crise humanitária e a segurança internacional. Essa

base jurídica poderia resultar da assunção de que a própria violação aos direitos humanos

autorizaria o Conselho de Segurança a tomar medidas para manter ou restaurar a ordem. É

preciso não olvidar que a própria ONU foi criada não somente para manter a paz e segurança

internacionais, mas também - isto se não for o seu objetivo precípuo - para proteger direitos

humanos. Ademais, conforme aludido anteriormente, as Nações Unidas podem utilizar a força em

exceção às situações explicitamente inseridas na Carta e implementar, por exemplo, as

possibilidades reconhecidas pelo Direito Internacional costumeiro. Na verdade, o sistema de

segurança coletiva nada mais é do que a multilateralização e formalização do direito costumeiro à

legítima defesa. Desta forma, caso a intervenção humanitária seja reconhecida pelo direito

costumeiro, como efetivamente tem ocorrido, principalmente pelo reconhecimento, como já

visto, do direito de assistência humanitária como norma de jus cogens; não existe qualquer

impedimento legal para que as Nações Unidas autorizem a utilização da força para proteger

direitos humanos258.

A despeito da ausência de previsão legal explícita na Carta, imperioso recordar que este

documento é um instrumento vigente e, portanto, apto a se transformar para abarcar novas

situações não previstas no momento em que foi aprovado. Foi o que ocorreu, por exemplo, em

relação à interpretação do art. 27, §3º, o qual dispunha que as “decisões do Conselho de

Segurança deverão ser tomadas pelo voto afirmativo de nove membros, inclusive os votos

257 Cf. VIOTTI, Aurélio Romanini de Abranches. Op. Cit. p. 141. 258 Cf. DELGADO, José Manuel Avelino de Pina. Op. Cit. p. 169/170.

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concorrentes dos membros permanentes”. Obviamente que por “voto concorrente” infere-se que

todos os membros permanentes deveriam votar a favor de determinada resolução para obter sua

aprovação. Ocorre, porém, que a prática do Conselho de Segurança passou a entender que a

referida expressão significava tão somente a ausência de votos em contrário259. Semelhante foi o

processo hermenêutico de estabelecimento da base jurídica das operações de manutenção de paz,

visto que a Carta não disciplinou em quaisquer dos seus dispositivos a criação das referidas

operações. Muito embora não se constituam alterações passíveis de emenda à Carta, o que

interessa para que seja aceita é conformação de uma prática reiterada e sem oposição significativa

por parte dos Estados, o que de fato, aconteceu em relação às intervenções humanitárias

empreendidas pela ONU, inclusive por muitos Estados que a sofreram. Isso corrobora o

entendimento de que as intervenções humanitárias autorizadas pelo Conselho de Segurança se

cristalizaram como prática reiterada e sem oposição, e ganharam o relevo de norma de Direito

Internacional costumeiro260.

É fato que o art. 39 confere poderes muito abrangentes ao Conselho de Segurança, mas de

modo algum pode ser considerada uma disposição arbitrária, uma vez que se trata de norma

aberta para ser adequadamente apreciada diante do fato concreto e desta forma, está limitada pelo

sistema jurídico vigente, ou seja, pela própria Carta e as normas costumeiras de Direito

Internacional. Além do limite subentendido no próprio art. 39, resta claro que o Conselho de

Segurança não poderia autorizar ações amparadas no Capítulo VII para promover objetivos

contrários aos explicitados pelos artigos 1º e 2º da Carta, os quais se constituem limitação

material aos seus poderes. Outro dispositivo importante que limita a competência do órgão é o

art. 2º, §7º, uma vez que exclui determinadas questões do âmbito de sua competência.

Entretanto, como a proteção conferida pelo referido artigo é relegada quando a questão em

análise é relativa às medidas de segurança coletiva, o Conselho de Segurança ainda possui o

poder de apreciar quando determinada situação deixa de ser de domínio reservado dos Estados e

passa a ser de importância global261.

259 Este entendimento foi inaugurado na aprovação da Resolução 84, de 07 de julho de 1950, ocasião em que na ausência do representante da União Soviética nos trabalhos do Conselho de Segurança, foi determinada a constituição de uma força das Nações Unidas, sob o comando dos Estados Unidos, para prestar auxílio à Coréia do Sul. (Cf. DELGADO, José Manuel Avelino de Pina. Op. Cit. p. 98/99). 260 Ibidem. p. 171/172. 261 Ibidem. p. 175/176.

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O Conselho de Segurança, por ser o titular do posto de guardião da paz e segurança

internacionais, possui outras limitações ao exercício das suas funções e, uma vez que suas

decisões possuem natureza política e vinculante, o órgão deve motivá-las por meio da

demonstração do amparo legal utilizado para qualquer ação autorizada. A experiência recente tem

comprovado que o Conselho de Segurança não se furta a isso. As autorizações para a utilização

da força, embora de modo conciso, invariavelmente remetem à Carta das Nações Unidas. Não

bastasse isso, as resoluções devem respeitar os limites da razoabilidade, sem estabelecer

conexões absurdas que não se harmonizem com as possibilidades previstas na Carta para a

atuação do Conselho ou com algum dos propósitos das Nações Unidas. Finalmente, exige-se que

os Estados, ao participarem das votações promovidas pelo órgão, respeitem o princípio

costumeiro da boa-fé262.

Contudo, do ponto de vista do funcionamento de um sistema jurídico não é suficiente

determinar a existência dos poderes, sua competência e, acima de tudo, seus limites. Em última

instância, os participantes de uma comunidade jurídica somente se satisfazem com um sistema

quando sabem quem controla os poderes, especialmente daquele que detém a função de execução

que, no caso do sistema das Nações Unidas, é o Conselho de Segurança263. A questão da

necessidade de uma delimitação mais clara das competências do órgão foi objeto de atenção no

célebre caso Nicarágua, no qual a Corte Internacional de Justiça esclareceu que o fato de estar

uma determinada matéria sob a apreciação do Conselho de Segurança não impedia que também a

Corte pudesse examiná-la e que ambos os processos pudessem ter seqüência em conjunto264. Essa

também foi a questão de fundo do notório caso Lockerbie, no qual, a Corte Internacional de

Justiça teve que se posicionar diante do fato de que um Estado afetado por resoluções do

Conselho de Segurança reclamava da utilização abusiva dos poderes conferidos ao órgão.

Este último caso pode ser sucintamente descrito da seguinte forma: a Líbia foi acusada

pelos Estados Unidos e Reino Unido de, por meio de dois indivíduos líbios, ter sido a responsável

pelo atentado ao avião da Pan Am que caiu sobre a localidade escocesa de Lockerbie e ocasionou

a morte de tripulantes e pessoas em terra. Na seqüência, os dois países exigiram que a Líbia

extraditasse os suspeitos sob pena de usarem a força. Também recorreram ao Conselho de

262 Cf. DELGADO, José Manuel Avelino de Pina. Op. Cit. p. 174/176. 263 Ibidem. p. 177. 264 CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Caso das atividades militares e paramilitares na e contra a Nicarágua (Nicarágua v. Estados Unidos). Op. Cit. p. 21.

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Segurança que, por meio da Resolução 731 de 22 de janeiro de 1992, exigiu a cooperação da

Líbia. Esta última insurgiu-se contra a referida Resolução e peticionou à Corte para que ela se

posicionasse, por meio da concessão de medidas cautelares, acerca da ameaça de ação armada

com o objetivo de fazê-la entregar à força os seus nacionais suspeitos do caso, bem como, pela

possibilidade de quaisquer violações da soberania, integridade territorial e independência política

da Líbia, por parte do Reino Unido e Estados Unidos 265.

Apesar de existirem várias questões relevantes no caso em comento, interessa para a

presente pesquisa verificar a possibilidade da Corte Internacional de Justiça analisar a legalidade

dos atos do Conselho de Segurança. Nesse sentido, apesar dos juízes terem se posicionado contra

as medidas cautelares requeridas pela Líbia, algumas decisões são particularmente importantes.

Primeiramente, consolidou-se o entendimento de que não há norma que impeça a Corte de se

pronunciar sobre questões em análise no Conselho de Segurança. Outro ponto proeminente diz

respeito aos votos de alguns juízes, os quais abriram a possibilidade de no futuro, o órgão da

justiça internacional passar a controlar a legalidade dos atos do Conselho de Segurança266. Em

especial, o voto do juiz Manfred Lachs sintetiza muito bem essa possibilidade ao declarar que “de

fato a Corte é a guardiã da legalidade da comunidade internacional como um todo, tanto dentro

quanto fora das Nações Unidas”267. Desse modo, a Corte poderia, em alguns casos, exercer o

controle dos atos do Conselho de Segurança e assim, rejeitar o efeito vinculante de certas

resoluções que não estiverem devidamente amparadas numa interpretação razoável da Carta. Das

aludidas decisões infere-se ainda, como já aventado, que a responsabilidade do Conselho é

primária, mas não exclusiva. Enquanto a Carta das Nações Unidas impede a Assembléia Geral de

formular qualquer recomendação em relação a uma disputa ou situação pendente perante o

Conselho de Segurança (art. 12), a menos que este assim o requeira, não há qualquer restrição

desse tipo ao exercício das funções da Corte Internacional de Justiça268.

265 Cf. CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Caso relativo às questões de interpretação e aplicação da convenção de Montreal de 1971 resultantes do incidente aéreo de Lockerbie (Grande Jamahiriya Árabe Popular Socialista da Líbia v. Reino Unido. Decisão de 14 de abril de 1992. Disponível em: <http://www.icj-cij.org/homepage/sp/files/sum_1992-1996.pdf> Acesso em: 08 de outubro de 2008. p. 1. 266 Cf. DELGADO, José Manuel Avelino de Pina. Op. Cit. p. 179. 267 Cf. CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Caso relativo às questões de interpretação e aplicação da convenção de Montreal de 1971 resultantes do incidente aéreo de Lockerbie (Grande Jamahiriya Árabe Popular Socialista da Líbia v. Reino Unido. Op. Cit. p. 4. 268 Cf. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Direito das Organizações Internacionais. 3ª ed. rev. atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. .

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Como já argumentado neste trabalho, quando a questão é a proteção do indivíduo, não

cabe a argüição por parte dos Estados da exceção do domínio reservado contra a ação da ONU,

mesmo de caráter preventivo. A evolução do Direito Internacional dos Direitos Humanos e do

Direito Internacional Humanitário superou a antiga inconsistência, percebida pelos primeiros

comentadores da Carta, de que a ONU ficaria obrigada a assistir imóvel ao escalonamento de um

conflito doméstico até que se chegasse a ameaçar a paz internacional. A Organização

efetivamente tem respondido a essas situações, mas essas respostas devem ser progressivas, uma

vez que devem respeitar o princípio geral de resolução pacífica de conflitos e situações,

consoante o comando do art. 2º, §3º da Carta269. Assim, o Conselho de Segurança tem a

faculdade de convidar as partes a aceitar medidas provisórias, que não afetarão os seus direitos,

antes que qualquer ação seja empreendida. Vencida esta fase, o órgão poderá instar os Estados-

membros a aplicar certas medidas sem a utilização das forças armadas. Entre elas, incluem-se a

interrupção total ou parcial das relações econômicas, dos meios de comunicação de qualquer

espécie e o rompimento das relações diplomáticas. Comprovada a ineficácia ou a inadequação

destas ações, o Conselho de Segurança poderá autorizar o emprego da força armada para manter

ou estabelecer a paz e a segurança internacionais. As medidas adotadas nessa fase compreendem

o policiamento das ações de socorro humanitárias, bloqueios e outras operações efetuadas pelas

forças aéreas, navais e terrestres dos membros das Nações Unidas270. Este procedimento revela a

preocupação do Conselho de Segurança em agir de forma preventiva, sem excluir as ações sob o

capítulo VI, como por exemplo, o recurso a missões de investigação dos fatos. Além disso,

mesmo que tome medidas sob o capítulo VII, o que se percebe, pelos casos estudados, é que tem

utilizado a opção militar como último recurso, o que se coaduna com as disposições da Carta e,

conseqüentemente com o regime legal que busca minimizar as oportunidades de recurso às armas

pelos Estados271.

Importa analisar ainda a justa intenção do envolvimento do Conselho de Segurança nas

crises humanitárias. Ao que parece, mesmo diante das graves crises verificadas em Ruanda e no

Zaire, por exemplo, houve claro desinteresse do órgão em engajar-se de modo eficaz272.

Argumenta-se que a intervenção francesa em Ruanda, no ano de 1994, foi movida não por

269 Cf. VIOTTI, Aurélio Romanini de Abranches. Op. Cit. p. 140. 270 Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Op. Cit. p. 138/139. 271 Cf. VIOTTI, Aurélio Romanini de Abranches. Op. Cit. p. 140/141. 272 Ibidem. p. 143.

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preocupações humanitárias, mas pelo desejo francês de continuar no papel de grande potência na

África Central. Entretanto, a exigência de uma motivação unicamente altruísta pode ser

dispensada, uma vez que esta com a exclusão de outros interesses egoístas não é aplicável às

relações internacionais; o que deve ser considerado é o significado moral dessa motivação plural

e confusa273 que, muito embora possuam interesses outros e não somente os humanitários,

verificou-se, pelos casos analisados, que foram de grande auxílio para minorar as catástrofes

humanitárias ocorridas nos anos 1990.

De todo o modo, é salutar identificar as condições em que deve ocorrer o envolvimento do

Conselho de Segurança nas crises humanitárias. Primeiramente, as soluções pacíficas e

diplomáticas de composição devem ter sido totalmente esgotadas. Num segundo momento, deve-

se verificar o princípio da subsidiariedade da persecução criminal internacional, isto é, a

comunidade internacional só poderá agir quando o Estado intervenido não o faz. Isso ocorre em

dois casos: quando ao poder público nacional puder ser imputada uma ação ou omissão

criminosa; e quando a situação de calamidade for muito grave e restar demonstrado que o Estado

não possui instituições internas capazes para lidar com o problema. Neste viés, a decretação da

intervenção deve ser o último recurso que somente se impõe, uma vez ponderada a urgência da

situação e a recalcitrância do Estado274.

Os critérios da proporcionalidade e da probabilidade de êxito também devem ser

analisados. A intervenção, obviamente, não deve agravar ainda mais a situação que ela visa

corrigir ou suavizar os efeitos. Para tanto, o emprego de forças deve ser calculado juntamente

com a possibilidade de sucesso da operação, ser restrito ao socorro humanitário e ao cabo deste,

as tropas devem deixar o país275. Por derradeiro, a justa causa de uma intervenção humanitária é,

sem embargo, a proteção dos direitos humanos. Cabe intervenção humanitária, desde que

empreendida pela ONU, diante de limpezas étnicas, genocídios, crimes contra a humanidade,

desastres humanitários decorrentes de calamidades naturais, enfim, situações em que se

verifiquem violações verdadeiramente graves aos direitos humanos e, diante das quais, o poder

público estatal dos países envolvidos não se manifeste de forma moralmente satisfatória, seja pela

sua ação ou omissão276. Assim mesmo, a licitude das intervenções humanitárias ainda esbarra no

273 Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Op. Cit. p. 164. 274 Ibidem. p. 165. 275 Ibidem. 276 Ibidem. p. 167/168.

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conceito tradicional do princípio da soberania estatal, o qual estabelece que o Estado goza de

inteira liberdade ou independência para realizar os atos que lhe aprouver dentro do seu território.

Imperioso, portanto, analisar no próximo tópico desta pesquisa, como este princípio tem sido

tratado na atualidade, frente à regulamentação das condutas estatais impostas pelo Direito

Internacional.

3.2 A REVISÃO DO CONCEITO DE SOBERANIA

Os esforços teóricos para se construir uma ordem internacional e conferir a ela alguma

sustentação jurídica tiveram que necessariamente investir contra o conceito tradicional de

soberania. Esta e o Direito Internacional tornam-se assim forças opostas, uma vez que a

possibilidade de substituir uma ordem relacional de coordenação e coexistência por outra de

subordinação e cooperação depende de desconstituir as concepções que não aceitam a

subordinação de Estados soberanos, justamente por estes possuírem o atributo de serem

soberanos. A relativização do conceito de soberania é, portanto, um pressuposto para a

construção e evolução do Direito Internacional. Os espaços que lentamente são desocupados pela

irresignação do poder estatal a qualquer outro poder passam a ser preenchidos pelo Direito

Internacional em sua complexa formulação277.

O conceito de soberania, acompanhado da idéia de Estado, originaram-se com a

celebração do Tratado de Vestfália278, de 1648, a partir do qual, inaugurou-se um período de

coexistência fundado no equilíbrio de Estados absolutamente soberanos e o Direito Internacional

restou limitado à regência das relações entre eles. Entretanto, com o tempo, o relacionamento

entre os Estados sofreu paulatinas modificações e passou da política de mera coexistência para a

de colaboração, o que se comprova com a celebração, cada vez mais freqüente, de tratados, e com

o surgimento de diversas organizações e associações internacionais. Tudo isso revela a própria

relativização do conceito de soberania279.

277 Cf. LUPI, André Lipp Pinto Basto. Soberania, OMC e Mercosul. São Paulo: Aduaneiras, 2001. p. 269. 278 “A paz de Vestfália de 1648 representa o principal símbolo da conformação de um sistema internacional baseado na independência e na soberania dos Estados. Os acordos de Vestfália foram resultado da convergência das potências efetivas da Europa e dos príncipes e cidades que possuíam uma política externa independente, unidos para pôr fim aos anos de guerra religiosa.” (Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Justiça restaurativa, dialogia e reconstrução social: Tribunais internacionais e comissões de verdade na África. Disponível em: <http://www.iuperj.br/biblioteca/teses/simone%20martins%20rodrigues%20tese.pdf> Acesso em: 12 de outubro de 2008. p. 4.). 279 Cf. LUPI, André Lipp Pinto Basto. Op. Cit. p. 270.

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Hodiernamente, a soberania é a capacidade de um Estado para impor livremente suas

normas jurídicas a uma população que se encontra em um território determinado, mas não

implica nenhum status moral inatingível ou que mereça um respeito incondicional280. O Direito

Internacional é quem decide se o Estado é soberano ou não, e deixa a cargo da lei doméstica a

decisão sobre quem deve exercer a soberania. Por isso, soberania de Estado significa

independência deste nas relações entre os Estados, mas de modo algum significa que ele se

sobrepõe à lei internacional, ao contrário, a soberania é uma garantia dentro do Direito

Internacional e a história nos mostra que, do final do século XIX até as grandes guerras, os

juristas, em particular, os alemães, desenvolveram a teoria de soberania e de Estado aos seus

extremos, de modo que a trágica experiência das guerras mundiais ocasionou a revisão do seu

conceito a fim de torná-lo mais flexível e evitar que fosse utilizada de modo irresponsável281.

Assim, entende-se que o conceito de soberania é o poder de organizar-se juridicamente e

de fazer valer dentro do seu território a universalidade de suas decisões nos limites dos fins éticos

de convivência. Não se trata, portanto, de mera expressão do poder, uma vez que está submetida

ao direito e aos fins éticos da convivência humana. O resultado disso são limites internos, como

normas constitucionais que almejam o bem comum; e externos, estabelecidos pelo Direito

Internacional, os quais orientam e disciplinam o exercício do poder soberano no sentido último da

satisfação das necessidades do povo e não do Estado, pois este somente existe em função

daquele. Desse modo, a soberania não deve ser compreendida como um conceito estático, mas

como um processo, uma vez que possui um caráter marcadamente histórico e, por conseguinte, a

sua interpretação varia no tempo e no espaço, conforme a realidade e as necessidades,

primeiramente dos Estados, depois de toda a ordem jurídica internacional. Ao considerar que na

atualidade a soberania é dependente desta, pode-se afirmar que soberano é o Estado que se

encontra subordinado direta e imediatamente à ordem jurídica internacional282, sendo,

conseqüentemente, seu sujeito de direitos e deveres.

Ademais, com o advento da globalização, o conceito de soberania, apesar da sua

flexibilidade e da independência que goza nas relações internacionais, está a perder

gradativamente seu significado, uma vez que a interdependência é a realidade. É mais plausível

280 Cf. RAMÍREZ, Frederico Arcos. Op. Cit. p. 26. 281 Cf. SILVA SOBRINHO, Marcelo da. Soberania no direito internacional: Evolução ou revolução? Disponível em: <http://www.senado.gov.br/web/cegraf/ril/pdf/pdf_163/r163-01.pdf> Acesso em: 12 de outubro de 2008. p. 11. 282 Ibidem. p. 12.

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visualizar, no cenário atual, uma igualdade jurídica entre os Estados, na qual não haveria como

existir Estados mais fortes ou mais fracos, uma vez que estes não podem ser valorados pela

simples extensão de seus poderes econômicos, militares, etc; pois sob a esfera do Direito

Internacional, todos se igualam em direitos e deveres. A referida igualdade é o que hoje domina a

vida internacional, mas não é um modelo ideal, uma vez que sofre várias exceções livremente

estatuídas pelos próprios Estados. É preciso não olvidar que tais exceções decorrem do fato de

que, na prática, os Estados são desiguais. Assim sendo, entende-se que, em termos de Direito

Internacional, deve-se considerar as desigualdades materiais dos Estados, o que enseja à criação

de status jurídicos distintos correspondentes as diferentes capacidades dos países. Esse fenômeno

se desdobra da seguinte forma: por um lado, os Estados mais fracos ou subdesenvolvidos

constantemente reivindicam maiores vantagens, uma vez que as desigualdades compensatórias

não atentam contra o princípio da igualdade jurídica. Por outro, os Estados mais fortes ou

desenvolvidos, principalmente via acordo, criam e reservam maiores direitos na esfera da

sociedade internacional, o que explica, por exemplo, a cláusula da nação mais favorecida em

acordos econômicos e a existência do direito de veto no Conselho de Segurança, reservado

apenas aos Estados que possuem assento permanente. Uma grande vantagem dessa conceituação,

ainda que de difícil aplicação prática, reside na possibilidade de se qualificar um determinado ato

de Estado, seja este desenvolvido ou subdesenvolvido, como antijurídico, de modo que quando

um determinado Estado viole uma norma do Direito Internacional torna-se passivo de sanções ou

pedidos de reparação que podem ser invocados a qualquer tempo283.

Desta forma, o reconhecimento da igualdade jurídica dos Estados ou igualdade soberana,

independentemente de seus poderios ou riquezas, impõe-se como o princípio fundamental do

Direito Internacional. A Carta da ONU, com a intenção de edificar um sistema internacional

regido por normas internacionais não se furtou a isso e expressamente reconheceu, em seu artigo

2º, §1º, o princípio da igualdade soberana dos Estados como um dos princípios fundamentais da

organização. O princípio da não-intervenção também foi expressamente reconhecido pela Carta

(art. 2º, §7º) juntamente com a eliminação definitiva do termo “guerra” por meio do disposto no

art. 2º, §4º. Referidas disposições se constituem grande evolução do Direito Internacional e

representam a definitiva ruptura com o sistema de Vestfália, uma vez que o direito dos países

283 Cf. SILVA SOBRINHO, Marcelo da. Op. Cit. p. 12/13.

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mais poderosos de utilizar a força contra os países mais fracos foi definitivamente tornado ilegal

e suplantado pelo sistema de segurança coletiva da ONU284.

Todavia, ao mesmo tempo em que a Carta da ONU reforçou os referidos princípios com a

finalidade de proteger a soberania dos seus Estados-membros, as expressões “direitos

fundamentais do homem”, “direitos humanos” e “dignidade da pessoa humana” aparecem

reiteradamente em seu texto. Essas disposições relativas à proteção dos direitos humanos, apesar

de suas limitações e da falta de instrumentos que proporcionem a sua efetiva aplicação, não se

constituem meras exortações aos Estados, pelo contrário, trata-se da introdução na ordem

internacional de um novo princípio de legitimação do poder e uma profunda inovação no Direito

Internacional na medida em que, a partir da Carta da ONU, o tratamento que um Estado dispensa

as pessoas que se encontrem no seu território, seja seus nacionais ou estrangeiros, está regulado

pelo Direito Internacional. Com o reconhecimento da dignidade intrínseca de todo ser humano

pela Carta das Nações Unidas, portanto, os direitos humanos superaram a limitação inerente do

Direito Internacional tradicional, no qual, a proteção dos referidos direitos só poderia ocorrer por

meio dos Estados, para tornar-se uma questão pertencente e passível à ordem internacional. Dito

reconhecimento impõe aos Estados obrigações jurídicas internacionais que condicionam o

exercício de suas competências soberanas285.

Com efeito, muito embora a Carta contenha noções jurídicas flexíveis e abertas em suas

disposições, mormente em matéria de direitos humanos, a defesa e promoção destes é um dos

principais propósitos da ONU e, em assim sendo, as referidas disposições não deixam de criar

obrigações jurídicas tanto para a própria organização, quanto para os Estados-membros. Em

função dessas obrigações impostas pela Carta aos Estados-membros, estes não podem impugnar a

competência da ONU em matéria de direitos humanos por meio da regra do parágrafo 7º do

artigo 2º da Carta, uma vez que princípios éticos, políticos e jurídicos, superiores à soberania dos

Estados, podem justificar derrogações do princípio da não-intervenção nos seus assuntos internos

para tornar a realização dos propósitos da Organização possível e efetiva. A seu turno, a ONU

deve agir em relação aos problemas de ordem interna, tais como a violação das liberdades

essenciais do ser humano, uma vez que podem colocar em perigo a paz entre as nações286.

284 Cf. SILVA SOBRINHO, Marcelo da. Op. Cit. p. 21/22. 285 Cf. SALCEDO, Juan Antonio Carrillo. Op. Cit. p. 34/35. 286 Ibidem. p. 39/40.

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De fato, não existe maior ameaça à paz do mundo posterior à Guerra Fria, do que a

destruição dos Estados pelas guerras civis e, em conseqüência, a incapacidade de suas populações

de proteger-se tanto da fome e doenças quanto dos conflitos étnicos. A capacidade dos Estados

para enfrentar certos problemas atuais é limitada e o que se verifica é que as maiores ameaças aos

direitos humanos têm partido dos próprios Estados287. Diante disso, é importante repisar que

esses direitos são a expressão direta da dignidade da pessoa humana e a obrigação dos Estados de

assegurar o seu respeito se depreende do próprio reconhecimento de que esta dignidade

proclamada na Carta da ONU, ultrapassa as barreiras estatais e deixa de pertencer à jurisdição

doméstica dos Estados. Trata-se de uma obrigação erga omnes que incumbe a todo Estado

pertencente à comunidade internacional e implica o dever de solidariedade e cooperação entre as

nações288, ou seja, uma vez que os direitos humanos não são mais considerados assuntos de

exclusiva jurisdição doméstica, a sua defesa deve ocorrer independentemente das limitações

territoriais impostas pelos Estados289. A responsabilidade primordial para tanto é, sem dúvida, das

Nações Unidas, que deve agir de forma subsidiária frente à ação ou omissão do Estado, em caso

de graves violações dos direitos humanos290.

Destarte, infere-se que a sociedade internacional já desenvolveu alguns parâmetros para

poder agir diante de uma crise humanitária perpetuada pela ação ou omissão dos países

envolvidos. Haja vista a exclusão dos direitos humanos dos assuntos pertencentes ao domínio

reservado dos Estados e os poderes conferidos pela Carta à atuação da ONU, as crises

humanitárias são passíveis de uma intervenção - desde que empreendida pelas Nações Unidas -

para minorar seus efeitos, uma vez verificada a incapacidade do próprio Estado afetado em

contornar a situação. Essa possibilidade de ação da comunidade internacional se constitui uma

exceção legítima ao princípio da soberania. Por conseguinte, a proteção deste princípio não pode

ocorrer em detrimento de vidas humanas, visto que, de acordo com o Direito Internacional

contemporâneo, o que os Estados fazem internamente no tocante ao tratamento dispensado aos

seus jurisdicionados é de interesse geral da humanidade291.

Ademais, como já ressaltado, as crises internacionais contemporâneas são permeadas por

problemas extremamente complexos. A existência de intermináveis guerras civis ou golpes

287 Cf. RAMÍREZ, Frederico Arcos. Op. Cit. p. 22/23. 288 Cf. SALCEDO, Juan Antonio Carrillo. Op. Cit. p. 149. 289 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 61. 290 Cf. SALCEDO, Juan Antonio Carrillo. Op. Cit. p. 173. 291 Cf. AMARAL, Renata Vargas. Op. Cit. p. 5.

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militares que fragilizam as instituições sociais e administrativas ou ocasionam a falência total de

alguns Estados, desabilitam os meios convencionais de tratar da segurança internacional. As

operações de manutenção de paz, portanto, tornaram-se essenciais na medida em que não só

monitoram os acordos de cessar-fogo e ajudam a salvar vidas, mas desempenham funções que

antes eram consideradas da titularidade exclusiva dos Estados num momento em que estes estão

completamente impossibilitados de realizá-las. Sob essa ótica, as intervenções empreendidas

pelas Nações Unidas têm por escopo fornecer um amparo aos países que se mostraram incapazes

de conter uma guerra, fortalecer as instituições democráticas e propiciar condições que possam

obstaculizar a violência como meio de competição política. Além disso, visam identificar e apoiar

estruturas que tenderão a fortificar e solidificar a paz, com o objetivo de evitar o retorno ao

conflito. Cabe mencionar que as missões de paz aqui relatadas demonstram formas diferentes de

intervenção da ONU, mas sem dúvida, todas elas têm em comum a pretensão de garantir uma paz

duradoura por meio da reconstrução da democracia como modelo que possibilita a garantia do

respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais. Deste modo, as aludidas operações

têm a função principal de criar condições para a construção de uma estrutura política nos países

em que esta praticamente desapareceu devido às guerras e perseguições étnicas, políticas e

religiosas. Neste contexto, para que o país afetado se reestruture e a democracia possa se

desenvolver de forma sólida e legítima é imprescindível a atuação da ONU, como entidade

coletiva internacional, cujo objetivo precípuo é conferir efetividade ao seu principal propósito

que é a promoção e respeito dos direitos humanos, sem o qual, não é possível alcançar a paz

mundial292.

Em definitivo, o que se propõe é uma releitura funcional do princípio da soberania, sobre

a base de dois ideais civilizadores das relações internacionais: por um lado, a paz como interesse

público universal; por outro, a afirmação da existência de obrigações positivas dos Estados em

respeito à comunidade internacional no seu conjunto. Se a primeira representa um fator

moderador da discricionariedade dos Estados pelo Direito Internacional, a segunda opera no

sentido de conferir maior valorização ao Estado como elemento fundamental para o cumprimento

das funções que hoje assume frente ao aludido ramo do Direito. A tensão dialética entre

soberania dos Estados e direitos humanos se resolve na medida em que, justamente por serem

292 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. O papel das Nações Unidas na reconstrução democrática: o caso de El Salvador e do Haiti. Disponível em: <http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/anpocs00/gt13/00gt1333.doc> Acesso em: 14 de outubro de 2008.

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soberanos, os Estados têm obrigações jurídicas em matéria de direitos humanos, em razão da

imposição do seu respeito pela comunidade internacional como um todo. Em outras palavras, o

sistema internacional ainda é considerado uma sociedade de Estados independentes e soberanos

entre si. A soberania persiste como um princípio constitucional da ordem internacional, mas,

devido ao reconhecimento dos direitos humanos pela Carta da ONU e o desenvolvimento

normativo sobre a matéria após a sua adoção, pode-se afirmar que o Direito Internacional tem

penetrado consideravelmente no princípio da soberania, de modo que este, hodiernamente, resta

remodelado e transformado, despojado do seu sentido absoluto de outrora293. A soberania,

definitivamente deixou de ser visualizada como mero controle sobre uma população e um

território, para se tornar uma expressão da responsabilidade de, além de respeitar os direitos dos

demais Estados, proteger o bem estar e respeitar os direitos humanos dos indivíduos sujeitos à

sua jurisdição294. Deste modo, a soberania estatal evoluiu no sentido de ser considerada, não

somente um direito, mas também uma responsabilidade295.

Entretanto, a proteção do princípio da soberania parece ser muito mais arraigada no

Direito Internacional do que a dos direitos humanos, o que pode ocasionar a inação tanto dos

países, quanto da própria ONU em casos de graves violações desses direitos, devido às

abordagens de defesa estritamente legalistas. Esse conflito é evidenciado na prática das

intervenções humanitárias, haja vista que a proteção da soberania e a questão da limitação da

utilização da força são questionadas em face da necessidade de proteção dos direitos humanos.

Todavia, nos anos 1990, as graves crises humanitárias ensejaram razões práticas para a utilização

da força com propósitos humanitários, o que aprimorou o debate relativo a esta espécie de

intervenção e evidenciou a necessidade de reconciliar a legitimidade da não-intervenção e, por

conseguinte, fortalecer o princípio da soberania, por meio do estabelecimento de regras claras

para a utilização das intervenções com finalidade humanitária. O resultado disso é a idéia de

soberania como responsabilidade de proteger296, cuja análise será desenvolvida a seguir.

293 Cf. SALCEDO, Juan Antonio Carrillo. Op. Cit. p. 185/186. 294 Cf. ANJOS, Alberico Teixeira dos. A comissão internacional sobre intervenção e soberania estatal in Direitos Humanos e Direito Internacional.Curitiba: Juruá, 2006. p. 175/176. 295 Cf. JUBILUT, Liliana Lyra. A “responsabilidade de proteger” é uma mudança real para as intervenções humanitárias?. Disponível em: <http://www.cedin.com.br/revistaeletronica/artigos/liliana%20jubilut%20dih.pdf> Acesso em: 11 de outubro de 2008. p. 1. 296 Ibidem. p. 2/3.

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3.3 A PROPOSTA PARA A CONTROVÉRSIA ENTRE INTERVENÇÃO E SOBERANIA SOB A ÓTICA DO RELATÓRIO DO ICISS

Na seqüência dos massacres de civis em Ruanda e Srebrenica, que se constituíram em

atos violadores de direitos humanos e de consagrados princípios do Direito Internacional

Humanitário, o então Secretário Geral da ONU, Kofi Annan, lançou uma reflexão à comunidade

internacional sobre as perspectivas para a segurança humana e as falhas do Conselho de

Segurança em agir a tempo em determinados casos. Solicitou, então, que os Estados-membros

buscassem um consenso sobre como preservar os princípios estabelecidos na Carta da ONU e

agir em defesa dos direitos humanos. Em resposta ao desafio proposto pelo Secretário Geral, e

financiada pelo governo do Canadá e um grupo de importantes fundações privadas, a Comissão

Internacional sobre Intervenção e Soberania Estatal (ICISS em inglês) foi formada para examinar

em profundidade as questões legais, morais e políticas que envolvem as intervenções com

propósitos humanitários297.

Os estudos, pesquisas, mesas redondas e seminários ao redor do mundo, levados a cabo

pela comissão constituída por destacados membros da comunidade acadêmica, do mundo

diplomático, da política e da sociedade civil, resultaram num minucioso relatório, editado em

dezembro de 2001 sob o título “A responsabilidade de proteger”298.

O relatório do ICISS é uma tentativa de abordar as intervenções de caráter humanitário,

sob os conceitos antagônicos de intervenção e soberania. A questão de quando, onde e por quem

devem ser empreendidas e mesmo se nunca devem ser utilizadas - mormente as ações coercitivas

militares - são analisadas neste documento em razão da necessidade de proteger pessoas em risco

dentro de um Estado. A intervenção em determinados casos, como já ressaltado, ficou mais

evidente em decorrência dos acontecimentos pós-Guerra Fria, quando se tornou uma solução

ainda mais controversa. Desde então, muitos apelos para que a intervenção se realize têm

ocorrido. Em muitas delas, como já visto, verificou-se um envolvimento eficaz da comunidade

internacional, em outras; entretanto, percebeu-se a sua paralisia. De qualquer forma, continua a

297 Cf. ANJOS, Alberico Teixeira dos. Op. Cit. p. 174. 298 Ibidem. p. 175.

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existir divergência quanto à possibilidade do reconhecimento de um direito à intervenção, bem

como, quando, onde e como esse direito deve ser exercido e sob a autoridade de quem299.

O documento em análise foi aprovado por unanimidade e o seu tema central se reflete em

seu título “A responsabilidade de proteger”, que nos remete à idéia de que os Estados soberanos

têm a responsabilidade de proteger seus cidadãos e evitar que verdadeiras catástrofes

provenientes de conflitos civis, como homicídios em massa, estupros, fome, etc; instalem-se em

seu território. Também evidencia que quando os países se mostrarem relutantes ou incapazes de

realizar a referida proteção, essa responsabilidade deve ser suportada pela comunidade

internacional. Em síntese, o relatório analisa o princípio da soberania e, conseqüentemente, a não-

intervenção; os fundamentos e elementos da responsabilidade de proteger; estabelece prioridades

e delineia os princípios que devem nortear uma ação militar com propósitos humanitários300.

O relatório reconhece que o elevado número de crises humanitárias de graves dimensões

que se verifica no cenário atual impede uma resposta eficaz da comunidade internacional para

cada caso. Além disso, ainda há situações em que a ação internacional é impedida devido à

oposição de algum membro permanente no Conselho de Segurança, mas isso não deve justificar

uma inação nos casos em que respostas eficazes são possíveis. Para tanto, relembra que após os

acontecimentos da Guerra Fria, existe uma perspectiva por parte da sociedade internacional que

vislumbra a possibilidade de ação por parte do Conselho de Segurança diante de graves e

persistentes violações de direitos humanos, uma vez que apesar de alguns contratempos, a

capacidade de ação do referido órgão foi muitas vezes considerada decisiva para a resolução dos

conflitos ocorridos na década de 1990301.

Ademais, as inovações tecnológicas que permitem a visualização do sofrimento humano

em qualquer lugar do Mundo, têm exercido significativa pressão sobre os governos no sentido de

proteger direitos humanos. A globalização ocasionou um estreitamento nos laços entre os países

em todos os níveis, principalmente, pela intensificação da interdependência econômica, o que

acentuou a idéia de cooperação multilateral. Esse contexto logicamente interfere no debate das

intervenções humanitárias, pois se verifica que os Estados estão positivamente empenhados tanto

no sentido de promover os direitos humanos, quanto na prevenção da violação desses direitos e,

299 Cf. COMISSÃO INTERNACIONAL SOBRE INTERVENÇÃO E SOBERANIA ESTATAL. A responsabilidade de proteger: Relatório do ICISS. Disponível em: <http://www.iciss.ca/pdf/Commission-Report.pdf> Acesso em: 15 de outubro de 2008. p. VII. 300 Ibidem. 301 Ibidem. p. 6.

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em muitos casos, os próprios países apelam por uma intervenção em situações que fugiram do

seu controle302. Essa última afirmação é contestável, uma vez que ainda se observa políticas de

perseguição e eliminação étnica, política e religiosa em vários países do Mundo. Entretanto,

pode-se afirmar que a intenção dos redatores do relatório é reforçar a idéia de soberania como

responsabilidade, numa visão que reúne uma posição majoritária acerca do reconhecimento da

importância de se proteger direitos humanos para se alcançar a paz. Esse posicionamento também

visa ressaltar a noção de solidariedade entre os Estados, proporcionada pelo advento da

globalização. Deste modo, a Comissão acredita que hodiernamente, diante do estreitamento dos

laços entres os países, não há por que a comunidade internacional permanecer estática diante de

graves violações dos direitos humanos.

Quanto às implicações para o princípio da soberania, o relatório explicita que num mundo

em que as ameaças à paz são constantes, marcado pelas esmagadoras desigualdades de poder e

recursos, a soberania consiste, para muitos Estados na sua melhor ou única linha de defesa. Neste

sentido, ela é mais do que apenas um princípio funcional das relações internacionais. Para muitos

Estados e povos é também um reconhecimento da sua dignidade e igualdade no plano

internacional, uma proteção das suas identidades e uma afirmação do seu direito de moldar e

determinar seu próprio destino. Em reconhecimento desse fato é que a disposição do art. 2º, §1º

da Carta da ONU expressamente dispõe que todos os Estados são igualmente soberanos no

âmbito do Direito Internacional303.

No entanto, por todas as razões aqui já mencionadas, as condições em que a soberania é

exercida – e é praticada a intervenção – mudaram drasticamente desde a adoção da Carta. Muitos

novos Estados surgiram e ainda se encontram em processo de consolidação da sua identidade. A

evolução do Direito Internacional tem estabelecido muitos constrangimentos sobre aquilo que os

Estados podem fazer ou deixar de fazer dentro das suas fronteiras. Ademais, o conceito

emergente de segurança humana tem criado outras demandas e expectativas em relação à forma

como os Estados tratam os seus próprios cidadãos. Neste sentido, a defesa da soberania estatal,

mesmo pelos seus adeptos mais fervorosos, não inclui qualquer reivindicação de poder ilimitado

que permita ao Estado fazer o que bem entender do seu povo. A Comissão não ouviu tal disparate

em qualquer das suas consultas a nível mundial. Deste modo, reconhece-se que soberania implica

302 Cf. COMISSÃO INTERNACIONAL SOBRE INTERVENÇÃO E SOBERANIA ESTATAL. Op. Cit. p. 6/7. 303 Ibidem. p. 7.

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dupla responsabilidade: no exterior, os Estados devem respeitar a soberania dos outros e

internamente, devem respeitar a dignidade e os direitos fundamentais de todas as pessoas sujeitas

ao seu território. Esta moderna compreensão do significado de soberania é de fundamental

importância para a abordagem da Comissão sobre a questão da intervenção humanitária, uma vez

que; em termos de segurança, uma convivência coesa e pacífica no sistema internacional só pode

ser alcançada por intermédio da cooperação efetiva de Estados fortes e confiantes do seu lugar no

Mundo e não em ambientes fragmentados, cujas entidades estatais geralmente são caóticas304.

A Comissão ressalta que as normas internacionais de conduta dos Estados na defesa e

promoção dos direitos humanos fazem parte da agenda internacional e se constituem na grande

conquista contemporânea. Expressão disso é o artigo 1º, §3º da Carta da ONU, em conjunto com

a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) e os dois pactos de 1966, sobre os direitos

civis e políticos e os direitos sociais e econômicos, os quais representam o consenso político e

jurídico dos direitos humanos como princípio fundamental das relações internacionais. Eles são

marcos importantes e indispensáveis na transição de uma cultura de violência para uma

esclarecida cultura de paz e corroboram com a idéia de soberania como responsabilização

nacional e internacional. Desta forma, avança-se rumo a uma noção de justiça universal, ou sem

fronteiras, e o mesmo se passa com o processo de responsabilização dos Estados. Vários

tribunais internacionais já foram especialmente criados para lidar com crimes contra a

humanidade e, aliados a certo número de tratados e às convenções de Genebra, permitem que

quaisquer Estados-partes acusados do crime em questão sejam julgados a sério. O significado

desse desenvolvimento no estabelecimento de novos padrões de comportamento e os novos

meios de fazer respeitar as normas relativas aos direitos humanos é inquestionável, mas a chave

para a eficaz observância dos referidos direitos continua a ser, como sempre o foi, a legislação e a

prática nacionais. A aplicação da lei é, sem dúvida, melhor conduzida pelos sistemas judiciais dos

Estados soberanos, os quais devem ser independentes, profissionais e devidamente aparelhados.

É apenas quando os sistemas nacionais de justiça sejam omissos para julgar crimes contra a

humanidade que a jurisdição universal e outras opções internacionais devem entrar em jogo305.

O termo “segurança humana” significa não só a segurança física das pessoas, mas o seu

bem-estar social e econômico, o respeito pela sua dignidade e pelo seu valor como seres

304 Cf. COMISSÃO INTERNACIONAL SOBRE INTERVENÇÃO E SOBERANIA ESTATAL. Op. Cit. p. 7/8. 305 Ibidem. p. 14.

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humanos. Isso inclui naturalmente a proteção dos seus direitos humanos e liberdades

fundamentais e, assim sendo, o conceito de segurança internacional obviamente deve incluir as

pessoas. A Comissão acredita que as questões de soberania e intervenção não são apenas assuntos

que afetam os direitos ou prerrogativas dos Estados, mas afetam profundamente e envolvem seres

humanos e seus direitos essenciais. Desta forma, a responsabilidade de proteger incide sobre as

necessidades humanas das pessoas que clamam por proteção ou assistência e altera o foco da

controvérsia entre soberania e não-intervenção para a necessidade do desenvolvimento humano.

A partir desse enfoque, a segurança dos cidadãos contra ameaças à vida, à saúde, à subsistência, à

segurança pessoal e dignidade humana pode ser posta em risco por uma agressão externa, mas

também, e principalmente, por fatores gerados dentro do país. É fato que alguns governos gastam

mais em armamentos para se proteger de uma agressão externa do que para proteger seus

próprios cidadãos. O resultado disso é a incapacidade de proteger as pessoas da fome, doenças,

abrigos inadequados, criminalidade, desemprego, conflitos sociais e ambientais. Além disso,

quando a violação dos direitos humanos é utilizada como instrumento de guerra e de limpeza

étnica, quando milhares de pessoas são mortas por catástrofes naturais ou quando os cidadãos são

mortos pelas próprias forças de segurança de um Estado, é insuficiente pensar apenas na

segurança nacional no seu sentido tradicional – defesa de territórios ou segurança por si só –, pois

somente o conceito de segurança humana pode abarcar essas diferentes circunstâncias306.

Embora ainda não exista uma base suficientemente sólida para reivindicar a intervenção

humanitária como um novo princípio consuetudinário do Direito Internacional, a prática do

Conselho de Segurança na matéria pode ser adequadamente designada como a emergente

responsabilidade de proteger. A intervenção com propósitos humanitários, dentro dessa

perspectiva, pode ser utilizada em casos extremos, quando se verificar a ação ou omissão dos

países envolvidos e a competência para tanto deve recair sobre o Conselho de Segurança, que

deve tomar as medidas de execução nos termos do capítulo VII da Carta. Com base na leitura da

prática do referido órgão, a Comissão acredita que normas foram estabelecidas no sentido de

fazer evoluir o Direito Internacional consuetudinário na matéria e, muito embora a Carta

contenha fortes disposições contra as intervenções humanitárias, essas normas não podem ser

consideradas absolutas quando for necessária uma ação decisiva em defesa dos direitos humanos.

Todavia, o grau de legitimidade conferido à intervenção deve, necessariamente, passar pelo

306 Cf. COMISSÃO INTERNACIONAL SOBRE INTERVENÇÃO E SOBERANIA ESTATAL. Op. Cit. p. 15.

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exame dos seus efeitos, os meios, o esgotamento das vias pacíficas de composição e a

proporcionalidade da ação307.

A Comissão é da opinião que o debate sobre intervenção humanitária não deve centrar-se

no pretenso “direito de intervir”, mas na “responsabilidade para proteger”. Essa proposta além de

representar uma mudança de perspectiva, acrescenta outras questões suplementares ao referido

debate. Em primeiro lugar, a responsabilidade de proteger implica uma avaliação do ponto de

vista das pessoas que efetivamente necessitam de apoio. Em segundo lugar, a aludida

responsabilidade pertence primeiramente ao Estado e apenas se este for incapaz, não querer ou

não poder cumprir essa tarefa, é que ela passará para a comunidade internacional. Terceiro, a

responsabilidade de proteger não significa apenas a “responsabilidade de reagir”, mas a de

prevenir e reconstruir. Ela direciona a atenção para a análise dos resultados de uma ação versus

inação e fornece conceitos operacionais e normativos que estabelecem a ligação entre a

assistência, intervenção e reconstrução. É importante destacar que uma intervenção

necessariamente deve envolver uma ampla variedade de ações, que devem incluir a curto e a

longo prazo, medidas que visem não só minorar os efeitos de uma crise humanitária, mas

prevenir que situações que ponham em risco a segurança humana voltem a ocorrer e, para tanto, é

fundamental a reconstrução dos países envolvidos308.

A responsabilidade de prevenir é de extrema importância, inclusive para evitar a

ocorrência de uma crise e abrange esforços políticos, diplomáticos, econômicos, jurídicos e

militares. Estes instrumentos, em cada caso, podem assumir a forma de assistência direta e

positiva, bem como, instigar os países a resolver seus conflitos de forma pacífica. Nos casos em

que os Estados se mostrarem relutantes, as sanções econômicas, a suspensão de relações

diplomáticas e a ameaça da utilização da força militar também podem trazer resultados positivos.

De todo o modo, a intervenção só deve ser considerada quando a prevenção por qualquer motivo

falhar e a melhor maneira de evitar que isso ocorra é a colaboração dos Estados devido a sua

responsabilidade de proteger309.

A seu turno, a responsabilidade de reagir implica esforços para tornar as sanções mais

eficazes do ponto de vista da diminuição do impacto sobre os civis inocentes. Na área militar, os

embargos de armas e a efetiva vigilância do seu cumprimento é um importante instrumento do

307 Cf. COMISSÃO INTERNACIONAL SOBRE INTERVENÇÃO E SOBERANIA ESTATAL. Op. Cit. p. 16. 308 Ibidem. p. 17/18. 309 Ibidem. p. 24/25.

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Conselho de Segurança para evitar que o conflito se inicie ou mesmo para proporcionar a sua

mitigação. Na área econômica, as sanções financeiras, como o congelamento de recursos no

exterior e a restrição de certas atividades que geram renda, como o petróleo, diamantes,

exploração florestal e comércio de drogas também são de extrema importância, uma vez que

essas atividades e seus lucros, bem como os das aplicações financeiras, muitas vezes são apenas

um meio para iniciar ou manter um conflito e, em muitos casos são a própria razão da sua

existência. As referidas restrições, entretanto, devem ser utilizadas com parcimônia, uma vez que

podem causar impactos devastadores sobre a população civil e a economia local. Na área política

e diplomática, restrições à representação diplomática e a expulsão do pessoal diplomático são

medidas úteis e relevantes para impedir que as operações ilícitas de venda de drogas, diamantes

extraídos ilegalmente, etc; sejam realizadas em outros países em desrespeito às sanções

econômicas. A suspensão das relações diplomáticas, da cooperação ou do apoio financeiro

também pode se mostrar eficaz para encerrar ou impedir um conflito. Somente em casos

excepcionais e extremos é que a responsabilidade de reagir pode implicar a necessidade de

recorrer à ação militar. Nesta situação, a Comissão acredita que alguns critérios devem ser

analisados e respeitados, tais como quem tem a autoridade para intervir, a justa causa, a reta

intenção, os meios razoáveis e proporcionais, mas principalmente que a ação militar seja o último

recurso310.

Segundo a Comissão, quem detém autoridade para resolver questões de paz e segurança

internacionais é as Nações Unidas, uma vez que a comunidade internacional lhe conferiu esses

poderes. A ONU, juntamente com o Conselho de Segurança, consiste no cerne do sistema

internacional de aplicação da lei e é a única organização que foi universalmente aceita para

validar e empreender ações militares. E é ela quem decide, em última instância, o que pertence ou

não ao domínio reservado dos Estados311.

Na esfera da ação militar, a ONU impõe a obrigação a todos os seus membros de se

absterem da utilização de uma intervenção unilateral em favor da coletiva, devidamente

autorizada pela Organização, que é quem mantém a prerrogativa de recorrer à força. Muito

embora haja vários motivos para se contestar a autoridade do Conselho de Segurança, a Comissão

não tem dúvidas de que a via mais apropriada para decidir sobre uma intervenção humanitária

310 Cf. COMISSÃO INTERNACIONAL SOBRE INTERVENÇÃO E SOBERANIA ESTATAL. Op. Cit. p. 30/32. 311 Ibidem. p. 32.

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pertence a esse órgão. Não só pelo poder que lhe conferiu a Carta, mas principalmente, devido

aos resultados das suas pesquisas ao redor do Mundo. É no âmbito do Conselho de Segurança que

deve ser tomada a decisão de intervir para que seja possível uma mobilização eficaz de captação

de recursos para resgatar populações em risco; o consenso da comunidade internacional sobre

essa questão não consiste em encontrar alternativas para o órgão, mas fazê-lo funcionar melhor

do que tem funcionado. Para tanto, é necessário que todas as propostas de intervenção militar

sejam formalmente submetidas à apreciação do Conselho antes de serem levadas a cabo. O órgão

também pode levantar essa questão sob iniciativa própria ou quando houver solicitação do

Secretário Geral, nos termos do artigo 99 da Carta. De todo o modo, o Conselho de Segurança

deve agir rapidamente diante de qualquer pedido de intervenção e efetivamente intervir quando

há alegações de perdas de vidas humanas em grande escala, e mesmo neste contexto, deve

realizar uma verificação prévia e adequada dos fatos e condições em que ocorrerá a ação militar.

Quanto à paralisia do órgão devido ao poder de veto dos seus membros permanentes, a Comissão

apóia a proposta de um “código de conduta” a ser observado para que a utilização do poder de

veto não ponha em risco as necessidades humanas. A idéia é de que um membro permanente não

poderia se utilizar do seu poder de veto quando os seus interesses nacionais não estiverem

diretamente envolvidos. A adoção de um modo mais formal e mutuamente acordado a ser

aplicado na sua prática também pode conferir grande eficácia às ações empreendidas pelo

órgão312.

A Comissão considera que as derrogações ao princípio da não-intervenção deverão ser

limitadas e assim, a intervenção militar com propósitos humanitários deve ser considerada uma

medida extraordinária e excepcional para que possa ser justificada. Deve existir ou ser iminente

um prejuízo grave e irreparável a seres humanos e o critério basilar para tanto, é a justa causa

para a ação, que na opinião da Comissão ocorre nos casos em que há receio ou efetiva perda de

vidas humanas em grande escala, limpezas étnicas, expulsão forçada, atos de terror ou violações

persistentes das liberdades fundamentais dos cidadãos, ações genocidas perpetradas ou não pelos

próprios Estados e negligência ou incapacidade destes para agir. Caso o Conselho de Segurança

verificar quaisquer dessas condições, a justa causa para intervir é amplamente satisfeita. Mesmo

neste caso, a obtenção de informações exatas a respeito da situação é essencial. A Comissão

ressalta que o ideal seria haver um relatório, elaborado por uma fonte não-governamental

312 Cf. COMISSÃO INTERNACIONAL SOBRE INTERVENÇÃO E SOBERANIA ESTATAL. Op. Cit. p. 49/51.

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imparcial, como por exemplo, a Cruz Vermelha, que descrevesse a gravidade da situação e a

incapacidade do Estado em questão para geri-la de forma satisfatória. Esta espécie de prova

colocaria a contento o critério da justa causa, pois não deixaria margem de dúvidas quanto à

legitimidade da utilização da força por questões humanitárias313.

Entretanto, para que a decisão de intervenção militar seja plenamente justificada ainda há

que cumprir alguns critérios, como o da reta intenção que exige que o principal motivo da

intervenção seja altruístico, mesmo que haja outros interesses egoísticos, sendo ilegítimas as

intervenções com objetivos escusos ou que venham a piorar os efeitos da crise que se pretende

corrigir ou evitar. O critério do último recurso que preconiza que as tentativas de resolução

pacífica devem ter sido completamente esgotadas. A proporcionalidade, que implica planejar a

dimensão, duração e intensidade da intervenção militar, uma vez que os meios devem ser

proporcionais aos fins almejados e, portanto, o efeito sobre o sistema político do país em causa

deva ser limitado ao que seja estritamente necessário para cumprir o objetivo da intervenção. E

por último, mas não menos importante, deve-se proceder à análise da probabilidade razoável de

êxito da operação, isto é, a intervenção militar não é justificável se a efetiva proteção não pode

ser alcançada ou se as conseqüências pós-intervenção possam ser piores do que se não tivesse

ocorrido314.

A responsabilidade de proteger ainda inclui a de reconstruir os países envolvidos, na fase

subseqüente aos conflitos. São ações que visam consolidar a paz e evitar a reincidência de novos

confrontos armados. A construção da paz exige o envolvimento da ONU na criação ou reforço

das instituições nacionais, acompanhamento de eleições livres e diretas, conscientização acerca

da importância dos direitos humanos e liberdades fundamentais, criação, reinserção ou

reabilitação de políticas públicas e a criação de condições para a retomada do desenvolvimento. É

fato que as sociedades emergidas de conflitos têm necessidades especiais. Neste sentido, o

envolvimento da ONU é fundamental na medida em que pode auxiliar na mobilização

internacional para a captação dos recursos necessários para a reconstrução e recuperação

econômica dos países afetados. As autoridades que intervieram em determinado território têm a

particular responsabilidade de gerenciar a execução de projetos de forma harmoniosa e tão rápido

quanto possível, deixá-los a cargo das lideranças locais. A intervenção deve proporcionar um

313 Cf. COMISSÃO INTERNACIONAL SOBRE INTERVENÇÃO E SOBERANIA ESTATAL. Op. Cit. p. 32/35. 314 Ibidem. p. 35/37.

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reforço positivo e, em assim sendo, deve estimular novas atividades que gerem renda,

implementar compromissos sociais e econômicos, e projetos de reintegração à sociedade

internacional. Quanto mais cedo os combatentes desmobilizados estiverem conscientes de novas

opções e oportunidades para o seu futuro e os civis acreditarem que são livres, possuem direitos e

estão em segurança, mais positiva será a resposta em relação à construção de uma paz

duradoura315.

O relatório analisado esclarece que, de modo geral, a doutrina da responsabilidade para

proteger deve ser entendida sob a égide dos seguintes princípios: a operação militar com

propósitos humanitários deve ser baseada em objetivos políticos bem definidos expressos num

mandato claro e inequívoco, congruentes com os recursos e as regras explicitadas no documento

para que possam ser empenhadas; deve ser conduzida por militares bem treinados sob a

vigilância de um comandante com autoridade suficiente para comandar dentro da finalidade a que

a intervenção se propõe e que disponha de recursos suficientes para executar a sua missão; a ação

militar deve ocorrer com limitações à utilização da força no sentido único de proteger seres

humanos; o desenrolar da operação deve garantir a máxima proteção da população civil; a estrita

observância do Direito Internacional Humanitário deve ser assegurada; as forças de intervenção

não devem ter outra prioridade a não ser as estritamente estabelecidas no mandato da missão e

devem buscar a coordenação entre as atividades militares, as autoridades civis e as organizações

de socorro humanitário316.

Por fim, a Comissão solicita o estabelecimento de uma “doutrina de operações para a

proteção humana” no âmbito da ONU, e solicita ao Secretário Geral que inicie o seu

desenvolvimento. Recomenda à Assembléia Geral que adote uma resolução que disponha sobre

os princípios básicos da responsabilidade de proteger e instigue os Estados a cumpri-la. Ao

Conselho de Segurança, sugere que este procure estabelecer um acordo, mormente entre os seus

membros permanentes, para que estes não se utilizem do poder de veto abusivamente e para que

todos os Estados cumpram os princípios enunciados pelo relatório, antes de se lançarem a uma

intervenção militar, e que os governos, conscientes da sua responsabilidade primária de proteger,

clamem por uma intervenção quando esta for necessária317.

315 Cf. COMISSÃO INTERNACIONAL SOBRE INTERVENÇÃO E SOBERANIA ESTATAL. Op. Cit. p. 40/43. 316 Ibidem. p. 67. 317 Ibidem. p. 74/75.

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Como resultado, o relatório analisado certamente inspirou uma nova doutrina – “a

responsabilidade de proteger” – que não foi somente proposta, mas também adotada pela

Assembléia Geral por meio da Resolução 60/1, de 24 de outubro de 2005. Esta aprovação

significa que a doutrina em questão foi reconhecida tanto na sua legalidade, dado que a ONU é a

guardiã da utilização da força e da manutenção da paz e segurança internacionais, quanto na sua

legitimidade, pois a ONU é a mais importante Organização internacional com representação

universal e, dentro dela, a Assembléia Geral é o seu órgão mais representativo, uma vez que cada

Estado-membro possui o direito de voto. Essa adoção é relevante na medida em que deixa claro

que a comunidade internacional enxerga o tema das intervenções com propósitos humanitários

como uma necessidade em alguns casos; tenta diminuir a distância, de um lado, das necessidades

e preocupações efetivamente sentidas de como elas são vistas, e por outro lado, tenta codificar os

instrumentos e modos de gerir a ordem mundial ao instigar os Estados a se comportarem de

acordo com o que foi articulado na Carta da ONU, e evidencia a vontade da comunidade

internacional para agir, inclusive com a utilização da força, quando a proteção dos direitos

humanos assim o exigir. A “responsabilidade de proteger”, portanto, apresenta-se como uma

mudança significativa no cenário internacional, que trará benefícios a longo prazo, uma vez que

as alterações que essa nova doutrina propõe, como visto, são mais profundas do que simples

alterações de regras, e portanto, precisam de tempo para ser assimilada pelos Estados e, por

conseguinte, pela prática internacional318.

318 Cf. JUBILUT, Liliana Lyra. Op. Cit. p.32/33.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O movimento de internacionalização dos direitos humanos é recente na história da

humanidade e surge a partir do pós-Segunda Guerra Mundial como resposta às atrocidades

cometidas, principalmente, durante o nazismo. A destruição e os horrores cometidos pelos

nazistas e fascistas foram a mola propulsora para a idéia de incorporar, no âmbito internacional, a

concepção de que existem direitos fundamentais do homem que devem ser universais e, desta

forma, protegidos não só pelos Estados, mas também pelo ordenamento internacional. A Carta da

ONU, em conjunto com a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 e os dois pactos

de 1966 sobre direitos civis e políticos e direitos sociais e econômicos, entre outros documentos

internacionais, atestam o consenso político e jurídico dos direitos humanos como princípio

fundamental das relações internacionais. Esses documentos introduziram a idéia hodierna de

direitos humanos caracterizada pelo reconhecimento de que todo ser humano, pelo fato de ser

humano, é sujeito de direitos fundamentais que a sociedade e o Estado não podem ferir, nem

despojar. Estes direitos, portanto, não dependem do reconhecimento do Estado em seu direito

positivo, tampouco da nacionalidade ou da cultura à qual o indivíduo pertence. São direitos

universais resultantes do progresso histórico e material da humanidade, que nasceram de forma

gradual, fruto das lutas pela conquista da liberdade diante de poderes opressores e arbitrários e

das grandes transformações políticas, econômicas e culturais que se operaram nas sociedades em

todos os lugares do Mundo.

É inegável que a criação da ONU demarca o surgimento de uma nova ordem internacional na

medida em que instaura um novo modelo de conduta nas relações internacionais e introduz

preocupações que abrangem a manutenção da paz e segurança internacionais, o desenvolvimento

de relações amistosas entre os países, o alcance da cooperação internacional nos planos

econômico, social e cultural; a proteção do meio ambiente e dos direitos humanos. A sua Carta

constitutiva reúne todos os requisitos que permitem inferir tratar-se de uma Constituição

internacional, uma vez que todos os Estados, sendo membros ou não, devem respeitar suas

normas e cooperar para a efetiva realização dos seus propósitos.

Neste sentido, fortalece-se, a idéia de que a proteção dos direitos humanos não deve se limitar

ao domínio reservado dos Estados, visto que, a promoção e defesa destes direitos é um dos

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principais propósitos da ONU e, portanto, tema de grande relevância e legítimo interesse da

comunidade internacional. A conseqüência disso é, obrigatoriamente, a revisão dos princípios

fortalecedores da soberania estatal, tais como o da não-intervenção, e, conseqüentemente, o

domínio reservado dos Estados, bem como, o da proibição da utilização da força para a resolução

de controvérsias. Essa revisão é necessária diante da ordem instaurada pela Carta da ONU, que

preconiza a dignidade da pessoa humana. Por conseguinte, a comunidade internacional não deve

assistir passivamente à violação dos direitos humanos dentro de um território, em respeito aos

referidos princípios, pois é fato que princípios éticos, políticos e jurídicos, norteadores do

respeito aos direitos humanos e muito superiores à soberania estatal, devem derrogar, em

situações específicas, os princípios que a reforçam, para que seja possível uma participação

efetiva da comunidade internacional no auxílio das populações, cujas liberdades e direitos

fundamentais são ceifados de maneira inaceitável dentro de determinado território. Neste sentido,

a análise da legalidade e legitimidade das intervenções humanitárias necessariamente deve passar

pelo exame detalhado dos princípios e propósitos estabelecidos na Carta, bem como do

comportamento da comunidade internacional desde a sua adoção.

O princípio da não-intervenção (art. 2º, §7º), inicialmente, foi amplamente defendido pelos

países de Terceiro Mundo e recém-descolonizados, uma vez que a história destes países nos

mostra que, anteriormente à ordem internacional instaurada pela Carta, eles foram muito

prejudicados pelas intervenções arbitrárias e motivadas, principalmente por interesses

econômicos, realizadas pelas grandes potências da época. É um princípio que, juntamente com o

princípio da resolução pacífica de controvérsias (art. 2º, §4º), impede que os países mais ricos ou

poderosos, sob a alegação de qualquer interesse, atentem contra a autonomia estatal e à liberdade

e independência das nações.

Entretanto, a dinâmica do cenário internacional evidenciou que diante das complexidades que

se apresentaram no mundo pós-Segunda Guerra Mundial, os Estados não eram absolutamente

capazes de abordar por si questões que impunham diálogo e concerto em escala universal. Além

disso, os mesmos países que tão ferrenhamente reivindicavam o direito de não-intervenção não

possuíam ainda uma identidade bem definida, ou mesmo a autonomia econômica necessária para

lidar com certas questões, mormente a deterioração dos direitos humanos dentro de suas

fronteiras, devido as suas próprias deficiências. O entendimento tradicional de que as relações

internacionais deveriam se pautar por regras derivadas somente da vontade dos Estados foi

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suplantado pela criação da ONU, que buscou erigir um sistema de cooperação e subordinação e

não de mera coordenação e coexistência. Conseqüentemente, os Estados devem trabalhar e

cooperar para que esta nova ordem não seja inócua no plano internacional e, portanto, abdicam de

parcela de sua soberania, ou seja, deixam de ser inteiramente livres, para se submeter a uma

organização internacional que foi criada por eles mesmos para regular e observar suas condutas.

De modo que eles se tornam sujeitos não só de direitos, mas principalmente de deveres, que

devem ser cumpridos em atendimento às regras dispostas na Carta constitutiva dessa organização,

que in casu, é a ONU.

Este documento, por sua vez, visa evitar o flagelo da guerra e, por conseguinte, não só a sua

destruição material, mas principalmente a deterioração dos direitos humanos. Desta forma, as

suas disposições que fortalecem a soberania ou o respeito à livre vontade dos Estados, não podem

ser consideradas absolutas diante de graves violações de direitos humanos ou ameaças à paz e

segurança internacionais, uma vez que, mais importante do que países seguros da gestão dos seus

negócios internos, sem qualquer interferência externa, está o desejo de paz almejado por todos. E

é certo que grupos ou etnias que têm seus direitos mais básicos violados são capazes de fomentar

conflitos que podem abalar a paz e a segurança internacionais. Assim, a barreira proposta pelo

princípio da não-intervenção, tende a ceder frente à constatação da existência de ameaça contra a

paz, ruptura da paz ou ato de agressão, os quais se constituem situações em que as Nações

Unidas, por meio da atuação do Conselho de Segurança, poderão empreender ações, armadas

inclusive, - uma vez que a proibição da utilização da força para a resolução de controvérsias não

vincula a ONU, mas somente seus Estados-membros – em conformidade com o capítulo VII da

Carta, a fim de manter ou restabelecer a paz internacional.

A comunidade internacional muito cedo reconheceu que este princípio não deve ser

considerado absoluto em casos de graves violações dos direitos humanos. Na Resolução nº 2.625

que consagrou a Declaração sobre relações amistosas adotada pela Assembléia Geral, em 1970, a

qual reflete a prática dos Estados em relação aos princípios estabelecidos na Carta desde a sua

adoção até aquela época, já expressa claramente a preocupação com a defesa e promoção dos

direitos humanos. A resolução em comento ventilou que atos como genocídio, crimes contra a

humanidade, denegação do direito de autodeterminação dos povos ou atos cometidos em violação

aos acordos internacionais não pertencem ao domínio reservado dos Estados. E, em assim sendo,

a proteção conferida aos Estados pelo art. 2º, §7º, não pode permitir que um país viole os direitos

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mais fundamentais dos seus cidadãos sem que estas violações não se tornem legítima

preocupação da comunidade internacional.

A seu turno, a Corte Internacional de Justiça ao julgar o Caso Nicarágua, em 1984, também

expressou sua preocupação com a degradação dos direitos humanos dentro das fronteiras estatais

e ressaltou que o fornecimento de uma ajuda estritamente humanitária não poderia ser

considerada contrária ao Direito Internacional. Assegurou ainda, que uma intervenção é lícita

quando tem por único escopo a concessão de uma ajuda humanitária não discriminatória.

Na realidade, o propósito do art. 2º, §7º não é outro senão salvaguardar a soberania interna

dos Estados, isto é, proteger as competências exclusivas para exercer a autoridade estatal dentro

de suas fronteiras. Entretanto, como já aventado, a proteção dos direitos fundamentais dos

indivíduos não pode ser considerada matéria pertencente ao domínio reservado dos Estados e este

reconhecimento também se reforça pela Declaração de 1970 e o julgamento da Corte

Internacional de Justiça para o caso Nicarágua, nos quais, fortaleceu-se a concepção de que

somente as questões relativas à escolha do sistema político, econômico, social, cultural e a

formação das relações externas é que são matérias pertencentes exclusivamente ao domínio

reservado dos Estados. Portanto, a obrigação destes em assegurar e proteger direitos humanos é

legítima preocupação internacional decorrente do reconhecimento da dignidade da pessoa

humana pela Carta da ONU. Desta forma, nenhum Estado poderá esquivar-se da

responsabilização internacional pela violação dos direitos em comento, sob o pretexto de que esta

matéria é essencialmente de sua jurisdição interna. É fato que a obrigação de respeitá-los,

protegê-los e assegurá-los pertence primeiramente aos Estados, todavia, quando este se mostrar

incapaz de fazê-lo, seja por sua ação ou omissão, a comunidade internacional é quem deve

assumir a incumbência de instaurar um ambiente pacífico e seguro, que possibilite um mínimo

padrão humanitário.

Uma vez que os direitos humanos não fazem parte do domínio reservado dos Estados, a

presunção de ilegalidade das intervenções humanitárias não poderia decorrer da alegação de que

são atos que violam a soberania estatal. Com efeito, o direito/dever de intervenção, fora dos

mecanismos da ONU não encontra respaldo legal devido à proscrição da força pelo art. 2º, §4º da

Carta. Assim, somente a ONU poderá intervir, inclusive com a utilização da força militar,

amparada pelo comando do Capítulo VII da Carta, nos casos em que a violação dos direitos

humanos for considerada pelo Conselho de Segurança uma real ameaça à paz e segurança

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internacionais. É a única situação em que o domínio reservado dos Estados pode ser relegado de

forma legal. Desta forma, o princípio da não-intervenção é limitado pela competência do

Conselho de Segurança em definir o que consiste ameaça à paz e segurança internacionais, e esta

é limitada pelo referido princípio. A resposta a esta incongruência se resume, portanto, à

interpretação que o próprio Conselho conferir a sua competência para a manutenção da paz e

segurança internacionais. É importante destacar, ademais, que a proteção dos direitos humanos é

um dos pilares do sistema de segurança coletiva erigido pela Carta da ONU e, dentro dessa

perspectiva, o Conselho de Segurança é o titular do direito de utilizar medidas coercitivas para

restabelecer a estabilidade internacional.

O período da Guerra Fria certamente trouxe conseqüências mais nefastas à humanidade do

que as próprias Guerras Mundiais. A corrida armamentista e a luta pelo estabelecimento

ideológico sustentado por um lado pelos EUA e por outro pela antiga União Soviética, foi capaz

de fomentar conflitos e perseguições étnicas, políticas e religiosas dentro das fronteiras estatais,

jamais imaginadas pelos redatores da Carta da ONU. Neste período, verifica-se que o sistema de

segurança coletiva restou praticamente paralisado, uma vez que qualquer ação empreendida pelas

Nações Unidas eram vetadas ou pelos EUA ou pela União Soviética no Conselho de Segurança.

Com o seu término, e, conseqüentemente, a cessação do apoio das grandes potências aos

Estados em que se almejava conquistar a hegemonia das idéias americanas ou russas, o que,

logicamente representava um certo controle destes países sobre os outros, emergem acirradas

disputas pelo poder dentro das fronteiras estatais. É a partir deste momento, até pela indireta

responsabilidade por esses acontecimentos, que as grandes potências conseguem estabelecer um

consenso mínimo no Conselho de Segurança, no qual, percebe-se a aceitação da primazia da

proteção dos direitos humanos e a concordância de que o sofrimento humano e a segurança

internacional são assuntos intimamente ligados e correlatos ao sistema de segurança coletiva da

ONU. É óbvio que esta correlação não foi motivada, como seria desejável, somente por

sentimentos altruístas ou morais, mas sim porque em muitos casos, as potências tinham

conhecimento do poder de fogo de alguns Estados, uma vez que elas mesmas o patrocinaram.

Assim, havia fundado receio de que os países que outrora foram apoiados militar e

financeiramente pelas grandes potências intentassem ações contra os territórios destas últimas, o

que, obviamente, acabaria por fazer eclodir outra grande guerra de proporções mundiais. Além

disso, o papel da mídia ao mostrar as imagens dos conflitos que estavam a ocorrer em várias

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partes do Mundo, também foi decisivo para fazer com que as populações fossem tomadas de um

sentimento solidário e tivessem ciência dos resultados da atuação dos seus países na Guerra Fria,

o que fez com que exercessem forte pressão nos seus governantes para que agissem de forma

moralmente satisfatória. Entretanto, importa ressaltar que a proposta deste trabalho se concentra

na análise estritamente jurídica da possibilidade de intervenção com propósitos humanitários e

não nas suas implicações morais. De todo o modo, é de igual importância salientar que talvez as

grandes potências, diante da dimensão das crises humanitárias que ocorreram no pós-Guerra Fria,

tenham se dado conta de que os seres humanos não poderiam pagar com suas próprias vidas o já

tão alto custo da imposição de poder que se verificou durante a Guerra Fria.

Assim, que na década de 1990, o Conselho de Segurança confere uma interpretação flexível

ao art. 39 da Carta ao associar violações em grande escala de direitos humanos à ameaça à paz e

segurança internacionais e, efetivamente, autoriza intervenções humanitárias onde as condições

de sobrevivência humana demandavam urgente auxílio internacional. As principais intervenções

autorizadas pelo órgão foram no Iraque, Somália, Bósnia, Haiti e Ruanda. É fato que em alguns

desses casos, o Conselho de Segurança se mostrou bastante disposto a agir, em outros, entretanto,

foi hesitante e sua atuação serviu mais para conformar a opinião pública internacional e outros

interesses egoísticos, do que propriamente para ajudar indivíduos em países longínquos e pouco

interessantes. Assim mesmo, o balanço geral destas atuações pode ser considerado positivo.

No Iraque, a intervenção da ONU possibilitou o transporte e distribuição de cerca de sete mil

toneladas de suprimentos indispensáveis para um total de um milhão e meio de refugiados. Na

Somália, a fome foi quase totalmente erradicada, programas de vacinação ajudaram a diminuir a

mortalidade infantil, escolas foram reabertas e houve significativo progresso no desarmamento da

população e na reconstrução do sistema judicial. Na Bósnia, a participação do Conselho de

Segurança foi bastante efetiva, até porque, a localização dos conflitos ameaçava as estruturas das

grandes potências européias. De todo o modo, na ocasião a ONU proporcionou, por via aérea, a

distribuição de alimentos e medicamentos aos povoados muçulmanos inacessíveis por meios

terrestres e estabeleceu áreas de segurança para a proteção de civis. A operação no Haiti também

obteve êxito. O parlamento foi reaberto, o presidente deposto retornou ao país e sob o

monitoramento da ONU, foi possível a realização de novas eleições diretas e democráticas. O

conflito em Ruanda, por sua vez, foi marcado pela inação da ONU e muitos seres humanos

morreram pela falta de condições básicas de subsistência e socorro médico. Infelizmente, quando

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as tropas da ONU chegaram ao país, não havia praticamente nada a ser feito e o conflito acabou

por se resolver por si mesmo.

Contudo, as autorizações concedidas pelo Conselho de Segurança para a utilização da força

com o propósito de proteger direitos humanos se tornou prática comum a partir da década de

1990. A repetição dos casos, sem oposição significativa dos Estados, inclusive os intervenidos,

permite afirmar que proporcionou a consolidação de uma regra costumeira, segundo a qual, em

situações de gravíssima emergência humanitária, a ONU possui competência para empreender

por si própria de preferência, ou delegar poderes aos Estados, para a utilização da força com

propósitos humanitários, nas situações em que se verificar a completa incapacidade dos Estados

em lidar com seus conflitos internos.

Esse posicionamento é corroborado pela posição das ONG’s, que historicamente, se opunham

de forma veemente à utilização da força. Contudo, ao constatarem a magnitude desses novos

conflitos, nos quais, as normas de proteção de civis são desrespeitadas de forma maciça pelos

constantes massacres e as campanhas de limpeza étnica e perseguição política e religiosa, e que,

além de espalhar o terror e a barbárie, representam grande perigo à segurança dos seus membros,

as ONG’s têm observado que a utilização da força não deve ser descartada. Principalmente

porque, sem a imposição de um mínimo de ordem e paz, não é possível garantir a eficácia das

suas operações de assistência humanitária. Isto é, na medida em que as organizações não-

governamentais e as agências de assistência humanitária se tornaram impotentes diante do grau

de violência dos conflitos intraestatais contemporâneos, a intervenção militar surgiu como

alternativa de garantir à população civil o acesso à ajuda humanitária.

Ademais, os sucessivos envolvimentos da ONU em relação à proteção dos direitos humanos

foram permeados pela utilização dos preceitos contidos nas Resoluções 43/131 e 45/100, que

recomendam o princípio do livre acesso às vítimas e os corredores humanitários. Ambos são

institutos que exigem a obrigação de se manter certas áreas livres da violência dos conflitos para

possibilitar a proteção e o socorro da população civil. Referidos postulados foram consagrados

por meio das inúmeras resoluções do Conselho de Segurança nos anos 1990, o que lhes conferiu

caráter de regras costumeiras, cuja obrigatoriedade do seu respeito e cumprimento é expressão da

relevância que a comunidade internacional concede à assistência humanitária. Esse direito

constitui-se, portanto, numa regra de jus cogens de observância e cumprimento obrigatório que

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conduz à anulação de qualquer tratado ou ato jurídico internacional que seja contrário a ele ou as

medidas exigidas para sua aplicação.

Inobstante a consagração do direito de assistência humanitária como norma de jus cogens, o

maior problema proposto para a sua aplicação prática ocorre quando os Estados decidem, pela

fora, impedir que esta norma se efetive. Neste caso, o Conselho de Segurança é competente para

lançar ou aprovar uma intervenção humanitária a fim de se opor à violação do direito de

assistência humanitária ou de qualquer outra norma do Direito Internacional Humanitário que

considerar uma ameaça à paz e segurança internacionais. A solução é efetivamente confundir as

fronteiras da pacífica assistência humanitária com a intervenção e, por conseguinte, legitimar as

forças armadas de um ou mais Estados, uma vez que a ONU não possui contingente militar

próprio, para possibilitar a intervenção.

É fato que o Conselho de Segurança encontrou a legitimidade para autorizar as intervenções

humanitárias ocorridas nos anos 1990 na sua discricionariedade para determinar o que consiste

ameaça à paz, quebra da paz ou ato de agressão, conforme o disposto no art. 39 da Carta.

Entretanto a norma esposada por este artigo não pode ser considerada arbitrária e de aplicação

ilimitada, uma vez que se limita pelos próprios preceitos e garantias da Carta e, em assim sendo,

o Conselho de Segurança não poderá tomar medidas que se contraponham aos princípios e

propósitos enunciados pela Carta. Especificamente com relação às intervenções humanitárias fica

muito claro que isso não ocorre, visto que a promoção e defesa dos direitos humanos e liberdades

fundamentais fazem parte do rol de propósitos da Organização, isto se não forem seu principal

objetivo. Além disso, a ONU pode utilizar a força em exceção às situações inseridas na Carta e

implementar as situações reconhecidas pelo Direito Internacional costumeiro. Desta forma, caso a

intervenção humanitária seja reconhecida como um costume internacional, como efetivamente

tem ocorrido, não existe qualquer impedimento legal para que as Nações Unidas autorizem a

utilização da força para proteger direito humanos. E mesmo que este reconhecimento não ocorra,

a intervenção ainda poderá ser utilizada para impor o respeito ao direito costumeiro de assistência

humanitária.

Assim mesmo, a legitimidade das intervenções com propósitos humanitários encontra forte

oposição na defesa veemente dos Estados pelo seu direito de soberania, o qual, certamente, é

muito mais arraigado no Direito Internacional do que a proteção dos direitos humanos. No

entanto, o Direito Internacional é quem decide se o Estado é soberano ou não e a concepção

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contemporânea em relação a esse princípio é que os Estados somente serão considerados

soberanos se conseguirem manter dentro dos seus territórios, a convivência humana pacífica, por

meio da valorização dos direitos e liberdades fundamentais dos seus jurisdicionados. Ou seja, o

que deve ser satisfeito são as necessidades do povo e não do Estado, pois este não existe sem

aquele. O que se verifica no cenário internacional é uma igualdade jurídica entre os Estados, que

permite responsabilizá-los por violações das normas internacionalmente consagradas. Assim

sendo, as crises humanitárias de grande dimensão são passíveis de uma intervenção, desde que

empreendida pela ONU, para evitar ou minorar seus efeitos, uma vez verificada a incapacidade

dos Estados envolvidos em contornar a situação. Por conseguinte, a proteção do princípio da

soberania não pode ocorrer em detrimento de vidas humanas, uma vez que de acordo com o

Direito Internacional contemporâneo, o que os Estados fazem internamente com relação aos seres

humanos que habitam os seus territórios é de interesse geral da humanidade.

Ademais, restou comprovado pelos casos estudados, que as operações de manutenção de paz

são essenciais na medida em que, em certos casos, desempenham funções que antes eram

consideradas da titularidade exclusiva dos Estados num momento em que estes estão

absolutamente incapazes de realizá-las. Sob este ponto de vista, as intervenções realizadas pela

ONU não podem, de qualquer modo, serem consideradas prejudiciais, muito pelo contrário, haja

vista que são capazes de oferecer amparo aos países que, efetivamente, necessitam dele para se

reconstruir.

Faz-se necessário, entretanto, que sejam estabelecidos e adotados certos critérios que refutem

qualquer ilegalidade que as intervenções humanitárias ainda possam comportar. Esta foi a

intenção da equipe do ICISS ao elaborar o relatório “A responsabilidade de proteger”, cuja

proposta para a controvérsia entre intervenção e soberania foi aprovada pela Assembléia Geral da

ONU por meio da Resolução 60/1, de 24 de outubro de 2005. A idéia proposta pelo relatório é a

de que soberania implica a responsabilidade de proteger os cidadãos sujeitos as fronteiras

estatais. E somente quando, por ação ou omissão, o Estado não possa ou não queira cumprir a

aludida responsabilidade, é que a comunidade internacional deverá suspender temporariamente o

direito à soberania estatal para assumir a responsabilidade de evitar, minorar ou pôr fim a

situações que coloquem grande quantidade de vidas humanas em risco.

Os critérios propostos a serem respeitados para que a intervenção humanitária seja

plenamente justificada é que ela deva passar obrigatoriamente pelo crivo da ONU e ser

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autorizada pelo Conselho de Segurança que é quem detém a prerrogativa conferida pelos Estados

de manter a paz e segurança internacionais. Deve ser o último recurso a ser empreendido somente

após o completo esgotamento e ineficácia das tentativas pacíficas de composição. Devem ocorrer

somente em casos extremos, quando há fundado receio da efetiva perda em larga escala de vidas

humanas decorrentes de atos como genocídio, crimes contra a humanidade e limpeza étnica, e

desde que o Estado se mostre completamente incapaz de contornar a situação. A intervenção deve

ter por único escopo a proteção dos seres humanos e mesmo que possua outros interesses, estes

não podem piorar os efeitos da crise que se pretende corrigir ou evitar. A ação militar deve ser

proporcional à finalidade de proteger direitos humanos e assim, faz-se necessário planejar a sua

dimensão, duração e intensidade para que o objetivo da intervenção possa ser efetivamente

cumprido. Além disso, a probabilidade de êxito deve ser analisada, uma vez que a intervenção

não poderá ser justificada caso a efetiva proteção dos direitos humanos não possa ser alcançada,

ou caso as suas conseqüências sejam piores do que se não tivesse ocorrido.

A nova doutrina proposta pelo relatório ainda exige a responsabilidade de reconstruir o país

após a intervenção, a fim de consolidar a paz, criar oportunidades e evitar a reincidência de novos

confrontos. A necessidade de intervir deve proporcionar um reforço positivo aos países em que

ela se operou e, portanto, deve estimular novas atividades que gerem renda, implementar

compromissos sociais e econômicos, bem como, projetos de reintegração à sociedade

internacional e, tão logo os países intervenidos tenham condições de gerir seus próprios negócios,

as tropas devem se retirar para que os Estados voltem a possuir a prerrogativa de decidir sobre

seus próprios destinos num ambiente pacífico e livre de opressões de qualquer natureza.

Por fim, cumpre ressaltar que a adoção pela Assembléia Geral do relatório em comento

reflete que a comunidade internacional reconheceu a nova doutrina tanto na sua legalidade quanto

na sua legitimidade e que o assunto é de grande relevância para a proteção e defesa dos direitos

humanos. Além disso, representa o reconhecimento pela comunidade internacional de que as

intervenções com propósitos humanitários são necessárias em determinados casos. Parece que a

idéia de empatia, proposta pelo relatório, de relegar a forma como as intervenções são

preconceituosamente enxergadas em função da forma como elas efetivamente são sentidas pelas

populações que necessitam de apoio, já trouxe alguns resultados na medida em que foi alcançado

o consenso de que as intervenções humanitárias se constituem num importante instrumento para

restabelecer a ordem mundial, bem como, instigar os Estados a se comportarem de acordo com as

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disposições da Carta da ONU. Trata-se de uma significativa e importante transformação na

interpretação conferida, não só ao instituto da intervenção, mas principalmente à Carta da ONU,

cujas implicações no plano internacional estão condicionadas à cooperação dos Estados e à

evolução das suas relações. Assim, somente daqui a alguns anos é que se poderá afirmar se essa

alteração se operou de forma positiva ou negativa. Enquanto isso, continuemos a cultivar o sonho

de um Mundo no qual todas as nações se respeitam entre si, defendem e protegem os direitos

humanos dos seus cidadãos, ao menos aqueles mais básicos e, assim, possibilitam que todas as

pessoas do Mundo tenham o mínimo necessário para uma sobrevivência livre, saudável e

pacífica.

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