UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ
ANITA KONS DA SILVEIRA
A INTERVENÇÃO HUMANITÁRIA COMO FORMA LEGÍTIMA DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
São José
2008
ii
ANITA KONS DA SILVEIRA
A INTERVENÇÃO HUMANITÁRIA COMO FORMA LEGÍTIMA DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
Monografia apresentada à Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI , como requisito parcial a obtenção do grau em Bacharel em Direito. Orientador: Prof. Dr. André Lipp Pinto Basto Lupi Co-orientador: Prof. Dr. Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo
São José 2008
iii
ANITA KONS DA SILVEIRA
A INTERVENÇÃO HUMANITÁRIA COMO FORMA LEGÍTIMA DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
Esta Monografia foi julgada adequada para a obtenção do título de bacharel e aprovada pelo
Curso de Direito, da Universidade do Vale do Itajaí, Centro de Ciências Sociais e Jurídicas.
Área de Concentração: Direito Público/Direito Internacional Público: Integração, Intervenção e
Direitos Humanos
São José, 17 de novembro de 2008.
Prof. Dr. André Lipp Pinto Basto Lupi UNIVALI – Campus de São José
Orientador
Prof. Dr. Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo UGF – Universidade Gama Filho do Rio de Janeiro/RJ
Co-orientador
Bel. Camila Bibiana Freitas Baraldi UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina
Membro
iv
À minha família.
v
AGRADECIMENTOS
Ao prof. Dr. Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo pela atenção dispensada, pelas
preciosas sugestões e correções, pela relação de amizade e respeito, mas principalmente, por me
fazer acreditar que sou capaz de alçar vôos jamais imaginados.
Ao prof. Dr. André Lipp Pinto Basto Lupi por ter aceitado a orientação deste trabalho
quando há muito já tinha se iniciado, pelas importantes sugestões e correções.
Ao meu colega de trabalho Cláudio Haase pelas constantes palavras de incentivo, pelas
longas conversas acerca do tema e pela leitura dos meus manuscritos.
À minha amiga Rosane Nienchoter pelo auxílio desde a fase de projeto desta pesquisa,
pelo incentivo nas horas de desânimo e pelas acaloradas discussões acerca das mazelas do
mundo.
À minha prima Lílian Guimarães Gomes, que mesmo distante, sempre me dispensava
palavras de conforto e incentivo, pela leitura dos meus manuscritos e sugestões de fontes de
pesquisa, mas principalmente, por plantar neste mundo, quase ao final desta batalha, mais um
motivo de alegria a nossa família e uma pequena esperança de um mundo melhor: sua filhinha
Catarina.
Ao meu querido amigo Lucas Correa Babeto, por sempre demonstrar acreditar na minha
capacidade e esforço, pelas longas conversas sobre o tema e por se mostrar disposto a me prestar
auxílio em todos os momentos.
Ao meu tio Daniel Guimarães e minha tia Abigail da Silveira Guimarães, pelas risadas e
companhia, por conseguirem transformar qualquer fase ruim em piada, por acreditarem
constantemente no meu esforço e capacidade, e pelo auxílio material que tanto ajudou na
conclusão deste curso.
Ao meu pai João Moraes da Silveira e minha mãe Lourdete Kons da Silveira, pelo
conforto nas horas tristes, pelo amor e carinho presente em cada palavra de apoio e incentivo. Por
sempre acreditarem nos meus sonhos, esforços, nas minhas mudanças e capacidade. Por
caminharem ao meu lado em todas as escolhas. Por continuarem acreditando em mim, quando
nem eu mais acreditava, e nunca deixarem transparecer suas fraquezas e incertezas. Por
compartilharem do suor dos seus trabalhos e relegar muitos dos seus desejos em favor dos meus.
Pela proteção, apoio incondicional, educação exemplar, preocupação, renúncias, conforto e
doação. Ser filha de vocês é a minha maior satisfação.
vi
À minha irmã Kátia Kons da Silveira pelas risadas e companhia, por escutar minhas
divagações sobre as incertezas do futuro, pela leitura e elogios aos meus manuscritos e por
sempre demonstrar orgulho e respeito pelos meus estudos e atitudes.
Aos meus colegas de trabalho do BRDE, pela tolerância e compreensão em relação as
minhas ausências devido aos meus compromissos acadêmicos e pessoais neste derradeiro ano de
curso.
A todos os meus amigos, pelas memoráveis horas de lazer, pelas divagações sobre
questões universais, incertezas e coisas banais. Pelas constantes palavras de consolo, incentivo e
apoio, mas principalmente por fazerem parte da minha vida.
À Deus, seja lá a que etnia ou religião pertencer, pela inspiração e lampejos de lucidez,
pela humildade para aprender, pela força nas horas de cansaço, por não permitir que eu desistisse
e por me instigar a estudar um meio de proteger o ser humano.
A todos, o meu único desejo é que vivam em paz.
vii
“O mal que existe no mundo provém quase sempre da ignorância, e a boa vontade, se não for
esclarecida, pode causar tantos danos quanto a maldade. Os homens são mais bons que maus, e
na verdade a questão não é essa. Mas ignoram mais ou menos, e é a isso que se chama virtude
ou vício, sendo o vício mais desesperado o da ignorância, que julga saber tudo e se autoriza a
matar. A alma do assassino é cega, e não há verdadeira bondade nem belo amor sem toda a
clarividência possível.”
Albert Camus
viii
TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE
Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo aporte
ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do Vale do Itajaí, a
coordenação do Curso de Direito, a Banca Examinadora e o Orientador de toda e qualquer
responsabilidade acerca do mesmo.
São José, 17 de novembro de 2008.
Anita Kons da Silveira
ix
RESUMO
O presente trabalho visa demonstrar a legalidade1 e a legitimidade da intervenção com
propósitos humanitários, à luz da Carta da Organização das Nações Unidas de 1945 e do
comportamento da comunidade internacional desde a sua adoção. Para tanto, faz-se necessário
analisar a oposição entre, de um lado, a soberania e os seus princípios correlacionados, e, de
outro lado, os direitos humanos, uma vez que existe um extenso conjunto de normas
internacionais que estabelecem condutas e reforçam o princípio da soberania estatal, mas ao
mesmo tempo, expressões como “direitos fundamentais do homem”, “direitos humanos” e
“dignidade da pessoa humana” aparecem expressamente em diversos documentos internacionais,
bem como na própria Carta da ONU. As disposições sobre direitos humanos, apesar das suas
limitações e a falta de instrumentos que proporcionem a sua efetiva aplicação, não se constituem
em meras recomendações aos Estados, pelo contrário, fazem parte dos propósitos da ONU e
todos os Estados-membros devem colaborar para eles sejam satisfeitos. O respeito e promoção
dos direitos humanos, portanto, integram da pauta de interesses da comunidade internacional e
não mais pertencem aos assuntos de exclusiva jurisdição doméstica dos Estados. Assim, apesar
da falta de regulamentação do direito/dever de intervenção humanitária, não há dúvidas de que
devido à internacionalização dos direitos humanos, a comunidade internacional poderá agir
diante de violações em larga escala de direitos humanos dentro das fronteiras estatais, desde que
os Estados não possam ou não queiram contornar a situação. Portanto, a investigação dessa
possibilidade necessariamente passará pelo exame das situações em que os princípios
relacionados à soberania estatal, esculpidos na Carta poderão ser relativizados para proporcionar
a proteção dos direitos humanos. Para tanto, primeiramente analisar-se-á o princípio da não-
intervenção e sua necessidade na regulação das relações internacionais. Após, serão delineados os
casos em que o referido princípio já foi ou poderá ser relegado em virtude do direito de
assistência humanitária e ao final, será apresentada a análise da possibilidade da intervenção
humanitária, limitada pelos princípios da soberania e não-intervenção, ter se tornado uma norma
internacional costumeira.
Palavras-chave: Intervenção, cooperação, direitos humanos, assistência humanitária, soberania.
1 O sentido de legalidade proposto neste trabalho é em relação à conformidade ao Direito e não à lei em sentido estrito.
x
ABSTRACT
The present work has the main aim to demonstrate the legality and legitimacy of the intervention
with humanitarian purposes according to the United Nations Charter from 1945 and the way the
if International Community behaves since its adoption. For this, it is necessary to analyze the
controversy between sovereignty and its correlatives principles and human rights according to an
extent sets of international related principles and human rights as there is an enormous set of
international documents for setting out behaves and reinforce the state sovereignty principles.
This expressions as ‘Fundamental Human Rights’, ‘Human Rights’, Human Person Dignity’ for
the time being, evolve from a great series of international documents, as the United Nations
Charter itself. The main rules concerned with human rights, although they are limited by lack of
tools for its effective application, they are not only recommendations to the nations but, they are
part of the United Nations main objectives and all of states must show good will to achieve them.
The fulfilment and observance of human rights are part of the interests of international
community and are not only a subject of domestic jurisdiction of the states. Thus, despite the lack
of regulation of the right/duty to humanitarian intervention, there is no doubt that although the
internationalization of human rights the international community can act to face the violations in
large escale of human rights within the state borders, since the states can’t or don’t want to stop
the situation. So the investigation of this possibility will pass by the exam of the situations in
what the related principles of state sovereignty that are written in the Charter can be posted to
give protection of the human rights. For this, first we will analysis the non-intervention principle
and its need for regulation of international relations. After this, will be outlined the cases in
which this principle has already been or can be relegated under the law of humanitarian
assistence and at the end, will present an analysis of the possibility of an humanitarian
intervention, limited by the sovereignty principles an non-intervention, being an international
rule.
Keywords: Intervention, cooperation, human rights, humanitarian assistence, sovereignty.
xi
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................................................................... 1 Capítulo 1: O PRINCIPIO DA NÃO-INTERVENÇÃO................................................................. 4 1.1 O princípio da não-intervenção na Carta da ONU .................................................................... 4 1.2 A Declaração sobre Relações Amistosas adotada pela Assembléia Geral da ONU em 1970. 13 1.3 O caso das atividades militares e paramilitares na Nicarágua (Nicarágua v. Estados unidos) 19 1.4 O domínio reservado dos Estados e os direitos humanos........................................................ 23 Capítulo 2: A RELATIVIZAÇÃO DO PRINCÍPIO DA NÃO-INTERVENÇÃO NA PRÁTICA DOS ESTADOS E DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS ......................................... 28 2.1 As intervenções humanitárias autorizadas pelo Conselho de Segurança na década de 1990.. 28 2.1.1 Iraque .................................................................................................................................... 29 2.1.2 Somália ................................................................................................................................. 31 2.1.3 Bósnia ................................................................................................................................... 34 2.1.4 Haiti ...................................................................................................................................... 36 2.1.5 Ruanda .................................................................................................................................. 39 2.1.6 Breves considerações sobre a prática do Conselho de Segurança no pós-Guerra Fria ........ 42 2.2 As intervenções humanitárias consideradas lícitas.................................................................. 44 2.3 O direito de assistência humanitária........................................................................................ 50 Capítulo 3: A REVISÃO DO PRINCÍPIO DA SOBERANIA FRENTE ÀS POSSIBILIDADES LEGÍTIMAS DE INTERVENÇÃO HUMANITÁRIA ................................................................ 55 3.1 A competência do Conselho de Segurança da ONU ............................................................... 55 3.2 A revisão do conceito de soberania ......................................................................................... 65 3.3 A proposta para a controvérsia entre intervenção e soberania sob a ótica do relatório do ICISS....................................................................................................................................................... 72 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................................ 83 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................ 94
1
INTRODUÇÃO
Os direitos humanos são inerentes ao gênero humano e por isso considerados universais.
Constituem-se um conjunto interdependente e indivisível de direitos mínimos relacionados com a
dignidade da pessoa humana e são patrimônio de toda a humanidade, fruto das suas lutas
históricas por justiça e melhores condições de vida. A recente internacionalização desses
direitos implicou deixar de lado a prerrogativa quase absoluta dos Estados de dirigir os seus
assuntos internos, para progredir na direção de estabelecer uma regulação internacional que
definisse limites e obrigações dos Estados nas suas relações com os indivíduos. Em assim sendo,
internamente, os Estados são responsáveis perante seus próprios cidadãos e externamente o são
perante a comunidade internacional, consubstanciada na Organização das Nações Unidas. Esta
visão contemporânea exige que o princípio da soberania estatal deva ser reconstruído, de modo a
ceder lugar às demandas de paz e segurança internacionais. Logo, na existência de violação a
direitos humanos, qual seria o limite de razoabilidade e como poderia ocorrer uma interferência
humanitária de forma legítima a combater essa situação?
Esta pesquisa pretende responder a esta questão, por meio da análise da legalidade e
legitimidade das intervenções humanitárias internacionais para a proteção dos direitos humanos,
à luz do princípio da soberania estatal e da Carta da Organização das Nações Unidas de 1945. A
metodologia utilizada é a indutiva, pois serão analisadas as intervenções humanitárias que já
ocorreram, a fim de se comprovar a legalidade destas à luz das disposições insertas na Carta da
ONU e o princípio da soberania estatal. Os procedimentos investigatórios adotados consistem na
pesquisa de documentação direta, como a Carta da ONU e outros documentos normativos
internacionais, tais como as resoluções da Organização das Nações Unidas e decisões
jurisprudenciais e indireta, notadamente na pesquisa de bibliografia relacionada ao tema.
Saliente-se a inexistência de normas no ordenamento jurídico internacional que
disponham com clareza sobre o direito/dever de intervir quando constatada grave violação dos
direitos humanos. No entanto, uma intervenção poderá ser empreendida, dentro da
discricionariedade do Conselho de Segurança - órgão competente para determinar o que consiste
ameaça à paz, quebra da paz ou ato de agressão - nos moldes do art. 39 da Carta das Nações
Unidas, quando este julgar que a violação dos direitos humanos em determinado Estado está por
ameaçar a paz e segurança internacionais. É justamente esta questão que dificulta a visualização
das intervenções humanitárias como atitudes legais ou ilegais frente ao aparato judicial interno de
2
cada Estado considerado individualmente, uma vez que o Conselho de Segurança é um órgão
eminentemente político e, em assim sendo, suas decisões são de cunho político. Porém, na
medida em que a intervenção humanitária tem por escopo única e exclusivamente a proteção da
integridade da pessoa humana, a preservação de sua dignidade e a prevenção de violações
maciças aos direitos humanos, deve-se considerá-la como um instrumento legal e legítimo, caso
seja empreendida pelas Nações Unidas.
A fim de comprovar que, apesar da inexistência de normas que disciplinem a
intervenção com propósitos humanitários, ela efetivamente deve ocorrer em determinados casos,
analisar-se-á no primeiro capítulo desta pesquisa o princípio da não-intervenção, esculpido na
Carta da ONU e seu assentamento jurisprudencial, bem como a interpretação que inicialmente foi
conferida ao referido princípio pelos Estados e pela própria ONU.
No segundo capítulo, serão analisados os pontos que permitem inferir que esse princípio
foi relativizado diante das demandas de estabelecimento de paz, decorrentes de graves violações
dos direitos humanos ocorridas nos anos 1990, pois é fato que o modo encontrado pela ONU para
a resolução dos conflitos verificados nessa época, - por meio da competência do Conselho de
Segurança - foi associar as graves violações de direitos humanos à manutenção da paz e
segurança internacionais. Também serão abordadas as intervenções humanitárias realizadas pelas
Organizações não governamentais, mormente a atuação da Cruz Vermelha, cuja legalidade das
ações nunca foi contestada, a fim de comprovar que as organizações de socorro humanitário
enfrentam problemas, em determinados casos, para cumprir suas tarefas, sendo muitas vezes
necessário que se utilize a força para facilitar os seus trabalhos de proteção humanitária e conferir
certa ordem aos territórios em que ela é praticamente nula ou inexistente. Ao cabo deste capítulo,
ainda será objeto de análise a possibilidade da existência de um direito costumeiro à assistência
humanitária, apoiado nas Resoluções da Assembléia Geral que consagram o princípio do livre
acesso às vítimas e os corredores humanitários, os quais foram invocados nas diversas
Resoluções do Conselho de Segurança que autorizaram as intervenções humanitárias dos anos
1990.
No derradeiro capítulo desta pesquisa, será realizada uma abordagem hodierna acerca do
princípio da soberania estatal. Primeiramente, será verificada a competência do Conselho de
Segurança para relegar o referido princípio em virtude da defesa e promoção dos direitos
humanos, e ordenar uma intervenção de caráter humanitário. Após, será revisto o princípio da
3
soberania, uma vez que a sua relativização se impõe como pressuposto para a construção e
evolução do direito internacional, principalmente na área humanitária. Por fim, analisar-se-á a
proposta da Comissão Internacional sobre Intervenção e Soberania Estatal (ICISS – sigla em
inglês) para a resolução da controvérsia ainda existente entre intervenção e soberania.
Para a conveniência do leitor, optou-se por traduzir os textos em língua estrangeira, e,
salvo indicação em contrário, a responsabilidade pelas traduções recai inteiramente sobre a autora
da presente pesquisa.
4
1. O PRINCIPIO DA NÃO-INTERVENÇÃO
1.1 O PRINCÍPIO DA NÃO-INTERVENÇÃO NA CARTA DA ONU
No Direito Internacional contemporâneo, o termo “Guerra2” caiu em desuso3. Embora a
convicção predominante no século XIX e no início do século XX era a de que todo Estado tinha o
direito de entrar em guerra independentemente da motivação4, após a I Guerra Mundial, diante
das proporções devastadoras do conflito, o direito internacional começa a se ocupar ainda mais
com a regulamentação deste instituto. A constituição da Sociedade das Nações, em 1919, visava
principalmente regulamentar a guerra, mas não foi capaz de torná-la ilegal. Aliás, percebe-se que
naquele período não era possível um pacto que alcançasse esse escopo5, visto que a guerra era
considerada expressão da soberania estatal e, assim, a liberdade legal de utilizá-la por qualquer
razão estava inserida no sistema jurídico internacional6. O Pacto da Sociedade das Nações tinha
como principal objetivo dificultar ao máximo a possibilidade de recorrer à guerra, tornando-a
uma espécie de ultima ratio à qual os Estados poderiam recorrer para a resolução dos seus
conflitos7, mas, devido às disposições abstratas e sujeitas à inúmeras interpretações que trouxe
em seu bojo, acabou por qualificar de forma mais abrangente o direito de ir à guerra e permitiu
que a liberdade de recorrer a ela permanecesse praticamente intacta8.
Mais tarde, em 1928, foi assinado o Pacto de Paris - mais conhecido como o Pacto de
Briand-Kellog - pela conjugação dos nomes dos ministros do exterior da França e dos E.U.A -
que foi ratificado pela quase-totalidade das soberanias da época e representa um grande progresso
na condenação da guerra. Os países pactuantes não só a condenavam como a ela renunciavam, e
dispunham9:
2 “O conceito jurídico de “guerra” requer tanto um elemento material – o emprego efetivo da força armada – como um elemento subjetivo – a intenção de fazer guerra, o animus in belli.” (Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. A ingerência humanitária e a guerra justa. in Direitos Humanos e Direito Internacional.Curitiba: Juruá, 2006. p. 146). 3 Ibidem. p. 145. 4 Cf. DINSTEIN, Yoram. Guerra, agressão e legítima defesa. Trad. Mauro Raposo de Mello. Barueri: Manole, 2004. p. 105. 5 Cf. DELGADO, José Manuel Avelino de Pina. Regulamentação do Uso da Força no Direito Internacional e Legalidade das Intervenções Humanitárias Unilaterais. Dissertação de Mestrado. Florianópolis: UFSC, 2003. p. 83. 6 Cf. DINSTEIN, Yoram. Op. Cit. p. 106. 7 Cf. DELGADO, José Manuel Avelino de Pina. Op. Cit. p. 83. 8 Cf. DINSTEIN, Yoram. Op. Cit. p. 114. 9 Cf. REZEK, José Francisco. Direito Internacional Público. 11ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva: 2008. p. 373.
5
Art. 1º. As Altas Partes contratantes declaram solenemente, em nome dos respectivos povos, que condenam o recurso à guerra para a solução das controvérsias internacionais, e ela renunciam como instrumento de política nacional nas suas mútuas relações. Art. 2º. As Altas Partes contratantes reconhecem que o ajuste ou a solução de todas as controvérsias ou conflitos de qualquer natureza ou origem, que se suscitem entre elas: nunca deverá ser procurado senão por meios pacíficos 10.
Com a adoção do referido Pacto, o Direito Internacional progrediu do jus ad bellum para o
jus contra bellum, mas, embora proibida, a guerra permaneceu legal sob algumas circunstâncias,
pois este documento apresentou algumas falhas, a saber: a) a questão sobre a legítima defesa não
foi claramente referenciada no texto e nenhuma disposição foi capaz de abolir o recurso à guerra
nesta situação. O principal problema, neste caso, é que não foram estabelecidos critérios para
determinar se o Estado que inicia as hostilidades estaria agindo em legítima defesa, ou,
manifestamente desrespeitando o Pacto. Além disso, não foi criada uma instituição competente
para avaliar se as intenções do Estado que recorreu à utilização da força eram legítimas ou não;
ou seja, nenhum consenso com relação a limites foi estabelecido sobre a legalidade da guerra
como instrumento de política internacional; b) a proibição da guerra não considerou toda a
comunidade internacional. O Pacto a renunciou somente entre as partes contratantes e nada
regulou quanto à liberdade de guerra entre estas e as partes não-contratantes e vice-versa e c)
medidas de força de característica breve, como as represálias e intervenções pontuais, nem foram
mencionadas nas disposições11.
Destarte, percebe-se que a principal controvérsia dos termos do Pacto diz respeito à
faculdade de cada Estado em utilizar a força, pois se verifica que não há consenso em relação à
imposição de limites para cada parte contratante recorrer à guerra12. As falhas apontadas em seu
texto, a conseqüente ausência de qualquer sistema de sanções quando houvesse violação dos
termos do Pacto e a dúvida se a renúncia à guerra incluiria outras formas de utilização da força
armada, como represálias e intervenções pontuais, além do exacerbado idealismo da Sociedade
10 TRATADO DE RENÚNCIA À GUERRA. Pacto de Paris ou Briand-Kellog de 1928. Disponível em: <http://64.233.169.104/search?q=cache:WDQl7BB0WJQJ:www2.mre.gov.br/dai/renguerra.htm> Acesso em: 11 de junho de 2008. 11 Cf. DINSTEIN, Yoram. Op. Cit. p. 118/119. 12 Ibidem. p. 120.
6
das Nações podem ser considerados os motivos responsáveis pelo fracasso em impedir uma nova
conflagração mundial13.
A Carta da Organização das Nações Unidas, entre outros objetivos, pretendeu sanar as
falhas do Pacto Briand-Kellog e sustentar a ilegitimidade do jus ad bellum através da redação do
art. 2º, §4º, que assim dispõe:
Os membros da Organização, em suas relações internacionais, abster-se-ão de recorrer à ameaça ou ao uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado, ou de qualquer outra forma incompatível com os propósitos das Nações Unidas14.
Este artigo não se aplica somente aos membros da Organização das Nações Unidas, mas
vincula toda a comunidade internacional. Ele proíbe o recurso à força pelos membros da ONU
contra qualquer outro Estado, sendo este membro ou não, uma vez que a Carta da ONU estatui
em seu art. 2º, §6º que a Organização se compromete em assegurar que os Estados que não são
seus membros ajam de acordo com os princípios erigidos na Carta, visando à manutenção da paz
e segurança internacionais15. A guerra, assim, tornou-se um ilícito internacional e a Carta da
ONU teve a oportuna cautela de não se referir nominalmente à guerra, mas à ameaça ou
utilização da força, algo bem mais extenso e abrangente16. O termo “Guerra” ainda é conservado
para designar as grandes guerras mundiais, mas a expressão que deve ser empregada atualmente é
“conflitos armados internacionais”17.
Segundo o art. 2º, §4º, qualquer uso da força no cenário internacional empreendido pelos
Estados-membros, independente da razão, é vedado, a menos que expressamente permitido pela
Carta. Assim, existem exceções à proibição do uso da força nos seguintes casos18: no exercício da
legítima defesa (art. 5119 da Carta da ONU) e nas situações previstas no art. 3920 da Carta,
13 Cf. VIOTTI, Aurélio Romanini de Abranches. Ações humanitárias pelo Conselho de Segurança: entre a Cruz Vermelha e Clausewitz. Brasília: Funag, 2004. p. 81. 14 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Carta das Nações Unidas. Disponível em: <http://www.unhchr.ch/spanish/html/menu3/b/ch-cont_sp.htm> Acesso em: 30 de maio de 2008. 15 Cf. DINSTEIN, Yoram. Op. Cit. p. 129/130. 16 Cf. REZEK, José Francisco. Op. Cit. p. 375. 17 “Diversos outros conflitos, como a luta contra o colonialismo, intervenções e represálias, não se conformam ao conceito jurídico de guerra. Por isso, tem preferido-se empregar a expressão “conflito armado internacional”, que seria mais abrangente.” (Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Op. Cit. p. 146). 18 Cf. DINSTEIN, Yoram. Op. Cit. p. 124. 19 Art. 51. Nada na presente Carta prejudicará o direito inerente de legítima defesa individual ou coletiva, no caso de ocorrer um ataque armado contra um membro das Nações Unidas, até que o Conselho de Segurança tenha tomado as medidas necessárias para a manutenção da paz e da segurança internacionais. As medidas tomadas pelos membros no exercício desse direito de legítima defesa serão comunicadas imediatamente ao Conselho de Segurança e não
7
quando o Conselho de Segurança, para resolução de situações específicas autoriza o recurso à
força para o efetivo cumprimento dos propósitos das Nações Unidas. Há controvérsias sobre a
definição legal de força inserida no artigo, mas no que se coaduna com a definição de agressão
fornecida pela Resolução 3.314 adotada pela Assembléia Geral, entende-se que esta proibição
está adstrita à força armada e não incluiria a pressão diplomática ou econômica21.
Obviamente que o disposto no artigo 2º, §4º refere-se somente aos membros das Nações
Unidas, mas não à própria Organização22. Consiste num dispositivo que deve ser analisado à luz
de um sistema que foi criado para a prevenção de conflitos armados internacionais, em
continuidade aos esforços empreendidos, porém não exitosos, no período entre-guerras. É com a
redação dele que se cristaliza o princípio da resolução pacífica das controvérsias23, que é
complementado pelo princípio da não-intervenção, consolidado no art. 2º, §7º da Carta, que
dispõe:
Nenhuma disposição da presente Carta autorizará as Nações Unidas a intervir em assuntos que dependam essencialmente da jurisdição interna de qualquer Estado, ou obrigará os membros a submeterem tais assuntos a uma solução, nos termos da presente Carta; este princípio, porém, não prejudicará a aplicação das medidas coercitivas constantes do Capítulo VII.
Uma vez proscrita a guerra, emerge este princípio como expressão da autonomia estatal e
para impossibilitar que grandes potências, sob a alegação de defesa de qualquer interesse,
interviessem por ameaça ou utilização da força nos assuntos domésticos ou externos de outro
Estado de forma arbitrária e prejudicial à liberdade e independência das nações24.
A evolução do princípio da autodeterminação dos povos levou à independência de
inúmeras colônias que viviam sob o jugo das potências coloniais e, uma vez proscrito o uso da
força, ocorreu uma revitalização e fortalecimento de mecanismos para a resolução pacífica de
deverão, de modo algum, atingir a autoridade e a responsabilidade que a presente Carta atribui ao Conselho para levar a efeito, em qualquer momento, a ação que julgar necessária à manutenção ou ao restabelecimento da paz e da segurança internacionais. 20 Art. 39. O Conselho de Segurança determinará a existência de qualquer ameaça à paz, ruptura da paz ou ato de agressão e fará recomendações ou decidirá que medidas deverão ser tomadas de acordo com os artigos 41 e 42, a fim de manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais. 21 Cf. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Assembléia Geral. Resolução 3.314 de 14 de dezembro de 1974. Disponível em: <http://daccessdds.un.org/doc/RESOLUTION/GEN/NR0/743/93/IMG/NR074393.pdf> Acesso em 30 de maio de 2008. p. 151. 22 Cf. DELGADO, José Manuel Avelino de Pina. Op. Cit. p. 104. 23 Ibidem. p. 92. 24 Cf. VIOTTI, Aurélio Romanini de Abranches. Op. Cit. p. 92/93.
8
controvérsias e a criação de novos meios para assegurar a observância do Direito Internacional25.
Assim, o princípio da não intervenção é considerado corolário lógico da proibição do uso da
força e é conquista dos países de Terceiro Mundo, haja vista que estes foram os principais alvos
de intervenções por parte das grandes potências. As lutas colonialistas por independência e a
introdução do princípio da autodeterminação numa época em que o mundo era dividido em
fronteiras artificiais, desenhadas por grandes potências coloniais, consolidou a defesa do direito
de não-intervenção como um fator essencial para a preservação das soberanias que nasciam26.
Entende-se intervenção como a ação de um Estado ou grupo de Estados que interfere em
outro Estado soberano ou independente, para impor a sua vontade nos assuntos internos e
externos, sem o respectivo consentimento, a fim de manter ou alterar um estado de coisas. É,
portanto, uma prática ilícita, pois contraria o consagrado princípio da não-intervenção. Contudo,
a própria Carta da ONU só proíbe a intervenção nos assuntos internos e é a ONU quem decide se
a matéria pertence ou não à jurisdição doméstica dos Estados27.
No modelo jurídico idealizado pela Carta da ONU, o Estado é o ator principal das
relações internacionais e a não-intervenção é, nesse sistema, corolário lógico do conceito de
soberania, pois vincula explicitamente o direito de um Estado à independência ao dever de
respeitá-la por parte dos demais28. O princípio da não-intervenção está diretamente ligado ao
princípio da soberania dos Estados e constitui uma necessidade no atual sistema internacional.
Sua observância é de suma importância, pois no momento em que o referido princípio deixar de
ser respeitado, a ordem deixa de ser internacional, e o direito regulador passa a ser o direito
interno de um Estado universal. A soberania estatal é tão necessária ao sistema jurídico
internacional29, que se encontra positivada em diversos textos legais internacionais, inclusive na
própria Carta da ONU que, em seu art. 2º, §1º, dispõe: “A organização é baseada no princípio da
igualdade soberana de todos os seus membros”.
Entretanto, a noção de soberania é relativa, uma vez que depende do momento em que se
encontra a sociedade internacional. Os Estados menos favorecidos é que geralmente necessitam
25 Cf. VIOTTI, Aurélio Romanini de Abranches. Op. Cit. p. 87. 26 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Segurança Internacional e Direitos Humanos: A prática da Intervenção Humanitária no Pós-guerra fria. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 102. 27 Cf. MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Direitos humanos e conflitos armados. Rio de Janeiro: Renovar. 1997. p. 45. 28 Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. O Direito de Assistência Humanitária. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. (Coleção Biblioteca de Teses). p. 156. 29 Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Op. Cit. p. 148.
9
da soberania para se defenderem de uma eventual intervenção realizada em benefício de algumas
grandes potências30. Na verdade o princípio da não-intervenção tem, para os países do Terceiro
Mundo, as funções de manifestar oposição às pressões das antigas potências coloniais, conter a
influência das grandes potências e garantir o processo de descolonização, sem qualquer
interferência externa. Para os novos Estados independentes, quase sempre vulneráveis às pressões
estrangeiras, o princípio em comento constitui defesa dos fracos contra os abusos dos fortes31.
Importantes contornos do princípio da não-intervenção foram definidos nas decisões da
Corte Internacional de Justiça nos casos do Estreito do Corfu e Nicarágua. No acórdão que
inaugura a sua jurisprudência, a Corte assevera:
O pretenso direito de intervenção não pode ser entendido senão como a manifestação de uma política de força, política que no passado deu lugar a graves abusos e que não poderia encontrar qualquer lugar no direito internacional, quaisquer que sejam as deficiências atuais da organização internacional
32.
Na sua decisão para o Caso Nicarágua, o órgão da justiça internacional reforça este
argumento ao sustentar que:
[...] ação em apoio de forças de oposição dentro de outro Estado pode constituir intervenção, mesmo se o próprio apoio é de um tipo não-militar; se tem caráter militar mas se limita a um apoio indireto como o fornecimento de armas ou apoio logístico, pode constituir não só intervenção mas também uma ameaça ilícita33
[...] (grifo nosso)
Percebe-se, de acordo com a interpretação da Corte Internacional de Justiça, que o
princípio da não-intervenção é um dos pilares fundamentais do sistema internacional. A Corte
ainda sublinha, no julgamento deste último caso, que o emprego da força de forma direta ou
indireta é a essência da intervenção ilícita34. Assim, as pressões políticas, econômicas e
diplomáticas violam também o art. 2º, §7º, quando tiverem o sentido de verdadeiro ultimato, isto
é, sempre que puderem ser comparadas ao uso da força devido à efetiva imposição da vontade de
30 Cf. MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Op. Cit. p. 46. 31 Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Op. Cit. p. 157. 32 Cf. CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Caso do Estreito de Corfu (Reino Unido v. Albânia). Decisão de 15 de dezembro de 1949. Disponível em: <http://www.icj-cij.org/docket/files/1/11885.pdf> Acesso em: 30 de maio de 2008. p. 1). 33 Cf. CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Caso das atividades militares e paramilitares na e contra a Nicarágua (Nicarágua v. Estados Unidos). Decisão de 27 de junho de 1986. Disponível em: <http://www.icj-cij.org/docket/files/70/9973.pdf> Acesso em: 30 de maio de 2008. p. 14. 34 Ibidem.
10
um Estado sobre outro para que este faça ou deixe de fazer algo, por meio da eliminação ou
restrição das opções que se oferecem ao governo estrangeiro numa conjuntura particular
histórica. Pode-se afirmar, portanto, que se abster de medidas coercitivas é elemento essencial
para definir o dever de não-intervenção que se impõe aos Estados35.
No entanto, a letra da Carta cria uma exceção à regra ao prescrever no próprio artigo que
o consagra: “esse princípio não poderá prejudicar a aplicação das medidas executórias do capítulo
VII”; de forma que não há controvérsia quanto à possibilidade das Nações Unidas, amparada no
capítulo VII, autorizar o uso da força contra algum Estado-membro. A intervenção, portanto, só é
considerada ilícita quando a força é utilizada nas hipóteses não autorizadas pelo Capítulo VII da
Carta. O problema proposto neste caso é identificar quais são os assuntos de domínio reservado36
dos Estados que não podem sofrer a interferência da Organização37. Neste ponto, verifica-se que
o respeito aos direitos humanos é um dos principais propósitos consagrados na Carta da ONU, e,
além dela, vários outros documentos internacionais expressam a obrigação dos Estados em
respeitar as disposições internacionais humanitárias.
Ademais a expressão “ações incompatíveis com os propósitos das Nações Unidas”, inserta
no artigo 2º, §4º, reflete uma “abertura” nos termos da Carta, uma vez que o dispositivo permite
incluir várias situações imprevistas e vindouras, que podem ser enquadradas na norma e permitir
que a Organização atue em determinados casos. As ações incompatíveis com os propósitos das
Nações Unidas são aquelas contrárias ao disposto no primeiro artigo38 da Carta, ou seja: a) atos
contrários à paz e segurança internacionais; b) solução não-pacífica de controvérsias; c) ações
contrárias à autodeterminação dos povos; d) ações contrárias à igualdade de direitos dos povos e
35 Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Op. Cit. p. 166. 36 “Domínio reservado é um conceito jurídico que assim foi definido pelo Instituto de Direito Internacional: “O domínio reservado é o das atividades estatais em que a competência do Estado não está vinculada pelo direito Internacional” [...] Dessa forma, as matérias que constam de um domínio reservado são aquelas que ainda não se tornaram objeto de um compromisso internacional.” (Grifo no original) (Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Op. Cit. p. 149). 37 Cf. DELGADO, José Manuel Avelino de Pina. Op. Cit. p. 127. 38 Art. 1º, § 1º. Manter a paz e a segurança internacionais e, para esse fim: tomar, coletivamente, medidas efetivas para evitar ameaças à paz e reprimir os atos de agressão ou outra qualquer ruptura da paz e chegar, por meios pacíficos e de conformidade com os princípios da justiça e do direito internacional, a um ajuste ou solução das controvérsias ou situações que possam levar a uma perturbação da paz; § 2º. Desenvolver relações amistosas entre as nações, baseadas no respeito ao princípio de igualdade de direitos e de autodeterminação dos povos, e tomar outras medidas apropriadas ao fortalecimento da paz universal; § 3º. Conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário, e para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião; e § 4º. Ser um centro destinado a harmonizar a ação das nações para a consecução desses objetivos comuns.
11
e) violações aos direitos humanos e às liberdades fundamentais. A inclusão destas expressões
demonstra a preocupação de proibir a ameaça ou utilização da força não somente nos casos de
integridade territorial ou independência política de qualquer Estado, mas, em qualquer ação
militar que fosse contrária aos propósitos das Nações Unidas39.
Ressalta-se que a partir da criação da ONU os direitos humanos passam a ter status
internacional e a fazer parte da pauta de interesses da comunidade internacional, uma vez que
suas normas têm a aceitação de quase todos os Estados. A universalidade dos referidos direitos é
reconhecida a tal ponto que os Estados se comprometeram em eleger a sua proteção e promoção
como primeira responsabilidade de todos os governos, o que se evidencia com a assinatura da
Declaração de Viena40 que determina que independente da perspectiva particular de cada cultura,
caberá à sociedade internacional fiscalizar o cumprimento dos direitos humanos, bem como,
condenar as violações maciças e persistentes, inclusive em conflitos armados. Sendo assim, se os
Estados contraíram esta obrigação perante a comunidade internacional, não é possível afirmar
que os direitos humanos pertençam ao domínio reservado dos Estados, tampouco que a soberania
estatal poderá ser invocada para justificar o descumprimento das normas internacionalmente
consagradas41. Contudo, é fato que os mesmos textos que atestam a internacionalização dos
direitos humanos reforçam a prevalência do princípio da não-intervenção, de modo que a questão
da intervenção humanitária reflete um choque entre os princípios já consagrados no Direito
Internacional do respeito à soberania e à não-intervenção nos assuntos internos de outros Estados,
contra um dever moral, cada vez mais reforçado no cenário internacional, de se evitar a violação
em massa dos direitos humanos42.
Desta forma, o disposto no art. 2º, §7º da Carta da ONU tende a ceder frente à constatação
da existência de uma ameaça contra a paz, de uma ruptura da paz ou de um ato de agressão; casos
39 Cf. DELGADO, José Manuel Avelino de Pina. Op. Cit. p.115. 40 “A fim de coordenar os múltiplos instrumentos de proteção dos direitos humanos e torna-los mais eficazes, a Assembléia Geral convocou a Segunda Conferência Mundial dos Direitos Humanos, realizada em Viena em 1993. Além de participarem delegações de 171 países, oitocentas organizações não-governamentais também estiveram presentes. A Declaração e Programa de ação de Viena consagra em seu preâmbulo princípios como o compromisso de tomar medidas para assegurar maior progresso na observância universal dos direitos humanos. O primeiro parágrafo [...] reafirma o caráter universal dos direitos humanos e o parágrafo quinto afirma, além da universalidade, o dever de todos os Estados, independente de seus sistemas políticos, econômicos e culturais, de promover e proteger todos os direitos humanos, sem deixar de levar em conta as particularidades nacionais e regionais de cunho histórico, cultural e religioso.” (Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 68/69). 41 Ibidem. p. 69/70. 42 Cf. TSCHUMI, André Vinícius. Princípio da segurança coletiva e manutenção da paz internacional. Curitiba: Juruá, 2007. p. 221.
12
em que as Nações Unidas, por meio da atuação do Conselho de Segurança, poderão empreender
ações, armadas inclusive, em conformidade com o Capítulo VII da Carta, a fim de manter ou
restabelecer a paz internacional43. A propósito, o referido capítulo dispõe em seu art. 39:
Art. 39 – O Conselho de Segurança determinará a existência de qualquer ameaça à paz, ruptura da paz, ou ato de agressão e deverá fazer recomendações, ou decidir que medidas devam ser tomadas de acordo com os Artigos 41 e 42, para manter ou restaurar a paz e segurança internacionais.
Constatada qualquer das condições disciplinadas neste artigo, o Conselho de Segurança
tem poderes discricionários para adotar as medidas previstas na Carta, estas de caráter provisório
(art. 4044) ou coercitivas como as sanções econômicas (art. 4145) e a utilização da força (art. 4246).
Portanto, é da competência do Conselho de Segurança apreciar situações que possam ameaçar a
paz e a segurança internacionais e determinar que medidas sejam tomadas para assegurar que os
Estados cumpram, dentro de suas fronteiras, as disposições dos documentos de que fazem parte47.
Importa ressaltar que a dinâmica do cenário internacional trouxe à tona o fato de que os
Estados não podem abordar por si questões que imponham diálogo e concerto em escala
universal, o que cuidou de modificar o entendimento tradicional de que as relações internacionais
se regem por regras derivadas inteiramente da livre vontade dos Estados. Porém, há que se
considerar que a internacionalização dos direitos humanos não possui o condão de autorizar um
outro Estado a se erigir como juiz da questão para determinar se existe ou não violação destes em
um caso concreto; só a própria ONU pode agir nos casos em que considerar uma ameaça à paz e
à segurança internacional. Em todo o caso, a resposta ao aludido conflito de normas - entre o
princípio consagrado da não-intervenção e da soberania estatal em face da intervenção
43 Cf. DINH, Nguyen Quoc; DAILLER, Patrick; PELLET, Alain. Direito Internacional Público. Trad. Vítor Marques Coelho. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003. p. 457. 44 Art. 40. A fim de evitar que a situação se agrave, o Conselho de Segurança poderá, antes de fazer as recomendações ou decidir a respeito das medidas previstas no artigo 39, instar as partes interessadas a aceitar as medidas provisórias que lhe pareçam necessárias ou aconselháveis. Tais medidas provisórias não prejudicarão os direitos ou pretensões nem a situação das partes interessadas. O Conselho de Segurança tomará devida nota do não cumprimento dessas medidas. 45 Art. 41. O Conselho de Segurança decidirá sobre as medidas que, sem envolver o emprego de forças armadas, deverão ser tomadas para tornar efetivas as suas decisões e poderá instar os membros das Nações Unidas a aplicarem tais medidas. Estas poderão incluir a interrupção completa ou parcial das relações econômicas, dos meios de comunicação ferroviários, marítimos, aéreos, postais, telegráficos, radioelétricos, ou de outra qualquer espécie, e o rompimento das relações diplomáticas. 46 Art. 42. Se o Conselho de Segurança considerar que as medidas previstas no artigo 41 seriam ou demonstraram ser inadequadas, poderá levar a efeito, por meio de forças aéreas, navais ou terrestres, a ação que julgar necessária para manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais. Tal ação poderá compreender demonstrações, bloqueios e outras operações, por parte das forças aéreas, navais ou terrestres dos membros das Nações Unidas. 47 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 71.
13
humanitária - deve ser dada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas – órgão responsável
pela manutenção da paz e segurança mundiais – uma vez que cabe a este órgão considerar se um
determinado caso de violação dos direitos humanos se constitui uma ameaça a paz e segurança
internacionais, questão que se sobrepõe ao dever de não-intervenção. Frise-se que o artigo que
consagra este princípio (art. 2º, §7º) estabelece que as medidas coercitivas do Capítulo VII da
Carta se situam acima da jurisdição dos Estados. Logo, quando autorizada pelo Conselho de
Segurança, a intervenção com o propósito de fazer cessar as violações dos direitos humanos em
um Estado é considerada legal, e em caso contrário, as ações militares contra um Estado só serão
consideradas legais se utilizadas dentro das exceções previstas na própria Carta (art. 51 - legítima
defesa e aplicação do art. 3948)49.
É verdade que o direito à intervenção humanitária ainda não está regulamentado pelos
instrumentos necessários, mas, diante da indubitável internacionalização dos direitos humanos,
essa falta de regulamentação não constitui, de forma alguma, a priori, obstáculo à existência
desse direito, conforme se demonstrará ao longo desta investigação.
1.2 A DECLARAÇÃO SOBRE RELAÇÕES AMISTOSAS ADOTADA PELA ASSEMBLÉIA GERAL DA ONU, EM 1970
A “Declaração Relativa aos Princípios do Direito Internacional que regem as Relações
Amistosas e Cooperação entre os Estados conforme a Carta da ONU”, aprovada pela Resolução
2.625 da Assembléia Geral em 24 de outubro de 1970, consistiu num exame detalhado do
desenvolvimento do Direito Internacional desde a Conferência de São Francisco, quando foi
aprovada a Carta da ONU, até a atualidade daquele período, e reflete a percepção e a prática dos
Estados sobre os princípios do Direito Internacional contemporâneo50. Oportuno esclarecer que
para o escopo deste trabalho, importa comentar os princípios da proibição do uso ou ameaça da
força e o da não-intervenção, haja vista que se pretende defender a legalidade das intervenções
48 “Embora a Carta tenha previsto a criação de um contingente militar permanentemente à disposição das decisões do Conselho de Segurança, isto ainda não foi possível, o que agravou as questões relativas ao comando e controle das operações. As nações querem ditar onde seus contingentes vão servir e que tarefas vão desempenhar e a ONU não tem nenhum poder para manter as nações sob determinado contrato. Integrar soldados de diversos países, que nunca trabalharam juntos, não é tarefa fácil de ser alcançada e aumenta os riscos de controvérsias durante as operações.” (Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 182/183). 49 Cf. TSCHUMI, André Vinícius. Op. Cit. p. 222. 50 Cf. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Op. Cit. p. 92.
14
humanitárias internacionais para proteção dos direitos humanos, questão que frontalmente põe à
prova os referidos princípios.
A fim de desmistificar a função que a Carta das Nações Unidas deveria exercer na prática
do Direito Internacional e das relações internacionais em geral, é que a Assembléia Geral da
ONU, por ocasião do vigésimo quinto aniversário das Nações Unidas, propôs o estudo de uma
lista de princípios a serem cuidadosamente examinados. A concepção de coexistência pacífica de
todos os Estados necessitava de uma análise frente aos novos Estados independentes que
prenunciavam a era das descolonizações, o fenômeno do impasse nuclear, o movimento do não-
alinhamento e, por assim dizer, uma maior mobilização dos Estados em prol de princípios que
efetivamente permitissem a coexistência pacífica entre eles. Havia também a necessidade de se
reconhecer a existência e igualdade, perante o sistema jurídico internacional, dos diferentes
sistemas políticos, econômicos e sociais dos Estados. Tudo isso culminou nos trabalhos de
elaboração da Declaração de 1970 que resultou na primeira interpretação detalhada, desde a
Conferência de São Francisco de 1945, dos princípios erigidos pela Carta da ONU51.
Importante ressaltar que a adoção da Declaração de 1970 não é um processo de emenda
informal da Carta da ONU, mas se trata de uma interpretação de seus princípios, levando-se em
conta os seus propósitos, a fim de reduzir a distância entre a realidade social e o ordenamento
jurídico internacional52. Com efeito, os princípios consagrados na referida Declaração, não são
idênticos aos dispostos no art. 2º da Carta da ONU, quais sejam: a igualdade de todos os
membros das Nações Unidas, o cumprimento de boa fé das obrigações assumidas de acordo com
a Carta, a solução pacífica de controvérsias internacionais, a não-utilização e não-ameaça da
força contra a integridade territorial ou independência política de qualquer Estado, a assistência
às Nações Unidas em ação a que recorrer a Organização, a garantia de que os Estados não-
membros ajam de acordo com tais princípios, e a não-intervenção pelas Nações Unidas em
assuntos do domínio reservado de qualquer Estado (excetuadas as medidas coercitivas do
capítulo VII da Carta)53.
A seu turno, a Declaração de 1970 consagrou sete princípios fundamentais, a saber: a
proibição ou renúncia do uso ou ameaça da força nas relações internacionais, a solução pacífica
de disputas internacionais, a não-intervenção, a cooperação internacional, a igualdade de direitos
51 Cf. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Op. Cit. p. 98. 52 Ibidem. 53 Ibidem. p. 100/101.
15
e a autodeterminação dos povos, a igualdade soberana dos Estados e a boa fé no cumprimento das
obrigações internacionais54.
Percebe-se que a Declaração de 1970 deixou de reafirmar alguns princípios esculpidos na
Carta da ONU, mas frisou o dever dos Estados de cooperação internacional e o princípio da
igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos, questões mais atuais à época e de suma
importância, uma vez que a Declaração foi resultado da participação nos trabalhos dos países
recém-emancipados politicamente55.
O princípio da proibição do uso ou ameaça da força foi considerado um dos principais
fundamentos da ordem jurídica internacional. Além de estar previsto no artigo 2º, §4º da Carta,
este princípio já se encontrava no Pacto de Briand-Kellog e em vários outros documentos
internacionais, dada a importância da sua reafirmação, principalmente em um mundo de Estados
interdependentes, no qual se vivenciava, durante a Guerra Fria, uma corrida armamentista.
Acerca do princípio em análise, algumas exceções foram suscitadas, principalmente pelos países
recém-emancipados. Como exemplo, tentou-se relacionar o uso da força em situações coloniais
com o princípio da igualdade de direitos e autodeterminação dos povos. Assim, o direito de
legítima defesa, amparado no art. 51 da Carta abarcaria o direito dos povos de defenderem-se
contra a dominação colonial e, conseqüentemente, o fato de poderem lutar pelo seu direito de
autodeterminação. A legítima defesa contra a dominação colonial deveria ser encarada como uma
exceção à regra geral, uma vez que o colonialismo era um ato de força e deveria ser considerado
como um ato de agressão. Sobre este ponto, restou acertado que as relações entre um território
sem governo próprio e uma autoridade encarregada de sua administração é de caráter
internacional e, por sua vez, de responsabilidade das Nações Unidas, obrigação imposta pelo
Capítulo XI da Carta. Assim, não se justifica a utilização da força no exercício do direito de
autodeterminação dos povos56.
De outra banda, a condenação à guerra de agressão e ao uso da força em represálias foi
peremptória. Enfatizou-se a necessidade de responsabilizar os Estados que deflagrassem este tipo
54 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Assembléia Geral. Resolução 2.625 de 24 de outubro de 1970. Disponível em: <http://daccessdds.un.org/doc/RESOLUTION/GEN/NR0/352/86/IMG/NR035286.pdf> Acesso em: 30 de maio de 2008. p. 130. 55 Cf. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Op. Cit. 101. 56 Ibidem. p. 107.
16
de conflito ou que cometessem crimes contra a paz, uma vez que, no Direito Internacional
contemporâneo a proibição do uso da força se tornou uma norma de jus cogens5758.
No tocante à utilização da força pelas Nações Unidas, ressaltou-se que a Carta conferiu
poderes e autoridade aos seus organismos para a manutenção da paz e segurança internacionais,
de forma que o uso da força baseado na decisão do Conselho de Segurança é legal59.
A principal controvérsia surgida na elaboração da Declaração em tela foi com relação ao
sentido que deveria ser atribuído ao termo “força”. Inicialmente, definiu-se que o termo cobria
somente a força armada, mas várias delegações argumentaram a necessidade de se incluir na
acepção do termo as pressões política e econômica dirigidas contra a integridade territorial e a
independência política de outro Estado. Contudo, a Declaração de 1970 não conseguiu fornecer
uma definição clara a esse respeito e adotou uma redação abstrata que não foi capaz de solucionar
a controvérsia60.
Tampouco a definição de agressão, adotada pela Resolução nº 3.314 da Assembléia Geral
das Nações Unidas em 1974, forneceu uma resposta inteiramente satisfatória à questão, mas de
qualquer forma, manifestou um consenso mínimo sobre a matéria, o que já é um fator positivo. A
definição de agressão não fez referência alguma à intervenção econômica e se limitou a um
conceito restrito de agressão pela utilização da “força armada” em violação da soberania estatal.
Insta salientar que a definição adotada e a enumeração dos atos de agressão não são exaustivos
conforme advertiu o próprio art. 4º, da Resolução in análise, o qual atribui ao Conselho de
Segurança a faculdade de determinar quaisquer outros atos que porventura pudessem constituir
agressão conforme as disposições da Carta da ONU61. A Resolução constitui uma simples
recomendação da Assembléia Geral das Nações Unidas ao Conselho de Segurança, ou seja, é soft
law e, por sua vez, não vincula esse organismo a exercer suas funções somente dentro dos seus
termos. Por isso, a enumeração das ações que configuram agressão, listadas no art. 3º, não é
57 Jus Cogens é uma norma imperativa de Direito Internacional geral, é uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados como um todo, como norma da qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por norma ulterior de Direito Internacional geral da mesma natureza. (Cf. CONVENÇÃO DE VIENA SOBRE O DIREITO DOS TRATADOS. Disponível em: <http://www2.mre.gov.br/dai/dtrat.htm> Acesso em 30 de maio de 2008). 58 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Assembléia Geral. Resolução 2.625 de 24 de outubro de 1970. Op. Cit. p. 130. 59 Ibidem. p. 131. 60 Cf. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Op. Cit. p. 107. 61 Cf. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Assembléia Geral. Resolução 3.314 de 14 de dezembro de 1974. Op. Cit. p. 151.
17
taxativa, e o Conselho de Segurança pode proceder à sua interpretação tanto num sentido
restritivo como extensivo, tendo em conta, logicamente, as circunstâncias pertinentes, de modo
que ele pode tanto desconsiderar um ato que à primeira vista se configuraria como um ato de
agressão (art. 2º), como considerar quaisquer outros atos como agressão, em conformidade com
as disposições da Carta62.
O dever de não-intervenção nos assuntos internos dos Estados foi outro princípio
amplamente defendido pelos Estados recém-emancipados, sobretudo pelos Estados latino-
americanos e do Leste Europeu. Para eles, o princípio se constituía na tradução da sua própria
história e na defesa de sua independência e soberania. Ressaltou-se que qualquer atividade de um
Estado contra o sistema político, econômico ou social de outro, ou quaisquer tentativas de impor
uma forma específica de organização ou governo, deverão ser consideradas ilegais63. A fim de
delimitar o princípio da não-intervenção, foi necessário estabelecer o alcance do domínio
reservado dos Estados. De modo geral, restou ventilado que atos como o genocídio64, crimes
contra a humanidade65, denegação do direito de autodeterminação dos povos ou atos cometidos
em violação aos acordos internacionais não recairiam sob o domínio reservado dos Estados. Ou
seja, o princípio em questão não pode permitir que um país viole os direitos humanos dos seus
cidadãos sem que essas violações tornem-se objeto de preocupação legítima da comunidade
internacional66.
A interpretação dada pela Declaração de 1970 sobre o princípio da não-intervenção, ao
final dos trabalhos, considera que a intervenção armada e todas as outras formas de interferências
ou atentados contra a personalidade do Estado ou contra seus elementos políticos, econômicos e
culturais são consideradas contrárias ao Direito Internacional. Assim, nenhum Estado pode
suscitar ou utilizar medidas econômicas, políticas, ou de qualquer outra natureza para coagir
outro Estado a fim de obter a sua subordinação ou extrair vantagens. Finalmente, o texto
asseverou que todos os Estados têm o direito inalienável de escolher seu próprio sistema político,
social e cultural sem a interferência de qualquer outro. Entretanto, frisou-se que a interpretação 62 Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Op. Cit. p. 146. 63 Cf. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Op. Cit. p. 112/113. 64 Segundo o art. 6º do estatuto do Tribunal Penal Internacional, genocídio significa qualquer ato cometido com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, ético, racial ou religioso. (Cf. TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL. Estatuto da Organização Internacional do Tribunal Penal. Disponível em: <http://www.icc-cpi.int/library/about/officialjournal/Rome_Statute_English.pdf> Acesso em: 05 de agosto de 2008). 65 Segundo o art. 6º do estatuto do Tribunal Penal Internacional, genocídio significa qualquer ato cometido com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, ético, racial ou religioso. (Ibidem). 66 Cf. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Op. Cit. p. 119.
18
dada a este princípio pela Declaração de 1970 não deverá afetar as disposições da Carta das
Nações Unidas relativas à paz e segurança internacionais67.
E ainda, a Resolução nº 2.625, proclamou como um princípio o dever de não-intervenção
nos assuntos da competência nacional de um Estado, ao afirmar:
Nenhum Estado ou grupo de Estados tem o direito de intervir direta ou indiretamente, por qualquer motivo, nos assuntos internos ou externos de outro Estado. Em conseqüência, não apenas a intervenção armada, mas também qualquer outra forma de ingerência ou ameaça, dirigida contra a personalidade de um Estado ou seus elementos políticos, econômicos ou culturais, são contrárias ao direito internacional68.
Ligado ao princípio da não-intervenção, foram ventilados os princípios da igualdade de
direitos e da autodeterminação dos povos. Este foi considerado, à época da Declaração de 1970,
um princípio em franca evolução, haja vista que os movimentos de emancipação nacional
possibilitaram a vários países a conquista de sua independência e soberania. A autodeterminação
dos povos tornou-se uma regra de aplicação universal no Direito Internacional contemporâneo, de
forma que todo Estado tem o dever de não intentar qualquer ação que se mostre contrária ao
exercício deste direito69.
Por derradeiro, cabe ressaltar que a Declaração relativa aos princípios do Direito
Internacional que regem a relações amistosas e cooperação entre os Estados, do ano de 1970,
consistiu numa tentativa exaustiva de sistematização dos princípios erigidos na Carta da ONU e
se mostrou adequada às exigências e necessidades da época. Além disso, ela representou um
progresso, visto que considerou a prática internacional desde a adoção da Carta das Nações
Unidas até aquela época, e conferiu à Carta o tratamento de fonte formal do Direito Internacional.
Apesar de suas imperfeições e insuficiências, por intermédio da declaração de 1970 é que foi
possível detectar a opinio juris da comunidade internacional da época sobre as matérias
abordadas70.
Quanto aos princípios aqui analisados, cumpre reafirmar que as Delegações optaram por
uma redação abstrata do princípio da proibição do uso ou ameaça da força, de modo a superar o
impasse entre as interpretações restritiva e ampla do termo “força”. Ainda assim, a Declaração
proibiu a utilização da força contra a integridade territorial dos Estados e esclareceu que o
67 Cf. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Op. Cit. p. 121. 68 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Assembléia Geral. Resolução 2.625 de 24 de outubro de 1970. Op. Cit. p. 131. 69 Cf. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Op. Cit. p. 123/124. 70 Ibidem. p. 129/130.
19
território de nenhum Estado poderá ser objeto de ocupação militar ou de aquisição por outro, por
meio do emprego da força armada. Da mesma forma, a utilização da força para interferir nos
assuntos de domínio reservado dos Estados é proibida, haja vista que os povos não poderão ser
privados do seu direito à independência e, por conseguinte, do poder de escolher livremente o seu
próprio sistema político, econômico, social e cultural71. O tratamento conferido ao princípio da
não-intervenção, por sua vez, dissipou todas as dúvidas, na medida em que condenou, em todas
as suas formas, seja ela política, econômica ou cultural, a intervenção nos assuntos internos dos
Estados72.
1.3 O CASO DAS ATIVIDADES MILITARES E PARAMILITARES NA NICARÁGUA (NICARÁGUA V. ESTADOS UNIDOS)
Este caso é paradigmático para o presente estudo, pois a Corte Internacional de Justiça
pôde se manifestar sobre o princípio da não-intervenção, de forma que serão expostas e
analisadas somente as questões de mérito relativas ao desrespeito do referido princípio.
O caso em tela ocorre em meados da década de 1980 no contexto da corrida armamentista
da Guerra Fria, e consiste numa das respostas conservadoras do então governo dos Estados
Unidos, presidido por Ronald Reagan, aos movimentos revolucionários da América Central. A
Nicarágua caiu em mãos adversas aos estadunidenses no ano de 1979, quando ocorreu a vitória
definitiva da Revolução Sandinista, comandada pela Frente Sandinista de Libertação Nacional
(FSLN). Automaticamente, os Estados Unidos a interpretaram como uma ameaça “soviético-
cubana” à paz do hemisfério. Era necessário enfrentar política e militarmente a ameaça do perigo
vermelho à segurança do continente, pois o regime que se instaurou na Nicarágua acabou por se
integrar ao bloco socialista. Os Estados Unidos, então, iniciam uma série de ofensivas militares e
políticas contra esse país, com o intuito de desestabilizar o governo revolucionário sandinista73.
O caso foi posto à análise da Corte em 09 de abril de 1984, sob as alegações
nicaragüenses de que os EUA deveriam ser responsabilizados pelos atos cometidos em seu
território. Os fatos imputados aos EUA foram os seguintes: a) instalação de minas nos portos e
71 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Assembléia Geral. Resolução 2.625 de 24 de outubro de 1970. Op. Cit. p. 131. 72 Ibidem. p. 138. 73 SEBRIAN, Raphael Nunes Nicoletti; LEITE JÚNIOR, José Hugo. O “tribunal permanente dos povos” e a intervenção dos EUA na Nicarágua. Disponível em: <http://www.unicentro.br/editora/revistas/guairaca.pdf> Acesso em: 27 de maio de 2008.
20
mar territorial da Nicarágua, feita por militares americanos ou por nacionais de países latino-
americanos financiados pelos Estados Unidos, cuja explosão causou danos pessoais e materiais
irreparáveis e implicou riscos que ocasionaram a alta das taxas dos seguros marítimos; b)
operações contra instalações petroleiras e bases navais da Nicarágua; c) sobrevôos em seu espaço
aéreo realizado por aeronaves militares americanas; d) manobras militares efetuadas juntamente
com o Estado de Honduras, pelos Estados Unidos em território hondurenho, próximo da fronteira
entre Honduras e Nicarágua; e) criação, organização e apoio ao exército mercenário chamado
força “contra” e f) medidas de caráter econômico como a suspensão da assistência econômica e
oposição dos EUA à concessão à Nicarágua de empréstimos por instituições financeiras
internacionais, além de um embargo total sobre o comércio com a Nicarágua por decisão do
presidente dos Estados Unidos74.
A seu turno, os Estados Unidos sustentaram que seus atos constituíam legítima defesa
coletiva, uma vez que a Nicarágua fornecia apoio aos grupos armados que operavam nos países
vizinhos75, sobretudo em El Salvador. Também responsabilizaram a Nicarágua por ataques
militares transfronteiriços dirigidos contra Honduras e Costa Rica. Além disso, alegaram que seus
atos no território da Nicarágua visavam à proteção dos direitos humanos no país, uma vez que o
atual presidente violava certas garantias dadas pelo seu predecessor imediato e os Estados Unidos
acreditavam possuir responsabilidade particular quanto ao respeito desses compromissos76.
Em suma, a Corte afastou a alegação americana de legítima defesa e considerou que esta,
quer seja individual ou coletiva, só pode ocorrer na seqüência de uma agressão armada, conforme
a definição da Resolução 3.314 da Assembléia Geral, o que não ficou caracterizado no presente
caso. A Corte entendeu que no Direito Internacional contemporâneo, os Estados não têm
nenhum direito de resposta armada “coletiva” a atos que não constituam uma agressão armada77.
Decidiu que os EUA, ao treinar, armar, equipar, financiar e prover as forças “contras”, e ao
encorajar, apoiar e assistir de qualquer outra maneira as atividades militares e paramilitares na
Nicarágua e contra ela, violaram a obrigação que lhes impõe o direito internacional costumeiro de 74 Cf. CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Caso das atividades militares e paramilitares na e contra a Nicarágua (Nicarágua v. Estados Unidos). Op. Cit. p. 9/10. 75 “Após a revolução de 1979, o novo regime introduziu a sociedade nicaragüense num processo de ruptura com o sistema capitalista. [...] Enquanto isso, em El Salvador, Guatemala e Honduras, em menor proporção, havia luta armada. A administração norte-americana constituiu então uma frente contra a penetração soviética no continente.” (Cf. SEBRIAN, Raphael Nunes Nicoletti; LEITE JÚNIOR, José Hugo. Op. Cit. p. 57). 76 Cf. CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Caso das atividades militares e paramilitares na e contra a Nicarágua (Nicarágua v. Estados Unidos). Op. Cit. p. 11/12. 77 Ibidem.
21
não intervir nos assuntos internos de um outro Estado78; que ao ordenar ou autorizar o sobrevôo
do território nicaragüense e ao instalar minas nos portos e mar territorial, violaram a soberania
estatal da Nicarágua; e ainda, que pelos atos de intervenção que implicaram no emprego da força,
violaram também, a obrigação internacional de não recorrer à força contra outro Estado79.
Mais especificamente, com relação ao princípio da não-intervenção, a Corte esclareceu
que esse princípio envolve o direito de qualquer Estado soberano de conduzir seus assuntos sem
qualquer ingerência externa, e ressaltou a sua incorporação em diversas declarações e resoluções
internacionais, das quais são partes os Estados envolvidos neste litígio. Considerou, então, que os
referidos textos testemunham a aceitação pelos Estados Unidos e pela Nicarágua desse princípio
como costumeiro e universalmente aplicável80.
Sobre o conteúdo do princípio em análise, a Corte estabeleceu os elementos constitutivos
aplicáveis ao caso, e assim, considerou que uma intervenção proibida deve ser aquela que incide
em matérias sobre as quais o princípio da soberania dos Estados permite a cada um decidir
livremente sobre a escolha do seu sistema político, econômico, social e cultural, bem como, sobre
a formulação e condução de suas relações exteriores. A intervenção é ilícita, portanto, quando se
utiliza, em relação às mencionadas escolhas, de métodos de coerção, principalmente a força, seja
sob sua forma direta (ação militar), seja sob sua forma indireta (apoio de atividades subversivas
no interior de outro Estado)81.
A Corte observou que no decorrer dos anos anteriores ao julgamento, várias intervenções
estatais ocorreram e visavam à destituição de um governo de outro Estado, mas esta prática não
permite concluir que o Direito Internacional contemporâneo preveja um direito geral de
intervenção em favor da oposição existente em outro Estado82. Assim, a intervenção americana
foi considerada condenável porque foi constatado que o governo dos Estados Unidos, pelo apoio
fornecido aos “contras”, pretendia exercer pressão sobre a Nicarágua nos domínios em que cada
Estado goza de inteira liberdade de decisão, pois ficou claro que a intenção dos “contras” era a de
depor o governo instaurado na Nicarágua. Ela asseverou que se um Estado fornece seu apoio a
grupos armados cuja ação tende a depor o governo de outro Estado, resta configurada uma
78 Cf. CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Caso das atividades militares e paramilitares na e contra a Nicarágua (Nicarágua v. Estados Unidos). Op. Cit. p. 17. 79 Ibidem. p. 15/16. 80 Ibidem. p. 14. 81 Ibidem. 82 Ibidem. p. 15.
22
intervenção em seus assuntos internos, independente do objetivo político do Estado que oferece
esse apoio. Concluiu, portanto, que o apoio dado pelos Estados Unidos às atividades militares e
paramilitares dos “contras” na Nicarágua sob forma de financiamento, treinamento, fornecimento
de armas, informações e meios logísticos, constitui uma violação indubitável do princípio da não-
intervenção83.
Inobstante, a Corte assegurou que uma intervenção é lícita quando tem como único fim o
fornecimento de uma ajuda humanitária, ou seja, que para não ter o caráter de uma intervenção
condenável nos assuntos internos de outro Estado, a assistência humanitária deve se limitar aos
fins reconhecidos pela prática da Cruz Vermelha e, sobretudo, ser concedida sem discriminação.
Assim, a alegação americana de que interveio na Nicarágua para proteger direitos humanos não
encontrou respaldo, uma vez que o congresso dos Estados Unidos abriu crédito apenas para uma
“assistência humanitária” aos “contras”, o que comprova que essa ajuda foi discriminatória e
visava somente à continuação (apoio) das atividades destes. Além disso, a Corte esclareceu que o
emprego da força pelos Estados Unidos não poderia ser considerado o método apropriado para
assegurar o respeito dos direitos humanos84.
Em opinião separada, o juiz presidente ainda ressaltou que a solução pacífica dos
conflitos, principal objetivo almejado pelo Direito Internacional contemporâneo, repousa na
observância dos princípios da não utilização ou ameaça da força e não-intervenção nos assuntos
internos dos Estados, mormente neste último, cuja observância é vital para a co-existência
saudável e pacífica dos países na comunidade internacional85.
A decisão analisada não forneceu uma definição inquestionável do princípio da não-
intervenção, mas é preciso admitir que ela foi capaz de fornecer algumas importantes
considerações sobre os seus elementos constitutivos. Primeiramente, restou claro que são
matérias de domínio reservado a escolha do sistema político, econômico, social, cultural e a
formação das relações exteriores, questões sobre as quais a intervenção deve ser considerada
ilícita. Ressaltou-se também que o fornecimento de ajuda estritamente humanitária não poderia
ser considerado contrário ao Direito Internacional, porém não foram delineadas as situações em
83 Cf. CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Caso das atividades militares e paramilitares na e contra a Nicarágua (Nicarágua v. Estados Unidos). Op. Cit. p. 17. 84 Ibidem. p. 18/19. 85 Cf. CORTE INTERNACIONAL DE JUSTICA. Caso das atividades militares e paramilitares na e contra a Nicarágua (Nicarágua v. Estados Unidos). Decisão de 27 de junho de 1986: Resumo dos pareceres anexados ao acórdão. Disponível em: <http http://www.icj-cij.org/docket/files/70/9973.pdf> Acesso em: 30 de maio de 2008. p. 1.
23
que esta ajuda estaria plenamente autorizada86. Além disso, a afirmação de que a utilização da
força militar não pode ser considerada meio hábil para garantia do respeito aos direitos humanos
pode facilmente ser contestada, uma vez que o recurso à força armada pode ser essencial nos
casos de violações sistemáticas e em larga escala dos referidos direitos. Em situações como o
genocídio ou crimes contra a humanidade, por exemplo, a não utilização da força perde
completamente o seu sentido, pois entra em conflito com o objetivo último de proteger as vítimas
do conflito87. De todo o modo, verifica-se que a decisão proferida por ocasião do julgamento em
análise, mostrou-se evolutiva ao reconhecer que uma ajuda estritamente humanitária não poderia
ser considerada uma intervenção ilícita.
1.4 O DOMÍNIO RESERVADO DOS ESTADOS E OS DIREITOS HUMANOS
Como já aventado, a Carta das Nações Unidas proíbe a ingerência nos assuntos internos
ou políticos de outros Estados por meio do disposto no art. 2º, §7º, que consagra ao mesmo
tempo, o princípio da não-intervenção e a noção de domínio reservado dos Estados. Isto porque, a
idéia de domínio reservado está estreitamente relacionada ao princípio da não-intervenção, o qual
proíbe que a ONU e, de acordo com a interpretação mais estendida que o referido dispositivo
obteve com a Declaração de 1970, qualquer Estado, intervenham em matérias sujeitas à ordem
interna das nações88. No entanto, o referido dispositivo carece de uma definição exata dos
critérios jurídicos com que deve ser interpretado e aplicado, e ainda não se mostrou viável
determinar o exato alcance e conteúdo do domínio reservado, pois as questões que são
essencialmente de jurisdição interna são relativas e dependem do desenvolvimento do Direito
Internacional89.
A noção de domínio reservado de Estado está intimamente ligada ao conceito de
soberania. Esta consiste na liberdade que os Estados têm de decidir, embora submetidos ao
Direito Internacional, sobre suas competências e atribuições. O domínio reservado, portanto, diz
respeito a determinadas matérias nas quais os Estados têm inteira liberdade de decisão, ou seja,
são questões em que ainda não se verifica uma limitação imposta pelo Direito Internacional e, em 86 Cf. DINH, Nguyen Quoc; DAILLER, Patrick; PELLET, Alain. Op. Cit. p. 453/454. 87 Cf. VIOTTI, Aurélio Romanini de Abranches. Op. Cit. p. 73. 88
Cf. GARCIA, Emerson. Proteção internacional dos direitos humanos: Breves reflexões sobre os sistemas convencional e não-convencional. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2005. p. 112. 89 Cf. SALCEDO, Juan Antonio Carrillo. Soberania de los Estados y derechos humanos em derecho internacional contemporâneo. 2ª Edição. Madrid: Tecnos, 2004. p. 40/41.
24
assim sendo, trata-se de um conceito jurídico e não político. A sua existência e reconhecimento se
coadunam com a supremacia do Direito Internacional e é este quem determina, em última
instância, a sua extensão90.
Segundo o Instituto de Direito Internacional, domínio reservado é o das atividades estatais
em que a competência do Estado não está vinculada pelo direito internacional. Sua extensão
depende do direito internacional e, consequentemente, do seu desenvolvimento91. Assim, a
composição de um compromisso internacional em matéria até então dependente do domínio
reservado92, automaticamente submete as questões nele aventadas ao Direito Internacional, o que
impossibilita para as partes obrigadas a argumentação da exceção de domínio reservado com
relação a qualquer controvérsia que eventualmente possa decorrer do referido compromisso93. A
conseqüência da extensão do domínio reservado conferida aos Estados é impedir a ingerência dos
demais países em matérias pertencentes ao direito interno de outros94. Na realidade, o propósito
do §7º do art. 2º da Carta da ONU não é outro senão a proteção da soberania interna dos Estados,
isto é, a salvaguarda das competências exclusivas para exercer a autoridade estatal dentro de suas
fronteiras95. O problema que se propõe é que a redação do referido dispositivo procurou limitar a
atuação da ONU nos assuntos de competência exclusiva dos Estados, ao mesmo tempo em que
lhe conferiu poderes para coagir estes últimos nos casos em que se verificar ameaça à paz e
segurança internacionais, uma vez que estabelece como ressalva as medidas coercitivas previstas
no capítulo VII da Carta. Assim, o princípio da não-intervenção é limitado pela competência do
Conselho de Segurança em definir uma ameaça à paz e segurança internacionais, e esta é limitada
pelo princípio da não-intervenção. Trata-se de uma incongruência. Desse modo, a questão se
resume à interpretação que o próprio Conselho de Segurança conferir à sua competência para a
manutenção da paz e segurança internacionais96.
90 Cf. DINH, Nguyen Quoc; DAILLER, Patrick; PELLET, Alain. Op. Cit. p. 449. 91 “[…] a evolução do direito internacional é a resultante do comportamento dos Estados quer pela sua prática convencional – conclusão de tratados em matérias inéditas -, quer pelo seu apoio às atividades e às iniciativas das organizações internacionais.” (Ibidem. p. 451). 92 “É muito possível que numa matéria como a da nacionalidade, que não é, em princípio, regulamentada pelo direito internacional, a liberdade do Estado de dispor à sua vontade seja, todavia, restringida por compromissos que este teria tomado para com outros Estados. Neste caso, a competência do Estado, exclusiva em princípio, encontra-se limitada por regras de direito internacional.” (Ibidem.). 93 INSTITUTO DE DIREITO INTERNACIONAL. Resolução sobre domínio reservado e seus efeitos. Disponível em: <http://www.idi-iil.org/idiF/navig_chron1953.html> Acesso em: 01 de novembro de 2008. 94 Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Op. Cit. p. 149. 95 Cf. SALCEDO, Juan Antonio Carrillo. Op. Cit. p. 40. 96 Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Op. Cit. p. 150.
25
Importa ressaltar que o Direito Internacional contemporâneo irradiou-se por diversas áreas
e regulamentou muitas questões que outrora não escapavam à teoria do domínio reservado.
Matérias como desarmamento, soberania territorial e, principalmente, direitos humanos não
fazem mais parte do domínio reservado dos Estados. É possível afirmar que as matérias que ainda
pertencem ao domínio reservado dos Estados são aquelas que não se tornaram objeto de qualquer
compromisso internacional assumido por estes. Desta feita, não nos parece viável determinar o
exato alcance e conteúdo do domínio reservado, pois é problemático dissociar as atividades
internas e externas de um Estado de maneira segura e objetiva97.
Ainda assim, está cristalizado pela doutrina, e as declarações dos últimos secretários da
ONU confirmam esta afirmação, que a proteção dos direitos fundamentais dos indivíduos não
pode ser considerada matéria pertencente ao domínio reservado dos Estados98. A obrigação destes
em assegurar e proteger direitos humanos decorre do reconhecimento da dignidade da pessoa
humana pela própria Carta da ONU99, de modo que nenhum Estado poderá esquivar-se da
responsabilização internacional pela violação dos referidos direitos, sob o pretexto de que esta
matéria é essencialmente de sua jurisdição interna100. Ademais, é certo que os seres humanos não
podem ser submetidos às arbitrariedades dos seus governantes que, ao invocar a barreira imposta
pela soberania, agem de maneira inaceitável, num completo desrespeito as regras jurídicas
estabelecidas pela comunidade internacional101. De fato, eventual alegação de competência
exclusiva dos Estados ou de ofensa à soberania estatal para justificar o desrespeito aos direitos
humanos, não é mais possível; primeiro, porque não são atos justificáveis, segundo, porque se
verifica a aceitação da quase totalidade dos Estados do mundo na regulamentação da matéria por
meio de tratados ou convenções internacionais dos quais fazem parte. É importante frisar, que a
atuação de um Estado na celebração dos mencionados documentos decorre da própria atividade
soberana do Estado, de forma que resultaria paradoxal e contraditório invocar o princípio da
soberania para evadir uma responsabilidade assumida em seu pleno e livre exercício102.
97 Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Op. Cit. p. 149. 98 Ibidem. p. 152. 99 Em seu preâmbulo, a Carta da Organização das Nações Unidas propõe, entre outros, o seguinte objetivo: “reafirmar a nossa fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, assim como das nações, grandes e pequenas”. 100 Cf. SALCEDO, Juan Antonio Carrillo. Op. Cit. p. 42. 101 Cf. RAMOS, Adriana. Intervenção Humanitária. Disponível em: <http://www.viannajr.edu.br/revista/dir/doc/art_10013.pdf> Acesso em 22 de novembro de 2007. p. 2. 102 Cf. RAMOS, André de Carvalho. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 78/79.
26
Uma vez que os direitos humanos não mais fazem parte do domínio reservado dos
Estados, a presunção de ilegalidade das intervenções para a proteção dos direitos humanos não
poderia decorrer, pois, da alegação de que são atos que violam a soberania de um Estado. Com
efeito, o direito de intervenção humanitária, fora dos mecanismos da ONU, não encontra amparo
legal devido à proscrição geral da ameaça ou uso da força (art. 2º, §4º)103, mas a ONU poderá
intervir, inclusive com a utilização de força militar, amparada pelo Capítulo VII da Carta, nos
casos em que a violação dos direitos humanos for considerada pelo Conselho de Segurança uma
ameaça à paz e segurança internacionais104.
É importante destacar que a proteção dos direitos humanos é um dos pilares do sistema de
segurança coletiva105 erigido pela Carta das Nações Unidas e, dentro dessa perspectiva, o
Conselho de Segurança é o titular do direito de utilizar medidas coercitivas para restabelecer a
estabilidade internacional. Contudo, no período da Guerra Fria, este sistema quedou paralisado,
uma vez que qualquer ação empreendida pelas Nações Unidas em prol da paz era imediatamente
bloqueada pelos Estados Unidos ou pela União Soviética, por meio do direito de veto no seio do
Conselho de Segurança. Desta forma, durante este período, ocorreram apenas alguns
envolvimentos esparsos106, mas em termos práticos, o sistema não evoluiu muito107. Acrescente-
se a isso a defesa do direito de não-intervenção pelos países recém emancipados, que, numa
tentativa de se firmarem como nações independentes, afastavam qualquer possibilidade de
intervenção. Com o fim da Guerra Fria, percebe-se a aceitação da primazia da proteção dos
103 Cf. VIOTTI, Aurélio Romanini de Abranches. Op. Cit. p. 94. 104 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 100. 105 “Segurança coletiva é um princípio do direito internacional público contemporâneo que incita uma organização internacional, com o apoio obrigatório dos seus membros, a implementar medidas coercitivas para repelir um ataque armado não-justificado ou outra ação que viole a paz internacional. Por “ataque armado não justificado ou outra ação que viole a paz internacional”, entende-se qualquer medida baseada no uso da força ou da violência que esteja em desacordo com as regras do direito internacional. Excetuando-se as ações autorizadas pelo Conselho de Segurança.” (Cf. TSCHUMI, André Vinícius. Op. Cit. p. 17). 106 A Resolução 84, aprovada pelo Conselho de Segurança, em 07 de julho de 1950, determinou a constituição de uma força das Nações Unidas, sob o comando dos Estados Unidos, para ajudar a Coréia do Sul a repelir um ataque injusto (a Coréia do Norte, de influência comunista, atacou a Coréia do sul, aliada dos Estados Unidos). Trata-se de um caso isolado, pois é sabido que os EUA aproveitaram a momentânea ausência do representante da União Soviética dos trabalhos do Conselho de Segurança para apresentar e fazer aprovar o projeto de resolução que autorizou a intervenção. Nas décadas de 1960 e 1970, medidas foram tomadas contra os governos racistas da Rodésia do Sul, atual Zimbabwe e da África do Sul. Em relação à primeira, o Conselho de Segurança decidiu impor, não sem inúmeras críticas em relação a real existência de ameaça a paz e segurança internacionais, um embargo econômico e de venda de armas, além de ter autorizado o uso limitado da força para fazer cumprir a Resolução. Contra a segunda, além da proibição de venda de armamento, também vedou qualquer tipo de ralação entre os Estados-membros e a África do Sul no tocante a desenvolvimento de reatores nucleares. (Cf. DELGADO, José Manuel Avelino de Pina. Op. Cit. p. 98/100). 107 Ibidem. p. 101.
27
direitos do homem e a concordância de que o sofrimento humano e a segurança internacional são
assuntos intimamente ligados e correlatos ao sistema de segurança coletiva das Nações Unidas. É
a partir deste momento, que os direitos humanos passam a integrar a agenda internacional e
definitivamente são excluídos das matérias pertencentes ao domínio reservado dos Estados108. A
Organização das Nações Unidas, então, começa a adotar mecanismos capazes de compelir os
Estados a se submeterem as suas decisões e, assim, ordena intervenções que permitiram o uso da
força e vincularam a ameaça à paz e segurança internacionais às questões humanitárias109.
Na década de 1990, o Capítulo VII foi invocado diversas vezes pelo Conselho de
Segurança da ONU para justificar intervenções militares onde as condições humanitárias
demandavam ajuda internacional110. As principais resoluções adotadas nesse sentido foram as
seguintes: 661 de 1990 para o Iraque, 713 e 757 respectivamente de 1991 e 1992 para os Estados
sucessores da ex-Iugoslávia, 733 de 1992 para a Somália, 748 e 883 respectivamente de 1992 e
1993, para a Líbia, 788 de 1992 para a Libéria, 841 de 1993 para o Haiti, 918 de 1994 para
Ruanda, 1.054 e 1.070 ambas de 1996 para o Sudão, 1.132 de 1997 para Serra Leoa, 1.160 de
1998, para Kosovo, na Iugoslávia e 1.267 de 1999, para o Afeganistão, diante da não extradição
de Osama Bin Laden. Trata-se de um conjunto bastante extenso de resoluções ligadas à
manutenção da paz e segurança internacionais, o suficiente, inclusive, para constituir uma prática
reiterada, elemento material do que poderá se tornar um costume111 internacional112. A explicação
para este impulso humanitário consiste na interpretação flexível que o Conselho de Segurança
conferiu ao conceito de ameaça à paz e segurança internacionais, prevista no art. 39 da Carta,
haja vista que o sentido original deste dispositivo pressupunha a existência objetiva de uma
ameaça de agressão de um Estado contra outro, e, conseqüentemente, o perigo real de travar-se
qualquer tipo de conflito armado internacional113. Por ora, cumpre ressaltar que essa mudança de
tratamento dispensado pela ONU às questões de cunho humanitário pode contribuir para o
surgimento de um direito/dever de intervenção humanitária, e é a partir da análise que se fará no
108 Cf. RAMOS, Adriana. Op. Cit. p. 12/14. 109 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 111. 110 Ibidem. p.114. 111 Alberto do Amaral Júnior explica que o costume decorre de uma prática reiterada, comportamentos que se repetem no tempo e revelam uniformidade. Manifesta-se quando presentes o elemento material, que se constitui pela repetição constante e uniforme de determinados atos durante certo período e o elemento psicológico que se manifesta pela convicção de que tais atos correspondem à execução de uma obrigação jurídica. (Op. Cit. p. 251). 112 Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Op. Cit. 162. 113 Cf. RAMÍREZ, Frederico Arcos. Guerras en defensa de los derechos humanos: Problemas de legitimidad em las intervenciones humanitárias. Madrid: Dykinson, 2002. p. 90.
28
segundo capítulo deste trabalho, acerca das modalidades de intervenção humanitária e das
supracitadas resoluções aplicadas pelo Conselho de Segurança que será possível verificar se as
situações em que elas foram adotadas são capazes de legitimar a utilização do referido instituto,
como medida para a salvaguarda dos direitos humanos.
2 A RELATIVIZAÇÃO DO PRINCÍPIO DA NÃO-INTERVENÇÃO NA PRÁTICA DOS ESTADOS E DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS
2.1 AS INTERVENÇÕES HUMANITÁRIAS AUTORIZADAS PELO CONSELHO DE SEGURANÇA NA DÉCADA DE 1990
Como já é possível perceber, a manutenção da paz e segurança internacionais é um dos
propósitos fundamentais do sistema jurídico da ONU e, para tanto, a Organização se propõe a
agir em situações que geram crises passíveis de ameaçar a estabilidade do sistema. Observa-se
que a Carta da ONU procurou transferir o poder de coerção dos Estados-membros para as Nações
Unidas, que desse modo, tornaram-se a única entidade competente para tratar questões relativas
ao uso da força no Direito Internacional, bem como para tomar medidas destinadas a combater a
sua utilização ilegal. Muito embora exista previsão na Carta de um importante mecanismo para
estabelecer uma força militar própria no artigo 43114, apta à implementar as resoluções das
Nações Unidas tomadas sob o capítulo VII, infelizmente, isso ainda não foi possível. Mas, ainda
assim, o Conselho de Segurança mantém o dever de garantir a segurança de todos os Estados-
membros e deve fazê-lo por intermédio dos meios disponíveis. A necessidade imperiosa da paz e
da segurança mundiais justifica o emprego de um meio não previsto na Carta, de modo que o
Conselho de Segurança não está adstrito ao art. 43 da Carta. A ação coercitiva conduzida por
Estados-membros, desde que autorizada pelo Conselho de Segurança, é válida, uma vez que os
Estados agem em nome de toda a coletividade, sob a bandeira das Nações Unidas115.
Desta feita, na década de 1990, uma série de questões relacionadas à proteção de civis em
conflitos armados foi objeto de discussão no Conselho de Segurança. Em alguns casos, este órgão
se mostrou bastante disposto em atuar diretamente frente a graves violações dos direitos humanos
114 Art. 43, § 1º. Todos os membros das Nações Unidas se comprometem, a fim de contribuir para a manutenção da paz e da segurança internacionais, a proporcionar ao Conselho de Segurança, a seu pedido e em conformidade com um acordo ou acordos especiais, forças armadas, assistência e facilidades, inclusive direitos de passagem, necessários à manutenção da paz e da segurança internacionais. 115 Cf. DELGADO, José Manuel Avelino de Pina. Op. Cit. p. 120/124.
29
e ao Direito Internacional Humanitário, e obteve os mais variados resultados. Em outros casos,
entretanto, mostrou-se hesitante e deixou a impressão de que a sua atuação serviu mais para a
satisfação perante a opinião pública internacional ou para a concretização de interesses
tradicionais dos Estados, do que, propriamente, na preocupação quanto à sorte de indivíduos em
países distantes e pouco conhecidos116. Não obstante, diferente do período da Guerra Fria em que
a questão humanitária estava divorciada da dimensão política e de segurança da sociedade
internacional, a ligação entre esses dois temas surge, em 1990, como uma possível solução para a
garantia da ordem internacional117. Verifica-se neste período, por ocasião das crises humanitárias,
que o Conselho de Segurança buscou identificar uma relação de causalidade entre a supressão das
liberdades internas e instabilidade internacional, o que evidenciou o fato de que o desrespeito aos
direitos humanos pode colocar em risco a paz e segurança internacionais118. Essa foi a razão
encontrada pelo Conselho de Segurança, como se verá a seguir, para intervir em várias crises
humanitárias recentes.
2.1.1 IRAQUE
A primeira vez que o Conselho de Segurança autorizou o uso da força para proteger
direitos humanos foi no Iraque. Logo após a Guerra do Golfo, os aliados optaram por não invadir
o Iraque para depor o governo de Saddam Hussein, mas incentivaram a revolta das minorias
curda e xiita a fazê-lo. O exército iraquiano, na ocasião, não teve problemas para esmagar a
oposição119 e, após a rebelião frustrada, as pessoas começaram a fugir em massa para as
fronteiras do Irã e da Turquia a fim de evitar represálias. Estima-se que, em abril de 1991, mais
ou menos um milhão de refugiados estavam concentrados ao longo dessas fronteiras120. A
condição extrema de fome e doença desses indivíduos provocou a reação dos países ocidentais,
principalmente porque a insurgência dos curdos foi encorajada pelos aliados, o que os tornou
indiretamente responsáveis pela eclosão do conflito. Outro fator de grande importância para a
116 Cf. VIOTTI, Aurélio Romanini de Abranches. Op. Cit. p. 109. 117 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 111. 118 Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Op. Cit. p. 189. 119 Cf. DELGADO, José Manuel Avelino de Pina. Op. Cit. p. 160. 120 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 115.
30
compreensão do envolvimento do ocidente foi o papel da mídia na formação de uma opinião
pública doméstica que tornou insustentável a inércia das potências do Conselho de Segurança121.
Dentro desse contexto, o órgão aprovou uma de suas primeiras resoluções destinadas a
autorizar a utilização da força para a proteção dos direitos humanos122. Na Resolução 688, de 05
de abril de 1991, o Conselho de Segurança se mostra seriamente preocupado com os atos de
repressão perpetrados contra a população civil iraquiana, em muitas localidades do Iraque,
principalmente nas zonas de povoação curda, o que gerou um fluxo maciço de refugiados até e
entre as fronteiras internacionais, e ameaçou a paz e segurança na região. Mais à frente, a
resolução em análise condena todos os atos de repressão cometidos contra a população civil
iraquiana e ordena que o Iraque ponha fim imediatamente a esses atos e que seja estabelecido um
diálogo com a finalidade de garantir que se respeitem os direitos humanos e políticos de todos os
cidadãos iraquianos. Insiste para que o Iraque conceda às organizações de alívio humanitário
internacionais, acesso imediato a todos aqueles que necessitem de assistência em seu território e
que ponha à disposição dessas organizações as instalações necessárias para a prestação da
assistência humanitária. Finalmente, solicita ao Secretário Geral da ONU que se utilize de todos
os meios necessários para enfrentar, com urgência, as necessidades dos refugiados e da população
iraquiana afetada pelo conflito e convoca os Estados e as organizações humanitárias a envidar
esforços na organização da tarefa de socorro as vítimas, sob a exigência de que o Iraque coopere
com o Secretário Geral para a consecução de tais finalidades123.
É perceptível que a Resolução 688 associou os abusos maciços e sistemáticos de um
Estado contra os direitos de seus próprios nacionais à problemática da segurança internacional e,
conseqüentemente, sinalizou para uma mudança no papel do Conselho de Segurança no que se
refere à limitação da jurisdição doméstica estatal em face da proteção internacional dos direitos
humanos124. A França, Grã-Bretanha e os EUA, que já haviam sinalizado a intenção de conceder
auxílio à população curda afetada pelo conflito, passaram a ter, com a aprovação da referida
Resolução, respaldo legal para promover a ajuda necessária125. As tropas tiveram o apoio de
alguns outros países para o transporte de alimentos, roupas e medicamentos para a população
121 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 119. 122 Cf. DELGADO, José Manuel Avelino de Pina. Op. Cit. p. 160. 123 Cf. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Segurança. Resolução 688 de 05 de abril de 1991. Disponível em: <http://daccessdds.un.org/doc/RESOLUTION/GEN/NR0/597/50/IMG/NR059750.pdf> Acesso em: 28 de agosto de 2008. 124 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 121. 125 Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Op. Cit. p. 197.
31
refugiada. Além disso, centros de ajuda humanitária foram instalados para permitir o retorno dos
curdos refugiados na Turquia e Irã por meio de “corredores humanitários”126 até as zonas de
segurança127, locais em que havia a proibição de toda e qualquer atividade militar por parte do
governo iraquiano, além de uma zona de exclusão aérea para monitorar a submissão do Iraque ao
cumprimento da Resolução. Estima-se que a operação permitiu o acesso de sete mil toneladas de
suprimentos para um total de um milhão e meio de refugiados128. Cabe ressaltar que apesar dessa
ação ter dado início ao ativismo do Conselho de Segurança na área humanitária129, a Resolução
apenas solicita permissão para que as organizações humanitárias prestem auxílio e, assim sendo,
ela não pode ser considerada stricto senso uma intervenção humanitária130, uma vez que a
utilização da força foi autorizada somente de modo implícito131.
2.1.2 SOMÁLIA
Um exemplo mais claro de intervenção humanitária é o caso da Somália, que ocorreu um
ano após a intervenção no Iraque132. A Somália é formada por diferentes clãs e, desde 1969, foi
governada pelo general Mohammed Siad Barre, que instaurou uma ditadura e buscou banir o
sistema de clãs em conjunto com os partidos políticos. A partir de 1988, a insurgência contra Siad
Barre se intensificou da mesma forma que a repressão estatal aos revoltosos, o que ocasionou um
grande número de exilados e refugiados nos países vizinhos. Em 1991, o presidente é deposto por
facções rivais, que logo entram em conflito entre si e, com isso, eclode uma guerra civil
sustentada pelos diferentes clãs. Pouco tempo depois, a Somália havia se tornado uma zona de
guerra, destituída de administração política, sem polícia e, tampouco, judiciário133. O clima de
guerra e a fome contribuíram para a formação de grandes contingentes de refugiados famintos. O
trabalho das agências de alívio humanitário começou a ser dificultado pelos clãs que exigiam
126 Demarcação de determinada área que deve permanecer livre do conflito para facilitar o acesso e a entrega do auxílio humanitário. (Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Op. Cit. 159). 127 “A compulsoriedade é o traço primordial que as caracteriza. A sua criação ocorre quando se decide delimitar uma área geográfica específica, independentemente da concordância do Estado envolvido, para oferecer abrigo a parcela da população civil, livrando-a, ao mesmo tempo, das conseqüências nefastas dos conflitos armados. Evidencia-se, nesse caso, a incapacidade do Estado em manter a ordem e prover a segurança dos cidadãos.” (Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Op. Cit. p. 267). 128 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 121/122. 129 Cf. DELGADO, José Manuel Avelino de Pina. Op. Cit. p. 161. 130 Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Op. Cit. 162. 131 Cf. DELGADO, José Manuel Avelino de Pina. Op. Cit. p. 161. 132 Ibidem. 133 Cf. VIOTTI, Aurélio Romanini de Abranches. Op. Cit. p. 110.
32
dinheiro para permitir que a ajuda chegasse aos necessitados, com a finalidade de realimentar e
incrementar o conflito e muitas vezes confiscavam os gêneros alimentícios e medicamentos134.
Em 1992, o Conselho de Segurança adota a sua primeira Resolução referente à crise na
Somália. A Resolução 733 expressava a preocupação do Conselho com a rápida deterioração da
ordem na Somália, com as grandes perdas materiais e de vidas humanas, e salientava que a
continuidade dessa situação ameaçava a paz e segurança na região. Mais adiante, o Conselho
ressalta a necessidade das partes cooperarem com o esforço humanitário e faz referência ao
Capítulo VII, apenas para apelar a todos os Estados para que procedessem à instauração imediata
de um completo embargo ao suprimento de armas e equipamentos militares para a Somália135.
Após intensas negociações, as duas facções principais assinaram, em março de 1992, um
acordo de cessar-fogo e permitiram o desembarque de observadores desarmados da ONU na
capital, Mogadishu, para monitorar o cumprimento do referido acordo. As hostilidades, porém,
não cessaram e a distribuição de ajuda humanitária continuava cada vez mais difícil. A principal
problemática se resumia em encontrar um modo de resolver a situação mesmo sem a existência
de um governo a ser pressionado. Foi neste contexto de extrema violência civil, pilhagem e roubo
de suprimentos e medicamentos, que o Conselho de Segurança adotou a Resolução 794 de 03 de
dezembro de 1992, sob os auspícios do capítulo VII da Carta, para autorizar o estabelecimento da
Operação Restaurar Esperança ou UNITAF (Unified Task Force)136. Referida Resolução
reconheceu a natureza complexa e extraordinária da situação na Somália e a necessidade de uma
resposta imediata e excepcional. Considerou que a magnitude da tragédia humana causada pela
guerra civil em curso fora exacerbada pelos obstáculos que haviam sido criados à distribuição de
assistência humanitária, o que atentava contra a paz e segurança internacionais. E, assim, sob o
comando do capítulo VII da Carta, autorizou o Secretário-Geral e os Estados-membros a
utilizarem todos os meios necessários para estabelecer, o quanto antes, um ambiente seguro para
as operações de ajuda humanitária na Somália137.
134 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 126/127. 135 Cf. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Segurança. Resolução 733 de 23 de janeiro de 1992. Disponível em: <http://daccessdds.un.org/doc/RESOLUTION/GEN/NR0/013/14/IMG/NR001314.pdf> Acesso em: 28 de agosto de 2008. 136 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 126/127. 137 Cf. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Segurança. Resolução 794 de 03 de dezembro de 1992. Disponível em: <http://daccessdds.un.org/doc/UNDOC/GEN/N92/772/14/IMG/N9277214.pdf> Acesso em: 28 de agosto de 2008.
33
A UNITAF ficou conhecida como a maior operação de assistência humanitária de caráter
militar realizada pelas Nações Unidas e, graças ao apoio internacional, estima-se que mais de
setenta mil toneladas de alimentos e remédios foram distribuídos no período em que durou a
operação138. No entanto, logo ficou claro que estabelecer um ambiente seguro exigia mais do que
transportar suprimentos para os centros de distribuição139. Assim, em 26 de março de 1993, foi
aprovada a Resolução 814 que criou uma força especial (UNOSOM II - Operação das Nações
Unidas para a Somália II) encarregada de substituir a UNITAF e efetuar o controle do armamento
pertencente às facções em conflito, desativar as minas instaladas em várias localidades e
continuar a proteger a concessão de assistência humanitária140. A atuação da UNOSOM II
abrangeu quase toda a Somália e se concentrou, principalmente, no objetivo de desarmar os
grupos internos141.
A crise na Somália trouxe à baila a relação entre o caos interno, evidenciado pela ausência
de um governo central e a ameaça à estabilidade internacional, representada pelo grande número
de refugiados nos países vizinhos. É inegável que a atuação das Nações Unidas se mostrou
bastante positiva. A fome foi quase totalmente erradicada, programas de vacinação ajudaram a
diminuir a mortalidade infantil, escolas foram reabertas, além do progresso no desarmamento da
população e o estímulo à reconstrução do sistema judicial142. Não obstante, a participação inicial
da ONU gera divergências quanto ao real interesse da Organização pelas vítimas da crise
humanitária no país. O período compreendido entre a eclosão do conflito e a adoção da
Resolução 794 é marcado pela falta de vontade política das grandes potências e pela inação e
desorganização das agências operacionais da ONU. Cabe mencionar ainda que a situação na
Somália era de extrema calamidade e por motivos muito menos expressivos a sociedade
internacional se mobilizou em torno da questão curda, no Iraque. Assim, embora tenha marcado
um importante avanço na articulação entre segurança internacional e crise humanitária, o caso da
intervenção na Somália serve também como um exemplo de que há necessidade de reformulação
138 Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Op. Cit. p. 208/209. 139 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 128. 140 Cf. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Segurança. Resolução 814 de 26 de março de 1993. Disponível em: <http://daccessdds.un.org/doc/UNDOC/GEN/N93/226/20/IMG/N9322620.pdf> Acesso em: 30 de agosto de 2008. 141 Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Op. Cit. p. 209. 142 Ibidem. p. 211.
34
e aperfeiçoamento do aparato humanitário da ONU e, principalmente, de melhora no tempo de
resposta dos órgãos responsáveis pela ajuda143.
2.1.3 BÓSNIA
A seu turno, a participação das Nações Unidas no conflito bósnio foi muito mais intensa e
prolongada. A federação multi-étnica da Iugoslávia, mantida pelo Marechal Tito, ruiu após a
Guerra Fria com as seguidas secessões da Eslovênia, Croácia e Bósnia-Herzegovina. Com
relação às duas primeiras, após a ocorrência de alguns confrontos, os problemas se resolveram
com relativa brevidade. Na Bósnia, entretanto, local em que viviam pessoas de etnia sérvia,
croata e muçulmana em proporções quase idênticas, ocorreram conflitos e perseguições étnicas
de grandes proporções144. O Conselho de Segurança se manifestou por meio da Resolução 713
de 25 de setembro de 1991, que opôs embargo à venda de armas e equipamentos militares à ex-
Iugoslávia, ressaltou que a continuidade do conflito ameaçava a paz e segurança internacionais e
recomendou que o Secretário-Geral oferecesse assistência ao esforço empreendido pela
Comunidade Européia, para restabelecer a paz e o diálogo145. A despeito de um acordo de paz
entre as partes, intensifica-se a política de limpeza étnica146, assassinatos, torturas, estupros,
tratamento desumano aos prisioneiros de guerra e bombardeio de alvos civis147. Em resposta, o
Conselho de Segurança adotou a Resolução 743 de 21 de fevereiro de 1992 que criou a Força de
Proteção das Nações Unidas (UNPROFOR), cuja finalidade era criar áreas protegidas pela ONU
em locais estratégicos. Assim mesmo, os conflitos continuavam a se intensificar. Então, em 13 de
agosto de 1992, o Conselho aprova a Resolução 770, fundamentada no capítulo VII da Carta, que
exigia que as partes colocassem um fim imediato às hostilidades, que concedessem ao Comitê
Internacional da Cruz Vermelha acesso livre e seguro às vítimas do conflito e convocava os
143 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 130/131. 144 Cf. DELGADO, José Manuel Avelino de Pina. Op. Cit. p. 163. 145 Cf. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Segurança. Resolução 713 de 25 de setembro de 1991.Disponível em: <http://daccessdds.un.org/doc/RESOLUTION/GEN/NR0/597/75/IMG/NR059775.pdf> Acesso em: 30 de agosto de 2008. 146 “[...] eliminação efetuada por um grupo étnico que exerce o controle de determinado território, dos membros dos demais grupos, pela morte ou pela expulsão do seu local de origem.”(Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Op. Cit. p. 200). 147 Ibidem.
35
Estados a utilizarem todos os meios necessários para facilitar a distribuição de ajuda humanitária
aos civis necessitados148.
Diante da má vontade dos países em colaborar com a implementação da referida
Resolução e da oferta da força aérea por parte da OTAN, o Conselho de Segurança, por meio da
aprovação da Resolução 781, criou zonas de exclusão aéreas monitoradas pelos aviões da OTAN,
cuja finalidade era escoltar os comboios de ajuda humanitária. Depois de verificada a ocorrência
de inúmeras violações às determinações desta Resolução, o Conselho votou a Resolução 816, de
31 de março de 1993, em que autoriza expressamente a utilização da força para a defesa da
região, sem, contudo, permitir o bombardeio de alvos no solo149. Desta feita, a ONU
proporcionou, por via aérea, a distribuição de medicamentos e gêneros alimentícios aos povoados
muçulmanos inacessíveis por meios terrestres e a UNPROFOR estabeleceu algumas áreas de
segurança para a proteção de civis150.
Inobstante, e em função das ofensivas realizadas contra as referidas áreas, o Conselho de
Segurança, outra vez sob o comando do Capítulo VII, adota a Resolução 819, em 16 de abril de
1993, a qual transformava a cidade de Srebrenica e seus arredores numa área de segurança sob a
proteção da ONU, livre de ataques armados ou quaisquer atos hostis. Mas, novamente as forças
rebeldes desrespeitaram a Resolução e efetuaram um verdadeiro massacre no local. Isto motiva a
aprovação da Resolução 836151, de 04 de junho de 1993, em que o Conselho de Segurança decide
estender o mandato da UNPROFOR para deter os ataques contra as áreas de segurança, retirar as
forças militares e paramilitares desses locais, monitorar o cessar-fogo, ocupar alguns pontos
estratégicos e continuar a entrega de ajuda humanitária para a população. Esclarece que as zonas
de segurança são medidas provisionais que têm como objetivo eliminar as conseqüências da
utilização da força e permitir que os refugiados regressem as suas casas em paz, ao passo que
autoriza a UNPROFOR a utilizar todos os meios necessários, inclusive a força, para proteger
148 Cf. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Segurança. Resolução 770 de 13 de agosto de 1992. Disponível em: <http://daccessdds.un.org/doc/UNDOC/GEN/N92/379/69/IMG/N9237969.pdf> Acesso em: 30 de agosto de 2008. 149 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 157. 150 Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Op. Cit. p. 203. 151 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 158.
36
essas zonas152. A essa altura, os embargos econômicos decretados pelas Resoluções 787 e 820
surtiam dramáticos efeitos, o que fez com que o governo central aceitasse as propostas de paz153.
O conflito teve um resultado lamentável: além do elevado número de refugiados e mortos,
afundou a antiga Iugoslávia num completo caos econômico e social. A participação do Conselho
de Segurança, como já se disse, foi bastante ativa, uma vez que adotou cerca de 50 resoluções a
respeito do conflito, nas quais considerava a questão humanitária como uma ameaça à paz e
segurança internacionais e autorizava a utilização da força, sob a autoridade do Capítulo VII da
Carta para viabilizar a proteção dos civis e a distribuição de socorro humanitário. Entretanto, a
ausência de interesse das grandes potências mundiais no conflito e a falta de consenso quanto às
metas a serem alcançadas e aos meios a serem empregados fez do envolvimento internacional por
si mesmo um problema. Acrescente-se a isso o fato de que membros de menor peso no Conselho
de Segurança estavam dispostos a empreender ações que poderiam ser consideradas mais
eficazes, mas não podiam patrociná-las. De todo modo, observa-se uma vez mais a articulação
entre direitos humanos e segurança internacional nas decisões do Conselho de Segurança154.
2.1.4 HAITI
Outro caso em que se observa esta conexão é o do Haiti, no qual a violação sistemática de
direitos humanos - embora também tenha sido enfatizado o restabelecimento da democracia - é o
principal ponto de ligação entre a crise haitiana e a atuação do Conselho de Segurança.
No início da década de 1990, o presidente legalmente eleito pelo povo haitiano, Jean
Bertrand Aristide, após oito meses no poder, sofre um golpe das forças militares, sob o comando
do general Raoul Cédras e se refugia nos EUA. Antes de requisitar ajuda à ONU, o presidente
eleito acionou a Organização dos Estados Americanos (OEA) na tentativa de negociar,
pacificamente, o retorno ao seu cargo de direito. A OEA, entretanto, falhou ao tentar negociar um
acordo com os golpistas e decidiu solicitar a cooperação da ONU155, que, em princípio, mostrou-
152 Cf. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Segurança. Resolução 836 de 04 de junho de 1993.Disponível em: <http://daccessdds.un.org/doc/UNDOC/GEN/N93/330/24/IMG/N9333024.pdf> Acesso em: 30 de agosto de 2008. 153 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 159. 154 Ibidem. p. 161/163. 155 Cf. MAIDANA, Javier Rodrigo. Contra fatos não há argumentos: Princípio da não-intervenção, ONU e Haiti, um novo estudo nas resoluções de auxílio internacional. In Direito Internacional: análises e reflexões. Curitiba: Íthala, 2008, p. 224.
37
se reticente em empreender qualquer medida coercitiva, visto que a China e outros países do
Terceiro Mundo alegaram que a questão tinha natureza doméstica e não se encontrava no âmbito
da competência das Nações Unidas. Com o decorrer do tempo, a pedido do presidente deposto e
diante da contínua deterioração das condições humanitárias no Haiti, verifica-se a mudança no
comportamento das Nações Unidas em relação ao conflito156.
O Conselho de Segurança, então, aprovou por unanimidade em 16 de junho de 1993, a
Resolução 841, que invocava o disposto no Capítulo VII da Carta e impunha uma dura sanção
econômica ao Haiti, que impedia a nação de adquirir petróleo e seus derivados, armas e
munições, veículos e peças de reposição, equipamentos militares e, ao mesmo tempo, decretava o
congelamento dos bens haitianos depositados em instituições financeiras localizadas no
exterior157. O resultado deste intolerante embargo econômico foi o acordo Governors Island
Agreement, negociado em Nova Iorque, em 03 de julho de 1993, entre Aristide e Cédreas, que
previa o retorno do presidente deposto ao país, a reabertura do parlamento e a nomeação de um
novo primeiro-ministro. Após a celebração do acordo, a ONU e a OEA suspenderam as sanções
econômicas anteriormente adotadas porque, a princípio, tudo indicava que a paz seria
restabelecida, e o referido instrumento seria integralmente cumprido. Subitamente, porém, novo
ciclo de violência é iniciado por bandos armados que espalhavam o terror ao cometer assassinatos
contra os partidários de Aristide158. Assim, diante desse novo cenário, o Conselho de Segurança
adota a Resolução 867, de 23 de setembro de 1993, que autoriza o envio imediato da Missão das
Nações Unidas para o Haiti (UNMIH) por um período inicial de seis meses para assessorar e
orientar a polícia haitiana em suas operações, modernizar as forças armadas, de forma a reduzir a
violência no país e reconstruir a infra-estrutura afetada pela prolongada crise institucional159. E,
por meio da Resolução 873, de 13 de outubro de 1993, restabelece as sanções econômicas
156 Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Op. Cit. p. 218. 157 Cf. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Segurança. Resolução 841 de 16 de junho de 1993. Disponível em: <http://daccessdds.un.org/doc/UNDOC/GEN/N93/354/61/IMG/N9335461.pdf> Acesso em: 30 de agosto de 2008. 158 Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Op. Cit. p. 219. 159 Cf. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Segurança. Resolução 867 de 23 de setembro de 1993. Disponível em: <http://daccessdds.un.org/doc/UNDOC/GEN/N93/515/33/PDF/N9351533.pdf> Acesso em: 30 de agosto de 2008.
38
impostas pela Resolução 841 e declara que o não cumprimento do acordo Governors Island
Agreement se constitui uma ameaça à paz e segurança na região160.
As sanções econômicas provocaram uma infinidade de danos à população civil. Embora
os embargos não tenham se referido aos bens estritamente humanitários, ampliaram-se os
problemas de saúde e houve considerável aumento de casos de desnutrição e mortalidade infantil.
Assim, diante do preocupante quadro de afetação, principalmente à população civil, e da
solicitação por carta realizada pelo presidente Aristide, o Conselho de Segurança aprovou em 31
de julho de 1994, a Resolução 940, que autorizou a intervenção militar no Haiti161. Esta reiterava
o pedido para que a comunidade internacional prestasse assistência e apoio ao desenvolvimento
econômico, social e institucional no Haiti. Declarava que a situação neste país possuía um caráter
singular de natureza complexa e extraordinária, que exigia uma reação excepcional, haja vista
que representava uma ameaça à paz e segurança da região. E assim, sob a regra do Capítulo VII
da Carta, a fim de auxiliar o governo legítimo do Haiti a restabelecer a ordem pública, autorizava
os Estados-membros a integrar uma força multinacional com poderes para recorrer a todos os
meios necessários para garantir o cumprimento do acordo de Governors Island Agreement, ou
seja, propiciar um ambiente seguro e estável para o pronto regresso do presidente
democraticamente eleito e facilitar a partida dos golpistas do país. Decidiu também que, após o
regresso do presidente eleito, o mandato da UNMIH deveria se estender para prestar assistência
ao governo democrático e auxiliar as autoridades legítimas a organizar nova eleição presidencial,
sob a observação da ONU162.
A operação obteve êxito. O parlamento logo foi reaberto e aprovou a anistia dos militares
derrotados, cuja extensão não alcançou os crimes de homicídio, estupro e corrupção. O presidente
Aristide retornou ao Haiti, após três anos de exílio. A realização de novas eleições levou o novo
presidente eleito a assumir o poder no princípio do ano de 1996163.
É importante observar o caráter peculiar da crise no Haiti, uma vez que, pela primeira vez,
o Conselho de Segurança se considerou competente para dispor a respeito de golpes de Estado,
160 Cf. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Segurança. Resolução 873 de 13 de outubro de 1993. Disponível em: <http://daccessdds.un.org/doc/UNDOC/GEN/N93/555/44/PDF/N9355544.pdf> Acesso em: 30 de agosto de 2008. 161 Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Op. Cit. p. 220. 162 Cf. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Segurança. Resolução 940 de 31 de julho de 1994. Disponível em: <http://daccessdds.un.org/doc/UNDOC/GEN/N94/312/25/PDF/N9431225.pdf> Acesso em: 30 de agosto de 2008. 163 Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Op. Cit. p. 221.
39
questão que, até então, era considerada exclusivamente de domínio reservado dos Estados.
Todavia, é fato que a instalação de governos opressivos e ditatoriais, em regra, ceifa os direitos
mais básicos da população e, assim sendo, só se verifica o respeito aos direitos humanos e às
liberdades fundamentais quando se vive num regime democrático, no qual a pluralidade de idéias
e comportamentos não é encarada como atentatória à segurança do Estado e, tampouco, sujeita a
punições. Destarte, a intervenção no Haiti enquadra-se à definição de intervenção humanitária,
haja vista que o governo do Estado haitiano não só rompeu com as instituições democráticas do
país, como instalou uma condenável política de perseguição à população164.
A atuação da ONU, por sua vez, restou marcada pelas ambigüidades da comunidade
internacional sobre como e quando intervir numa crise humanitária. Isso se evidencia pela mora
da organização para adotar a primeira medida realmente eficaz contra os golpistas haitianos, bem
como para proporcionar o retorno de Aristide ao poder. Interessante perceber, porém, que os
Estados do Terceiro Mundo, defensores veementes do princípio da não-intervenção, apoiaram as
sanções aplicadas para permitir a recondução ao poder do presidente deposto, o que demonstra
uma significativa alteração da posição dos referidos países com relação às intervenções165.
2.1.5 RUANDA
O caso ruandês, apesar da sua gravidade, evidenciou os limites políticos da perspectiva de
recorrer à força armada com objetivos humanitários. A população ruandesa é composta de
maioria hutu (cerca de 85%) e minoria tutsi166. As tensões entre essas duas etnias têm suas raízes
na época colonial, quando os alemães transformaram os tutsis no grupo que concentrava o poder
político, econômico e militar da colônia. Com a derrota da Alemanha na I Guerra Mundial, os
belgas ocuparam o país e favoreceram a formação de um grupo hutu forte, que se revoltou contra
o governo tutsi. Com a descolonização em 1962, as elites políticas hutus substituíram os belgas
numa violenta competição política que gerou centenas de mortes de tutsis e causou milhares de
refugiados espalhados nos países vizinhos, principalmente no Burundi, Tanzânia e Uganda167.
Em 1973, por meio de um golpe de Estado, o governo é tomado por Juvenal
Habyarimana, que estratificou a sociedade ruandesa com a formalização de cotas étnicas para
164 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 150. 165 Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Op. Cit. p. 222/223. 166 Cf. VIOTTI, Aurélio Romanini de Abranches. Op. Cit. p. 115. 167 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 132.
40
empregos e oportunidades educacionais, além de favorecer uma minoria de hutus no norte do
país, mormente os membros do seu próprio clã, o que agravou ainda mais as diferenças entre as
etnias168. Nos anos 1980, os exilados tutsi de Uganda iniciam a formação de um exército rebelde
intitulado Frente Patriótica de Ruanda (FPR), que aliado à dissidência interna, dá azo em 1990, à
guerra civil contra o governo hutu. Após três anos de confrontos, os dois lados assinaram o
Acordo de Paz de Arusha, em que se comprometiam a cessar as hostilidades, repatriar os
refugiados e instaurar um governo de transição no qual Habyarimana dividiria o poder com a
oposição moderada hutu e a FPR169. Na ocasião, a ONU envia uma missão de observadores para
Uganda e Ruanda (UNOMUR) com o propósito de garantir o cessar fogo, vigiar a fronteira entre
os dois países e impedir o transporte de todo e qualquer tipo de material que pudesse ser utilizado
com fins militares170. Alguns meses depois, decide estabelecer uma nova missão intitulada
Missão de Assistência das Nações Unidas a Ruanda (UNAMIR) para garantir a segurança da
capital ruandesa, acompanhar a desmilitarização do país e garantir o integral cumprimento do
acordo de Arusha171.
Porém, em 1994, as hostilidades recomeçaram com a morte do presidente Juvenal
Habyarimana num acidente aéreo. Os extremistas hutus assumiram o poder e acusaram a minoria
tutsi de ter provocado o acidente. Inicia-se então uma torrente de violência e mortes que assume
conotações políticas e étnicas e transparece no excesso de crueldade utilizado para dizimar os
adversários. Nos três meses que se seguiram, o número de mortes de tutsis e hutus moderados
chegou a ultrapassar a casa do milhão e a UNAMIR – que garantiu o cessar-fogo em 1993 –, bem
como o governo interino, revelaram-se incapazes de evitar o genocídio172. Assim, em 17 de maio
de 1994, o Conselho de Segurança, por meio da Resolução 918, declara-se profundamente
preocupado ao constatar que a situação em Ruanda tem causado a morte de milhares de civis
inocentes, além do deslocamento de uma proporção considerável da população para os países
vizinhos, o que representa uma crise humanitária de enormes dimensões, cuja persistência se
constitui uma ameaça à paz e segurança na região. Deste modo, invoca a regra do capítulo VII 168 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 133. 169 Cf. VIOTTI, Aurélio Romanini de Abranches. Op. Cit. p. 116. 170 Cf. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Segurança. Resolução 846 de 22 de junho de 1993. Disponível em: <http://daccessdds.un.org/doc/UNDOC/GEN/N93/366/34/IMG/N9336634.pdf> Acesso em: 02 de setembro de 2008. 171 Cf. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Segurança. Resolução 872 de 05 de outubro de 1993. Disponível em: <http://daccessdds.un.org/doc/UNDOC/GEN/N93/540/66/PDF/N9354066.pdf> Acesso em: 02 de setembro de 2008. 172 Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Op. Cit. p. 212/213.
41
para impor um embargo comercial de armamentos e equipamentos militares, e decide estender o
mandato da UNAMIR para aumentar o número de homens em sua composição para proteger
civis e prover segurança e suporte para as operações de ajuda humanitária173. Malgrado a
disposição da ONU, o apoio logístico e financeiro não era suficiente, e a morosidade na formação
e atuação das forças levou ao seu completo insucesso. A situação se deteriorava a cada dia e a
morte de civis inocentes parecia não ter fim174.
Diante deste quadro, em 22 de junho de 1994, o Conselho de Segurança aprova a
Resolução 929, que reconhece que a singularidade da situação em Ruanda exige uma resposta
imediata da comunidade internacional, pois se constitui ameaça à paz e segurança da região, e
autoriza uma operação humanitária multinacional, neutra e imparcial, de caráter temporário para
a proteção e segurança dos refugiados e civis175. Referida Resolução conferiu o fundamento legal
necessário para que a França176, que já havia manifestado o seu interesse de intervir em Ruanda,
pudesse instaurar a Operação Turquesa, cujo mandato se restringia a pôr fim aos massacres,
proteger as populações em áreas ainda controladas pelo governo e depois retornar a
responsabilidade para a UNAMIR. Contudo, a operação durou apenas dois meses, uma vez que já
não havia muito a ser feito. Em julho, a FPR se instalou no poder, e o novo governo declarou
unilateralmente um cessar-fogo, reafirmou seu compromisso de cumprir integralmente o acordo
de Arusha e terminou com o conflito. Apesar disso, a vitória da FPR levou milhares de hutus a
fugirem do país com medo de represálias, e muitos morreram pela falta de condições básicas de
subsistência e socorro médico. A UNAMIR ainda permaneceu em Ruanda até março de 1996
para promover o retorno dos refugiados e garantir segurança e auxílio humanitário177. Destarte,
cabe ressaltar que a Operação Turquesa poderia ser considerada como um bom exemplo de
173 Cf. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Segurança. Resolução 918 de 17 de maio de 1994. Disponível em: <http://daccessdds.un.org/doc/UNDOC/GEN/N94/218/39/PDF/N9421839.pdf> Acesso em: 02 de setembro de 2008. 174 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 136. 175 Cf. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Segurança. Resolução 929 de 22 de junho de 1994. Disponível em: <http://daccessdds.un.org/doc/UNDOC/GEN/N94/260/30/PDF/N9426030.pdf> Acesso em: 02 de setembro de 2008. 176 “A pressão pela intervenção [em Ruanda] foi especialmente forte na França por causa do amplo suporte que o direito de ingerência tem no país e porque as forças hutus que promoviam o genocídio tinham sido treinadas e armadas pelo governo francês, o que criou um elemento de responsabilidade pelo conflito.” (Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 138). 177 Ibidem. p. 137/139.
42
intervenção humanitária se não tivesse ocorrido tão tardiamente178, visto que, quando as forças
chegaram, já não havia praticamente nada a ser feito. As próprias partes em conflito chegaram à
resolução da situação sem que a comunidade internacional tivesse feito algo realmente útil para o
alcance desta finalidade. De todo modo, a Resolução que autorizou a intervenção tinha
características nitidamente humanitárias, uma vez que vinculou a questão da crise humanitária à
manutenção da paz e segurança internacionais e permitiu a utilização de todos os meios
necessários para o restabelecimento de um ambiente pacífico e seguro179.
2.1.6 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A PRÁTICA DO CONSELHO DE SEGURANÇA NO PÓS-GUERRA FRIA
Com o decorrer do tempo, o número de operações empreendidas pelas Nações Unidas
motivadas por questões humanitárias caiu significativamente. Ainda assim, o Conselho de
Segurança, por meio da Resolução 1.080 de 15 de novembro de 1996, autorizou uma operação
liderada pelo Canadá no leste do Zaire180 que nunca chegou a ser implementada. Referida
Resolução apelava para o uso de todos os meios necessários para aliviar o sofrimento dos
refugiados e civis no leste do Zaire181. A operação na Albânia, em 1997, autorizada pela
Resolução 1.101, tinha poderes limitados, uma vez que estabelecia uma força de proteção
multinacional para, de forma neutra e imparcial, realizar o socorro humanitário pelo período de
três meses182. Mais tarde, em 1999, o Conselho de Segurança autorizou, a pedido da Indonésia,
por meio da Resolução 1.264, o estabelecimento de uma força multinacional apta a tomar todas
178 “[...] o papel das Nações Unidas foi globalmente negativo. As tentativas de intervenção armada foram seguidamente bloqueadas no Conselho de Segurança e a omissão acabou por ajudar o genocídio, em uma situação que seria facilmente contornável.” (Cf. DELGADO, José Manuel Avelino de Pina. Op. Cit. p. 165). 179 Ibidem. p.165/166. 180 O Zaire deixou de existir com a vitória dos revolucionários liderados por Laurent Desiré Kabila, que depuseram o então presidente Mobuto Sese Seko e criaram novo governo, que alterou o nome do país para República Democrática do Congo. (Cf. PENNA FILHO, Pio. Conflitos e estabilidade no continente africano nos anos 1990. Disponível em: <http://64.233.169.104/search?q=cache:sF2tO3FayH0J:www.africamerica.net> Acesso em: 01 de novembro de 2008). 181 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Segurança. Resolução 1.080 de 15 de novembro de 1996. Disponível em: <http://daccessdds.un.org/doc/UNDOC/GEN/N96/323/35/PDF/N9632335.pdf> Acesso em: 01 de novembro de 2008. 182 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Segurança. Resolução 1.101 de 28 de março de 1997. Disponível em: <http://daccessdds.un.org/doc/UNDOC/GEN/N97/084/40/PDF/N9708440.pdf> Acesso em: 01 de novembro de 2008.
43
as medidas necessárias para facilitar as operações de assistência humanitária no Timor Leste, e
deixou claro que anuía a operação por contar com a aquiescência do país atingido183.
Todavia, as autorizações concedidas pela ONU para utilização da força com a finalidade
de proteger direitos humanos ou para facilitar a entrega de auxílio humanitário, conforme
observado nos casos relatados - os quais, ressalta-se, constituem os mais importantes - tornou-se
comum a partir da década de noventa do século passado. A repetição dos casos permite a
visualização de uma nova norma costumeira, segundo a qual, em situações de gravíssima
emergência humanitária, a ONU teria competência para empreender por si própria, de
preferência, ou delegar poderes a Estados, para a utilização da força com o intuito de proteger
indivíduos vítimas de perseguição ou necessitados de ajuda184. A base legal para tanto se
construiu a partir da constatação de que as conseqüências geradas pelo desrespeito maciço aos
direitos humanos e ao direito humanitário, como, por exemplo, o descontrolado fluxo de
refugiados e o desequilíbrio regional, podem constituir séria ameaça à paz e segurança do sistema
mundial. Desta forma, conflitos intraestatais, que outrora não se enquadravam na competência do
Conselho de Segurança, assumiram caráter transnacional e se tornaram objeto das resoluções
fundadas no Capítulo VII da Carta185, o que evidencia o reconhecimento do vínculo existente
entre o plano doméstico e a realidade internacional. É verdade que a atuação do Conselho de
Segurança nas crises humanitárias dos anos 1990 não está isenta de críticas, mas o balanço geral
das ações realizadas é bastante positivo, visto que ajudou a reduzir os efeitos das tragédias
humanas em áreas de combate186.
É importante destacar que a doutrina majoritária ainda é reticente em aceitar as
intervenções humanitárias sob o comando da ONU, principalmente devido ao caráter não
democrático do Conselho de Segurança e a falta de instrumentos da Organização para limitar a
influência das relações de poder entre os países187. Por exemplo, em relação aos atentados de 11
de setembro de 2001, nos EUA, a Resolução 1.368 aprovada pelo Conselho de Segurança
qualificou as medidas que este país estaria autorizado a tomar como “legítima defesa”, sem
constatar, contudo, contra quem as medidas deveriam ser tomadas, uma vez que não determinou
183 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Segurança. Resolução 1.264 de 15 de setembro de 1999. Disponível em: <http://daccessdds.un.org/doc/UNDOC/GEN/N99/264/84/PDF/N9926484.pdf> Acesso em: 01 de novembro de 2008.. 184 Cf. DELGADO, José Manuel Avelino de Pina. Op. Cit. p. 167. 185 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 178/179. 186 Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Op. Cit. p. 282. 187 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 180.
44
expressamente de onde partiu a agressão188. A Resolução 1.373 alargou ainda mais os poderes do
Conselho de Segurança ao determinar que quaisquer atos de terrorismo internacional constituem
uma ameaça à paz e, portanto, são passíveis de uma ação preventiva empreendida sob o comando
do órgão189. Destarte, o grande problema que se verifica na atuação do Conselho de Segurança é
a falta de parâmetros. Como as resoluções indicam, o desrespeito maciço de direitos humanos
constitui ameaça à paz e segurança internacionais, mas o mesmo se aplica à ruptura da ordem
democrática e a quaisquer atos terroristas190.
Entretanto, apesar das decisões de intervir terem sido tomadas por um pequeno número de
países, membros do Conselho de Segurança, há que se ressaltar que inúmeras outras nações
participaram das operações, inclusive Estados do Terceiro Mundo. Assim, pode-se afirmar que a
intervenção humanitária começa a ser vista pela sociedade internacional como uma possível
medida de assistência humanitária e, conseqüentemente, de defesa dos direitos humanos; é
indubitável que o que precisa ser desenvolvido para a sua completa aceitação é uma estrutura
adequada que garanta a imparcialidade da utilização do instituto191. De todo o modo,
seguramente, as mais importantes modalidades de intervenção são aquelas realizadas pela Cruz
Vermelha, cuja legalidade nunca foi contestada192 e que se passará a discorrer no próximo tópico
deste trabalho.
2.2 AS INTERVENÇÕES HUMANITÁRIAS CONSIDERADAS LÍCITAS
A chamada “Assistência Humanitária” realizada pela Cruz Vermelha é lícita e tem mais
de um século de existência193. A fundação do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) é
resultado dos esforços para conquistar a paz no Mundo e deve suas origens à visão e
determinação do cidadão suíço Henry Dunant. Em 1859, em Solferino, na Itália, os exércitos
austríaco e francês travavam uma dura batalha entre si, e após 16 horas de lutas, o terreno estava
188 Cf. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Segurança. Resolução 1.368 de 12 de setembro de 2001. Disponível em: <http://daccessdds.un.org/doc/UNDOC/GEN/N01/533/85/PDF/N0153385.pdf> Acesso em: 01 de novembro de 2008. 189 Cf. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Segurança. Resolução 1.373 de 28 de setembro de 2001. Disponível em: <http://daccessdds.un.org/doc/UNDOC/GEN/N01/557/46/PDF/N0155746.pdf> Acesso em: 01 de novembro de 2008. 190 Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Op. Cit. p. 163. 191 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 180/181. 192 Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Op. Cit. p. 154/155. 193 Ibidem. p. 155.
45
repleto de feridos e mortos. Na ocasião, Henry Dunant passava pelo local a trabalho e ficou
horrorizado ao ver milhares de soldados, de ambos os exércitos, abandonados à própria sorte
devido à falta de serviços médicos. Resolveu então, solicitar à população local auxílio para cuidar
dos feridos, independentemente do exército a que estes pertenciam. Quando regressou à Suíça,
Henry Dunant publicou um livro intitulado “Uma recordação de Solferino”, no qual apelou
enfaticamente para que fossem constituídas, em tempo de paz, sociedades de socorro formadas
por profissionais prontos para tratar dos feridos em tempo de guerra e para que os voluntários
chamados para assistir os serviços médicos do exército fossem reconhecidos e protegidos através
de um acordo internacional. A obra ganhou rápida repercussão e teve tamanha influência que, em
1863, a Sociedade Pública de Genebra, uma associação de beneficência com sede nesta cidade,
criou uma comissão de cinco membros para refletir sobre a forma de como as idéias de Dunant
poderiam ser executadas. Referida comissão, formada pelos suíços Gustave Moynier, Guillaume-
Henri Dufour, Louis Appia, Théodor Maunoir e pelo próprio Dunant, fundou o Comitê
Internacional para Socorro aos Feridos, que mais tarde veio a se transformar no Comitê
Internacional da Cruz Vermelha (CICV)194.
Os cinco fundadores continuaram os seus trabalhos pra assegurar que as idéias propostas
no livro de Dunant se tornassem realidade e no mesmo ano organizaram uma conferência
internacional em Genebra, na qual se fazem representar dezesseis Estados e representantes de
quatro instituições. Foi nesta conferência que decidiram utilizar o emblema distintivo – uma cruz
vermelha sobre o fundo branco195, em homenagem ao Estado suíço – e a Cruz Vermelha nasce
efetivamente. Com o intuito de formalizar a proteção aos serviços que seriam prestados e obter o
reconhecimento internacional da organização, bem como, dos seus ideais, o governo suíço
convocou outra conferência internacional no ano de 1864, na qual representantes de doze
governos tomaram parte e adotaram um tratado nomeado “Convenção de Genebra para o
melhoramento das condições dos feridos nos exércitos no campo”, que veio a ser o primeiro
tratado sobre Direito Internacional Humanitário196. Mais tarde, outras conferências aconteceram e
194 Cf. COMITÊ INTERNACIONAL DA CRUZ VERMELHA. Descubra o CICV. Disponível em: <http://www.icrc.org/web/por/sitepor0.nsf/html/Descubra_o_CICV/$File/Descubra%20o%20CICV.pdf> Acesso em 07 de setembro de 2008. p. 7. 195 “posteriormente, para que não tivesse um caráter estritamente cristão, a pedido dos países islâmicos, optou-se também pelo símbolo do crescente vermelho: a meia lua vermelha sobre o fundo branco.” (Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Op. Cit. p. 155). 196 “O Direito Internacional Humanitário, também conhecido como o direito dos conflitos armados ou direito da guerra é o conjunto de regras que em tempo de guerra protegem as pessoas que não participam ou que já não
46
estenderam o direito básico de proteção a outras categorias de vítimas. Na seqüência da II Guerra
Mundial, uma Conferência Diplomática deliberou durante quatro meses, antes de adotar as quatro
Convenções de Genebra de 1949, as quais reforçaram a proteção dos civis em tempo de guerra e,
em 1977, as Convenções receberam dois protocolos adicionais que as completaram197.
A Cruz Vermelha é uma organização não-governamental dotada de personalidade jurídica
internacional e possui capacidade para celebrar tratados, além de assento como observador na
Assembléia Geral das Nações Unidas. Cabe ao CICV prestar assistência em conflitos armados
internacionais, conflitos armados não-internacionais e catástrofes naturais. O art. 4º, “c”, do seu
estatuto, vincula o órgão diretamente às Convenções de Genebra de 1949 e seus protocolos, que
não se aplicam somente aos casos de guerra. Cabe ainda à organização, funcionar como “potência
protetora”198, para observar o cumprimento das disposições do Direito Humanitário, conforme
dispõe o art. 10 das Convenções de Genebra de 1949, desde que presente o necessário
consentimento das partes199.
Atualmente, o Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho está
ativo e presente em quase todos os países do mundo e pauta sua atuação em sete princípios
fundamentais: humanidade, imparcialidade, neutralidade, independência, serviço voluntário,
unidade e universalidade. Estes princípios constituem, no seu conjunto, uma norma universal de
referência para todos os seus membros. A finalidade central das atividades da Cruz Vermelha é
evitar e aliviar os sofrimentos humanos, sem discriminação e proteger a dignidade humana200.
Referidos princípios, mormente a independência, neutralidade e a imparcialidade são essenciais
para o desenvolvimento do trabalho do CICV, uma vez que a organização não intenta qualquer
ação com caráter de intervenção201. O CICV necessita da expressa anuência dos Estados
participam nas hostilidades. Ele limita os métodos e os meios utilizados na guerra. A sua finalidade central consiste em limitar e evitar o sofrimento humano, em tempo de conflito armado. As regras devem ser observadas, não só pelos governos e pelas suas forças armadas mas também por grupos da oposição armados e por quaisquer outras partes num conflito.” (Cf. COMITÊ INTERNACIONAL DA CRUZ VERMELHA. Op. Cit. p. 14). 197 Ibidem. p. 7. 198 “Um dos meios que pode ser utilizado para controlar as atividades das partes em conflito em relação à aplicação das Convenções de Genebra de 1949 é o instituto da potência protetora. Previstas no art. 8 da I, II e III Convenções e art. 9 da IV Convenção, a potência protetora tem a missão de salvaguardar os interesses das partes em conflitos, sendo “um país neutro no que se refere ao conflito, o qual uma das partes encarrega de proteger os seus interesses no território da outra”. [...] em decorrência de determinação das próprias Convenções de Genebra de 1949, o CICV pode ser indicado como substituto das potências protetoras.” (Cf. CHEREM, Mônica Teresa Costa Sousa. Direito Internacional Humanitário. Curitiba: Juruá, 2003. p. 81). 199 Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Op. Cit. p. 155/156. 200 Cf. COMITÊ INTERNACIONAL DA CRUZ VERMELHA. Op. Cit. p. 8. 201 Cf. CHEREM, Mônica Teresa Costa Sousa. Op. Cit. p. 123.
47
interessados em seu trabalho para que possa exercê-lo e é justamente o consentimento destes, que
diferencia suas ações que são de assistência humanitária, das intervenções humanitárias, nas
quais um Estado soberano se opõe à ingerência externa202. Sua atuação e competências são
reconhecidas pela sociedade internacional, que lhe outorga as possibilidades específicas para o
desenvolvimento do seu trabalho.
Ser aplicador do Direito Internacional Humanitário é a mais significativa das funções do
CICV, mas a organização está presente em todas as situações que demandam sofrimento humano,
seja em caso de conflitos armados ou em catástrofes naturais. Os delegados do CICV visitam os
prisioneiros de guerra para verificar as condições em que estão encarcerados, promovem
assistência médica aos feridos, procuram meios de proteção para a população civil, tentam reunir
famílias dispersas por meio da busca de pessoas desaparecidas, enfim, realizam uma série de
atividades para o alívio do sofrimento humano, as quais, inúmeras vezes são negligenciadas pelos
Estados envolvidos nos conflitos203.
De fato, o principal problema enfrentado pela Organização é que os Estados podem alegar
questões de ordem interna para fugir de suas obrigações internacionais, neste caso, a
implementação do Direito Internacional Humanitário. Eles tendem a considerar qualquer
violência interna como assunto de sua soberania e temem restringir a sua capacidade de resposta
em caso de insurreição, ou conferir reconhecimento internacional aos rebeldes204. Somado a isso,
no caso de conflitos não-internacionais, a distinção entre combatentes e não-combatentes se torna
obscura: no lugar de soldados de um Estado inimigo, contra o qual se está em guerra, os
adversários são antigos vizinhos, co-nacionais, muitas vezes não uniformizados. Além disso, as
características discriminatórias de tais conflitos muitas vezes tornam os civis os verdadeiros alvos
das ações armadas, o que se verifica nos casos de genocídio e limpeza étnica205. Assim, a prévia
anuência do Estado no qual se constata a necessidade de socorro humanitário, em virtude da
violação maciça dos direitos humanos pode impedir completamente a prática assistencial, uma
vez que, não raro, é o próprio Estado o responsável pela referida violação206. Foi o que ocorreu na
tentativa de secessão da província nigeriana de Biafra (1967 – 1970) onde num conflito de
natureza civil, ocorreram ações genocidas e o governo nigeriano negou o consentimento para a
202 Cf. CHEREM, Mônica Teresa Costa Sousa. Op. Cit. p. 65. 203 Ibidem. p. 143/144. 204 Cf. VIOTTI, Aurélio Romanini de Abranches. Op. Cit. p. 52. 205 Ibidem. p. 61. 206 Ibidem. p. 63.
48
atuação do CICV207. Nessa ocasião, nasceu a organização humanitária “Médicos sem fronteiras”
como uma nova forma de promover a assistência humanitária sem a necessidade da prévia
aquiescência do Estado. Entretanto, sua atuação foi considerada ilegal208. A questão da anuência
estatal também foi ventilada pela Comissão Independente sobre as Questões Humanitárias
Internacionais (CIQHI), instituída pela Assembléia Geral da ONU em 1983, que considerou essa
necessidade uma grave lacuna do Direito Internacional Humanitário, uma vez que a soberania
não pode se sobrepor à urgência das demandas humanitárias, e advogou no sentido de que a ajuda
deve chegar no lugar em que for necessária, independentemente da condição social ou posição
política dos necessitados209.
Destarte, verifica-se que as crises humanitárias geradas por conflitos domésticos
representam o maior desafio das organizações humanitárias, haja vista que além da dificuldade de
conseguir a anuência do Estado - que muitas vezes é o maior violador das normas de direitos
humanos e do Direito Internacional Humanitário - para a prática da assistência humanitária, é
extremamente difícil distinguir civis de combatentes, e estes simplesmente desprezam os mais
básicos princípios do direito humanitário. Isso tem alterado significativamente a visão
completamente pacífica das referidas organizações em face das crises humanitárias recentes.
Como exemplo, as ONG’s que inicialmente se opunham à utilização da força na antiga
Iugoslávia, mudaram de postura ao constatar que os constantes massacres e as campanhas de
limpeza étnica, além de espalharem o horror e a barbárie210, representavam perigo à segurança
dos seus membros, uma vez que habitações e infra-estrutura foram completamente destruídas, e
os comboios humanitários eram bloqueados, pois o que se objetivava era a “purificação étnica”, o
que tornava os civis alvos diretos do conflito e, por conseguinte, dispensava qualquer respeito
pela ajuda que se estava a fornecer211. O genocídio em Ruanda compeliu os “médicos sem
fronteiras” a reivindicar o emprego da força para interromper as atrocidades cometidas212. Com
relação à Somália, o critério do consentimento do Estado teve de ser relegado pela falta de um
governo em funcionamento que pudesse concedê-lo ou recusá-lo213. Na ocasião, a distribuição da
ajuda humanitária foi muito difícil, uma vez que a própria Cruz Vermelha deixou de lado seus
207 Cf. MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Op. Cit. p. 50. 208 Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Op. Cit. p. 157. 209 Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Op. Cit. p. 247. 210 Ibidem. p. 273. 211 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 157/158. 212 Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Op. Cit. p. 273. 213 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 55.
49
princípios norteadores e pagou aos guerrilheiros para que efetuassem a segurança dos
suprimentos e de seus membros, pois era a única alternativa viável para que a ajuda humanitária
pudesse chegar aos necessitados214. Nessas ocasiões, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha
tem observado que a utilização da força não deve ser descartada215 principalmente porque, sem a
imposição de um mínimo de paz, não é possível garantir a segurança e eficácia das operações de
assistência humanitária.
Portanto, quando as normas de proteção de civis começaram a ser desrespeitadas de forma
maciça e o acesso das organizações de apoio começou a ser impedido ou dificultado pelos
rebeldes, as crises tomaram tal magnitude que provocaram a reação da sociedade internacional e,
conseqüentemente, foram consideradas pelo Conselho de Segurança uma ameaça à paz e
segurança da região onde estavam situados os países em conflito. Deste modo, a provisão de
assistência humanitária foi elencada como parte do esforço para reconstruir a ordem, e a
promoção da assistência humanitária, como instrumento de defesa dos direitos humanos das
populações submetidas aos conflitos internos, passou a se tornar um motivo viável para a
autorização da intervenção armada, o que demonstra uma significativa alteração na postura das
potências do Conselho de Segurança em relação à proteção dos indivíduos e grupos minoritários
dentro das suas fronteiras estatais. Na medida em que as organizações não-governamentais e as
agências de assistência se tornaram impotentes diante do grau de violência observado nos novos
conflitos intraestatais, a intervenção militar surgiu como alternativa para garantir à população
civil o acesso à ajuda humanitária. A ONU, como guardiã da paz e segurança internacionais se
tornou o meio de manifestação deste novo instituto ao conferir legitimidade à violação da
soberania em nome da defesa dos direitos humanos216. Pode-se afirmar, portanto, que os
sucessivos envolvimentos da organização com relação à proteção dos direitos humanos
possibilitam a visualização de uma suposta garantia de um direito de assistência humanitária,
assegurado por uma norma costumeira, derivada das reiteradas Resoluções do Conselho de
Segurança na matéria, conforme será demonstrado a seguir.
214 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 126/127. 215 Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Op. Cit. p. 273. 216 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 180.
50
2.3 O DIREITO DE ASSISTÊNCIA HUMANITÁRIA
A relação entre as ONG’s e o sistema da ONU no campo da assistência humanitária têm
se pautado por um significativo progresso. É fato que aquelas possuem habilidade para responder
às catástrofes humanas de forma rápida, devido a sua centralidade de comando e liberdade de
ação em contraste aos procedimentos burocráticos das organizações internacionais. Ademais,
estão presentes em inúmeras situações de catástrofes naturais, industriais e políticas217 e muitas
vezes, ao recorrer à opinião pública para denunciar abusos e violações a direitos humanos,
conseguem uma participação mais efetiva das organizações internacionais para aliviar o
sofrimento humano. Acontece, porém, que muitas vezes, como já ressaltado no tópico anterior, as
ONG’s são impedidas de levar socorro as milhares de vítimas de conflitos internos, como
ocorreu, por exemplo, no Camboja, no Timor, no Burundi e na Etiópia. Neste último, inclusive,
algumas organizações não-governamentais, a exemplo do que também ocorreu na Somália,
tiveram que recorrer à cooperação das organizações rebeldes para poder ajudar um número
incontável de pessoas vítimas da fome e da guerra civil. Assim mesmo, o governo etíope utilizou
bombardeios aéreos para impedir que os comboios de ajuda pudessem chegar aos seus destinos.
Por conseguinte, verifica-se que a maior dificuldade das referidas organizações consiste em obter
a anuência do Estado necessitado da ajuda e a solução plausível para tanto é a existência de um
direito de acesso às vítimas sem a necessidade de permissão do governo do Estado que se
pretende ajudar218.
O esforço para o reconhecimento do direito/dever de assistência humanitária, com a
conseqüente necessidade de se romper com o princípio do consentimento estatal quando as
organizações não-governamentais e os Estados desejam prestar assistência humanitária neutra e
imparcial, deu-se, primeiramente, no ano de 1987, por iniciativa do então presidente da ONG
“Médicos do Mundo” Bernard Kouchner e o jurista Mário Bettati, que realizaram em Paris a
Primeira Conferência Internacional de Direito e Moral Humanitária. Na ocasião, sustentou-se que
o homem tem direito a solicitar a assistência humanitária e o Estado deve respeitar os direitos das
vítimas de recebê-la219. Mário Bettati, assim, consegue influenciar a política externa francesa, que
é bem sucedida em aprovar as resoluções 43/131 de 08 de dezembro de 1988 e 45/100 de 14 de
217 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 86/87. 218 Ibidem. p. 87. 219 Ibidem.
51
dezembro de 1990, na Assembléia Geral da ONU, as quais tratam do acesso às vítimas em
situações de urgência220.
Cumpre informar que já em 1981, a Assembléia Geral da ONU manifesta, muito embora
de forma vaga e imprecisa, o desejo de repensar a assistência humanitária, por meio da Resolução
36/136, intitulada “Nova Ordem Humanitária Internacional”221. Esta Resolução reconhece a
importância de aperfeiçoar os instrumentos existentes relacionados a questões humanitárias,
assim como, a necessidade de se ocupar dos aspectos que ainda não foram adequadamente
tratados. Expressa que seria necessário fortalecer as atividades e arranjos institucionais dos
órgãos governamentais e não-governamentais a fim de que atuem de forma eficaz nas situações
que demandem medidas humanitárias. Apela, finalmente, para que o Secretário Geral solicite as
opiniões dos governos sobre a proposta de promover uma nova ordem humanitária
internacional222.
A seu turno, a Resolução 43/131, de 08 de dezembro de 1988, intitulada “Assistência
humanitária as vítimas de desastres naturais e situações de emergência similares” dispõe sobre o
auxílio aos grupos atingidos pelas catástrofes naturais e industriais e se funda no pressuposto de
que as catástrofes naturais e as situações de urgência da mesma ordem têm conseqüências graves
no plano internacional para todos os países envolvidos. Ademais, o socorro aos necessitados é
corolário lógico do direito à saúde e à dignidade humana previstos na Declaração Universal dos
Direitos Humanos de 1948223. Assim, a referida Resolução recorda que um dos propósitos das
Nações Unidas é possibilitar a cooperação internacional na solução de problemas internacionais
de caráter econômico, social, cultural e humanitário, mormente estimular o respeito aos direitos
humanos e as liberdades fundamentais de todos, sem fazer qualquer distinção por motivos de
raça, sexo, idioma ou religião. Reafirma a soberania e a integridade territorial e reconhece que
incumbe aos Estados, em primeiro lugar, assistir as vítimas de desastres naturais e situações de
emergência similares que se produzam em seu território, mas admite que a comunidade
internacional poderá fornecer importante apoio à proteção dessas vítimas, cuja vida e saúde
podem estar gravemente ameaçadas. Ressalta que deixar as vítimas de desastres naturais e
220 Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Op. Cit. p. 158. 221 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 88. 222 Cf. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Assembléia Geral. Resolução 36/136 de 14 de dezembro de 1981. Disponível em: <http://daccessdds.un.org/doc/RESOLUTION/GEN/NR0/414/97/IMG/NR041497.pdf> Acesso em: 17 de setembro de 2008. 223 Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Op. Cit. p. 248.
52
situações de emergência similares sem assistência humanitária representa uma ameaça à vida e à
dignidade humana. Além disso, a Resolução demonstra a preocupação com as dificuldades que
podem obstar o recebimento de ajuda humanitária e ressalta que para a prestação dessa
assistência, principalmente o fornecimento de alimentos, medicamentos e atendimento médico, é
indispensável que os Estados permitam o acesso as vítimas, para que a ação seja rápida e evite o
aumento do número de flagelados. Desta forma, exorta que a ação conjunta dos governos e das
organizações governamentais, intergovernamentais e não-governamentais que atuem com fins
estritamente humanitários, pautadas nos princípios da humanidade, neutralidade e imparcialidade
poderá conferir rapidez e eficácia à assistência humanitária e, por conseguinte, evitar ou amenizar
as conseqüências de uma grande tragédia224.
A Resolução sob análise consagra o princípio do livre acesso às vítimas e estabelece uma
forma de tornar efetivo o direito à assistência humanitária, uma vez que deixa muito claro que
nem os Estados receptores, tampouco, os Estados vizinhos poderão impedir que a ajuda chegue
até as vítimas. Trata-se, portanto, de um dever de cooperação internacional para organizar o
socorro aos necessitados225, cujos dispositivos parecem incluir, implicitamente, as catástrofes
causadas pelo homem, como os conflitos armados226. A medida proposta pela Resolução em
apreço é inovadora e de suma importância, pois não raro, o Estado receptor desvia as provisões,
as vende ou as utiliza contra o próprio grupo necessitado227. De modo geral, desejou-se, com a
adoção dessa Resolução, evitar que os governos, por interesse ou extravagância, bloqueiem a
implementação das medidas necessárias para a realização da assistência humanitária228.
Todavia, o princípio do livre acesso às vítimas seria um instituto inútil sem a inovação
produzida pela Resolução 45/100, de 14 de dezembro de 1990 que disciplinou os corredores
humanitários. Esta Resolução se utiliza do mesmo roteiro da Resolução 43/131 e deste modo,
também reafirma a soberania estatal e delega primeiramente aos Estados afetados, a organização
e coordenação da prestação de assistência humanitária em seus respectivos territórios, mas
sinaliza a importância da ajuda realizada pelos governos e organizações intergovernamentais e
não-governamentais, desde que atuem de maneira imparcial e com fins estritamente
224 Cf. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Assembléia Geral. Resolução 43/131 de 08 de dezembro de 1988. Disponível em: <http://daccessdds.un.org/doc/RESOLUTION/GEN/NR0/538/03/IMG/NR053803.pdf> Acesso em: 17 de setembro de 2008. 225 Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Op. Cit. p. 158. 226 Cf. KOLOSOV, Youri. Op. Cit. p. 65. 227 Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Op. Cit. p. 158. 228 Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Op. Cit. p. 248.
53
humanitários. Convida os Estados, cujas populações necessitem de assistência humanitária a
aplicar a Resolução 43/131 e instalar, a título provisional e de forma acertada entre os governos
afetados e organizações intergovernamentais, governamentais e não-governamentais interessadas,
onde quer que seja necessário, os corredores de socorro, a fim de facilitar a distribuição de
alimentos, medicamentos e atendimento médico. Finalmente, roga aos Estados situados nas zonas
afligidas por desastres naturais e situações de emergência semelhantes, principalmente no caso de
regiões de difícil acesso, para que participem ativamente dos esforços internacionais de
cooperação com o objetivo de facilitar, na medida do possível, o trânsito da assistência
humanitária229.
A inovação trazida pelos corredores humanitários consiste na obrigação de preservar
determinada localidade livre da violência dos conflitos para facilitar o acesso do auxílio
humanitário. Trata-se de um direito limitado no tempo, uma vez que deve durar somente o tempo
necessário para a concessão do socorro; limitado no espaço, pois só pode ser exercido nas áreas
do trajeto previamente demarcado; limitado pelo objeto e exercício porque possui como única
função o transporte de suprimentos médicos e alimentares e toda e qualquer outra atividade não
relacionada ao socorro é proibida, além disso, deve minorar a confusão e dispersão da ajuda para
que não haja a discriminação da vítima. Cumpre informar, que a instauração dos corredores
humanitários não pode ser recusada pela autoridade local e, tampouco, poderá ser revogada a
qualquer tempo. Deve vigorar enquanto a ajuda for necessária, haja vista que se trata de uma
obrigação de resultado e não de meio. Por conseqüência, existem três espécies de corredores
humanitários: os de simples acesso, que favorecem a chegada do socorro às vítimas; os de
evacuação que permitem a fuga das pessoas em perigo iminente e os de retorno, que possibilitam
o regresso dos refugiados230. Cada qual possui um regime jurídico próprio, formalidades
administrativas e especificidades logísticas diferentes, e podem se realizar por via marítima,
fluvial ou aérea231.
O princípio do livre acesso às vítimas e dos corredores humanitários foram
constantemente invocados nas diversas resoluções do Conselho de Segurança, aprovadas nos
anos 1990. Quando da repressão aos curdos no Iraque, o Conselho de Segurança ordenou que
229 Cf. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Assembléia Geral. Resolução 45/100 de 14 de dezembro de 1990. Disponível em: <http://daccessdds.un.org/doc/RESOLUTION/GEN/NR0/572/63/IMG/NR057263.pdf> Acesso em: 17 de setembro de 2008. 230 Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Op. Cit. p. 159. 231 Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Op. Cit. p. 258.
54
fosse permitido às organizações internacionais humanitárias o acesso livre e imediato a todos
quantos carecessem de ajuda232. A Resolução nº 688 instituiu a “estrada azul” destinada a prover
ajuda aos flagelados e assegurar o retorno dos refugiados. A ofensiva dos rebeldes em Ruanda
reclamou a organização de um corredor humanitário, uma vez que era grande o receio de
represálias, e a precariedade dos campos de refugiados no Zaire, onde se alastrava a cólera e
outras doenças, foi determinante para a criação de um corredor de retorno para dispensar auxílio
e facilitar o repatriamento dos refugiados. Na ocasião, a organização de corredores aéreos
também teve grande importância233. Na Somália, a ONU tratou de garantir um ambiente seguro
para que se efetivasse a assistência humanitária234. A organização de corredores aéreos, e a
reabertura do porto da capital Mogadishu, desempenharam papel significativo na diminuição da
catástrofe humana235. No instante em que a crise na Bósnia se agravou, o Conselho de Segurança
determinou que as forças da ONU promovessem a distribuição de alimentos e remédios às
populações necessitadas. Providência similar foi tomada na crise da Libéria, em 1993, quando a
ONU ordenou que as partes em conflito cessassem com a prática de ações que obstavam a
prestação de assistência humanitária236. Após a Resolução nº 761 autorizar a UNPROFOR a
proteger a região do aeroporto de Sarajevo, na Bósnia, a ponte aérea foi instalada e a coordenação
da assistência humanitária coube à Cruz Vermelha. O corredor aéreo abrangia uma área de dez
quilômetros de largura e cento e vinte quilômetros de comprimento. A despeito dos constantes
incidentes que a interromperam em várias oportunidades, esta foi a maior ponte aérea da história
e contou com mais de doze mil vôos que transportaram em torno de cento e cinqüenta mil
toneladas de auxílio humanitário e evacuaram milhares de feridos237.
Destarte, percebe-se que ambas as resoluções foram obrigadas a fazer “concessões” ao
princípio da não-intervenção, muito embora tenham feito expressa referência à soberania estatal e
enfatizado o caráter excepcional da decisão, a qual deve ser tomada somente em situações de
extrema emergência238. De todo o modo, o princípio do livre acesso às vítimas e dos corredores
humanitários foram consagrados por meio das inúmeras resoluções adotadas pelo Conselho de
Segurança nos anos 1990, o que lhes conferiu caráter de regras costumeiras, cuja obrigatoriedade
232 Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Op. Cit. p. 248. 233 Ibidem. 258. 234 Ibidem. p. 249. 235 Ibidem. p. 259. 236 Ibidem. p. 249. 237 Ibidem. p. 259. 238 Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Op. Cit. p. 158.
55
é expressão da relevância que a comunidade internacional concede à assistência humanitária239. O
direito à ajuda humanitária constitui-se, no atual estágio de desenvolvimento da humanidade,
uma regra de jus cogens, que conduz à anulação qualquer tratado ou ato jurídico internacional em
conflito com este direito ou com medidas exigidas para a sua aplicação240. Não obstante a
consagração do princípio do livre acesso às vítimas e dos corredores humanitários, o maior
problema enfrentado para a prática da assistência humanitária ocorre quando os Estados
receptores decidem, pela força, impedir o auxílio241. Neste caso, o Conselho de Segurança é
competente para lançar ou aprovar uma intervenção humanitária com vistas a opor-se a violações
do direito à assistência humanitária ou de qualquer outra norma do Direito Humanitário
Internacional, que considerar uma ameaça à paz e segurança internacionais242. A solução,
portanto, seria confundir as fronteiras da assistência humanitária com a intervenção humanitária
e, conseqüentemente, o Conselho de Segurança legitimar as forças armadas de um ou mais
Estados para efetivar a intervenção243. Por este motivo, faz-se necessário a análise da
competência do Conselho de Segurança para impor a observância do direito de assistência
humanitária, o que se fará no próximo capítulo deste trabalho.
3 A REVISÃO DO PRINCÍPIO DA SOBERANIA FRENTE ÀS POSSIBILIDADES LEGÍTIMAS DE INTERVENÇÃO HUMANITÁRIA
3.1 A COMPETÊNCIA DO CONSELHO DE SEGURANÇA DA ONU
Conforme já aludido ao longo deste trabalho, constata-se que o Conselho de Segurança
possui competência para determinar o que consiste uma ameaça à paz e a segurança
internacionais, consoante o comando do capítulo VII da Carta. Entretanto, importa analisar qual
seria o sistema de “freios e contrapesos” necessários para tornar suas decisões, que são de cunho
político e consideradas parciais pela grande maioria da doutrina, - uma vez que direcionadas aos
interesses das potências que são membros permanentes do Conselho de Segurança e detêm o
239 Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Op. Cit. p. 254. 240 Cf. ESPIELL, Héctor Gros. Op. Cit. p. 22. 241 Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Op. Cit. p. 160. 242 DINSTEIN, Yoram. As conseqüências jurídicas das violações do direito de assistência humanitária. In: COLÓQUIO INTERNACIONAL SOBRE O DIREITO À ASSISTÊNCIA HUMANITÁRIA. O direito à assistência humanitária. Trad. Catarina Eleonora F. da Silva, Jeanne Sawaya. Rio de Janeiro: Garamond, 1999. p. 56. 243 Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Op. Cit. p. 160.
56
poder de veto - em decisões imparciais e norteadas estritamente às necessidades humanitárias. O
problema que demanda resolução é identificar se os poderes concedidos pela Carta permitem ao
Conselho de Segurança autorizar a utilização da força contra os membros da ONU para proteção
dos direitos humanos. Muito embora as resoluções dos anos 1990 tenham legitimado ações
armadas para a proteção dos referidos direitos, importa analisar os limites da discricionariedade
do Conselho de Segurança na matéria e em que medida suas ações são revestidas de
imparcialidade e possuem por único escopo a proteção dos seres humanos.
É certo que o Conselho de Segurança encontrou na sua discricionariedade para determinar
o que consiste ameaça à paz, quebra da paz ou ato de agressão, conforme disposição do art. 39 da
Carta, a legitimidade para autorizar as intervenções humanitárias ocorridas nos anos 1990. Neste
viés, o referido órgão, em todas as resoluções que aprovou, teve a preocupação de fazer sempre
menção, por mais sutil que fosse ao capítulo VII da Carta e à existência de situação considerada
como grave ameaça à paz e segurança internacionais. Ao agir desta forma, o Conselho de
Segurança endossou a tese de que perseguições a populações e minorias resultam em efeitos
transfronteiriços e afetam não só os países envolvidos, mas plantam o gérmen de um conflito
internacional244. Entretanto, a problemática central revela-se no fato de que a ONU não possui
meios para empreender essas ações245, mas pode autorizar um ou mais países para representá-
la246. A questão se resume às condições em que a ONU pode promover essa delegação247, visto
que a organização não possui a logística necessária para ações impositivas, ela se torna
dependente da oferta de países “interessados” e “capazes” e, conseqüentemente, o resultado disso
são resoluções conduzidas conforme a proposta dos referidos Estados. Essa delegação de
poderes, portanto, acaba por favorecer a inconsistência das decisões do Conselho de Segurança e
confere-lhe caráter legitimador de políticas nacionais, em detrimento da importância substantiva
de suas funções248.
Como a Resolução 3.314 que define agressão, conforme já aludido neste trabalho, é
meramente exemplificativa, o Conselho de Segurança não está adstrito aos seus termos para 244 Cf. DELGADO, José Manuel Avelino de Pina. Op. Cit. p. 167/168. 245 Como já aventado neste trabalho, embora a Carta tenha previsto um contingente militar próprio para atuar em nome da organização (art. 43), isto ainda não foi possível. 246 “Essa delegação de competência não suplanta a ONU; em vez disso, o Estado a substitui por subrogação. Pela lei do “desdobramento funcional”, os órgãos estatais exercem um duplo papel, simultaneamente nacional e internacional, e os Estados se tornam criadores, aplicadores e destinatários dessas normas internacionais.” (Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Op. Cit. p. 161). 247 Ibidem. 248 Cf. VIOTTI, Aurélio Romanini de Abranches. Op. Cit. p. 142.
57
definir o que consiste ameaça à paz e segurança internacionais e assim, pode incluir matérias não
cobertas pela Resolução e desqualificar outras expressamente previstas. Por conseguinte, cabe
inteiramente a este órgão interpretar sobre o que se constituiria uma agressão passível de abalar a
estabilidade internacional. Todavia, ressalta-se que, conforme o art. 24249, o Conselho de
Segurança detém responsabilidade primária na manutenção da paz e segurança internacionais, o
que não significa que é exclusiva. A Assembléia Geral está autorizada, desde que o Conselho não
esteja a apreciar a matéria (art. 12250) a fazer recomendações aos Estados-membros ou ao
Conselho ou a ambos em qualquer questão ou assunto (art. 10251)252. Ademais, os poderes
discricionários conferidos ao órgão pelo art. 39 da Carta são limitados pelos princípios e
propósitos das Nações Unidas, consoante o disposto no art. 24, §2º e, em assim sendo, o
Conselho de Segurança não poderá tomar medidas que se contraponham aos princípios e
propósitos das Nações Unidas253. Especificamente em relação às intervenções humanitárias, não
resta dúvida de que isso não ocorreria, uma vez que conforme o art. 1º, §3º254, a promoção e
encorajamento aos direitos humanos e liberdades fundamentais fazem parte do rol de propósitos
da Organização. Inobstante, o dispositivo é de aplicação muito relativa, pois não parece autorizar
249 Art. 24. § 1º. A fim de assegurar uma ação pronta e eficaz por parte das Nações Unidas, os seus membros conferem ao Conselho de Segurança a principal responsabilidade na manutenção da paz e da segurança internacionais e concordam em que, no cumprimento dos deveres impostos por essa responsabilidade, o Conselho de Segurança aja em nome deles. § 2º. No cumprimento desses deveres, o Conselho de Segurança agirá de acordo com os objetivos e os princípios das Nações Unidas. Os poderes específicos concedidos ao Conselho de Segurança para o cumprimento dos referidos deveres estão definidos nos capítulos VI, VII, VIII e XII. § 3º. O Conselho de Segurança submeterá à apreciação da Assembléia Geral relatórios anuais e, quando necessário, relatórios especiais. 250 Art. 12. §1º. Enquanto o Conselho de Segurança estiver a exercer, em relação a qualquer controvérsia ou situação, as funções que lhe são atribuídas na presente Carta, a Assembléia Geral não fará nenhuma recomendação a respeito dessa controvérsia ou situação, a menos que o Conselho de Segurança o solicite. § 2º. O Secretário-Geral, com o consentimento do Conselho de Segurança, comunicará à Assembléia Geral, em cada sessão, quaisquer assuntos relativos à manutenção da paz e da segurança internacionais que estiverem a ser tratados pelo Conselho de Segurança, e da mesma maneira dará conhecimento de tais assuntos à Assembléia Geral, ou aos membros das Nações Unidas se a Assembléia Geral não estiver em sessão, logo que o Conselho de Segurança terminar o exame dos referidos assuntos. 251 Art. 10. A Assembléia Geral poderá discutir quaisquer questões ou assuntos que estiverem dentro das finalidades da presente Carta ou que se relacionarem com os poderes e funções de qualquer dos órgãos nela previstos, e, com exceção do estipulado no artigo 12, poderá fazer recomendações aos membros das Nações Unidas ou ao Conselho de Segurança, ou a este e àqueles, conjuntamente, com a referência a quaisquer daquelas questões ou assuntos. 252 Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Op. Cit. p. 161. 253 Cf. DELGADO, José Manuel Avelino de Pina. Op. Cit. p. 168. 254 Art. 1º Os objetivos das Nações Unidas são: [...] § 3º. Realizar a cooperação internacional, resolvendo os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário, promovendo e estimulando o respeito pelos direitos do homem e pelas liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião.
58
a utilização da força para implementar esses propósitos, uma vez que a própria Carta teria que se
opor ao princípio inserido no seu art. 2º, §7º que, como já visto, não autoriza as Nações Unidas a
intervir em questões que são essencialmente da jurisdição interna de qualquer Estado. Entretanto,
pelo fato do disposto neste mesmo princípio se auto-limitar pela ressalva de que “este princípio
não poderá prejudicar a aplicação da imposição das medidas do capítulo VII”, nada obstaria que
o Conselho de Segurança determinasse, como efetivamente tem feito, que determinadas situações
de caráter iminentemente humanitário se constituem ameaças à paz e segurança internacionais e
assim, autorizasse a utilização da força para contorná-las255.
Contudo, critica-se que mesmo que a crise humanitária seja a oportunidade por trás da
decisão coletiva de intervir, por meio do disposto no capítulo VII da Carta, automaticamente,
reconhece-se a adequação da ação bélica para proteger o indivíduo e fortalece-se a expectativa de
recorrer à força armada para proteger direitos humanos. Tal posicionamento acabaria por
expandir as exceções legais à proscrição do uso da força esculpido no art. 2º, §4º da Carta e seria
insustentável negar a possibilidade de intervenção armada unilateral no caso de divergência sobre
o grau de envolvimento internacional em determinada questão no Conselho de Segurança256. Tal
assertiva não prevalece, mesmo porque, a Carta da ONU permite somente ao Conselho de
Segurança, por meio da derradeira disposição do art. 2º, §7º em conjunto com o art. 39, a intervir
nos casos em que julgue ameaça à paz e segurança internacionais, o que desqualifica por
completo uma ação estatal não rechaçada pelo referido órgão. Deve-se reiterar que todas as
operações autorizadas pelo Conselho de Segurança para tratar de questões humanitárias por meio
da utilização da força, como já visto, seguiram esse padrão.
Ademais, o envolvimento do Conselho de Segurança em conflitos domésticos, em
particular, é assegurado por três motivos. Primeiro, caso tenham efeitos transfronteiriços, a
prática da Organização cedo reconheceu que podem ameaçar a paz e segurança internacionais,
pelo risco de envolvimento de outros Estados. Segundo, caso os efeitos não ultrapassem as
fronteiras, o que é contestável, - haja vista o fenômeno dos refugiados - o fato de envolverem
ameaças ou violações aos direitos humanos assegura a competência do Conselho de Segurança
sob o capítulo VI da Carta, mesmo que a paz internacional não esteja diretamente ameaçada.
Terceiro, caso considere que a situação chegue a ameaçar a paz e segurança internacionais, o
255 Cf. DELGADO, José Manuel Avelino de Pina. Op. Cit. p. 168/169. 256 Cf. VIOTTI, Aurélio Romanini de Abranches. Op. Cit. p. 142/143.
59
Conselho de Segurança, sob o Capítulo VII da Carta, poderá agir frente a questões domésticas,
independentemente do consentimento do Estado257.
Efetivamente, em muitos dos conflitos ocorridos nos anos 1990, especialmente os da
Somália e Haiti, não havia risco iminente à segurança internacional, mas assim mesmo as
operações foram autorizadas. Na ocasião, tentou-se evidenciar que o Conselho de Segurança se
amparava muito lateralmente na pressuposição da existência de tal ameaça, quando na verdade
pretendia utilizar a força unicamente para proteger os direitos humanos que estavam sendo
maciçamente violados. Assim, faz-se necessário identificar se os poderes discricionários
concedidos pela Carta ao Conselho de Segurança permitem autorizar a utilização da força contra
os Estados-membros para proteger direitos humanos mesmo na eventualidade de não haver
nenhum nexo causal entre a situação de grave crise humanitária e a segurança internacional. Essa
base jurídica poderia resultar da assunção de que a própria violação aos direitos humanos
autorizaria o Conselho de Segurança a tomar medidas para manter ou restaurar a ordem. É
preciso não olvidar que a própria ONU foi criada não somente para manter a paz e segurança
internacionais, mas também - isto se não for o seu objetivo precípuo - para proteger direitos
humanos. Ademais, conforme aludido anteriormente, as Nações Unidas podem utilizar a força em
exceção às situações explicitamente inseridas na Carta e implementar, por exemplo, as
possibilidades reconhecidas pelo Direito Internacional costumeiro. Na verdade, o sistema de
segurança coletiva nada mais é do que a multilateralização e formalização do direito costumeiro à
legítima defesa. Desta forma, caso a intervenção humanitária seja reconhecida pelo direito
costumeiro, como efetivamente tem ocorrido, principalmente pelo reconhecimento, como já
visto, do direito de assistência humanitária como norma de jus cogens; não existe qualquer
impedimento legal para que as Nações Unidas autorizem a utilização da força para proteger
direitos humanos258.
A despeito da ausência de previsão legal explícita na Carta, imperioso recordar que este
documento é um instrumento vigente e, portanto, apto a se transformar para abarcar novas
situações não previstas no momento em que foi aprovado. Foi o que ocorreu, por exemplo, em
relação à interpretação do art. 27, §3º, o qual dispunha que as “decisões do Conselho de
Segurança deverão ser tomadas pelo voto afirmativo de nove membros, inclusive os votos
257 Cf. VIOTTI, Aurélio Romanini de Abranches. Op. Cit. p. 141. 258 Cf. DELGADO, José Manuel Avelino de Pina. Op. Cit. p. 169/170.
60
concorrentes dos membros permanentes”. Obviamente que por “voto concorrente” infere-se que
todos os membros permanentes deveriam votar a favor de determinada resolução para obter sua
aprovação. Ocorre, porém, que a prática do Conselho de Segurança passou a entender que a
referida expressão significava tão somente a ausência de votos em contrário259. Semelhante foi o
processo hermenêutico de estabelecimento da base jurídica das operações de manutenção de paz,
visto que a Carta não disciplinou em quaisquer dos seus dispositivos a criação das referidas
operações. Muito embora não se constituam alterações passíveis de emenda à Carta, o que
interessa para que seja aceita é conformação de uma prática reiterada e sem oposição significativa
por parte dos Estados, o que de fato, aconteceu em relação às intervenções humanitárias
empreendidas pela ONU, inclusive por muitos Estados que a sofreram. Isso corrobora o
entendimento de que as intervenções humanitárias autorizadas pelo Conselho de Segurança se
cristalizaram como prática reiterada e sem oposição, e ganharam o relevo de norma de Direito
Internacional costumeiro260.
É fato que o art. 39 confere poderes muito abrangentes ao Conselho de Segurança, mas de
modo algum pode ser considerada uma disposição arbitrária, uma vez que se trata de norma
aberta para ser adequadamente apreciada diante do fato concreto e desta forma, está limitada pelo
sistema jurídico vigente, ou seja, pela própria Carta e as normas costumeiras de Direito
Internacional. Além do limite subentendido no próprio art. 39, resta claro que o Conselho de
Segurança não poderia autorizar ações amparadas no Capítulo VII para promover objetivos
contrários aos explicitados pelos artigos 1º e 2º da Carta, os quais se constituem limitação
material aos seus poderes. Outro dispositivo importante que limita a competência do órgão é o
art. 2º, §7º, uma vez que exclui determinadas questões do âmbito de sua competência.
Entretanto, como a proteção conferida pelo referido artigo é relegada quando a questão em
análise é relativa às medidas de segurança coletiva, o Conselho de Segurança ainda possui o
poder de apreciar quando determinada situação deixa de ser de domínio reservado dos Estados e
passa a ser de importância global261.
259 Este entendimento foi inaugurado na aprovação da Resolução 84, de 07 de julho de 1950, ocasião em que na ausência do representante da União Soviética nos trabalhos do Conselho de Segurança, foi determinada a constituição de uma força das Nações Unidas, sob o comando dos Estados Unidos, para prestar auxílio à Coréia do Sul. (Cf. DELGADO, José Manuel Avelino de Pina. Op. Cit. p. 98/99). 260 Ibidem. p. 171/172. 261 Ibidem. p. 175/176.
61
O Conselho de Segurança, por ser o titular do posto de guardião da paz e segurança
internacionais, possui outras limitações ao exercício das suas funções e, uma vez que suas
decisões possuem natureza política e vinculante, o órgão deve motivá-las por meio da
demonstração do amparo legal utilizado para qualquer ação autorizada. A experiência recente tem
comprovado que o Conselho de Segurança não se furta a isso. As autorizações para a utilização
da força, embora de modo conciso, invariavelmente remetem à Carta das Nações Unidas. Não
bastasse isso, as resoluções devem respeitar os limites da razoabilidade, sem estabelecer
conexões absurdas que não se harmonizem com as possibilidades previstas na Carta para a
atuação do Conselho ou com algum dos propósitos das Nações Unidas. Finalmente, exige-se que
os Estados, ao participarem das votações promovidas pelo órgão, respeitem o princípio
costumeiro da boa-fé262.
Contudo, do ponto de vista do funcionamento de um sistema jurídico não é suficiente
determinar a existência dos poderes, sua competência e, acima de tudo, seus limites. Em última
instância, os participantes de uma comunidade jurídica somente se satisfazem com um sistema
quando sabem quem controla os poderes, especialmente daquele que detém a função de execução
que, no caso do sistema das Nações Unidas, é o Conselho de Segurança263. A questão da
necessidade de uma delimitação mais clara das competências do órgão foi objeto de atenção no
célebre caso Nicarágua, no qual a Corte Internacional de Justiça esclareceu que o fato de estar
uma determinada matéria sob a apreciação do Conselho de Segurança não impedia que também a
Corte pudesse examiná-la e que ambos os processos pudessem ter seqüência em conjunto264. Essa
também foi a questão de fundo do notório caso Lockerbie, no qual, a Corte Internacional de
Justiça teve que se posicionar diante do fato de que um Estado afetado por resoluções do
Conselho de Segurança reclamava da utilização abusiva dos poderes conferidos ao órgão.
Este último caso pode ser sucintamente descrito da seguinte forma: a Líbia foi acusada
pelos Estados Unidos e Reino Unido de, por meio de dois indivíduos líbios, ter sido a responsável
pelo atentado ao avião da Pan Am que caiu sobre a localidade escocesa de Lockerbie e ocasionou
a morte de tripulantes e pessoas em terra. Na seqüência, os dois países exigiram que a Líbia
extraditasse os suspeitos sob pena de usarem a força. Também recorreram ao Conselho de
262 Cf. DELGADO, José Manuel Avelino de Pina. Op. Cit. p. 174/176. 263 Ibidem. p. 177. 264 CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Caso das atividades militares e paramilitares na e contra a Nicarágua (Nicarágua v. Estados Unidos). Op. Cit. p. 21.
62
Segurança que, por meio da Resolução 731 de 22 de janeiro de 1992, exigiu a cooperação da
Líbia. Esta última insurgiu-se contra a referida Resolução e peticionou à Corte para que ela se
posicionasse, por meio da concessão de medidas cautelares, acerca da ameaça de ação armada
com o objetivo de fazê-la entregar à força os seus nacionais suspeitos do caso, bem como, pela
possibilidade de quaisquer violações da soberania, integridade territorial e independência política
da Líbia, por parte do Reino Unido e Estados Unidos 265.
Apesar de existirem várias questões relevantes no caso em comento, interessa para a
presente pesquisa verificar a possibilidade da Corte Internacional de Justiça analisar a legalidade
dos atos do Conselho de Segurança. Nesse sentido, apesar dos juízes terem se posicionado contra
as medidas cautelares requeridas pela Líbia, algumas decisões são particularmente importantes.
Primeiramente, consolidou-se o entendimento de que não há norma que impeça a Corte de se
pronunciar sobre questões em análise no Conselho de Segurança. Outro ponto proeminente diz
respeito aos votos de alguns juízes, os quais abriram a possibilidade de no futuro, o órgão da
justiça internacional passar a controlar a legalidade dos atos do Conselho de Segurança266. Em
especial, o voto do juiz Manfred Lachs sintetiza muito bem essa possibilidade ao declarar que “de
fato a Corte é a guardiã da legalidade da comunidade internacional como um todo, tanto dentro
quanto fora das Nações Unidas”267. Desse modo, a Corte poderia, em alguns casos, exercer o
controle dos atos do Conselho de Segurança e assim, rejeitar o efeito vinculante de certas
resoluções que não estiverem devidamente amparadas numa interpretação razoável da Carta. Das
aludidas decisões infere-se ainda, como já aventado, que a responsabilidade do Conselho é
primária, mas não exclusiva. Enquanto a Carta das Nações Unidas impede a Assembléia Geral de
formular qualquer recomendação em relação a uma disputa ou situação pendente perante o
Conselho de Segurança (art. 12), a menos que este assim o requeira, não há qualquer restrição
desse tipo ao exercício das funções da Corte Internacional de Justiça268.
265 Cf. CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Caso relativo às questões de interpretação e aplicação da convenção de Montreal de 1971 resultantes do incidente aéreo de Lockerbie (Grande Jamahiriya Árabe Popular Socialista da Líbia v. Reino Unido. Decisão de 14 de abril de 1992. Disponível em: <http://www.icj-cij.org/homepage/sp/files/sum_1992-1996.pdf> Acesso em: 08 de outubro de 2008. p. 1. 266 Cf. DELGADO, José Manuel Avelino de Pina. Op. Cit. p. 179. 267 Cf. CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Caso relativo às questões de interpretação e aplicação da convenção de Montreal de 1971 resultantes do incidente aéreo de Lockerbie (Grande Jamahiriya Árabe Popular Socialista da Líbia v. Reino Unido. Op. Cit. p. 4. 268 Cf. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Direito das Organizações Internacionais. 3ª ed. rev. atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. .
63
Como já argumentado neste trabalho, quando a questão é a proteção do indivíduo, não
cabe a argüição por parte dos Estados da exceção do domínio reservado contra a ação da ONU,
mesmo de caráter preventivo. A evolução do Direito Internacional dos Direitos Humanos e do
Direito Internacional Humanitário superou a antiga inconsistência, percebida pelos primeiros
comentadores da Carta, de que a ONU ficaria obrigada a assistir imóvel ao escalonamento de um
conflito doméstico até que se chegasse a ameaçar a paz internacional. A Organização
efetivamente tem respondido a essas situações, mas essas respostas devem ser progressivas, uma
vez que devem respeitar o princípio geral de resolução pacífica de conflitos e situações,
consoante o comando do art. 2º, §3º da Carta269. Assim, o Conselho de Segurança tem a
faculdade de convidar as partes a aceitar medidas provisórias, que não afetarão os seus direitos,
antes que qualquer ação seja empreendida. Vencida esta fase, o órgão poderá instar os Estados-
membros a aplicar certas medidas sem a utilização das forças armadas. Entre elas, incluem-se a
interrupção total ou parcial das relações econômicas, dos meios de comunicação de qualquer
espécie e o rompimento das relações diplomáticas. Comprovada a ineficácia ou a inadequação
destas ações, o Conselho de Segurança poderá autorizar o emprego da força armada para manter
ou estabelecer a paz e a segurança internacionais. As medidas adotadas nessa fase compreendem
o policiamento das ações de socorro humanitárias, bloqueios e outras operações efetuadas pelas
forças aéreas, navais e terrestres dos membros das Nações Unidas270. Este procedimento revela a
preocupação do Conselho de Segurança em agir de forma preventiva, sem excluir as ações sob o
capítulo VI, como por exemplo, o recurso a missões de investigação dos fatos. Além disso,
mesmo que tome medidas sob o capítulo VII, o que se percebe, pelos casos estudados, é que tem
utilizado a opção militar como último recurso, o que se coaduna com as disposições da Carta e,
conseqüentemente com o regime legal que busca minimizar as oportunidades de recurso às armas
pelos Estados271.
Importa analisar ainda a justa intenção do envolvimento do Conselho de Segurança nas
crises humanitárias. Ao que parece, mesmo diante das graves crises verificadas em Ruanda e no
Zaire, por exemplo, houve claro desinteresse do órgão em engajar-se de modo eficaz272.
Argumenta-se que a intervenção francesa em Ruanda, no ano de 1994, foi movida não por
269 Cf. VIOTTI, Aurélio Romanini de Abranches. Op. Cit. p. 140. 270 Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Op. Cit. p. 138/139. 271 Cf. VIOTTI, Aurélio Romanini de Abranches. Op. Cit. p. 140/141. 272 Ibidem. p. 143.
64
preocupações humanitárias, mas pelo desejo francês de continuar no papel de grande potência na
África Central. Entretanto, a exigência de uma motivação unicamente altruísta pode ser
dispensada, uma vez que esta com a exclusão de outros interesses egoístas não é aplicável às
relações internacionais; o que deve ser considerado é o significado moral dessa motivação plural
e confusa273 que, muito embora possuam interesses outros e não somente os humanitários,
verificou-se, pelos casos analisados, que foram de grande auxílio para minorar as catástrofes
humanitárias ocorridas nos anos 1990.
De todo o modo, é salutar identificar as condições em que deve ocorrer o envolvimento do
Conselho de Segurança nas crises humanitárias. Primeiramente, as soluções pacíficas e
diplomáticas de composição devem ter sido totalmente esgotadas. Num segundo momento, deve-
se verificar o princípio da subsidiariedade da persecução criminal internacional, isto é, a
comunidade internacional só poderá agir quando o Estado intervenido não o faz. Isso ocorre em
dois casos: quando ao poder público nacional puder ser imputada uma ação ou omissão
criminosa; e quando a situação de calamidade for muito grave e restar demonstrado que o Estado
não possui instituições internas capazes para lidar com o problema. Neste viés, a decretação da
intervenção deve ser o último recurso que somente se impõe, uma vez ponderada a urgência da
situação e a recalcitrância do Estado274.
Os critérios da proporcionalidade e da probabilidade de êxito também devem ser
analisados. A intervenção, obviamente, não deve agravar ainda mais a situação que ela visa
corrigir ou suavizar os efeitos. Para tanto, o emprego de forças deve ser calculado juntamente
com a possibilidade de sucesso da operação, ser restrito ao socorro humanitário e ao cabo deste,
as tropas devem deixar o país275. Por derradeiro, a justa causa de uma intervenção humanitária é,
sem embargo, a proteção dos direitos humanos. Cabe intervenção humanitária, desde que
empreendida pela ONU, diante de limpezas étnicas, genocídios, crimes contra a humanidade,
desastres humanitários decorrentes de calamidades naturais, enfim, situações em que se
verifiquem violações verdadeiramente graves aos direitos humanos e, diante das quais, o poder
público estatal dos países envolvidos não se manifeste de forma moralmente satisfatória, seja pela
sua ação ou omissão276. Assim mesmo, a licitude das intervenções humanitárias ainda esbarra no
273 Cf. MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Op. Cit. p. 164. 274 Ibidem. p. 165. 275 Ibidem. 276 Ibidem. p. 167/168.
65
conceito tradicional do princípio da soberania estatal, o qual estabelece que o Estado goza de
inteira liberdade ou independência para realizar os atos que lhe aprouver dentro do seu território.
Imperioso, portanto, analisar no próximo tópico desta pesquisa, como este princípio tem sido
tratado na atualidade, frente à regulamentação das condutas estatais impostas pelo Direito
Internacional.
3.2 A REVISÃO DO CONCEITO DE SOBERANIA
Os esforços teóricos para se construir uma ordem internacional e conferir a ela alguma
sustentação jurídica tiveram que necessariamente investir contra o conceito tradicional de
soberania. Esta e o Direito Internacional tornam-se assim forças opostas, uma vez que a
possibilidade de substituir uma ordem relacional de coordenação e coexistência por outra de
subordinação e cooperação depende de desconstituir as concepções que não aceitam a
subordinação de Estados soberanos, justamente por estes possuírem o atributo de serem
soberanos. A relativização do conceito de soberania é, portanto, um pressuposto para a
construção e evolução do Direito Internacional. Os espaços que lentamente são desocupados pela
irresignação do poder estatal a qualquer outro poder passam a ser preenchidos pelo Direito
Internacional em sua complexa formulação277.
O conceito de soberania, acompanhado da idéia de Estado, originaram-se com a
celebração do Tratado de Vestfália278, de 1648, a partir do qual, inaugurou-se um período de
coexistência fundado no equilíbrio de Estados absolutamente soberanos e o Direito Internacional
restou limitado à regência das relações entre eles. Entretanto, com o tempo, o relacionamento
entre os Estados sofreu paulatinas modificações e passou da política de mera coexistência para a
de colaboração, o que se comprova com a celebração, cada vez mais freqüente, de tratados, e com
o surgimento de diversas organizações e associações internacionais. Tudo isso revela a própria
relativização do conceito de soberania279.
277 Cf. LUPI, André Lipp Pinto Basto. Soberania, OMC e Mercosul. São Paulo: Aduaneiras, 2001. p. 269. 278 “A paz de Vestfália de 1648 representa o principal símbolo da conformação de um sistema internacional baseado na independência e na soberania dos Estados. Os acordos de Vestfália foram resultado da convergência das potências efetivas da Europa e dos príncipes e cidades que possuíam uma política externa independente, unidos para pôr fim aos anos de guerra religiosa.” (Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Justiça restaurativa, dialogia e reconstrução social: Tribunais internacionais e comissões de verdade na África. Disponível em: <http://www.iuperj.br/biblioteca/teses/simone%20martins%20rodrigues%20tese.pdf> Acesso em: 12 de outubro de 2008. p. 4.). 279 Cf. LUPI, André Lipp Pinto Basto. Op. Cit. p. 270.
66
Hodiernamente, a soberania é a capacidade de um Estado para impor livremente suas
normas jurídicas a uma população que se encontra em um território determinado, mas não
implica nenhum status moral inatingível ou que mereça um respeito incondicional280. O Direito
Internacional é quem decide se o Estado é soberano ou não, e deixa a cargo da lei doméstica a
decisão sobre quem deve exercer a soberania. Por isso, soberania de Estado significa
independência deste nas relações entre os Estados, mas de modo algum significa que ele se
sobrepõe à lei internacional, ao contrário, a soberania é uma garantia dentro do Direito
Internacional e a história nos mostra que, do final do século XIX até as grandes guerras, os
juristas, em particular, os alemães, desenvolveram a teoria de soberania e de Estado aos seus
extremos, de modo que a trágica experiência das guerras mundiais ocasionou a revisão do seu
conceito a fim de torná-lo mais flexível e evitar que fosse utilizada de modo irresponsável281.
Assim, entende-se que o conceito de soberania é o poder de organizar-se juridicamente e
de fazer valer dentro do seu território a universalidade de suas decisões nos limites dos fins éticos
de convivência. Não se trata, portanto, de mera expressão do poder, uma vez que está submetida
ao direito e aos fins éticos da convivência humana. O resultado disso são limites internos, como
normas constitucionais que almejam o bem comum; e externos, estabelecidos pelo Direito
Internacional, os quais orientam e disciplinam o exercício do poder soberano no sentido último da
satisfação das necessidades do povo e não do Estado, pois este somente existe em função
daquele. Desse modo, a soberania não deve ser compreendida como um conceito estático, mas
como um processo, uma vez que possui um caráter marcadamente histórico e, por conseguinte, a
sua interpretação varia no tempo e no espaço, conforme a realidade e as necessidades,
primeiramente dos Estados, depois de toda a ordem jurídica internacional. Ao considerar que na
atualidade a soberania é dependente desta, pode-se afirmar que soberano é o Estado que se
encontra subordinado direta e imediatamente à ordem jurídica internacional282, sendo,
conseqüentemente, seu sujeito de direitos e deveres.
Ademais, com o advento da globalização, o conceito de soberania, apesar da sua
flexibilidade e da independência que goza nas relações internacionais, está a perder
gradativamente seu significado, uma vez que a interdependência é a realidade. É mais plausível
280 Cf. RAMÍREZ, Frederico Arcos. Op. Cit. p. 26. 281 Cf. SILVA SOBRINHO, Marcelo da. Soberania no direito internacional: Evolução ou revolução? Disponível em: <http://www.senado.gov.br/web/cegraf/ril/pdf/pdf_163/r163-01.pdf> Acesso em: 12 de outubro de 2008. p. 11. 282 Ibidem. p. 12.
67
visualizar, no cenário atual, uma igualdade jurídica entre os Estados, na qual não haveria como
existir Estados mais fortes ou mais fracos, uma vez que estes não podem ser valorados pela
simples extensão de seus poderes econômicos, militares, etc; pois sob a esfera do Direito
Internacional, todos se igualam em direitos e deveres. A referida igualdade é o que hoje domina a
vida internacional, mas não é um modelo ideal, uma vez que sofre várias exceções livremente
estatuídas pelos próprios Estados. É preciso não olvidar que tais exceções decorrem do fato de
que, na prática, os Estados são desiguais. Assim sendo, entende-se que, em termos de Direito
Internacional, deve-se considerar as desigualdades materiais dos Estados, o que enseja à criação
de status jurídicos distintos correspondentes as diferentes capacidades dos países. Esse fenômeno
se desdobra da seguinte forma: por um lado, os Estados mais fracos ou subdesenvolvidos
constantemente reivindicam maiores vantagens, uma vez que as desigualdades compensatórias
não atentam contra o princípio da igualdade jurídica. Por outro, os Estados mais fortes ou
desenvolvidos, principalmente via acordo, criam e reservam maiores direitos na esfera da
sociedade internacional, o que explica, por exemplo, a cláusula da nação mais favorecida em
acordos econômicos e a existência do direito de veto no Conselho de Segurança, reservado
apenas aos Estados que possuem assento permanente. Uma grande vantagem dessa conceituação,
ainda que de difícil aplicação prática, reside na possibilidade de se qualificar um determinado ato
de Estado, seja este desenvolvido ou subdesenvolvido, como antijurídico, de modo que quando
um determinado Estado viole uma norma do Direito Internacional torna-se passivo de sanções ou
pedidos de reparação que podem ser invocados a qualquer tempo283.
Desta forma, o reconhecimento da igualdade jurídica dos Estados ou igualdade soberana,
independentemente de seus poderios ou riquezas, impõe-se como o princípio fundamental do
Direito Internacional. A Carta da ONU, com a intenção de edificar um sistema internacional
regido por normas internacionais não se furtou a isso e expressamente reconheceu, em seu artigo
2º, §1º, o princípio da igualdade soberana dos Estados como um dos princípios fundamentais da
organização. O princípio da não-intervenção também foi expressamente reconhecido pela Carta
(art. 2º, §7º) juntamente com a eliminação definitiva do termo “guerra” por meio do disposto no
art. 2º, §4º. Referidas disposições se constituem grande evolução do Direito Internacional e
representam a definitiva ruptura com o sistema de Vestfália, uma vez que o direito dos países
283 Cf. SILVA SOBRINHO, Marcelo da. Op. Cit. p. 12/13.
68
mais poderosos de utilizar a força contra os países mais fracos foi definitivamente tornado ilegal
e suplantado pelo sistema de segurança coletiva da ONU284.
Todavia, ao mesmo tempo em que a Carta da ONU reforçou os referidos princípios com a
finalidade de proteger a soberania dos seus Estados-membros, as expressões “direitos
fundamentais do homem”, “direitos humanos” e “dignidade da pessoa humana” aparecem
reiteradamente em seu texto. Essas disposições relativas à proteção dos direitos humanos, apesar
de suas limitações e da falta de instrumentos que proporcionem a sua efetiva aplicação, não se
constituem meras exortações aos Estados, pelo contrário, trata-se da introdução na ordem
internacional de um novo princípio de legitimação do poder e uma profunda inovação no Direito
Internacional na medida em que, a partir da Carta da ONU, o tratamento que um Estado dispensa
as pessoas que se encontrem no seu território, seja seus nacionais ou estrangeiros, está regulado
pelo Direito Internacional. Com o reconhecimento da dignidade intrínseca de todo ser humano
pela Carta das Nações Unidas, portanto, os direitos humanos superaram a limitação inerente do
Direito Internacional tradicional, no qual, a proteção dos referidos direitos só poderia ocorrer por
meio dos Estados, para tornar-se uma questão pertencente e passível à ordem internacional. Dito
reconhecimento impõe aos Estados obrigações jurídicas internacionais que condicionam o
exercício de suas competências soberanas285.
Com efeito, muito embora a Carta contenha noções jurídicas flexíveis e abertas em suas
disposições, mormente em matéria de direitos humanos, a defesa e promoção destes é um dos
principais propósitos da ONU e, em assim sendo, as referidas disposições não deixam de criar
obrigações jurídicas tanto para a própria organização, quanto para os Estados-membros. Em
função dessas obrigações impostas pela Carta aos Estados-membros, estes não podem impugnar a
competência da ONU em matéria de direitos humanos por meio da regra do parágrafo 7º do
artigo 2º da Carta, uma vez que princípios éticos, políticos e jurídicos, superiores à soberania dos
Estados, podem justificar derrogações do princípio da não-intervenção nos seus assuntos internos
para tornar a realização dos propósitos da Organização possível e efetiva. A seu turno, a ONU
deve agir em relação aos problemas de ordem interna, tais como a violação das liberdades
essenciais do ser humano, uma vez que podem colocar em perigo a paz entre as nações286.
284 Cf. SILVA SOBRINHO, Marcelo da. Op. Cit. p. 21/22. 285 Cf. SALCEDO, Juan Antonio Carrillo. Op. Cit. p. 34/35. 286 Ibidem. p. 39/40.
69
De fato, não existe maior ameaça à paz do mundo posterior à Guerra Fria, do que a
destruição dos Estados pelas guerras civis e, em conseqüência, a incapacidade de suas populações
de proteger-se tanto da fome e doenças quanto dos conflitos étnicos. A capacidade dos Estados
para enfrentar certos problemas atuais é limitada e o que se verifica é que as maiores ameaças aos
direitos humanos têm partido dos próprios Estados287. Diante disso, é importante repisar que
esses direitos são a expressão direta da dignidade da pessoa humana e a obrigação dos Estados de
assegurar o seu respeito se depreende do próprio reconhecimento de que esta dignidade
proclamada na Carta da ONU, ultrapassa as barreiras estatais e deixa de pertencer à jurisdição
doméstica dos Estados. Trata-se de uma obrigação erga omnes que incumbe a todo Estado
pertencente à comunidade internacional e implica o dever de solidariedade e cooperação entre as
nações288, ou seja, uma vez que os direitos humanos não são mais considerados assuntos de
exclusiva jurisdição doméstica, a sua defesa deve ocorrer independentemente das limitações
territoriais impostas pelos Estados289. A responsabilidade primordial para tanto é, sem dúvida, das
Nações Unidas, que deve agir de forma subsidiária frente à ação ou omissão do Estado, em caso
de graves violações dos direitos humanos290.
Destarte, infere-se que a sociedade internacional já desenvolveu alguns parâmetros para
poder agir diante de uma crise humanitária perpetuada pela ação ou omissão dos países
envolvidos. Haja vista a exclusão dos direitos humanos dos assuntos pertencentes ao domínio
reservado dos Estados e os poderes conferidos pela Carta à atuação da ONU, as crises
humanitárias são passíveis de uma intervenção - desde que empreendida pelas Nações Unidas -
para minorar seus efeitos, uma vez verificada a incapacidade do próprio Estado afetado em
contornar a situação. Essa possibilidade de ação da comunidade internacional se constitui uma
exceção legítima ao princípio da soberania. Por conseguinte, a proteção deste princípio não pode
ocorrer em detrimento de vidas humanas, visto que, de acordo com o Direito Internacional
contemporâneo, o que os Estados fazem internamente no tocante ao tratamento dispensado aos
seus jurisdicionados é de interesse geral da humanidade291.
Ademais, como já ressaltado, as crises internacionais contemporâneas são permeadas por
problemas extremamente complexos. A existência de intermináveis guerras civis ou golpes
287 Cf. RAMÍREZ, Frederico Arcos. Op. Cit. p. 22/23. 288 Cf. SALCEDO, Juan Antonio Carrillo. Op. Cit. p. 149. 289 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Op. Cit. p. 61. 290 Cf. SALCEDO, Juan Antonio Carrillo. Op. Cit. p. 173. 291 Cf. AMARAL, Renata Vargas. Op. Cit. p. 5.
70
militares que fragilizam as instituições sociais e administrativas ou ocasionam a falência total de
alguns Estados, desabilitam os meios convencionais de tratar da segurança internacional. As
operações de manutenção de paz, portanto, tornaram-se essenciais na medida em que não só
monitoram os acordos de cessar-fogo e ajudam a salvar vidas, mas desempenham funções que
antes eram consideradas da titularidade exclusiva dos Estados num momento em que estes estão
completamente impossibilitados de realizá-las. Sob essa ótica, as intervenções empreendidas
pelas Nações Unidas têm por escopo fornecer um amparo aos países que se mostraram incapazes
de conter uma guerra, fortalecer as instituições democráticas e propiciar condições que possam
obstaculizar a violência como meio de competição política. Além disso, visam identificar e apoiar
estruturas que tenderão a fortificar e solidificar a paz, com o objetivo de evitar o retorno ao
conflito. Cabe mencionar que as missões de paz aqui relatadas demonstram formas diferentes de
intervenção da ONU, mas sem dúvida, todas elas têm em comum a pretensão de garantir uma paz
duradoura por meio da reconstrução da democracia como modelo que possibilita a garantia do
respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais. Deste modo, as aludidas operações
têm a função principal de criar condições para a construção de uma estrutura política nos países
em que esta praticamente desapareceu devido às guerras e perseguições étnicas, políticas e
religiosas. Neste contexto, para que o país afetado se reestruture e a democracia possa se
desenvolver de forma sólida e legítima é imprescindível a atuação da ONU, como entidade
coletiva internacional, cujo objetivo precípuo é conferir efetividade ao seu principal propósito
que é a promoção e respeito dos direitos humanos, sem o qual, não é possível alcançar a paz
mundial292.
Em definitivo, o que se propõe é uma releitura funcional do princípio da soberania, sobre
a base de dois ideais civilizadores das relações internacionais: por um lado, a paz como interesse
público universal; por outro, a afirmação da existência de obrigações positivas dos Estados em
respeito à comunidade internacional no seu conjunto. Se a primeira representa um fator
moderador da discricionariedade dos Estados pelo Direito Internacional, a segunda opera no
sentido de conferir maior valorização ao Estado como elemento fundamental para o cumprimento
das funções que hoje assume frente ao aludido ramo do Direito. A tensão dialética entre
soberania dos Estados e direitos humanos se resolve na medida em que, justamente por serem
292 Cf. RODRIGUES, Simone Martins. O papel das Nações Unidas na reconstrução democrática: o caso de El Salvador e do Haiti. Disponível em: <http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/anpocs00/gt13/00gt1333.doc> Acesso em: 14 de outubro de 2008.
71
soberanos, os Estados têm obrigações jurídicas em matéria de direitos humanos, em razão da
imposição do seu respeito pela comunidade internacional como um todo. Em outras palavras, o
sistema internacional ainda é considerado uma sociedade de Estados independentes e soberanos
entre si. A soberania persiste como um princípio constitucional da ordem internacional, mas,
devido ao reconhecimento dos direitos humanos pela Carta da ONU e o desenvolvimento
normativo sobre a matéria após a sua adoção, pode-se afirmar que o Direito Internacional tem
penetrado consideravelmente no princípio da soberania, de modo que este, hodiernamente, resta
remodelado e transformado, despojado do seu sentido absoluto de outrora293. A soberania,
definitivamente deixou de ser visualizada como mero controle sobre uma população e um
território, para se tornar uma expressão da responsabilidade de, além de respeitar os direitos dos
demais Estados, proteger o bem estar e respeitar os direitos humanos dos indivíduos sujeitos à
sua jurisdição294. Deste modo, a soberania estatal evoluiu no sentido de ser considerada, não
somente um direito, mas também uma responsabilidade295.
Entretanto, a proteção do princípio da soberania parece ser muito mais arraigada no
Direito Internacional do que a dos direitos humanos, o que pode ocasionar a inação tanto dos
países, quanto da própria ONU em casos de graves violações desses direitos, devido às
abordagens de defesa estritamente legalistas. Esse conflito é evidenciado na prática das
intervenções humanitárias, haja vista que a proteção da soberania e a questão da limitação da
utilização da força são questionadas em face da necessidade de proteção dos direitos humanos.
Todavia, nos anos 1990, as graves crises humanitárias ensejaram razões práticas para a utilização
da força com propósitos humanitários, o que aprimorou o debate relativo a esta espécie de
intervenção e evidenciou a necessidade de reconciliar a legitimidade da não-intervenção e, por
conseguinte, fortalecer o princípio da soberania, por meio do estabelecimento de regras claras
para a utilização das intervenções com finalidade humanitária. O resultado disso é a idéia de
soberania como responsabilidade de proteger296, cuja análise será desenvolvida a seguir.
293 Cf. SALCEDO, Juan Antonio Carrillo. Op. Cit. p. 185/186. 294 Cf. ANJOS, Alberico Teixeira dos. A comissão internacional sobre intervenção e soberania estatal in Direitos Humanos e Direito Internacional.Curitiba: Juruá, 2006. p. 175/176. 295 Cf. JUBILUT, Liliana Lyra. A “responsabilidade de proteger” é uma mudança real para as intervenções humanitárias?. Disponível em: <http://www.cedin.com.br/revistaeletronica/artigos/liliana%20jubilut%20dih.pdf> Acesso em: 11 de outubro de 2008. p. 1. 296 Ibidem. p. 2/3.
72
3.3 A PROPOSTA PARA A CONTROVÉRSIA ENTRE INTERVENÇÃO E SOBERANIA SOB A ÓTICA DO RELATÓRIO DO ICISS
Na seqüência dos massacres de civis em Ruanda e Srebrenica, que se constituíram em
atos violadores de direitos humanos e de consagrados princípios do Direito Internacional
Humanitário, o então Secretário Geral da ONU, Kofi Annan, lançou uma reflexão à comunidade
internacional sobre as perspectivas para a segurança humana e as falhas do Conselho de
Segurança em agir a tempo em determinados casos. Solicitou, então, que os Estados-membros
buscassem um consenso sobre como preservar os princípios estabelecidos na Carta da ONU e
agir em defesa dos direitos humanos. Em resposta ao desafio proposto pelo Secretário Geral, e
financiada pelo governo do Canadá e um grupo de importantes fundações privadas, a Comissão
Internacional sobre Intervenção e Soberania Estatal (ICISS em inglês) foi formada para examinar
em profundidade as questões legais, morais e políticas que envolvem as intervenções com
propósitos humanitários297.
Os estudos, pesquisas, mesas redondas e seminários ao redor do mundo, levados a cabo
pela comissão constituída por destacados membros da comunidade acadêmica, do mundo
diplomático, da política e da sociedade civil, resultaram num minucioso relatório, editado em
dezembro de 2001 sob o título “A responsabilidade de proteger”298.
O relatório do ICISS é uma tentativa de abordar as intervenções de caráter humanitário,
sob os conceitos antagônicos de intervenção e soberania. A questão de quando, onde e por quem
devem ser empreendidas e mesmo se nunca devem ser utilizadas - mormente as ações coercitivas
militares - são analisadas neste documento em razão da necessidade de proteger pessoas em risco
dentro de um Estado. A intervenção em determinados casos, como já ressaltado, ficou mais
evidente em decorrência dos acontecimentos pós-Guerra Fria, quando se tornou uma solução
ainda mais controversa. Desde então, muitos apelos para que a intervenção se realize têm
ocorrido. Em muitas delas, como já visto, verificou-se um envolvimento eficaz da comunidade
internacional, em outras; entretanto, percebeu-se a sua paralisia. De qualquer forma, continua a
297 Cf. ANJOS, Alberico Teixeira dos. Op. Cit. p. 174. 298 Ibidem. p. 175.
73
existir divergência quanto à possibilidade do reconhecimento de um direito à intervenção, bem
como, quando, onde e como esse direito deve ser exercido e sob a autoridade de quem299.
O documento em análise foi aprovado por unanimidade e o seu tema central se reflete em
seu título “A responsabilidade de proteger”, que nos remete à idéia de que os Estados soberanos
têm a responsabilidade de proteger seus cidadãos e evitar que verdadeiras catástrofes
provenientes de conflitos civis, como homicídios em massa, estupros, fome, etc; instalem-se em
seu território. Também evidencia que quando os países se mostrarem relutantes ou incapazes de
realizar a referida proteção, essa responsabilidade deve ser suportada pela comunidade
internacional. Em síntese, o relatório analisa o princípio da soberania e, conseqüentemente, a não-
intervenção; os fundamentos e elementos da responsabilidade de proteger; estabelece prioridades
e delineia os princípios que devem nortear uma ação militar com propósitos humanitários300.
O relatório reconhece que o elevado número de crises humanitárias de graves dimensões
que se verifica no cenário atual impede uma resposta eficaz da comunidade internacional para
cada caso. Além disso, ainda há situações em que a ação internacional é impedida devido à
oposição de algum membro permanente no Conselho de Segurança, mas isso não deve justificar
uma inação nos casos em que respostas eficazes são possíveis. Para tanto, relembra que após os
acontecimentos da Guerra Fria, existe uma perspectiva por parte da sociedade internacional que
vislumbra a possibilidade de ação por parte do Conselho de Segurança diante de graves e
persistentes violações de direitos humanos, uma vez que apesar de alguns contratempos, a
capacidade de ação do referido órgão foi muitas vezes considerada decisiva para a resolução dos
conflitos ocorridos na década de 1990301.
Ademais, as inovações tecnológicas que permitem a visualização do sofrimento humano
em qualquer lugar do Mundo, têm exercido significativa pressão sobre os governos no sentido de
proteger direitos humanos. A globalização ocasionou um estreitamento nos laços entre os países
em todos os níveis, principalmente, pela intensificação da interdependência econômica, o que
acentuou a idéia de cooperação multilateral. Esse contexto logicamente interfere no debate das
intervenções humanitárias, pois se verifica que os Estados estão positivamente empenhados tanto
no sentido de promover os direitos humanos, quanto na prevenção da violação desses direitos e,
299 Cf. COMISSÃO INTERNACIONAL SOBRE INTERVENÇÃO E SOBERANIA ESTATAL. A responsabilidade de proteger: Relatório do ICISS. Disponível em: <http://www.iciss.ca/pdf/Commission-Report.pdf> Acesso em: 15 de outubro de 2008. p. VII. 300 Ibidem. 301 Ibidem. p. 6.
74
em muitos casos, os próprios países apelam por uma intervenção em situações que fugiram do
seu controle302. Essa última afirmação é contestável, uma vez que ainda se observa políticas de
perseguição e eliminação étnica, política e religiosa em vários países do Mundo. Entretanto,
pode-se afirmar que a intenção dos redatores do relatório é reforçar a idéia de soberania como
responsabilidade, numa visão que reúne uma posição majoritária acerca do reconhecimento da
importância de se proteger direitos humanos para se alcançar a paz. Esse posicionamento também
visa ressaltar a noção de solidariedade entre os Estados, proporcionada pelo advento da
globalização. Deste modo, a Comissão acredita que hodiernamente, diante do estreitamento dos
laços entres os países, não há por que a comunidade internacional permanecer estática diante de
graves violações dos direitos humanos.
Quanto às implicações para o princípio da soberania, o relatório explicita que num mundo
em que as ameaças à paz são constantes, marcado pelas esmagadoras desigualdades de poder e
recursos, a soberania consiste, para muitos Estados na sua melhor ou única linha de defesa. Neste
sentido, ela é mais do que apenas um princípio funcional das relações internacionais. Para muitos
Estados e povos é também um reconhecimento da sua dignidade e igualdade no plano
internacional, uma proteção das suas identidades e uma afirmação do seu direito de moldar e
determinar seu próprio destino. Em reconhecimento desse fato é que a disposição do art. 2º, §1º
da Carta da ONU expressamente dispõe que todos os Estados são igualmente soberanos no
âmbito do Direito Internacional303.
No entanto, por todas as razões aqui já mencionadas, as condições em que a soberania é
exercida – e é praticada a intervenção – mudaram drasticamente desde a adoção da Carta. Muitos
novos Estados surgiram e ainda se encontram em processo de consolidação da sua identidade. A
evolução do Direito Internacional tem estabelecido muitos constrangimentos sobre aquilo que os
Estados podem fazer ou deixar de fazer dentro das suas fronteiras. Ademais, o conceito
emergente de segurança humana tem criado outras demandas e expectativas em relação à forma
como os Estados tratam os seus próprios cidadãos. Neste sentido, a defesa da soberania estatal,
mesmo pelos seus adeptos mais fervorosos, não inclui qualquer reivindicação de poder ilimitado
que permita ao Estado fazer o que bem entender do seu povo. A Comissão não ouviu tal disparate
em qualquer das suas consultas a nível mundial. Deste modo, reconhece-se que soberania implica
302 Cf. COMISSÃO INTERNACIONAL SOBRE INTERVENÇÃO E SOBERANIA ESTATAL. Op. Cit. p. 6/7. 303 Ibidem. p. 7.
75
dupla responsabilidade: no exterior, os Estados devem respeitar a soberania dos outros e
internamente, devem respeitar a dignidade e os direitos fundamentais de todas as pessoas sujeitas
ao seu território. Esta moderna compreensão do significado de soberania é de fundamental
importância para a abordagem da Comissão sobre a questão da intervenção humanitária, uma vez
que; em termos de segurança, uma convivência coesa e pacífica no sistema internacional só pode
ser alcançada por intermédio da cooperação efetiva de Estados fortes e confiantes do seu lugar no
Mundo e não em ambientes fragmentados, cujas entidades estatais geralmente são caóticas304.
A Comissão ressalta que as normas internacionais de conduta dos Estados na defesa e
promoção dos direitos humanos fazem parte da agenda internacional e se constituem na grande
conquista contemporânea. Expressão disso é o artigo 1º, §3º da Carta da ONU, em conjunto com
a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) e os dois pactos de 1966, sobre os direitos
civis e políticos e os direitos sociais e econômicos, os quais representam o consenso político e
jurídico dos direitos humanos como princípio fundamental das relações internacionais. Eles são
marcos importantes e indispensáveis na transição de uma cultura de violência para uma
esclarecida cultura de paz e corroboram com a idéia de soberania como responsabilização
nacional e internacional. Desta forma, avança-se rumo a uma noção de justiça universal, ou sem
fronteiras, e o mesmo se passa com o processo de responsabilização dos Estados. Vários
tribunais internacionais já foram especialmente criados para lidar com crimes contra a
humanidade e, aliados a certo número de tratados e às convenções de Genebra, permitem que
quaisquer Estados-partes acusados do crime em questão sejam julgados a sério. O significado
desse desenvolvimento no estabelecimento de novos padrões de comportamento e os novos
meios de fazer respeitar as normas relativas aos direitos humanos é inquestionável, mas a chave
para a eficaz observância dos referidos direitos continua a ser, como sempre o foi, a legislação e a
prática nacionais. A aplicação da lei é, sem dúvida, melhor conduzida pelos sistemas judiciais dos
Estados soberanos, os quais devem ser independentes, profissionais e devidamente aparelhados.
É apenas quando os sistemas nacionais de justiça sejam omissos para julgar crimes contra a
humanidade que a jurisdição universal e outras opções internacionais devem entrar em jogo305.
O termo “segurança humana” significa não só a segurança física das pessoas, mas o seu
bem-estar social e econômico, o respeito pela sua dignidade e pelo seu valor como seres
304 Cf. COMISSÃO INTERNACIONAL SOBRE INTERVENÇÃO E SOBERANIA ESTATAL. Op. Cit. p. 7/8. 305 Ibidem. p. 14.
76
humanos. Isso inclui naturalmente a proteção dos seus direitos humanos e liberdades
fundamentais e, assim sendo, o conceito de segurança internacional obviamente deve incluir as
pessoas. A Comissão acredita que as questões de soberania e intervenção não são apenas assuntos
que afetam os direitos ou prerrogativas dos Estados, mas afetam profundamente e envolvem seres
humanos e seus direitos essenciais. Desta forma, a responsabilidade de proteger incide sobre as
necessidades humanas das pessoas que clamam por proteção ou assistência e altera o foco da
controvérsia entre soberania e não-intervenção para a necessidade do desenvolvimento humano.
A partir desse enfoque, a segurança dos cidadãos contra ameaças à vida, à saúde, à subsistência, à
segurança pessoal e dignidade humana pode ser posta em risco por uma agressão externa, mas
também, e principalmente, por fatores gerados dentro do país. É fato que alguns governos gastam
mais em armamentos para se proteger de uma agressão externa do que para proteger seus
próprios cidadãos. O resultado disso é a incapacidade de proteger as pessoas da fome, doenças,
abrigos inadequados, criminalidade, desemprego, conflitos sociais e ambientais. Além disso,
quando a violação dos direitos humanos é utilizada como instrumento de guerra e de limpeza
étnica, quando milhares de pessoas são mortas por catástrofes naturais ou quando os cidadãos são
mortos pelas próprias forças de segurança de um Estado, é insuficiente pensar apenas na
segurança nacional no seu sentido tradicional – defesa de territórios ou segurança por si só –, pois
somente o conceito de segurança humana pode abarcar essas diferentes circunstâncias306.
Embora ainda não exista uma base suficientemente sólida para reivindicar a intervenção
humanitária como um novo princípio consuetudinário do Direito Internacional, a prática do
Conselho de Segurança na matéria pode ser adequadamente designada como a emergente
responsabilidade de proteger. A intervenção com propósitos humanitários, dentro dessa
perspectiva, pode ser utilizada em casos extremos, quando se verificar a ação ou omissão dos
países envolvidos e a competência para tanto deve recair sobre o Conselho de Segurança, que
deve tomar as medidas de execução nos termos do capítulo VII da Carta. Com base na leitura da
prática do referido órgão, a Comissão acredita que normas foram estabelecidas no sentido de
fazer evoluir o Direito Internacional consuetudinário na matéria e, muito embora a Carta
contenha fortes disposições contra as intervenções humanitárias, essas normas não podem ser
consideradas absolutas quando for necessária uma ação decisiva em defesa dos direitos humanos.
Todavia, o grau de legitimidade conferido à intervenção deve, necessariamente, passar pelo
306 Cf. COMISSÃO INTERNACIONAL SOBRE INTERVENÇÃO E SOBERANIA ESTATAL. Op. Cit. p. 15.
77
exame dos seus efeitos, os meios, o esgotamento das vias pacíficas de composição e a
proporcionalidade da ação307.
A Comissão é da opinião que o debate sobre intervenção humanitária não deve centrar-se
no pretenso “direito de intervir”, mas na “responsabilidade para proteger”. Essa proposta além de
representar uma mudança de perspectiva, acrescenta outras questões suplementares ao referido
debate. Em primeiro lugar, a responsabilidade de proteger implica uma avaliação do ponto de
vista das pessoas que efetivamente necessitam de apoio. Em segundo lugar, a aludida
responsabilidade pertence primeiramente ao Estado e apenas se este for incapaz, não querer ou
não poder cumprir essa tarefa, é que ela passará para a comunidade internacional. Terceiro, a
responsabilidade de proteger não significa apenas a “responsabilidade de reagir”, mas a de
prevenir e reconstruir. Ela direciona a atenção para a análise dos resultados de uma ação versus
inação e fornece conceitos operacionais e normativos que estabelecem a ligação entre a
assistência, intervenção e reconstrução. É importante destacar que uma intervenção
necessariamente deve envolver uma ampla variedade de ações, que devem incluir a curto e a
longo prazo, medidas que visem não só minorar os efeitos de uma crise humanitária, mas
prevenir que situações que ponham em risco a segurança humana voltem a ocorrer e, para tanto, é
fundamental a reconstrução dos países envolvidos308.
A responsabilidade de prevenir é de extrema importância, inclusive para evitar a
ocorrência de uma crise e abrange esforços políticos, diplomáticos, econômicos, jurídicos e
militares. Estes instrumentos, em cada caso, podem assumir a forma de assistência direta e
positiva, bem como, instigar os países a resolver seus conflitos de forma pacífica. Nos casos em
que os Estados se mostrarem relutantes, as sanções econômicas, a suspensão de relações
diplomáticas e a ameaça da utilização da força militar também podem trazer resultados positivos.
De todo o modo, a intervenção só deve ser considerada quando a prevenção por qualquer motivo
falhar e a melhor maneira de evitar que isso ocorra é a colaboração dos Estados devido a sua
responsabilidade de proteger309.
A seu turno, a responsabilidade de reagir implica esforços para tornar as sanções mais
eficazes do ponto de vista da diminuição do impacto sobre os civis inocentes. Na área militar, os
embargos de armas e a efetiva vigilância do seu cumprimento é um importante instrumento do
307 Cf. COMISSÃO INTERNACIONAL SOBRE INTERVENÇÃO E SOBERANIA ESTATAL. Op. Cit. p. 16. 308 Ibidem. p. 17/18. 309 Ibidem. p. 24/25.
78
Conselho de Segurança para evitar que o conflito se inicie ou mesmo para proporcionar a sua
mitigação. Na área econômica, as sanções financeiras, como o congelamento de recursos no
exterior e a restrição de certas atividades que geram renda, como o petróleo, diamantes,
exploração florestal e comércio de drogas também são de extrema importância, uma vez que
essas atividades e seus lucros, bem como os das aplicações financeiras, muitas vezes são apenas
um meio para iniciar ou manter um conflito e, em muitos casos são a própria razão da sua
existência. As referidas restrições, entretanto, devem ser utilizadas com parcimônia, uma vez que
podem causar impactos devastadores sobre a população civil e a economia local. Na área política
e diplomática, restrições à representação diplomática e a expulsão do pessoal diplomático são
medidas úteis e relevantes para impedir que as operações ilícitas de venda de drogas, diamantes
extraídos ilegalmente, etc; sejam realizadas em outros países em desrespeito às sanções
econômicas. A suspensão das relações diplomáticas, da cooperação ou do apoio financeiro
também pode se mostrar eficaz para encerrar ou impedir um conflito. Somente em casos
excepcionais e extremos é que a responsabilidade de reagir pode implicar a necessidade de
recorrer à ação militar. Nesta situação, a Comissão acredita que alguns critérios devem ser
analisados e respeitados, tais como quem tem a autoridade para intervir, a justa causa, a reta
intenção, os meios razoáveis e proporcionais, mas principalmente que a ação militar seja o último
recurso310.
Segundo a Comissão, quem detém autoridade para resolver questões de paz e segurança
internacionais é as Nações Unidas, uma vez que a comunidade internacional lhe conferiu esses
poderes. A ONU, juntamente com o Conselho de Segurança, consiste no cerne do sistema
internacional de aplicação da lei e é a única organização que foi universalmente aceita para
validar e empreender ações militares. E é ela quem decide, em última instância, o que pertence ou
não ao domínio reservado dos Estados311.
Na esfera da ação militar, a ONU impõe a obrigação a todos os seus membros de se
absterem da utilização de uma intervenção unilateral em favor da coletiva, devidamente
autorizada pela Organização, que é quem mantém a prerrogativa de recorrer à força. Muito
embora haja vários motivos para se contestar a autoridade do Conselho de Segurança, a Comissão
não tem dúvidas de que a via mais apropriada para decidir sobre uma intervenção humanitária
310 Cf. COMISSÃO INTERNACIONAL SOBRE INTERVENÇÃO E SOBERANIA ESTATAL. Op. Cit. p. 30/32. 311 Ibidem. p. 32.
79
pertence a esse órgão. Não só pelo poder que lhe conferiu a Carta, mas principalmente, devido
aos resultados das suas pesquisas ao redor do Mundo. É no âmbito do Conselho de Segurança que
deve ser tomada a decisão de intervir para que seja possível uma mobilização eficaz de captação
de recursos para resgatar populações em risco; o consenso da comunidade internacional sobre
essa questão não consiste em encontrar alternativas para o órgão, mas fazê-lo funcionar melhor
do que tem funcionado. Para tanto, é necessário que todas as propostas de intervenção militar
sejam formalmente submetidas à apreciação do Conselho antes de serem levadas a cabo. O órgão
também pode levantar essa questão sob iniciativa própria ou quando houver solicitação do
Secretário Geral, nos termos do artigo 99 da Carta. De todo o modo, o Conselho de Segurança
deve agir rapidamente diante de qualquer pedido de intervenção e efetivamente intervir quando
há alegações de perdas de vidas humanas em grande escala, e mesmo neste contexto, deve
realizar uma verificação prévia e adequada dos fatos e condições em que ocorrerá a ação militar.
Quanto à paralisia do órgão devido ao poder de veto dos seus membros permanentes, a Comissão
apóia a proposta de um “código de conduta” a ser observado para que a utilização do poder de
veto não ponha em risco as necessidades humanas. A idéia é de que um membro permanente não
poderia se utilizar do seu poder de veto quando os seus interesses nacionais não estiverem
diretamente envolvidos. A adoção de um modo mais formal e mutuamente acordado a ser
aplicado na sua prática também pode conferir grande eficácia às ações empreendidas pelo
órgão312.
A Comissão considera que as derrogações ao princípio da não-intervenção deverão ser
limitadas e assim, a intervenção militar com propósitos humanitários deve ser considerada uma
medida extraordinária e excepcional para que possa ser justificada. Deve existir ou ser iminente
um prejuízo grave e irreparável a seres humanos e o critério basilar para tanto, é a justa causa
para a ação, que na opinião da Comissão ocorre nos casos em que há receio ou efetiva perda de
vidas humanas em grande escala, limpezas étnicas, expulsão forçada, atos de terror ou violações
persistentes das liberdades fundamentais dos cidadãos, ações genocidas perpetradas ou não pelos
próprios Estados e negligência ou incapacidade destes para agir. Caso o Conselho de Segurança
verificar quaisquer dessas condições, a justa causa para intervir é amplamente satisfeita. Mesmo
neste caso, a obtenção de informações exatas a respeito da situação é essencial. A Comissão
ressalta que o ideal seria haver um relatório, elaborado por uma fonte não-governamental
312 Cf. COMISSÃO INTERNACIONAL SOBRE INTERVENÇÃO E SOBERANIA ESTATAL. Op. Cit. p. 49/51.
80
imparcial, como por exemplo, a Cruz Vermelha, que descrevesse a gravidade da situação e a
incapacidade do Estado em questão para geri-la de forma satisfatória. Esta espécie de prova
colocaria a contento o critério da justa causa, pois não deixaria margem de dúvidas quanto à
legitimidade da utilização da força por questões humanitárias313.
Entretanto, para que a decisão de intervenção militar seja plenamente justificada ainda há
que cumprir alguns critérios, como o da reta intenção que exige que o principal motivo da
intervenção seja altruístico, mesmo que haja outros interesses egoísticos, sendo ilegítimas as
intervenções com objetivos escusos ou que venham a piorar os efeitos da crise que se pretende
corrigir ou evitar. O critério do último recurso que preconiza que as tentativas de resolução
pacífica devem ter sido completamente esgotadas. A proporcionalidade, que implica planejar a
dimensão, duração e intensidade da intervenção militar, uma vez que os meios devem ser
proporcionais aos fins almejados e, portanto, o efeito sobre o sistema político do país em causa
deva ser limitado ao que seja estritamente necessário para cumprir o objetivo da intervenção. E
por último, mas não menos importante, deve-se proceder à análise da probabilidade razoável de
êxito da operação, isto é, a intervenção militar não é justificável se a efetiva proteção não pode
ser alcançada ou se as conseqüências pós-intervenção possam ser piores do que se não tivesse
ocorrido314.
A responsabilidade de proteger ainda inclui a de reconstruir os países envolvidos, na fase
subseqüente aos conflitos. São ações que visam consolidar a paz e evitar a reincidência de novos
confrontos armados. A construção da paz exige o envolvimento da ONU na criação ou reforço
das instituições nacionais, acompanhamento de eleições livres e diretas, conscientização acerca
da importância dos direitos humanos e liberdades fundamentais, criação, reinserção ou
reabilitação de políticas públicas e a criação de condições para a retomada do desenvolvimento. É
fato que as sociedades emergidas de conflitos têm necessidades especiais. Neste sentido, o
envolvimento da ONU é fundamental na medida em que pode auxiliar na mobilização
internacional para a captação dos recursos necessários para a reconstrução e recuperação
econômica dos países afetados. As autoridades que intervieram em determinado território têm a
particular responsabilidade de gerenciar a execução de projetos de forma harmoniosa e tão rápido
quanto possível, deixá-los a cargo das lideranças locais. A intervenção deve proporcionar um
313 Cf. COMISSÃO INTERNACIONAL SOBRE INTERVENÇÃO E SOBERANIA ESTATAL. Op. Cit. p. 32/35. 314 Ibidem. p. 35/37.
81
reforço positivo e, em assim sendo, deve estimular novas atividades que gerem renda,
implementar compromissos sociais e econômicos, e projetos de reintegração à sociedade
internacional. Quanto mais cedo os combatentes desmobilizados estiverem conscientes de novas
opções e oportunidades para o seu futuro e os civis acreditarem que são livres, possuem direitos e
estão em segurança, mais positiva será a resposta em relação à construção de uma paz
duradoura315.
O relatório analisado esclarece que, de modo geral, a doutrina da responsabilidade para
proteger deve ser entendida sob a égide dos seguintes princípios: a operação militar com
propósitos humanitários deve ser baseada em objetivos políticos bem definidos expressos num
mandato claro e inequívoco, congruentes com os recursos e as regras explicitadas no documento
para que possam ser empenhadas; deve ser conduzida por militares bem treinados sob a
vigilância de um comandante com autoridade suficiente para comandar dentro da finalidade a que
a intervenção se propõe e que disponha de recursos suficientes para executar a sua missão; a ação
militar deve ocorrer com limitações à utilização da força no sentido único de proteger seres
humanos; o desenrolar da operação deve garantir a máxima proteção da população civil; a estrita
observância do Direito Internacional Humanitário deve ser assegurada; as forças de intervenção
não devem ter outra prioridade a não ser as estritamente estabelecidas no mandato da missão e
devem buscar a coordenação entre as atividades militares, as autoridades civis e as organizações
de socorro humanitário316.
Por fim, a Comissão solicita o estabelecimento de uma “doutrina de operações para a
proteção humana” no âmbito da ONU, e solicita ao Secretário Geral que inicie o seu
desenvolvimento. Recomenda à Assembléia Geral que adote uma resolução que disponha sobre
os princípios básicos da responsabilidade de proteger e instigue os Estados a cumpri-la. Ao
Conselho de Segurança, sugere que este procure estabelecer um acordo, mormente entre os seus
membros permanentes, para que estes não se utilizem do poder de veto abusivamente e para que
todos os Estados cumpram os princípios enunciados pelo relatório, antes de se lançarem a uma
intervenção militar, e que os governos, conscientes da sua responsabilidade primária de proteger,
clamem por uma intervenção quando esta for necessária317.
315 Cf. COMISSÃO INTERNACIONAL SOBRE INTERVENÇÃO E SOBERANIA ESTATAL. Op. Cit. p. 40/43. 316 Ibidem. p. 67. 317 Ibidem. p. 74/75.
82
Como resultado, o relatório analisado certamente inspirou uma nova doutrina – “a
responsabilidade de proteger” – que não foi somente proposta, mas também adotada pela
Assembléia Geral por meio da Resolução 60/1, de 24 de outubro de 2005. Esta aprovação
significa que a doutrina em questão foi reconhecida tanto na sua legalidade, dado que a ONU é a
guardiã da utilização da força e da manutenção da paz e segurança internacionais, quanto na sua
legitimidade, pois a ONU é a mais importante Organização internacional com representação
universal e, dentro dela, a Assembléia Geral é o seu órgão mais representativo, uma vez que cada
Estado-membro possui o direito de voto. Essa adoção é relevante na medida em que deixa claro
que a comunidade internacional enxerga o tema das intervenções com propósitos humanitários
como uma necessidade em alguns casos; tenta diminuir a distância, de um lado, das necessidades
e preocupações efetivamente sentidas de como elas são vistas, e por outro lado, tenta codificar os
instrumentos e modos de gerir a ordem mundial ao instigar os Estados a se comportarem de
acordo com o que foi articulado na Carta da ONU, e evidencia a vontade da comunidade
internacional para agir, inclusive com a utilização da força, quando a proteção dos direitos
humanos assim o exigir. A “responsabilidade de proteger”, portanto, apresenta-se como uma
mudança significativa no cenário internacional, que trará benefícios a longo prazo, uma vez que
as alterações que essa nova doutrina propõe, como visto, são mais profundas do que simples
alterações de regras, e portanto, precisam de tempo para ser assimilada pelos Estados e, por
conseguinte, pela prática internacional318.
318 Cf. JUBILUT, Liliana Lyra. Op. Cit. p.32/33.
83
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O movimento de internacionalização dos direitos humanos é recente na história da
humanidade e surge a partir do pós-Segunda Guerra Mundial como resposta às atrocidades
cometidas, principalmente, durante o nazismo. A destruição e os horrores cometidos pelos
nazistas e fascistas foram a mola propulsora para a idéia de incorporar, no âmbito internacional, a
concepção de que existem direitos fundamentais do homem que devem ser universais e, desta
forma, protegidos não só pelos Estados, mas também pelo ordenamento internacional. A Carta da
ONU, em conjunto com a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 e os dois pactos
de 1966 sobre direitos civis e políticos e direitos sociais e econômicos, entre outros documentos
internacionais, atestam o consenso político e jurídico dos direitos humanos como princípio
fundamental das relações internacionais. Esses documentos introduziram a idéia hodierna de
direitos humanos caracterizada pelo reconhecimento de que todo ser humano, pelo fato de ser
humano, é sujeito de direitos fundamentais que a sociedade e o Estado não podem ferir, nem
despojar. Estes direitos, portanto, não dependem do reconhecimento do Estado em seu direito
positivo, tampouco da nacionalidade ou da cultura à qual o indivíduo pertence. São direitos
universais resultantes do progresso histórico e material da humanidade, que nasceram de forma
gradual, fruto das lutas pela conquista da liberdade diante de poderes opressores e arbitrários e
das grandes transformações políticas, econômicas e culturais que se operaram nas sociedades em
todos os lugares do Mundo.
É inegável que a criação da ONU demarca o surgimento de uma nova ordem internacional na
medida em que instaura um novo modelo de conduta nas relações internacionais e introduz
preocupações que abrangem a manutenção da paz e segurança internacionais, o desenvolvimento
de relações amistosas entre os países, o alcance da cooperação internacional nos planos
econômico, social e cultural; a proteção do meio ambiente e dos direitos humanos. A sua Carta
constitutiva reúne todos os requisitos que permitem inferir tratar-se de uma Constituição
internacional, uma vez que todos os Estados, sendo membros ou não, devem respeitar suas
normas e cooperar para a efetiva realização dos seus propósitos.
Neste sentido, fortalece-se, a idéia de que a proteção dos direitos humanos não deve se limitar
ao domínio reservado dos Estados, visto que, a promoção e defesa destes direitos é um dos
84
principais propósitos da ONU e, portanto, tema de grande relevância e legítimo interesse da
comunidade internacional. A conseqüência disso é, obrigatoriamente, a revisão dos princípios
fortalecedores da soberania estatal, tais como o da não-intervenção, e, conseqüentemente, o
domínio reservado dos Estados, bem como, o da proibição da utilização da força para a resolução
de controvérsias. Essa revisão é necessária diante da ordem instaurada pela Carta da ONU, que
preconiza a dignidade da pessoa humana. Por conseguinte, a comunidade internacional não deve
assistir passivamente à violação dos direitos humanos dentro de um território, em respeito aos
referidos princípios, pois é fato que princípios éticos, políticos e jurídicos, norteadores do
respeito aos direitos humanos e muito superiores à soberania estatal, devem derrogar, em
situações específicas, os princípios que a reforçam, para que seja possível uma participação
efetiva da comunidade internacional no auxílio das populações, cujas liberdades e direitos
fundamentais são ceifados de maneira inaceitável dentro de determinado território. Neste sentido,
a análise da legalidade e legitimidade das intervenções humanitárias necessariamente deve passar
pelo exame detalhado dos princípios e propósitos estabelecidos na Carta, bem como do
comportamento da comunidade internacional desde a sua adoção.
O princípio da não-intervenção (art. 2º, §7º), inicialmente, foi amplamente defendido pelos
países de Terceiro Mundo e recém-descolonizados, uma vez que a história destes países nos
mostra que, anteriormente à ordem internacional instaurada pela Carta, eles foram muito
prejudicados pelas intervenções arbitrárias e motivadas, principalmente por interesses
econômicos, realizadas pelas grandes potências da época. É um princípio que, juntamente com o
princípio da resolução pacífica de controvérsias (art. 2º, §4º), impede que os países mais ricos ou
poderosos, sob a alegação de qualquer interesse, atentem contra a autonomia estatal e à liberdade
e independência das nações.
Entretanto, a dinâmica do cenário internacional evidenciou que diante das complexidades que
se apresentaram no mundo pós-Segunda Guerra Mundial, os Estados não eram absolutamente
capazes de abordar por si questões que impunham diálogo e concerto em escala universal. Além
disso, os mesmos países que tão ferrenhamente reivindicavam o direito de não-intervenção não
possuíam ainda uma identidade bem definida, ou mesmo a autonomia econômica necessária para
lidar com certas questões, mormente a deterioração dos direitos humanos dentro de suas
fronteiras, devido as suas próprias deficiências. O entendimento tradicional de que as relações
internacionais deveriam se pautar por regras derivadas somente da vontade dos Estados foi
85
suplantado pela criação da ONU, que buscou erigir um sistema de cooperação e subordinação e
não de mera coordenação e coexistência. Conseqüentemente, os Estados devem trabalhar e
cooperar para que esta nova ordem não seja inócua no plano internacional e, portanto, abdicam de
parcela de sua soberania, ou seja, deixam de ser inteiramente livres, para se submeter a uma
organização internacional que foi criada por eles mesmos para regular e observar suas condutas.
De modo que eles se tornam sujeitos não só de direitos, mas principalmente de deveres, que
devem ser cumpridos em atendimento às regras dispostas na Carta constitutiva dessa organização,
que in casu, é a ONU.
Este documento, por sua vez, visa evitar o flagelo da guerra e, por conseguinte, não só a sua
destruição material, mas principalmente a deterioração dos direitos humanos. Desta forma, as
suas disposições que fortalecem a soberania ou o respeito à livre vontade dos Estados, não podem
ser consideradas absolutas diante de graves violações de direitos humanos ou ameaças à paz e
segurança internacionais, uma vez que, mais importante do que países seguros da gestão dos seus
negócios internos, sem qualquer interferência externa, está o desejo de paz almejado por todos. E
é certo que grupos ou etnias que têm seus direitos mais básicos violados são capazes de fomentar
conflitos que podem abalar a paz e a segurança internacionais. Assim, a barreira proposta pelo
princípio da não-intervenção, tende a ceder frente à constatação da existência de ameaça contra a
paz, ruptura da paz ou ato de agressão, os quais se constituem situações em que as Nações
Unidas, por meio da atuação do Conselho de Segurança, poderão empreender ações, armadas
inclusive, - uma vez que a proibição da utilização da força para a resolução de controvérsias não
vincula a ONU, mas somente seus Estados-membros – em conformidade com o capítulo VII da
Carta, a fim de manter ou restabelecer a paz internacional.
A comunidade internacional muito cedo reconheceu que este princípio não deve ser
considerado absoluto em casos de graves violações dos direitos humanos. Na Resolução nº 2.625
que consagrou a Declaração sobre relações amistosas adotada pela Assembléia Geral, em 1970, a
qual reflete a prática dos Estados em relação aos princípios estabelecidos na Carta desde a sua
adoção até aquela época, já expressa claramente a preocupação com a defesa e promoção dos
direitos humanos. A resolução em comento ventilou que atos como genocídio, crimes contra a
humanidade, denegação do direito de autodeterminação dos povos ou atos cometidos em violação
aos acordos internacionais não pertencem ao domínio reservado dos Estados. E, em assim sendo,
a proteção conferida aos Estados pelo art. 2º, §7º, não pode permitir que um país viole os direitos
86
mais fundamentais dos seus cidadãos sem que estas violações não se tornem legítima
preocupação da comunidade internacional.
A seu turno, a Corte Internacional de Justiça ao julgar o Caso Nicarágua, em 1984, também
expressou sua preocupação com a degradação dos direitos humanos dentro das fronteiras estatais
e ressaltou que o fornecimento de uma ajuda estritamente humanitária não poderia ser
considerada contrária ao Direito Internacional. Assegurou ainda, que uma intervenção é lícita
quando tem por único escopo a concessão de uma ajuda humanitária não discriminatória.
Na realidade, o propósito do art. 2º, §7º não é outro senão salvaguardar a soberania interna
dos Estados, isto é, proteger as competências exclusivas para exercer a autoridade estatal dentro
de suas fronteiras. Entretanto, como já aventado, a proteção dos direitos fundamentais dos
indivíduos não pode ser considerada matéria pertencente ao domínio reservado dos Estados e este
reconhecimento também se reforça pela Declaração de 1970 e o julgamento da Corte
Internacional de Justiça para o caso Nicarágua, nos quais, fortaleceu-se a concepção de que
somente as questões relativas à escolha do sistema político, econômico, social, cultural e a
formação das relações externas é que são matérias pertencentes exclusivamente ao domínio
reservado dos Estados. Portanto, a obrigação destes em assegurar e proteger direitos humanos é
legítima preocupação internacional decorrente do reconhecimento da dignidade da pessoa
humana pela Carta da ONU. Desta forma, nenhum Estado poderá esquivar-se da
responsabilização internacional pela violação dos direitos em comento, sob o pretexto de que esta
matéria é essencialmente de sua jurisdição interna. É fato que a obrigação de respeitá-los,
protegê-los e assegurá-los pertence primeiramente aos Estados, todavia, quando este se mostrar
incapaz de fazê-lo, seja por sua ação ou omissão, a comunidade internacional é quem deve
assumir a incumbência de instaurar um ambiente pacífico e seguro, que possibilite um mínimo
padrão humanitário.
Uma vez que os direitos humanos não fazem parte do domínio reservado dos Estados, a
presunção de ilegalidade das intervenções humanitárias não poderia decorrer da alegação de que
são atos que violam a soberania estatal. Com efeito, o direito/dever de intervenção, fora dos
mecanismos da ONU não encontra respaldo legal devido à proscrição da força pelo art. 2º, §4º da
Carta. Assim, somente a ONU poderá intervir, inclusive com a utilização da força militar,
amparada pelo comando do Capítulo VII da Carta, nos casos em que a violação dos direitos
humanos for considerada pelo Conselho de Segurança uma real ameaça à paz e segurança
87
internacionais. É a única situação em que o domínio reservado dos Estados pode ser relegado de
forma legal. Desta forma, o princípio da não-intervenção é limitado pela competência do
Conselho de Segurança em definir o que consiste ameaça à paz e segurança internacionais, e esta
é limitada pelo referido princípio. A resposta a esta incongruência se resume, portanto, à
interpretação que o próprio Conselho conferir a sua competência para a manutenção da paz e
segurança internacionais. É importante destacar, ademais, que a proteção dos direitos humanos é
um dos pilares do sistema de segurança coletiva erigido pela Carta da ONU e, dentro dessa
perspectiva, o Conselho de Segurança é o titular do direito de utilizar medidas coercitivas para
restabelecer a estabilidade internacional.
O período da Guerra Fria certamente trouxe conseqüências mais nefastas à humanidade do
que as próprias Guerras Mundiais. A corrida armamentista e a luta pelo estabelecimento
ideológico sustentado por um lado pelos EUA e por outro pela antiga União Soviética, foi capaz
de fomentar conflitos e perseguições étnicas, políticas e religiosas dentro das fronteiras estatais,
jamais imaginadas pelos redatores da Carta da ONU. Neste período, verifica-se que o sistema de
segurança coletiva restou praticamente paralisado, uma vez que qualquer ação empreendida pelas
Nações Unidas eram vetadas ou pelos EUA ou pela União Soviética no Conselho de Segurança.
Com o seu término, e, conseqüentemente, a cessação do apoio das grandes potências aos
Estados em que se almejava conquistar a hegemonia das idéias americanas ou russas, o que,
logicamente representava um certo controle destes países sobre os outros, emergem acirradas
disputas pelo poder dentro das fronteiras estatais. É a partir deste momento, até pela indireta
responsabilidade por esses acontecimentos, que as grandes potências conseguem estabelecer um
consenso mínimo no Conselho de Segurança, no qual, percebe-se a aceitação da primazia da
proteção dos direitos humanos e a concordância de que o sofrimento humano e a segurança
internacional são assuntos intimamente ligados e correlatos ao sistema de segurança coletiva da
ONU. É óbvio que esta correlação não foi motivada, como seria desejável, somente por
sentimentos altruístas ou morais, mas sim porque em muitos casos, as potências tinham
conhecimento do poder de fogo de alguns Estados, uma vez que elas mesmas o patrocinaram.
Assim, havia fundado receio de que os países que outrora foram apoiados militar e
financeiramente pelas grandes potências intentassem ações contra os territórios destas últimas, o
que, obviamente, acabaria por fazer eclodir outra grande guerra de proporções mundiais. Além
disso, o papel da mídia ao mostrar as imagens dos conflitos que estavam a ocorrer em várias
88
partes do Mundo, também foi decisivo para fazer com que as populações fossem tomadas de um
sentimento solidário e tivessem ciência dos resultados da atuação dos seus países na Guerra Fria,
o que fez com que exercessem forte pressão nos seus governantes para que agissem de forma
moralmente satisfatória. Entretanto, importa ressaltar que a proposta deste trabalho se concentra
na análise estritamente jurídica da possibilidade de intervenção com propósitos humanitários e
não nas suas implicações morais. De todo o modo, é de igual importância salientar que talvez as
grandes potências, diante da dimensão das crises humanitárias que ocorreram no pós-Guerra Fria,
tenham se dado conta de que os seres humanos não poderiam pagar com suas próprias vidas o já
tão alto custo da imposição de poder que se verificou durante a Guerra Fria.
Assim, que na década de 1990, o Conselho de Segurança confere uma interpretação flexível
ao art. 39 da Carta ao associar violações em grande escala de direitos humanos à ameaça à paz e
segurança internacionais e, efetivamente, autoriza intervenções humanitárias onde as condições
de sobrevivência humana demandavam urgente auxílio internacional. As principais intervenções
autorizadas pelo órgão foram no Iraque, Somália, Bósnia, Haiti e Ruanda. É fato que em alguns
desses casos, o Conselho de Segurança se mostrou bastante disposto a agir, em outros, entretanto,
foi hesitante e sua atuação serviu mais para conformar a opinião pública internacional e outros
interesses egoísticos, do que propriamente para ajudar indivíduos em países longínquos e pouco
interessantes. Assim mesmo, o balanço geral destas atuações pode ser considerado positivo.
No Iraque, a intervenção da ONU possibilitou o transporte e distribuição de cerca de sete mil
toneladas de suprimentos indispensáveis para um total de um milhão e meio de refugiados. Na
Somália, a fome foi quase totalmente erradicada, programas de vacinação ajudaram a diminuir a
mortalidade infantil, escolas foram reabertas e houve significativo progresso no desarmamento da
população e na reconstrução do sistema judicial. Na Bósnia, a participação do Conselho de
Segurança foi bastante efetiva, até porque, a localização dos conflitos ameaçava as estruturas das
grandes potências européias. De todo o modo, na ocasião a ONU proporcionou, por via aérea, a
distribuição de alimentos e medicamentos aos povoados muçulmanos inacessíveis por meios
terrestres e estabeleceu áreas de segurança para a proteção de civis. A operação no Haiti também
obteve êxito. O parlamento foi reaberto, o presidente deposto retornou ao país e sob o
monitoramento da ONU, foi possível a realização de novas eleições diretas e democráticas. O
conflito em Ruanda, por sua vez, foi marcado pela inação da ONU e muitos seres humanos
morreram pela falta de condições básicas de subsistência e socorro médico. Infelizmente, quando
89
as tropas da ONU chegaram ao país, não havia praticamente nada a ser feito e o conflito acabou
por se resolver por si mesmo.
Contudo, as autorizações concedidas pelo Conselho de Segurança para a utilização da força
com o propósito de proteger direitos humanos se tornou prática comum a partir da década de
1990. A repetição dos casos, sem oposição significativa dos Estados, inclusive os intervenidos,
permite afirmar que proporcionou a consolidação de uma regra costumeira, segundo a qual, em
situações de gravíssima emergência humanitária, a ONU possui competência para empreender
por si própria de preferência, ou delegar poderes aos Estados, para a utilização da força com
propósitos humanitários, nas situações em que se verificar a completa incapacidade dos Estados
em lidar com seus conflitos internos.
Esse posicionamento é corroborado pela posição das ONG’s, que historicamente, se opunham
de forma veemente à utilização da força. Contudo, ao constatarem a magnitude desses novos
conflitos, nos quais, as normas de proteção de civis são desrespeitadas de forma maciça pelos
constantes massacres e as campanhas de limpeza étnica e perseguição política e religiosa, e que,
além de espalhar o terror e a barbárie, representam grande perigo à segurança dos seus membros,
as ONG’s têm observado que a utilização da força não deve ser descartada. Principalmente
porque, sem a imposição de um mínimo de ordem e paz, não é possível garantir a eficácia das
suas operações de assistência humanitária. Isto é, na medida em que as organizações não-
governamentais e as agências de assistência humanitária se tornaram impotentes diante do grau
de violência dos conflitos intraestatais contemporâneos, a intervenção militar surgiu como
alternativa de garantir à população civil o acesso à ajuda humanitária.
Ademais, os sucessivos envolvimentos da ONU em relação à proteção dos direitos humanos
foram permeados pela utilização dos preceitos contidos nas Resoluções 43/131 e 45/100, que
recomendam o princípio do livre acesso às vítimas e os corredores humanitários. Ambos são
institutos que exigem a obrigação de se manter certas áreas livres da violência dos conflitos para
possibilitar a proteção e o socorro da população civil. Referidos postulados foram consagrados
por meio das inúmeras resoluções do Conselho de Segurança nos anos 1990, o que lhes conferiu
caráter de regras costumeiras, cuja obrigatoriedade do seu respeito e cumprimento é expressão da
relevância que a comunidade internacional concede à assistência humanitária. Esse direito
constitui-se, portanto, numa regra de jus cogens de observância e cumprimento obrigatório que
90
conduz à anulação de qualquer tratado ou ato jurídico internacional que seja contrário a ele ou as
medidas exigidas para sua aplicação.
Inobstante a consagração do direito de assistência humanitária como norma de jus cogens, o
maior problema proposto para a sua aplicação prática ocorre quando os Estados decidem, pela
fora, impedir que esta norma se efetive. Neste caso, o Conselho de Segurança é competente para
lançar ou aprovar uma intervenção humanitária a fim de se opor à violação do direito de
assistência humanitária ou de qualquer outra norma do Direito Internacional Humanitário que
considerar uma ameaça à paz e segurança internacionais. A solução é efetivamente confundir as
fronteiras da pacífica assistência humanitária com a intervenção e, por conseguinte, legitimar as
forças armadas de um ou mais Estados, uma vez que a ONU não possui contingente militar
próprio, para possibilitar a intervenção.
É fato que o Conselho de Segurança encontrou a legitimidade para autorizar as intervenções
humanitárias ocorridas nos anos 1990 na sua discricionariedade para determinar o que consiste
ameaça à paz, quebra da paz ou ato de agressão, conforme o disposto no art. 39 da Carta.
Entretanto a norma esposada por este artigo não pode ser considerada arbitrária e de aplicação
ilimitada, uma vez que se limita pelos próprios preceitos e garantias da Carta e, em assim sendo,
o Conselho de Segurança não poderá tomar medidas que se contraponham aos princípios e
propósitos enunciados pela Carta. Especificamente com relação às intervenções humanitárias fica
muito claro que isso não ocorre, visto que a promoção e defesa dos direitos humanos e liberdades
fundamentais fazem parte do rol de propósitos da Organização, isto se não forem seu principal
objetivo. Além disso, a ONU pode utilizar a força em exceção às situações inseridas na Carta e
implementar as situações reconhecidas pelo Direito Internacional costumeiro. Desta forma, caso a
intervenção humanitária seja reconhecida como um costume internacional, como efetivamente
tem ocorrido, não existe qualquer impedimento legal para que as Nações Unidas autorizem a
utilização da força para proteger direito humanos. E mesmo que este reconhecimento não ocorra,
a intervenção ainda poderá ser utilizada para impor o respeito ao direito costumeiro de assistência
humanitária.
Assim mesmo, a legitimidade das intervenções com propósitos humanitários encontra forte
oposição na defesa veemente dos Estados pelo seu direito de soberania, o qual, certamente, é
muito mais arraigado no Direito Internacional do que a proteção dos direitos humanos. No
entanto, o Direito Internacional é quem decide se o Estado é soberano ou não e a concepção
91
contemporânea em relação a esse princípio é que os Estados somente serão considerados
soberanos se conseguirem manter dentro dos seus territórios, a convivência humana pacífica, por
meio da valorização dos direitos e liberdades fundamentais dos seus jurisdicionados. Ou seja, o
que deve ser satisfeito são as necessidades do povo e não do Estado, pois este não existe sem
aquele. O que se verifica no cenário internacional é uma igualdade jurídica entre os Estados, que
permite responsabilizá-los por violações das normas internacionalmente consagradas. Assim
sendo, as crises humanitárias de grande dimensão são passíveis de uma intervenção, desde que
empreendida pela ONU, para evitar ou minorar seus efeitos, uma vez verificada a incapacidade
dos Estados envolvidos em contornar a situação. Por conseguinte, a proteção do princípio da
soberania não pode ocorrer em detrimento de vidas humanas, uma vez que de acordo com o
Direito Internacional contemporâneo, o que os Estados fazem internamente com relação aos seres
humanos que habitam os seus territórios é de interesse geral da humanidade.
Ademais, restou comprovado pelos casos estudados, que as operações de manutenção de paz
são essenciais na medida em que, em certos casos, desempenham funções que antes eram
consideradas da titularidade exclusiva dos Estados num momento em que estes estão
absolutamente incapazes de realizá-las. Sob este ponto de vista, as intervenções realizadas pela
ONU não podem, de qualquer modo, serem consideradas prejudiciais, muito pelo contrário, haja
vista que são capazes de oferecer amparo aos países que, efetivamente, necessitam dele para se
reconstruir.
Faz-se necessário, entretanto, que sejam estabelecidos e adotados certos critérios que refutem
qualquer ilegalidade que as intervenções humanitárias ainda possam comportar. Esta foi a
intenção da equipe do ICISS ao elaborar o relatório “A responsabilidade de proteger”, cuja
proposta para a controvérsia entre intervenção e soberania foi aprovada pela Assembléia Geral da
ONU por meio da Resolução 60/1, de 24 de outubro de 2005. A idéia proposta pelo relatório é a
de que soberania implica a responsabilidade de proteger os cidadãos sujeitos as fronteiras
estatais. E somente quando, por ação ou omissão, o Estado não possa ou não queira cumprir a
aludida responsabilidade, é que a comunidade internacional deverá suspender temporariamente o
direito à soberania estatal para assumir a responsabilidade de evitar, minorar ou pôr fim a
situações que coloquem grande quantidade de vidas humanas em risco.
Os critérios propostos a serem respeitados para que a intervenção humanitária seja
plenamente justificada é que ela deva passar obrigatoriamente pelo crivo da ONU e ser
92
autorizada pelo Conselho de Segurança que é quem detém a prerrogativa conferida pelos Estados
de manter a paz e segurança internacionais. Deve ser o último recurso a ser empreendido somente
após o completo esgotamento e ineficácia das tentativas pacíficas de composição. Devem ocorrer
somente em casos extremos, quando há fundado receio da efetiva perda em larga escala de vidas
humanas decorrentes de atos como genocídio, crimes contra a humanidade e limpeza étnica, e
desde que o Estado se mostre completamente incapaz de contornar a situação. A intervenção deve
ter por único escopo a proteção dos seres humanos e mesmo que possua outros interesses, estes
não podem piorar os efeitos da crise que se pretende corrigir ou evitar. A ação militar deve ser
proporcional à finalidade de proteger direitos humanos e assim, faz-se necessário planejar a sua
dimensão, duração e intensidade para que o objetivo da intervenção possa ser efetivamente
cumprido. Além disso, a probabilidade de êxito deve ser analisada, uma vez que a intervenção
não poderá ser justificada caso a efetiva proteção dos direitos humanos não possa ser alcançada,
ou caso as suas conseqüências sejam piores do que se não tivesse ocorrido.
A nova doutrina proposta pelo relatório ainda exige a responsabilidade de reconstruir o país
após a intervenção, a fim de consolidar a paz, criar oportunidades e evitar a reincidência de novos
confrontos. A necessidade de intervir deve proporcionar um reforço positivo aos países em que
ela se operou e, portanto, deve estimular novas atividades que gerem renda, implementar
compromissos sociais e econômicos, bem como, projetos de reintegração à sociedade
internacional e, tão logo os países intervenidos tenham condições de gerir seus próprios negócios,
as tropas devem se retirar para que os Estados voltem a possuir a prerrogativa de decidir sobre
seus próprios destinos num ambiente pacífico e livre de opressões de qualquer natureza.
Por fim, cumpre ressaltar que a adoção pela Assembléia Geral do relatório em comento
reflete que a comunidade internacional reconheceu a nova doutrina tanto na sua legalidade quanto
na sua legitimidade e que o assunto é de grande relevância para a proteção e defesa dos direitos
humanos. Além disso, representa o reconhecimento pela comunidade internacional de que as
intervenções com propósitos humanitários são necessárias em determinados casos. Parece que a
idéia de empatia, proposta pelo relatório, de relegar a forma como as intervenções são
preconceituosamente enxergadas em função da forma como elas efetivamente são sentidas pelas
populações que necessitam de apoio, já trouxe alguns resultados na medida em que foi alcançado
o consenso de que as intervenções humanitárias se constituem num importante instrumento para
restabelecer a ordem mundial, bem como, instigar os Estados a se comportarem de acordo com as
93
disposições da Carta da ONU. Trata-se de uma significativa e importante transformação na
interpretação conferida, não só ao instituto da intervenção, mas principalmente à Carta da ONU,
cujas implicações no plano internacional estão condicionadas à cooperação dos Estados e à
evolução das suas relações. Assim, somente daqui a alguns anos é que se poderá afirmar se essa
alteração se operou de forma positiva ou negativa. Enquanto isso, continuemos a cultivar o sonho
de um Mundo no qual todas as nações se respeitam entre si, defendem e protegem os direitos
humanos dos seus cidadãos, ao menos aqueles mais básicos e, assim, possibilitam que todas as
pessoas do Mundo tenham o mínimo necessário para uma sobrevivência livre, saudável e
pacífica.
94
REFERÊNCIAS
AMARAL JÚNIOR, Alberto do. O Direito de Assistência Humanitária. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. (Coleção Biblioteca de Teses). AMARAL, Renata Vargas. Análise jurídica de intervenção humanitária internacional. In:http://www.revistadoutrina.trf4.gov.br/index.htm?http://www.revistadoutrina.trf4.gov.br/artigos/edicao012/flavio_cruz.htm. Acesso em: 20/10/2007 CASTRO, Paulo Canelas de. Da não Intervenção à Intervenção. in XIV JORNADAS IDN-CESEDEN. A ingerência e o Direito Internacional. S/L: Instituto da Defesa Nacional, 1996, pp. 77-130 CHEREM, Mônica Teresa Costa Sousa. Direito Internacional Humanitário. Curitiba: Juruá, 2003. COLOQUIO INTERNACIONAL SOBRE O DIREITO A ASSISTENCIA HUMANITARIA 1995. Paris, França. O direito a assistência humanitária: anais. Rio de Janeiro: Garamond: Unesco 1999. COMITÊ INTERNACIONAL DA CRUZ VERMELHA. Descubra o CICV. Disponível em: <http://www.icrc.org/web/por/sitepor0.nsf/html/Descubra_o_CICV/$File/Descubra%20o%20CICV.pdf> Acesso em 07 de setembro de 2008. COMISSÃO INTERNACIONAL SOBRE INTERVENÇÃO E SOBERANIA ESTATAL. A responsabilidade de proteger: Relatório do ICISS. Disponível em: <http://www.iciss.ca/pdf/Commission-Report.pdf> Acesso em: 15 de outubro de 2008. CONVENÇÃO DE VIENA SOBRE O DIREITO DOS TRATADOS. Disponível em: <http://www2.mre.gov.br/dai/dtrat.htm> Acesso em 30 de maio de 2008. CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Caso do Estreito de Corfu (Reino Unido v. Albânia). Decisão de 15 de dezembro de 1949. Disponível em: <http://www.icj-cij.org/docket/files/1/11885.pdf> Acesso em: 30 de maio de 2008. ____________________________________. Caso das atividades militares e paramilitares na e contra a Nicarágua (Nicarágua v. Estados Unidos). Decisão de 27 de junho de 1986. Disponível em: <http://www.icj-cij.org/docket/files/70/9973.pdf> Acesso em: 30 de maio de 2008. DELGADO, José Manuel Avelino de Pina. Regulamentação do Uso da Força no Direito Internacional e Legalidade das Intervenções Humanitárias Unilaterais. Dissertação de Mestrado. Florianópolis: UFSC, 2003.
95
DINH, Nguyen Quoc; DAILLER, Patrick; PELLET, Alain. Direito Internacional Público. Trad. Vítor Marques Coelho. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999. DINSTEIN, Yoram. Guerra, agressão e legítima defesa. Trad. Mauro Raposo de Mello. Barueri: Manole, 2004. p. 105. FERREIRA JÚNIOR, Lier Pires; MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de (coords.).Direitos Humanos e Direito Internacional.Curitiba: Juruá, 2006. GARCIA, Emerson. Proteção internacional dos direitos humanos: Breves reflexões sobre os sistemas convencional e não-convencional. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2005. INSTITUTO DE DIREITO INTERNACIONAL. Resolução sobre domínio reservado e seus efeitos. Disponível em: <http://www.idi-iil.org/idiF/navig_chron1953.html> Acesso em: 01 de novembro de 2008. JUBILUT, Liliana Lyra. A “responsabilidade de proteger” é uma mudança real para as intervenções humanitárias?. Disponível em: <http://www.cedin.com.br/revistaeletronica/artigos/liliana%20jubilut%20dih.pdf> Acesso em: 11 de outubro de 2008. LUPI, André Lipp Pinto Basto. Soberania, OMC e Mercosul. São Paulo: Aduaneiras, 2001. MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Direitos humanos e conflitos armados. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. MENEZES, Wagner; IACOMINI, Vanessa (coords.). Direito Internacional: análises e reflexões. Curitiba: Íthala, 2008. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Carta das Nações Unidas. Disponível em: <http://www.unhchr.ch/spanish/html/menu3/b/ch-cont_sp.htm> Acesso em: 30 de maio de 2008. ____________________________________. Resoluções da Assembléia Geral. Disponível em: <http://www.un.org/spanish/documents/resga.htm> Acesso em 30 de maio de 2008. ____________________________________. Resoluções do Conselho de Segurança. Disponível em: <http://www.un.org/Docs/sc/unsc_resolutions.html> Acesso em: 30 de maio de 2008. PENNA FILHO, Pio. Conflitos e estabilidade no continente africano nos anos 1990. Disponível em: <http://64.233.169.104/search?q=cache:sF2tO3FayH0J:www.africamerica.net> Acesso em: 01 de novembro de 2008. RAMÍREZ, Frederico Arcos. Guerras en defensa de los derechos humanos: Problemas de legitimidad em las intervenciones humanitárias. Madrid: Dykinson, 2002.
96
RAMOS, Adriana. Intervenção Humanitária. In:http://www.viannajr.edu.br/revista/dir/doc/art_10013.pdf. Acesso em 22/11/2007. RAMOS, André de Carvalho. Teoria Geral dos Direitos Humanos na ordem internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. REZEK, Francisco. Direito Internacional Público: Curso Elementar. 10. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. RODRIGUES, Simone Martins. Segurança Internacional e Direitos Humanos: A prática da Intervenção Humanitária no Pós-guerra fria. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. _________________________. Justiça restaurativa, dialogia e reconstrução social: Tribunais internacionais e comissões de verdade na África. Disponível em: <http://www.iuperj.br/biblioteca/teses/simone%20martins%20rodrigues%20tese.pdf> Acesso em: 12 de outubro de 2008. _________________________. O papel das Nações Unidas na reconstrução democrática: o caso de El Salvador e do Haiti. Disponível em: <http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/anpocs00/gt13/00gt1333.doc> Acesso em: 14 de outubro de 2008. SALCEDO, Juan Antonio Carrillo. Soberania de los Estados y derechos humanos em derecho internacional contemporâneo. 2ª Edição. Madrid: Tecnos, 2004. SEBRIAN, Raphael Nunes Nicoletti; LEITE JÚNIOR, José Hugo. O “tribunal permanente dos povos” e a intervenção dos EUA na Nicarágua. Disponível em: <http://www.unicentro.br/editora/revistas/guairaca.pdf> Acesso em: 27 de maio de 2008. SILVA SOBRINHO, Marcelo da. Soberania no direito internacional: Evolução ou revolução? Disponível em: <http://www.senado.gov.br/web/cegraf/ril/pdf/pdf_163/r163-01.pdf> Acesso em: 12 de outubro de 2008. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. O Direito Internacional em um mundo em transformação. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. __________________________________. Direito das Organizações Internacionais. 3ª ed. rev. atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. TRATADO DE RENÚNCIA À GUERRA. Pacto de Paris ou Briand-Kellog de 1928. Disponível em: <http://64.233.169.104/search?q=cache:WDQl7BB0WJQJ:www2.mre.gov.br/dai/renguerra.htm> Acesso em: 11 de junho de 2008. TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL. Estatuto da Organização Internacional do Tribunal Penal. Disponível em: <http://www.icc-
97
cpi.int/library/about/officialjournal/Rome_Statute_English.pdf> Acesso em: 05 de agosto de 2008. TSCHUMI, André Vinícius. Princípio da Segurança Coletiva e a Manutenção da Paz Internacional. Curitiba: Juruá, 2006. VIOTTI, Aurélio Romanini de Abranches. Ações humanitárias pelo Conselho de Segurança: entre a Cruz Vermelha e Causewitz. Brasília: Funag, 2004 (Coleção Rio Branco)