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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO
ESCOLA DE EDUCAÇÃO, COMUNICAÇÃO E HUMANIDADES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
OSIEL LOURENÇO DE CARVALHO
(In)VERSÕES POLÍTICO-ESCATOLÓGICAS NO
PENTECOSTALISMO BRASILEIRO
Uma análise da posição e ação política das Assembleias de Deus
de 1930-1945 e 1978-1988 a partir do jornal Mensageiro da Paz
SÃO BERNARDO DO CAMPO
2016
OSIEL LOURENÇO DE CARVALHO
(In)VERSÕES POLÍTICO-ESCATOLÓGICAS NO
PENTECOSTALISMO BRASILEIRO
Uma análise da posição e ação política das Assembleias de Deus
de 1930-1945 e 1978-1988 a partir do jornal Mensageiro da Paz
Tese de doutorado apresentada em
cumprimento às exigências do Programa de
Pós-Graduação em Ciências da Religião, para
obtenção do grau de Doutor.
Área de Concentração: Linguagens da Religião
Linha de Pesquisa: Teologia das Religiões e
Cultura
Orientador: Dr. Claudio de Oliveira Ribeiro
SÃO BERNARDO DO CAMPO
2016
FICHA CATALOGRÁFICA
C254i
Carvalho, Osiel Lourenço de
(In)versões político-escatológicas no pentecostalismo brasileiro: uma
análise da posição e ação política das Assembleias de Deus 1930-1945 e
1978-1988 a partir do jornal Mensagerio da Paz / Osiel Lourenço de
Carvalho -- São Bernardo do Campo, 2016.
180fl.
Tese (Doutorado em Ciências da Religião) – Escola de comunicação,
Educação e Humanidades Programa de Pós Ciências da Religião da
Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo
Bibliografia
Orientação de: Claudio de Oliveira Ribeiro
1. Política e religião - Brasil 2. Pentecostalismo – Brasil 3. Assembleia
de Deus – Ciência política 4. Biopolítica 5. Jornal Mensageiro da
Paz – análise do discurso I. Título
CDD 261.70981
A tese de doutorado sob o título: (In)versões político-escatológicas no pentecostalismo
brasileiro: uma análise da posição e ação política das Assembleias de Deus 1930-1945 e 1978-
1988 a partir do jornal Mensagerio da Paz, elaborada por Osiel Lourenço de Carvalho foi
defendida em 04 de março de 2016, perante a banca examinadora composta por Claudio de
Oliveira Ribeiro, (Presidente/UMESP), Paulo Ayres de Mattos, (Titular/UMESP), Lauri Wirth
(Titular/UMESP), Alexandre Fonseca Brasil (Titular/UFRJ), Gedeon Freire de Alencar
(Titular/PUC-SP).
_______________________________________
Prof. Dr. Claudio de Oliveira Ribeiro
Orientador e Presidente da Banca Examinadora
_______________________________________
Prof. Dr. Helmut Henders
Coordenador do Programa de Pós-Graduação
Programa: Ciências da Religião
Área de Concentração: Linguagens da Religião
Linha de Pesquisa: Teologia das Religiões e Cultura
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus pelo misterioso e inescrutável dom da vida.
Agradeço ao meu pai Antônio e minha mãe Sônia que deram prosseguimento à criação
de Deus cuidando de mim desde o meu nascimento.
Agradeço a minhas irmãs Elienay e Cíntia e a meu sobrinho João Victor que sempre
estiveram ao meu lado.
Agradeço à minha noiva Leila Patrícia que apareceu em minha vida nos momentos finais
da tese e foi uma das minhas principais motivadoras. Te amo muito!
Agradeço ao professor Claudio Ribeiro que abraçou meu projeto de doutorado e desde
então contribuiu de maneira significativa para meu crescimento como pesquisador. Aprecio
também sua humanidade e generosidade. Nunca vou esquecer que no final do processo de
redação da tese o Claudio precisou fazer uma delicada cirurgia de coração. Apesar do momento
difícil sempre se mostrou disposto a acompanhar-me nos encaminhamentos finais da pesquisa.
Espero levar essa amizade para a vida.
Agradeço aos demais professores do Programa de Pós-Graduação em Ciências da
Religião da UMESP com os quais pude aprender muito nestes quatros anos.
Agradeço ao IEPG que em momentos de dificuldade foi um importante auxílio. Não
poderia deixar de agradecer a Ana Fonseca, uma amiga que sempre me incentivou a prosseguir
apesar das situações de dificuldade.
Agradeço a CAPES cuja bolsa de estudos foi primordial para que essa pesquisa fosse
realizada.
Agradeço aos amigos de caminhada dos estudos do pentecostalismo no Brasil em
especial a Paulo Ayres, Gedeon de Alencar e Claiton Pommering.
Agradeço ao pastor Marco Antônio, da Assembleia de Deus de Santo André, que se
tornou também um amigo de caminhada.
O único assunto é Deus
o único problema é Deus
o único enigma é Deus
o único possível é Deus
o único impossível é Deus
o único absurdo é Deus
o único culpado é Deus
e o resto é alucinação.
(Carlos Drummond de Andrade)
RESUMO
A presente pesquisa analisou a posição e ação política nas Assembleias de Deus do Brasil nos
períodos 1930-1945 e 1978-1988. Defendemos a tese de que desde 1930 há no interior do
pentecostalismo brasileiro posições e intervenções no mundo da política. Tanto no período de
1930-1945 como o de 1978-1988 nossas análises serão realizadas a partir das temporalidades
discutidas por Giorgio Agamben: chronos, aiôn e kairos. No que diz respeito ao primeiro
período 1930-1945, as pesquisas quase sempre vinculam o discurso escatológico do
pentecostalismo a processos de alienação e não envolvimento com a política partidária.
Entretanto, acredita-se que as narrativas escatológicas não foram causa de certo afastamento da
esfera pública brasileira, mas sim efeito de processos de exclusão aos quais homens e mulheres
de pertença pentecostal estiveram circunscritos. Doutrinas como a escatologia e a
pneumatologia foram potencializadoras de processos que aqui denominamos de biopotência. Já
no segundo período, de 1978-1988, a posição e a ação política que predominaram no
pentecostalismo estiveram relacionadas com a biopolítica. Chamamos de capítulo intermedário
ou de transição o período correspondente às datas 1946-1977. Nele descreveremos e
analisaremos personalidades pentecostais de destaque no campo da política brasileira.
Metodologicamente, fizemos nossa análise a partir de artigos publicados no órgão oficial de
comunicação da denominação religiosa em questão, o jornal Mensageiro da Paz. Esse periódico
circula desde 1930. Além dos artigos, destacamos também as autoras e os autores, todas elas e
todos eles figuras de destaque no assembleianismo. Ao longo da pesquisa questionamos a ideia
do apoliticismo pentecostal. Defendemos a tese de que desde 1930, que é o início de nossa
pesquisa, há posição e ação política nas Assembleias de Deus. Como resultado disso,
questionamos a ideia do apoliticismo pentecostal. Nossa hipótese é de que no período 1930-
1945 o pentecostalismo foi um polo de biopotência. Se a biopolítica é o poder sobre a vida, a
biopotência é o poder da vida. Doutrinas como a escatologia e pneumatologia contribuíram
para que nos espaços marginais onde se reuniam os pentecostais fossem criados novos modelos
de sociabilidade e de cooperação; eram também espaços de criação de outras narrativas e de
crítica a modelos hegemônicos e excludentes. O pentecostalismo foi um movimento que
promoveu a dignidade humana de sujeitos subalternos.
Palavras-chave: Assembleias de Deus. Mensageiro da Paz. Biopotência. Biopolítica.
ABSTRACT
This research analyzed the political position and action in the Assemblies of God of Brazil in
the periods 1930-1945 and 1978-1988. We defend the thesis that since 1930 there within the
Brazilian Pentecostalism positions and interventions in the world of politics. In both the 1930-
1945 period and the 1978-1988 our analyzes will be carried out from the time frames discussed
by Giorgio Agamben: chronos, Aion is kairos. With regard to the first period 1930-1945,
research almost always binding on the eschatological discourse of Pentecostalism alienation
processes and not involved with party politics. However, it is believed that the eschatological
narratives were not sure because of remoteness of the Brazilian public sphere, but the effect of
the exclusion of processes to which men and women belonging Pentecostal been circumscribed.
Doctrines such as eschatology and pneumatology were potentiating processes that here we call
biopotency. In the second period, from 1978-1988, the position and political action that
prevailed in Pentecostalism were related to biopolitics. Call intermedário chapter or transition
the corresponding period the dates 1946-1977. We will describe and analyze prominent
Pentecostal personalities in the field of Brazilian politics. Methodologically, we did our analysis
from articles published in the official communication of the religious denomination concerned,
the Messenger Journal of Peace. This newspaper circulates since 1930. In addition to the articles
also highlight the authors and authors, all of them and all of them leading figures in
assembleianismo. During the research question the idea of the Pentecostal apoliticism. We
defend the thesis that since 1930, which is the beginning of our research, there are political
position and action in the Assemblies of God. As a result, we question the idea of the Pentecostal
apoliticism. Our hypothesis is that in the period 1930-1945 Pentecostalism was a center of
biopotency. If biopolitics is the power over life, biopotency is the power of life. Doctrines such
as eschatology and pneumatology contributed to the marginal spaces where they met the
Pentecostals were created new models of sociability and cooperation; They were also spaces to
create other narratives and criticism of hegemonic and exclusive models. Pentecostalism was a
movement that promoted the human dignity of subaltern subjects.
Keywords: Assemblies of God. Messenger of Peace. Biopotency. Biopolitics.
RESUMEN
Esta investigación analiza la posición política y acción en las Asambleas de Dios de Brasil en
los períodos 1930-1945 y 1978-1988. Defendemos la tesis de que desde 1930 existe dentro de
las posiciones pentecostalismo brasileño e intervenciones en el mundo de la política. Tanto en
el período 1930-1945 y los 1978-1988 nuestros análisis se llevará a cabo a partir de los plazos
discutidos por Giorgio Agamben: chronos, Aion es kairos. En relación con el primer período
de 1930-1945, la investigación casi siempre vinculante para el discurso escatológico de los
procesos de alienación pentecostalismo y no involucrarse con la política partidaria. Sin
embargo, se cree que los relatos escatológicos no estaban seguros debido a la lejanía de la esfera
pública de Brasil, pero el efecto de la exclusión de los procesos a los que se circunscribe a
hombres y mujeres pertenecientes pentecostal. Doctrinas tales como la escatología y la
pneumatología se potenciando procesos que aquí llamamos biopotencia. En el segundo período,
a partir de 1978-1988, la posición y la acción política que prevaleció en el pentecostalismo se
relacionaron con la biopolítica. Llame intermedário capítulo o la transición del periodo
correspondiente las fechas 1946-1977. Vamos a describir y analizar prominentes
personalidades pentecostales en el campo de la política brasileña. Metodológicamente, hicimos
nuestro análisis de los artículos publicados en la comunicación oficial de la confesión religiosa
de que se trate, el Mensajero Diario de la Paz. Este periódico circula desde 1930. Además de
los artículos también resaltar los autores y autores, todos ellos, y todos ellos principales figuras
assembleianismo. Durante la investigación en duda la idea del apoliticismo pentecostal.
Defendemos la tesis de que desde 1930, que es el comienzo de nuestra investigación, hay
posición política y acción en las Asambleas de Dios. Como resultado de ello, ponemos en duda
la idea del apoliticismo pentecostal. Nuestra hipótesis es que en el período 1930-1945 el
pentecostalismo era un centro de biopotencia. Si la biopolítica es el poder sobre la vida,
biopotencia es el poder de la vida. Doctrinas tales como la escatología y la pneumatología
contribuyeron a los espacios marginales donde se reunieron los pentecostales se crearon nuevos
modelos de sociabilidad y cooperación; Eran también los espacios para crear otras narrativas y
la crítica de los modelos hegemónicos y exclusivos. Pentecostalismo fue un movimiento que
promueve la dignidad humana de los sujetos subalternos.
Palabras clave: Asambleas de Dios. Mensajero de la Paz. Biopotencia. Biopolítica.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ADHONEP – Associação dos Homens de Negócio do Evangelho Pleno
ADs – Assembleias de Deus
AGO – Assembleia Geral Ordinária
ALEF – Aliança Eleitoral pela Família
ANC – Assembleia Nacional Constituinte
ANE – Associação Nacional de Escritores
ARENA – Aliança Renovadora Nacional
CEBs – Comunidades Eclesiais de Base
CGADB – Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil
CGT – Comando Geral dos Trabalhadores
CGTB – Confederação dos Trabalhadores do Brasil
CLT – Consolidação das Leis do Trabalho
CNBB – Confederação Nacional dos Bispos do Brasil
COMADEMIG – da Convenção de Ministros das Assembleias de Deus em Minas Gerais
CONAMAD – Convenção Nacional das Assembleias de Deus de Madureira
CPAD – Casa Publicadora das Assembleias de Deus
DEIP – Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda
DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda
EETAD – Escola de Educação Teológica das Assembleias de Deus
FAO – Conselho Executivo da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e
Alimentação
FPE – Frente Parlamentar Evangélica
IBAD – Instituto Bíblico das Assembleias de Deus
IBP – Instituto Bíblico Pentecostal
JUC – Juventude Universitária Católica
MDB – Movimento Democrático Brasileiro
MP – Mensageiro da Paz
MUT – Movimento de Unificação dos Trabalhadores
PC – Partido Comunista
PCB – Partido Comunista Brasileiro
PDC – Partido Democrata Cristão
PDT – Partido Democrático Trabalhista
PFL – Partido da Frente Liberal
PL – Partido Liberal
PP – Partido Progressista
PRP – Partido da Representação Popular
PRP – Partido Republicano Paulista
PSB – Partido Socialista Brasileiro
PSD – Partido Social Democrático
PSP – Partido Social Progressista
PT – Partido dos Trabalhadores
PTB – Partido Trabalhista Brasileiro
PUI – Pacto de Unidade Intersindical
RBN – Rede Boas Novas de Televisão
UDN – União Democrática Nacional
Ultab – União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil
URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
SUMÁRIO
1INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 11
2 MILENARISMOS, POSIÇÃO E AÇÃO POLÍTICA ..............................................
2.1 INTRODUÇÃO ..........................................................................................................
2.2 CARACTERIZAÇÃO DO MILENARISMO ............................................................
2.2.1 Aspectos Conceituais ...............................................................................................
2.2.2 Aspectos Históricos .................................................................................................
16
16
18
18
20
2.3 MENTALIDADES POLÍTICO-MILENARISTAS ................................................... 22
2.4 CRENÇAS MILENARISTAS NO BRASIL .............................................................. 27
2.4.1 A República Velha e o Fortalecimento do Coronelismo e das Oligarquias Rurais
(1889-1930) ......................................................................................................................
27
2.4.2 Milenarismo no Sertão: a Comunidade de Canudos ................................................ 30
2.4.3 A Revolta Sertaneja do Contestado ......................................................................... 33
2.5 O MILENARISMO ASSEMBLEIANO BRASILEIRO ............................................ 37
2.6 CONCLUSÃO ............................................................................................................ 42
3 POSIÇÃO E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA NO ASSEMBLEIANISMO
BRASILEIRO (1930 A 1945) .........................................................................................
44
3.1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 44
3.2 O GOVERNO GETÚLIO VARGAS: POLÍTICA E SOCIEDADE (1930-1945) ..... 45
3.2.1 O Sufrágio Universal na Década de 1930 ................................................................ 48
3.2.2 O Governo Provisório (1930-1934) ......................................................................... 50
3.2.3 A Ditadura do Estado Novo (1937-1945) ................................................................ 51
3.3 DA SUÉCIA PARA O BRASIL: AS ORIGENS DO ASSEMBLEIANISMO ......... 53
3.4 TEMPORALIDADES E POLÍTICA NO ASSEMBLEIANISMO BRASILEIRO
(1930-1945) ......................................................................................................................
58
3.4.1 Assembleianismo e a Experiência do Chronos ........................................................ 62
3.4.2 Assembleianismo e a Experiência do Aiôn ..............................................................
3.4.3 Assembleianismo e a Experiência do Kairos ..........................................................
3.5 CONCLUSÃO ............................................................................................................
4 ASSEMBLEIAS DE DEUS E POSIÇÃO POLÍTICA: DA “DEMOCRACIA”
AOS “ANOS DE CHUMBO” (1946-1977) ...................................................................
4.1 INTRODUÇÃO ..........................................................................................................
4.2 O PERÍODO 1946-1964 .............................................................................................
4.2.1 Aspectos da Conjuntura Política e Social Brasileira ...............................................
4.2.2 Partem os Suecos, Chegam os Norte-Americanos ...................................................
4.3 O PERÍODO DA DITADURA MILITAR (1964-1977) ............................................
4.3.1 Aspectos da Conjuntura Política e Social no Brasil ................................................
4.3.2 Assembleianismo e Heterogeneidade Política .........................................................
4.4 PERSONALIDADES PENTECOSTAIS EM DESTAQUE NO PERÍODO .............
4.4.1 Pastor Antônio Torres Galvão: “O Libertador de Paulista” ....................................
4.4.2 O Nacionalismo em Paulo Leivas Macalão .............................................................
4.4.3 Manoel da Conceição Santos: “Minha Perna é a Minha Classe” ............................
4.5 CONCLUSÃO ............................................................................................................
5 ASSEMBLEIA DE DEUS: AÇÃO E POSIÇÃO POLÍTICA (1978-1988) ............
5.1 INTRODUÇÃO ..........................................................................................................
5.2 PRÁTICAS POLÍTICO-PENTECOSTAIS NA RECONSTITUCIONALIZAÇÃO
BRASILEIRA ...................................................................................................................
5.2.1 Assembleias de Deus na Transição Democrática ...................................................
67
74
79
81
81
82
82
84
87
87
91
95
95
98
100
108
110
110
111
111
5.2.2 Assembleia de Deus a Caminho de um Projeto Político ......................................
5.2.3 Assembleianismo no Limiar da Reconstitucionalização .........................................
5.2.4 Assembleianismo e a Experiência Política no Congresso Nacional Constituinte
(1986-88) ..........................................................................................................................
5.2.5 A Atuação Parlamentar Pentecostal .........................................................................
5.3 PRESENÇA PÚBLICA PENTECOSTAL OU VISIBILIDADE PÚBLICA
PENTECOSTAL? ASSEMBLEIA DE DEUS NO TEMPO PROFANO ........................
5.3.1 O que é Presença Pública? .......................................................................................
5.3.2 Assembleia de Deus e o Aiôn Imperializado ...........................................................
5.4 ASSEMBLEIANISMO, CORPO E BIOPOLÍTICA: UMA ANÁLISE A PARTIR
DO KAIROS .....................................................................................................................
5.5 CONCLUSÃO ............................................................................................................
6 PENTECOSTALISMO É/E POLÍTICA: A BIOPOTÊNCIA DAS MARGENS ..
6.1 INTRODUÇÃO ..........................................................................................................
6.2 PODEM OS SUBALTERNOS FALAR? ...................................................................
6.2.1 Corpos Subalternos Pentecostais .............................................................................
6.2.2 Espaços Subalternos Pentecostais ............................................................................
6.2.3 Saberes Subalternos Pentecostais ............................................................................
6.3 ARQUÉTIPOS POLÍTICOS EM MENTALIDADES PENTECOSTAIS .................
6.3.1 Dimensões Míticas da Política .................................................................................
6.3.2 Escatologia e a Crítica à Autoridade Política Hegemônica .....................................
6.4 PENTECOSTALISMO E A BIOPOTÊNCIA ...........................................................
6.4.1 Pneumatologia como Potencializadora da Biopotência ...........................................
6.4.2 Pentecostalismo e Dignidade Humana a Partir da Biopotência ...............................
6.4.3 Das Margens ao Centro ............................................................................................
6.5 CONCLUSÃO ............................................................................................................
7 CONCLUSÃO ..............................................................................................................
REFERÊNCIAS ..............................................................................................................
116
118
121
124
131
132
138
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148
150
150
151
151
154
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157
157
160
161
163
164
166
167
169
174
11
1 INTRODUÇÃO
As Assembleias de Deus no Brasil têm presença cada vez maior na política brasileira.
Esse processo teve início já nas primeiras décadas de implantação do pentecostalismo
brasileiro. Em nossa pesquisa, escolhemos dois recortes históricos a fim de analisarmos a
posição e ação política das Assembleias de Deus: 1930-1945 e 1978-1988. Iremos analisar e
comparar os dois diferentes períodos, pois defendemos a tese de que desde 1930 há posição e
ação política nas Assembleias de Deus no Brasil. Chamaremos de período intermediário os anos
de 1946-1977, de modo que ali descreveremos e analisaremos expressões políticas do
pentecostalismo no Brasil para melhor compreensão do desenvolvimento histórico.
As referidas análises foram feitas a partir de artigos publicados no órgão oficial de
comunicação da denominação religiosa em questão, o jornal Mensageiro da Paz. Esse periódico
circula desde 1930 e, principalmente nas primeiras décadas, foi uma literatura religiosa
militante, pois difundia as doutrinas pentecostais no território brasileiro. Em nossas análises
destacaremos não apenas os artigos, mas também seus respectivos autores e autoras, quando
isso for possível; em todos eles respeitaremos a grafia original. Destacamos dois principais
motivos pelos quais escolhemos o ano de 1930 como ponto incial de nossa análise: i) ano da
criação do jornal Mensageiro da Paz; ii) ano da realização da primeira Convenção Geral das
Assembleias de Deus no Brasil. Entretanto, mesmo com a realização dessa Convenção, isso não
significou que os suecos deixaram de exercer influência nas principais igrejas Assembleias de
Deus do território brasileiro, pelo menos até fins da década de 1940.
Uma das principais características das Assembleias de Deus no período 1930-1945
foram as doutrinas escatológicas, as quais estiverem inseridas no milenarismo, que diz respeito
à crença da chegada de um novo mundo. Todavia, o milenarismo está longe de ser uma doutrina
exclusiva do pentecostalismo brasileiro. A referida crença foi analisada aqui a partir das
concepções judaico-cristãs, mesmo que se possam encontrar crenças de esperança numa terra
sem males em outras confissões religiosas. Não relacionaremos aqui as doutrinas escatológicas
como alienação da realidade, pois a escatologia pode ser impulsionadora de projetos
contestatórios.
12
Um dos exemplos que apresentamos na presente pesquisa foi o das revoltas camponesas
do século XVI que aconteram na Alemanha. Liderados por Thomas Müntzer1, os camponeses
questionaram a sociedade injusta de seu tempo. Ernest Bloch2 (1973) em Müntzer, Teólogo da
Revolução, analisou em que medida os anseios de retorno ao paraíso impulsionaram o
movimento dos camponeses. A partir da discussão original das relações entre escatologia e
política destacaremos cinco mentalidades milenaristas: i) mentalidade milenarista de crítica
social; ii) mentalidade milenarista como ideia de progresso; iii) mentalidade milenarista de
descontentamento popular; iv) mentalidade milenarista de incerteza; e v) mentalidade
milenarista relacionada com o receio de perda de valores identitários.
No Brasil, a Proclamação da República em 1889 parece ter aprofundado os processos
de exclusão social. Neste contexto, surgem grupos sociorreligiosos de conotação milenarista.
Em nossa pesquisa, analisamos a Comunidade de Canudos, a Revolta do Contestado e o
movimento do Padre Cícero. Tentaremos apontar semelhanças entre o assembleianismo
brasileiro e esses grupos de religiosidade popular. Acreditamos que a influência dessa
religiosidade popular nas Assembleias de Deus é maior se comparada com a infuência dos
conhecidos movimentos da Rua Azusa e de Chicago.
O ano de 1930 no Brasil é marcado pelo movimento que conduziu Getúlio Vargas à
presidência do Brasil. Essa década também ficou caracterizada pela ascensão de regimes
totalitários como o nazismo e o fascismo. Vargas imprimiu uma série de mudanças sociais no
país e, centralizou o poder. Entretanto, o Brasil ainda preservou profundos processos de
exclusão social. Neste contexto, as Assembleias de Deus cresciam principalmente no Norte e
Nordeste do Brasil. Como um movimento religioso, a referida igreja pentecostal teve nesse
considerável influência dos suecos e das principais lideranças pentecostais nordestinas.
Os artigos do jornal Mensageiro da Paz deste primeiro período 1930-1945 serão
analisados a partir de três temporalidades discutidas por Giorgio Agamben: chronos, aiôn e
1 Müntzer, nascido entre 1485 e 1490, havia encontrado Lutero, na ordem dos agostinianos. Mestre em Teologia,
foi profundamente marcado pela mística medieval, da qual conservou porém mais a linguagem que o espírito. O
enriquecimento rápido dos chefes de empresa e a pobreza dos mineiros criaram fortes tensões sociais. Müntzer foi
enfluenciado em Zwickau, na Saxõnia, pelo tecelão Nicolau Storch e seus amigos “profetas de Zwickau”. Eles
rejeitavam todo o clero, desvalorizavam os sacramentos, rebatizavam os adultos, fundamentavam sua fé não
apenas sobre a Escritura, mas também sobre a revelação, sempre atual do Espírito entre os membros de sua
comunidade (DELUMEAU, 1997, p. 119).
2 Ernst Bloch (1885-1977) foi um filósofo marxista alemão tendo como a utopia um de seus principais campos
de estudo. Exerceu influência no pensamento de intelectuais como Theodor W. Adorno, Jürgen Moltmann,
Johann Mertz e Gustavo Gutierrez.
13
kairos. Identificamos artigos com posição de crítica a governos, estados e modelos políticos. O
tempo nesse assembleianismo é visto como uma dimensão efêmera e os governos incapazes de
promover uma sociedade justa e equânime. Desse modo, o chronos esteve ligado ao aiôn, que
está relacionado com o tempo do fim. O discurso escatológico é concebido e estruturado a partir
de realidades concretas. Desse modo, acreditamos que a escatologia pentecostal foi um
empoderamento discursivo de crítica social. No que diz respeito ao kairos, o analisaremos a
partir das experiências de êxtase de certas formas de ascetismo no assembleianismo desse
período e como eles foram canalisados para manifestar descontamento popular.
No período intermediário ou de transição, a saber, 1946-1977, descreveremos e
analisaremos a participação de assembleianos em diferentes áreas da política nacional. O fim
da Segunda Grande Guerra representou significativas mudanças políticas e econômicas no
mundo que se refletiram no Brasil. Com a polarização Estados Unidos versus União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) o governo brasileiro intensificou suas relações com
os norte-americanos. Foi o período do American way of life. De igual modo, a influência sueca
nas Assembleias de Deus passou a ser cada vez menor, de modo que os missionários
estadunidenses ganharam proeminência. Alguns desses missionários foram Bernhard Johnson
Jr, Lawrence Nels Olson, Orlando Boyer e a missionária Ruth Dorris Lemos.
Com o fim da ditadura de Getúlio Vargas os partidos políticos puderam voltar a
funcionar, de modo que nesse período surgiram personalidades ligadas às Assembleias de Deus
que atuaram em política partidária. Entre 1959 e 1983 o mineiro e assembleiano João Gomes
Moreira exerceu o cargo de deputado estadual. Um dos assembleianos que mais se destacaram
na política desse período foi o pastor Antônio Torres Galvão, que ficaria conhecido como o
libertador de Paulista. Eleito deputado estadual em Pernambuco no ano de 1946 seria reeleito
o mais votado de seu estado nas eleições de 1950. Este feito foi matéria tanto do jornal
Mensageiro da Paz como de outros periódicos publicados pelas Assembleias de Deus. O pastor
Antônio Torres Galvão também se tornaria o único operário da história do estado de
Pernambuco a se tornar governador. Antes da carreira na política partidária o pastor Galvão
liderou um dos maiores sindicatos de operário da América Latina. O pastor da Assembleia de
Deus do Ministério de Madureira, Paulo Leivas Macalão, esteve sempre muito próximo à
política partidária. A família Macalão esteve muito próxima ao governador nacionalista de São
Paulo, Adhemar de Barros.
Em nossa pesquisa discutimos as implicações das relações entre o pentecostalismo e o
mundo da política desse período. Analisamos em que medida ter representantes assembleianos
na política representou empoderamento para a comunidade pentecostal que ainda vivia às
14
margens dos processos sociais no Brasil. Estabelecemos estão uma relação entre
representatividade pentecostal política e cidadania. Durante o período do Regime Militar a ação
e posição política não foram homogêneas nas Assembleias de Deus. Houve pastores que
estiveram próximos aos militares, mas também houve lideranças pentecostais que criticaram e
atuaram contra o regime.
Nas décadas de 1940, 1950 e 1960 houve forte desenvolvimento das Ligas Camponesas
e uma de suas principais lideranças foi o assembleiano Manoel da Conceição; perseguido e
torturado pelos militares teve uma de suas pernas amputadas. No período em que esteve preso
houve significativa pressão nacional e internacional por sua libertação. No final da ditadura
houve ainda outras lideranças políticas ligadas às Assembleias de Deus. Acreditamos que uma
das principais delas foi o pastor Joanyr de Oliveira, que também foi o responsável pela coluna
Parlamento do jornal Mensageiro da Paz. É também em fins da década de 1970 que são
lançadas as bases de um projeto político de caráter mais corporativista nas Assembleias de
Deus.
No período de 1978-1988 aconteceu o fim do Regime Militar e a consequente
reconstitucionalização no Brasil. Chamaremos esse recorte histórico de transição democrática
tendo em vista que não havia mais ditadura, mas também ainda não havia plena democracia. A
nova ordem democrática seria restaurada em fins de 1988 quando a Constituição foi
promulgada. Nesse período, há vários artigos no jornal Mensageiro da Paz sobre a necessidade
de mais envolvimento das Assembleias de Deus na política partidária nacional.
Tanto nas eleições de 1978 como nas de 1982 há lideranças pentecostais eleitas para
exercer cargos de deputado estadual e federal. Além disso, pastores assembleianos transitavam
pelos corredores do poder em Brasília. Foi também nesse período que foram lançadas as bases
para a criação da Frente Parlamentar Evangélica (FPE). Uma das principais lideranças
assembleianas que estiveram na origem da referida frente foi Benedita da Silva. Quando
analisamos a atuação de parlamentares pentecostais percebemos que não há homogeneidade
política entre eles e a Benedita da Silva foi um dos principais exemplos que ilustram essa
constatação.
Nas eleições para o Congresso Nacional Constituinte em 1986 houve um significativo
número de assembleianos eleitos. Analisaremos aquele novo momento das Assembleias de
Deus a partir da diferença entre visibilidade pública da religião e presença pública da religião.
Também discutiremos como a estrututura do Estado moderno contribuiu para o tipo de atuação
evangélica e pentecostal na política brasileira. No que diz respeito ao aiôn veremos como o
discurso escatológico foi redimensionado e se alinhou a estruturas hegemônicas. Quanto ao
15
kairos, no período da Assembleia Nacional Constituinte os deputados assembleianos estiveram
circunscritos em dimensões da biopolítica. Assim como fizemos no período 1930-1945, no
recorte histórico 1978-1988 também analisaremos os artigos do jornal Mensageiro da Paz a
partir das temporalidades chronos, aiôn e kairos. Assim como fizemos no período 1930-1945,
no recorte histórico 1978-1988 também analisaremos os artigos do jornal Mensageiro da Paz a
partir das temporalidades chronos, aiôn e kairos.
Na parte final de nossa pesquisa analisamos o assembleianismo e a política a partir da
biopotência das margens. Defendemos a tese de que desde 1930, que é o início de nossa
pesquisa, há posição e ação política nas Assembleias de Deus. Como resultado disso,
questionamos a ideia do apoliticismo pentecostal. Nossa hipótese é de que no período 1930-
1945 o pentecostalismo foi um polo de biopotência. Se a biopolítica é o poder sobre a vida, a
biopotência é o poder da vida. Doutrinas como a escatologia e pneumatologia contribuíram
para que nos espaços marginais onde se reuniam os pentecostais fossem criados novos modelos
de sociabilidade e de cooperação; eram também espaços de criação de outras narrativas e de
crítica a modelos hegemônicos e excludentes. O pentecostalismo foi um movimento que
promoveu a dignidade humana de sujeitos subalternos. A ideia do apoliticismo pentecostal parte
do pressuposto de que os assembleianos não participavam da vida política brasileira porque não
quiseram; poucas pesquisas questionam se a referida não participação se deu porque muitos
deles não puderam. Principalmente no período de 1930-1945 quase a totalidade de
assembleianos era constituída de sujeitos marginalizados e, por isso mesmo, subalternos.
Faremos essa discussão a partir de corpos subalternos pentecostais, de lugares e de saberes
subalternos pentecostais. A partir desse contexto de subalternidade o pentecostalismo foi um
vetor de biopotência.
16
2 MILENARISMOS, POSIÇÃO E AÇÃO POLÍTICA
2.1 INTRODUÇÃO
As crenças milenárias escatológicas não falam apenas do fim do mundo, mas do fim de
um tipo de mundo. Quando os europeus chegaram a terras brasileiras e tiveram contato com os
ameríndios Tupi-Guarani observaram uma cultura religiosa com marcas do milenarismo;
profetas dessas tribos percorriam aldeias e diziam que eram a reencarnação de heróis tribais e
que um novo tempo, uma nova era seria implantada em breve (QUEIROZ, Maria, 1965, p. 78).
Nas cosmologias antigas dos Guarani há lendas relacionadas com a criação e a destruição do
mundo; logo, esses povos ameríndios elaboraram suas próprias doutrinas escatológicas. Entre
os Apopocúva-Guarani essas narrativas são conhecidas através de profecias, sonhos e outras
especulações escatológicas.
As narrativas religiosas destes grupos milenaristas sobre o dilúvio, por exemplo, estão
relacionadas com a destruição e a recriação de um mundo. Nessa dialética as cataclismologias
marcam a transição de uma era de sofrimento e corrupção para uma era de ouro que será
instaurada. Esses povos originários que viviam na costa brasileira também esperavam uma terra
sem mal; um retorno ao paraíso.
Na segunda metade do século XV vários grupos Tupi que habitavam a costa brasileira
partiram com destino ao Peru, de modo que tal peregrinação pode ter sido motivada pelo desejo
de encontrar a terra sem males. Ainda nesse período, feiticeiros de aldeias na Bahia
conclamaram os ameríndios a iniciar um êxodo; entretanto, foram impedidos por um
missionário jesuíta.
No início do século XVI grupos de Tupinambá partiram em busca da terra sem males e
em sua peregrinação atravessaram o Brasil até chegar aos Andes. Entretanto, ao se depararem
com os espanhóis foram obrigados a voltar e muitos se estabeleceram às margens do rio
Amazonas (QUEIROZ, Maria, 1965, p. 112). Movimentos semelhantes ocorreram em estados
como Pernambuco e São Paulo. Liderados e movidos pelos oráculos proféticos do pajé milhares
de ameríndios se deslocaram do litoral brasileiro em busca do paraíso terreste. Fome, doenças
e os sistemas de escravidão impostos pelos europeus também forçaram essas peregrinações.
17
Enquanto fala mítica e profética o discurso milenarista não está relacionado com a “fuga
do mundo”, mas vaticina o aniquilamento de um tipo de mundo e o renascimento de outro. O
discurso sobre o céu é um discurso sobre a terra. Sendo assim, o milenarismo é também um
posicionamento político, neste caso, de protesto e descontentamento; uma inquietude
escatológica.
No século XVI, os camponeses liderados por Thomas Müntzer adotaram uma
metalidade milenarista em sua revolta contra os sistemas de opressão social. Bloch viu nessa
revolta a história subterrânea do socialismo. Em terras brasileiras, além dos Tupi-Guarani,
grupos de sertanejos e caboclos também adotaram mentalidades milenaristas como forma de
protesto e descontentamento social. Aqui destacaremos três: Canudos, Contestado e a
comunidade liderada pelo Padre Cícero.
As falas milenaristas e escatológicas podem ser também uma crítica à degradação dos
ecossistemas e aos sistemas econômicos e políticos mundiais. As relações de opressão a
determinados grupos estão na origem das narrativas milenaristas? Talvez não na origem, mas
elas pelo menos potencializam os anseios de retorno ao paraíso. Ao longo do texto discutiremos
cinco mentalidades milenaristas e a relação delas com posicionamentos políticos: mentalidade
milenarista de crítica social; mentalidade milenarista como ideia de progresso; mentalidade
milenarista de descontentamento popular; mentalidade milenarista de incerteza; e mentalidade
milenarista relacionada com o receio de perda de valores identitários.
Os discursos de quase a totalidade dos pentecostalismos no Brasil estão alinhados com
o milenarismo. As Assembleias de Deus ligadas à CGADB (Convenção Geral das Assembleias
de Deus no Brasil) que são nosso principal objeto de análise nesta pesquisa seguem o chamado
pré-milenarismo. Seja através das revistas com estudos bíblicos usadas pela maioria das igrejas
Assembleias de Deus desde a década de 1920, de nome Lições Bíblicas ou do próprio jornal
oficial da denominação, Mensageiro da Paz, a doutrina de um reino milenial é difundida desde
as primeiras décadas do estabelecimento da referida denominação pentecostal no Brasil. Qual
a relação entre as crenças escatológicas das ADs com seus posicionamentos políticos na
sociedade brasileira? Essa e outras questões serão analisadas nesta pesquisa.
2.2 CARACTERIZAÇÃO DO MILENARISMO
18
2.2.1 Aspectos Conceituais
As crenças milenaristas estão presentes tanto no judaísmo como no cristianismo. Ao
analisarmos os aspectos histórico-sociais e teológicos de determinados grupos milenaristas
devemos associá-los ao messianismo que consiste na espera do retorno do messias que virá
junto com o reino de justiça e felicidade eterna. Mesmo assim, milenarismo e messianismo são
elementos distintos. Na tradição cristã o milênio trará o messias e não necessariamente o
messias trará o reino; isso porque, ao contrário do judaísmo, o messias prometido – Jesus - já
se manifestou.
Uma ideia constante no milenarismo diz respeito ao paraíso, o qual remete a um passado
onde o espaço-tempo era perfeito. A ruptura com esse paraíso abriu caminho para períodos
históricos onde a humanidade se autodestrói e os ecossistemas estão desregulados; entretanto,
o futuro reserva o retorno ao paraíso onde a justiça, a ordem e a felicidade serão restauradas.
Há uma reconciliação cósmica entre o passado perdido e o futuro prometido. Portanto, o reino
milenial será implantado no mundo. A partir daí podemos falar de uma sociologia da espera e
se estabelece uma interrelação entre fatos religiosos e fatos sociais (DESROCHE, 2000, p. 28).
Quando falamos de milenarismo não nos referimos ao fim do mundo. A doutrina
milenarista se relaciona com o fim de um tipo de sociedade imperfeita e o começo de outra
plenamente justa e perfeita. Entendemos por milenarismo como a crença no retorno do paraíso
perdido; lugar esse onde a igualdade, a felicidade e a justiça original serão restauradas. Para os
diversos grupos que adotam mentalidades milenaristas a vinda para essa “terra sem males” pode
acontecer tanto por intervenção divina como por práticas de ação política.
Acreditamos que as crenças milenaristas podem se secularizar e assumir outras formas
na modernidade. Um exemplo disso seria pensar a política como instrumento de redenção e de
graça social com o fim de se chegar ao modelo de uma sociedade plenamente justa e feliz. Um
dos autores que discutiu os processos de secularização e laicização do milenarismo foi Jean
Delumeau (DELUMENAU, 1997). O milenarismo nem sempre está associado a grupos que,
em razão da crença na volta de um messias, entrariam num estado de alienação política e social.
Há, ao longo na história, diversos grupos messiânico-milenaristas vinculados a movimentos
revolucionários e de protesto social. Posteriormente faremos menção de alguns desses grupos.
19
Na tradição protestante o milenarismo se divide em pré-milenarismo e pós-milenarismo
(DESROCHE, 2000) No primeiro, acredita-se que os mil anos de justiça e felicidade serão
precedidos pela repentina vinda de Cristo. Entretanto, não há consenso, principalmente entre os
grupos evangélicos se os mil anos são literais ou simbólicos. Já para o pós-milenarismo o Reino
de Deus é estabelecido de maneira gradual na sociedade e é fruto do esforço humano e de
práticas sociais voltadas para a correção de injustiças. Com efeito, no pós-milenarismo o
milênio é compreendido como o estado final do processo evolutivo, quando, enfim, a sociedade
humana será plenamente justa e equânime. Portanto, tanto o pré como o pós-milenarismo
esperam por um futuro onde todas as contradições sociais não existirão mais. Uma das
diferenças é de que para o pré-milenarismo esse retorno ao paraíso se dará de maneira abrupta,
sobrenatural e violenta, tendo em vista que a volta de Cristo representará o desdobramento final
das profecias apocalípticas. Já para o pós-milenarismo a chegada do Reino de Deus se dará de
maneira progressiva, mas não imune a conflitos, lutas revolucionárias e violência.
Quanto há de pessimismo e otimismo em cada uma dessas duas correntes? Os pré-
milenaristas tendem a ser mais pessimistas em relação ao tempo presente? Caso a resposta para
a pergunta seja positiva, essa postura faz com que os pré-milenaristas não se interessem pelas
questões como a política, por exemplo? A discussão a respeito dessas perguntas faremos a partir
da análise de grupos milienaristas no Brasil.
Pedro Ribeiro de Oliveira (OLIVEIRA, P., 1985, p. 241) emprega o termo “movimentos
sociorreligiosos de protesto social” a determinados grupos que se inspiram em crenças
milenaristas para expressarem algum tipo de descontentamento popular. Para Roger Bastide
(BASTIDE, 2006) o milenarismo está relacionado a práticas de resistência de grupos oprimidos
e dominados os quais criam uma nova identidade social a fim de restaurar sua dignidade.
Portanto, milenarismo não deixa de ser um posicionamento político. Além disso, “há
determinadas crenças que são posições políticas, mas não tem coragem de dizer seu nome”
(ZIZEK, 2012a, p. 12). Sendo assim, acreditamos que crenças milenaritas podem se caracterizar
como protesto e crítica popular, tendo em vista que há uma relação direta entre grupos
subalternos e crenças milenaristas.
A literatura sobre milenarismo cristão e de maneira específica o protestantismo se baseia
em textos do Antigo Testamento como esses do profeta Isaías a fim de fundamentar a espera
messiânica e também o reino vindouro estabelecido por Deus. A Bíblia de Estudo Pentecostal
(1995, p. 1071) tem uma nota a respeito desses textos na qual diz: “Esta profecia prediz o futuro
reino de Deus na terra; o pecado e morte já não existirão”. Encontramos outros textos utilizados
pelo milenarismo também no livro do profeta Daniel 2.44: “Mas, nos dias destes reis, o Deus
20
do céu levantará um reino que jamais será destruído”. O comentário da Bíblia de Estudo
Pentecostal (1995, p. 1248) diz: “É certo que a presente ordem mundial não durará para sempre,
mas o reino de Deus, sim durará para sempre”.
Outro texto muito usado pelo milenarismo de grupos protestantes é o de Apocalipse
20.6, o qual afirma: “Bem-aventurado e santo aquele que tem parte na primeira ressurreição.
Sobre estes não tem poder a segunda morte, mas serão sacerdotes de Deus e de Cristo, e reinarão
com ele os mil anos”. Mais uma vez a Bíblia de Estudo Pentecostal (1995, p. 2009) diz: “Nesse
reino haverá paz, segurança, prosperidade e justiça em toda a terra. A natureza será restaurada
à sua condição original de ordem, perfeição e beleza”. Essa última parte do comentário da Bíblia
de Estudo Pentecostal sobre a natureza evidencia ainda mais a ideia da volta ao paraíso perdido;
é preciso ir para aquele lugar original onde não existem contradições sociais ou desequilíbrios
naturais. Mais do que um dogma cristão ou pentecostal esse anseio pela volta ao paraíso faz
parte da condição humana e, por isso, o milenarismo ultrapassa as fronteiras confessionais.
2.2.2 Aspectos Históricos
No período da Patrística o milenarismo também foi difundido no cristianismo. Irineu foi
um dos chamados pais da Igreja quem mais propagou o milenarismo. Para Irineu, depois de um
período de domínio do Anticristo, Jesus voltaria dos céus e inauguraria seu reino de justiça e
paz. Ao descrever esse período Jean Delumeau diz que “o milenarismo não era apenas uma
doutrina corretamente admitida nas comunidades cristãs do Oriente. Era também partilhada por
cristãos do Ocidente” (DELUMENAU, 1997, p. 26). Depois de Irineu nomes como Tertuliano
e Hipólito também ensinaram as doutrinas milenaristas.
Entretanto, de maneira gradual setores do cristianismo no período medieval propuseram
uma leitura mais alegórica do milênio o que reduz a expectativa imediata da volta de Cristo, ao
passo que o milênio seria um período de tempo indeterminado que se iniciaria em Jesus e se
estenderia ao longo da história da Igreja. Essa leitura escatológica se tornou hegemônica no
cristianismo; todavia, a vertente anterior nunca deixou de despertar fascínio em autores e em
grupos cristãos.
Agostinho, bispo em Hipona no século V, adotou uma interpretação alegórica do
milênio, de modo que os mil anos indicariam a plenitude dos tempos. Mas isso não significa
que Agostinho abandonou o milenarismo. Ele escreveu sobre a escatologia, acreditava num pré-
21
determinado fim do mundo. Ao longo da história, grupos católicos e protestantes se alinharam
ao tipo de milenarismo agostiniano.
No que diz respeito ao milenarismo no período medieval, Ernst Bloch em Müntzer,
Teólogo da Revolução (1973) discute as proximidades entre movimentos messiânico-
milenaristas e utopias. Bloch faz uma análise da revolta dos camponeses durante o período da
Reforma; Müntzer foi um dos líderes das agitações que reivindicavam uma reforma não apenas
religiosa, mas também social. Juntou-se aos camponeses um grupo de proletários das cidades e
também mineiros que se sentiam explorados. Apesar de Müntzer não fazer referência direta ao
milenarismo, Bloch parece ter visto proximidades entre a revolta dos camponeses e os anseios
pelo paraíso perdido.
No tocante à guerra dos camponeses, à campanha contra as imagens e ao
espiritualismo, é preciso considerar, ao lado dos elementos econômicos, o
elemento originário essencial do conflito: o sonho mais antigo, a irrupção da
história herética, o êxtase do andar ereto e a vontade rebelde, séria,
impaciente, que anseia encontrar o paraíso. Inclinações, sonhos [...]
alimentam-se de fontes que não são as da necessidade mais visível: mesmo
assim elas não são pura ideologia; não desaparecem, dão colorido a amplas
etapas do caminho, nascem de um ponto original da alma que produz valores,
continuam a arder mesmo depois de catástrofes empíricas, mostrando a todas
as épocas [que] o quiliasmo da guerra dos camponeses permanentemente
presente (BLOCH, 1973, p. 215).
Sendo assim, milenarismos e utopias parecem estar circunscritos numa mesma
dimensão psíquico-social de anseio pelo retorno ao paraíso perdido. Mas diante da demora e
das muitas contingências que impedem a chegada desse paraíso é comum o sentimento de
frustração; logo frustração e milenarismo-utopia estão relacionados? Os pentecostais que
esperam um paraíso fora da história tenderiam a ter um sentimento de menos frustrações, tendo
em vista que não esperam a redenção social e o retorno ao paraíso pela instrumentalidade de
práticas políticas? Isso ficara mais evidente na análise que faremos no período 1930-1945.
Os principais teólogos protestantes como Lutero, Melâncton, Andreas Osiander, Pierre
Viret, William Perkins e Calvino falaram a respeito de um iminente fim do mundo. Além disso,
vários comentaristas católicos continuaram a escrever e ensinar doutrinas milenaristas. Com a
transição do período medieval para o Renascimento e o início das grandes navegações as
doutrinas milenaristas chegaram a outras partes do mundo como a América Latina. O padre
português Antônio Vieira foi autor de inúmeros sermões com temáticas escatológicas e
milenaristas. Para Vieira o quinto reino profetizado em Daniel 2.44 estaria muito próximo, de
modo que esse reino seria instaurado dentro do mundo. Lisboa seria o centro desse novo
22
império, o papa e a Igreja seriam seus líderes. Não haveria mais guerra, de modo que a paz e a
felicidade seriam plenas no mundo.
2.3 MENTALIDADES MILENARISTAS
Em nossa pesquisa, analisamos cinco mentalidades milenaristas: mentalidade
milenarista de crítica social; mentalidade milenarista como ideia de progresso; mentalidade
milenarista de descontentamento popular; mentalidade milenarista de incerteza; e mentalidade
milenarista relacionada com o receio de perda de valores identitários. Essas mentalidades são
flutuantes, não fixas, de modo que o grupo sociorreligioso pode apresentar mais de uma em
determinado momento histórico.
A mentalidade milenarista de crítica social é adotada por indivíduos e grupos
sociorreligiosos que fazem uma crítica direta a sociedades e aos sistemas opressivos. Em geral,
esse grupo tem caráter revolucionário com recusa total ou parcial do mundo presente. Anseiam
que a sociedade seja remodelada com novos valores para o cotidiano; querem uma sociedade
alternativa com maneiras novas de organizar o universo simbólico (CAMPOS, L., 2012). Um
exemplo dessa mentalidade milenarista foi a revolução camponesa liderada por Thomas
Müntzer no período da Reforma Protestante. Ernst Bloch (1973) escreveu que Müntzer
prefigurou a revolução socialista que viria nos séculos posteriores. Bloch escreveu sobre
Thomas Münzer em 1920 com o objetivo de discutir as relações entre religião e marxismo bem
como a temática da luta de classes na Alemanha.
Em sua análise Bloch relaciona teologia e marxismo, metafísica e materialismo
histórico. Com efeito, a revolução que ele analisa é econômico-política e metafísico-religiosa.
O aspecto místico e apocalíptico que Bloch resgata era importante “a fim de corrigir a
unilateralidade da perspectiva revolucionária do marxismo-leninismo, a fim de valorizar, em
nível de uma filosofia social, o momento teológico e revolucionário” (MÜNSTER, 1982, p.
187).
Bloch fez muitas citações de trechos bíblicos que denunciavam a opressão dos pobres
pelos ricos e, provavelmente, esse foi um dos motivos pelos quais seu texto foi rejeitado por
parte da burguesia alemã. Além disso, Bloch era, por questões óbvias, alinhado a Münzer contra
Lutero. Desse modo, Bloch viu na revolta dos camponeses do século XVI a chave para
compreender luta de classes (MÜNSTER, 1982).
23
Bloch pesquisou as crenças do fim dos tempos tanto no Antigo Testamento como em
espiritualidades cabalísticas. Para ele, os sonhos individuais e coletivos bem como os anseios
pelo fim das injustiças são impulsionados por energias subjetivas e impulsionadoras das
revoluções. Ao falar dos movimentos com características místico-milenaristas da Idade Média
ele diz: “Assim, se levantou – desde os irmãos Tal, desde os leigos místicos, desde Eckart,
desde Münzer e os espiritualistas – a alma em si mesma, a liberdade como novo e derradeiro
valor” (BLOCH, 1973, p. 76).
Como profeta e teólogo Thomas Münzer também assume características messiânicas a
fim de liderar a revolução que é ao mesmo tempo social e espiritual e é influenciada pelas
utopias de igualitarismo do cristianismo antigo e pelas profecias sobre o fim dos tempos.
“Assim também a arca de Thomas Münzer não buscou nada mais nada menos que os elementos
incondicionais de Cristo e do Apocalipse. A obstinação misturou-se curiosamente com vontade
do cristianismo primitivo” (BLOCH, 1973, p. 61).
Bloch compara a guerra dos camponeses aos movimentos operários dos séculos XIX e
XX, de modo que levanta a hipótese de que o socialismo é herdeiro, em sua dimensão
revolucionária, das guerras camponesas de matriz milenarista e apocalíptica. Entretanto, essa
herança não é apenas histórica e sociológica, mas ela se origina nos anseios de indivíduos e
grupos populares por justiça e equidade. Quando ainda escrevia seu texto em 1920, Bloch disse
que “no espírito inflamado da Rússia, até que o catolicismo apocalíptico finalmente constrói o
caminho do velho mundo até o derradeiro mito, até a absoluta transformação” (BLOCH, 1973,
p. 110). Com tais palavras demonstrou sua esperança de que a revolução russa chegasse também
à Alemanha.
Além de Ernst Bloch, outros teóricos relacionaram utopias políticas com crenças
milenaristas. Delumeau se refere, por exemplo, ao publicista francês Étienne Cabet, que
participou do movimento político do proletariado dos anos 1830-1840 e foi um dos
representantes do comunismo utópico. Étienne Cabet em seu romance Voyage en Icarie
(Viagem à Icária) descreve alguns princípios da organização social que deveria ser estabelecida.
Não haverá pobres, nem ricos, nem domésticos; não mais exploradores nem
explorados; não mais angústias nem aflições; não mais ciúme nem ódios; não
mais cupidez nem ambição; não mais, ou quase não mais, ociosos, nem
preguiçosos, nem bêbados, nem ladrões (CABET apud DELUMEAU, 1997,
p. 319).
24
Até mesmo em textos de Michel Bakunin3 podemos encontrar “resquícios” de crenças
milenaristas quando ele diz que “alta e bela se erguerá em Moscou a constelação da revolução
acima de um mar de sangue e de fogo, e ela se tornará a estrela que guiará para a felicidade toda
a humanidade liberada” (BAKUNIN, 1999, p. 104).
Slavoj Zizek, destacado filósofo e psicanalista esloveno, usa a narrativa escatológica
dos quatro cavaleiros do apocalipse4 para fazer sua crítica ao capitalismo que segundo ele
conduz o mundo ao Armagedon econômico.
O sistema capitalista global aproxima-se de um ponto zero apocalíptico. Seus
quatro cavaleiros do Apocalipse são a crise ecológica, as consequências da
revolução biogenética, os desequilíbrios do próprio sistema (problemas da
propriedade intelectual, a luta vindoura por matéria-prima, comida e água) e
o crescimento explosivo de divisões e exclusões sociais (ZIZEK, 2012b, p.
180).
A mentalidade milenarista como ideia de progresso incide nos projetos econômicos e
sociais que supostamente conduzirão a humanidade à felicidade terrestre coletiva. Ao longo do
século XVIII a vinculação entre progresso e felicidade foi um pensamento recorrente. Há uma
visão otimista quanto ao futuro. Na Grã-Bretanha Joseph Mede5 foi um dos primeiros a
relacionar o milênio com a idade de ouro que viria com o progresso. Ele fez uma interpretação
científica do apocalipse (DELUMEAU, 1997), pois defendia que os cataclismas e destruições
das narrativas apocalípticas não deveriam sem interpretados de maneira literal. Em sua visão
otimista do futuro também questionava a ideia de um pecado original, pois a humanidade
caminhava para um estado de perfeição e felicidade. Sendo assim, Mede foi um dos primeiros
a lançar as bases do pós-milenarismo na modernidade.
Joseph Priestley6 viu na Revolução Francesa uma espécie de cataclisma, de tremor que
antecedia a chegada do milênio quando diz que “assim, qualquer que tenha sido o começo deste
mundo, o fim será glorioso e paradisíaco, ultrapassando tudo o que nossas imaginações podem
agora conceber” (PRIESTLEY apud DELUMEAU, 1997, p. 280). Os teóricos milenaristas
imaginavam que o progresso levaria a um estágio final da plena felicidade humana; quando isso
ocorresse a história se deteria e a humanidade não mais evoluiria.
3 Bakunin (1814-1876) era um anarquista e durante os anos 1848-1849 tomou parte ativa nas rebeliões que
ocorreram em Paris, Praga e Dresden. 4 O texto de Apocalipse 6 fala de quatro cavaleiros: branco, vermelho, preto e amarelo. Eles surgem na terra e são
incumbidos de causar destruição. 5 Mede nasceu em 1586. Era egiptólogo e hebraísta. Foi autor do livro Chave do Apocalipse. 6 Joseph Priestley nasceu em 1733. Foi teólogo, filósofo naturalista e político britânico.
25
A mentalidade milenarista de descontentamento popular está presente em grupos de
resistência, que almejam criar uma nova identidade social. A dimensão religiosa é em maior
grau, de modo que o grupo não se considera revolucionário ou não dispõe dos meios necessários
para fazer a revolução. Enquanto grupos explorados e oprimidos anseiam por justiça, quase
sempre se congregam ao lado de líderes carismáticos ou profetas. Em geral, esperam que os
sistemas que perpetuam a opressão sejam destruídos pelo elemento sobrenatural. A intervenção
divina e não os processos revolucionários ou progresso garantirá a instauração da idade de ouro.
A mentalidade milenarista de incerteza é assumida por pessoas e grupos em momentos
de cataclismas, guerras, doenças, entre outros eventos destrutivos. No sermão profético de Jesus
em Mateus 24.6 quando fala que “Ouvireis de guerras e rumores de guerras” é assumido pelos
grupos de mentalidade milenarista de incerteza como prelúdio do fim do mundo. Entretanto,
esse tipo de mentalidade não estaria fundamentado em certas racionalidades, no sentido de que
o mundo como funciona hoje estaria a caminho do caos? Os discursos de grupos como o
Greenpeace, que alertam para uma possível destruição do planeta caso a natureza continue
sendo agredida, não é também uma mentalidade milenarista de incerteza?
A mentalidade milenarista como receio da perda de valores identitários está presente
em grupos que promovem uma contracultura. Podemos indentificá-la em grupos conservadores.
Um exemplo disso foi o que ocorreu a partir da década de 60 nos Estados Unidos. As mudanças
sociais ocorridas nessa década, relacionadas com a revolução sexual, defesa dos direitos civis
de homossexuais, negros e mulheres, foram interpretadas com um claro sinal da decadência da
civilização humana e, por conseguinte, da volta de Cristo a Terra. Essas mudanças sociais
fizeram com que várias igrejas se unissem aos movimentos conservadores, pois segundo eles
era preciso salvar a sociedade norte-americana da ruína.
Os evangélicos conservadores norte-americanos não aceitavam a decisão da Suprema
Corte americana de excluir o culto obrigatório das escolas públicas. Entretanto, para os juízes
que tomaram essa decisão o Estado era laico, de modo que patrocinar o culto de determinada
crença religiosa seria inconstitucional.
Em 1963 a Suprema Corte americana também excluiu a obrigatoriedade da leitura
bíblica das escolas. Mais uma vez os conservadores identificaram que estruturas diabólicas
estariam por trás de políticas secularistas e resolveram contra-atacar. Nos anos de 1960 e 1970
grupos evangélicos do sul dos Estados Unidos diziam que o humanismo secular era um inimigo
dos valores cristãos, ao passo que fizeram uma lista com os pontos que identificavam esse
humanismo:
26
Nega a divindade de Deus, a inspiração da Bíblia e a natureza divina de Jesus
Cristo. Nega a existência da alma, da vida após a morte, da salvação e do céu,
da condenação e do inferno. Acredita que não existem absolutos, nem certo,
nem errado – que os valores morais são autodeterminados e circunstanciais.
Faça o que quiser, “desde que não prejudique ninguém”. Acredita na
eliminação de papéis distintivos do homem e da mulher. Acredita na liberdade
sexual entre indivíduos, de qualquer idade, inclusive em sexo antes do
casamento, homossexualismo, lesbianismo e incesto. Acredita no direito ao
aborto, à eutanásia e ao suicídio. Acredita na distribuição equitativa da riqueza
americana para reduzir a pobreza e estabelecer a igualdade. Acredita em
controle do meio ambiente, controle de energia e sua limitação. Acredita no
fim do patriotismo americano e do sistema de livre empresa, no desarmamento
e na criação de um governo socialista universal (CARVALHO, 2013, p. 70).
Na cultura religiosa evangélica e pentecostal a mentalidade milenarista como receio da
perda de valores identitários também foi assumida. Nesse tipo de mentalidade é mais evidente
o dualismo, a luta entre o bem e o mal, Deus e o diabo. Para os conservadores essas dimensões
do mal devem ser combatidas, sobretudo no espaço público da política.
2.4 CRENÇAS MILENARISTAS NO BRASIL NA VIRADA PARA O SÉCULO 20
2.4.1 A República Velha e o Fortalecimento do Coronelismo e das Oligarquias Rurais (1889-
1930)
No final do século XIX a cidade do Rio de Janeiro e as principais capitais brasileiras
experimentavam um considerável crescimento. Milhares de imigrantes chegavam da Europa
em busca de melhores oportunidades de vida. Nessas cidades, o cotidiano era complexo; o
progresso uma realidade. Na esteira dos ideais de progresso do final do século XIX, o Rio de
Janeiro passou por transformações na esfera pública e privada a fim de incorporar ideais
modernos (NEVES, M., 2014). Entretanto, situação oposta era vivida nos sertões e no interior
do Brasil. Ali, prevalecia a lógica do privilégio, do favor e da submissão inquestionável aos
coronéis. Prevalecia um tipo de sociedade visivelmente hierarquizada.
Na República Velha tivemos esses dois cenários distintos: Progresso na capital federal
e marasmo no interior. Euclides de Cunha falou de “dois Brasis, o do litoral civilizado e o do
sertão ainda em plena fase colonial, dois mundos separados não pela natureza, mas por séculos
de evolução histórica e social” (CUNHA, E., 2011, p. 9). As políticas públicas e privadas
27
voltadas para o progresso contribuíram para o surgimento de bolsões de pobreza nas grandes
capitais.
Embora a proclamação da República tenha ocorrido no dia 15 de novembro de 1989 o
republicanismo brasileiro foi oficializado com a publicação do Manifesto Republicano em
1870, em forma de encarte na primeira edição do jornal A República. Os projetos de um
federalismo descentralizado eram articulados por partidos políticos provinciais; o fim do
sistema escravista também foi decisivo para minar os sustentáculos do regime monárquico no
Brasil. Depois da proclamação da República a família imperial foi levada de Petrópolis para o
Paço Imperial onde permaneceram sob custódia e na madrugada do dia 17 foram enviados para
o exílio na Europa (NEVES, M., 2014). A proclamação da República em novembro de 1889
não significou mudanças significativas na estrutura social brasileira, de modo que esse evento
foi incompleto, apesar de reconhecermos sua relevância histórica para Brasil.
Os primeiros anos do regime republicano foram tensos e de muita instabilidade, tendo
em vista que a nova ordem prometida pelos republicanos não se efetivou nos primeiros anos. O
presidente Campos Sales, sucessor do Marechal Deodoro acreditava que a instabilidade
nacional viria mediante o fortalecimento do federalismo, pois, para ele a República seria
governada a partir dos estados. Para que isso se concretizasse Campos Sales fez acordos com
as oligarquias regionais e nesse sistema o coronel era a figura central
Agora, com base no peculiar federalismo da primeira República brasileira, era
possível fazer funcionar a chamada política dos governadores, que garantia ao
governo federal o apoio necessário – traduzido sobretudo no fornecimento de
uma base eleitoral – enquanto este oferecia em troca as verbas necessárias para
a manutenção do prestígio da situação nos estados e municípios e, para casos
de necessidade, o mecanismo da Comissão de Verificação de Poderes,
encarregada de corroborar os resultados eleitorais. Nas raras ocasiões em que
as eleições escapavam das rédeas da situação, a Comissão simplesmente
impedia a titulação de eleitores. Na base do sistema estava a figura do coronel,
dono da vontade dos eleitores (NEVES, M., 2014, p. 39).
As eleições eram o argumento para legitimar o poder, mas não significam a soberania
popular. Talvez não seja exagero afirmar que durante a República Velha o coronel foi o
representante do Estado. As principais oligarquias estavam em São Paulo e Minas Gerais e
foram elas que ditaram as regras do jogo político até 1930. Logo abaixo se destacavam as
oligarquias do Rio de Janeiro, Bahia e Rio Grande do Sul. Essas oligarquias eram compostas
de coronéis que alcançaram a hegemonia política em seus respectivos estados.
28
A Constituição promulgada em 1891 que tinha por objetivo ser uma Constituição
Liberal7 conviveu com práticas políticas oligárquicas. Esse liberalismo oligárquico
(RESENDE, 2014) perdurará até 1930 quando o governo centralizador de Getúlio Vargas
enfraquecerá o coronelismo regional. Os 40 anos seguintes à proclamação da República foram
caracterizados pelo domínio de uma minoria e a exclusão da maioria dos brasileiros dos
processos políticos. Como já referimos anteriormente o federalismo promoveu a
descentralização do poder, o qual foi distribuído entre estados e municípios. Os coronéis
exerceram sua influência nos municípios, ao passo que as oligarquias possuíam um poder a
nível estadual e nacional. Enquanto chefes da política municipal, os coronéis foram elementos
fundamentais no funcionamento do sistema federativo na República Velha; sistema esse
baseado no clientelismo e privilégios para uma elite familiar.
O poder privado do coronel no município deve ser entendido a partir de suas bases de
sustentação: a estrutura agrária latifundiária. A estrutura rural foi usada pelos coronéis para
controlar a população que dependia do trabalho nos latifúndios. Poderia haver mais de um
coronel no município, nesse caso eram comuns disputas entre eles pela hegemonia do poder
local. Muitas dessas disputas eram “resolvidas” através da contratação de milícias armadas. Os
coronéis controlavam a polícia e manipulavam a justiça. Caso autoridades estaduais como
promotores e juízes de direito entrassem em conflito com os coronéis eram removidos de seus
postos. Havia o coronel burocrata que era aquele que assumia cargos no legislativo ou executivo
a nível estadual ou federal; ou também “indicava” afilhados políticos para ocuparem cargos
públicos.
O coronel que controlava o município aceitava o convívio com pequenos coronéis desde
que seus interesses não fossem contrariados (RESENDE, 2014). Esses eram os advogados,
médicos, padres, comerciantes, entre outros que exerciam influência nas regiões distritais do
município. Quando o poder do coronel se ampliava a nível estadual ele passava a integrar as
oligarquias. Essas eram integradas, em sua maioria por coronéis, mas era comum a participação
de engenheiros, médicos e advogados. A oligarquia que controlava o Estado poderia ser
formada por uma pessoa, uma família ou grupos de famílias e era comum selar as alianças
políticas através de casamentos.
7 A abolição da escravatura, em 13 de maio de 1888, põe fim a um processo lento e difícil, que faz ruir a base
social do regime imperial. A abolição e a proclamação da República constituem marcos jurídico-institucionais
que estão na base das questões políticas e sociais a serem enfrentadas pela Assembleia Nacional Constituinte
na esfera da elaboração da primeira Constituição da República. O modelo da Constituição republicana de 1891
é a Constituição dos Estados Unidos da América. Com ele, enquadra-se o Brasil na tradição liberal norte-
americana de organização federativa e do individualismo político e econômico (RESENDE, 2014, p. 93).
29
A relação de dependência ao coronel foi intensificada pela situação precária dos
municípios, os quais não atendiam às necessidades básicas dos cidadãos. Nesse contexto, o
coronel protegia e mobilizava a segurança coletiva, em troca de apoio a seus interesses
particulares. Nessas relações de poder, era estabelecido um tipo de dominação baseada no
respeito, na lealdade e na veneração. Havia uma espécie de consenso em que o trabalhador
sentia que devia retribuir a proteção do coronel. “Não é possível a descoberta de que sua vontade
está presa à do superior, pois o processo de sujeição tem lugar como se fosse natural e
espontâneo” (FAORO, 2000, p. 714).
Entretanto, houve sertanejos que decidiram se insurgir contra esses sistemas de
exploração, com vistas a uma sociedade justa e igualitária. A sociedade brasileira no pós-
abolição preservou e de certa maneira aprofundou seu sistema social hierarquizado e
excludente. Nesse contexto de uma massa de desprivilegados e uma minoria de privilegiados,
grupos de sertanejos se organizaram a fim de lutar contra as estruturas promotoras da exclusão.
Trataremos de dois deles: Canudos e Contestado que também são considerados movimentos
messiânico-milenaristas.
2.4.2 Milenarismo no Sertão: a Comunidade de Canudos
Antônio Vicente Mendes Maciel8, o Antônio Conselheiro foi a principal liderança da
revolta camponesa de Canudos9. Com um bastão na mão, peregrinava de arraial a arraial pelo
interior da Bahia com um tipo de pregação que enfatizava a salvação pelas obras. Independente
que era do Estado e da Igreja, era opositor da ordem social baseada na exploração dos
camponeses e nos grandes latifúndios. Igualitarismo e solidariedade humana eram uma das
temáticas principais de sua pregação. Para ele, era necessário um retorno ao cristianismo
primitivo, de modo que citava em suas prédicas os Evangelhos e textos de a Cidade de Deus de
Santo Agostinho. Antônio Conselheiro tinha um estilo de vida muito próximo do ascetismo,
pois não comia carne e condenava o uso de bebidas alcoólicas; ele se autointitulava um homem
8 O messias brasileiro mais conhecido e estudado foi Antônio Conselheiro, cuja família se celebrizara em lutas
frequentes no interior do Brasil, a luta entre Maciéis e Araújos, no Ceará. O interior do Nordeste era então
percorrido por missionários itinerantes que iam de lugarejo em lugarejo evangelizando, acompanhados por
uma turba de penitentes e romeiros; Antônio Conselheiro foi a princípio um romeiro, sendo provável que tenha
então atravessado o Ceará, em direção à Bahia. Vivia de esmolas, aceitando somente o necessário para o
sustento de cada dia (QUEIROZ, 1965, p. 203). 9 O conflito armado em Canudos aconteceu de 1896 a 1897.
30
inspirado por Deus e exigia submissão e respeito. Quanto ao ascetismo em movimentos
camponeses e operários, Moniz cita as palavras de Engels:
Este puritanismo ascético, esta insistência em renunciar os prazeres e alegrias da vida
representam, de um lado uma restauração do princípio espartano da igualdade contras
as classes dirigentes e, de outro, uma etapa necessária de transição, sem a qual os
setores inferiores são incapazes de se porem em marcha (MONIZ, 1987, p. 31).
Apesar de o movimento em Canudos ter sido uma revolta contra o sistema de exploração
dos camponeses, os primeiros conflitos de Antônio Conselheiro foram com a Igreja Católica.
Pregador independente, Antônio Conselheiro interpretava os textos bíblicos à sua maneira,
atitude essa reprovada pelos sacerdotes da Igreja. Não demorou muito para que ele fosse
considerado um herege. Esse discurso de volta ao cristianismo primitivo igualitário significaria
perda de poder econômico e político da Igreja, tendo em vista que para ela na terra sempre
haveria ricos e pobres. Essa era a vontade de Deus. Desse modo, Igreja deveria apoiar o Estado
na manutenção da lei e na obediência às autoridades. Portanto, a pregação de Antônio
Conselheiro era considerada herética pelo catolicismo hegemônico e, por isso deveria ser
recusada (MONIZ, 1987). Apesar da oposição de sacerdotes católicos o número de seguidores
aumentou e o movimento ganhou projeção nacional.
As experiências extáticas eram comuns no movimento, pois o Conselheiro “entrava em
êxtase para se comunicar com o próprio Deus” (QUEIROZ, M., 1965, p. 204). Antônio
Conselheiro também realizava curas e muitos acreditavam que o simples toque de sua barba
poderia expelir os males das pessoas. Com efeito, elementos extáticos e antidogmáticos serão
uma importante característica da religiosidade do movimento de Canudos.
O arcebispo da Bahia, D. Luiz Antônio dos Santos redigiu uma carta ao presidente da
Província da Bahia, João Capistrano Bandeira de Melo, para que Antônio Conselheiro fosse
contido. Nela, o arcebispo reiterou o caráter subversivo da pregação do líder de Canudos. O
presidente da Província, então, contactou o ministro do Império, Barão de Mamoré e pediu-lhe
que Antônio Conselheiro fosse internado num hospício do Rio de Janeiro.
Entretanto, o barão alegou falta de vaga. Tamanho foi o crescimento do movimento em
Canudos que as autoridades se julgavam incapazes de contê-lo. Para elas, além de subversivo
o movimento era caracterizado por uma religiosidade fundamentada em superstição e
fanatismo. Antônio Conselheiro era acusado de “se autointitular o Espírito Santo” (MONIZ,
1987, p. 89).
31
Antônio Conselheiro percorreu dezenas de cidades e povoados pelo sertão. Um número
expressivo de fiéis o seguia. Não era apenas sua mensagem escatológica que atraía as pessoas,
mas seu ideal de uma sociedade sem humilhação e sofrimento que em breve seria implantada.
Dentre os seguidores de Antônio Conselheiro estavam muitos escravos foragidos e, com a
abolição da escravatura em 1888, muitos ex-escravos também se uniram ao movimento.
Com a autonomia dos municípios na República Velha as Câmaras locais promulgaram
editais relacionados com a cobrança de impostos. Todavia, esses impostos recaíam, em sua
maioria, nas classes menos favorecidas, pois as Câmaras não ousavam cobrar os grandes
proprietários de terras. Ao tomar conhecimento desses editais no interior baiano, Antônio
Conselheiro reuniu o povo, arrancou e queimou os editais na cidade de Bom Conselho como
forma de protesto.
Ao saber do ocorrido o governador baiano Rodrigues Lima enviou um contingente de
policiais com o objetivo de capturar Antônio Conselheiro e acabar com seu bando (MONIZ,
1987). Entretanto, os sertanejos derrotaram os soldados, os quais tiveram que fugir para
Salvador. Esse episódio motivou Antônio Conselheiro a pensar na fundação de uma
comunidade igualitária e sem privilégios. A proclamação da República foi interpretada por
Conselheiro como prenúncio do fim do mundo, ao passo que essa nova ordem era o caminho
para a chegada do Anticristo. Em razão disso, Antônio Conselheiro e seus seguidores
peregrinaram pelo interior do sertão a fim de achar um lugar que seria a “Nova Jerusalém” onde
viveriam até a chegada do Juízo Final. Num dos sermões escatológicos registrados por Euclides
da Cunha o Conselheiro advertia:
Em verdade vos digo, quando as nações brigam com as nações, o Brasil com
o Brasil, a Inglaterra com a Inglaterra, a Prússia com a Prússia, das ondas do
mar D. Sebastião sairá com todo o seu exército. Desde o princípio do mundo
que encantou com todo o seu exército e o restitui em guerra. E quando
encantou-se afincou a espada na pedra, ela foi até os copos e ele disse: Adeus
mundo! Até mil e tantos e dois mil não chegarás! Neste dia quando sair com
seu exército tira a todos no fio da espada deste papel da República (CUNHA,
E., 2011, p. 198).
Dirigiram-se então para o norte da Bahia e fundaram o povoado de Belo Monte que era
uma antiga fazenda chamada Canudos. Ali, as pregações e profecias milenaristas continuaram
e acreditavam num iminente fim do mundo. O povoado cresceu e em pouco tempo já era uma
cidade independente das autoridades civis e eclesiásticas. Nesse lugar, Antônio Conselheiro
almejava o tipo de comunidade onde todos seriam iguais; uma Nova Canaã, a Terra Prometida.
32
Ex-escravos, emigrantes, vaqueiros, camponeses e demais pessoas que se sentiam
exploradas, a maioria buscava refúgio em Canudos. Além da inexistência de cobradores de
impostos e policiais, Canudos também não permitia prostíbulos. O consumo de álcool era
proibido. Os desejos, a avareza e tudo aquilo que impedisse uma vida de santidade deveriam
ser abandonados. Dos discípulos que seguiam o Conselheiro em suas peregrinações as mulheres
eram em maior número do que os homens. Os sertanejos, com seu modo rude, sentiam a
necessidade de que seus filhos recebessem educação formal, ao passo que fora criada uma
escola de alfabetização para as crianças.
Antônio Conselheiro era o líder absoluto dessa nova comunidade a quem todos
respeitavam. Não se discutia sua autoridade. As possíveis contendas que surgiam entre os
sertanejos eram levadas a ele que era o responsável por resolvê-las. As pessoas que compunham
o movimento se consideravam eleitos, separados e seguidores de crenças reveladas por um líder
carismático. Eram raros crimes em Canudos e quando isso acontecia o Conselheiro
encaminhava o acusado para a comarca mais próxima a fim de ser julgado de acordo com a lei.
Em geral, o clima era de paz na comunidade, muito em razão da maneira como os bens eram
produzidos e distribuídos entre todas e todos. O conceito que vigorava era da propriedade
coletiva das plantações, da terra e da pastagem. A escatologia e o Juízo Final eram temas
constantes da pregação de Antônio Conselheiro, entretanto ele queria que “o reino da terra fosse
igual ao reino celeste” (MONIZ, 1987, p. 76). O reino vindouro onde haverá justiça e paz devia
ser paradigmático para um tipo de sociedade sem exploração e igualitária.
Essa visão de uma comunidade igualitária logo começou a despertar o temor dos grandes
proprietários de terras que viviam da exploração camponesa. Caso os ideais de justiça de
Antônio Conselheiro se espalhassem por outras cidades e originassem outros “canudos” o poder
dos latifundiários seria diminuído. Em 1895 o arcebispo da Bahia enviou o Frei João
Evangelhista a Canudos com o objetivo de dissuadir Antônio Conselheiro a terminar com a
comunidade de Belo Monte. Entretanto, a população rejeitou as investidas do Frei João
Evangelhista que teve que deixar a comunidade.
Tendo em vista que um considerável número de camponeses abandonou o trabalho nas
grandes propriedades, os fazendeiros ficaram incomodados, pois seus negócios poderiam ser
prejudicados. Some-se a isso a insatisfação que a comunidade de Belo Monte nutria para com
o regime republicano. Em Canudos não se aceitava a circulação da moeda da República
(QUEIROZ M.,1965), mas apenas a moeda da Monarquia. Portanto, o crescimento da
comunidade desagradou a Igreja, os políticos republicanos e os latifundiários. Esse
descontentamento das autoridades civis e religiosas ocasionou em quatro expedições militares
33
em Canudos. Apesar da resistência, Antônio Conselheiro foi morto e a comunidade foi desfeita
em 1897.
2.4.3 A Revolta Sertaneja do Contestado
A revolta do Contestado foi o maior conflito campesino no século XX no Brasil.
Milhares de pessoas morreram nos confrontos com os militares O referido conflito aconteceu
no planalto catarinense e paranaense entre 1912 e 1916. Nessa região havia muitos monges
peregrinos os quais difundiam a religiosidade popular. Dentre eles, havia um chamado João
Maria. Este, na segunda metade do século XIX teria profetizado a vinda de gafanhotos de aço
que comeriam toda a madeira e dragões que soltariam fogo pelas ventas. O curioso é que no
começo do século XX a empresa Brasil Railway10 recebeu do governo uma concessão para
explorar madeira na região do Contestado.
Já no final do século XIX surgiu outro monge também chamado João Maria. A respeito
dele, dizia-se que após a Guerra do Paraguai passou a peregrinar no sertão entre Rio Grande do
Sul e Mato Grosso a fim de cumprir uma promessa. Para os sertanejos João Maria possuía
poderes especiais de cura. Quando os doentes o procuravam, o monge receitava-lhes um chá de
vassourinha do campo (QUEIROZ, Maurício, 1977). Para os sertanejos o milagre da cura
dependia não do chá, mas no ato do monge em indicar sua ingestão. Também acreditavam que
ao tocar determinados lugares como nascentes de águas ou pedaços de chão onde cresciam
plantas, esses lugares se tornavam sagrados. Os sertanejos também o consideravam um
sacerdote, de modo que o monge realizava batismo e casamentos. Era reconhecido como um
profeta.
A região do Contestado era constituída de muitos caboclos e abundavam as expressões
religiosas com dimensões extáticas. Era comum encontrar curandeiros, benzedeiros, adivinhos
10 Em 1908, no mesmo ano em que desapareceu João Maria e seus crentes passaram a julgar que ele estivesse
encantado no Morro Taió, o engenheiro norte-americano Achilles Stengel, nomeado superintendente dos
trabalhos de construção da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande, montou em Calmon, em plena zona
contestada, e ali pôs em funcionamento o escritório central da obra. Dois anos antes, os trilhos partindo de São
Paulo, haviam chegado a União da Vitória e tinha sido inaugurada uma ponte sobre o Rio Iguaçu. Até aquela
época a concessão da estrada pertencia a uma companhia francesa, mas essa cedera os seus direitos à Brazil
Railway Company, organizada na cidade de Portland, Estados Unidos. Em pouco tempo a Railway, além da
Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande, controlava toda a rede ferroviária gaúcha, geria a Sorocabana, possuía
vultosos interesses na Paulista, na Mogiana e na Madeira-Mamoré, obtinha os direitos da Vitória-Minas, dirigia
a Port of Pará no extremo-norte e a Companhia do Porto Grande do Sul, dispunha de armazéns frigoríficos e
indústrias de papel, empresas pecuárias, madeireiras, de colonização (QUEIROZ, Maurício, 1977, p. 69).
34
e outras práticas sobrenaturais. Os benzedeiros usavam de fórmulas mágicas para curar animais,
enquanto as benzedeiras eram responsáveis pela cura de pessoas. Havia milagreiros que
também eram profetas e exorcistas. Estes realizavam com frequência reunião nas casas a fim
de expulsar os demônios e toda sorte de males. As comunidades sertanejas consideravam essas
pessoas possuidoras de uma graça divina especial e, por isso, gozavam de certo prestígio e
status.
João Maria pregava mensagens apocalípticas, pois segundo ele o fim do mundo estava
próximo. A destruição deste mundo seria “precedida de muitos castigos de Deus, como pragas
de gafanhotos e de cobras, uma epidemia de chagas e uma escuridão que duraria três dias”
(QUEIROZ, Maurício, 1977, p. 61). Suas crenças escatológicas eram anunciadas através de
profecias que indicavam que antes do fim aconteceria uma guerra que causaria a morte e
derramamento de muito sangue. João Maria também dizia que a República era um sistema de
governo demoníaco. Apesar das críticas ao modelo republicano, os coronéis não se sentiram
incomodados com João Maria e o consideravam mais um vagabundo.
A partir de 1910 não se ouviu mais falar do monge João Maria, tendo em vista que foi
considerado desaparecido. Todavia, em 1912 surgiu na cidade de Campos Novos, interior de
Santa Catarina, um curandeiro chamado José Maria. Sua fama se espalhou rápido, tendo em
vista que muitos milagres de cura lhe foram atribuídos. Não demorou muito para que caravanas
de doentes viessem à procura do curandeiro José Maria. Esse monge se “autodenominava ser o
irmão do João Maria, logo fazia parte de uma linhagem sagrada” (HERMANN, 2014, p. 150).
O monge José Maria conseguiu reunir muitos discípulos e se instalaram em Taquaraçu, cidade
próxima a Curitibanos. Essa comunidade possuía suas cerimônias religiosas, mas também um
aparato paramilitar. Em seus sermões, José Maria pregava contra a República e pedia a volta
da Monarquia.
A maioria dos adeptos do monge era constituída de pequenos agricultores que viviam
da plantação do milho e da criação de gado. Havia também negros, italianos, alemães poloneses,
paraguaios, argentinos e uruguaios. Não se registravam desavenças relacionadas com a cor da
pele. As mulheres, além dos trabalhos domésticos, também trabalham na agricultura no cultivo
de milho e feijão; raramente alguma delas ia para os campos de batalha. Todavia, existiam as
virgens inspiradoras, as quais iam à frente do grupo para guiá-los na luta (QUEIROZ, Maurício,
1977). Quando José Maria morreu, eram elas que intermediavam o contato entre o monge e
seus adeptos.
Havia outras comunidades menores que estavam ligadas ao centro de comando liderado
pelo monge, de modo que um dos pré-requisitos para ser aceito era se declarar crente do monge.
35
Os redutos maiores foram Taquaraçu, Caraguatá, Santa Maria e Tamanduá.
Mas além desses verdadeiros centros mais ou menos fortificados, havia grande
número de menores, espalhados pelo mato, e servindo em geral de defesa ou
de guarda-avançada aos outros: Santo Antônio, Pedras Brancas, Corisco,
Timbozinho, Perdizes Grandes, etc (QUEIROZ, Maria, 1965, p. 253).
Essa comunidade religiosa em Taquaraçu despertou a preocupação do coronel Francisco
de Albuquerque, chefe político de Curitibanos. O coronel Chiquinho, como era chamado,
enviou uma carta ao governo do estado na qual dizia que a comunidade em Taquaraçu era
desordeira e antirrepublicana. Desse modo, solicitava a intervenção militar no local. Todavia,
José Maria se antecipou e o grupo se deslocou para o município de Palmas, no Paraná, onde
prosseguiram com suas atividades. Dia após dia mais pessoas das regiões vizinhas se uniam ao
grupo.
Para o governo paranaense esse ato consistiu em invasão do território do Paraná por
catarinenses. Desse modo, enviou um aparato policial a fim de expulsar o monge e os demais
sertanejos de Palmas. Nesse confronto José Maria foi morto. No final de 1913 o grupo voltou
a se agrupar em Taquaraçu, tendo Euzébio Ferreira dos Santos como líder. Sua neta Teodora
tinha experiências extáticas e numa de suas visões disse que “viu o monge no céu, o qual lhe
ordenara que fundasse uma Cidade Santa em Taquaruçu” (QUEIROZ, Maurício, 1977, p. 250).
Esse lugar seria a Nova Jerusalém e ali os adeptos deveriam esperar o retorno do monge José
Maria.
Mais uma vez o coronel Francisco de Albuquerque intercedeu junto ao governo do
estado para que fosse realizada uma intervenção na comunidade. Em dezembro de 1913 quando
os soldados chegaram a Taquaruçu foram surpreendidos pela resistência armada dos sertanejos
e abandonaram o local. Entretanto, dois meses depois aconteceu nova intervenção, sendo que
desta vez os militares usaram metralhadoras e canhões. Sem condições de manter a resistência
os adeptos de José Maria fugiram de Taquaraçu e se estabeleceram em Caraguatá. O governo
federal decidiu intervir mais uma vez. O general Mesquita, o mesmo que havia comandado a
destruição de Canudos, foi nomeado chefe da expedição militar para por fim à comunidade
sertaneja. Os últimos resistentes foram derrotados pelos militares em agosto de 1916.
No limiar do período republicano brasileiro surgiu no Nordeste brasileiro o movimento
religioso popular liderado pelo padre Cícero Romão Baptista 11. Poderíamos chamar esse
movimento de messiânico-milenarista? Analisemos. O início da República é marcado por um
11 Padre Cícero nasceu na região do Crato em 1844. Foi ordenado padre em 1870 e dois anos depois chegou a
Juazeiro do Norte.
36
enorme contingente de pessoas marginalizadas. O monopólio da terra deflagrou uma série de
conflitos rurais no Brasil ao longo da história republicana e o movimento de sertanejos em
Juazeiro teve na religião popular a expressão de luta contra a exclusão social. Foi através do
catolicismo popular que os sertanejos construíram sua identidade, que era ao mesmo tempo
autônoma e marginal (HERMANN, 2014).
O Padre Cícero, ainda na época do seminário, já tinha certas tendências místicas, ao
passo que teria recebido revelações através de sonhos. Sua ida para Juazeiro é atribuída a um
sonho que teria tido onde Cristo lhe apareceu junto com 12 homens. Em março de 1889, conta-
se que Padre Cícero celebrava uma missa em Juazeiro, quando uma beata solteira de 28 anos
chamada Maria de Araújo desmaiou depois de ter ingerido a hóstia. Momentos depois essa
hóstia teria se transformado em sangue em sua boca. Esse ocorrido foi interpretado como sendo
o sangue de Cristo e, por conseguinte, um milagre. Todavia, tal ato foi desaprovado pela
Sagrada Inquisição Romana. Mesmo assim “o aumento das peregrinações ao lugar
transformaram Juazeiro em um centro potencialmente explosivo e, em diversos momentos, fora
de controle” (HERMANN, 2014, p. 135).
O milagre trouxe outros desdobramentos para Juazeiro. Mulheres que teriam
presenciado a transformação da hóstia em sangue começaram a ter experiências de êxtase como
revelações, sonhos e visões, nos quais diziam que o milagre era o prelúdio do fim do mundo;
mas antes disso a fé católica estaria sendo restaurada. Como sacerdote e político o Padre Cícero
realizou muitas atividades sociais, além do pacto dos coronéis, no qual intencionava o fim dos
conflitos armados entre os fazendeiros e não dar apoio aos cangaceiros. Neste contexto,
Juazeiro era a Nova Jerusalém e o padre Cícero apóstolo e profeta. Estes são aspectos
importantes de movimentos messiânico-milenaristas.
Num documentário produzido pela TV Assembleia do Ceará um dos entrevistados disse
que “Padre Cícero representa para os romeiros uma das santíssimas trindades no céu, na
expressão dele. Para outros um dos doze apóstolos e para os videntes um daqueles que fazem
parte de um dos cinco dedos de Jesus Cristo” (https://www.youtube.com/watc. Acesso em
09/03/2015). Até aqui, percebe-se que a linguagem mítica é um componente importante nos
milenarismos. Mas isso não significa que a referida linguagem é irracional. Ela apenas tem uma
lógica e dinâmica própria, tendo em vista que a linguagem mítica tem elementos fundados em
racionalidades. Talvez uma pergunta aqui seja necessária: os grupos religiosos de mentalidade
rural são mais propensos a crenças milenaristas, ao passo que os grupos religiosos de
mentalidade urbana estabelecem uma dialética diferente com as especulações escatológicas,
37
sem deixar, é claro, de falar do paraíso perdido? Há elementos que reforçam esta ideia, de modo
que ela será discutida mais adiante.
2.5 O MILENARISMO ASSEMBLEIANO BRASILEIRO
As crenças milenaristas sempre estiveram presentes nas teologias do pentecostalismo
brasileiro. Reconhecemos que a sistematização dessas crenças nas Assembleias de Deus do
Brasil é herança de tradições teológicas europeias e estadunidenses. Encontramos discursos
escatológicos no hinário, na mídia impressa e eletrônica, nas pregações dos pastores e em livros
publicados pela Casa Publicadora das Assembleias de Deus (CPAD). Entretanto, esse
milenarismo das ADs no Brasil é uma herança apenas das teologias europeias e estadunidenses?
O milenarismo assembleiano não teria influência dos milenarismos que acabamos de descrever?
Acreditamos que sim. Além disso, pensamos que esse assembleianismo das primeiras décadas
estabeleceu uma relação dialógica com a cultura e a religiosidade popular brasileira.
Reconhecemos que os movimentos que ocorreram na Rua Azusa e em Chicago foram
marcantes para o Pentecostalismo. Todavia, a influência norte-americana no assembleianismo
brasileiro inicial é mínima se comparada com as influências da religiosidade popular e da
eclesiologia sueca. Não temos a pretensão de comparar os milerarismos populares do Brasil
com o milenarismo pentecostal, tendo em vista que um método comparativo como esse pode
esconder algumas armadilhas. Entretanto, iremos apontar alguns elementos comuns entre eles.
Interessa-nos aqui não apenas descrever as crenças escatológicas das Assembleias de
Deus, mas sua relação com a posição e ação política. Além disso, identificar em que medida a
mentalidade ou as mentalidades milenaristas se articulam com o interesse ou não na
participação política de assembleianos. Defenderemos a tese de que desde o primeiro período
que estudamos - 1930-1945 - as Assembleias de Deus têm posicionamentos políticos. Além
disso, a crença escatológica não foi e ainda não é o elemento mais importante que determina o
referido posicionamento.
Questionamos a tese de uma alienação política dos assembleianos nas primeiras décadas
pelo fato de adotarem uma mentalidade milenarista e escatológica. Quase sempre se diz que os
pentecostais se afastavam das questões político-sociais em razão de suas crenças escatológicas
e milenaristas. Gostaríamos de pensar de maneira inversa: eles eram excluídos das questões
político-sociais e por isso tinham uma mentalidade escatológica e milenarista. O discurso
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escatológico sobre a céu é concebido a partir de realidades da vida concreta, pois “quem fala
sobre o céu fala, em termos celestes, sobre a terra” (HINKELAMMERT, 2012, p. 5).
Entre 1930 e 1945 foram escritos 206 artigos no jornal Mensageiro da Paz, relacionados
com a temática da escatologia, sociedade/mundo e política. Abaixo, os resultados numéricos da
tabulação que fizemos:
Quadro 1 - Artigos analisados na fonte primária
Temáticas Quantidade %
Retorno de Cristo 75 artigos 36,00%
Sociedade/Mundo 129 artigos 62,63%
Política/Políticos/Eleições 2 artigos 0,97%
Total 206 artigos 100%
Fonte: Jornal Mensageiro da Paz. Órgão Oficial das Assembleias de Deus
que teve periodicidade mensal entre 1930 e 1945.
Regina Novais em sua pesquisa sobre religião e política na década de 70 lembra que
“enquanto as CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) politizavam categorias religiosas,
pentecostais religiogizavam categorias políticas e entravam em lutas sociais em nome de Jesus”
(NOVAIS, 2002, p. 78). A conversão ao pentecostalismo significava certas rupturas, muito
embora tais rupturas preservem dimensões “daquilo que se deixou para trás”; ruptura pessoal
- a experiência pessoal de aceitar a Cristo como salvador faz com que o convertido sinta-se
diferente dos outros “pela capacidade de experimentar a temporalidade da salvação hoje”
(PASSOS, 2005a, p. 37); ruptura social - o grupo pentecostal se considera escolhido por Deus,
ao passo que é preciso ser diferente do “mundo” (PASSOS, 2005a, p. 67). Esse ser diferente do
mundo nem sempre quer dizer desprezar o mundo, mas sim rejeitar certos valores sociais e
culturais; há ainda a ruptura com a religião católica - entretanto, ao mesmo tempo em que se
abandona e rejeita essa religião se preserva alguns de seus elementos, principalmente os
relacionados com o catolicismo popular.
Gedeon de Alencar (2013) destaca que as ADs, nesse primeiro período, são um
movimento, tendo em vista não possuírem personalidade jurídica entre outras características de
uma instituição burocrática. A igreja crescerá pelo trabalho de suecos e, sobretudo, pela atuação
de migrantes nordestinos. Com efeito, as ADs têm em sua constituição essas duas principais
influências: sueca e nordestina. O Brasil, nesse primeiro período é rural, logo se configurou um
39
assembleianismo de mentalidade rural (ALENCAR, 2013). Nas décadas posteriores o país
passará por rápidos processos de urbanização e industrialização, de modo que a transição do
Brasil rural para o Brasil urbano será um dos fatores primordiais para o crescimento das ADs.
No contexto da implantação do pentecostalismo no Brasil, a religião católica
predominava de maneira absoluta e sua vertente popular estabeleceu afinidades com a
religiosidade pentecostal. Para Décio Passos foi “uma afinidade involuntária, dada no encontro
efetivo e gradual das duas configurações religiosas que se escolhem ativamente e se articulam,
criando uma figura nova” (PASSOS, 2005a, p. 58). Essa afinidade também diz respeito a
aspectos do milenarismo católico-popular? Vejamos algumas semelhanças entre o
pentecostalismo e os movimentos de catolicismo popular nas primeiras décadas do século XX.
O aspecto popular. Tanto a religiosidade católica popular como o assembleianismo se
desenvolveram a partir das práticas populares; cresceram a partir de classes subalternas e ambas
tiveram expressiva adesão de nordestinos-sertanejos e caboclos. Os movimentos messiânico-
milenaristas no Brasil não estiveram distantes no tempo e no espaço em relação ao
pentecostalismo, principalmente no Nordeste brasileiro, onde em 1914 as ADs já haviam
chegado.
Movimento. Muito embora as ADs tenham adotado, nesse primeiro período, o modelo
da Suécia de igrejas livres sem muita preocupação com questões burocráticas e institucionais,
o caráter de ser um movimento com lideranças carismáticas é semelhante aos movimentos
milenaristas de matriz católico-popular.
Experiências religiosas extáticas e crenças populares. As experiências extáticas como
profecias, sonhos e revelações estão presentes em ambos os movimentos, bem como crenças
populares relacionadas a curas e na resolução de outros problemas do cotidiano.
Mentalidade Rural. Como já dito anteriormente, o Brasil quando da implantação das
ADs é um país rural. É também no Brasil rural que as religiosidades católicas populares
encontraram terreno fértil. Décio Passos (2005b) já falou dos “resquícios” da religiosidade
popular católica no pentecostalismo. Entre esses resquícios não haveria também dimensões do
milenarismo? Há indícios para que possamos responder de maneira afirmativa essa pergunta.
Mentalidade Milenarista. Os movimentos messiânico-milenaristas do Brasil têm
mentalidades milenaristas de descontentamento popular e de crítica social. Se partirmos do
pressuposto de que há “resquícios” dessas crenças escatológicas no pentecostalismo, que tipo
de mentalidade milenarista foi adotado pelo assembleianismo no primeiro período? De início,
questionamos a ideia de fuga do mundo. Por outro lado, poderíamos afirmar então que esse
assembleianismo teve um milenarismo de descontentamento popular? Essa análise será
40
realizada no próximo capítulo. Mesmo assim, vejamos alguns aspectos teológicos do
milenarismo das ADs.
Há certo padrão nos grupos sociorreligiosos no que diz respeito às crenças escatológicas.
Descreveremos as características do milenarismo assembleiano brasileiro a partir das categorias
de Norman Cohn (COHN, 1996, p. 11) as quais são: coletiva, terrena, iminente, total e
miraculosa.
Coletiva. No sentido de que o novo mundo, o paraíso terrestre será destinado às pessoas
que juntas usufruirão das benesses da igualdade, justiça e paz. Esse é um traço comum dos
movimentos milenaristas, a ideia de comunitarismo, onde aqueles que sofreram ou foram
oprimidos terão sua dignidade restaurada dentro de uma comunidade.
A mensagem a todas as igrejas (Ap 3.21,22) indica que os crentes provenientes
da Era da Igreja que permanecem fiéis, sendo vencedores. Além dos
vencedores provenientes da Era da Igreja, João viu almas, ou seja pessoas que
teriam sido martirizadas. Esses dois grupos ficaram juntos e reinarem com
Cristo durante os mil anos. Será um período de paz e bênçãos, durante o qual
prevalecerá a justiça (HORTON, 1997, p. 639).
Terrena. No sentido de que o período de plena paz e justiça será vivido dentro do mundo
e não no céu. A doutrina escatológica das ADs diz isso. É no paraíso terrestre que os crentes
viverão. A Nova Jerusalém descerá do céu e será implantada neste mundo. Mais uma vez vemos
aqui uma fala mítica e dialética da destruição e recriação.
Essa cidade, o lar eterno dos redimidos e a habitação de Deus, é a Nova
Jerusalém que João viu, numa visão descendo do céu para a nova terra. A
morada e o trono de Deus estarão com o seu povo na terra (Ap 22.3). Isso
significa que sempre haverá uma terra, embora a atual venha a ser substituída
por uma nova (HORTON, 1997, p. 644).
Iminente. Assim como faziam no cristianismo primitivo as comunidades de crentes
esperam que a chegada do paraíso terrestre chegue em breve; parece haver certa urgência em
determinados momentos. Em situações de cataclismas, de mortes em massa, de guerras e outros
desastres, emerge do subsolo um imaginário de grupos sociorreligiosos milenaristas a ideia de
que o fim de um tipo de mundo está ainda mais próximo.
Total. Tudo será restaurado a um estado de plena perfeição. Os ecossistemas e toda a
ordem cósmica estarão em ordem.
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O alvo e expectativa finais da fé do NT é um novo mundo, transformado e
redimindo, onde Cristo permanece com seu povo e a justiça reina em santa
perfeição. Para apagar todos os sinais do pecado, haverá a destruição da terra,
das estrelas e galáxias. O céu e a terra serão abalados. A terra renovada se
tornará a habitação dos homens e de Deus (BIBLIA DE ESTUDO
PENTECOSTAL, 1995, p. 2010).
Miraculosa. Essa implantação do paraíso terrestre se dará por intermédio de uma força
sobrenatural, pois “o Reino milenar não virá através de esforços humanos” (HORTON, 1997,
p. 627). Portanto, desde o início, o milenarismo assembleiano brasileiro não leva em
consideração os processos revolucionários ou a luta armada para a efetivação do paraíso
terrestre.
Ao analisar o milenarismo pentecostal André Corten (CORTEN, 1995, p. 110) chamou
a atenção para o caráter violento dessa crença, pois fala de destruição e morte. Entretanto, a
violência parece ser um componente dos grupos sociorreligiosos de mentalidade milenarista.
Mas não seria um tipo de violência como reação a uma ordem opressiva e injusta? Nessas
narrativas escatológicas pentecostais parece sempre haver uma inversão de papéis sociais:
quando os grandes e opressores serão condenados, enquanto os crentes serão recompensados.
2.6 CONCLUSÃO
As crenças milenaristas estão quase sempre relacionadas com grupos subalternos,
embora elas também estejam presentes, mesmo que de forma secularizada, nos ideais de
progresso. Bloch estabeleceu relações entre milenarismo e utopias políticas e viu na guerra dos
camponeses alemães uma das gêneses das doutrinas socialistas. Seja na crença num reino de
mil anos literal ou num período de tempo indeterminado, os grupos que adotam mentalidades
milenaristas anseiam por um mundo de paz, igualdade e justiça. Até aqui, além de
caracterizarmos o milenarismo, analisamos grupos sociorreligiosos como os já citados
camponeses alemães do século XVI, além dos sertanejos e caboclos brasileiros na virada do
século XX; em todos eles, as crenças milenaristas imergiram do subterrâneo de seu imaginário
e foram propulsoras de revoluções sociais.
Reconhecemos também que há grupos que adotam mentalidade milenarista de
descontentamento popular mesmo que isso não resulte em práticas revolucionárias ou de
mudança radical de uma realidade opressora, principalmente quando se trata de grupos
42
subalternos que não dispõem de instrumentos para realizar as revoluções. Neste capítulo, nossa
intenção ao apresentar alguns elementos comuns entre os grupos sociorreligiosos do
catolicismo popular brasileiro com o pentecostalismo foi tentar perceber alguns “resquícios” do
milenarismo popular católico no assembleianismo inicial. É evidente que o pentecostalismo
brasileiro, a partir de suas crenças milenaristas não realizou uma revolução social no Brasil nas
primeiras décadas. Mesmo assim não relacionaremos as crenças escatológicas do
assembleianismo com alienação política ou fuga do mundo. Ter uma mentalidade escatológica
de cunho milenarista não significa, necessaiamente descompromisso com questões políticas e
sociais; ao contrário, acreditamos inclusive que é preciso resgatar o horizonte escatológico da
política.
Sendo assim, entendemos ser possível discutir posição e ação política a partir da
escatologia, tendo em vista que visões escatológicas não estão relacionadas com alinenação ou
descompromisso social. Discurso sobre o céu é discurso sobre a terra. Sendo assim,
analisaremos a ação política das ADs, tendo em vista que defendemos a tese de que desde 1930
– início de período que pesquisamos – os assembleianos têm posicionamentos político-sociais.
Portanto, nossa análise não parte do pressuposto de alienação no primeiro período, tampouco
de engajamento político no segundo.
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3 POSIÇÃO E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA NO ASSEMBLEIANISMO
BRASILEIRO (1930 A 1945)
3.1 INTRODUÇÃO
A década de 1930 começa com um movimento militar que conduziu o gaúcho Getúlio
Vargas à presidência da República no Brasil. Centralizador, Vargas intenciovana minar o poder
das antigas oligarquias que dominavam a país até então. O período em que Getúlio governou o
país é dividido nas seguintes fases: 1930 a 1937 foi o período da República Nova, que é
subdivido em: Governo Provisório (1930-1934) e Governo Constitucional (1934-1937);
enquanto que o segundo período, que vai de 1937 a 1945 foi a Ditadura do Estado Novo.
Durante o governo getulista houve significativas mudanças políticas, sociais e econômicas tanto
no Brasil como no restante do mundo.
A década de 1930 também foi importante nas Assembleias de Deus (=ADs), pois foi
nesse período que os brasileiros passaram a ter maior participação na liderança da Igreja, muito
embora os suecos ainda tenham permanecido como pastores das principais igrejas do país. Os
missionários escandinavos foram importantes não apenas na implantação das ADs, mas
também na construção da identidade da denominação. Um dos elementos mais significativos
dessa identidade nesse período foi o reforço da cultura da marginalização social. Foi no ano de
1930 que se deu início à circulação do jornal Mensageiro da Paz. É por intermédio dele que
analisaremos a posição e participação política do assembleianismo brasileiro. Nossas análises
44
seguirão três categorias temporais de Giorgio Agamben (2006): tempo profano, tempo
escatológico e tempo messiânico.
Na categoria de tempo profano (chronos) analisaremos em que medida houve posição e
participação das Assembleias de Deus durante esse período. Veremos que dentro desse recorte
histórico que analisamos há posições no assembleianismo brasileiro, mesmo com a ênfase no
discurso escatológico do iminente fim do mundo. Acreditamos que as brasileiras e brasileiros
de pertença pentecostal não foram apolíticos, mesmo que a maioria delas e deles não tenham se
envolvido com política partidária.
Quanto discutirmos o tempo escatológico, veremos a relação dele com a posição e
participação política do assembleianismo brasileiro. Seguimos tanto Agamben como
Hinkelammert (2012, p. 145), para quem a “fala sobre o céu é uma fala sobre e terra”. Sendo
assim, relacionamos concepção escatológica não como fuga do mundo ou da realidade, mas
com resistência e contestação social.
Finalizaremos o capítulo com análises da posição e participação política das ADs a partir
do tempo messiânico (tempo que nos resta). Faremos isso com uma análise do êxtase e de
formas de ascetismo, pois acreditamos que há, no interior dessas experiências religiosas,
dimensões de resistência e crítica social. Nossas análises querem demonstrar que assembleianos
desse período são sujeitos políticos e fazem crítica social a partir de suas crenças; seus corpos
são políticos.
Com tais reflexões objetivamos discutir que já nesse período há posição política nas
Assembleias de Deus, desse modo questionamos a ideia de um apoliticismo. Muitos dos
discursos escatológicos estiveram relacionados com resistência e empoderamento discursivo de
homens e mulheres subalternos e com pertença pentecostal.
3.2 O GOVERNO GETÚLIO VARGAS: POLÍTICA E SOCIEDADE (1930-1945)
O movimento político de 1930 em que Getúlio Vargas assumiu a presidência da
República deu início a um período na história brasileira que seria caracterizado por reformas,
repressões, contrarreformas e conflitos armados como tentativa de fazer com que o país
deixasse sua condição de “atrasado” e “subdesenvolvido” (MOTA, 2015, p. 613). A referida
Revolução também inaugurará a transição da hegemonia dos grupos econômicos e políticos do
campo (principalmente os de São Paulo e Minas Gerais) para os da cidade.
45
A crise mundial de 1929 atingiu a exportação das oligarquias brasileiras, sobretudo de
café. A quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque em outubro de 1929 fez com que a produção
industrial caísse pela metade e o capitalismo enfrentasse uma grave crise. Vigente desde a
Independência, o sistema agrário-exportador caiu em ruínas, de modo que a crise afetou toda a
sociedade brasileira, em especial a classe trabalhadora. Boa parte dos trabalhadores rurais ficou
sem trabalho, de modo que esse fato impulsionou as imigrações do campo para a cidade.
Entretanto, elas aconteceram não apenas do Nordeste para o Sudeste ou para a Amazônia
(MOTA, 2015).
Famílias inteiras se deslocavam de Minas, do sertão baiano e até mesmo do Sul com
destino às grandes cidades, sendo as principais Rio de Janeiro e São Paulo. Esse movimento de
pessoas perambulando pelo sertão, serrado e campos foi muito bem retratado por Graciliano
Ramos em Vidas Secas. Nesses primeiros anos da década de 1930 o Brasil se tornou aos poucos
semi-industrializado (MOTA, 2015). O campo foi sendo substituído pela cidade e aumentou o
número de brasileiras e brasileiros que deixavam o meio rural com destino aos centros urbanos.
Nesse momento aconteceu a transição da hegemonia europeia (inglesa) para a
hegemonia norte-americana, o que promoveu a ascensão de novas elites políticas e econômicas.
Ainda nos anos 20 a cidade de Paris tornou-se uma referência mundial no que diz respeito à
intelectualidade nas cidades. O livro de Ernest Hemingway Paris é uma festa, escrito no final
dos anos de 1950, cobre os anos de 1921 a 1926 em que a sociedade parisiense era para ele um
modelo de intelectualidade e cultura. O diretor de cinema Woody Allen, em seu filme Meia
noite em Paris, retratou esse momento áureo da intelectualidade francesa, que inclusive exerceu
influência no Brasil, em especial na cidade do Rio de Janeiro, talvez a principal representante
da Belle Époque em terras brasileiras.
Pintores, escritores, músicos, atrizes, atores, filósofos, todos queriam estar em sintonia
com a festa intelectual que acontecia em Paris. Entretanto, é bom lembrar que nos anos 20 havia
pelo menos dois “Rio de Janeiro”: o da Belle Époque e o do subúrbio e exclusão; esse último
foi bem retratado pelo escritor negro e carioca Lima Barreto, principalmente em seus livros Os
Bruzundangas, Diário Intimo e Clara dos Anjos. Na esteira desse momento de efervescência
cultural também há mudanças no capitalismo mundial, o que é retratado no romance O grande
Gatsby de 1925.
O presidente norte-americano Franklin Roosevelt com seu programa New Deal (novo
pacto) propôs uma intervenção maior do Estado na economia, com intenção de “civilizar” o
capitalismo liberal. Com as medidas adotadas os Estados Unidos resolveram o problema da
crise e se estabeleceram como o novo centro da economia mundial. Em escala menor o governo
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Getúlio Vargas adotou medidas semelhantes aos norte-americanos. O liberalismo econômico
foi abandonado de modo que o governo passou a intervir em todas as áreas da vida dos
brasileiros e brasileiras. Se de um lado, os Estados Unidos adotaram o New Deal, na Europa
surgiu o fascismo. Os fascistas italianos eram contra os ideais marxistas de luta de classes, de
modo que preferiram a união dos trabalhadores com os capitalistas sob a direção do Estado
(MOTA, 2015).
Getúlio Vargas chegou ao poder nesse contexto “de conflitos entre Estados-nação com
ideologias nacionalistas radicais, sobretudo Estados-nação de origem recente, como Itália e a
Alemanha” (MOTA, 2015, p. 626). O período de 1930 a 1937 pode ser chamado de República
Nova, que é também subdivido em duas fases: Governo Provisório (1930-1934) e Governo
Constitucional (1934-1937); enquanto que o segundo período, que vai de 1937 a 1945 foi a
Ditadura do Estado Novo.
Centralizador, o gaúcho Getúlio Vargas foi a principal liderança do Movimento de 1930
e comandou um novo sistema de poder que uniu as ideias reformistas de uma burguesia liberal
e conservadora com “práticas neocoronelísticas e burocráticas na máquina do Estado,
mobilizador das aspirações populares do mundo do trabalhismo” (MOTA, 2015, p. 615).
Embora seja caracterizada como revolução, ela não operou mudanças radicais e significativas
no que diz respeito aos sistemas de exclusão e opressão no Brasil, muito embora seja
reconhecida a política getulista com vistas ao aprimoramento das relações de trabalho, do
sistema educacional e o desenvolvimento de uma indústria de base.
Se houvesse, nesse período, uma escala que mensurasse as relações de subalternidade,
mulheres negras, homens negros e mulheres brancas seriam as pessoas menos “sujeitos” da
sociedade brasileira (sujeito como categoria política daquele que tem voz, que exerce sua
cidadania). São exatamente estes que num futuro próximo formariam o grupo majoritário do
assembleianismo brasileiro. No que diz respeito aos negros e às negras as relações de
preconceito racial eram legitimadas pelo Estado. O então chefe da Polícia, Batista Lusardo,
fundou o Laboratório de Antropologia Criminal. O referido centro de pesquisa estudava as
relações entre crime e o biótipo de negros (NETO, 2013).
Quem dirigia o centro era o médico Leonídio Ribeiro. Suas pesquisas eram baseadas no
livro do italiano Cesare Lombroso, O homem delinquente, o qual defendia que bandidos
poderiam ser identificados por suas características físicas como o tamanho dos lábios, do nariz
e do crânio. Essa pesquisa ficou conhecida como teoria lombrosiana e foi usada em muitos
países como práticas públicas de branqueamento da população com vistas ao
“aperfeiçoamento” da raça (NETO, 2013, p. 31). Em 1933 o idealizador do instituto, Batista
47
Lusardo, recebeu o Prêmio Lombroso do governo italiano. Os negros e negras no pós-
abolicionismo continuaram a viver num estado de vida nua e permanente exceção no Brasil 12.
Os ex-escravos e seus descendentes enfrentaram situações difíceis tanto nos centros
urbanos como nas atividades rurais nos períodos posteriores ao fim da escravidão. Com exceção
dos ex-escravos com algumas qualificações específicas - como cozinheiros e empregadas
domésticas – a maioria dos libertos estava em desvantagem para competir, principalmente com
os estrangeiros nos centros urbanos. No campo a situação também era difícil, pois o governo
brasileiro desde o final de século dezenove já pagava as passagens para os imigrantes virem
trabalhar nas lavouras brasileiras (LAGO, 2014).
Milhares de estrangeiros foram subsidiados com dinheiro público. Além de receberem
subsídios do governo federal e estadual, os imigrantes que vieram trabalhar nas fazendas de São
Paulo – nas fazendas onde outrora escravos trabalhavam – tinham outras garantias como: “[...]
despesas iniciais para chegar e estabelecer-se nas fazendas de café. Ali, cada uma das famílias
de colonos recebia uma moradia, um lote de terra para cultivar gêneros alimentícios e alguma
terra para pasto” (LAGO, 2014, p. 159).
Um fenômeno sociológico que ocorreu nesse período pós-abolicionista era de que, como
os homens negros tinham dificuldades de encontrar emprego, seja no campo ou nos centros
urbanos, muitos deles passaram a depender dos rendimentos de suas companheiras. A maioria
delas havia trabalhado como lavadeiras, cozinheiras, costureiras e empregadas domésticas.
Com a expansão dos centros urbanos houve um aumento da demanda por essas ocupações, as
quais foram preenchidas, em sua maioria pelas mulheres negras. Em muitas situações era a
única fonte de renda da família. Assim, há uma relação direta entre escravidão e emprego
doméstico13. Homens negros e mulheres negras com vida nua, na transição do Brasil rural para
o Brasil urbano ocuparam os subúrbios e favelas nas grandes cidades. E muitos deles aderiram
ao pentecostalismo.
3.2.1 O Sufrágio Universal na Década de 1930
12 Agamben também introduz o termo tanatopolítica, tendo em vista que o soberano tem o poder de decidir quais
vidas merecem ser vividas. São pessoas insacrificáveis, porém matáveis (AGAMBEN, 2012a, p. 87).
13 Foi apenas em 2013 com a promulgação da “PEC das Domésticas” que as empregadas domésticas passaram
a ter os mesmos direitos dos trabalhadores rurais e urbanos.
48
Com o fim da Primeira Guerra Mundial houve aumento no número de democracias
representativas; entretanto, com a ascensão do fascismo o referido número voltou a cair. O
sufrágio universal para homens e mulheres instaurado na Alemanha em 1919, por exemplo, foi
abolido por Hitler em 1933. É só com o fim da Segunda Guerra Mundial, que de fato haverá
restauração das democracias representativas em várias partes do mundo. Para citar alguns
exemplos a França adotou o sufrágio universal em 1944; a Itália em 1946; o Japão em 1952; e
os Estados Unidos em 1965, quando foi permitido aos negros votarem (KEUCHEYAN, 2015,
p. 14).
Na história contemporânea três critérios foram usados quando se tratava de exclusão de
votos: classe, gênero e cor da pele. Por muito tempo predominou a ideia de que política é para
homens brancos ricos. Foram: a existência e a mobilização dos movimentos populares que
historicamente reivindicaram a ampliação do sufrágio universal. Entretanto, os movimentos
populares, por si só, não conseguem promover a extensão das democracias representativas. De
acordo com Reucheyan divisões no seio das elites e os desdobramentos das guerras (sobretudo
as derrotas militares) foram elementos importantes para restauração do sufrágio universal
(KEUCHEYAN, 2015).
A reinvindicação dos movimentos populares para extensão do sufrágio universal se deu
a partir da dependência e aliança com certas elites. Isso aconteceu com o voto feminino. Além
da pressão exercida pelos grupos feministas, classes dirigentes viram que o voto das mulheres
poderia lhes ser favorável em países católicos, pois acreditavam que as mulheres seguiriam as
recomendações do clero; desse modo as pressões vindas “de baixo” estariam de acordo com
certos interesses vindos “de cima” (KEUCHEYAN, 2015, p. 15).
Em 1930 Vargas institui uma comissão que ficou responsável pela elaboração de um
novo Código Eleitoral, de modo que em 1932 o referido código foi concluído. Várias
modificações foram introduzidas no processo eleitoral brasileiro, dentre elas o direito ao voto
às mulheres. Na América Latina o Brasil foi o segundo país a estender esse direito, ao passo
que em 1929 o Equador já havia feito isso (NICOLAU, 2002). Em outros países as mulheres
conquistaram o direito ao voto em datas posteriores ao Brasil: França (1944), Itália e Japão
(1946), Argentina e Venezuela (1947), Bélgica (1948), México (1953), Suíça (1971) e Portugal
(1974).
Nas eleições ao Congresso Nacional em 1933, pela primeira vez foram estabelecidas
punições para aqueles que não se alistassem para votar. Mesmo assim, menos de 4% da
população brasileira se cadastrou. Nesse período também foi criada a Justiça Eleitoral,
responsável por todo o processo das eleições. Outra novidade introduzida era de que os
49
candidatos deviam se registrar antes do pleito (NICOLAU, 2002). Apesar de serem permitidas
candidaturas avulsas, entre 1933 e 1934 houve diversos pedidos de registro de partidos, os quais
deveriam conter no mínimo cem eleitores para terem seus registros homologados. Na
Constituinte de 1934 o maior partido era o PRM (Partido Republicano Mineiro) “que
representava 15% da Câmara dos Deputados” (NICOLAU, 2002, p. 30).
Ainda na Constituinte de 1934, foram eleitos pelo voto popular 214 representantes, além
de 40 que foram eleitos por associações profissionais, portanto de maneira indireta. A
Constituição também reduzia a idade mínima para votar de 21 para 18 anos e instituía a
obrigatoriedade do voto para todos os homens e funcionárias do Estado – as demais mulheres
e os maiores de 60 anos não eram obrigados a votar. Com o golpe de Vargas em 1937 todas as
eleições no país foram suspensas e o Congresso Nacional deixou de funcionar.
3.2.2 O Governo Provisório (1930-1934)
Logo nas primeiras semanas após a Revolução em outubro de 1930 começaram a surgir
os primeiros conflitos entre os dois grupos que prometiam dar sustentação ao novo governo: os
liberais e os tenentistas. Para os liberais, os tenentistas haviam usado Getúlio com o objetivo de
implantar a ditadura militar no Brasil. Enquanto que os tenentistas acusavam os liberais de não
desejarem de fato uma mudança no país, mas apenas substituírem as velhas elites no poder.
Os liberais pressionaram Getúlio Vargas para que convocasse, em caráter de urgência,
a Constituinte. Já os tenentistas contra-argumentavam dizendo que ainda era cedo para se
elaborar uma nova Constituição e restaurar as eleições, pois segundo eles “os brasileiros não
tinham maturidade política para eleger seus próprios destinos, necessitando de uma elite
ilustrada, consciente – e armada – para lhes guiar os caminhos” (NETO, 2013, p. 24). Para os
tenentistas as eleições e uma nova Constituição só serviriam para submeter os brasileiros mais
uma vez ao voto de cabresto e à dependência aos coronéis. De acordo com esse raciocínio,
convocar novas eleições seria ruim para a democracia, pois trariam de volta as velhas
oligarquias rurais que mantinham o eleitorado rural sob o poder do latifúndio.
Em dezembro de 1931, após forte pressão da opinião pública, Getúlio pediu a seu
ministro da Justiça que elaborasse um esboço daquilo que seria a nova legislação eleitoral. No
início de 1932 movimentos populares organizados por todo o Brasil pediam a redemocratização
do país. São Paulo foi a cidade que reuniu o maior número de pessoas nessas manifestações
50
populares em favor da reconstitucionalização. O texto do novo código eleitoral foi finalizado
em fevereiro de 1932, de modo que pela primeira vez na história da política brasileira foi
assegurado o voto secreto e a participação das mulheres no processo eleitoral. Todavia, apenas
“1,5 milhão de eleitores foram cadastrados num universo de 20 milhões de habitantes adultos”
(MOTA, 2015, p. 650).
Durante esse período Getúlio institucionalizou a Carteira de Trabalho e equiparou o
salário ao tipo de trabalho que se executava. Ele também estabeleceu jornada de oito horas de
trabalho e licença-maternidade de um mês. Incorporou os sindicatos ao Ministério do Trabalho
com o intuito de afastar os trabalhadores dos movimentos comunistas e anarquistas. Em 1933
Vargas decretou a Lei da Usura, que beneficiou principalmente os fazendeiros, pois liberava
estes de suas dívidas. No mesmo período, o decreto de Reajustamento fez com que o Banco do
Brasil assumisse essas dívidas e mais dinheiro foi dado aos grandes cafeicultores (MOTA,
2015).
No final de 1933 foi convocada a Assembleia Nacional Constituinte (ANC), com o
objetivo de discutir aquele que seria um anteprojeto da Constituição, a qual foi promulgada em
16 de julho de 1934. O novo texto constitucional dizia que o presidente teria mandato de quatro
anos e seria eleito pela Assembleia Constituinte. Foi extinto o cargo de vice-presidente e cada
estado teria dois senadores, independente do número de eleitores. A nova Constituição também
decretava a indissolubilidade do casamento, o ensino religioso facultativo nas escolas, e a
palavra “Deus” passou a estar presente no preâmbulo. Todavia, a Constituição durou apenas até
o ano seguinte, quando Getúlio Vargas decretou Estado de Sítio.
Após a Revolução Russa de 1917 e a crise financeira de 1929 duas tendências
rivalizavam-se: a comunista e a fascista. Esses modelos político-ideológicos passaram a exercer
influência no Brasil. Os de esquerda organizaram a Aliança Nacional Libertadora (ANL)
contrária aos ideais fascistas e imperialistas. Seu presidente foi Luís Carlos Prestes e dentre
seus integrantes estavam Caio Prado Junior, Olga Benário e a revolucionária Pagu. À direita e
com ideias fascistas foi organizada a Ação Integralista Brasileira (MOTA, 2015).
A ANL reivindicava a nacionalização das empresas estrangeiras, o cancelamento da
dívida externa, a reforma agrária e a garantia dos direitos individuais. Os membros da ANL
tentaram derrubar o presidente Vargas, fato que ficou conhecido como “Intentona Comunista”.
A partir daí, Getúlio Vargas exigiu que a ANL fosse dissolvida e seus membros passaram a ser
perseguidos pelo governo. Comunistas, operários e socialistas foram presos e torturados pelo
Estado. Vargas decretou o Estado de Guerra e a pena de morte, de modo que milhares de pessoas
foram presas nesse período.
51
3.2.3 A Ditadura do Estado Novo (1937-1945)
Getúlio Vargas era um líder autoritário. Veio de um caldo de cultura gaúcha e
republicano onde a ditadura era um valor positivista a ser cultivado. A Assembleia Legislativa
do Rio Grande do Sul se reunia apenas duas vezes ao ano para aprovar o orçamento do
executivo. Além disso, nesse período ocorreu a ascensão de regimes totalitários no mundo. Terá
Vargas se inspirado em regimes fascistas? Provavelmente sim. Durante a ditadura, além do
parlamento foram fechados cerca de “420 jornais e 346 revistas no país” (NETO, 2013, p. 125).
Os poucos protestos que ocorriam eram reprimidos pelo governo. Era a estabelecimento de um
estado de exceção.
Os militares apoiaram o golpe de Vargas em 1937, pois acreditavam que um governo
constitucional não seria capaz de deter o comunismo. Getúlio procurou apoio político-jurídico
em outros estados e redigiu uma nova Constituição muito semelhante ao texto constitucional
fascista da Polônia, que na ocasião já era ocupada pelos nazistas alemães. O golpe foi efetivado
em novembro, quando Vargas apresentou a nova Constituição, fechou o parlamento e explicou
pela rádio os motivos pelos quais havia dado o golpe militar (MOTA, 2015). No dia 11 daquele
mês estava decretado o Estado Novo, com a anulação das liberdades públicas e a sociedade sob
a tutela do Estado.
Até a música era usada como propaganda do Estado nesse período. O samba Aquarela
do Brasil, composto por Ari Barroso em 1939, era uma forma de exaltação do país.
Brasil, meu Brasil brasileiro /Meu mulato inzoneiro/ Vou cantar-te nos meus
versos/O Brasil, samba que dá/Bamboleiro que faz gingar/O Brasil do meu
amor/Terra de nosso Senhor/Brasil pra mim/Pra mim, pra mim/Ah! Esse
Brasil lindo e trigueiro/É o meu Brasil brasileiro/Terra de samba e
pandeiro/Brasil pra mim, pra mim, Brasil!/Brasil pra mim, pra mim Brasil,
Brasil! (letras.mus.br/gal-gosta).
Centralizador, além de ter extinguido a Câmara dos Deputados e o Senado, os governos
estaduais eram todos subordinados a Vargas, de modo que esse centralismo era de caráter
antifederalista. Os liberais ou comunistas que faziam oposição ao governo federal eram
52
perseguidos e presos. Até mesmo a Frente Negra14, que na época já era um partido político foi
extinta por ordem direta de Vargas. Boa parte desses presos foi torturada pelo regime, dentre
eles o próprio Carlos Prestes e sua esposa Olga Benário que grávida foi levada para ser torturada
e morta num campo de concentração nazista.
Até 1942 o governo de Vargas teve relações políticas com a Alemanha de Hitler, de
modo que oficiais brasileiros fizeram estágios na força aérea alemã. Todavia, após dois navios
brasileiros terem sido torpedeados pelos alemães na costa norte-americana Vargas desfez as
relações com o Eixo. É em 1943 que a ditadura de Vargas começou a enfraquecer. É desse
período o Manifesto dos Mineiros, no qual políticos de Minas pediam a redemocratização do
país. Com o fim da guerra e a consequente queda de regimes totalitários, impulsionou grupos
sociais que pediram a redemocratização. Dentre eles estavam a recém-criada Confederação dos
Trabalhadores do Brasil (CGTB).
No início de 1945 se reuniram em São Paulo vários intelectuais liberais e de esquerda
como Jorge Amado, Caio Prado Jr., Antônio Cândido e alguns escritores latino-americanos
exilados no Brasil; estes também lideraram um movimento pró-democracia (MOTA, 2015).
Pressionado, Getúlio Vargas teve que decretar a anistia e a volta dos partidos políticos.
Enfraquecido pelas forças contrárias ao governo, o Estado Novo chegou ao fim com o golpe
militar liderado pelos generais Góes Monteiro e Gaspar Dutra.
3.3 DA SUÉCIA PARA O BRASIL: AS ORIGENS DO ASSEMBLEIANISMO
É nesse contexto político e social descrito que se estabeleceu no Brasil o
pentecostalismo. Em 1911 os suecos Gunnar Vingren e Daniel Berg fundaram a Missão da Fé
Apostólica, que em 1918 passou a se chamar Assembleia de Deus. De origem sueca, no decorrer
dos anos essa igreja se tornou cada vez mais brasileira. Na década de 1930 ela é um movimento
(ALENCAR, 2013) popular de caráter carismático e não quer ser conhecida como denominação
religiosa. No interior desse pentecostalismo há uma cultura de marginalização que é resultado
14 Fundada em 16 de setembro de 1931 a Frente Negra foi uma organização que chegou a ter 400 membros
inscritos. A sede do movimento ficava localizada no bairro da Liberdade, em São Paulo. Na época, negros não
podiam pertencer à corporação militar de São Paulo, de modo que a Frente Negra criou uma milícia paramilitar,
que lutou na Revolução Constitucionalista de 1932 e ficou conhecida como a “Legião Negra”. Os membros da
organização criaram uma cédula de identidade própria dos membros do grupo, todas com foto de perfil. A
Frente Negra também se opôs à ditadura Vargas, tendo sido dissolvida e voltou a existir com o nome de
Associação dos Negros do Brasil em 1945 (TEIXEIRA, 1988, p. 89).
53
de processos de exclusão do Brasil, mas também houve ali influência da cultura pentecostal
sueca.
No século XIX e início do século XX, a Suécia era um país pobre, de modo que 80% da
população viviam da agricultura. Nesse período, Suécia, Noruega e Irlanda eram os países
europeus com o maior número de emigrados. A economia sueca mudou durante a Primeira
Grande Guerra e principalmente depois do conflito. Num curto espaço de tempo o país se tornou
rico. Vários países do mundo começaram a comprar produtos suecos como aço, fósforo, pastas
para papel, telefones e aspiradores de pó. A industrialização levou a um rápido aumento de mão
de obra operária e, como consequência, ao crescimento urbano. (ANDERSON, 1984, p. 29).
De maioria luterana, a Suécia do começo do século XX possuía um modelo religioso
diferente do denominacionalismo verificado nos Estados Unidos. Em geral, as dissidências
protestantes que ocorriam eram reprimidas e marginalizadas, de modo que para Paul Freston
esse foi um dos motivos que levou batistas suecos a emigrarem (FRESTON, 1996); muitos
desses batistas já tinham experiências pentecostais. Os missionários que chegaram ao Brasil na
primeira metade do século XX vinham de uma Suécia que marginalizava as minorias religiosas.
Esses grupos protestantes dissidentes nutriam desprezo pela religião estatal com todo seu status
político e social.
[...] eram portadores de uma religião leiga e contracultural, resistentes à
erudição teológica e modesta nas aspirações sociais. Acostumados com a
marginalização, não possuíam a preocupação com a ascensão social típica dos
missionários americanos formados no denominacionalismo (FRESTON,
1996, p. 78).
Esses grupos periféricos farão da religião seu espaço de resistência. As relações entre
subalternidade e resistência, sofrimento e marginalização se firmarão no assembleianismo
brasileiro. Resistência não como oposição explícita, mas como a construção de novos sentidos.
Podemos estabelecer certo paralelo com aquilo que Foucault chamou de “linhas de fuga”
(FOUCAULT, 2002, p.12) em que o empoderamento discursivo – nesse caso o discurso
religioso – no plano simbólico cria condições materiais de emancipação de minorias. Pois os
grupos marginalizados “circulam em uma atmosfera que os mantêm atados a uma imobilidade
social asfixiante” (SILVA, 2011, p. 38).
O assembleianismo brasileiro inicial teve considerável adesão de mulheres, as quais
adquiriam esse empoderamento discursivo através do uso da palavra, sobretudo através dos
testemunhos e das experiências extáticas. Todavia, quando falamos em mulheres no
pentecostalismo é preciso dividi-las em pelo menos três categorias: mulheres negras brasileiras,
54
mulheres brancas brasileiras e mulheres estrangeiras (europeias e norte-americanas).
Historicamente as mulheres negras são aquelas que estão nos níveis mais inferiores dos
processos de subalternidade.
Isael de Araújo no livro 100 Mulheres que fizeram a história das Assembleias de Deus
(2011) destaca 60 mulheres estrangeiras, 37 mulheres brancas brasileiras e apenas 3 mulheres
negras brasileiras. Em 1925, já no Rio de Janeiro, o casal Frida e Gunnar Vingren separou
Emília Costa para o cargo de diaconisa. Negra, Emília Costa, além de exercer atividades de
evangelização, participou das Escolas Bíblicas de Obreiros e de Convenções Gerais das
Assembleias de Deus. Invisibilizadas, muitas dessas mulheres negras encontraram nas
experiências de êxtase formas de empoderamento discursivo.
Pode-se dizer, então, que Emília Costa e Frida Mari Strandberg eram companheiras de
ministério. Frida nasceu em 09 de junho de 1891 em Sjalevad, região norte da Suécia e ainda
jovem tornou-se membro da igreja Filadélfia de Estocolmo. Na capital sueca trabalhou como
enfermeira até comunicar ao pastor da igreja, Lewi Pethrus, seus anseios missionários.
Ingressou então num curso bíblico, tendo se tornado professora de Bíblia. Em 1917 ela foi
enviada como missionária para o Brasil e casou-se nesse mesmo ano com Gunnar Vingren.
Além de sua atuação como pastora, Frida foi uma das fundadoras do jornal Mensageiro da Paz.
A primeira edição do Mensageiro da Paz foi lançada em dezembro de 1930 no Rio de
Janeiro. De início, a redação do jornal funcionou na residência de Frida e Gunnar Vingren e
também nas instalações da própria igreja em São Cristóvão. O primeiro jornal criado pelos
missionários suecos foi o Voz da Verdade, em 1917, quando ainda estavam em Belém do Pará.
Esse períodico circulou apenas por dois meses e Gunnar Vingren viria a fundar o próximo
jornal, Boa Semente, em 1919, também no Pará. Já no Rio de Janeiro foi criado o jornal Som
Alegre, em 1929, que circulou até 1930. O Mensageiro da Paz foi um jornal militante, pois
além de ter uma função evangelizadora servia também para divulgar e reforçar doutrinas
pentecostais.
Foi no contexto de enriquecimento da Suécia durante a Primeira Guerra Mundial que a
Igreja Pentecostal Filadélfia em Estocolmo, liderada pelo pastor Lewi Pethrus, passou a dar
apoio financeiro a seu amigo de infância Daniel Berg e a Gunnar Vingren no Brasil, além de
enviar missionárias e missionários para o Brasil e outras partes do mundo. Para isso, Pethrus
criou uma organização chamada Missão Sueca Livre. As bases do moderno Estado de bem-
estar social sueco foram lançadas na década de 1930. Uma série de leis e reformas relacionadas
com a política fiscal, pensões de aposentadoria, previdência social, assistência médica e
educação foram aprovadas (ANDERSON, 1984, p. 45). O propósito de tais reformas era o
55
nivelamento das diferenças sociais, com vistas à igualdade de oportunidades para todos os
cidadãos. O modelo de sociedade sueca passou a ser considerado como o lar do povo, onde as
necessidades dos cidadãos deveriam ser supridas pelo Estado. Foi durante as décadas de 1920
e 1930 que chegou ao Brasil o maior número de missionárias e missionários suecos, que
coincide com o boom econômico da Suécia. Além disso, a cultura da marginalização social foi
sendo substituída por ideias de igualdade e justiça.
Lewi Pethrus nasceu em 11 de março de 1884 em Västra Tunhem, zona rural da Suécia,
tendo sido batizado na Igreja Batista de Vänersborg cinco anos depois. Em 1900 mudou-se para
a Noruega onde se tornou pastor da Igreja Batista de Arendal e dois anos depois passou pela
experiência do falar em outras línguas. De volta a Estocolmo foi estudar teologia no seminário
Betel e, em 1906, tornou-se pastor da Igreja Batista de Lidköping.
Em 1907 tem um contato mais direto com o movimento pentecostal a partir de encontros
em Oslo, na Noruega, com o pastor Thomas Ball Barratt. Ex-pastor metodista, T. B. Barratt
havia recebido o batismo com o Espirito Santo a partir de uma visita a Nova Iorque em 1906 e,
quando regressou à Noruega, tornou-se um dos primeiros divulgadores da doutrina do chamado
batismo com o Espírito Santo na Europa. A Igreja Pentecostal Filadélfia seria fundada por
Pethrus em 1911 na cidade de Estocolmo. Entretanto, sua igreja foi expulsa da União Batista
Sueca, tendo em vista que Pethrus ministrava a ceia aberta. Na década de 1940, 1950 e
principalmente na de 1960 Lewi Pethrus demostrou cada vez mais interesse em exercer
influência na esfera pública sueca. Foi, inclusive, nesse período que ele se desentendeu com o
pastor sueco Sven Lidman (1882-1960). Destacado escritor e para muitos o principal nome da
literatura sueca do início do século XX, Lidman se converteu em 1917 (ARAÚJO, 2007, p.
567). Seus romances e dramas tinham como narrativa principal religião, sexualidade e mente
humana. Em 1920 publicou uma tradução das Confissões de Agostinho e, nesse mesmo ano,
iniciou sua amizade com Lewi Pethrus. No ano seguinte Lidman é nomeado ministro da Igreja
Filadélfia e passou a dirigir o jornal da denominação.
Nesse período também enviou matérias para o Brasil onde foram publicadas nos jornais
Boa Semente e Mensageiro da Paz. Pethrus e Lidman tinham personalidades muito diferentes,
de modo que em 1948 houve o rompimento da amizade. Há versões diferentes para esse fato.
A versão brasileira diz que Lidman foi o responsável pelo fim da amizade, tendo feito acusações
à pessoa de Pethrus; entretanto os suecos narram o ocorrido de maneira diferente. Para eles,
Lidman não concordava com o uso político que Pethrus fazia do jornal da igreja.
Em 1948 houve uma reunião do Conselho da Igreja Filadélfia e nela foi discutido a
respeito dos pastores que estavam na época para se aposentarem. O nome de Lidman fora
56
citado, de modo que ele interpretou aquilo como uma manobra de Pethrus para tentar afastá-lo
de seus cargos. Lidman, então, preparou uma nota e convocou a imprensa. Nessa nota fez uma
série de acusações. Entre elas dizia que Pethrus tinha um estilo de liderança autoritária; era
admirador de Adolf Hitler e também cometia improbidade administrativa na Filadélfia. Na
ocasião, Lidman também leu sua carta de renúncia.
Foi destacada uma comitiva de pastores para atenuar o conflito, pois acreditavam que
ambos haviam errado. Pethrus teria, então, pedido perdão, mas Lidman recusou. Em 05 de abril
de 1948 Lidman e sua família foram excluídos da Igreja. No ano seguinte escreveu um livro
intitulado Viagem ao julgamento, em que fazia ainda mais acusações contra Pethrus. Pethrus
escreveria apenas em 1953 um livro para rebater as acusações: Verdade e Decência (tradução
livre para o português). Tempos depois Lewi Petrhus confessaria que o conflito com Lidman
era a maior dor que carregou ao longo de seu ministério. Dizia que a briga entre os dois se deu
em razão do ciúme de pessoas que desejam desfazer aquela amizade; em 1953 voltaram a ser
amigos.
Em 1958 Lewi Pethrus se desligou da Filadélfia, tendo criado uma organização
filantrópica e, em 1964, o Partido Democrata Cristão (PDC) 15; apenas em 1985 membros do
partido conseguiram ocupar assentos no parlamento. A criação desse partido esteve relacionada
com questões religiosas na Suécia. Em 1963 o governo havia decidido retirar a disciplina
Ensino Religioso do curriculum das escolas, de modo que Petrhus e outras igrejas evangélicas
se manifestaram contra.
A base do partido era constituída de grupos religiosos minoritários que nesse período
formavam as igrejas livres da Suécia (pentecostais, batistas, metodistas). Portanto, esse partido
era diferente do Partido Democrata Cristão da Alemanha ou da Itália, os quais foram
constituídos a partir de grupos majoritários. Entretanto, nesse período o pentecostalismo na
Suécia já era respeitado. Lewi Petrhus havia fundado também um jornal chamado Dagen e
através dele redigia matérias onde externava seu descontentamento com os rumos das políticas
sociais e econômicas da Suécia.
Oficialmente, o partido foi fundado em março de 1964 e na primeira eleição do diretório
nacional Pethrus foi eleito seu vice-presidente. Como disse pouco antes, ele foi amigo do
famoso escritor sueco Sven Lidman e, em 2001, foi publicado na Suécia o livro Lewi Resa, o
qual trata da amizade entre os dois. Lewi Pethrus morreu em 1974 e um fato curioso é que
15 O PDC é hoje um partido de oposição ao governo e uma de suas principais características é o grande número
de políticos jovens que fazem parte da legenda.
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foram feitas moedas como forma de tributo a um dos fundadores do movimento pentecostal na
Suécia.
Nessa primeira fase da pesquisa auscultamos 206 artigos do jornal Mensageiro da Paz
e destes analisamos um total de 30. As autoras e autores, todos com expressiva
representatividade nas ADs são: Frida Vingren (1891-1940); Gunnar Vingren (1879-1933);
Antônio Torres Galvão (1905-1954) - pastor fundador de igrejas no Nordeste, presidente de
sindicato e governador interino do estado de Pernambuco); Zélia Brito (1907-1988) - realizou
trabalhos de evangelização no subúrbio do Rio de Janeiro como Bangu, Realengo e Madureira;
foi casada com o pastor Paulo Leivas Macalão); Samuel Nystrom (1891-1960) - foi o primeiro
missionário sueco enviado para o Brasil a partir da base de missões criada em Estocolmo pelo
pastor Lewi Pethrus. Pastoreou igrejas em Belém, Rio de Janeiro, São Paulo, Amazonas e Acre,
além de ter sido presidente da CGADB; Emílio Conde (1901-1971) - jornalista e diretor do
Mensageiro da Paz. Poliglota, destacou-se como escritor e redator na imprensa assembleiana.
Leigo e solteiro, antes de ser assembleiano pertenceu à Congregação Cristã do Brasil; José
Teixeira Rego (1898-1960) - pastor de igrejas no Ceará, Rio de Janeiro e Maranhão, foi também
um dos fundadores da Casa Publicadora das Assembleias de Deus (CPAD); Eurico Bergstén
(1913-1999) - missionário finlandês enviado ao Brasil pelo junta de missões sueca. Foi escritor
e professor de inúmeras escolas bíblicas; João Pedro da Silva (1895-1934) - pastor de igrejas
em Minas Gerais, Sergipe, Bahia e Espírito Santo; Nils Kastberg (1896-1978) - missionário
sueco, foi pastor e redator do Mensageiro da Paz; Francisco Pereira do Nascimento (1904-
1966) - primeiro pastor brasileiro das ADs em Belém do Pará; Lawrence Olson (1910-1993) -
missionário estadunidense e um dos pioneiros das ADs em Minas Gerais e do ensino teológico;
Francisco Gomes Assis (1906-1996) -pastoreou igrejas no Rio de Janeiro e Maranhão; escritor
de diversos periódicos da CPAD; Bruno Skolimowsky (1884-1961) - de origem polonesa, além
de pastor ministrava nas Convenções Gerais.
3.4 TEMPORALIDADES E POLÍTICA NO ASSEMBLEIANISMO BRASILEIRO (1930-
1945)
O cristianismo é uma religião histórica, pois atribui ao tempo um valor e significado
teológico (teologia da história). Desse modo nossas análises se darão a partir de uma
compreensão da teologia judaico-cristã da história. Já nas primeiras edições do jornal
58
Mensageiro da Paz há vários artigos que tratam da temática da escatologia. Tendo em vista que
devemos falar de um assembleianismo de mentalidade rural e um assembleianismo de
mentalidade urbana, entendemos também que podemos falar de uma concepção escatológica a
partir de uma mentalidade rural e uma concepção escatológica a partir de uma mentalidade
urbana. A primeira concepção se aproxima daquilo que Franz Hinkelammert chamou de céu
feudal.
O céu de Agostinho não oferece consolo algum. Contudo, aparece um céu que
oferece consolo e que pode complementar o céu agostiniano: o céu da
sociedade feudal. Ele correspondia, em grande parte, a essa sociedade com
suas hierarquias, seus estados e classes. Um mau rei, no entanto, podia
terminar no inferno e um mendigo piedoso podia chegar às hierarquias mais
altas nesse céu (HINKELAMMERT, 2012, p. 179).
Percebe-se que os discursos escatológicos das ADs nas primeiras décadas se aproximam
dessa concepção escatológica a partir de uma mentalidade mais rural. Já a concepção
escatológica a partir de uma mentalidade urbana16 tende a pensar um “céu imperializado”
(HINKELAMMERT, 2012, p. 172). Sendo assim, temos ressalvas naquilo que Paulo Siepierski
afirmou:
A permanência dos pentecostais na Terra por um período maior que
desejavam forçou-os a viverem como os demais mortais. Tiveram que mandar
seus filhos para a escola, investir em planos de aposentadoria, fazer
financiamento a longo prazo, enfim ficaram forçados a alargar horizontes.
Para isso foi necessário reestruturar a escatologia. A única forma de manter a
esperança num milênio foi reverter para o pós-milenarismo (SIEPIERSKI,
2004, p. 82).
Inicialmente a expressão “forçou-os a viverem como os demais mortais” dá uma ideia
de que as mulheres e homens de pertença pentecostal viviam desvinculados das dinâmicas
sociais como o mundo do trabalho, da economia e da educação. Sabe-se que em muitos espaços
pentecostais a educação formal não era valorizada; entretanto, isso nunca foi um discurso
homogêneo nas Assembleias de Deus. Quanto à expressão de Siepierski “forçou-as a alargar os
horizontes” ela faz vinculação apenas com a escatologia e não leva em consideração os
processos de urbanização e industrialização no Brasil que levaram essas brasileiras e esses
brasileiros a desejarem “alargar horizontes”.
16 Essa discussão a respeito da antecipação e secularização do céu e do inferno tambem foi feita por Walter
Benjamin (2013, p. 128), para quem esse fenômeno cria um tipo de sociedade adequada ao surgimento e
funcionamento do capitalismo.
59
Essa nova dialética com o Brasil urbano e industrial potencializou essa concepção
escatológica a partir de uma mentalidade urbana e o nome disso não é pós-milenarismo no
pentecostalismo, como sugere Siepierski. Isso não significa que todo o assembleiano que
emigrou para os centros urbanos deixou de ter uma concepção escatológica a partir de uma
mentalidade rural ou que toda concepção escatológica a partir de uma mentalidade urbana não
tenha também elementos críticos. Entretando, a segunda concepção tende a ter uma dimensão
do que se convencionou chamar de uma escatologia antecipada, onde a esperança do paraíso
vindouro se realiza no presente.
A partir dessa discussão inicial acreditamos que desde a década de 1930 há posições
políticas nas ADs, de modo que nesse período, a concepção escatológica está relacionada com
resistência e crítica social. Logo, rejeitamos termos como apoliticismo ou alienação política
pentecostal. Seja a concepção escatológica a partir de uma mentalidade rural ou uma concepção
escatológica a partir de uma mentalidade urbana, ambas estão vinculadas a processos da vida
concreta, na medida em que a fala sobre o céu é uma fala sobre terra. Em nossa tese, faremos a
análise da posição e ação política das ADs a partir de três categorias de tempo propostas por
Giorgio Agamben: tempo profano, tempo escatológico e tempo messiânico.
Ao falar sobre a temática da escatologia no contexto do catolicismo Agamben parece
fazer uma ironia ao dizer que “a referência às coisas últimas parece ter desaparecido do discurso
da Igreja, a tal ponto que se pôde dizer, que, a Igreja de Roma fechou o Escritório Escatológico”
(AGAMBEN, 2010, p. 5). Como leitor de Walter Benjamim, Agamben fala do tempo profano
(chronos) como o tempo da história da humanidade, o tempo cronológico. Enquanto realidade
do mundo presente, o chronos não está relacionado com uma concepção de progresso histórico.
Nas categorias apocalípticas o tempo escatológico diz respeito ao aiôn futuro, ocasião em que
o tempo profano será sucedido pela vida eterna.
Em I Tessalonicensses 5.1-2 está escrito que “a respeito da época e do momento, não há
necessidade, irmãos, de que vos escrevamos. Pois vós mesmos sabeis muito bem que o dia do
Senhor vem como ladrão de noite”; o verbo “vir” neste texto está no presente que retrata a
mensagem do evangelho do messias que não cessa de vir; logo, “cada instante é uma porta
estreita da qual o messias pode passar” (BENJAMIN apud AGAMBEN, 2010, p. 3). A partir
daí Agamben faz a discussão do tempo messiânico (Kairos), com uma dimensão escatológica
presentificada.
O tempo messiânico contesta a mundaneidade como sistema de valores e crenças, ao
mesmo tempo em que “reconhece a realidade presente na qual é preciso viver” (CUVILLIER,
2001, p. 236). Assim, ele representa ao mesmo tempo uma presença no mundo junto à espera
60
de outra realidade. Segundo Agamben “o tempo messiânico de ver compreendido como o tempo
que surge do interior do tempo cronológico, que o trabalha e o transforma internamente”
(AGAMBEN, 2006, p. 112). Desse modo, há uma oposição qualitativa entre chronos e kairos.
O kairos emerge no tempo cronológico na medida em que o transforma por dentro e nos remete
para um tempo que nos resta.
Sendo assim, o tempo messiânico não é um período cronológico, mas sim uma
transformação qualitativa do tempo vivido. Há também uma diferença entre o tempo
apocalíptico e o tempo messiânico. O primeiro está relacionado com o “final dos tempos,
enquanto que o segundo com o tempo do fim” (AGAMBEN, 2010, p. 3). Esse é um tempo que
se contrai, que começa a acabar, o tempo que nos resta. Enquanto tempo que pulsa dentro do
chronos, o kairos tem a função de fazer o tempo profano terminar.
Um presente, como Benjamin apresentará na tese XVI, que não é transição,
mera lacuna entre o passado e futuro, mas uma temporalidade que se dilata e
se imobiliza, explodindo o continuum catastrófico da história: uma revolução,
prenhe de estilhaços messiânicos, não como meta final na travessia mortal do
progresso, mas no tempo-de-agora (Jetztzeit), na vida que resta, na interrupção
do tempo (BARBOSA, 2014, p. 144).
Há, portanto, uma relação entre as coisas últimas e as coisas penúltimas, de modo que
elas definirão a condição messiânica. Pensar nas coisas últimas é elemento importante que
determina o modo como se vive as coisas penúltimas. Logo, viver o tempo do fim significa uma
mudança da experiência, como também se representa o tempo. O kairos enquanto um tempo
abreviado não é um tempo de fuga das realidades concretas, mas se relaciona com o pensamento
paulino de “não se conformar ao mundo” (CUVILLIER, 2001, p. 236).
Dito isso, a partir de agora analisaremos posições políticas no assembleianismo
brasileiro a partir da experiência das temporalidades do chronos, aiôn e kairos. Verificaremos
que desde a década de 1930 há posições políticas nas ADs e que a concepção escatológica,
nesse período, está relacionada à resistência, principalmente de indivíduos subalternos do
pentecostalismo. Não relacionamos anseios milenaristas aqui com fuga do mundo ou alienação
social, pois o discurso escatológico sobre o céu é concebido a partir de realidades concretas da
existência.
61
3.4.1 Assembleianismo e a Experiência do Chronos
Verificamos na década de 1930 e início da de 1940 que há posicionamentos políticos
nas ADs, muitos deles como crítica a certos modelos de Estado e sociedade. Além disso,
identificamos determinadas matérias no jornal Mensageiro da Paz que orientava assembleianos
nos processos de participação política no limitado sistema eleitoral brasileiro do período.
Conforme já dito anteriormente, apresentaremos os referidos posicionamentos a partir do jornal
Mensageiro da Paz e em todos eles respeitaremos a grafia original. De início, não concordamos
com Francisco Cartaxo Rolim quando diz: “Desligada dos contextos sociais históricos,
preocupada quase que exclusivamente com a segunda vinda de Cristo, a utopia milenarista,
entendida na dimensão de projeção para o futuro, opera um corte com o aqui e o agora”
(ROLIM, 1985, p. 224). Mesmo que o discurso escatológico aponte para a vida futura, sua
dinâmica funciona a partir da vida presente; não está descolada do aqui e do agora.
Numa das primeiras edições do jornal a missionária Frida Vingren demonstrou
consciência da mudança de determinados papéis atribuídos às mulheres na sociedade. No início
de 1931 pastores já haviam determinado uma série de restrições às atividades pastorais que
Frida já exercia há vários anos no Brasil. Ela cita a "revolução" de 1930 que conduzira Getúlio
Vargas ao governo, e a usa como metáfora, como forma de extenar seu descontentamento.
Na Suécia, país pequeno com cerca de 7 milhões de habitantes, existe um
grande número de irmãs evangelistas. [...] Na “parada das tropas” a qual teve
lugar aqui no Rio de Janeiro, depois da revolução tomou tambem parte um
batalhão de moças do Estado de Minas Gerais (MP, n. 3, p. 3, 1931).
Há também posicionamentos acerca da geopolítica internacional do pós-guerra. Tais
posicionamentos são sempre acompanhados de uma visão pessimista da história e parece que a
crítica social é um elemento fundante da temporalidade do chronos no assembleianismo desse
período. Com uma visão negativa a respeito do chronos esse tempo cronológico é concebido
como uma dimensão autodestrutiva, pois “o tempo é o grande poder que a tudo destrói” (MP,
n. 3, p. 4, 1941). Logo, não há uma antecipação do céu, pois o horizonte histórico não é o
progresso, mas sim o aniquilamento a partir de dentro do próprio chronos. Essa temporalidade
62
se contrai, autodestrói; logo, há anseios nesse pentecostalismo pela interrupção da história que
está ligada a um tipo de mundo com o qual esses pentecostais demonstram seu
descontentamento.
Segundo Boaventura de Sousa Santos “vivemos num tempo de fulgurações, um tempo
de repetição. A ideia da repetição é o que permite ao presente alastrar ao passado e ao futuro,
canabalizando-os” (SANTOS, 2006, p. 51). Essa concepção do presente como repetição
ampliou-se até chegar à ideia do futuro como progresso, que é um tema que se relaciona com
as utpoias burguesas. Boaventura critica esse tipo de concepção histórica ao dizer: “Nos termos
em que a modernidade ocidental conferiu ao futuro a capacidade messiânica, como diria Walter
Benjamin, a incapacitação do futuro não abre qualquer espaço para a capacitação do passado”
(SANTOS, 2006, p. 53).
No artigo abaixo, Frida Vingren demonstra conhecimento a respeito dos
desdobramentos políticos do período entre guerras, quando há o fortalecimento do
nacionalismo autoritário o qual será um componente básico do nazismo, fascismo e stalinismo;
além das revoluções e conflitos em várias partes do mundo. “Depois da guerra mundial as
nações estão inflamadas pelo espírito do nacionalismo o que tem resultando várias luctas e
conflictos. Na India há constantes luctas por causa do domínio inglês. Igualmente na China há
contínuas guerras e revoluções” (MP, n. 1, p.2, 1930).
Para Franz Hinkelammert pensar o céu como um lugar de consolo não é uma barreira
para a libertação, pelo contrário pode até impulsioná-la (HINKELAMMERT, 2012, p. 185).
Todavia, a redenção é sempre transcendente. Nesse contexto, a política não é vista como um
instrumento de uma possível redenção; de igual modo esse pentecostalismo parece não
conceber os governos como Estado Providência, tendo em vista que a referida instituição seria
incapaz de promover justiça, paz e igualdade em sua plenitude, pois, “todos os anos a Liga das
Nações se reúne para tratar acerca do desarmamento, mas, quando acaba o trabalho cada nação
manda construir navios de guerra, sub-marinos, hydro-aviões, e outras coisas” (MP, n. 18, p. 8,
1931). O pastor José Teixeira Rego escreveu que:
Pacto e alianças são firmadas entre as potências humanas, a actividade de
líderes políticos, sociologos e quejandos, se dedobra, e entretanto, cada dia os
acontecimentos, nas notícias que nos fornecem os periódicos, mostram-nos a
gravidade da situação universal (MP, n. 20, p. 5, 1931) [...] Depois de recordá-
lhe estas coisas elle continua advertindo-o contra os homens maus e
enganadores. Diariamente vemos estes, em todos os ramos de actividade, na
religião, na política, no comércio (MP, n. 18, p. 8, 1931).
63
Como já analisamos anteriormente, com a crise de 1929, há mudanças no capitalismo
mundial, o que contribuiu para a ascensão de novos impérios econômicos, em especial os
Estados Unidos. Houve tambem aumento da pobreza e desigualdade, paralelamente ao
surgimento de novas elites. Tal situação também foi abordada em matérias publicadas no jornal
Mensageiro da Paz, onde pode se ver crítica aos impérios capitalistas. De acordo com o pastor
Antônio Torres Galvão:
A crise tremenda tem feito milhares de companhias e particulares fechar as
suas casas commerciais e fábricas, têm feito milhões e milhões de pessoa
ficarem sem trabalho e sem pão, sofrendo as maiores privações, enquanto o
ouro do mundo está armazenado nas mãos de algumas nações capitalistas
(MP, n. 1, p. 1, 1932). [...] a humanidade, hoje mais do que nunca, se deixa
absorver pelo mais pesado materialismo. Em tudo e em todos, reinam a
ambição, o egoísmo, e a mais completa ausência de equidade (MP, n. 15, p. 4,
1937).
Durante o governo Getúlio Vargas houve duas grandes secas: uma em 1932 e outra em
1942. Pela primeira vez na história brasileira o governo centralizou e coordenou uma
intervenção no semiárido cearense no combate à seca (NEVES, F., 2001). A seca, então, passou
a ser vista como um fenômeno social, de modo que foram estabelecidas novas relações entre
retirantes, governo e habitantes das cidades. Na seca de 1877 milhares de sertanejos famintos
migraram para Fortaleza, os quais ficaram entregues à fome e à própria morte pelas ruas da
cidade.
A partir de então foi criado um programa de campos de concentração no Ceará, para
onde os retirantes eram levados nos períodos de seca. Esses campos tinham, dentre algumas de
suas finalidades, impedir a mobilidade física dos retirantes, principalmente que se deslocassem
para Fortaleza. O “maior campo de concentração ficava no Crato que chegou abrigar cerca de
60 mil retirantes” (NEVES, F., 2001, p. 109).
A partir de 1930 o Estado interveio no mercado de trabalho e de alimentos na região
nordestina, com o objetivo de possibilitar condições de compra de comida para os retirantes.
Esse período de escassez possibilitou ao getulismo ampliar o controle e a regulamentação de
mecanismos econômicos. A seca nordestina de 1932 foi também citada em matéria no jornal
Mensageiro da Paz, pois o pastor Eurico Bergsten afirmou que:
É gravíssima a situação do mundo. A crise mundial, que já começou a
repercurtir profundamente, entre nós vieram juntar-se dois flagellos: a seca do
nordeste e a guerra civil no sul (felizmente agora finda) affetando o Brasil
64
inteiro. Quando lemos os jornaes diários, encontramos uma tendência
assustadora, sempre crescente de desrespeito a vida (MP, n. 10, p. 1, 1932).
Entre 1932 e 1935 aconteceu a guerra entre Bolívia e Paraguai, cujo conflito, motivado
pelo petróleo na região dos Andes ficou conhecido como guerra do Chaco. Sessenta mil
bolivianos e 30 mil paraguaios morreram no conflito. É considerada a maior guerra da América
do Sul no século XX. Quanto a esse fato o jornal relatou que “A Bolívia em choque com o
Paraguay, a Colômbia com o Equador, e outras questões mais, põe em ameaça, todo o
continente sul-americano” (MP, n. 20, p. 2, 1932); esse relato foi feito pelo pastor José Teixeira
Rego.
As ambíguas relações entre Estado e religião também são abordadas no
assembleianismo nesse período. O articulista do jornal usa como exemplo a Alemanha, que
segundo ele usava o discurso religioso como narrativa legitimadora da guerra e das políticas
segregacionistas e racistas do nazismo. Além disso, chama-nos a atenção nesse artigo escrito
pelo pastor João Pedro a visão clara dos perigos em fazer uso político da religião
Os homens terminam em misturar e confundir o christianismo, com o
nacionalismo e o patriotismo, como se houvesse alguma razão, ou alguma lei
de Deus, que justificasse essa pretenção. O christianismo não conhece
fronteiras, não conhece raças, não conhece divisas. O que nos levou a escrever
estas linhas foi uma notícia referente a factos que estão se passando na
Allemanha que dizia: “Servir a guerra não é, em caso algum, um attentado
contra a consciência christã, é, ao contrário, obedecer a Deus” (MP, n. 4, p. 3,
4, 1933).
A partir dessa constatação o jornal faz crítica à instrumentalização da religião pelo
Estado, com o objetivo de promover políticas de intolerância e, segundo o articulista, tal postura
é um crime que deve ser denunciado. Tal posicionamento político manifestado no artigo do
jornal Mensageiro da Paz tem dimensões de críticas. O pastor Nils Kastberg escreveu que “Que
cada qual faça política, manifeste seus sentimentos e convicções que adotou. Abusar, porém,
do nome de Deus e do Christianismo, para fins intolerantes, envolvendo-os em movimentos
movórticos, é crime que merece e deve ser denunciado” (MP, n. 4, p. 4, 1933).
Pode se verificar também, através de artigos no Mensageiro da Paz, críticas a políticos
e posturas de desconfiança em relação a eles. Acreditamos que matérias como essa corroboram
nossa tese contrária à ideia do apoliticismo, de modo que desde esse período houve posição
política nas Assembleias de Deus. Para o pastor Samuel Nystron:
65
Há poucos dias, lendo os jornaes, algo a respeito de dois estadistas e dos
encontros que estes tiveram com alguns ambaixadores de outros paízes dos
mais importantes da Europa. Foram esses homens, Mac Donald da Inglaterra
e Mussolini, da Itália. [...] essas conferências foram seguidas de banquetes e
discursos, que mostraram a boa vontade dos políticos e estadistas em trabalhar
pela paz; tudo isso porém é fictício, pois suas atitudes não deixaram de
transparecer o egoísmo de cada um, em conseguir os melhores resultados para
si (MP, n. 7, p. 5, 1933).
Além de críticas também há espaço no jornal para zombar de estadistas e dizer que
mesmo sendo cultos vacilam na condução dos governos. Pode-se tratar com ironia certos
políticos, pois esse pentecostalismo desconfiava de deteminadas pretensões governamentais.
Tal postura também configura posição política, pois ais uma vez o pastor Antônio Torres
Galvão escreveu que:
Os acontecimentos que se desenrolam no orbe terrestre são, pelo dramático e
imprevisto de que se revestem, de molde a zombar dos estadistas mais cultos
e aluminados, os quais muitas vezes, ficam a vacilar, como se o leme da nau
administrativa não estivesse em mãos de marinheiros conhecedores da costa
(MP, n. 4, p. 1, 1937).
Pode-se encontrar no Mensageiro da Paz críticas a indivíduos que faziam da política
uma profissão e não um instrumento de promoção de justiça social. Era preciso desconfiar
daqueles que assim agiam. Desse modo, o pastor Francisco Gomes escreveu que “O mundo
político espera grandes surpresas de homens, que fizeram da política uma profissão” (MP, n.
22, p. 1, 1938).
E o que dizer dos políticos que pensam no seu próprio enriquecimento? Para o Nils
Kastberg afalou sobre o egeoísmo na política ois, “os homens em nossos dias, principalmente
os políticos, passam pela vida com os punhos fechados, amaldiçoando a tudo e a todos, tendo
as mãos abertas somente para o seu egoísmo” (MP, n. 5, p. 4, 1940). Esse artigo foi escrito em
plena ditadura e mesmo assim há esse tipo de crítica a políticos.
Muito embora tenha havido essas críticas o assembleianismo também teve
posicionamentos políticos de apoio a Getúlio Vargas. No mesmo jornal da denominação há
palavras de apoio e de descontentamento com políticos. Esse é um dos sinais da
heterogeneidade política presente no pentecostalismo, que se seguiria nas décadas seguintes. O
pastor Antônio Torres Galvão disse que:
Somente no Brasil conseguiu fazer uma revolução de cima para baixo, graças
a argúcia do estadista que, há sete anos nos governa. É de notar, porém, que o
presidente Vargas afirmou categoricamente no prelúdio da Nova Constituição,
66
que a nação estava sob a funesta iminência da guerra civil (MP, n. 3, p. 6,
1938).
Ao que tudo indica a referência a essa iminente guerra civil esteve relacionada com a
Aliança Nacional Libertadora que lutou pela deposição de Getúlio Vargas, fato esse que
culminaria com a implantação do Estado Novo em 1937. Mais uma vez o pastor Antônio
Torres Galvão se posiciona e diz que:
Até mesmo nas terras livres da América, neste Brasil onde tudo é imenso, e
onde não se conhece a crise, no verdadeiro sentido do termo, mercê de
recursos naturais com que nos dotou a dadivosa mão do criador – espíritos
impatrióticos procuram perturbar a ordem e a paz brasileira, ensanguentando
o solo pátrio, levando o luto, a orfandade e a viuvez a milhares de lares (MP,
n. 3, p. 2, 1936).
Em setembro de 1937, ou seja, dois meses antes de Vargas implantar o Estado Novo, há
uma nota no Mensageiro da Paz com uma chamada ao alistamento eleitoral, que estaria
relacionado com o dever cívico. A editoria do jornal disse que “Como todos os irmãos devem
saber, é dever de todo o brasileiro alistar-se eleitor. Isto é por lei. Avisamos, pois, aos que ainda
não cumpriram com esse dever cívico, que no próximo mês de outubro, será encerrado o
alistamento eleitoral” (MP, n. 17, p. 4, 1937).
Entretanto, há também postura de crítica às políticas do governo e uma das mais claras
é com respeito à educação brasileira. O artigo a seguir é um dos sintomas que atestam que o
discurso antieducação formal não era homogêneo nas Assembleias de Deus. De acordo com o
pastor Antônio Torres Galvão “No terreno cultural somos um povo que conta setenta e cinco
porcento de analfabetos. Temos, é verdade, uma elite de cultura bem formada, mas, em matéria
de instrução popular, somos o que há de mais precário” (MP, n. 11, p. 2, 1937). Reconhecemos
que enquanto grupo constituído de pessoas subalternas, mulheres e homens de pertença
pentecostal estiveram alinhados com o Estado paternalista de Vargas. Há indícios de que certos
modelos da eclesiologia pentecostal incorporaram elementos da maneira de governar de
Getúlio. Todavia, é em regimes democráticos e não ditatoriais que o pentecostalismo teve sua
maior expansão.
A partir da discussão que fizemos até aqui e outras análises que faremos adiante
acreditamos que desde 1930 há posições políticas no assembleianismo brasileiro, de modo que
sua concepção escatológica não esteve relacionada com fuga do mundo. No interior da
experiência assembleiana do chronos há dimensões de crítica social e essa temporalidade
caminha para o fim; logo, a mundaneidade é incompatível com a antecipação do céu.
67
3.4.2 Assembleianismo e a Experiência do Aiôn
Na guerra dos camponeses alemães do século XVI aconteceu uma antecipação do céu,
a qual foi promotora de luta por mudança da realidade social. Hinkelarmmert ao analisar a
revolta afirma que “pode-se dizer também: já não se antecipa o núcleo terrestre do celeste, mas
o núcleo celeste do terrestre. E nesse núcleo do terrestre é, na imaginação dos camponeses, o
paraíso, e, para isso, tem de ser mudada a terra” (HINKELARMMET, 2012, p. 180). O autor
também vê nos movimentos de base e da teologia da libertação dos anos 1960 esses mesmos
anseios. Entretanto, para Hinkelarmmet os resultados da práxis oriunda dessa antecipação do
céu se “esbarraram” nos próprios limites sociais. Vejamos esse aspecto, que consideramos ser
paralelo à nossa tese.
Claudio de Oliveira Ribeiro fez alguns apontamentos críticos a respeito da Teologia da
Libertação e das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), da Igreja Católica Romana, de modo
que, para ele há problemas em compatibilizar o Reino de Deus com uma concepção histórica
linear, sendo que, “quando, ao contrário, os grupos religiosos estabelecem suas metas para além
da história, podem trazer para o interior dela conteúdos de maior radicalidade” (RIBEIRO,
2010, p. 55). Ribeiro prossegue e trata das limitações de um messianismo que superdimensiona
a historicidade do Reino.
[...] Vitor Codina questiona se a Teologia da Libertação não teria assimilado,
a crítica e inconscientemente, a visão moderna e linear de tempo que,
diferentemente da noção bíblica do Kairos, gera um messianismo político e
militante, com o risco de cair num voluntarismo moralista, no pragmatismo e
funcionalismo que acaba por romper e esvaziar de conteúdo a mensagem
evangélica (RIBEIRO, 2010, p. 57).
Sendo assim, a antecipação do céu no projeto da Teologia da Libertação tem seus
limites, os quais podem ser revistos a partir de dentro da própria escatologia. Para isso, seria
importante o Reino possuir “acento messiânico ou até mesmo milenarista”, de modo que “é
preciso conjugar a reserva escatológica com a instância escatológica” (RIBEIRO, 2010, p. 57).
Muitas CEBs, principalmente aquelas formadas na zona rural, carregavam consigo a
dimensão celebrativa própria do catolicismo popular: novenas, procissões, rezas e veneração
de santos. Com o tempo essas comunidades passaram a desenvolver outras atividades como
ligadas à leitura da bíblia e encontros com jovens e casais. O próximo passo foi o envolvimento
com questões práticas como participação nas lutas pela terra e nos sindicatos. Todo esse
68
processo levou as CEBs ao engajamento nas questões político-sociais do cotidiano e, assim,
assumiram essa dimensão do Reino de Deus dentro da história.
No que diz respeito às bases teológicas das CEBs, Faustino Teixeira lembra a dimensão
dos projetos histórico-libertadores do Reino de Deus (TEIXEIRA, 1988) de modo a indicar que
existe uma estreita ligação entre Reino e Libertação, escatologia e história. O caminho para uma
sociedade plenamente justa e solidária passaria por essa dimensão intra-histórica do Reino de
Deus. Logo, essa dimensão teológica das CEBs também se aproximaria de um projeto de
antecipação do céu.
Tanto o assembleianismo na década de 1930 como as CEBs dos anos de 1960 a 1980
foram grupos populares, de modo que através da mediação religiosa construíram seus espaços
de comunhão e resistência. Pode-se também dizer que ambas fizeram uma leitura popular da
Bíblia, cujo significado e sentido do texto emergiam das ambiguidades da vida cotidiana. Ao
rejeitar o estudo formal da Bíblia em faculdades de teologia, podia ser também uma forma das
brasileiras e brasileiros de pertença pentecostal não aceitarem intermediários na interpretação
bíblica, tendo em vista que o crente tem acesso direto ao Espírito Santo, o que pode configurar
crítica às autoridades hegemônicas. Logo, o sentido do texto seria interpretado por toda a
comunidade e isso deu empoderamento discursivo a todas e todos.
Acredita-se que sempre houve dimensões de invisibilidade de pessoas no interior do
pentecostalismo: seus rostos, suas realizações desaparecem na camada espessa do
esquecimento. São inúmeras as narrativas não narradas, o que gera a despessoalização onde os
sujeitos não aparecem. Brasileiras e brasileiros de pertença pentecostal estiveram circunscritos
nesses processos de subalternidade e invisibilidade social. Nesse sentido, pensamos que as
análises sobre pentecostalismo na vida pública brasileira quase sempre associam certo
afastamento apenas a partir do apocalipcismo pentecostal.
São poucas as análises que pesquisam as relações entre pentecostalismo e vida pública
que levam em consideração as contingências sociais como exclusão social e mesmo os períodos
dos estados de exceção no Brasil. Quase sempre o pouco envolvimento no espaço público é
creditado à vontade própria das brasileiras e brasileiros pentecostais em decorrência de suas
crenças escatológicas. Todavia, antes de serem pentecostais foram, em sua maioria, cidadãos
brasileiros às margens e sem qualquer tipo de protagonismo social e político. Por isso, além do
apocalipcismo, pensamos ser importante pensar também nas contingências sociais.
Tendo em vista que eram sujeitos subalternos, não dependia apenas dessas brasileiras e
desses brasileiros pentecostais exercer algum tipo de protagonismo na política brasileira. Na
sua maioria estavam circunscritos em relações de invisibilidade e de silenciamento social.
69
Portanto, acreditamos que o discurso escatológico não é a causa ou o elemento originário de
certo afastamento da vida pública brasileira. A escatologia pentecostal brasileira é efeito de
processos de exclusão; é empoderamento discursivo de subalternos. A escatologia por si só não
consegue explicar o distanciamento da política partidária no assembleianismo, pois mesmo com
o discurso escatológico, observamos que há, desde a década de 1930, posições políticas nas
ADs. Por isso, é preciso levar em consideração as contingências sociais.
A escatologia enquanto discurso não é uma fala conjugada com apatia ou alienação, mas
sim com resistência e até mesmo violência. Pensamos discurso escatológico aqui não como
uma estrututura imobilizadora de práticas e ações político-sociais, mas como canalizadora de
resistência e, em alguns momentos, revolucionária. Sendo assim, não pensamos que as
brasileiras e os brasileiros de pertença pentecostal se afastavam da vida pública em razão de sua
concepção escatológica, mas sim que tal concepção foi potencializada por processos de
exclusão social. Para Jung Mo Sung
O milenarismo com todos os defeitos que possa ter, é um movimento que não
perde sua criticidade em relação aos sistemas vigentes. Isto por causa da
transcendência de Deus em relação a este mundo. É sempre um movimento
que julga o mundo a partir de um critério externo a lógica do sistema (SUNG,
2001, p. 61).
Sendo assim, até que ponto podemos dizer que esses brasileiros pentecostais eram
apolíticos, tendo em vista que a dimensão escatológica não esvazia as categorias de um sujeito
político? É no interior dessas crenças que as brasileiras e os brasileiros de pertença pentecostal
canalizaram suas vozes de criticidade em relação a um tipo de mundo e política de que
discordavam; e nessas estruturas escatológicas discursivas podemos perceber elementos de
radicalidade, resistência e contestação, de modo que pensamos ser incorreto chamá-los de
apolíticos.
Mesmo que não haja uma antecipação do céu, a escatologia não significa paralisia dos
eventos históricos (AGAMBEN, 2015), no sentido de que a crença no fim dos tempos levaria
à inércia. Sendo assim, o sentido das coisas últimas orientaria e guiaria as coisas penúltimas.
Agamben vai além e diz que “quando o elemento escatológico se eclipsa na sombra, a economia
mundana se torna propriamente infinita, isto é, interminável e sem escopo” (AGAMBEN, 2015,
p. 24). Quanto às relações entre escatologia e pentecostalismo concordamos com Bernardo
Campos quando afirma:
70
Sob a forma de um protesto social e de uma utopia de libertação, o movimento
pentecostal nos relembra movimentos históricos como o de Taki Onqoy na
sociedade andina do século XVI (Huamanga, 1560-1570), no Peru. O ponto
de comparação entre eles deve ser visto em seu apocalpcismo e não tanto em
seu comportamento religioso (CAMPOS, B., 1996, p. 54).
O discurso escatológico a respeito do céu é concebido a partir de realidades da vida
concreta; logo, céu e terra estão interligados “assim no céu como na terra”
(HINKELAMMERT, 2012, p. 169). No pentecostalismo a escatologia não levou os sujeitos a
processos revolucionários, mas isso não significa que sua práxis não tenha sido capaz de
influenciar o chronos. Muitas mulheres e muitos homens que aderiam ao pentecostalismo
encontravam naquele espaço laços fraternos garantidores de dignidade. Mesmo assim, a
concepção do aiôn esteve relacionada com anseios de abreviar, contrair e resistir ao chronos.
Para o assembleiano Walfrido dos Anjos
Dia terrível quando o Senhor da glória descer dos altos céus à Terra a fim de
julgá-la. Este dia, cada vez mais se aproxima, pois, as Escripturas Sagradas
assim o dizem e, não só ellas, mas também, o incremento que tem tido toda a
sociedade das nações mais cultas. Entretanto, para que, os múltiplos
desenvolvimentos quer nas letras, quer nas artes e sciencias? Para que, tantos
mestres, philosophos e moralistas, se estes não anunciam à humanidade
desativada de todos os preconceitos? Povos e nações, porém entregam-se aos
prazeres, esquecendo-se de que o homem do pó veio e só pó tornará (MP, n.
4, p. 6, 1931).
Pode-se afirmar que o pentecostalismo é uma religião de migrantes. Tanto a migração
internacional como aquela que aconteceu dentro dos limites do território brasileiro foram um
dos principais elementos estruturadores da identidade assembleiana. Esses fluxos migratórios
ajudaram a reforçar a concepção pentecostal de que nós não somos deste mundo?
Provavelmente sim. Uma das primeiras matérias publicadas no jornal Mensageiro da Paz já
dizia: “Não desconheceis também que sois peregrinos no mundo, que mui breve, hoje ou
amanhã estareis no fim da jornada” (MP, n. 3, p. 1, 1931); essa matéria foi assinada por Zélia
Brito. Inúmeras brasileiras e inúmeros brasileiros viram nas crenças do pentecostalismo meios
de superação dos desafios da jornada migratória.
Todavia, mesmo essa ideia de peregrinação não está relacionada com alienação política.
Ver-se como um peregrino na terra não faz do sujeito um ser apolítico. Ao analisar movimentos
religiosos similares, Boris Gunjevic nos mostra que “a peregrinação comum da comunidade
católica na terra é a única alternativa para uma metanarrativa imperial que possa formar a prática
necessária para a constituição do sujeito político” (GUNJEVIC, 2012, p. 81). Como já
71
mencionamos anteriormente, essa mesma posição é discutida por Agamben a partir da
expressão grega paroikousa, que reforça a ideia da transitoriedade da existência. O
reconhecimento dessa dimensão transitória da vida determinará uma postura crítica em relação
ao chronos. O mesmo Boris Gunjevic (2012) ao analisar a obra a Cidade de Deus, de Santo
Agostino17, viu nele um interlocutor da crítica ao império e de práticas políticas na
contemporaneidade.
Ao comentar a Carta aos Coríntios de Clemente, Agambem lembra a saudação do autor
quando diz: “A igreja de Deus que se encontra em Roma à igreja de Deus que se encontra em
Corinto” (AGAMBEN, 2006, p. 35). A tradução da palavra paroikousa é estrangeiro, colono,
em estada, que remete à ideia de uma habitação transitória no mundo. Sendo assim, o horizonte
escatológico do porvir está relacionado com a maneira na qual se vive o chronos. É preciso
abreviá-lo e qualificá-lo.
Para Slavoj Zizek vivemos em tempos onde impera a perversidade espiritual do céu de
modo que, embora haja sinais naturais, econômicos e sociais que apontam para a destruição há
sempre uma negação desse fim iminente, na medida em que “podemos distinguir padrões no
modo como nossa consciência social trata o apocalipse vindouro. A primeira reação é a negação
ideológica de qualquer desordem sob o céu” (ZIZEK, 2012b, p. 13). Tal posição ajuda a manter
os mesmos sistemas dominantes. Tendo em vista que a década de 1930 é um período entre as
duas Grandes Guerras Mundiais, parte dos artigos do jornal Mensageiro da Paz está estruturada
a partir de uma mentalidade milenarista de incerteza. Esse discurso escatológico dos últimos
17 No quinto capítulo de Cidade de Deus, Agostinho desconstrói com muita originalidade as virtudes do Império
Romano. No contexto eclesiástico da África do Norte, onde ele estava situado, o Bispo de Hipona tentou
indiretamente elucidar o que provocou, depois de 800 anos, a queda do Império Romano. Sua leitura
intertextual, tanto teológica quanto política, da história política romana pode ser aplicada de maneira crítica ao
projeto de Hardt e Negri em Império. Os cinco primeiros livros de Agostinho são escritos como uma crítica
àqueles que querem se prender à adoração de múltiplos deuses pagãos, enquanto os cinco seguintes são
voltados contra esses apologistas que afirmam existir sempre males menores e maiores. Os quatro livros
posteriores descrevem a origem da cidade mundana e da cidade de Deus. Depois disso, Agostinho fala, em
outros quatro livros, sobre o caminho e o desenvolvimento dessas duas cidades, ao passo que os últimos quatro
livros apresentam o propósito das cidades. O livro V de Cidade de Deus serve como ponto de virada no
argumento fervoroso de Agostinho contra os ataques pagãos à fé cristã. Sua réplica carrega consigo
interpretações críticas das virtudes imperiais. Agostinho observa a genealogia do Império Romano pela
complexa rede de poder na qual ele mesmo está imerso. Ele sabe da natureza entrelaçada da história e da
política romanas e afirma que isso não é coincidência – não é obra do destino nem dos deuses pagãos.
Agostinho argumenta que a censura de Rufio Antônio Agripino Volusiano, responsabilizando o cristianismo
pelos flagelos da guerra que quase destruíam Roma, é irrelevante e despropositada; ele apresenta essa visão
nos 10 primeiros livros de Cidade de Deus. Para Agostinho, essas e outras calamidades semelhantes sempre
existiram, portanto esta não é exceção. O Bispo de Hipona se refere à história das guerras romanas – que não
são poucas -, algumas com mais de 30 ou 40 anos de duração. Apologistas cristãos posteriores, principalmente
os apologistas medievais, como seguidores da escola agostiniana, interpretaram em ampla medida as
constatações apologistas de Agostinho de maneira superficial, em termos de ideologia. Justamente por essa
razão, esses cinco livros deveriam ser relidos, pois eles apresentam a melhor crítica possível de Hardt e Negri
(GUNJEVIC, 2012, p. 71).
72
dias, a que se refere o texto abaixo, é potencializado pelas desordens causadas pelos inúmeros
conflitos armados, onde não se nega a iminência factual do fim. Tanto o artigo escrito pelo
pastor Bruno Skolimowsky em 1937 como aquele assinado ed Frida Vingren de 1930 discutem
essa temática:
Lendo o capítulo 24 do livro do profeta Isaias, concluímos que vivemos, de
fato nos últimos dias ali preditos. Este trecho, cap. 24, notadamente no
versículo 17 adverte aos moradores da terra acerca dos termos que os espera.
Realmente, vemos o mundo envolvido em sérios embaraços de toda ordem;
guerras, revoluções, ameaças, rumores, terremotos, terroristas, pestilências e
outros males (MP, n. 20, p. 2, 1937). O estado mais doloroso sobre quasi toda
a face da terra, hoje em dia, é a falta de paz. Como signaes, guerras e
revoluções (MP, n. 1, p. 1, 1930).
Em nossa pesquisa no jornal Mensageiro da Paz encontramos artigos que falam dos
motivos pelos quais se deseja ir para o céu. Num deles, o articulista parece demonstrar sua
objeção à ideia de ir para o céu como fuga do sofrimento humano na terra. Num segundo artigo,
fica mais claro que o desejo de uma vida futura está relacionado aos anseios de viver num tipo
de mundo onde haja paz, igualdade e justiça. O jornalista assembleiano Emílio Conde escreveu
a respeito disso, de modo que em um desses artigos é questionada a ideia de que ir para o céu
seria uma forma de escapismo.
Porque desejais ir ao céu? Quem deseja ir ao céu, tendo como objetivo
principal fugir ao sofrimento, é medroso e não está na plenitude da graça (MP,
n. 10, p. 1, 1945). No dia em que Deus dará a seu povo, além de ser eterno,
tudo será perfeito, bom e agradável (MP, n. 4, p. 1, 1941).
No artigo abaixo se vê como os discursos entre a justiça da terra e a justiça do céu estão
entrelaçados. De forma inversa ao que acontece no céu o autor faz crítica à maneira como a
justiça privilegia alguns em detrimento de outros nos tribunais humanos; e mais uma vez se
condena a instrumentalização da religião para fins de abuso e violência:
No tribunal de Cristo, não haverá julgamentos simulados, não haverá defesa
sofistica e hipócrita que absolve o culpado e condena o inocente. Nenhum
argumento terá valor para justificar a violência. O tribunal revelará quantos
crimes se cometeram em nome da civilização; quantos males os homens
praticaram em nome da religião, impondo, pela força, as suas ideias e domínio,
abusando da posição e autoridade ocasionais (MP, n. 7, p. 6, 1941).
Desse modo, acreditamos que a escatologia, enquanto empoderamento discursivo esteve
relacionada com resistência e contestação e não com alienção ou descompromisso social. Por
73
isso, averiguamos que desde a década de 1930 há posições políticas no assembleianismo
brasileiro, como as caracterizadas por críticas a estadistas e a modelos de estados, bem como
anseios por um mundo justo e igualitário.
3.4.3 Assembleianismo e a Experiência do Kairos
Analisaremos a experiência do assembleianismo brasileiro com o kairos a partir de dois
elementos: o êxtase religioso e as formas de ascetismo - não falaremos aqui das concepções de
ascetismo discutidas por Weber18. Tanto o êxtase como as formas de ascetismo têm no corpo
em sua dimensão biológica, performática e política a sua centralidade. No caso das experiências
de êxtase é um corpo que se entrega, que demove as barreiras do silenciamento, que não quer
ser invisível. No ascetismo é um corpo que se contrai, que se recusa. Em ambas as experiências
esse corpo é movido pelo inconformismo. Cria-se um núcleo existencial, a partir do qual se
manifesta uma corporeidade que não quer estar sujeita a determinados padrões opressivos.
Esses corpos querem falar não apenas uma língua nova, mas querem novos sentidos para a
existência. A vida humana que se politiza (Zoé a politikon Zôon, na expressão usada por
Agamben) é então percebida e vivida a partir de categorias como a linguagem extática e as
formas de ascetismo. Quanto ao seu modo de viver, um dos textos do jornal afirma:
Aos olhos do mundo, quer dizer, dos homens com quem vivemos, parece
estranho o nosso modo de viver; em verdade há razão para eles estranharem
nossa conduta, assim como nós estranhamos a conduta deles. Entretanto, a
realidade é que a nossa vida é muito mais alegre do que muitos pensam, e que
a nossa vida é uma alegria perene (MP, n. 5, p. 6, 1942).
18 Bernardo Campos lembra que Weber observou que a ética puritana de austeridade e negação do prazer carnal
das coisas deste mundo (ascese intramundana) havia gerado, em seus indícios, o espírito do capitalismo. Assim,
ficava assinalado que as ideias podem exercer um impulso autônomo no processo de mudança social.
Entretanto, se a tese de Weber foi aplicável a certos setores do protestantismo europeu e norte-americano,
dificilmente se aplica ao protestantismo latino-americano. E muito menos ao pentecostalismo, dada a sua
condição social majoritariamente proletária, sua urgência escatológica e as atuais variações e flutuações do
capitalismo internacional. Campos prossegue e lembra que os pentecostalismos estão longe de contribuir
proporcionalmente ou de suscitar ao que se aproxime de um “capitalismo popular” (CAMPOS, 1996, p. 59).
74
Não pensamos que o pentecostalismo nesse período foi uma religião de negação do
corpo. Pelo contrário. Acreditamos que houve dimensões de criticidade tanto nas experiências
extáticas como em formas de ascetismo, o que nos faz afirmar que os assembleianos viviam
uma performatividade política a partir do interior do pentecostalismo. Não iremos discutir o
êxtase pura e simplesmente como experiência, mas sua relação com dimensões antropológicas
e sociais. Pensamos que, mediante as experiências de êxtase, mulheres e homens que vivem
circuncritos em relações de opressão expressam seus medos e anseios, mas também contestam
padrões culturais e sociais.
Há dimensões de certo inconformismo nas esperiências extáticas, pois “êxtase é não
satisfazer-se com o que se é; deslocar, levar para fora, modificar alguma coisa”
(PERLONGHER, 2012, p. 158). O êxtase também é uma das formas de linguagem mais
primitivas da humanidade. Essa experiência tenta captar aquilo que escapa à razão. Isso não
quer dizer que o pentecostalismo foi contrário a todo tipo de razão, mas ele pode ter sido um
movimento de oposição à razão moderna.
Portanto, o êxtase como linguagem quer superar a razão instrumental, no sentido de
contestar sua pretenção de tudo explicar. Como se sabe, o pentecostalismo contemporâneo
nasceu no contexto positivista do final do século XIX e começo do século XX e, por isso,
acredita-se que essas marcas extáticas do movimento são também reação aos excessos da razão
instrumental e da técnica que intencionavam conduzir a humanidade a um novo tempo de
progesso.
Houve momentos do pentecostalismo norte-americano em que os seus integrantes
ansiavam receber o batismo com o Espírito Santo, a fim de falar uma nova língua conhecida,
com propósito de realizar missões no país onde se falava aquela nova língua recebida. Nesse
contexto estadunidense o batismo com o Espírito Santo esteve relacionado com línguas
estrangeiras. Entretanto, na maioria dos pentecostalismos desejava-se falar as línguas
estranhas. Talvez eles percebessem que a razão instrumental era incapaz de decodificar o
sentido das línguas estranhas; logo, essa experiência êxtática superava a racionalidade
científica.
A linguagem é concebida a partir da cultura e dos processos sociais. Desse modo, falar
uma língua que não era desse mundo significa contestar não apenas a linguagem em si, mas
acima de tudo os contextos culturais, históricos e sociais nos quais essa linguagem foi
estruturada. Por isso, a glossolália também contesta o mundo e seus sistemas. As línguas
estranhas como experiência do inefável cria novas narrativas de sentido e de explicação da vida
para além da razão moderna. Ela também acolhe e agrega num mesmo espaço homens, mulhres,
75
crianças, jovens, velhos, brancos e negros. O pentecostalismo europeu, norte-americano e o
brasileiro associavam as experiências extáticas com o fim dos tempos; e para tal recorriam ao
texto bíblico do profeta Joel 2. Numa das muitas disputas com batistas a respeito do batismo
com o Espírito Santo, um texto do Mensageiro da Paz escrito, de autoria não identificada
pneumatológica está vinculada ao fim dos tempos.
Num destes dias, veio até as minhas mãos, um número do “O Jornal Baptista.
Li no referido jornal, um artigo sob a epigraphe: “O Pentecostismo”, escrito
por um certo Dr Pedro Tarsier. Sendo o artigo, anti-bíblico, em quase todo o
sentido, não posso, a bem da verdade, deixar de refutar as injustiças nelle
contida. Não vale a pena gastar tinta, papel e tempo, para entrar numa batalha
literária com o Dr Tarsier. Segundo a pretenção do Dr Tarsier, “o
Pentecostismo é anti-christão”. O propheta Joel disse: Nos últimos dias
derramarei do meu Espírito, etc. Os últimos dias, são os nossos dias, desde a
primeira vinda de Jesus, até o juízo final (MP, n. 4, p. 2, 1931).
Levamos em consideração que o êxtase está relacionado com as circunstâncias sociais,
mas também com a experiência humana em sua profundidade. O fato de ser possuído (cheio)
pelo Espírito Santo conferia certa autoridade, pois naquele momento o crente se tornava um
canal de comunicação entre mulheres/homens e Deus. Aquela e aquele que fala, profetiza ou
transmite uma revelação divina; enquanto intermediários, sentem-se escolhidos, especiais em
ter aquele dom. Isso lhes dava um sentimento de dignidade e de respeito na comunidade de
crentes.
Além da dignidade, ser intermediário da divindade lhes conferia empoderamento
discursivo. Nesse sentido ser cheio do Espírito Santo e profetizar era diferente da prática do
testemunhar, pois no primeiro caso a linguagem e as narrativas transmitem uma mensagem que
não pertence a este mundo, tem códigos que por mais que sejam sábias e entendidas as pessoas
não podem decifrar; mas aquela mulher e aquele homem pobres podem. Para as mulheres de
maneira especial essas experiências extáticas poderiam ser um protesto disfarçado contra o sexo
dominante – masculino, de modo que através das profecias, revelações e das línguas elas saem
do seu lugar social de silenciamento.
Mediante as experiências de êxtase essas mulheres chamavam a atenção para sua
exclusão e menosprezo, na tentativa de superá-los. Ambos os sexos poderiam ser tomados pelo
Espírito Santo e esse fato os colocava em posições iguais, pois tanto mulheres como homens
podiam ser intermediários da mensagem divina. No momento em que a mulher se manifesta no
interior das experiências extáticas e transmite profecias, revelações ou profere outras línguas,
inferioridade ou submissão feminina são categorias político-religiosas que naquele momento
76
não fazem sentido na comunidade. Portanto, êxtase não é apenas uma experiência individual,
mas também coletiva, pois ele dialoga com outros campos semânticos e se liga a dimensões
antropológicas e sociais a sua volta.
As experiências de êxtase são centradas no corpo, o qual se expressa para além de uma
regulação orgânica e se conecta a outros numa junção coletiva (PERLONGHER, 2012, p. 155).
Tais experiências religiosas estruturam e remodelam as formas de vivência. Com isso se
estabelece uma nova relação com a corporeidade, no sentido que no momento do êxtase há uma
dessexualização político-social dos corpos, pois diante da efusão do Espírito “... não há homem
ou mulher; pois sois todos um em Cristo Jesus” (Gálatas, 3. 28). É estabelecida a premissa da
igualdade. Seria esse um dos motivos da predominância de mulheres nos pentecostalismos, essa
possibilidade de empoderamento discursivo mediante as experiências de êxtase? A resposta a
essa pergunta não é simples. Todavia, em nossa análise dos escritos do jornal MP encontramos
textos que fazem indicação indireta da questão. O pastor Gunnar Vingren disse que “É
necessário que demos liberdade ao Espírito Santo, para que Ele opere livremente, seja por
homem ou por mulher, seja por dom ou por ministério, para que a egreja possa crescer na graça
do Senhor Jesus” (MP, n. 1, p. 4, 1930). [grifo nosso]
O êxtase enquanto estado alterado da consciência e desejo de desprender de si precisa
de algo que potencialize sua expressão, com o fim de modificar e alterar certo estado das coisas,
caso contrário ele perde seu sentido de ser. 19 Acreditamos que nesse assembleianismo o êxtase
esteve relacionado com a experiência humana em sua profundidade, mas não apenas a partir de
dentro. Mediante a exterioridade desse êxtase nos corpos de homens e mulheres ele incluiu
sujeitos marginalizados ao mesmo tempo em que contestou práticas dominadoras e opressivas.
No assembleianismo brasileiro o êxtase é acompanhado pelas formas de ascetismo, pois
é preciso consagrar, ter santidade para que as experiências extáticas aconteçam e a pessoa
estabeleça novos sentidos de existência. Nesse contexto, o corpo pentecostal tem uma potência
política. Mesmo quando esse corpo se recusa e se contrai ele está em processo de dialogicidade
com o mundo que o cerca, pois “estar em suspenso não é uma simples indiferença, mas a
experiência da possibilidade de uma potência” (AGAMBEN, 2015, p. 29). A postura da recusa
não deve ser entendida como alienação ou indiferença, mas sim como determinada visão crítica
do mundo. Hardt e Negri afirmam:
19 Talvez indivíduos que procuram esses estados de alteração de consciência através do uso de substâncias
entorpecentes podem entrar numa circularidade viciante em razão de nem sempre encontrarem um sentido
nesses anseios de desprender-se de si.
77
Este puritanismo ascético, esta insistência em renunciar aos prazeres e alegrias
da vida representam, de um lado uma restauração do princípio espartano da
igualdade contra as classes dirigentes e, de outro, uma etapa necessária de
transição, sem a qual os setores inferiores são incapazes de se porem em
marcha (HARDT; NEGRI, 2001, p. 239).
Para Hardt e Negri uma das formas de vencer os sistemas imperialistas é através da
recusa, de certo tipo de deserção e, agindo assim, abandonamos os lugares de poder. Para os
autores, caso vivesse em nossos dias, Francisco de Assis poderia ser um modelo político pós-
moderno e o ascetismo pode ser sim elemento necessário nos tempos atuais. Gunjevic também
discute essa questão
Para viver bem e construir o que é comum, o ascetismo é sempre necessário.
A encarnação como a de Cristo, que é um tipo de ascetismo, é um tipo de guia
ascético, ou melhor, um caminho para a vida virtuosa – como recomendou
Espinosa (GUNJEVIC, 2012, p. 64).
Hardt e Negri não estão reivindicando uma deserção em massa dos processos políticos
e sociais, entretanto aqueles que se recusam não devem ser considerados apolíticos ou
indiferentes. Mas mesmo esses que se recusam também são sujeitos políticos. Boris Gunjevic
acredita que certas doses de ascetismo podem ser elementos de um ativismo político.
Como vimos no Livro V de Cidade de Deus, Agostinho está clamando por
certa forma de deserção, êxodo e nomandismo. Ele está pedindo um ascetismo
disciplinado Isto é o que falta não só ao ativismo pós-moderno e anti-imperial,
mas também a própria multidão que ele constitui como sujeito político
(GUNJEVIC 2012, p. 81).
As práticas ascéticas podem ser posturas sociais que ajudam a formar um tipo de sujeito
político e que mesmo na sua radicalidade seria revolucionário, pois as racionalidades
imperialistas não poderiam dominá-lo. A recusa não é apenas resistência, mas também
redirecionamento do desejo. Os corpos de pessoas pentecostais que se recusavam, que se
contraíam, não queriam destruir o desejo, mas redirecioná-lo para uma dimensão eterna. Isso
se aproxima da concepção agostiniana sobre as práticas ascéticas. Para ele o ascetismo é uma
renúncia voluntária pelo desejo de poder e glória.
Sendo assim, entendemos que esses corpos de pessoas de pertença pentecostal estão
numa relação dialogal, mas ao mesmo tempo contestatória em relação a padrões sociais e
políticos. A recusa emerge a partir de uma mentalidade de resistência e tal postura faz deles
78
sujeitos políticos e não indiferentes ou alienados. A referida resistência se dá tanto pelo corpo
em sua dimensão biológica como na política. Há, então, elementos de considerável radicalidade
nesse assembleianismo em 1930-1945, de modo que pensamos haver, desde esse período,
posições políticas nas ADs. Nesse contexto, as concepções escatológicas não estão relacionadas
com fuga do mundo ou da realidade, mas sim com elementos de contestação e crítica.
3.5 CONCLUSÃO
Os movimentos políticos que levaram à chegada de Getúlio Vargas ao poder em 1930
no Brasil trouxeram consideráveis mudanças políticas, sociais e econômicas. A diminuição do
poder das aligarquias rurais, a ascensão de novas elites econômicas e políticas e a passagem de
um país agrícola para um semi-industrial marcaram a época. Foi nesse contexto que analisamos
as relações entre assembleianismo e questões político-sociais. Identificamos que desde 1930 há
posição política no assembleianismo brasileiro, embora não tenha havido participação direta
nos processos políticos.
Nossa análise priorizou os artigos do jornal MP a partir das categorias utilizadas pelo
filósofo Agamben: tempo profano (chronos), tempo escatológico (aiôn) e tempo messiânico
(kairos). O tempo profano trata das relações com o tempo histórico; o tempo escatológico diz
respeito ao fim dos tempos e o tempo messiânico se refere às coisas penúltimas, o tempo que
nos resta e se manifesta a fim de mudar o chronos. Com o recurso dessas categorias,
averiguamos que o assembleianismo do primeiro período foi apartidário, mas não apolítico.
Portanto, podemos chamá-los de sujeitos políticos. Houve, nesse assembleianismo,
características de resistência e radicalidade político-social.
A partir da concepção de tempo profano vimos posições políticas no assembleianismo
brasileiro, ao passo que muitas delas são de crítica a modelos de Estado e de estadistas: “Os
homens em nossos dias, principalmente os políticos, passam pela vida com os punhos fechados,
amaldiçoando a tudo e a todos, tendo as mãos abertas somente para o seu egoísmo” (MP, n. 5,
p. 4, 1940). Para esse assembleianismo o chronos é um tempo que caminha para um fim, logo
é descartada a ideia do tempo histórico como progresso. Verificamos através do jornal
Mensageiro da Paz que mesmo com essa visão do chronos, mulheres e homens de pertença
pentecostal não foram indiferentes, mas sim críticos ao tempo e ao mundo no qual viviam.
79
A partir da concepção de tempo escatológico vimos que o discurso escatológico a
respeito do céu é concebido a partir de realidades da vida concreta; logo, céu e terra estão
interligados, discurso sobre o céu é discurso sobre terra. Através de artigos do jornal
Mensageiro da Paz discutimos as relações entre escatologia e política e acreditamos que o
discurso escatológico não é a causa ou o elemento originário de certo afastamento da vida
pública brasileira, mas efeito de processos de exclusão; foi empoderamento discursivo de
subalternos. Foi através de determinadas crenças que as brasileiras e os brasileiros de pertença
pentecostal canalizaram suas vozes de criticidade e rejeição a sistemas opressores e
excludentes.
No que diz respeito à categoria do tempo messiânico (tempo que nos resta) analisamos
o sujeito político pentecostal dessa época a partir da dimensão das práticas de êxtase e das
formas de ascetismo tão presentes na experiência religiosa desses pentecostais no primeiro
período. E vimos nelas elementos de radicalidade, resistência e contestação social que nos
levam a afirmar que eles eram apartidários, porém não apolíticos. No êxtase, principalmente as
mulheres adquirem empoderamento discursivo quando se tornam intermediárias da divindade;
e nas formas de ascetismo o corpo que se recusa é o mesmo que não quer ser colonizado. No
capítulo que segue, analisaremos a posição e participação política de brasileiras e brasileiros
pentecostais durante a República Liberal e a Ditadura Civil Militar.
4 ASSEMBLEIAS DE DEUS E POSIÇÃO POLÍTICA: DA
“DEMOCRACIA” AOS “ANOS DE CHUMBO” (1946-1977)
4.1 INTRODUÇÃO
80
Este terceiro tópico de nossa pesquisa denominamos de “capítulo de transição” ou
capítulo intermediário. Não menos importante do que os demais ele descreverá e analisará
experiências políticas do pentecostalismo durante o período de 1946 a 1977. Entretanto, a
referida análise não será feita a partir das categorias de tempo chronos, aiôn e kairos, pois
priorizaremos tais categorias para nossa comparação principal nesta tese, que está relacionada
com os períodos 1930-1945 e 1978-1988. Neste capítulo descreveremos aspectos da conjuntura
política e social do Brasil que são importantes para a nossa tese, dividindo o período em dois
momentos de 1946 a 1964 e 1964-1977. Assim, procuramos possibilitar uma visão do conjunto
das décadas.
No primeiro momento, dezenove anos, o Brasil vivenciou um período de relativa
democracia formal onde os partidos políticos puderam funcionar. Durante os processos
democráticos desse período, houve lideranças políticas assembleianas na política partidária.
Descreveremos e analisaremos também a influência de missionárias e missionários
estadunidenses que chegaram ao Brasil nesse período. De modo que destacaremos as figuras de
Ruth Dorris Lemos, João Kolenda Lemos, Bernard Johnson Jr, Lawrence Nels Olson e Orlando
Boyer.
Descreveremos e analisaremos personalidades pentecostais de destaque no campo da
política nesse período. Veremos que o pastor Antônio Torres Galvão foi uma expressiva
liderança sindical no Nordeste, além de ter sido o único governador de origem operária de
Pernanbuco. Também analisaremos a influência do nacionalismo em práticas poltíticas e
eclesiásticas do pastor Paulo Leivas Macalão.
Durante o segundo período de nosso recorte histórico, 1964 a 1977, o Brasil esteve sob
o governo dos militares. Um sentimento de anticomunismo predominava nas direitas do Brasil
que culminou com o golpe de 1964. A postura política de assembleianos nesse período não foi
homogêna. De maneira geral, os discursos publicados no jornal Mensageiro da Paz também
refletiram preocupações anticomunistas. Entretanto, houve lideranças pentecostais que
criticaram o regime militar e uma das principais foi Manoel da Conceição Santos. Manoel foi
uma das principais lideranças das Ligas Camponesas no Nordeste brasileiro. Sua frase “minha
perna, minha classe” representou a perseguição e tortura a que foi submetido, mas também seus
ideiais de igualdade e justiça.
4.2 O PERÍODO 1946-1964
81
4.2.1 Aspectos da Conjuntura Política e Social Brasileira
Como se sabe, após o fim da Segunda Guerra Mundial, Estados Unidos e União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) disputaram a hegemonia militar e econômica do
mundo. Essa disputa entre as duas potências resultou na instauração da Guerra Fria em 1947.
Era também a época do American way of life, em que nesse estilo de vida americano os valores
da classe média eram exaltados. O american way of life era difundido por intemédio da indústria
cultural norte-americana, seja mediante a veiculação de filmes de Hollywood, como o
Juventude Transviada, ou mesmo através de artistas musicais como foi Elvis Presley. Sendo
assim, o modelo americano de capitalismo e de consumo começou a ser implantando no Brasil.
Como vimos no capítulo anterior, no período de 1930-1945 há consideráveis mudanças
políticas e econômicas no Brasil. São lançadas as bases do setor industrial brasileiro, por
intermédio da intervenção e regulação estatal na economia. Foi, portanto, um modelo nacional-
desenvolvementista, mas “na prática mais desenvolvementista que nacionalista” (MOTA, 2015,
p. 707), pois quando se procurou defender os interesses sociais, houve reação dos grupos
ligados ao capitalismo hegemônico. Além do fim da guerra, o período se inicia com a eleição
democrática do general Eurico Gaspar Dutra (1946-1951) 20, e com anseios dos movimentos
sociais por mais participação política. Disputaram as eleições presidênciais: o já referido Dutra
do PSD (Partido Social Democrático); Eduardo Gomes da UDN (União Democrática Nacional)
e Iedo Fiúza do PC (Partido Comunista). Num total de 46 milhões de brasileiros, cerca de 7
milhões estavam inscritos para votar e desses cerca de 6,2 milhões votaram. O general Dutra
recebeu 55% dos votos válidos.
Nesse contexto, anseios por democracia e modernização eram palavras que estavam na
ordem do dia, muito embora a democracia e a modernização estivessem sempre em conflito.
As novas elites e setores da classe média diziam que o país deveria deixar sua condição de
“atrasado” e se adequar aos novos arranjos econômicos e tecnológicos. Os modelos de
20 A ordem dos presidentes no período foi: José Linhares (interino, 1945-1946) sem partido; Eurico Gaspar
Dutra (1946-1951) PSD; Getúlio Vargas (1951-1954) PTB; João Café Filho (interino, 1954-1955) PSP; Carlos
Luz (interino, 1955) PSD; Nereu de Oliveira Ramos (interino, 1955-1956) PSD; Juscelino Kubitschek (1956-
1961) PSD; Jânio Quadros (1961) UDN; Paschoal Ranieri Mazzilli (interino, 1961) PSD; João Goulart (em
regime parlamentarista, 1961-1963) PTB; João Goulart (restauração do regime presidencialista, 1963-1964)
PTB; Paschoal Ranieri Mazzilli (interino, 1964) PSD; Humberto de Alencar Castelo Branco (1964-1967) início
do regime militar brasileiro.
82
industrialização e urbanização dos anos de 1950 foram norte-americanos. O economista Celso
Furtado recebeu, nesse período, um prêmio da embaixada americana em razão de seus estudos
sobre as relações Estados Unidos-Brasil. Insere-se com isso a ideia do planejamento, a fim de
tirar o país do subdesenvolvimento, do atraso e do poder dos antigos coronéis.
As novas elites brasileiras afirmavam que a Segunda Grande Guerra havia demonstrado
que o Brasil possuía significativas carências tecnológicas e industriais, se comparadas aos
Estados Unidos, França, Inglaterra e mesmo à Alemanha e Japão. Todavia, as antigas elites
consevadoras ainda eram influentes e obstaculizavam vários processos de justiça social e
igualdade. Os partidos recém-criados, UDN e PSD, deram sustentação ao governo Dutra.
Entretanto, esses dois partidos representavam os grupos exportadores e os proprietários rurais,
os quais resistiam às políticas governamentais voltadas à industrialização. Além disso, o Brasil
era ainda dependente das exportações de café. O governo do presidente Dutra ajudou a
consolidar essa classe política conservadora no poder, os quais temiam o avanço eleitoral de
políticos comunistas.
O quadro político conservador começou a mudar a partir da eleição de Getúlio Vargas
(1951-1954), do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro); ele recebeu apoio dos sindicalistas e
comunistas. Desse modo, a ala nacionalista se fortaleceu, e para ela caberia ao Estado a
exploração tanto da siderurgia como do petróleo. A industrialização foi a meta principal da
política econômica do governo e, nesse projeto, o Estado foi a instância maior na constituição
e desenvolvimento de um capitalismo industrial. Entretanto, o governo getulista perdeu o apoio
dos militares e foi alvo de uma série de acusações de corrupção. Em sua carta de suicídio,
Getúlio relatou conspirações internacionais contra a Petrobrás e os direitos dos trabalhadores.
Apesar disso, as bases de uma indústria pesada já estavam lançadas.
Todavia, esses processos de industrialização ficaram mais concentrados nos Estados de
São Paulo e da Guanabara, o que impulsionou o fenômeno das migrações internas, em razão
dos desequilíbrios regionais de crescimento. Estes desequilíbrios regionais, o aumento da
população e a urbanização foram elementos-chave nos processos migratórios internos. Se na
década de 1940 setenta e cinco por cento da população brasileira viviam nas zonas rurais, em
fins da década de 1960 cinquenta e dois por cento viviam nas cidades. Os centros urbanos não
foram capazes de absorver toda a mão de obra que se deslocava do campo, o que ocasionou um
número expressivo de desempregados. Em 1950 cerca de 4,3 milhões de brasileiros migraram
e, desse contingente, 1,1 milhões eram do Nordeste, enquanto que 1,3 milhões eram de Minas
Gerais.
83
Em razão da baixa qualificação os migrantes que chegavam do campo tinham salários
baixos e como não eram sindicalizados, não tinham quem defendesse seus direitos trabalhistas.
Na maioria dos casos eram camponeses e lavradores que desejavam ser operários. Trocavam
“o chão da terra” pelo “chão de fábrica” ou pelo asfalto. Aos poucos, esses migrantes foram
substituindo os imigrantes estrangeiros, os quais possuíam mais habilidades técnicas para o
trabalho nos centros urbanos. Esses operários estrangeiros já possuíam uma tradição em
sindicatos para reivindicação de seus direitos. Caso oposto era dos migrantes que chegavam do
campo; esses não tinham tradição com luta sindical.
Os partidos políticos que haviam sido extintos em 1937 se reorganizaram no período
democrático pós-guerra. Entre 1945 e 1948 trinta e um partidos protocolaram pedidos de
registro. Os mais representantivos estavam divididos em três categorias: Conservadores –
alinhados a essa posição política estavam a União Democrática Nacional e o Partido Social
Democrático , além de partidos menores com atuação mais regional; Progressista – composto
pelo Partido Trabalhista Brasileiro e o Partido Social Progressista (PSP); Ideológicos – faziam
parte dessa corrente o Partido Comunista Brasileiro (PCB), Partido Socialista Brasileiro (PSB),
Partido Democrata Cristão (PDC) e Partido da Representação Popular (PRP).
4.2.2 Partem os Suecos, Chegam os Norte-Americanos
O ano de 1946 marcou o final da liderança pastoral do sueco Samuel Nystrom da AD
brasileira. Nesse mesmo ano aconteceu também o registro da CGADB como pessoa jurídica e,
desse modo, o movimento pentecostal de matriz assembleiana entrou numa fase de maior
institucionalização; outro fato importante nesse ano foi a chegada do pastor Cícero Canuto de
Lima à presidência da AD na capital de São Paulo. Tempos depois esse ministério passaria a
ser denominado como Belenzinho ou Belém em razão da localização da igreja no bairro
paulistano de mesmo nome. Canuto nasceu em 1893 na cidade de Mossoró/RN, mas sua
conversão ao pentecostalismo aconteceu no interior do Pará, onde havia considerável número
de migrantes seringueiros. Antes de assunir a AD em São Paulo Cícero Canuto liderou igrejas
no Nordeste e foi o primeiro pastor brasileiro a presidir a Convenção criada em 1930. Entre
1939 e 1946 também foi copastor da AD em São Cristóvão, que naquela época era liderada por
Samuel Nystrom.
84
Assim como Cícero Canuto um número significativo de lideranças pentecostais entrou
no ciclo migratório rural para o contexto urbano e industrial nas grandes cidades brasileiras.
Desse modo, o período pós-1946 fora marcado pelo fortalecimento dos modelos de Ministérios
das ADs bem como pela institucionalização do movimento pentecostal brasileiro. Os suecos
que por mais de vinte e cinco anos exerceram a principal influência estrangeira no
assembleianismo no Brasil passaram a deixar a liderança das principais igrejas. Com isso, os
missionários norte-americanos ganharam espaço e sua influência se deu, sobretudo, na teologia,
produção literária e comunicação.
O Instituto Bíblico das Assembleias de Deus (IBAD) foi fundado, em 1958, por
missionários das Assembleias de Deus dos Estados Unidos, Ruth Dorris Lemos e João Kolenda
Lemos. Hoje é reconhecida como a primeira instituição de educação teológica formal das ADs
no Brasil. O casal de missionários analisou 45 cidades onde o instituto poderia ser implantado
(ARAÚJO, 2007, p. 589), dentre as quais estavam: Divinópolis (MG), Rio de Janeiro (RJ) e
Pindamonhangaba (SP). Esta última cidade foi escolhida e as aulas no IBAD foram iniciadas
em março de 1959. Um dos critérios para a escolha de Pindamonhangaba foi a qualidade de
vida da cidade, bom clima, fácil acesso e apoio da igreja local. A primeira turma era composta
de sete alunos, cinco deles eram procedentes de Minas Gerais.
A missionária Dorris nasceu em 1925 no estado da Califórnia. Ao final de seus estudos
teológicos foi ordenada ministra e trabalhou como copastora. O missionário Kolenda nasceu
em Pelotas (RS) no ano de 1922; era filho de uma alemã e um brasileiro. Ainda jovem Kolenda
migrou para os Estados Unidos a fim de cursar o seminário teológio no Central Bible College
em Springfield. Depois de se casarem os missionários pastorearam uma igreja no estado de
Michingan e em 1951fizeram sua transferência para o Brasil. Antes de fundarem o IBAD
trabalharam na CPAD tanto em departamentos administrativos como em produção de literatura.
Quando foram para Pindamonhangaba precisaram trabalhar para ajudar na manutenção do
IBAD, de modo que a missionária Dorris dirigiu o departamento de inglês da Universidade de
Taubaté (ARAÚJO, 2007) e o missionário João Kolenda trabalhou como tradutor.
Em 1940 chegou ao Brasil ainda criança Bernhard Johnson Jr. Ele nasceu na Califórnia
em 1931 e chegou a cursar Engenharia numa Universidade em Lavras (MG). Mudou-se para os
Estados Unidos e se formou na Central Bible College em 1954. Retornou ao Brasil três anos
depois como missionário enviado pelas Assembleias de Deus dos Estados Unidos. Foi pastor
de igrejas em Divinópolis e Varginha, ambas no estado de Minas Gerais. Fundou a Cruzada
Boas Novas, onde realizava “cultos ao ar livre” com um tipo de pregação com ênfase na
85
conversão e na cura divina. O pastor Bernhard Johnson Jr. também fundou em Campinas a
Escola de Educação Teológica das Assembleias de Deus (EETAD).
O missionário estadunidense Lawrence Nels Olson estava no Brasil desde 1938, mas
tudo indica que ganhou mais notoriedade a partir de 1947 quando iniciou um programa de rádio
em Lavras. Em 1955 foi ao ar no Rio de Janeiro seu programa radiofônico Voz das Assembleias
de Deus. Trabalhou na CPAD e trouxe para o Brasil o Plano Divino Através dos Séculos – um
livro no qual apresentava através de iconografia a doutrina do dispensacionalismo. Em 1961
fundou no Rio de Janeiro o Instituto Bíblico Pentecostal (IBP).
O missionário Orlando Boyer foi enviado pela missão norte-americana em 1936, mas
é a partir de 1945 que tem destacada atuação no campo da produção literária. Foi um dos
pioneiros na edição de livros, tendo fundado uma editora com sede na Tijuca, Rio de Janeiro.
Além de ter publicado dezenas de livros atuou como professor no IBAD entre 1967-1977.
Embora não tenha sido missionário no Brasil o evangelista Jimmy Lee Swaggart também
exerceu influência no asssembleianismo brasileiro. Além de suas doações para a expansão e
projetos da CPAD, Swaggart realizou cruzadas evangelísticas em estádios de futebol e nas
décadas posteriores seus programas de televisão eram transmitidos no Brasil. Em 1988
Swaggart seria excluído das Assembleias de Deus norte-americanas em razão de escândalos
relacionados com a moral sexual e fraude fiscal.
Esses missionários estadunidenses eram próximos dos primeiros quadros políticos das
ADs no Brasil. Foi no Partido Social Progressista (PSP) que surgiu o primeiro deputado
assembleiano por Minas Gerais: João Gomes Moreira. Ele foi parlamentar em Minas Gerais
entre os anos 1959 e 1967; e exerceu mais três mandatos consecutivos de 1971 a 1983. O pastor
e presidente da Convenção de Ministros das Assembleias de Deus em Minas Gerais
(COMADEMIG) na década de 1960, o missionário Bernard Jonhson Jr, realizou na cidade
mineira de Divinópolis uma Assembleia Geral Ordinária (AGO). O pastor agradeceu ao
deputado estadual João Moreira pelo apoio na logística do evento.
Graças a intervenção e auxílio do digníssimo Deputado Estadual João Gomes
Moreira, conseguimos que o Comandante Geral da Polícia Militar do Estado
de Minas Gerais, Coronel Manoel Assunção, nos cedesse o Quartel Militar da
cidade, que foi ocupado pelos pastores visitantes e estrearam êste belo
edifício, pois nunca antes fora cedido à pessoa alguma (MP, n. 21, p. 7, 1960).
Num simpósio realizado em 1965 na cidade de São Paulo, o pastor Lawrence Olson
afirmou:
86
No Brasil os crentes pentecostais têm se tornado em um fator humano tão
forte, que até os políticos os procuram como força eleitoral. Os crentes
pentecostais já elegeram seus elementos, como seja o irmão João Gomes ao
Legislativo de Minas Gerais e Levi Tavares, de São Paulo, ao Congresso
Nacional. Esses casos tornam-se cada vez mais frequentes (CAMPOS, L.,
2005, p. 89).
O outro nome citado na matéria, Levi Tavares, era da igreja O Brasil para Cristo, mas a
expressão usada pelo pastor Lawrence Olson: “esses casos tornam-se cada vez mais frequentes”
deixa subentendido que provavelmente já havia outras pessoas de pertença pentecostal ligadas
à política partidária no Brasil. Veremos que nas décadas posteriores houve significativo
aumento de candidaturas nas eleições de homens e mulheres com pertença pentecostal.
4.3 O PERÍODO DA DITADURA MILITAR (1964-1977)
4.3.1 Aspectos da Conjuntura Política e Social no Brasil
O anticomunismo no Brasil surgiu após a Revolução Russa de 1917, tendo em vista que
o evento teve proporções e reações internacionais. Os países capitalistas temiam que as massas
proletárias tivessem algum tipo de influência daquilo que ocorrera na Rússia. Deu início, então,
a uma série de propagandas anticomunistas nesses países. Na década de 1930 o Brasil contou
com o apoio de nações estrangeiras na repressão aos ideais comunistas e depois da Segunda
Guerra Mundial o país estabeleceu alianças com os Estados Unidos nos projetos
anticomunistas. Sendo assim, os modelos anticomunistas brasileiros eram, sobretudo,
estrangeiros, muito embora tenha havido também projetos originais no país. Há várias citações
no jornal Mensageiro da Paz a respeito do “perigo que vem da Rússia”. O pastor Athayde
Magalhães escreveu a respeito de suas impressões sobre o comunismo
Nunca é demais advertimos sobre as falsas ideologias e sua ação deletéria
sobre a sociedade humana que é a fé cristã. Por que devemos combater o
comunismo? Quais danos, os processos que êle adota para infiltrar-se nos
organismos sócio-econômicos, políticos e educacionais? Historicamente, o
Comunismo se filia a Karl Marx. Elaborou as linhas mestras do pensamento
comunista. Estas linhas foram prolongadas por pensadores de muitos países,
especialmente por Lennine (da Rússia). Foi implantado na Rússia em 1917 e
expandiu-se por vários países (MP, n. 18, p. 2, 1964).
87
Foi a partir de 1950 que a doutrina anticomunista foi mais disseminada na América
Latina com o decisivo apoio e financiamento dos Estados Unidos. Entretanto, nesse período o
comunismo não era uma preocupação central de governantes como Juscelino Kubitschek e
Getúlio Vargas, tendo em vista que suas prioridades era a industrialização brasileira (MOTTA,
2000). Dessa forma, os Estados Unidos passaram a dialogar sobre o anticomunismo com as
forças armadas, religiosos e políticos conservadores; e a imprensa brasileira teve um
significativo papel na divulgação da propaganda anticomunista. Nas décadas de 1950 e 1960 a
organização religiosa Movimento Por Um Mundo Cristão transmitia em Belo Horizonte um
programa de televisão dedicado a divulgar o anticomunismo. No campo da disputa política foi
criada a Aliança Eleitoral Pela Família (ALEF), agremiação política dedicada a agregar
candidaturas que se mostravam contrárias ao comunismo e a temas como o divórcio.
No início da década de 1960 quando começaram a surgir grupos progressistas no
catolicismo, como foi a Juventude Universitária Católica (JUC), a cúpula da Igreja intensificou
sua atuação contra as ideias comunistas. Difundiam-se informações que católicos ligados a
esses movimentos eram pessoas infiltradas pelos soviéticos a fim de disseminar o comunismo
entre brasileiros. As lideranças católicas desconfiavam que esses militantes eram comunistas
disfarçados de católicos. Rodrigo Motta (2000) analisou sete Cartas Pastorais nas quais os
bispos no Brasil alertavam os fiéis contra o “perigo vermelho”. Dom João Becker, bispo de
Porto Alegre, escreveu: O comunismo russo e a civilização christã; Carta Pastoral e
Mandamento do Episcopado Brasileiro sobre o Comunismo Ateu, escrita por vários bispos. O
bispo Gastão Liberal Pinto, de São Carlos, publicou a carta sobre o comunismo: Carta Pastoral
prevenindo os diocesanos contra os ardis da seita comunista teve a autoria do bispo de Campos,
Dom Antônio de Castro; Dom Geraldo de Proença, então bispo de Diamantina, escreveu a
Carta Pastoral sobre a seita comunista, seus erros, sua ação revolucionária e os deveres dos
católicos na hora presente; houve ainda a Carta Pastoral contra o comunismo, dos bispos da
Bahia e O comunismo e o momento nacional, dos bispos do Rio Grande do Sul.
Nesse período, o pastor assembleiano Abraão de Almeida também escreveu um livro
relacionado ao comunismo chamado Gogue, Magogue e o Anticristo. Nesse texto, a Rússia é
identificada com os reis maus de Gogue e Magogue citados pelo profeta bíblico Ezequiel. Nesse
sentido, o Comunismo da União Soviética representaria também o lugar de onde chegaria o
Anticristo. Essas doutrinas, além de influenciarem o imaginário religioso anticomunista,
também favoreceram o surgimento de inusitadas especulações escatológicas que apontavam o
presidente russo Mikhail Gorbachev como um possível Anticristo. Essas crenças que
88
associavam o comunismo soviético com doutrinas religiosas foram muito difundidas nas ADs,
principalmente por intermédio das Lições Bíblicas usadas nas Escolas Dominicais nas décadas
de 60,70 e 80.
Desse modo, o comunismo era identificado com a imagem do mal, de modo que no
imaginário da época ele traria sofrimento, fome, miséria e escravidão (MOTTA, 2000). Além
do sofrimento, os grupos mais conservadores acreditavam que o comunismo acarretaria, acima
de tudo, o aumento do pecado, tendo em vista que ele questionava a moral cristã e seria
favorável a temas como o amor livre e o aborto. Com efeito, foram atribuídas qualidades
maléficas aos comunistas. E, por fim, associou-se o comunismo ao demônio, de modo que sua
ascensão faria parte dos propósitos do diabo e por isso era uma trama diabólica. As
representações satânicas no comunismo serviam não apenas para influenciar a sensibilidade
religiosa das pessoas, mas também para criar um clima de medo e de receio das doutrinas
comunistas.
Uma série de representações zoomórficas foi usada para retratar o comunismo; as mais
usadas foram serpente, bode e dragão, todas, imagens ligadas ao imaginário religioso. Rodrigo
Motta (2000) analisa a imagem da serpente que era usada para representar o comunismo. De
imediato, seu significado simbólico remete a um animal que é venenoso e mortal. Como animal
que rasteja essa simbologia apontava para a ideia de que os comunistas estariam sempre na
espreita para se infiltrarem de maneira ardilosa. Na concepção cristã oriunda da narrativa bíblica
de Adão e Eva a serpente é um animal ligado à sedução e ao erotismo e que por consequência
levaria ao pecado e à queda. Além de imaginário religioso, houve representações do comunismo
de ordem patológica. Expressivos jornais da época diziam que era preciso desintoxicar o
organismo nacional do micróbio comunista; outros diziam que era preciso imunizar a nação
brasileira da peste vermelha; ou que o comunismo era como um corpo estranho e infeccioso
que corria o risco de infectar o organismo social (MOTTA, 2000).
Além desses imaginários havia também aquele ligado a valores morais cristãos, os quais
estariam em risco em razão da escalada comunista. Assim, os que se associavam ao comunismo
eram considerados corruptos, mentirosos, sedutores, entre outras características. Desse modo,
cristãos acreditavam que o comunismo minaria os valores basilares da sociedade. A moral
sexual e a estrutura familiar deveriam ser protegidas, diziam os anticomunistas. Esses
imaginários ligados a outros fatores políticos e sociais levaram ao golpe civil-militar em 1964.
Em 1961 já havia movimentos entre os militares para um possível golpe. Naquele ano,
Jânio Quadros renunciou à presidência da República e, na ocasião, seu vice João Goulart estava
numa viagem oficial à República Popular da China. Quando o cargo de presidente ficou vago
89
os ministros do Exército, Marinha e Aeronáutica interviram impedindo que Jango, como o
presidente era conhecido, assumisse o governo, pois segundo eles caso isso acontecesse o país
entraria num processo de desestabilização e caos. Entretanto, essa manobra dos militares era
constitucionalmente ilegal. O então governador do Rio Grande do Sul – Leonel Brizola - liderou
um movimento de resistência, de modo que após ampla movimentação e negociações João
Goulart tomou posse em setembro de 1961, mas isso se deu mediante um sistema
parlamentarista.
A posse de João Goulart significou uma tentativa de reatualizar o legado de Vargas,
principalmente mediante o nacional-estatismo (REIS, 2014). Em 1962 é apresentado o
programa das reformas de base que eram assim distribuídas: reforma agrária, com o objetivo
de terminar com o monopólio da terra e facilitar o surgimento de pequenos proprietários;
reforma urbana com fins a corrigir os problemas oriundos do crescimento desordenado das
cidades; reforma bancária para um maior controle do Estado no sistema financeiro; reforma
eleitoral onde seriam incluídos os analfabetos que nesse período correspondiam à metade da
população adulta do país; reforma do estatuto do capital estrangeiro, com objetivo de limitar a
remessa de lucros para o exterior e implementar a estatização de setores da indústria de base
(REIS, 2014); e a reforma universitária a fim de democratizar o ensino no Brasil. Esse
reformismo gerou debates no país com a presença dos movimentos sociais, tanto na cidade
como no campo. Jango precisava retomar os plenos poderes presidenciais, que eram limitados
pelo sistema parlamentarista. Assim, em janeiro de 1963 foi realizado um plebiscito onde a
maioria da população escolheu a volta do regime presidencialista. Jango, então, recupera seus
plenos poderes presidenciais para tentar implementar as reformas que programara.
Nas eleições de 1962 houve um crescimento de forças de direita na Câmara Federal e
também nos governos estaduais, de modo que as reformas propostas não agradaram os políticos
e setores mais conservadores da sociedade brasileira. Muitos desses temiam a ascensão de
lideranças populares. Além disso, não lhes agradavam as reformas que previam a redistribuição
da riqueza nacional. Para eles o Brasil estaria prestes a entrar num clima de desordem e caos.
Esse sentimento era ainda mais alimentado pela ameaça vermelha. Somavam-se a isso os
eventos mundiais no contexto da Guerra Fria: as Revoluções em Cuba e na Argélia; os conflitos
no Vietnã e outros tantos movimentos revolucionários de caráter socialista. Enfim, temia-se que
o nacional-estatismo levasse o Brasil ao comunismo assim como havia ocorrido em Cuba. A
fim de impulsionar as reformas, Jango promoveu um comício em 13 de março no centro do Rio
de Janeiro. Na ocasião, 350 mil pessoas ligadas à esquerda estiveram presentes (REIS, 2014).
Três dias depois foi realizada em São Paulo a Marcha da Família com Deus pela Liberdade.
90
Segundo as estimativas dos organizadores do evento, estiveram presentes 500 mil pessoas que
representam as direitas; ela recebeu significativo apoio do governador Adhemar de Barros.
O que se seguiu a esses acontecimentos foi a ordem do general Olympio Mourão Filho,
em 30 de março de 1964, para que os soldados sediados em Juiz de Fora fossem para o Rio de
Janeiro. Segundo eles, era necessário salvar a democracia do comunismo e da corrupção. Mais
uma vez, mediante um artigo do jornal Mensageiro da Paz assinado pelo pastor Athayde
Magalhães comemorou o ocorrido, pois segundo ele “a Revolução veio desarticular o
comunismo, a subversão e a corrupção” (MP, n.19, p. 2, 1964). Jango fugiu do Rio de Janeiro
para Brasília e de lá para Porto Alegre. Brizola tentou convencer Jango de se fazer uma
resistência ao Golpe; entretanto, o general Ladário Pereira Telhes, que inclusive diz que estaria
pronto para lutar, disse que as chances de vitória eram inexistentes (REIS, 2014, p. 78). Para
comemorar as direitas saíram às ruas, de modo que em abril de 1964 foi realizada mais uma
expressiva Marcha da Família com Deus pela Liberdade pelas ruas do Rio de Janeiro.
4.3.2 Assembleianismo e Heterogeneidade Política
O papel de lideranças assembleianas em relação ao regime militar não foi homogêneo;
por isso pensamos ser precipitado falar de um apoio das Assembleias de Deus à Ditadura. Mais
adiante citaremos e analisaremos o exemplo de assembleianos que discordaram do referido
regime. Apesar disso, houve proximidade entre pentecostais e membros do poder executivo e
principalmente do poder legislativo. Já no ano de 1964 havia movimentação de políticos em
cultos da AD no Plano Piloto de Brasília como se pode verificar em razão dessa nota publicada
pela editoria do Mensageiro da Paz
Evangélicos e funcionários públicos dos três poderes da República reuniram-
se dia 2 de agosto, no templo das Assembleias de Deus no Plano Piloto de
Brasília. O orador oficial do culto foi o Deputado Jeremias Fontes,
representante, na Câmara do Estado do Rio. Entre os membros de várias
denominações havia pastores e numerosos irmãos, destacando-se entre eles, o
prof. Cleanto Siqueira, que é secretário de Educação do DF. Representando os
91
metodistas, na abertura do culto, fizera uma oração o pastor Almir Bahia (MP,
n. 18, p. 8, 1964).
O deputado Jeremias Fontes citado na reportagem (a grafia correta é Geremias Fontes)
foi pastor da Igreja Batista do Calvário. De 1958 a 1962 foi prefeito de São Gonçalo pelo Partido
Democrata Cristão. Tempos depois se filiou ao Partido Trabalhista Brasileiro e candidatou-se
ao cargo de deputado federal. Na ocasião foi eleito com amplo apoio dos evangélicos. Em 1966
foi indicado pelo regime militar para governar o estado fluminense, cargo que exerceu de 1967
a 1971.
Em 1972 houve o conhecido conflito na região do Araguaia, Norte do Brasil. Parece
haver menção do fato no jornal Mensageiro da Paz. O pastor Eliseu Queiroz de Souza citou
pastores que criticavam o governo. Não fica claro se essas lideranças eram pentecostais, mesmo
assim é sintomático saber que elas demonstravam certa insatisfação.
No entanto, mesmo a despeito da obra gigantesca que o governo está
exercendo na Amazônia, a dinâmica e elogiável integração nacional que se
processa, a erradicação das favelas porque o governo está dando o melhor de
si, ainda se levantam vozes eclesiásticas insatisfeitas, criticando tudo, e até
fazendo declarações desprestigiosas à administração pública (MP, n.15, p. 2,
1972).
Uma liderança assembleiana que influenciou a reflexão pentecostal a respeito de
participação na política partidária foi o pastor Joanyr de Oliveira. Mineiro de Aimorés, também
tentou ser deputado federal no começo dos anos 1970. Em 1962 escreveu a primeira obra
literária do Distrito Distrital intitulada Poetas de Brasília. Seus textos poéticos foram elogiados
por escritores como Jorge Amado, pois segundo o escritor baiano a poesia de Joanyr devia
continuar sangrando o ar e a vida. Carlos Drummond de Andrade recomendou a leitura de
Poetas de Brasília. O dicionarista Antônio Houaiss também fez comentários a respeito da obra.
Riquíssima temática, senhorio da língua em geral e da poética em particular.
(Sou) seu admirador, (agora que tenho a) alegria de conhecê-lo e aos seus
versos. Suas elegias são pungentes, seus poemas a Brasília são
intrinsecamente belos paradoxos, pois ressaltam o criticável socialmente para,
apesar disso, louvar a sensível beleza da obra feita e in fieri
(www.usinadasletras.com.br).
Tempos depois, o pastor Joanyr de Oliveira viria fundar a Associação Nacional de
Escritores (ANE). Ele também participou do Congresso Internacional de Lausanne na Suíça
(ARAÚJO, 2007). Além de ter tentado uma vaga ao cargo de deputado no Distrito Federal o
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pastor Joanyr de Oliveira também se candidataria ao mesmo cargo nas eleições de 1986 à
Câmara dos Deputados; ambas, no entanto, sem sucesso. No início de 1971 fora nomeado para
um cargo no gabinete do governador de Goiás, conforme podemos verificar em nota em tom de
celebração publicada pela editoria do jornal Mensageiro da Paz:
Pela primeira vez na História de Goiás, um pentecostal integra a equipe
governamental: Nosso irmão em Cristo, Prof. Joanyr de Oliveira Evangelista
das Assembleias de Deus, colaborador deste jornal há mais de 20 anos e co-
fundador da revista A Seara, foi investido nas funções de subchefe do
Gabinete Civil do Governo do Estado de Goiás, por escolha pessoal do
governador Leonino Caiado. O irmão Joanyr de Oliveira é, ainda um dos
primeiros suplentes de Deputado Estadual no Estado que serve (MP, n. 11, p.
6, 1971).
O pastor Paulo Leivas Macalão, de quem falaremos mais adiante, também recebeu em
1975 o título de cidadão honorário do estado da Guanabara21 conforme nota publicada pela
Kézia Sotero. O autor da proposta foi o deputado Sérgio Maranhão - nasceu na mesma cidade
de Macalão. Ele era do então partido de oposição, o MDB (Movimento Democrático
Brasileiro). Naquela legislatura, inclusive 36 dos 48 deputados estaduais eleitos eram do MDB.
(Paulo Leivas Macalão) Foi bem merecido o prêmio de cidadania do Estado
da Guanabara, por requerimento 874/73, de autoria do Deputado Sérgio
Maranhão, que, antes de ser gaúcho (nasceu em Santana do Livramento, RS),
é um brasileiro voltado para o trabalho do Senhor, que honra as Assembleias
de Deus no Brasil (MP, n. 1, p. 15, 1975).
Ao que tudo indica o futuro presidente da Convenção Nacional das Assembleias de Deus
de Madureira (CONAMAD), pastor Manoel Ferreira, tinha acesso à Presidência da República.
Em artigo publicado no jornal Mensageiro da Paz o pastor Joanyr de Oliveira relatou:
Apraz-me dar-lhe ciência de que, conforme correspondência anterior, tomei
providências, ao lado do Pastor Manoel Ferreira, junto à Presidência da
República, no sentido de liberação do ponto dos funcionários públicos que
participarão da 23ª Convenção Regional das Assembleias de Deus em Recife
(MP, n. 1, p. 4, 1977).
Um dos assembleianos mais entusiastas do presidente Geisel foi o pastor João Pereira
de Andrade e Silva. Natural de Itajubá (MG) onde foi vereador por dois mandatos consecutivos,
também foi candidato derrotado ao cargo de deputado federal. Quando se mudou para o estado
de São Paulo exerceu o cargo de vice-presidente das Assembleias de Deus do Ministério do
21 A Guanabara foi um estado entre 1960 e 1975. Seus limites ficaram no território do atual município do Rio. Já
o estado do Rio de Janeiro tinha como capital a cidade de Niterói.
93
Belenzinho. Em um dos muitos editorais que escreveu no Mensageiro da Paz há um que exalta
os feitos do presidente Geisel.
Ouvimos o discurso do eminente Presidente da República. Sua Excia não
divagou nem fez literatura – embora o discurso seja excelente. O Sr.
Presidente Geisel foi direto ao assunto, num chamamento de atenção, um
comando, para que o povo brasileiro ouvisse sua palavra sincera, clara e
sensata. Um aviso a Nação. Não negou a gravidade do momento, porém não
exagerou, trazendo o pessimismo, porque o País possui condições de vencer
esta, e outras etapas desde ciclo de desenvolvimento. O Brasil possui
possibilidades para vencer a crise porque, além da probidade do Sr. Presidente
da República e da capacidade da maioria de seus colaboradores, pode contar
com as orações do povo de Deus (MP n. 2, p. 2, 1977).
Em 1977 o assembleiano e obreiro auxiliar da igreja-mãe em Belém, Antônio Alves
Teixeira, assumiu a presidência da Assembleia Legislativa do estado do Pará. Membro da
política partidária desde 1967, Antônio Alves Teixeira já tinha sido Primeiro Vice-Presidente
da Mesa Diretora da Assembleia Legislativa, líder do governo e líder da ARENA (Aliança
Renovadora Nacional). “Além do Deputado João Gomes Moreira, o Deputado Estadual
Antônio Alves Teixeira iniciou seu pronunciamento de posse à Presidência da Assembleia
Legislativa do Pará, em sessão solene realizada em 1º de março do corrente ano” (MP, n.7, p.
3, 1977).
A partir de agosto de 1977 estreia no jornal Mensageiro da Paz a coluna Parlamento.
Nela, há análises e breves relatos da atuação de deputados, principalmente dos evangélicos. Na
primeira coluna são citados os parlamentares Joel Ferreira (MDB-AM), Daso Coimbra
(ARENA-RJ), Daniel Silva (MDB-RJ), Edgar Martin (MDB-SP), José Camargo (MDB-SP) e
Jorge Arbage (ARENA-PA). Há também menção à Lei do Divórcio que foi aprovada naquele
mesmo ano: “pela primeira vez vemos Nelson Carneiro, depois de defender, durante 26 anos –
anteriormente como Deputado Federal e agora como Senador - a instituição do divórcio no
Brasil, conseguiu alcançar seu objetivo” (MP, n. 8, p. 9, 1977). A partir daí, seguiria uma série
de posicionamentos relacionados a temáticas discutidas no Congresso Nacional que será objeto
de análise do próximo capítulo.
4.4 PERSONALIDADES PENTECOSTAIS EM DESTAQUE NO PERÍODO
4.4.1 Pastor Antônio Torres Galvão: “O Libertador de Paulista”
94
Pode-se dizer que a entrada de lideranças evangélicas na política partidária é um marco.
Podemos criticar a qualidade da atuação dessas forças políticas, mas elas representaram uma
tentativa, de certa forma bem-sucedida, de romper a hegemonia católica na relação religião e
Estado. Mesmo que a influência do catolicismo tenha se mantido, ela agora teria que “rivalizar”
com a força política dos grupos evangélicos. Privilégios e leis relacionados aos cultos católicos
seriam agora questionados no espaço público. Nesse novo cenário há uma
“reinstitucionalização” de grupos religiosos evangélicos com novos contornos identidários e
emocionais (MALLIMACI, 1996, p. 13).
Desse modo, quando uma liderança pentecostal assumia um cargo era conferido a essa
comunidade religiosa um sentimento de cidadania e representatividade. Portanto, concordamos
com Bandini (2003, p. 89), pois a instituição religiosa fortalecia sua identidade na conquista de
status, poder e legitimidade no espaço público; dava-lhe empoderamento, pois o grupo que era
desprestigiado socialmente possuía agora poder para eleger seu representante e desse modo era
estebelecida uma relação entre identidade religiosa e cidadania. Um dos exemplos desse novo
momento das ADs nesse período foi a ascensão política do pastor Galvão.
Durante o governo de Getúlio Vargas a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT)
sintetizava a política trabalhista. Nela os direitos e deveres de empregados e patrões eram
regulados. Direito a férias, segurança no trabalho, estabelecimento de uma jornada semanal de
trabalho, entre outros, eram direitos que deveriam ser garantidos e resguardados pelo Estado;
além da liberdade de se constituir sindicatos, tanto de empregados como de patrões. Na
estrututura sindical estavam os sindicatos com uma abrangência municipal, as federações a
nível estadual e a confederação de abranência nacional. Cabia ao Ministério do Trabalho
reconhecer ou suspender o registro de agremiações sindicais.
A partir de 1945 os sindicatos adquiriram maior liberdade em relação à tutela do
Ministério do Trabalho, de modo que conquistam o direito à greve e eleições livres de suas
lideranças. Nesse processo, o PTB e o PCB22 são partidos que contribuíram nas articulações
com os movimentos de organização de trabalhadores. A CLT não garantia os direitos às
trabalhadoras e aos trabalhadores rurais, que era uma estratégia política de Vargas para manter
o apoio que os proprietários rurais davam ao seu governo. Em 1945 é criado o Movimento de
Unificação dos Trabalhadores (MUT) que entre suas reivindicações estava a extensão dos
22 O PCB teve seu registro cassado em 1947, de modo que 143 sindicatos ligados aos comunistas foram fechados.
95
direitos trabalhistas às trabalhoras e aos trabalhadores rurais. Além do MUT, surgiu também o
Pacto de Unidade Intersindical (PUI) e o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT). Todas elas
usavam o direito à greve como uma ferramente de pressão tanto aos empregadores como a
determinadas políticas governamentais.
Uma das muitas lideranças sindicais desse período foi o assembleiano Antônio Torres
Galvão. Galvão nasceu em 13 de junho de 1905 na cidade de Goianinha (RN). Ainda jovem
migrou para Paulista, no interior de Pernambuco, tendo sido consagrado ao pastorado pelo
sueco Joel Carlson23. Galvão foi um dos pioneiros das ADs em Pernambuco, tendo escrito
vários artigos no Mensageiro da Paz e composto hinos para a Harpa Cristã. Em 1946 foi eleito
deputado estadual pelo PSD e reeleito o deputado mais votado do estado em 1950. Em 1963 o
pastor José Menezes escreveu uma matéria no jornal Mensageiro da Paz intitulado “Cuidado
com a política no ministério”. Nesse artigo, Galvão foi citado como um bom exemplo aos
pastores que desejavam ingressar na política partidária.
Um pastor que galgou o lugar de vereador, amanhã pleiterá o de deputado,
depois embriagado pelo rico ambiemte tentará a carreira de governador com
a ideia de servir à causa (como é sempre a plataforma). Se no futuro, alguém
alcançar esse posto, há de afirmar logo mais, com toda a certeza que tal pessoa
apostatou da fé para servir de ferrolho nas mãos do mundo. Alguém dirá:
“Torres Galvão foi eleito deputado, e logo mais governador do Estado de
Pernambuco, por uma eventualidade, mas não se desviou da fé”. No entanto,
o nosso saudoso irmão quando ingressou na política, afastou-se da direção da
igreja, entregando-se completamente aos negócios do Estado. CUIDADO
com a política no ministério (MP, n. 13, p. 2, 1963).
De fato, no período em que esteve na política partidária, Galvão deixou a liderança da
igreja que pastoreava, mas continuou a exercer atividades pastorais como pregador, ensinador
e escritor das ADs em Pernambuco. Antes da meteórica ascensão política, Galvão liderou e
organizou o Sindicato de Fiação e Tecelagem em Paulista, o qual reunia funcionários de
fábricas que pertenciam à família que comandava as Casas Pernambucanas. Na época a região
de Paulista era um importante polo industrial que atraiu mão de obra nordestina. Eram cerca de
20 mil operários, na época era o maior conjunto de fábricas da América Latina.
A liderança de Galvão entre os operários levou os trabalhadores da indústria têxtil de
outras cidades, como foi o caso de Igarassu, a aderirem ao sindicato. Tempos depois foi
nomeado juiz classista do Tribunal Regional do Trabalho de Pernambuco. Em 1949 escreveu
23 Joel Carlson (1889-1942) foi o fundador da Assembleia de Deus em Pernambuco. Na Suécia foi membro da
Igreja Batista, tendo migrado para Nova Iorque onde teve contato com um grupo de pentecostais. Tempos
depois mudou para Chicago e em janeiro de 1918 chegou como missionário ao Brasil. Foi enviado por Gunnar
Vingren e Daniel Berg para Recife.
96
um livro intitulado Direito e Deveres dos Trabalhadores, em que fez uma análise histórica, a
partir de 1930, da política trabalhista brasileira na qual os trabalhadores deveriam ter suas
garantias respeitadas. No seu primeiro mandato como deputado estadual participou da
elaboração da Constituinte do estado de Pernambuco, tendo sido eleito 2º vice-presidente da
Mesa Diretora e em seguida presidente da Assembleia Legislativa em 1952.
Um dos projetos de Galvão que viraram lei foi o que obrigava a desapropriação de
cinquenta hectares de terras da Companhia de Tecidos Paulista, que se tornou uma área livre da
cidade. Desde então, essa área recebeu o nome de “Vila Torres Galvão”. Por essa e outras
iniciativas Galvão recebeu o título na época de “Libertador de Paulista”. Em agosto de 1952 o
governador do Estado, Agamenon Magalhães faleceu, de modo que não havendo o cargo de
vice-governador Galvão assumiu o governo do estado até que fossem convocadas novas
eleições. É o único operário que governou Pernambuco em sua história.
4.4.2 O Nacionalismo em Paulo Leivas Macalão
O nacionalismo brasileiro enquanto movimento ideológico de consciência da nação
exerceu influência na eclesiologia das ADs no Brasil. O pastor Paulo Leivas Macalão foi uma
das principais lideranças pentecostais que traduziram esse sentimento político no
assembleianismo. Pesquisadores como Alencar (2013) já discutiram a influência do
nacionalismo na recusa de Macalão em ser liderado por pastores estrangeiros, em especial os
suecos. No que diz respeito à política partidária Macalão esteve próximo de personalidades que
também apregoavam a importância de se valorizar aspectos nacionais.
Paulo Leivas Macalão nasceu em 17 de setembro de 1903 em Santana do Livramento,
Rio Grande do Sul; era filho de militar. Quando sua mãe morreu Macalão foi para o Rio de
Janeiro morar com um tio. Ali, estudou no tradicional Colégio Dom Pedro II. É também no Rio
de Janeiro que teve o primeiro contato com uma igreja pentecostal – a Igreja de Deus – que
frequentou antes de se tornar membro da AD. Desde sua conversão em 1924 evangelizou os
morros e subúrbios cariocas como Bangu, Central do Brasil, Realengo, Parada de Lucas e
97
Madureira. Ele foi batizado por Vingren na AD de São Cristóvão e consagrado pastor aos 27
anos ainda solteiro, em 1930.
Em razão de conflitos com os missionários suecos Macalão decidiu iniciar sua própria
igreja, tendo construído um templo em 1929 na região de Bangu. Em 1934 transferiu a igreja
para Madureira e a partir daí abriu novos templos nos estados de São Paulo, Minas Gerais,
Paraná, Mato Grosso e Goiás e se tornou o pastor-presidente do Ministério de Madureira. Os
vínculos militares de Macalão e o espírito nacionalista o teriam influenciado, e esse teria sido
inclusive um dos motivos para a recusa em aceitar ser liderado por europeus? Teria Macalão
sido influenciado de alguma maneira pelo movimento militar de 1930? Quanto a isso, são fortes
certos indícios.
Além das relações com os militares, Macalão é próximo de políticos nacionalistas e
também era amigo de uma influente personalidade que esteve no cenário político nacional desde
o início dos anos de 1930. Seu nome, Adhemar de Barros. Em maio de 1955 Paulo Leivas
Macalão e sua mulher Zélia Brito inauguram o novo prédio de uma escola que pertencia à igreja
por eles pastoreada. O nome que escolheram para o colégio foi Escola São Paulo. Terminada a
construção, fizeram questão de prestar uma homenagem a Barros, que nesse tempo governava
o estado de São Paulo. Uma das salas da escola recebeu o nome de Adhemar de Barros e nela
havia também um quadro com o retrato do governador. A editoria do jornal Mensageiro da Paz
registrou o fato:
Manda a justiça que se registre o trabalho patriótico executado pelos pastores
Paulo Leivas Macalão e José Leite de Lacerda, coadjudados pela irmã Zélia
Brito Macalão que não tem poupado esforços para o perfeito funcionamento
desta escola, que é como já dissemos um prolongamento da igreja transferindo
o colégio para sua nova séde, e tendo no Dr Adhemar de Barros, na sua
primeira visita à igreja, prometido à irmã Zélia o seu comparecimento à escola,
pois há muito ele mantêm amizade com a família Macalão (MP, n. 6, p. 6,
1951).
Do final dos anos de 1930 até o início de 1960 Jânio Quadros e Adhemar de Barros
foram expressivas lideranças paulistas não apenas em São Paulo, mas no Brasil. Filho de
fazendeiro na região de Botucatu foi eleito deputado estadual pelo Partido Republicano Paulista
(PRP) na Constituinte de 1934. Durante seu mandato fez duras críticas à ditadura de Vargas,
principalmente quando foi avisado por seu colega Caio Prado Junior, em 1936, que 500 pessoas
ligadas à Aliança Nacional Libertadora tinham sido presas. Todavia, em 1937 membros do PRP
passaram a apoiar Vargas. Quando percebeu esse movimento político, Adhemar de Barros
98
abandonou as críticas e iniciou um processo de apoio ao presidente; essa mudança de
posicionamento político lhe renderia a interventoria de São Paulo em 1938.
Carismático, seus discursos transitavam por temas como religião, moralidade, defesa do
homem do campo e dos pequemos comerciantes; em razão disso, conquistou admiração das
classes populares. Desenvolveu uma relação direta com seu eleitorado nas muitas viagens que
fez pelo estado de São Paulo. Antes crítico, Adhemar de Barros passou a ter em Getúlio sua
principal inspiração política (COUTO, 2009). Quando foi interventor fez obras como o
Aeroporto de Congonhas e iniciu a construção da Avenida Anchieta-Anhanguera. Ele fazia a
divulgação de seus feitos políticos no Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda
(DEIP), órgão ligado ao Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) criado por Getúlio.
Após fazer articulações com Luiz Carlos Prestes, presidente do Partido Comunista
(PCB), Adhemar de Barros costurou um acordo político que lhe possibilitou ser um candidado
com chances reais de vitória na dispusta pelo governo de São Paulo em 1947. Entretanto, essa
aliança despertou a contrariedade de diversos setores, entre elas a Igreja Católica, para quem o
PCB era um partido anticristão. Dentro do próprio Partido Comunista havia algumas alas,
principalmente entre as mais conservadoras, que discordavam daquela aliança. Apesar disso,
num comício realizado pelo PCB no Vale do Anhangabaú, mais de 100 mil pessoas estiveram
presentes para referendar o apoio a Adhemar de Barros (COUTO, 2009).
Adhemar de Barros saiu vitorioso do pleito eleitoral daquele ano, mas os candidatos
derrotados do PSD e da UDN impetraram recursos na justiça eleitoral a fim de impugnar sua
eleição. Argumentavam que Adhemar havia desviado recuros públicos no período em que tinha
sido interventor do estado. O Tribunal Regional Eleitoral julgou o mérito das acusões e as
considerou improcedentes. Adhermar de Barros foi então diplomado governador de São Paulo.
De caráter reformista, teve entre as classes populares sua maior base de apoio, pois se
apresentava como um defensor do povo. Quando o pastor Paulo Leivas Macalão inaugurou o
já referido prédio da Escola São Paulo, estiveram presentes o próprio governador Adhemar de
Barros e o vice Erlindo Salzano, conforme registro da editoria do jornal Mensageiro da Paz:
O Dr Adhemar de Barros, acompanhado do Dr Salzano, vice governador do
Estado de São Paulo, elogiou a obra social da Igreja Evangélica Assembleia
de Deus de Madureira, com a abertura da nova escola. As suas palavras de
estímulo e amizade, traduziram o pensamento de um homem simples e
temente a Deus. Nas suas afirmações, citou o trabalho pioneiro do apóstolo
Paulo, o apóstolo dos gentios, congratulando-se conosco, com a feliz escolha
do nome desse martir do cristianismo para dá-lo a escola (MP, n. 5, p. 6, 1951).
99
Ao que tudo indica Macalão era próximo ao mundo da política partidária e se mostrava
interessado nas questões nacionais. O atual templo da AD em Madureira foi inaugurado em
1953 e isso aconteceu ao som do hino nacional e um representante do governo federal desatou
as tradicionais fitas.
Lá nos esperava uma multidão e também o coronel Sergio Marinho,
digníssimo representante do vice Presidente da República, Dr João Café Filho,
o qual após cumprimentar o Pastor Paulo Leivas Macalão e, convidado por
êste, teve a honra, como representante do governo, de desatar as fitas
simbólicas, alinhando assim as portas do Novo Templo, ao som do Hino
Nacional (MP, n. 11, p. 6, 1953).
4.4.3 Manoel da Conceição Santos: “Minha Perna é a Minha Classe”
O fim do Estado Novo favoreceu a mobilização de grupos camponeses em várias partes
do Brasil. Mesmo assim, havia restrições à sindicalização das trabalhadoras e dos trabalhadores
do campo, tendo em vista que, à exceção do PCB, os outros partidos eram, em sua maioria,
comprometidos com os latifundiários. Para “driblhar” as referidas restrições as trabalhadoras e
trabalhadores do campo atuavam a partir do Código Civil que garantia a fundação e
funcionamento de associações, mesmo que não de caráter trabalhista. Sendo assim, centenas de
Ligas Camponesas surgiram no país. Nos primeiros anos não foi possível ascensão de grandes
lideranças camponesas, tendo em vista que elas ainda faziam parte da estrutura partidária do
PCB e, desse modo, a liderança nacional era exercida por Luiz Carlos Prestes (MORAIS, 2012).
Desse modo, até a cassação do registro do PCB em 1947, havia aliança operário-camponesa
centralizada no partido.
A cassação do PCB representou a desarticulação de associação de trabalhadoras e
trabalhadores, de modo que as Ligas Camponesas que quisessem prosseguir suas atividades
tiveram que fazê-lo na clandestinidade e já não contavam mais com o apoio partidário. Entre
1948 e 1954 houve confrontos violentos entre camponeses e a polícia. Um dos conflitos foi A
Revolta de Dona Noca no Maranhão. Nela, dona Doca como era chamada, reuniu, armou e
liderou centenas de camponeses contra o governador eleito Eugênio de Barros. Em 1954
aconteceu o I Congresso Nordestino de Trabalhadores Agrícolas (MORAIS, 2012). O encontro
foi encerrado pela polícia.
100
Foi a partir de 1954 que as Ligas começaram a ressurgir, por intermédio da liderança de
José Ayres dos Prazeres. Em Iputinga, cidade próxima a Recife, José dos Prazeres e outras
lideranças criaram o Conselho Regional das Ligas Camponesas. Essa estrutura regional e não
apenas municipal era uma das formas de dificultar a interferência direta dos latifundiários, da
polícia e da justiça, além de ter maior abrangência. Passaram a compor o Conselho Regional de
Ligas profissionais liberais, políticos e demais pessoas que se interessavam pelos direitos das
camponesas e dos camponeses; isso deu um caráter mais institucional ao movimento.
No início, o Conselho arregimentou os posseiros e arrendatários da terra. Entretanto, no
contexto da exploração de camponeses, havia também os assalariados agrícolas; esses eram os
mais vulneráveis, pois vendiam sua força de trabalho ao captalismo rural e viviam em condições
de miséria e abandono: também sofriam castigos corporais e outras formas de violência. Ao
que tudo indica, esses assalariados agrícolas foram considerados pouco importantes na estrutura
inicial do Conselho Regional das Ligas.
Um dos fatores que favoreceram a expansão das Ligas Camponesas foi a ampliação de
liberdades democráticas oriundas do governo de Juscelino Kubitschek (MORAIS, 2012).
Problemas nacionais como a fome e a reforma agrária passaram ter maior reprecussão na
imprensa e entraram na pauta de debates dos estados e municípios. Importantes nesse processo
foram as obras publicadas pelo professor Josué de Castro, que a partir de sua experiência no
Nordeste escreveu Geografia da Fome, Geopolítica da Fome, Sete Palmos de Terra e um
Caixão e Homens e Carangueijos. O professor Josué de Castro foi também presidende do
Conselho Executivo da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação
(FAO).
Em agosto de 1955 foi realizado o Congresso de Salvação do Nordeste, em que num
momento inédito da história do Brasil se reúnem pessoas de todas as camadas sociais para
discutirem o problema da fome e da reforma agrária. No mês seguinte, com a liderança do
professor Josué de Castro foi realizado o Primeiro Congresso de Camponeses de Pernambuco,
onde pela primeira vez foi discutido um esboço daquilo que poderia ser uma reforma agrária,
de modo que finalizaram o congresso com um desfile camponês pela capital pernambucana.
Em 1955 foi criada a União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (Ultab)
com a finalidade de organizar as trabalhadoras e trabalhadores rurais. A Ultab recebeu apoio
das Ligas, muito embora não tenham formalizado esse apoio mediante a filiação; nesse
momento eram movimentos distintos e independentes. Os camponeses do Nordeste, tendo em
vista que eram em sua maioria analfabetos utilizavam violeiras e mediante canções
relembravam outros movimentos de protesto social como foram os messiânicos. A Ultab logo
101
se expadiu para os demais estados brasileiros (MORAIS, 2012), exceto no Rio Grande do Sul,
pois ali Leonel Brizola já havia criado o Movimento de Agricultores Sem Terra (MASTER).
Embora a Ultab fosse, em termos numéricos, superior às Ligas, esta tinham um caráter mais
revolucionário e radical.
Figura 1 – Manoel da Conceição Santos no período do exílio
Fonte: Acervo Projeto República da UFMG
Uma das principais lideranças camponesas no Nordeste brasileiro foi o assembleiano
Manoel da Conceição Santos. O jornal Pasquim o chamou de “um subversivo indomável”
(SANTOS, 2010, p. 13). Manoel lutou por bandeiras como valorização da diversidade
ecológica, étnica e cultural; espírito de solidariedade e cooperação; democracia participativa e
equidade; desconcentração econômica e de poder e desenvolvimento local e integração
regional.
A sociologia das ausências é parte de uma reflexão de Boaventura de Souza Santos
(2002) sobre a reinvenção da emancipação social. Nela, são discutidas alternativas à
globalização neoliberal e ao capitalismo global. Esse processo conduzido a partir de “baixo”
por pessoas ou movimentos sociais seria uma globalização contra-hegemônica. O projeto de
investigação de Boaventura priorisou cinco áreas temáticas em diferentes movimentos e
experiências: “democracia participativa; sistemas de produção alternativos; multiculturalismo,
direitos coletivos e cidadania cultural; alternativas aos direitos de propriedade intelectual e
biodiversidade capitalista; novo internacionalismo operário” (SANTOS, 2002, p. 237). Um dos
objetivos era o de identificar outros discursos ou narrativas sobre o mundo.
102
A sociologia das ausências proposta por Boaventura de Souza Santos quer dar
visibilidade às inciativas e movimentos alternativos, a fim de evitar o desperdício da experiência
social. Desse modo “o objetivo da sociologia das ausências é transformar objetos impossíveis
em possíveis e com base neles transformar as ausências em presenças” (SANTOS, 2002, p.
246). Essas ausências são fragmentos da experiência social invisibilizados pela cultura
hegemônica; são experiências circunscritas numa dimensão da não existência. Para que não
haja desperdício da experiência a sociologia das ausências tem por objetivo identificar e
presentificar as referidas experiências. Desse modo, pensamos que a trajetória política de
Manoel da Conceição Santos precisa ser não apenas conhecida, mas também presentificada.
Manoel da Conceição Santos ou Mané como também é conhecido, nasceu em 1935
numa região conhecida como Pedra Grande no município de Coroatá – interior do estado do
Maranhão. A família era constituída de oito pessoas, de modo que seu pai e sua mãe
trabalhavam; enquanto criança cabia a Manoel a responsabilidade de, na ausência dos pais,
cuidar dos outros irmãos. Desde cedo, a cultura e a religiosidade popular estiveram presentes
no seu cotidiano, pois de acordo com Manoel “minha mãe era devota de Nossa Senhora da
Conceição e no momento do parto teve dificuldade, então disse: ‘Se eu não morrer, meu filho
vai chamar-se Manoel da Conceição’” (SANTOS, 2010, p. 78).
Certa vez Raimundo Frazão, um deles ficou doente e para a mãe de Manoel aquilo era
obra do diabo, pois o garoto passou a comer terra e ficou com a barriga inchada. Ela então fez
uma promessa de que, se o Raimundo fosse curado ela o afilharia ao padre Cícero. Manoel
conta que todos os anos iam participar de uma festa religiosa dedicada ao São Raimundo;
entretanto, ele via com certas ressalvas aquele festejo, pois “vai se confessar, conta os pecados
do ano, depois faz os mesmos pecados de novo, briga com a família, bate na mulher. Tudo é
pecado de fazer, mas se faz tudo debaixo do pano. Todos os dias aquele inferno misturado com
religião” (SANTOS, 2010, p. 84).
A família havia herdado um terreno na cidade de Buriti e tempos mais tarde o estado
passou a cobrar o imposto territorial dessa e de outras pequenas propriedades. Todavia, eles não
puderam arcar com o referido imposto. Desse modo, o chefe do poder político e econômico da
cidade, Luís Soares, disse que faria o usucapião e colocaria todas as propriedades em seu nome
a fim de as deixarem regularizadas. Porém, com o a morte de Luís Soares em 1953 sua mulher
assumiu os negócios, de modo que ela passou a cobrar o aluguel das terras que pertenciam aos
camponeses. O pai de Manoel resistiu o tanto quanto pôde, mas a família acabou sendo expulsa
de sua propriedade em 1955.
103
Nesse mesmo ano a família se mudou para Bacabal e de lá para Santa Luzia e, por fim,
Copaíba onde construíram sua roça. Foi nessa última cidade que Manoel passou a fazer parte
da AD por volta de 1957. Quanto a isso ele disse que “em Copaíba tinham as famílias
protestantes que se distinguiam basicamente em Assembleia de Deus e Adventistas do Sétimo
Dia. A Assembleia de Deus era um negócio muito popular. Todo mundo se chamava de irmão,
se visitava” (SANTOS, 2010, p. 103). Esse caráter comunitário entre pessoas pobres no
assembleianismo foi um dos elementos que chamou a atenção de Manoel, tendo em vista que
se alguns dos crentes estivessem em dificuldades era socorrido pela comunidade assembleiana.
Após sua conversão, ele exerceu atividades na igreja como professor da escola
dominical até se tornar o dirigente da congregação local. Nesse período, Manoel também
trabalhava como ferreiro numa oficina que havia construído; esse lugar serviu também como
ponto de pregação e de conscientização dos habitantes de Copaíba relacionada a seus direitos.
Em razão de seu destaque na AD bem como seu trabalho como ferreiro foi eleito delegado
distrital da associação de moradores.
Uma de suas funções era representar a população contra as investidas dos grandes
proprietários de terras. No primeiro dia de reunião da associação presidida por Manoel, o chefe
do poder político e econômico de Copaíba enviou cerca de cem de seus jagunços à região, os
quais já chegaram ao povoado armados com rifles, facas e revólveres, de modo que cinco
pessoas morreram na ocasião. Manoel e sua família conseguiram escapar vivos do ataque e se
deslocaram para uma região chamada Pindaré-Mirim.
Manoel relata que seu primeiro contato com o sindicalismo rural aconteceu em 1962
mediante o Movimento de Educação de Base (MEB) órgão esse que mantinha um convênio
com o governo de João Goulart e era ligado à Igreja Católica (SANTOS, 2010). O referido
contato se deu por um curso ministrado pelo MEB, pois “no dia de começar o curso, tinha lá
trinta e cinco trabalhadores rurais do município de Pindaré-Mirim. Muita coisa na época,
durante o curso a gente não aprendeu. Mas depois, revendo os papéis a gente começou a
assimilar” (SANTOS, 2010, p. 131).
Todos os participantes do curso eram analfabetos e por isso o material didático utilizado
era todo feito com imagens. Nelas eram retratados temas como democracia, cidadania, eleições
e direitos dos trabalhadores rurais. A partir daí, os trabalhadores rurais se empenharam não
apenas no sindicalismo, mas também construíram uma escola com barro, palha e madeira (no
estilo mutirão) para alfabetização de crianças e adultos. Manoel foi eleito presidente do
Sindicato dos Trabalhadores Rurais dos municípios maranhenses de Pindaré-Mirim, Santa
Luzia e Santa Inês.
104
Com o golpe militar de 1964 ele teve que abandonar o sindicato, pois nesse ano muitos
camponeses foram perseguidos e mortos pela polícia. Manoel fugiu para uma região de mata
denominada Caru; ali havia uma AD e o pastor tentou convencer Manoel a assumir uma das
congregações. Entretanto, Manoel resolveu construir uma igreja que serviria como sua base
religiosa. Além de pastor local, Manoel acabou exercendo a função de líder entre os
trabalhadores rurais daquela localidade. O pastor da AD em Caru se dizia amigo do José Sarney,
o qual foi apresentado a Manoel em 1965.
Naquele ano, Sarney teve maior projeção no cenário político e se apresentava como um
candidato que defenderia os interesses dos camponeses; desse modo, Manoel atuou como seu
cabo eleitoral. Após a eleição de Sarney, Manoel retornou a Pindaré com o objetivo de
reorganizar os sindicatos de trabalhadores rurais na região. O envolvimento de Manoel com o
sindicalismo despertou a desconfiança de certas lideranças pentecostais de Pindaré, muito
embora muitos trabalhadores rurais assembleianos fossem simpatizantes com seus ideais.
Segundo Manoel (2010) uma Assembleia de Deus do povoado de Pimenta se transformou numa
assembleia do sindicato, onde se reuniam para tratar de assuntos de interesses dos trabalhadores
rurais. Quanto à sua experiência na comunidade religiosa ele afirma:
A gente, ao ser crente, assimilou e teve uma prática de vida comunitária, viver
sempre muito unido, procurando as pessoas, preocupado. Vai aqui, vai acolá,
entra em contato, vê o problema, o que pode fazer no interior, se faz. O que
teve um papel muito importante na articulação de comunidades. O que serviu
para esses trabalhadores, pelo fato de serem crentes, continuassem unidos na
luta contra a dominação, exploração que existia ali (SANTOS, 2010, p. 194).
Em 1968 o regime militar passou a reprimir com mais intensidade as organizações
sindicais de trabalhadores rurais. Quando os policiais chegaram a Pindaré e viram uma faixa
com o escrito Guerra Popular derruba a ditadura se sentiram provocados. Quiseram então
saber quem eram os líderes do movimento e quando encontraram o Manoel abriram fogo, de
modo que ele foi baleado no pé com dois tiros de fuzil. Ele ainda tentou resistir, mas foi
dominado pelos policiais. Mesmo com o sangramento Manoel foi levado para a penitenciária;
ali, sua perna acabou gangrenando.
Estudantes, assembleianos e católicos de São Luís denunciaram o caso e alguém fretou
um avião para que Manoel fosse transferido para um hospital na capital. Ele havia ficado seis
dias em Pindaré sem nenhum tratamento na perna e em razão disso quando chegou ao hospital
os médicos precisaram amputá-la. Dias depois apareceram no hospital pessoas que se diziam
representantes do governo e dariam um emprego a Manoel, de modo que ele trabalharia para o
105
Sarney. Ofereceram também uma perna mecânica, carro e um emprego para sua mulher.
Desconfiado daquilo, recusou a proposta e afirmou que “minha perna é minha classe”
(SANTOS, 2010, p. 2013).
Quando teve alta do hospital os trabalhadores rurais se uniram e compraram a perna
mecânica para Manoel. Nesse período, cerca de quatro mil agricultores eram liderados por ele.
Foi em Pindaré-Mirim que Manoel teve contato com a Ação Popular (AP), organização essa
que dava cursos sobre processos revolucionários e financiou uma viagem de Manoel para a
República Popular da China; ali teria encontrado pessoalmente Mao Tse-Tung. De volta ao
Brasil esteve ainda mais engajado nos movimentos populares contrários ao regime militar e,
em razão disso, foi preso em janeiro de 1972.
Foram quatro anos na prisão e nesse período foi torturado de maneira bárbara numa
penitenciária do Rio de Janeiro. Os soldados o encapuzaram e deram pontapés em suas costas,
barriga e estômago. Em seguida o botaram no chão onde foi amarrado e o jogaram dentro do
que pode ter sido uma piscina. Após vomitar muita água tiraram sua perna mecânica, suas
roupas e o algemaram num poste. Ali o espancaram. Em seguida foi pendurado nu em uma
grade e teve seu pênis amarrado para não urinar. Foram seguidas as torturas e em quase todas
elas Manoel terminava desmaiado de dor. Ele também foi colocado no pau de arara onde era
amarrado pelos testículos e recebia choque na orelha, nariz, nos dedos e nos testículos. Após
seguidas torturas Manoel não mais aguentou e confessou que era uma das lideranças da Ação
Popular. As imagens a seguir são reportagens veiculadas em jornais estrangeiros que relataram
os processos de perseguição política em que Manoel esteve envolvido.
Figura 2 – Matéria publicada em jornal estrangeiro a respeito das ligas camponesas
106
Fonte: Acervo Projeto República da UFMG.
Durante o período em que esteve preso houve significativa mobilização nacional e
internacional por sua libertação. A Anistia Internacional acompanhou o caso e cerca de vinte
mil cartas foram enviadas ao general Médici com pedido para que Manoel fosse libertado. O
papa Paulo VI foi um dos que enviaram cartas. Foi criado na Suíça o Comitê Internacional
Manoel da Conceição com repercussões na Itália, Alemanha e França. A Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil (CNBB) também atuou em prol da libertação de Manoel.
O pastor estadunidense Tom Clinton liderou uma organização com dezoitos comitês em
solidariedade a Manoel (SANTOS, 2010). Mediante a pressão desses organismos nacionais e
internacionais ele foi solto com a condição de ter que deixar o Brasil. Seu destino foi a Suíça
onde foi acompanhado pela Liga Suíça de Defesa dos Direitos Humanos. Durante esse período
participou de cursos e atos públicos em diversos países europeus, africanos e no Oriente Médio.
Com a anistia pôde retornar para o Brasil em 1979. Não encontramos menção a Manoel no
jornal Mensageiro da Paz.
Antônio Torres Galvão, Manoel da Conceição Santos Souza e Paulo Leivas Macalão
podem ser paradigmáticos em nossa compreensão de modelos políticos que estariam presentes
nas ADs nas décadas posteriores. Galvão representa aquele modelo de assembleiano destacado
na denominação que consegue entrar para a política partidária. Sua eleição dá à comunidade
pentecostal um sentimento de representatividade e, sobretudo, de empoderamento no espaço
público. O modelo de Macalão também estaria presente nas ADs pelas décadas seguintes. Nele,
membros “não irmãos” da política partidária seriam próximos dos pastores na busca de apoio.
107
Desse modo, essas liderenças políticas estariam presentes em cultos e celebrações pentecostais,
principalmente no período eleitoral.
Entretanto, nem sempre o referido apoio é seguido pela comunidade no que diz respeito
a votos. Há certa resistência de membros da comunidade religiosa quando ela é visitada por
personalidades políticas que não sejam irmãos. Além disso, ser um irmão também não é
garantia que a igreja siga a indicação do pastor. Por isso, não concordamos com a
preconceituosa expressão voto de cajado. O terceiro modelo representado por Manoel, embora
menos visível no contexto assembleiano, acontece para além dos muros denominacionais, onde
vozes críticas no interior do pentecostalismo clamam por justiça e igualdade.
4.5 CONCLUSÃO
A atuação política pentecostal não é homogênea. Pudemos perceber essa característica
do movimento a partir da atuação de lideranças pentecostais como Galvão, Manoel e Macalão.
O período pesquisado (1946-1977) começou com mudanças no cenário nacional e
internacional. A principal delas foi o estabelecimento da ordem democrática, bem como a
proximidade das relações entre o governo brasileiro e o estadunidense. Nessa nova fase da
história brasileira o estado exerceu papel de destaque nos processos de urbanização e
industrialização.
As ADs cresceram no bojo dessas mudanças e no contexto delas surgem lideranças
políticas assembleianas. Dentre elas, vimos o caso do pastor Antônio Torres Galvão, que no
interior do movimento operário exerceu destacada atuação na defesa dos interesses das
trabalhadoras e trabalhadores das fábricas. No campo, descrevemos a liderança exercida pelo
assembleiano Manoel da Conceição Santos, que em razão de suas lutas pelos direitos dos
trabalhadores rurais foi preso e torturado pelo regime militar. Vimos também a influência do
nacionalismo nas posturas eclesiásticas e políticas do pastor Paulo Leivas Macalão
A instauração do regime militar de 1964 foi antecedida pelo movimento anticomunista
e o período que se seguiu foi caracterizado pelo cerceamento das liberdades e muitos foram
presos, torturados e mortos. É nesse contexto que analisamos a partir da sociologia das
ausências, de Boaventura de Souza Santos, a trajetória do Manoel da Conceição Santos. É
durante o regime militar que houve, até então, a maior participação de políticos assembleianos
como foram os pastores João Pereira de Andrade e Silva e Joanyr de Oliveira. Sendo assim,
108
nesse período há posição e participação política no assembleianismo brasileiro. Todavia,
pensamos que as bases de um projeto político de caráter corporativista das ADs seriam lançadas
no final da década de 1970 e começo da de 1980, como veremos no próximo capítulo.
5 ASSEMBLEIA DE DEUS: AÇÃO E POSIÇÃO POLÍTICA (1978-1988)
5.1 INTRODUÇÃO
Neste capítulo analisaremos processos políticos nos quais estiveram envolvidas
lideranças assembleianas. Nesse período que analisamos descreveremos a transição do regime
militar para a democracia com destaque para a posição e ação política pentecostal. Chamamos
109
de transição democrática o período de 1978 a 1988. Nele, o Brasil deixa ser um estado de
exceção e a pluralidade partidária é restaurada. Veremos que em fins da década de 1970 há
movimentos nas ADs no sentido de aumentar sua influência no Estado a partir da participação
na política partidária.
O período de 1978 a 1988 foi também caracterizado por um aumento significativo de
deputados federais assembleianos. Nas eleições para o Congresso Constituinte de 1986-88 treze
candidatos ligados às ADs foram eleitos ao cargo de deputada e deputado federal. Faremos uma
análise da atuação desses parlamentares e veremos que muitos deles estiveram envolvidos com
temáticas relacionadas com a pessoa humana durante a ANC.
Assim como procedemos no primeiro período pesquisado (1930-1945) faremos nossa
análise a partir das noções de chronos, aiôn e kairos. Mais uma vez discutiremos esses conceitos
a partir de Giorgio Agamben. O chronos diz respeito ao tempo profano e como ele se relaciona
com as dinâmicas hisóticas e sociais; O aiôn é o tempo escatológico e diz respeito a concepções
do fim de um mundo; por fim, o kairos é o tempo que nos resta e como tal tem como finalidade
mudar de maneira qualitativa o chronos.
Ao longo do texto, faremos comparações entre os períodos 1930-1945 e 1978-1988. A
partir da temporalidade do chronos discutiremos as iniciativas de expressões pentecostais no
espaço da política e do Estado brasileiro. Para isso, analisaremos as ADs situadas nas relações
de visibilidade pública e presença pública da religião. Veremos que lideranças da referida
denominação se movimentaram durante esse período em busca de visibilidade nacional.
Quanto à temporalidade do aiôn nos interessa mais uma vez auscultar os artigos do
jornal Mensageiro da Paz que dizem respeito à escatologia. Além de ter um número menor de
matérias com essa temática em relação ao período 1930 a 1945, os textos escatológicos do
jornal estão estruturados, em sua maioria, em narrativas de apoio a potências mundiais e por
isso o denominamos de aiôn imperializado.
Veremos também que as “Declarações de Direitos do Homem” das modernas
democracias, como é o caso do Brasil, deram ao Estado o poder de decidir e legislar sobre os
corpos. Seguindo as teses de Michel Foucault chamamos isso de biopolítica. O texto
constitucional de 1988 também consagrou a primazia da pessoa humana e esse foi um dos
motivos pelos quais o referido texto foi chamado de Constituição Cidadã. Discutiremos,
principalmente com base nas concepções de Michel Foucault e Giorgio Agamben, as
implicações de um Estado que tem como finalidade o biopoder, que também foi apropriado
pelas expressões políticas pentecostais durante a Assembleia Nacional Constituinte.
110
Neste capítulo vamos dar os seguintes passos: analisar práticas político-pentecostais
durante o processo de reconstitucionalização no Brasil e delinear o percurso do projeto do
assembleianismo até a Assembleia Nacional Constituinte. A partir daí descreveremos e
analisaremos a atuação pentecostal no Congresso Nacional relacionada com a temática da
presença e visibilidade pública da religião, tendo como parâmetro para a referida análise as
temporalidades do crhonos, aiôn e kairos.
5.2 PRÁTICAS POLÍTICO-PENTECOSTAIS NA RECONSTITUCIONALIZAÇÃO
BRASILEIRA
Apresentaremos a seguir os aspectos da transição democrática brasileira, de modo que
descreveremos e analisaremos a presença e atuação de lideranças pentecostais na política
partidária brasileira. Momento significativo na história do Brasil, o período foi caracterizado
pelo restabelecimento da ordem democrática com a instauração do Congresso Constituinte; nele
personalidades ligadas às ADs exerceram diferentes tipos e modelos de atuação.
5.2.1 Assembleias de Deus na Transição Democrática
O período da transição democrática teve início em 1979, quando houve a revogação dos
Atos Institucionais e terminou em 1988 na ocasião da reconstitucionalização da ordem
democrática. Concordamos com a tese de Aarão Reis (2014) para quem, durante esse período
de transição, já não havia mais ditadura, mas também não havia ainda democracia. Além da
suspensão dos Atos Institucionais, as leis de exceção foram revogadas, os presos e asilados
políticos foram anistiados, o pluralismo partidário e sindical foi restaurado e os movimentos
sociais ganharam força para protestarem e fazerem greves.
São no mínimo questionáveis as interpretações historiográficas que marcam a posse do
José Sarney em 1985 como o fim da ditadura. Desde 1964 que Sarney abandonara suas posições
de esquerda (REIS, 2014) e ocupara importantes postos na administração dos militares. Ele,
inclusive, foi uma das principais lideranças do partido ARENA. O primeiro presidente do Brasil
com o fim do regime de exceção foi um homem da ditadura. Entretanto, o regime não foi obra
111
exclusiva dos militares, de modo que ele não começou nos quartéis. Conforme já citado
anteriormente movimentos civis como a Marcha da Família com Deus pela Liberdade é um dos
embriões originários do golpe de 1964. As narrativas históricas tradicionais e conservadoras
silenciaram o apoio civil ao regime militar.
Além das pressões sociais, havia os problemas econômicos oriundos da crise
internacional do petróleo, aumento da dívida interna e externa, aumento do desemprego e da
inflação. Enfim, pairava no ar a sensação e constatação de que o modelo econômico dos
militares havia se esgotado. Some-se isso à crise da dívida externa na América Latina que
levaria o país ainda mais para a recessão. O início do governo do general João Baptista
Figueiredo foi marcado pelas greves dos metalúrgicos em São Bernardo do Campo. Liderados
por Luiz Inácio Lula da Silva e com o apoio de grupos católicos entre outros, os operários se
articularam em busca do reconhecimento de seus direitos trabalhistas.
Com o apoio do governo os empregadores conseguiram acabar com a greve dos
metalúrgicos de São Bernardo do Campo, de modo que o sindicato foi fechado e suas principais
lideranças foram presas. Essa situação parece ter favorecido o movimento, pois quando soltos
os líderes ganharam a alcunha de heróis e os sindicatos se fortaleceram. Com o tempo, outros
sindicatos de trabalhadores, intelectuais e militantes da esquerda se uniram na fundação do
Partido dos Trabalhadores (PT). As greves de operários no ABC paulista entre 1978 e 1980
apontavam para as significativas mudanças sociais pelas quais o país atravessava.
Apesar de o movimento grevista ter sido derrotado as pressões dos movimentos sociais
levaram o presidente Figueiredo à promulgação da Lei da Anistia e da Reforma Política (REIS,
2014). A referida lei garantia a libertação dos presos políticos, o retorno dos exilados e a
proteção dos aparelhos de segurança que outrora havia sido ultilizados na tortura. Setores da
esquerda discordavam do ponto da lei que resguardaria os torturadores. Entretanto, as alas mais
conservadoras e também grupos ligados ao MDB foram convencidos de que a tortura tinha sido
uma política de Estado. Setores da direita argumentavam que o aparelho de segurança do regime
teve que proteger o país de terroristas e assassinos. Sabe-se, porém, quão desigual foi o
enfrentamento entre as Forças Armadas e os grupos revolucionários de esquerda.
Desse modo, de maneira dissimulada a Lei da Anistia foi sancionada em agosto de 1979,
de modo que tanto torturados como torturadores foram anistiados. A votação que aprovou a lei
foi apertada: “206 votos a favor e 201 contra” (REIS, 2014, p. 134). Como era de se esperar sua
aprovação gerou descontentamento e protesto. Alguns setores que haviam apoiado o golpe de
1964 se apresentaram como sendo defensores da democracia e como se não tivessem nada a
ver com as inúmeras atrocidades cometidas pelo Estado brasileiro durante o regime. Os grupos
112
que constituíram o movimento civil da Marcha da Famíla com Deus pela Liberdade entraram
nos processos de silenciamento do passado. Tal esquecimento teria como objetivo uma suposta
“harmonia” e “reconciliamento social”.
Em novembro de 1979 foi aprovada a lei que garantiriria o pluripartidarismo no Brasil,
que estava suspenso desde 1965. A nova lei exigia que a palavra partido viesse como prefixo
das legendas. Razão pela qual o MDB passou a ser o Partido do Movimento Democrático
Brasileiro (PMDB). O ARENA se tornou o PDS. Alguns membros do MDB, como foi o caso
do Tancredo Neves, criaram o PP (REIS, 2014, p. 136). Outros partidos também surgiram: de
coloração trabalhista vieram o PTB; o Partido Democrático Trabalhista (PDT), tendo como
fundador Leonel Brizola; e o PT, fundado no início de 1980. Instaurou-se, então, uma nova
conjuntura político-partidária.
Em novembro de 1982 ocorreram as primeiras eleições com a nova estrutura partidária
brasileira. Foram eleitos os ocupantes dos cargos de governadores, prefeitos, senadores,
deputados federais, deputados estaduais e vereadores. Nesse mesmo ano, o jornal Mensageiro
da Paz fez menção a uma reportagem da revista Veja que apontava para o crescimento das
igrejas pentecostais: “A propósito da publicação da matéria “Pentecostais: o milagre da
multiplicação”, pela revista Veja nº 682, de 07 de outubro de 1981 (MP, n. 1, p. 12, 1982). O
começo da abertura democrática alargaria os anseios de pentecostais por maior visibilidade
pública. A história parece mostrar que é em regimes democráticos que o pentecostalismo tem
maior visibilidade pública.
Ainda em 1982 foi aprovado o projeto de lei do deputado Jorge Argabe que instituiu o
dia 12 de outubro como feriado nacional e nomeou Nossa Senhora de Aparecida como padroeira
do Brasil. Com respeito a esse fato o pastor assembleiano Gustavo Kessler escreveu matéria no
jornal Mensageiro da Paz, onde fez críticas ao Congresso. De acordo com Kessler, a aprovação
da referida lei feria o princípio da separação entre Estado e Igreja.
Sabei, povo do Brasil! Sabei, Parlamento do Brasil: Ainda vigora neste Páis a
separação entre Igreja (qualquer que seja ela) e o Estado. Separação
conquistada pelos heróis do passado, entre os quais o grande e sublime Rui,
cuja voz não se calou nem ante as ameaças que lhe fizeram. Ainda vigora –
afirmamos – pois, numa constituinte por tantos reclamada, poderia vir ao
Brasil um Legado Papal, para constranger essa Assembleia a votar a
oficialização da Igreja Romana! E, se viesse, encontraria um Parlamento
passivo submisso, submisso à sua vontade? Mas não aconteceria! Porque, se
a ameaça dessa catástrofe se aproximase, percorreríamos o País inteiro,
despertando o nosso povo com a bandeira sagrada da liberdade de consciência
(MP, n. 11, p. 4, 1982).
113
Muito embora o pluripartidarismo tenha sido restabelecido, naquele ano de 1982 ainda
permaneceu a polarização entre o PDS (antiga Arena) e o PMDB. Juntos conquistaram a
maioria dos cargos nos estados e municípios. Na Câmara dos Deputados, dos 479 eleitos 439
eram do PDS e do PMDB. Somados, os partidos trabalhistas elegeram 44 deputados (REIS,
2014). Desse modo, o fim do estado de exceção e novas eleições não significou uma ruptura
revolucionária, mas a permanência de uma política conservadora. O pastor Joanyr de Oliveira
comentou o resultado das eleições daquele ano e lamentou a derrota de dois candidatos
evangélicos.
As primeiras notícias sobre o resultado das eleições de novembro, no que diz
respeito à Câmara dos Deputados e a representação evangélica, não são mais
desejáveis. Pelo menos dois parlamentares, ambos batistas, Daniel Silva (RJ)
e Joel Ferreira (AM), já se sabe perderam sua cadeira no Parlamento. Qual
será a razão dessa redução, quando as igrejas evangélicas têm crescido tanto?
Estarão os crentes decepcionados com seus representantes? Esta coluna
pretende acompanhar a atividade de nossos legisladores e é nossa intenção
munir a opinião pública de subsídios para que possa fazer o correto
julgamento, no momento da escolha de seus representantes. E vai cobrar dos
eleitos uma atuação condigna e o exato cumprimento das promessas feitas às
igrejas, durante a campanha política (MP, n. 2, p. 4, 1983).
O pastor Joanyr de Oliveira, assim como muitas outras lideranças das ADs, era negro.
É dele a primeira menção no jornal Mensageiro da Paz sobre a discriminação racial no Brasil.
Ele questiona a doutrina da chamada democracia racial e também chama atenção para o
preconceito dentro de igrejas evangélicas.
Aqui mesmo, no Brasil há crentes racistas, o que é profundamente
vergonhoso, quando nosso País é classificado como a maior democracia racial
do mundo. No fundo, isto é uma grande mentira (há muita discriminação
contra negro e contra o índio no Brasil), mas pelo menos, entre os cristãos,
esse pecado não deveria ser cometido. As pessoas de cor continuam a ser alvo
de deboche, de anedotas, de gracejos depreciativos, que mal encobrem a forma
preconceito exstente, embora ele não tenha suficiente para “se assumir” (MP,
n. 8, p. 2, 1983).
Tempos depois foi publicada outra matéria no jornal Mensageiro da Paz relacionada ao
racismo. Desta vez, uma jovem do Paraná enviou uma carta onde relatava seu drama familiar
em razão de sua amizade com um rapaz negro. A moça relatou inclusive as ameaças dos pais
de mudarem de igreja caso ela persistisse com a amizade com o jovem negro.
114
Tenho amizade com um rapaz de minha igreja, e meus pais proíbem
terminantemente essa amizade, pelo fato de ser ele negro. Tenho inistido em
mostrar-lhes que não existe nenhum namoro, mas apenas uma grande
amizade. Mesmo assim, eles continuam com a proibição e agora ameaçaram
que toda a nossa família deverá tirar a carta de mudança da igreja para que a
amizade não prossiga. Estou sofrendo muito e não sei o que fazer (M.J.A.)
(PR) (MP, 1987).
Marcos David de Oliveira (2004) em seu livro A religião mais negra do Brasil tratou
das relações entre negritude e pentecostalismo. Mesmo assim, acreditamos que as questões que
envolvem mulheres e homens negros em igrejas pentecostais ainda são pouco estudadas. O
pastor Joanyr de Oliveira também levantou a questão relacionada com a Teologia da Libertação
na América Latina. Inclusive foi uma das pautas de discussão da AGO que se realizaria no ano
seguinte.
Detenhamo-nos por alguns instantes no assunto – Teologia da Libertação. Ele
se constitui, como é do conhecimento da maioria das pessoas que “pensam”,
em um dos temas da maior relevância neste fim de século, pela revolução que
esta nova teologia promove no seio do Catolicismo, pelos ruidosos e
profundos abalos que leva às suas estruturas, a partir da sofrida América
Latina, sobretudo depois dos encontros de Medelin e Puebla. Em boa hora a
questão Teologia da Libertação e outras igualmente da maior gravidade, como
Ecumenismo e Movimento Carismático, serão levadas a uma Convenção
Geral das Assembleias de Deus (MP, n. 11, p. 19, 1984).
5.2.2 Assembleia Deus a Caminho de um Projeto Político
Em fins da década de 1970 são lançadas as bases de um projeto político de caráter mais
corporativista nas ADs no Brasil. Pela primeira vez é dedicada uma coluna específica no jornal
Mensageiro da Paz sobre política partidária. A referida coluna, além de falar da necessidade de
participação política foi também um espaço de publicações referentes à atuação parlamentar
evangélica. Uma das vozes mais entusiastas era a do pastor Joanyr de Oliveira. Seus artigos
repercutiram para além dos limites das Assembleias de Deus, tendo em vista que “a Câmara
Municipal da cidade de Goiana, PE, dirigiu ofício à Casa Publicadora das Assembleias de Deus
115
com um voto de congratulação ao diretor deste jornal pelo seu artigo Nós, a Política e o
Parlamento” (MP, n. 3, p. 3, 1978).
Nesse artigo o pastor Joanyr de Oliveira citou o exemplo do Geremias Fontes. Como já
referido anteriormente Geremias foi pastor da Igreja Batista do Calvário, e já tinha sido
secretário municipal e prefeito de São Gonçalo, deputado federal e em 1966 foi indicado pelos
militares para o cargo de governador do estado fluminense, cargo este que ocupara de 1967 a
1971. Pesquisadores como Paul Freston (1994) indicam que o livro Irmão vota em irmão, do
pastor assembleiano Josué Sylvestre (1986), foi um dos marcos do slogan que “crente vota em
crente”. Não concordamos de maneira plena com essa visão de Freston. O texto de Josué
Sylvestre foi importante? Entendemos que sim. Todavia, acreditamos que esse processo (irmão
vota em irmão) inicia bem antes de 1986.
Teria o pastor Joanyr de Oliveira maior relevância nesse processo do que o próprio Josué
Sylvestre? Josué saiu derrotado das eleições de 1982 para o cargo de deputado federal pelo
PMDB da Paraíba. Além de ter trânsito livre em determinados corredores do poder os artigos
sobre política partidária escritos pelo pastor Joanyr no jornal Mensageiro da Paz tinham um
poder de alcance maior nas ADs se comparado ao livro do Josué Sylvestre. Ainda em 1978 o
pastor Joanyr de Oliveira defendia:
Este é o momento oportuno para enfatizar o alto sentido da participação
evangélica na atividade política. Muitos nomes poderiam ser lembrados, de
irmãos que ocuparam cadeiras no parlamento, atuaram com toda dedicação à
causa pública e reafirmaram, no dia a dia, com seu verbo e sua vida, a nobreza
de suas convicções religiosas. Geremias Fontes é um deles. Como deputado,
e depois como governador do Estado do Rio (MP, n. 1, p. 2, 1978).
Em agosto de 1978 a Assembleia Legislativa do Rio prestou homenagem a lideranças
evangélicas, de modo que a maioria delas era de pastores pentecostais: Waldir Araújo, Túlio
Barros, Waldir Rocha, Luiz Costa, Antônio Silva, Sebastião Rodrigues de Souza, Manoel
Antônio Batista, Estevam Angelo de Souza, Gilberto Malafaia, João Pereira de Andrade e Silva,
Rodrigo Santana, Liosés Doiciano, Raimundo Anselmo Borges, Manoel da Penha Ribeiro, José
de Souza Reis, Joanyr de Oliveira e Geziel Gomes. Durante muito tempo, essa seria uma marca
da atuação de parlamentares evangélicos nas casas legislativas no Brasil: projetos de lei em
homenagem a pastores, instituição de praças da Bíblia entre outros projetos dessa natureza.
Ainda nesse ano o assembleiano José de Oliveira Fernandes foi eleito deputado federal
pelo estado do Amazonas. Durante a sua trajetória política passou pelos partidos ARENA, PDS,
PDT e PST. Ele era filho de uma tradicional familia de pastores no Norte, de modo que seu avô
116
Antônio Matos Fernandes fundou a primeira AD no interior do Amazonas (Antaz-Mirim). José
de Oliveira Fernandes nasceu em dezembro de 1943. Estudou economia na Universidade
Federal do Amazonas em 1970 e se tornou professor titular dessa mesma universidade.
Trabalhou também como assessor no Departamento de Estradas e Rodagens do Amazonas.
Em 1975 foi nomeado secretário de transportes pelo governador Enoque Reis até que
conseguiu se eleger deputado federal em 1978. Entretanto, ficou no cargo apenas quarenta e
cinco dias após sua posse, pois foi escolhido para ser prefeito de Manaus pelo então governador
José Lindoso. Ficou três anos no cargo até renunciar para se candidatar mais uma vez ao cargo
de deputado federal em 1982. José Fernandes foi um dos 113 deputados que se ausentaram na
votação da Emenda Constitucional “Dante de Oliveira” que decidiria sobre o restabelecimento
das eleições diretas para presidente do Brasil na noite do dia 25 de abril de 1984. Por falta de
quorum a emenda foi rejeitada e os brasileiros viriam a escolher por meio do voto o presidente
apenas em 1989. José Fernandes votou em Paulo Maluf no Colégio Eleitoral de 1985. Foi
reeleito deputado federal em 1986, porém perdeu as eleições de 1990. A partir daí foi contratado
para trabalhar como diretor-geral da Rede Boas Novas de Televisão (RBN), em Manaus. A
referida rede é comandada, desde a década de 1990, pelo pastor Samuel Câmara.
5.2.3 Assembleianismo no Limiar da Reconstitucionalização
Em 1983 teve início o movimento político das Diretas Já. O pemedebista Dante de
Oliveira propôs a emenda constitucional que previa eleições diretas para o cargo de presidente
nas eleições de janeiro de 1985. É talvez o maior movimento político da história republicana
brasileira. Milhares de pessoas se reuniam nos comícios pelas grandes e médias cidades. Nos
dias finais do movimento Belo Horizonte chegou a reunir 300 mil pessoas num comício; o Rio
de Janeiro 1 milhão e São Paulo 1,5 milhão de pessoas. As principais lideranças que faziam
oposição ao governo se uniram ao movimento das Diretas Já. Entre elas estavam Fernando
Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva, Ulysses Guimarães, Tancredo Neves, Franco
Montoro, Leonel Brizola, entre outros.
A emenda do deputado federal Dante de Oliveira foi aprovada por 298 a favor e 65
contra na votação na Câmara dos Deputados. Entretanto, em razão da ausência de 113
117
deputados a votação não pôde ser validada por questão de quorum. Foi constituído então o
Colégio Eleitoral a fim de escolher de maneira indireta o presidente da República. Como já se
sabe a chapa Tancredo Neves e José Sarney saiu vitoriosa.
No início de 1985 o pastor Manoel Ferreira esteve em audiência com Tancredo Neves
em Brasília. O jornal Mensageiro da Paz relatou o fato quando diz: “Em nome das Assembleias
de Deus no Brasil, o pastor Manoel Ferreira aproveitou a ocasião para entregar a Tancredo
Neves um ofício convidando-o a comparecer a 27ª AGO” (MP, n. 1, p. 8, 1985). Entretanto,
essa reunião não foi apenas para convidar Tancredo Neves para participar da Assembleia Geral
Ordinária (AGO). Além do pastor Manoel Ferreira esteve presente o presidente da Associação
dos Homens de Negócio do Evangelho Pleno (ADHONEP) e diretor executivo da CPAD,
Custódio Rangel Pires, entre outras lideranças assembleianas. O pastor Nemuel Kessler relatou
no jornal Mensageiro da Paz:
A audiência concedida pelo Dr Tancredo Neves a diversos pastores das
Assembleias de Deus, em atendimento à solicitação do irmão Custódio Rangel
Pires, Diretor Executivo da CPAD, que também se fez acompanhar do pastor
Manoel Ferreira, então presidente da CGAD, representa uma nova porta que
se abre para o diálogo entre evangélicos e o próximo governo brasileiro (MP,
n. 2, p. 2, 1985).
Na pauta da referia audiência estava a entrega de um documento elaborado pelos
pastores pentecostais com propostas ao então presidenciável Tancredo Neves: i) Que o Brasil
estreitasse as relações com Israel; ii) a retirada dos simbólos das religiões de matriz africana
das moedas e notas; iii) que fosse criado o Dia Nacional de Jejum e Oração. A primeira
“proposta” ganhou mais força nessa década de 1980 por causa do imaginário político-religioso
dos desdobramentos da Guerra Fria, que discutiremos adiante. A segunda proposta também será
analisada posteriormente.
Sabe-se que Tancredo Neves não chegou a assumir a presidência em razão de sua morte
em abril daquele ano de 1986. O teor da matéria publicada no jornal Mensageiro da Paz sobre
a morte é ambíguo. Ela transmitiu pesar pelo falecimento, mas ao mesmo tempo questionava
se o governo de Tancredo não iria favorecer a Igreja Católica.
[...] Por outro lado, será que Tancredo Neves, no exercício da presidência,
como católico praticante e devoto seguidor de São Francisco de Assis, teria
condições de não submeter-se a prováveis influências do clero romano, que
tentassem comprometer os objetivos da Nova República, principalmente no
que tange a liberdade de expressão religiosa? Reiteramos o que já disse o
118
Jornal Batista: “Ponto de honra para nós é a preservação do princípio de
separação entre Igreja e o Estado...” (MP, n. 6, p. 10, 1985).
Há alguns elementos estão claros nesse enunciado. Ao que indica, no encontro dos
pastores com Tancredo Neves não foi discutido a influência católica. Pelo que vimos nas
propostas apresentadas foram os símbolos das religiões de matriz africana que estiveram na
pauta. Outro dado é um trecho do Jornal Batista usado para fundamentar a separação entre
Estado e Igreja. Nos primórdios do pentecostalismo brasileiro jornais batistas e jornais
assembleianos trocaram farpas, principalmente, por questões doutrinárias.
No ano de 1984 está o embrião daquela que seria a Frente Parlamentar Evangélica
(FPE)24. Um dos idealizadores foi o deputado assembleiano José Fernandes, depois de
conversas com outros deputados evangélicos nas dependências da Câmara dos Deputados. O
deputado José Fernandes recebeu uma carta do pastor Otoni Moura de Paula, então assessor da
vereadora assembleiana Benedita da Silva. Essa carta propunha a realização do I Encontro de
Parlamentares Evangélicos; desse modo Benedita da Silva está na origem desse processo. A
deputada Benedita da Silva ainda faz parte da FPE; além de ter sido sempre de um partido de
esquerda, seus posicionamentos polítcos diferem de muitos outros deputados evangélicos. Esse
é um dos elementos que demonstram a heterogeneidade da Bancada no Congresso Nacional.
Benedita da Silva era uma típica mulher assembleiana: negra, pobre e empregada
doméstica. Em razão de sua filiação partidária de esquerda e de determinados posicionamentos
políticos não era uma candidata oficial das ADs. Por isso era uma parlamentar assembleiana e
não uma parlamentar da Assembleia de Deus.
No dia da posse do primeiro presidente civil após o golpe de 1964, Figueiredo se recusou
a passar a faixa ao presidente Sarney; como já nos referimos em outra ocasião a posse do Sarney
não significou a restauração de uma República democrática. Mota (2015) questiona o uso da
expressão redemocratização para esse período. Para ele o termo deveria ser mesmo
democratização, pois para Mota o Brasil ainda não tinha vivido um regime de fato democrático
em toda a sua história. Ele lembra o fato de que mesmo durante o período de 1946 a 1964
partidos de esquerda e políticos como Jorge Amado e Carlos Marighella foram cassados por
razões ideológicas.
A chegada de Sarney ao poder significou a volta ao poder de antigos quadros ligados à
UDN de caráter liberal e conservador. Na composição ministerial vários nomes pertenciam à
24 Desde seu surgimento na Assembleia Nacional Constituinte (1986-88) a Frente Parlamentar Evangélica é
composta em sua maioria por pessoas ligadas à Assembleia de Deus e Universal do Reino de Deus.
119
linha ideológica da antiga UDN (MOTA, 2015): o baiano Antônio Carlos Magalhães, o mineiro
Aureliano Chaves, o catarinense Jorge Bornhausen, entre outros. O governo Sarney adotou a
discurso de conciliação das antigas elites políticas do Brasil, na medida em que ao invés de
remoer o passado recente se deveria criar um clima de harmonia social. Era um claro gesto de
jogar a sujeira para debaixo do tapete.
O novo governo pavimentou o surgimento de um neoclientelismo, onde grandes
empreiteiras, multinacionais, companhias de aviação entre outras desenvolveram práticas
monopolistas. A expressão “capitalismo selvagem” surgiu nesse período. Essa “nova classe
promíscua e deslumbrada com o capitalismo e com as colunas sociais dos jornais e revistas, o
mesmo capitalismo, agora selvagem, que pagou contas do DOU-CODI” (MOTA, 2015).
Mesmo sem a presença dos militares no poder, essa classe econômica tinha o apoio e o respaldo
do governo Sarney.
Ainda em 1985 foi realizada uma AGO na cidade de Anápolis. Como de costume um
temário de assuntos foi apresentado, mas entre os assuntos não constou a participação nas
eleições de 1986. “A elaboração antecipada de um temário pressupõe que os assuntos nele
incluídos refletem o escopo das grandes questões que interessam, de perto, à vida de nossa
Igreja” (MP, n. 3, p. 2, 1985). Apesar disso, estiveram presentes o governador de Goiás, Íris
Resende; o prefeito de Anápolis, Anapolino de Farias; os deputados federais Daso Coimbra e
José Fernandes; o deputado estadual por São Paulo, Carlos Apolinário e o vereador Gilberto
Nascimento. Durante as reuniões convencionais o governador Íris Resende concedeu entrevista
ao jornalista da CPAD pastor Geremias Couto. Nela, Íris “incentivou” mais participação das
ADs na política partidária.
Dias depois foi convocada uma Assembleia Geral Extraordinária (AGE), cujo assunto
principal seria a unidade de ministérios, tendo em vista que havia muitas divisões no interior da
eclesiologia pentecostal. Essa AGE aconteceu em Brasília. Todavia, outro assunto também
dominou a pauta de discussões: o lançamento de candidaturas para as eleições de 1986. Além
dele, foi constituída uma comissão de pastores que apresentaria propostas ao pré-projeto do
texto constitucional. O jornal Mensageiro da Paz relatou que “reunidos em Brasília, constiui-
se uma comissão tendo entre seus membros Manoel Ferreira, Alcebiádes de Vasconcelos e o
presidente foi o Luiz Bezerra da Costa” (MP, n. 6, p. 10, 1985).
5.2.4 Assembleianismo e a Experiência Política no Congresso Nacional Constituinte (1986-88)
120
Mesmo com a derrota da emenda do deputado Dante de Oliveira em abril de 1984,
aumentou a pressão na sociedade para a convocação da Assembleia Nacional Constituinte
(ANC). Os diversos grupos sociais e partidos da ala progressista reivindicavam uma nova
Constituição, que substituiria aquela de 1967. O Congresso Constituinte seria formado pelos
deputados e senadores eleitos em 1986, além dos outros 26 senadores das eleições de 1982. A
Assembleia Nacional Constituinte foi instalada em 1º de fevereiro de 1987, composta de 561
congressistas constituintes. “Apenas o PMDB e o PFL que constituíram uma Aliança
Democrática somavam juntos 378 deputados” (REIS, 2014, p. 149). As atividades da ANC
duraram dezoito meses.
Os mais variados grupos sociais e religiosos puderam se fazer representar na
Assembleia, muito embora o predomínio tenha sido das tendências conservadoras. As
“emendas populares” foi um dispositivo usado para que a voz do povo se fizesse ouvir entre os
congressistas constituintes. Cada emenda popular precisava ter no mínimo 30 mil assinaturas,
de modo que centenas delas chegaram ao Congresso. Desse modo, houve significativa presença
popular nos trabalhos e por isso a Carta Magna foi chamada de Constituição Cidadã.
O então presidente Sarney constituiu a partir do Decreto nº 91.450/85, de 18 de julho de
1985, uma comissão provisória para trabalhar num anteprojeto da Constituição. O grupo
recebeu o nome de Comissão Arinos, pois tinha como presidente o jurista e ex-deputado federal
Afonso Arinos de Melo Franco. Também integraram a “comissão de notáveis” nomes como o
empresário Antônio Ermírio de Moraes, o escritor Jorge Amado, o sociólogo Gilberto Freire, o
professor Cristovam Buarque e o pastor presbiteriano Guilhermino Cunha. O número total de
integrantes foi de 50 pessoas. A referida comissão trabalhou por meses no anteprojeto, porém
o presidente José Sarney não o enviou ao Congresso, pois Ulysses Guimarães, que presidia a
ANC, já havia dito que o devolveria caso ele chegasse. Os parlamentares interpretavam a
proposta da Comissão de Notáveis como intromissão do Executivo nos trabalhos do Congresso
Constituinte. Para evitar uma crise o presidente Sarney decidiu não enviar o texto.
Apesar de não ter sido enviado, o texto foi publicado no Diário Oficial da União e, dessa
forma, os constituintes puderam ter acesso ao anteprojeto. Inclusive, parlamentares teriam se
inspirado nele para a elaboração da Constituição de 1988. Só para ficar num exemplo, no
preâmbulo do texto do Afonso Arinos continha a expressão sob a proteção de Deus que está
também está presente no preâmbulo da Carta Magna.
121
Nós, representantes do Povo Brasileiro, reunidos sob a proteção de Deus em
Assembléia Nacional Constituinte, proclamamos a necessidade de oferecer ao
nosso País uma Constituição que, ao termo do primeiro século do regime
republicano, supere as causas das suas experiências negativas e assegure à
Nação uma era contínua de Paz, Liberdade, Segurança Pessoal, Bem-Estar e
Desenvolvimento, decorrentes da aplicação de princípios políticos,
econômicos e sociais adequados à nossa formação nacional e, como estes,
historicamente em evolução progressista. (Disponível em:
http://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/AfonsoArinos.pdf.
Acesso em: 18 set. 2015).
Ao contrário do que aconteceu no Congresso Constituinte a Comissão Arinos não
trabalhou no texto constitucional com pressão das corporações comercias, financeiras,
empresariais e até mesmo sindicais. Até porque um número signficativo dos integrantes da
Comissão não tinha vínculos partidários. Muitos itens específicos da Constituição foram
elaborados e aprovados a partir da influência de lobistas. Alguns desses casos foram
denunciados pela imprensa da época, de modo que alguns parlamentares evangélicos foram
acusados de corrupção. Analisaremos esse processo mais adiante.
Além do Ulysses Guimarães outros nomes também ditaram o ritmo dos trabalhos na
Constituite: Mário Covas (PMDB) que era uma das vozes mais importantes da ala progressista;
Fernando Henrique Cardoso (PMDB) também progressista foi o relator do regimento interno
da Constituinte e Bernardo Cabral (PMDB) que esteve na relatoria da Comissão de
Sistematização. Na ala consevadora destacaram-se parlamentares como Roberto Campos
(PDS); Guilherme Afif Domingos (PL); Jarbas Passarinho (PDS); Delfim Neto (PDS) e Marco
Maciel (PFL). À esquerda o professor Florestan Fernandes teve destacada atuação,
principalmente nos temas relacionados com educação e cidadania e o petista Plínio de Arruda
Sampaio defensor da Reforma Agrária (MOTA, 2015). Houve diferenças dentro do grupo
progressista, de modo que parlamentares como Fernando Henrique Cardoso e José Serra tinham
inclinação à social-democracia, enquanto que outros tinham um caráter mais socialista e
nacionalista.
O texto constitucional de 1988 teve 245 artigos e, em razão de emendas, esse número
aumentou para 250. O artigo 3º diz que a República deve garantir a construção de uma
“sociedade livre, justa e solidária” (Inciso I) e deve garantir também o “bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”
(Inciso IV). Capítulos de outros artigos remetem para os “direitos e deveres individuais e
coletivos”, que estariam fundamentados na “dignidade humana” (HEIMER, 2013, p. 78). Essa
tendência textual diz muito sobre a Constituição de 1988: o cidadão e a pessoa humana estão
122
na centralidade do referido texto constitucional. Isso é um dado relevante para uma discussão
que faremos adiante sobre a biopolítica e práticas políticas pentecostais.
A Constituição de 1988 também previa a realização de plebiscito a fim de se escolher o
tipo de governo, de modo que em 1993 a população decidiu pela manutenção do regime
presidencialista. Outra discussão na ANC foi a duração do mandato presidencial, que o
Congresso Constituinte decidiu pelos cinco anos. O autor da emenda que previa o mandado
presidencial de cinco anos foi o deputado assembleiano pelo Paraná Matheus Iensen. “A
emenda passou com o apoio de 59% dos constituintes, e 76% dos evangélicos” (FRESTON,
1994, p. 81). Este fato foi um dos motivos que levou o Jornal do Brasil a publicar matéria sobre
corrupção na ANC em que figuravam parlamentares evangélicos. Discutiremos este ocorrido
mais à frente.
O texto constitucional reforçou a independência dos poderes legislativo e judiciário,
dando a este último poder para anular atos do executivo. A Constituição também ampliou o
direito dos trabalhadores, onde se garantiu o direito à greve e proíbiu a intervenção do Estado
nos sindicatos. O texto constitucional também assegurou que todo cidadão pode entrar com
ação contra o governo e também estabeleceu o fim da censura prévia às artes e à imprensa
(MOTA, 2015). Também foi reforçado o federalismo, de modo que foi garantida a autonomia
político-administrativa dos estados.
Uma das polêmicas que envolveram parlamentares cristãos foi a menção do vocábulo
“Deus” no preâmbulo da Carta Magna. No fim, acabou prevalecendo a expressão “sob a
proteção de Deus”. Embora o preâmbulo não seja um elemento que integre a Constituição
(REIMER, 2013, p. 79) ele está relacionado com a origem ou aquilo que legitima o texto. Esse
foi um dos motivos que levaram grupos com visão contrária a questionarem o vocábulo Deus
no preâmbulo da Constituição. Outra temática religiosa discutida na ANC foi a das relações
entre Estado e denominações religiosas. O texto está no Artigo 19 e a expressão colaboração
de interesse público fundamentaria, no futuro, aparatos jurídicos para acordos do estado com a
Igreja Católica e também com igrejas evangélicas “I- estabelecer cultos ou igrejas,
subvencioná-las, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes
relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse
público”. Em 2008, por exemplo foi assinado o acordo entre o Vaticano e o Estado brasileiro,
para fins de colaboração em temas como educação e cultura. Desde 2009 tramita no Congresso
Nacional um texto a respeito da “Lei Geral das Religiões” que trata, principalmente das relações
entre igrejas evangélicas e o Estado Brasileiro.
123
Durante os meses em que se discutiu o texto constitucional o Congresso esteve em
movimento de maneira significativa, de modo que milhares de pessoas percorriam os corredores
e as salas em busca de seus interesses. Os mais variados grupos exerciam pressão sobre os
parlamentares e quase sempre seus votos eram barganhados. Após as discussões, votações e
revisões do texto final a Constituição foi promulgada em 5 de outubro de 1988.
5.2.5 A Atuação Parlamentar Pentecostal
Em meados de 1986 o então presidente da CGAD, pastor José Pimentel de Carvalho,
liderou uma comitiva que se encontrou com o presidente José Sarney em Brasília. A pauta
principal do evento foi a participação de evangélicos na ANC (MP, n. 2, 1986). Na conversa, o
pastor Pimentel disse ao presidente Sarney que as convenções estaduais das Assembleias de
Deus já estavam se articulando para o lançamento de candidaturas às eleições daquele ano. O
pastor Nemuel Kessler em matéria publicada no jornal Mensageiro da Paz disse o que se
esperava dos candidatos evangélicos:
Cabe, portanto, aos candidatos evangélicos que esperam nossos votos, uma
plataforma de ação definida que inclua, entre outros pontos, o combate ao
aborto, a guerra contra a pornografia, a luta para impedir a legalização do jogo,
a busca de melhor distribuição de renda, a vigilância constante para evitar a
subversão da ordem e a restrição da liberdade religiosa (MP, n. 7, p. 2, 1986).
Outro assunto que parece ter sido levantado na reunião foi dinheiro. Para ser mais exato
imagens e textos que figurariam nas notas do Cruzado. O Plano Cruzado foi a primeira medida
econômica em grande escala após o governo dos militares. O objetivo do referido plano era a
estabilização da economia e conter a inflação. Entre as medidas estava o congelamento de
preços por um ano e a substituição do cruzeiro pelo cruzado. Entretanto, não foi apenas uma
troca de moeda. Em 1977 símbolos africanos passaram a estampar as notas do Cruzeiro. O
Banco Central dizia que esses símbolos (búzios) faziam referência ao comércio marítimo (i)
legal de escravos para o Brasil. No Plano Cruzado estes símbolos foram tirados e deram lugar
à expressão “Deus seja louvado”. Com respeito ao fato o jornal Mensageiro da Paz noticiou:
Dentro de alguns meses, conforme anúncio das autoridades econômicas, as
cédulas e moedas do combalido e extinto cruzeiro serão substituídas pelas do
cruzado. Os grotescos totens das religiões afro-brasileiras serão substituídos
124
por uma declaração de fé no Todo-poderoso: “Deus seja louvado” (MP, n. 7,
p. 8, 1986).
A decisão da retirada dos símbolos africanos das notas e a inserção da expressão Deus
seja louvado foi uma influência direta dos pastores pentecostais? Tudo indica que sim, pois
conforme já destacamos essa foi uma das propostas apresentadas por eles num encontro com o
então presidenciável Tancredo Neves. O próprio jornal Mensageiro da Paz confirma o fato ao
dizer: “Essa decisão atende plenamente uma das reivindicações encaminhadas pela ADHONEP
a Tancredo Neves em fevereiro de 1985” (MP, n.7, p. 8, 1986). Conforme já descrito
anteriormente, a ADHONEP era presidida pelo diretor executivo da CPAD, Custódio Rangel
Pires.
Antes das eleições de 1986 o jornal Mensageiro da Paz abriu espaço para alguns
candidatos assembleianos falarem de suas propostas. Falaram Amizael Gomes da Silva, da AD
de Rondônia e presidente da Assembleia Legislativa daquele estado; Benedita da Silva da AD
do Rio de Janeiro e vereadora pelo PT; Salatiel Carvalho, presbítero da AD da cidade de Abreu
Lima; Sotero Cunha da AD do Rio de Janeiro e João Evangelista Antunes, delegado da polícia
civil e evangelista da AD de Porto Alegre. O jornal Mensageiro da Paz também ouviu
candidatos ao cargo de deputado estadual por São Paulo, como o pastor presidente da AD do
Ministério do Ipiranga Alfredo Reikdal e Carlos Apolinário da AD do Brás (MP, n. 9, 1986).
A canditada Benedita da Silva reforçou sua fala de compromisso com a justiça social e
que caso fosse eleita, participaria das discussões relacionadas com a reforma agrária. O
candidato Salatiel Carvalho, por sua vez reproduziu um discurso muito comum entre lideranças
pentecostais desse período: a Igreja Católica iria controlar os rumos de decisões de temas da
Constituição e em razão disso o catolicismo aumentaria sua influência sobre a nação brasileira.
Sendo assim, Salatiel Carvalho disse que era preciso ter representantes no Congresso
Constituinte para deter esse avanço católico (MP, n. 9, 1986). Discurso semelhante foi feito
pelo candidato gaúcho João de Deus. Além da ameaça católica ele chamou a atenção para o
perigo comunista e para a entrada de parlamentares gays no Congressso.
O Partido Comunista está legalizado em 40 municípios gaúchos; Dom Hélder
Câmara faz uma jornada em todo o Brasil, em nome da CNBB; os seguidores
do Reverendo Moom encontram-se mobilizados pela Constituinte. Os Gays já
tem seus candidatos... E onde está a participação dos evangélicos? (MP, n. 9,
p. 17, 1986).
125
O assembleiano Amizael Gomes já era bem conhecido em seu estado, tendo em vista
que presidira a Assembleia Legislativa de Rondônia no período em que fora deputado estadual.
Professor e escritor, Amizael já havia produzido material didático na área de história, que era
usado em escolas de 1º e 2º graus do estado. Em sua fala no jornal Mensageiro da Paz chamou
atenção para o perigo de setores radicais de outras religiões que poderiam prejudicar a igreja
evangélica (MP, n. 9, 1986).
O candidato Sotero Cunha falou do imperativo político-evangélico de que irmão vota
em irmão. Já o candidato Carlos Apolinário, que já era um assembleiano com experiência
política repetiu o discurso relacionado com os perigos da legalização do aborto. O pastor
Alfredo Reikdal, que pastoreava a AD Ministério do Ipiranga, conhecida por seu estilo
tradicional e conservador disse que tinha projetos para tirar menores das ruas (MP, n. 9, 1986).
Além desses, houve em todo o Brasil candidatos ligados às Assembleias de Deus, e no final do
pleito 13 foram eleitos. Naquele ano a Igreja Universal do Reino de Deus25 elegeu um deputado.
O jornal Mensgeiro da Paz noticiou que “[...] Após a solenidade de posse foi realizado um culto
na Assembleia de Deus W5 e havia faixas ‘exortando os novos contituintes a se portarem como
legítimos representantes da cidadania celestial’” (MP, n. 4, p. 13, 1987).
Quando falamos numa geografia do voto pentecostal nas eleições de 1986 alguns dados
chamam a atenção: 3 parlamentares do Norte; 3 parlamentares do Nordeste; 1 parlamentar do
Cento-Oeste; 3 parlamentares do Sudeste e 3 parlamentares do Sul. Sete deles eram de partido
do centro; 3 de partidos de esquerda e 3 de partidos da direita.
Uma curiosidade da lista abaixo: antes da Constituinte o deputado Antônio de Jesus foi
líder sindical e diretor da FEBEM de Goiás. Foi também o primeiro deputado evangélico a ler
a Bíblia numa sessão do Congresso Nacional. Ocupou cargo na Mesa Diretora como 1º vice-
25 A igreja Universal do Reino de Deus adota um modelo organizado durante os processos eleitorais. Antes das
eleições se realiza uma campanha para os jovens de 16 anos obterem seu título eleitoral e faz também uma
espécie de recenseamento dos membros no qual figuram seus dados eleitorais. Tais dados são apresentados aos
bispos regionais que por sua vez transmitem à coordenação politica nacional (no passado foi feita pelo bispo
Rodrigues). Juntos deliberam quantos candidatos lançam em cada município ou estado baseados no tipo de
eleição, quociente eleitoral dos partidos e número de eleitores recenseados pelas igrejas locais). E uma vez
lançados os candidatos usam os cultos, concentrações para fazer publicidade dos mesmos (de acordo com a
legislação eleitotal). Urnas eletrônicas disponibilizadas pela Justiça Eleitoral para treinar os fiéis para votarem.
Existe um direcionamento do voto de maneira mais clara e aberta. A escolha dos candidatos é de exclusividade
da liderança regional e nacional (às vezes pode até ser pessoas pouco conhecidas seja entre os membros, do
grande público e da imprensa especializada em política. Perfil: pessoas despojadas de interesses pessoais, ter
o desejo exclusivo de glorificar o bom nome de Jesus; possuir caráter e compromisso com o povo de Deus;
preocupar-se com os desamparados, pobres e necessitados; sem vaidades interiores, egoísmos. Uma pesquisa
realizada pelo ISER em 1994 apontava que os políticos indicados recebiam a porcentagem que pode chegar a
95% do total de fiéis da IURD. O próprio bispo Rodrigues disse : “Nossa força é que temos uma hierarquia, há
uma hierarquia que é seguida a risca”. O pastor eleito não é dono de seu próprio mandato, pois os interesses
institucionais precisam estar acima dos individuais (CAMPOS, L., 2005, p. 57).
126
presidente em 1988 e participou de uma viagem a Cuba a fim de conhecer a estrutura e
funcionamento da Assembleia Nacional daquele país.
Eliel Rodrigues (PMDB-PA) - Subcomissão dos Direitos e Garantias Individuais, da
Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher: Suplente, 1987;
Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso, da Comissão da Família, da Educação, Cultura
e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação: Titular, 1987.
José Fernandes (PDT-AM) - Subcomissão dos Direitos e Garantias Individuais: Titular,
1987; Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher: Titular, 1987;
Subcomissão de Orçamento e Fiscalização Financeira: Suplente, 1987; Comissão do Sistema
Tributário, Orçamento e Finanças: Suplente, 1987; Comissão de Sistematização: Suplente,
1987-1988.
José Viana (PMDB-RO) - Subcomissão dos Direitos e Garantias Individuais: Titular,
1987; Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher: Titular, 1987;
Subcomissão dos Municípios e Regiões: Suplente, 1987; Comissão da Organização do Estado:
Suplente, 1987.
Milton Barbosa (PMDB-BA) - Subcomissão da Nacionalidade, da Soberania e das
Relações Internacionais, da Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da
Mulher: Titular; Subcomissão da União, Distrito Federal e Territórios, da Comissão: Suplente.
Salatiel Carvalho (PFL-PE) - Subcomissão dos Municípios e Regiões, da Comissão da
Organização do Estado: Suplente, 1987; Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas,
Pessoas Deficientes e Minorias, da Comissão da Ordem Social: Titular, 1987.
Antônio Conceição da Costa (PMDB-MA) - Subcomissão da Ciência e Tecnologia e da
Comunicação, da Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e
Tecnologia e da Comunicação: Titular, 1987; Subcomissão do Sistema Financeiro, da
Comissão do Sistema Tributário, Orçamento e Finanças: Suplente, 1987.
Antônio de Jesus Dias (PMDB-GO) - Mesa Diretora: Presidente, 1988; Secretário,
1988; Subcomissão da Educação, Cultura e Esportes: Titular, 1987; Comissão da Família, da
Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação: Titular, 1987;
Subcomissão dos Direitos e Garantias Individuais, da Comissão da Soberania e dos Direitos e
Garantias do Homem e da Mulher: Suplente, 1987.
Manoel Moreira (PMDB-SP) - Subcomissão do Poder Executivo, da Comissão da
Organização dos Poderes e Sistema de Governo: Suplente, 1987; Comissão de Sistematização:
Titular, 1987-1988.
127
Sotero Cunha (PDC-RJ) - Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso, da Comissão
da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação:
Titular, 1987; Comissão de Sistematização: Suplente, 1987-1988.
Benedita da Silva (PT-RJ) - Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do
Homem e da Mulher: Suplente, 1987; Subcomissão dos Negros, População Indígena,
Deficientes e Minorias: Titular; Comissão da Ordem Social: Titular; Mesa da Assembleia
Constituinte: Suplente.
João de Deus Antunes (PDT- RS) - Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso, da
Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da
Comunicação: Titular, 1987; Subcomissão dos Direitos Políticos, dos Direitos Coletivos e
Garantias, da Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher:
Suplente, 1987.
Orlando Pacheco (PFL-SC) - Subcomissão dos Direitos Políticos, dos Direitos
Coletivos e Garantias, da Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da
Mulher: Primeiro-Vice-Presidente, 1987; Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso, da
Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da
Comunicação: Suplente, 1987.
Matheus Iensen (PMDB-PR) - Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso, da
Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da
Comunicação: Titular, 1987; Subcomissão da Nacionalidade, da Soberania e das Relações
Internacionais, da Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher:
Suplente, 1987. (Fonte: http://www2.camara.leg.br/atividade).
Um mês após a promulgação da Constituição expressivas lideranças das ADs se
reuniram nas dependências da CPAD no Rio de Janeiro; esse encontro teve um caráter
emergencial. A reunião foi conduzida pelo presidente da CGADB pastor José Wellington
Bezerra da Costa e estiverem presentes nomes como Silas Malafaia, Túlio Barros, Samuel
Câmara, Josué Sylvestre e outros destacados pastores-presidentes das ADs no Brasil. No mês
de agosto daquele ano, o Jornal do Brasil e o Correio Braziliense publicaram matérias
relacionadas com corrupção no Congresso Constituinte.
De acordo com o jornal, parte dos parlamentares evangélicos estaria envolvida em
esquemas de enriquecimento ilícito durante os trabalhos da ANC. No mesmo dia em que os
jornais chegaram às bancas com as acusações, o deputado assembleiano Salatiel Carvalho subiu
a tribuna da Câmara e fez um discurso negando as acusações. Na referida matéria, o Jornal do
Brasil denominou a Bancada Evangélica de “a gang dos servos de Deus” (MP, n. 9, 1986) que
128
teria como chefe Gidel Dantas, pastor da Igreja de Cristo no Ceará e deputado. Para o jornal,
os deputados evangélicos estariam se aproveitando da ANC para conseguirem vantagens
financeiras.
Uma das acusações era de que deputados ligados à bancada haviam comprado com o
dinheiro de corrupção seis opalas Diplomata Especial Modelo 88. Além disso, a AD na Bahia
também teria recebido 100 milhões de cruzados. O deputado Salatiel Carvalho se defendeu e
disse que o dinheriro teria sido usado para um projeto de alfabetização promovido pela AD no
estado da Bahia. O pastor Josué Silvestre pediu a palavra e disse que as acusações estavam
relacionadas com a proximidade das eleições municipais no mês de novembro, que na ocasião
teria expressivo número de candidaturas evangélicas: “sabem que o povo evangélico está
aprendendo a votar nos seus irmãos. Então eles viram que essa era a hora de obstacular a eleição
desses irmãos em todo o interior do Brasil” (MP, n. 10, p. 13, 1988).
O pastor Túlio Barros que presidia a AD de São Cristóvão pediu a palavra ao presidente
José Wellington Bezerra da Costa. De acordo com o pastor Túlio “havia forças em atual
mobilização contra o povo de Deus e, esse era o motivo principal de ataques e denúncias aos
parlamentares evangélicos” (MP, n.10, p. 13, 1988). Para ele essas forças malignas estariam
por trás das matérias do jornal, para deter o avanço dos evangélicos no espaço público
brasileiro, de modo que “isso incomoda o inferno, incomoda os inimigos da nação” (MP, n.10,
p. 13, 1988). Ao contrário do primeiro período, no segundo começa a haver uma demonização
da esfera pública. Nesse sentido, a presença evangélica nesse espaço garantia a vitória contra
poderes diabólicos no espaço público. Desde então esse é um pensamento recorrente para
legitimar a inserção de parlamentares evangélicos na política.
No primeiro período, 1930 a 1945, o espaço público não foi demonizado, mas sim visto
como esvaziado de dimensões redentoras ou libertadoras. Por isso, podia-se desdenhá-lo,
critícá-lo e recusar-se a fazer parte dele. Por isso a não participação é também uma posição
política, no sentido de que se recusa a entrar no jogo político. Já nesse segundo período
pesquisado, 1978 a 1988, o Estado precisa ser des-diabologizado para garantir a manuntenção
de modelos tradicionais de família, por exemplo. Sendo assim, há uma mudança significativa
não apenas no discurso sobre participação política, mas também na forma como se pensa o
papel do Estado. Seria essa concepção de Estado uma postura idolátrica? Caso a resposta para
essa pergunta seja sim, reiteramos nossa afirmação de que há maiores dimensões proféticas e
de crítica social no primeiro período do que no segundo que ora analisamos.
Ainda com respeito à reunião na CPAD o pastor Gildei Dantas também pediu a palavra
para dar explicações sobre a matéria veiculada no Jornal do Brasil. Para o parlamentar aquilo
129
era fruto de inveja, tendo em vista que a terceira maior bancada do Congresso era a evangélica.O
deputado João de Deus foi acusado pelo Jornal do Brasil de ter recebido nos esquemas de
corrupção rádios, postos de gasolina e 50 milhões de cruzados, mas negou as acusações e disse
que a principal detentora de rádios em seu estado era a Igreja Católica (MP, n. 10, 1988). Após
os esclarecimentos dos parlamentares acusados o pastor José Wellington Bezerra da Costa
reiterou o apoio aos deputados pentecostais.
Em outubro daquele mesmo ano, havia sido realizado no Congresso Nacional um culto
evangélico em ação de graças pela promulgação da Constituição; o organizador foi o deputado
Salatiel de Carvalho. Além de pastores, estiveram presentes o deputado Ulysses Guimarães e o
presidente do Senado, Humberto Lucena. O referido culto aconteceu no Salão Branco do
Senado e teve como pregador o pastor Geziel Nunes Gomes, que baseou sua mensagem no
prêmbulo da própria Constituição: “Sob a proteção de Deus”. Entrevistado o pastor Ronaldo
Fonseca disse que “pela primeira vez na história do Brasil, a solenidade de promulgação de
uma constituição inicia com um culto a Deus comandado pelos evangélicos” (MP, n.12, p. 5,
1988).
5.3 PRESENÇA PÚBLICA PENTECOSTAL OU VISIBILIDADE PÚBLICA
PENTECOSTAL? ASSEMBLEIA DE DEUS NO TEMPO PROFANO
No primeiro período analisado (1930-1945) os artigos publicados no jornal Mensageiro
da Paz apontavam para anseios de interrupção da história: Ela deveria ser abreviada. A história
caminhava para o fim iminente, sendo que o assembleianismo não cultivava uma visão
progressista da história. Por isso, não interpretamos como alienação a constante recusa pela
participação na política partidária naquele período. Além de o próprio momento político da
época ter sido um dificultador da participação popular nos processos políticos, aquele
assembleianismo desconfiava da ideia de um Estado Redentor. Vimos isso nos artigos do jornal
Mensageiro da Paz do período 1930 a 1945 em que criticavam governos, impérios e sistemas
políticos.
Desse modo, percebemos mudanças no assembleianismo e a relação dele com o
chronos, a partir dos artigos que ora analisamos no jornal Mensageiro da Paz. Acreditamos que
essas novas formas de relacionamento com a temporalidade profana nesse período 1978-1988
vão ser impulsionadas por três processos: crescimento numérico dos pentecostais,
institucionalização do movimento e a abertura democrática. A democrcia é um elemento que
propiciou a expansão do pentecostalismo. Descontados aqueles interesses nada evangélicos de
130
certas lideranças pentecostais em se lançarem na política, tudo indica que assembleianos na
transição democrática desejavam visibilidade pública. Em artigo publicado no jornal
Mensageiro da Paz o pastor Nemuel Kessler disse:
Temos suficiente potencial para elegermos, em cada Unidade da Federação,
um representante, no cômputo geral, mais de 20 nomes oriundos de nosso
meio. Por que dar o nosso voto a candidatos espíritas ou de outras religiões,
se podemos contribuir de modo efetivo para que os nossos sejam eleitos?
Vamos valorizar a expressão bíblica, que diz: “E o senhor te porá por cabeça,
e não por cauda; e só estarás em cima, e não debaixo...” (MP, n. 5, p. 2, 1985).
Os pentecostais reconfiguraram a maneira como se apresentavam na esfera pública, de
modo que encontraram um espaço de ressonância na política partidária; com isso transformaram
seu alcance em termos de participação na democracia. Conforme analisamos até aqui, há anos
que expressões pentecostais já exerciam algum tipo de incidência política; entretanto, a partir
desse novo período da história brasileira eles querem mais visibilidade pública. Muitas dessas
expressões pentecostais não eram mais periféricas. Muitos já eram profissionais liberais,
funcionários públicos, empresários, lideranças políticas a nível municipal e regional,
conferencistas, cantores de sucesso no meio pentecostal ou pastores em megatemplos. Além
disso, há tempos que se repetia o discurso de que “já somos milhões de pentecostais nesse país”.
Mas isso não era o bastante; era preciso visibilidade pública. Percebe-se que esses novos
interlocutores religiosos desejam sua legitimização como atores das discussões políticas. Esse
momento de abertura democrática será de modo significativo favorável à referida visibilidade
pública pentecostal. Desse modo, a democracia favorece o assembleianismo e outros
pentecostalismos.
Além da política partidária, a mídia também funcionou como um espaço de ressonância
dos pentecostalismos. Magali do Nascimento Cunha (2013) também destaca o período da
Assembleia Nacional Constituinte como um “ponto de virada” nas relações entre religião e
política, bem como no uso da mídia para dar visibilidade a práticas políticas evangélicas de
caráter conservador. Nesse período, por exemplo, foram dadas concessões públicas de veículos
de comunicação a lideranças evangélicas, entre elas o assembleiano e deputado constituinte
Matheus Iensen.
5.3.1 O Que é Presença Pública?
131
Desse modo, acredita-se que práticas políticas pentecostais desejavam visibilidade
pública. Entretanto, pode-se falar também de uma “presença pública pentecostal”? A
visibilidade pública da religião parece se distinguir da presença pública da religião, no sentido
de que nessa última os grupos religiosos têm incidência mais direta nas políticas de Estado; nela
os grupos religiosos discutem, elaboram e apresentam suas demandas. Esses referidos grupos
têm uma atuação propositiva no sentido de corrigir injustiças sociais. Vejamos a distinção
desses dois conceitos.
De acordo com Moltmann, “é preciso colocar as coisas públicas na luz do reino e da
justiça e os grupos religiosos não podem esconder-se atrás dos silenciosos muros da igreja. Seu
lugar é no meio dos campos de conflito” (MOLTMANN, 2008, p. 81). Para Habermas vivemos
em uma sociedade pós-secular onde as religiões devem ser não apenas aceitas, mas também
reconhecidas como instituições que exerçam funções positivas na sociedade (HABERMAS,
1997). Nessa sociedade pós-secular o Estado tem interesse de permitir que as religiões atuem
também na esfera pública, que aqui relacionamos com a política partidária. Nesse sentido, o
Estado não pode restringir a participação dos grupos religiosos no espaço público. Todavia,
para Habermas a linguagem religiosa na esfera pública deve ser traduzida numa linguagem
universal e acessível, pois as verdades religiosas não devem influenciar as deliberações
institucionais do Estado.
Chantal Mouffe (2005) acredita que a democracia moderna é como algo que vai além
da forma de um governo. Ela diz respeito a uma forma de organização resultado de duas
articulações: na primeira ela destaca o papel do estado de direito, a separação de poderes e a
garantia dos direitos individuais e coletivos; e a segunda, a tradição democrática popular. Sendo
assim, o pluralismo, segundo Mouffe, é um dos fundamentos da democracia moderna, onde os
indivíduos podem participar dos processos democráticos. Sendo assim, as diferenças e as
diversidades promovem a construção das identidades nacionais, ao contrário da lógica de
absolutização. Nesse cenário, a presença pública das religiões não atesta contra o princípio da
laicidade do Estado, pelo contrário ela pode fortalecer a democracia. Talvez uma experiência
pentecostal que se aproxime de uma presença pública da religião tenha sido vivida na África
do Sul durante os processos da ascensão de Nelson Madela à presidência daquele país na década
de 199026.
26 Na década de 1990, o então presidente da África do Sul, Nelson Mandela, iniciou um projeto de reconstrução
moral do país. Para esse fim, ele chamou lideranças religiosas a fim de participarem desse processo. Esperava-
se que os grupos religiosos fossem capazes de refletir a respeito de ações de transformação social. Para Nelson
132
Boaventura de Souza Santos (2014) chama a atenção para o caráter constitutivo da
religião na esfera pública. Para ele, é possível falar de uma teologia política, pela qual, atores
religiosos intervêm nos espaços sociais e políticos. Boaventura cita exemplos de incidência
política das Teologias Latino-Americanas e a Teologia da Libertação Islâmica. Desse modo, o
estudioso português faz críticas à divisão entre esfera pública e esfera privada, cuja cisão seria
fruto do Iluminismo europeu.
Portanto, consideramos como básicos da distinção entre visibilidade pública e presença
pública os seguintes elementos: tradução da linguagem religiosa em narrativas que
reinvindiquem justiça e o estabelecimento de práticas político-sociais na tentativa de corrigir
injustiças. Acreditamos que nesse momento da ANC não se pode falar de uma presença pública
das Assembleias de Deus. Na transição democrática os assembleianos, de maneira geral
participaram das eleições, não da política enquanto um projeto de correção de injustiças sociais
a partir de atuação no interior de instituiçõs do Estado. O que houve foi um movimento em
busca de visibilidade pública. Todavia, como já nos referimos em outra ocasião, a possibilidade
de eleger candidatos conferia sentimento de empoderamento à comunidade pentecostal.
A maneira como o Estado está estruturado e funciona favorece o tipo de atuação política
de pentecostalismos e de outros grupos evangélicos. Além de uma presença das religiões no
espaço público, podemos falar também de paradigmas teológicos que constituem o Estado na
modernidade. Agamben (2015) defende a tese de que o Estado moderno é constituído a partir
de bases mítico-teológicas. Ele propõe a genealogia de um paradigma que exerceu influência
sobre o ordenamento da sociedade global. De acordo com o filósofo italiano dois paradigmas
políticos são derivados da teologia cristã: (i) a teologia política, em cujo fundamento está Deus
em sua soberania e transcendência; (ii) a teologia econômica, que substitui a ideia da oikonomia
(gestão, governo das coisas). “Do primeiro paradigma derivam a filosofia política e a teoria
moderna da soberania; do segundo, a biopolítica moderna até o atual triunfo da economia e do
Mandela a corrupção, a criminalidade, entre outros problemas de ordem moral, deveriam ser enfrentados com
o apoio da religião. Foi realizada uma série de oficinas e consultas para discutir ações voltadas para moralizar
a nação, com a participação de políticos e lideranças religiosas. Em 1998 Mandela dirigiu uma reunião com
essas lideranças e em seu discurso destacou o aumento da corrupção na esfera pública e privada; a ineficiência
das instituições públicas e a violência contra crianças e mulheres. Com efeito, era necessária uma regeneração
moral na sociedade sul-africana. A partir dessas reuniões, começou-se a pensar na criação do Movimento de
Regeneração Moral (MRM), de modo que o Departamento de Educação, a presidência, organizações religiosas
e outros departamentos do governo se uniram para criar estratégias de enfrentamento da degeneração moral da
sociedade. Em 2002 o MRM foi inaugurado em Pretória com o objetivo de ser uma instituição de promoção
da justiça social. No ano de 2004 esse organismo se uniu ao Centro de Teologia Pública Beyers Naudé, ligado
à Universidade de Stellenbosch; era mais uma iniciativa de unir Estado, organizações da sociedade civil e
religiosos na luta por uma sociedade mais ética e igualitária.
133
governo sobre qualquer outro aspecto da vida social” (AGAMBEN, 2012b, p. 13). No
cristianismo primitivo Eusébio de Cesareia estabeleceu uma relação entre o aparecimento de
Jesus, o imperador romano Augusto e, posteriormente, Constantino. Sendo que, a partir daí a
noção de poliarquia pluralista deu lugar a uma monarquia política, com bases numa monarquia
divina; nesse governo soberano, seu poder é divinamente legitimado.
Para tratar desses paradigmas Agamben busca fundamentação em Carl Schmitt, para
quem as doutrinas que constituem o Estado moderno são conceitos teológicos secularizados.
Ao contrário do que disse Max Weber, o desencantamento do mundo não gerou uma
desteologização dos processos sociais, pois mesmo que esteja no subterrâneo das ideias
políticas, a teologia ainda prossegue atuante no mundo. Sendo assim, tanto as esferas políticas
como as econômicas teriam em sua estrutura e funcionalidade paradigmas teológicos. Tanto
Walter Benjamin (2013) como Franz Hinkelammert (2012) fizeram análises semelhantes na
medida em que o capitalismo também estaria fundamentado a partir de conceitos teológicos e,
em razão disso, poderíamos classificá-lo como uma religião.
Fundamental no texto de Agamben é o termo oikonomia, de modo que o filósofo retoma
os escritos de Pais da Igreja como Tertuliano, Hipólito, Irineu e Clemente, a fim de substanciar
sua tese de que o referido termo esteve relacionado com a gestão, atividade divina,
administração da casa e governo, realizada por intermédio de uma economia da Trindade.
Todavia, para a doutrina da oikonomia o governo de Deus no mundo não é de natureza
ontológica, mas prática; pensamento contrário ao de Aristóteles, por exemplo, para quem o
motor imóvel que controla as esferas celestes está circunscrito numa relação de harmonia entre
o ser e a práxis. Quando os Padres da Igreja discutiram a doutrina da oikonomia, quiseram evitar
o surgimento da pluralidade de divindades e, por conseguinte, o politeísmo, de modo que “a
simples disposição da economia não significa de modo algum a separação da substância. O ser
divino não é dividido porque a triplicidade de que falam os Padres se situa no plano da
oikonomia, e não naquele da ontologia” (AGAMBEN, 2012b, p. 67). Portanto, a vontade livre
de Deus, distinta de sua natureza tornou-se um elemento central na teologia cristã, com uma
dissociação entre ser e práxis, principalmente após o Concílio de Niceia.
Agamben em sua análise destaca as relações entre paradigmas metafísico-teológicos e
paradigmas políticos, os quais estariam interligados. Nesse momento, ele cita a fórmula de uma
monarquia parlamentarista, onde o rei reina, mas não governa. Com efeito, os negócios do reino
ficariam a cargo dos ministros do rei. Essa estrutura governamental seria uma herança gnóstica
na política moderna, pois parte de conceitos gnósticos de que o Deus bom reina, mas as forças
demiúrgicas que governam na figura dos funcionários são más e, por isso, sempre erram. Nesse
134
contexto político cujo reinado e governo são constituídos de deuses “o primeiro, definido como
rei, é estranho ao mundo, transcendente e totalmente inoperante; o segundo, ao contrário, é
ativo e ocupa-se do governo do mundo” (AGAMBEN, 2012b, p. 92).
Agamben faz essa discussão com Erik Peterson, que em seu texto Monoteísmo como
problema político, afirmou que a estrutura administrativa e o aparato burocrático, pelos quais
os soberanos fundamentam seu reino, seriam paradigmas do governo divino no mundo. E
quanto ao “governo dos homens”? Michel Foucault e principalmente Carl Schmitt viu no
pastorado da Igreja Católica o paradigma daquilo que seria o moderno conceito de governo
(AGAMBEN, 2012b). Schmitt analisa o modelo nacional socialista alemão e afirma que nesse
Estado o povo é impolítico; fica à sombra das deliberações políticas. Enquanto que o partido e
o Führer controlam, decidem mediante um paradigma pastoral-governamental.
Portanto, para Agamben existem assinaturas teológicas no Estado moderno, pois
mediante os arquétipos da Trindade há correspondências entre a oikonomia divina e o governo
do mundo; são imaginários teológicos na constituição de modelos políticos. O filósofo italiano
também discute as possibilidades de se fazer distinção entre Reino e Governo e para isso recorre
ao tema teológico da criação. Nela a divindade cria, mas sua criação prossegue por intermédio
do governo das criaturas criadas. Há dessa forma uma dupla articulação entre ação divina da
criação (creatio) e conservação (conservatio) (AGAMBEN, 2012b). Desse modo, quem reina
nem sempre governa. Esse paradigma teológico, que se desdobra em uma dupla estrutura é uma
das bases da máquina de governos do Ocidente.
Giorgio Agamben lembra em seu texto O Reino e a Glória que na década de 1970
Michel Foucault ministrou no Collège de France um curso em que tratou sobre a genealogia da
“governamentalidade moderna” (AGAMBEN, 2012b, p. 125). Foucault analisou três
modalidades a partir das relações de poder: (i) o sistema legal, que é constituído pelo aparato
normativo que se pode e não pode fazer; (ii) os mecanismos de punição como as penitenciárias;
(ii) e, por fim, aquilo que chamou de governo dos homens (FOUCAULT, 2008). Para o filósofo
francês a genealogia das modernas técnicas governamentais está no pastorado cristão, de modo
que o “cuidado das almas” estaria na matriz do governo político. Nesse contexto, o Estado
moderno é ao mesmo tempo individualizante e totalizante, pois cabe a ele cuidar de todos, mas
de maneira singular e individual. O pastorado enquanto economia das almas seria um dos
propósitos centrais dos governos, logo “pastorado eclesiástico e governo político situam-se
ambos no interior de um paradigma essencialmente econômico” (AGAMBEN, 2012b, p. 126).
Portanto, compreendemos como presença pública da religão a atuação de grupos no
espaço da política em que se engajam em lutas por correção de injustiças sociais e na promoção
135
da igualdade. Teriam as Assembleias de Deus potencial para promover sua presença pública?
Acreditamos que sim, caso essa atuação seja potencializada por princípios de justiça e igualdade
que encontramos no interior do próprio pentecostalismo.
Acerditamos que as instituições do Estado não seriam um lugar estranho para os
pastores-parlamentares, em razão do aspecto comum relacionado com a economia das almas.
Tanto as práticas políticas do Estado como ação pastoral, tem a função de administrar vidas,
enquanto corpos. Notamos que, quando se trata de mulheres pentecostais parlamentares, a
atuação delas tende a seguir outra direção no que diz respeito à administração dos corpos. Sendo
assim, há indícios de que mulheres e homens pentecostais na política tendem a lidar de maneira
distinta com o paradgma teológico da “economia das almas”. Mais adiante veremos isso a partir
da atuação da assembleiana Benedita da Silva no Congresso Constituinte.
Este paradigma teológico-econômico do Estado moderno teria na crença da providência
divina sua origem, na medida em que Deus se ocuparia das coisas humanas; a divindade estaria
sempre a prestar atendimento a cada indivíduo e fundamentaria a concepção teológica do
governo providencial no mundo. No contexto dessa máquina providencial há dois poderes
distintos, mas harmônicos entre si: um poder de deliberação racional e outro de execução, sendo
que esse último seria exercido pelos ministros ou mediadores. Agamben recorre a Tomás de
Aquino para quem “no que concerne à racionalidade, Deus governa imediatamente todas as
coisas; no que concerne, por sua vez, à execução do governo, Deus governa algumas coisas
mediante outras” (AQUINO apud AGAMBEN, 2012b, p. 151). A divisão de poderes do Estado
moderno tem nesse paradigma teológico seu principal arquétipo Desse modo, há uma
correlação analógica entre o governo divino no mundo e o governo profano das cidades e a
vocação econômico-governamental das democracias modernas tem nessa concepção teológica
a sua origem.
Se Agamben estiver correto na discussão que fez acima, ela é mais um de nossos
argumentos de que o Congresso Constituinte não era um “lugar estranho”, pelo menos no
imaginário dos parlamentares evangélicos e pentecostais. A própria ideia do Legislativo como
Casa do Povo é um termo teológico secularizado que corresponderia à Casa de Deus. Apesar
de a soberania divina ter sido substituída pela soberania do povo, o conceito de “administrar”
as vidas e os corpos permaneceu. Talvez esse tenha sido um dos motivos que levaram
parlamentares pentecostais a terem quase que uma obsessão por temas relacionados ao corpo
como família, aborto e homossexualidade. Por isso acreditamos que a maneira como se constitui
e funciona o Estado favorece a maneira como parlamentares pentecostais legislam em matérias
136
sobre a vida natural. Além de favorecer arranjos político-religiosos, esse modelo de Estado
potencializa as dispustas de quais e como os corpos se moverão pela democracia.
5.3.2 Assembleia de Deus e o Aiôn Imperializado
Conforme analisamos no período de 1930 a 1945 os artigos relacionados com a
escatologia não estariam relacionados com projetos de alienação política. Os discursos sobre o
céu são concebidos a partir de realidades da vida concreta. No caso das mulheres e homens de
pertença pentecostal, os referidos discursos escatológicos emergiram a partir de dentro dos
processos de marginalização e exclusão social nos quais estavam inseridos. Sendo assim,
relacionamos o aiôn do primeiro período com crítica social e descontentamento popular. Em
relação ao primeiro período, os artigos do jornal Mensageiro da Paz com conteúdo escatológico
aparecem em menor quantidade. Mesmo assim, encontramos um número razoável deles.
Notamos que a maioria dos artigos do período agora analisado (1978-1988) tem relação com o
momento geopolítico mundial relacionado com a Guerra Fria, que resultou na polarização
Estados Unidos versus União Soviética. Em razão disso, pensamos que a dimensão profética e
de crítica social do discurso escatológico adquiriu outras configurações em relação ao período
de 1930-1945.
Se o discurso no primeiro período esteve relacionado com crítica social e também a
“impérios e reinos deste mundo”, no segundo acontece uma “imperialização” do discurso
escatológico. No contexto da Guerra Fria ele é concebido para fundamentar a superioridade de
potências econômicas e militares como Estados Unidos e Israel. De acordo com Boaventura de
Souza Santos, “a globalização hegemônica tem a seu serviço uma institucionalidade
diversificada e muito poderosa dos Estados centrais, União Europeia, do Banco Mundial ao
Fundo Monetário Internacional, das grandes empresas multinacionais à Organização Mundial
do Comércio” (SANTOS, B., 2014, p. 33). Ele analisou os efeitos da globalização hegemônica
e da globalização contra-hegemômica. A primeira está relacionada com forças hegemônicas
imperiais que se articulam mediante órgãos financeiros internacionais. Já o segundo acontece
pela articulação de movimentos sociais e ONGs na luta por dignidade e direitos.
Muito embora o assembleianismo do primeiro período não tenha se articulado em
movimentos sociais organizados, ele esteve mais próximo de uma cultura contra-hegemônica.
137
Não apenas pela crítica que o movimento fez a impérios e sistemas mundiais. Acreditamos que
os discursos escatológicos daquele período eram uma maneira de demonstrar descontentamento
com este mundo e seus valores. Para Boaventura o processo de contra-hegemonia está
“destinado a desacreditar os esquemas hegemônicos e fornecer entendimentos alternativos
credíveis da vida social” (SANTOS, B., 2014, p. 33).
No interior desses discursos do segundo período analisado está a questão de Israel, pois
o jornal Mensageiro da Paz advertia que “o retorno final de Israel, a reconstrução das suas
cidades antigas e o reflorescimento do país, indicam que estamos vivendo nos últimos tempos”
(MP, n. 8, p. 3, 1983). O pastor assembleiano Abraão de Almeida escreveu artigos e livros nesse
período sobre uma supremacia de Israel.
Além de tratar do declínio e da dominação estrangeira, as profecisas falam
também da invencibilidade dos judeus pelas tropas egípcias. Este é um
acontecimento realmente atual. Desde que o Estado de Israel foi proclamado
em maio de 1948, o Egito e outros países árabes sofreram fragorosas derrotas,
apesar de estarem poderosamente equipados com mordenísssimas armas
soviéticas (MP, n. 8, p. 3, 1982).
O missionário estadunidense Lawrence Olson também era um dos mais fervosoros
defensores de Israel:
A bandeira de Israel, com a estrela hexagonal de Davi já tremula entre as
bandeiras das demais nações do mundo. Israel foi oficialmente reconhecido
como membro das Nações Unidas, graças à atitude amigável da representação
brasileira na oportunidade. Rapidamente Israel assume a posição de líder entre
as nações, justamente como foi predito pelos profetas (MP, n. 1, p. 7, 1983).
As imagens religiosas que relacionavam a Rússia com o Anticristo ainda eram muito
comuns nesse período. Um pastor estadunidense chamado David F. Webber escreveu no jornal
Mensageiro da Paz:
O papel da Rússia nas condições do tempo do fim, que levam à revelação do
Anticristo, está delineado nos capítulos 38 e 39 de Ezequiel. A Rússia e o
comunismo antideus estão desempenhando um papel principal na evolução
dos eventos envolvendo o Anticristo e o tempo do fim (MP, n.3, p. 13, 1982).
O mesmo pastor usou a cabala judaica para fundamentar sua doutrina de que os
soviéticos representavam o Anticristo:
138
Porque o sistema de numerologia hebraico (Quabballa) que é foneticamente
definido, Rússia, ou União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS),
tem, com suas letras somadas, exatamente o valor de 666, como segue: União
(WAW) 6; das (GOPH) 100; Repúblicas (RESH) 200; Socialistas (SIN) 300;
Soviéticas (SAMEKH) 60. Total 666 (MP, n.3, p. 13, 1982).
O pastor Jeferson Magno Costa também relacionou mísseis aos quatro cavaleiros do
Apocalipse:
Os poderosos mísseis nucleares que surgem dia a dia nos arsenais do mundo,
são hoje conhecidos nos meios jornalísticos como “cavalos do Apocalipse” –
em alusão aos quatro cavalos que apareceream nas visões do evangelista João,
após o Cordeiro abrir os três primeiros selos. Apocalipse 6.2-5. São eles: os
SS-4, SS-5 e SS-20 soviéticos, e o Tomahawk Cruise e Pershing II americanos
(MP, n.6, p. 8, 1984).
Reconhecemos que no período 1978 a 1988 ainda havia discursos escatológicos de
natureza profética, principalmente no interior das igrejas pentecostais. Entretanto, acreditamos
que artigos relacionados com o tema da escatologia publicados no jornal Mensageiro da Paz
perderam parte de seu poder de crítica social. Quando conjugados com a dimensão política, os
referidos artigos denotam um discurso escatólogico imperializado, onde fundamentam o
alinhamento às propostas hegemônicas.
5.4 ASSEMBLEIANISMO, CORPO E BIOPOLÍTICA: UMA ANÁLISE A PARTIR DO
KAIROS
Na atuação parlamentar pentecostal no Congresso Constituinte, assim como na atuação
dos demais políticos, houve uma temporalidade política hierarquizada, ou seja, temas que foram
priorizados. Ao destacar a atuação dos parlamentares evangélicos o jornal Mensageiro da Paz
noticiou que “ficou claro que o empenho de cada um foi efetivo, seja na apresentação de
sugestões ao texto constitucional, como na defesa de pontos com os quais não podiam transigir,
entre eles o aborto e o homossexualimo” (MP, n. 8, p. 2, 1987). No primeiro período de 1930 a
1945 analisamos o tempo kairótico ou messiânico a partir das expressões corporais pentecostais
(êxtase e certas formas de ascetismo); vimos nelas elementos de contestação popular. O kairos
emerge dentro do tempo profano a fim de transformá-lo, modificá-lo de maneira qualitativa,
sem perder o horizonte do tempo que resta. Em que medida as práticas políticas na ANC sobre
o corpo aconteceram ou não aconteceram a partir da experiência do kairos?
139
O pentecostalismo é uma religião do corpo. Em nossa pesquisa, isso ficou mais evidente
em razão da relação que fizemos entre expressões corporais no assembleianismo e a crítica
social no primeiro período. A Constituição Cidadã de 1988 garantiu a primazia da pessoa
humana; desse modo caberia ao Estado possibilitar políticas públicas de bem-estar ao
“indívíduo-corpo”. E como já nos referimos acima o pentecostalismo tem no corpo sua
centralidade. Está posto então o problema. Percebemos que o tema da corporeidade está
presente na temporalidade política hierarquizada dos pentecostalismos; mas será que ela foi
capaz de produzir determinados tipos de crítica social assim como no primeiro período?
Analisemos.
Já se sabe que a ANC possibilitou a participação de vários grupos da sociedade na
elaboração da Carta Magna. De modo que, como já descrevemos, os pentecostais estiveram
presentes nesse processo. Entretanto, acreditamos que não foi apenas a abertura aos mais
variados grupos da sociedade brasileira que possibilitou a influência religiosa na esfera pública.
Tendo em vista que a Constituição intencionou ser “cidadã” e centrada na pessoa humana, isso
de certa maneira favoreceu ou no mínimo abriu caminho para que parlamentares pentecostais
marcassem sua atuação a partir de temáticas relacionadas com a vida enquanto corpo. Desse
modo, esses parlamentares pentecostais estiveram circunscritos nas relações da biopolítica,
temática essa que analisaremos mais adiante.
Com base na descrição que fizemos a atuação da deputada assembleiana e deputados
assembleianos na ANC mostrou que a maioria deles esteve envolvida em temas relacionados
com os corpos: Comissão da Família, Comissão de Direitos e Garantias do Homem e da Mulher,
entre outras. Já citamos os casos em que alguns desses parlamentares foram denunciados por
corrupção. Muitos deles estiveram envolvidos em outros temas durante a ANC como os que
trataram de conceções de rádio e televisão no Brasil, tema esse que era de interesse de lideranças
evangélicas. Entretanto, queremos analisar a participação da parlamentar e dos parlamentares
assembleianos a partir da temática do corpo, que como já mencionamos é uma dimensão central
no pentecostalismo. Interessa-nos também saber se há possibilidade de relacionar essa atuação
parlamentar com o tempo kairótico.
Um dos motivos principais que lideranças assembleianas usaram para se lançarem na
política em 1986 foi o discurso da defesa da família; de fato, durante a ANC participaram de
discussões relacionadas com o aborto, a homossexualidade e o divórcio. Quanto ao primeiro
tema, todos os parlamentares pentecostais homens foram defensores de que a vida começa a
partir da concepção e, portanto, o aborto deveria ser proibido em qualquer situação. A deputada
140
Benedita da Silva teve uma postura diferente em relação à matéria, fato este que, inclusive,
virou assunto do jornal Mensageiro da Paz da época:
Ela declara que, como pessoa individual, é contra o aborto, mas quer que ele
seja aprovado por conhecer de perto as condições em que as mulheres o
praticam. Declara ainda que já optou pela prática do aborto. O curioso é que
tal propositura procede de alguém que supostamente estaria na Constituinte
para lutar contra toda a sorte de discriminações, menos evidente, a
discriminação contra bebês cujos pais não teriam a menor condição financeira
e emocional (MP, p. 7, 1988).
Com respeito à homossexualidade também houve discordância entre os parlamentares
pentecostais homens e a deputada Benedita da Silva. Para ela a manifestação livre da
sexualidade seria uma das dimensões da cidadania (FRESTON, 1994, p. 78), enquanto que o
deputado José Fernandes propôs incluir o termo “desvio sexual” no texto constitucional que
tratava da homossexualidade (MP, p. 7, 1987). Assim como a Confederação Nacional dos
Bispos do Brasil (CNBB) os parlamentares pentecostais também foram contra o divórcio. Fica
evidente que a atuação parlamentar pentecostal teve como característica principal a biopolítica,
que está relacionada com as políticas de Estado sobre o corpo. Aliás, a biopolítica foi um tema
central da ANC e está na base do texto constitucional.
Na contemporaneidade existe uma aceitação social do poder disciplinador sobre os
corpos. A modernidade rompeu a lógica de que esse poder de controle dos corpos era originário
da divindade, de modo que o Estado assumiu essa prerrogativa da decisão sobre a vida dos
indivíduos. Essas ideias estão presentes no Contrato Social de Rousseau, tendo em vista que ao
discutir o papel do estado civil ele diz que “a transição do estado natural ao civil produz no
homem mudança notável, substituindo em sua conduta a justiça do instinto e dando aos seus
atos a moralidade de que antes careciam” (ROUSSEAU, 2011, p. 33). Baseado no fundamento
da dignidade humana o Estado se tornou o garantidor dos direitos do cidadão. Entretanto, essa
categoria “cidadão” remete também aos deveres; desse modo os membros da sociedade devem
se sujeitar ao poder decisório do Estado. Nesse contexto democrático, surgem então as políticas
relacionadas aos direitos humanos.
O efeito colateral dessas políticas era de que mesmo em democracias os corpos não
podem mover-se livremente. Para garantir a dignidade humana o estado deveria criar aparelhos
disciplinares, a fim de sujeitar os indivíduos. Michel Foucault (2004), principalmente em Vigiar
e Punir fez críticas a certos modelos de sujeição e métodos disciplinadores usados pelo Estado
para legitimar a garantia dos direitos humanos. Nesse modelo, a vida dos indivíduos entra nos
141
cálculos governamentais e mesmo na racionalidade econômica do Estado. Quanto a isso
Foucault afirma que a “humanidade é o nome respeitoso dado a essa economia e a seus cálculos
minuciosos” (FOUCAULT, 2004, p. 77). Portanto, para o filósofo francês o discurso sobre
direitos humanos foi possível em um contexto em que havia uma reconfiguração do poder na
modernidade.
Mesmo com essa crítica de Foucault, isso não significa que os direitos humanos não
tiveram um papel importante nas lutas por justiça de grupos subalternizados. Ainda hoje é
reconhecido o papel que esses grupos exercem na incidência política por igualdade e equidade.
Acontece que, a partir da inserção do discurso dos direitos humanos e da administração dos
corpos pelo poder soberano estatal, a política passou a ser biopolítica. Desse modo, o poder
pode se legitimar e funcionar na sociedade a partir de discursos dos direitos humanos, mas esses
mesmos discursos na biopolítica podem produzir lutas por resistência.
O advento da modernidade não significou que a religião tenha perdido o controle e a
influência sobre os corpos. Entretanto, políticas relacionadas aos corpos como casamento e
modelos de famílias, direitos civis e reprodutivos, criminalização do uso de drogas, entre outras
são referendadas e legitimadas a partir do ordenamento jurídico do Estado; assim, os corpos
estão dentro de uma relação dialética com a lei e, por conseguinte, com o controle e poder. Both
discute a hipótese que “é o discurso dos direitos humanos que contribuiu, a partir de
determinado período, para fazer circular efeitos de poder, cujo papel fundamental é preservar e
cuidar da vida” (BOTH, 2009, p. 111).
A religião não aceita perder esse controle e influência sobre o corpo e por isso há
pressões por parte de determinados grupos religiosos em discussões que envolvem políticas
públicas sobre corpos. Está então aberta a disputa pelo controle e colonização deles, de modo
que isso evidencia a luta pelo poder e controle dos corpos. Essa constatação parece ficar mais
evidente em experiências político-pentecostais. Descontados os interesses particulares que
parlamentares evangélicos possam ter na política, o envolvimento de muitas lideranças
pentecostais em disputas no espaço público talvez seja potencializado em razão da centralidade
que o corpo ocupa na religiosidade pentecostal.
Para Foucault, o exercício do poder moderno se apoia na vida enquanto corpo-espécie,
que também podemos chamar de biopoder. A primeira vez que ele usa o termo biopoder é em
História da sexualidade: a vontade de saber. Nesse texto, ele questiona a ideia de repressão
sexual, principalmente no século XVI (FOUCAULT, 2003). Foucault também revê o papel do
sexo no saber-poder moderno e nos dispositivos que sustentam nossos discursos sobre
sexualidade humana: Sexualidade essa que entra na pauta dos governos sobre políticas do corpo
142
bem como sobre a regulação da população. Em nosso texto tratamos como sinônimos as
expressões biopoder e biopolítica.
A regulação da vida está na agenda do Estado moderno, de modo que ela entrou nos
cálculos governamentais como possibilidades de um exercício das relações de poder. A vida
está no espaço público e, de certa maneira, ela legitima a existência do Estado na
contemporaneidade. Conforme já citado, para Rousseau o Estado só tem razão de ser se ele for
capaz de cuidar da vida e de sua preservação. A partir disso, pode-se questionar também a ideia
de vida privada. Se o Estado moderno tem a incumbência de cuidar da vida isso remete para a
justificativa de que ele pode exercer influência não apenas na polis, mas também no oikos. O
Estado pode entrar nas casas. Saber o que se passa lá dentro e até mesmo regular como devem
ser as relações vividas entre os que ali moram. Um dos muitos exemplos disso seria um Estado
fiscalizador do núcleo familiar, a fim de averiguar dimensões no interior da casa como proteção
e educação da criança, violência doméstica, entre outras. Desse modo, a vida não fica mais
confinada à esfera privada.
Neste cenário, Foucault afirma que a vida está politizada e estatizada. Em razão dessa
materialidade do corpo pode-se falar de uma performatividade do político centrado nos
processos de controle do indivíduo. No que diz respeito à biopolítica, até processos biológicos
como quem nasce, como nasce, onde nasce ou quem morre e quando morre são regulados
mediante os aparatos jurídicos do Estado; logo, são incorporados às preocupações do poder.
Para Foucault até o fim do século XVIII essas questões não eram centrais na política. De acordo
com o filósofo francês é justamente no final de século que há o surgimento da biopolítica, que
emerge no contexto dos países do capitalismo industrial. Desse modo, esse tipo de exercício de
poder nasce a partir da aglomeração de pessoas. O crescimento demográfico acarretou tensões
nessas grandes cidades e se tornou um desafio político. Por isso, foi preciso estabelecer
dispositivos de controle.
No final do século XVIII, as revoltas camponesas entraram em regressão,
acalmam-se em consequência da elevação do nível de vida dos camponeses e
a revolta urbana torna-se cada vez mais frequente com a formação de uma
plebe em vias de se proletarizar. Daí a necessidade de um poder político capaz
de esquadrinhar esta população urbana (FOUCAULT, 2004, p. 86).
Desse modo existe uma relação entre capitalismo e o surgimento da biopolítica, de modo
que nessa nova ordem econômica novas formas de controle social são necessárias, pois “esse
biopoder, sem dúvida, foi elemento indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, que só
pode ser garantido à custa da inserção controlada dos corpos no aparelho de produção”
143
(FOUCAULT, 2003, p. 32). Muito embora Foucault estabeleça a modernidade como o período
em que a biopolítica emerge, ele reconhece que sua origem é mais antiga. Ele faz uma
genealogia da biopolítica e vê no poder pastoral suas origens mais remotas. O pastor têm
responsabilidades pelo cuidado do coletivo e também de cada membro de forma individual. No
período da Reforma, parece ter ressurgido na qualidade do pastor que cura as almas. Para
Foucault esse paradigma teológico-pastoral de cuidado do coletivo e do individual estaria na
origem do Estado moderno e da biopolítica.
Se a defesa dos direitos humanos é também a defesa da vida, significa dizer que os
direitos humanos, enquanto discurso, dão legitimidade ao Estado na sua forma biopolítica. A
Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão afirma no segundo artigo: “A finalidade de
toda associação política é a conservação dos direitos naturais imprescritíveis do homem”; o que
abriu o caminho para uma gestão normalizadora do Estado (BOTH, 2009, p. 143). Foucault
(2003) fez uma crítica às Constituições que receberam influência da Revolução Francesa, tendo
em vista que elas servem para fundamentar a biopolítica do Estado normatizador. Sendo assim,
a vida passa a ser estatizada.
Quanto à politização da vida, Slavoj Zizek (2012b) faz uma análise da lei aprovada na
França que proíbe que mulheres usem a burca na rua e em locais públicos. A lei prevê multa de
até 750 euros para quem desobedecê-la. Na defesa da referida lei o então presidente Nicolas
Sarkozy dizia que o uso da burca era contra a cultura francesa. Outro argumento tinha como
base a dignidade e os direitos humanos, pois se dizia que as mulheres mulçumanas que cobriam
os seus rostos eram oprimidas pelo machismo e eram consideradas inferiores aos homens. Esse
é um dos muitos exemplos de um modelo de Estado que controla e normatiza os corpos.
Entretanto, criticar a biopolítica não significa abandonar a luta pelos direitos humanos, mas os
projetos de resistência social por dignidade humana podem se dar para além das normatizações
e aparatos jurídicos do Estado e do biopoder. Dessa forma, os direitos humanos seriam esse
espaço discursivo construído a partir dos corpos precarizados, mas não necessariamente
normatizados.
A filósofa Judith Butler (2015a) também percorre esse processo da biopolítica ao
analisar o poder de Estados sobre os corpos. Os refugiados, por exemplo, são corpos que entram
nos cálculos dos países europeus, os quais estabelecem cotas para os países da União Europeia.
Desse modo, o Estado faz demarcações de quais vidas são “vivíveis” e quais são descartáveis.
Butler faz essa discussão também a partir de certas práticas do neoimperialismo estadunidense,
como, por exemplo, as práticas de tortura em Guantánamo. Ali, inclusive, é o Estado quem
decide quais vidas merecem pranto e aquelas que não podem ser lamentadas. Desse modo,
144
Butler diz que as vidas descartáveis não mereceriam pranto e luto; isso tudo determinado pelo
biopoder do Estado.
A própria tortura como política de Estado é o ente público quem decide quais são os
corpos dissidentes. Para Butler (2015a) esses processos são reforçados pela mídia que escolhe
as informações que devem ser veiculadas e aquelas que devem escondidas sobre guerras e
mortes. Para isso ela propõe que construamos novas maneiras públicas de olhar e escutar, as
quais mudem nossas percepções a respeito da precariedade dos corpos e nos levem a questionar
as interpretações dominantes. A filósofa estadunidense destaca os poemas que foram escritos
pelos prisioneiros de Guantánamo, que refletiam uma cultura poética de crítica ao poder do
Estado.
Agamben (2012a), diferente de Foucault, não pontua o final do século XVIII como o
nascimento da biopolítica. Ele discute o biopoder a partir da teoria política de Aristóteles, para
quem o homem, como qualquer outro ser vivo é Zoé – uma vida nua, uma mera existência
biológica. Todavia, é através da linguagem que o homem tem uma existência política. É no uso
da linguagem que o Zoé torna-se Zoé a politikon Zôon, que consiste num animal político que
lhe possibilita a biopolítica (uma vida política). Cabe ao Estado a inclusão da vida biológica
nas políticas públicas, tendo em vista que a pólis, enquanto criação racional é teleológica, de
modo que sua existência é garantir o bem viver.
Na interlocução que Agamben faz com Foucault ele também discute os dispositivos do
poder e como a vida natural entrou nos cálculos do Estado. O filósofo italiano também dialoga
com Hannah Arendt que além do conhecido texto As origens do totalitarismo também foi autora
de um Projeto de pesquisa sobre os campos de concentração (AGAMBEN, 2012a), onde
aborda a dominação total do homem, que seria um dos argumentos que atestam que a política
moderna se transformou em biopolítica. A partir do diálogo com Foucault e Arendt, Agamben
amplia o debate sobre a íntima simbiose da vida nua com a política moderna.
Agamben também dialoga com o pensamento político-teológico de Carl Schmitt para
quem o soberano tem o poder de decisão sobre o estado de exceção. De acordo com Agamben
o soberano também tem o poder de legislar sobre o caos social e avaliar se a vida em sociedade
está dentro dos critérios de normalidade (AGAMBEN, 2012a). Enquanto detentor do poder de
exclusão-inclusão o soberano legisla sobre o caos social, identifica a vida nua e dá-lhe
existência política. Os indivíduos com vida nua não são cidadãos, pois foram reduzidos à mera
existência biológica. São, portando, homo sacer (AGAMBEN, 2012a), entregues a situações de
abandono. Sendo assim, para “fugir” dessa condição de abandono o indivíduo precisa se
submeter ao biopoder. Essa sujeição ao Estado moderno faz com que “o soberano entre em
145
simbiose cada vez mais íntima não só com o jurista, mas também com o médico, com o cientista,
com o perito, com o sacerdote” (AGAMBEN, 2012a, p. 119) e, desse modo, amplia-se o
controle social sobre os corpos.
Nas democracias modernas o corpo é um sujeito político, de modo que ele ganhou
centralidade nesse novo contexto político-jurídico. Dessa forma, quando falamos em direitos
humanos, eles estão subordinados ao Estado. A própria expressão direitos já remete para a
dimensão de aparatos legais que normatizam políticas sobre a vida humana. Agamben faz
críticas à “judicialização” da dignidade humana a partir das declarações de direitos.
Mas é chegado o momento de cessar de ver as declarações de direitos como
proclamações gratuitas de valores eternos metajurídicos, que tendem (na
verdade sem muito sucesso) vincular o legislador ao respeito pelos princípios
éticos eternos, para então considera-las de acordo com aquela que é a sua
função histórica real na formação do moderno Estado-nação (AGAMBEN,
2012a, p.124).
De modo algum, Agamben critica a ideia de direitos humanos, mas sim certo excesso
em atribuir ao Estado a preservação e a decisão sobre os corpos. O filósofo italiano acredita que
as declarações dos direitos representaram a transição da soberania de ordem divina para a
soberania nacional; a vida nua ao nascer, passa a ser um “cidadão” e por conta disso está sujeita
ao biopoder.
Diante dessas reflexões, precisamos perguntar: A forma como o Estado moderno
assumiu a biopolítica, unida à centralidade do corpo na Constituição de 1988 é um facilitador
para a incidência política do pentecostalismo que também entra no espaço político e nas
relações do biopoder? A resposta para uma questão como essa demandaria outra pesquisa e, por
isso, não temos espaço aqui para aprofundamentos sobre esse questionamento. Mesmo assim,
acreditamos que a centralidade e o controle da vida pelo Estado brasileiro abre caminho ou faz
do corpo um espaço de poder e conflito, tendo em vista que a maneira como os corpos se movem
pela democracia são regulados pelo biopoder; essas regulações do Estado não dão conta de
incluir as muitas pluralidades e identidades na sociedade e essa é uma das razões pelas quais há
conflitos na esfera pública relacionados aos corpos. Reconhecemos que não é apenas o Estado
ou religião que estão inseridos nesse processo. O capitalismo também é um “ente”, talvez o
mais poderoso que deseja colonizar os corpos.
Tendo em vista que as expressões políticas pentecostais tiveram uma dimensão do
biopoder eles perderam seu potencial kairótico e messiânico de mudar de maneira qualitativa o
tempo profano. Em 1930-1945 os corpos “giravam numa ciranda profética” na tentativa de
146
descolonizar seus corpos de valores culturais e econômicos. Esses corpos político-proféticos
pentecostais protestavam contra certas estruturas de injustiça; como analisamos, os corpos das
mulheres em experiências de êxtase poderiam ser formas disfarçadas de vencer o machismo; as
formas de ascetismo e distanciamento do “mundo” eram corpos que se recusavam a viver a
partir de certos valores culturais, sociais e econômicos. No segundo período pesquisado, a partir
da atuação de parlamentares pentecostais na Assembleia Nacional Constituinte, os corpos
parecem querer controlar outros corpos; eles fazem o caminho oposto do primeiro período:
querem no segundo não libertar, mas controlar e em razão disso há uma dimensão de biopoder
nessas práticas políticas pentecostais.
Não queremos dizer com isso que durante o período 1978 a 1988 não havia dimensões
proféticas e kairóticas no pentecostalismo brasileiro. Muito pelo contrário. Pelas muitas igrejas
espalhadas pelo país os corpos pentecostais ainda ansiavam por dignidade, até porque a maioria
das mulheres e homens de pertença pentecostal pertencia às camadas mais pobres da sociedade
brasileira e ainda estavam circunscritas em experiências de êxtase e discursos escatológicos.
Mesmo assim, em razão dos anseios por visibilidade pública parece haver certo esvaziamento
de dimensões proféticas em relação ao movimento da década de 1930.
Defendemos aqui a tese de que desde o primeiro período pesquisado as mulheres e
homens de pertença pentecostal não eram apolíticos. Mas ao analisar e comparar os dois
períodos a partir das temporalidades chronos, aiôn e kairos percebemos que o movimento
pentecostal do primeiro tem dimensões político-proféticas mais amplas. Em ambos os períodos
são corpos políticos, mas no segundo são corpos políticos em relação com o biopoder.
Acreditamos que as referidas dimensões político-proféticas do primeiro período podem ser
paradigmáticas para se pensar uma ética político-teológica a partir de um princípio pentecostal.
Pretendemos aprofundar esse tópico no capítulo final da pesquisa.
5.5 CONCLUSÃO
Quando comparamos os períodos 1930-1945 e 1978-1998 há significativas mudanças
na relação do assembleianismo com a política no Brasil. No primeiro, apesar das vinculações
quase inexistentes com a política partidária, o assembleianismo foi caracterizado por práticas
político-proféticas que não encontramos a partir da atuação de parlamentares na Assembleia
Nacional Constituinte. Em razão disso, não conseguimos incluir o pentecostalismo dentro de
147
um quadro sobre presença pública da religião. Pensamos que as iniciativas de inserção do
espaço público estiveram mais relacionadas com anseios de visibilidade pública da religião.
Chamou-nos a atenção as reconfigurações pelas quais passaram os discursos
escatológicos. Se no primeiro período, as concepções escatológicas emergiam a partir de
situações de exclusão e marginalização social, no segundo o discurso escatológico se tornou
imperializado. Dessa forma, no primeiro período o assembleianismo tem certas proximidades
daquilo que Boaventuta de Souza Santos chamou de “globalização contra-hegemônica”. Ao
passo que, durante a década de 1980, o assembleianismo tende a se alinhar a propostas
hegemônicas.
O biopoder se tornou um elemento determinante em expressões político-pentecostais
durante o segundo período. Tendo em vista que o pentecostalismo tem no corpo a sua
centralidade, outros corpos passam a ser um espaço de disputa e poder no espaço público a
partir da atuação de parlamentares ligados às Assembleias de Deus. No primeiro período, os
corpos políticos pentecostais criticavam e demonstravam seu descontentamento popular fora da
biopolítica e por causa disso houve dimensões proféticas de maior amplitude em relação ao
segundo período.
148
6 PENTECOSTALISMO É/E POLÍTICA: A BIOPOTÊNCIA DAS
MARGENS
6.1 INTRODUÇÃO
O pentecostalismo no Brasil é desde suas origens uma religião de subalternos. Desse
modo, suas crenças e práticas circularam a partir das margens. Alí, o movimento se dinamizou
e foi um polo de novas formas de cooperação e sociabilidade. Portanto, uma biopotência
emergiu a partir de corpos, lugares e saberes subalternos. Nesse contexto, narrativas políticas
ganharam força mediante crenças e práticas pentecostais. Portanto, não há como falar de um
apoliticismo, pois o assembleianismo sempre viveu numa zona limítrofe entre pentecostalismo
e política, pois podemos dizer que pentecostalismo é política.
Iniciaremos este capítulo com uma discussão a respeito dos processos de subalternidade,
de modo que as Assembleias de Deus foram constituídas a partir de corpos subalternos. Estes
não podem falar. São invisibilizados e silenciados nos processos sociais e muitas e muitos deles
encontraram no pentecostalismo possibilidades de empoderamento. Veremos isso também a
partir de artigos do jornal Mensageiro da Paz. As expressões pentecostais foram vividas em
lugares marginais, que chamaremos aqui de espaços subalternos pentecostais. Tendo em vista
que eram corpos subalternos em lugares subalternos seus saberes e maneiras de perceber a
realidade também foram invisibilizados e subalternizados.
Entretanto, veremos que nesses espaços marginais surgiu uma biopotência que é o poder
da vida. Ali, doutrinas como a pneumatologia e a escatologia foram como fio condutor de
arquétipos políticos. A primeira crença favoreceu novas maneiras de afetação, enquanto que a
segunda foi um instrumento pelo qual homens e mulheres excluídos resistiram e criticaram
autoridades e modelos hegemônicos. Mais uma vez, recorreremos ao jornal Mensageiro da Paz
para ilustrar essas nossas assertivas.
149
Discutiremos a biopotência num contexto pentecostal, relacionando-a primeiramente ao
período 1930-1945 e veremos como ela configurou práticas e mentalidades a fim de garantir
dignidade humana a homens e mulheres que se convertiam nas ADs. Encerraremos o capítulo
com uma discussão a respeito das implicações dos processos que levaram os pentecostais no
período 1978-1988 a desejarem sair das margens para o centro.
6.2 PODEM OS SUBALTERNOS FALAR?
6.2.1 Corpos Subalternos Pentecostais
Durante todo o período de 1930 a 1988 em que analisamos a posição e ação política das
Assembleias de Deus, a referida denominação pentecostal foi constituída, em sua maioria, de
pessoas subalternas da sociedade brasileira27. As denominações pentecostais preencheram um
vazio social e nelas homens e mulheres pobres buscaram dignidade. Veremos mais adiante que
muitas das narrativas e crenças pentecostais são concebidas a partir de arquétipos políticos, ou
seja, realidades e modelos mentais que se relacionam com determinadas doutrinas. Acreditamos
também que expressões como os pentecostais eram/são apolíticos funcionam como semânticas
que reforçam processos de invisibilidade e subalternidade.
Para a autora indiana de teorias do pós-colonialismo Gayatri Chakravorty Spivak
(1988), o subalterno não é apenas uma palavra para definir o oprimido, mas representa aquelas
e aqueles que não conseguem lugar num contexto excludente, de modo que os subalternos são
todas e todos que não podem falar. Historicamente no Brasil, os grupos subalternos não tiveram
voz nem representatividade em razão de seu status social. Desse modo, subalternidade está
relacionada com processos de silenciamento e invisiblidade. Já se sabe que as Assembleias de
Deus no Brasil cresceram a partir da adesão de pessoas cujos corpos eram, na maioria, pobres,
negros e femininos.
Nos espaços pentecostais esses corpos subalternos podiam romper com processos de
silenciamento, ao passo que conquistavam empoderamento discursivo. Por isso, questionamos
a afirmação que os assembleianos eram apolíticos e desprezavam o mundo em razão de seu
27 Nos últimos anos parece haver um processo de ascensão social entre homens e mulheres de pertença pentecostal,
principalmente nos atributos renda e educação. Em recente pesquisa Gedeon Alencar (2014) analisou o
crescimento do número de assembleianos nas universidades brasileiras e o impacto disso no modelo de ser
pentecostal.
150
discurso escatológico. Essses corpos pentecostais subalternos eram marginalizados e
silenciados. Estavam muito longe de conseguir protagonismo na esfera pública brasileira. Desse
modo, as dimensões política e crítica dos pentecostais eram canalizadas e exteriorizadas a partir
de suas narrativas, corpos, crenças, experiências e em práticas de culto da comunidade. O falar
não depende da vontade do subalterno, pois ele não pode falar. Entretanto, na comunidade
pentecostal todas e todos podiam de alguma maneira falar.
Spivak questiona se os subalternos podem falar numa sociedade em que esse direito
lhes é suprimido. Acreditamos que a resposta para a pergunta da autora seja negativa, tendo em
vista que os corpos subalternizados são colocados à margem do poder. A partir dessa
constatação vemos com ressalvas a expressão que afirma que os pentecostais negavam o mundo,
pois pensamos que essa semântica camufla processos de subalternidade e exclusão social em
que homens e mulheres pentecostais estiveram envolvidas e envolvidos. Portanto, acreditamos
que o discurso escatológico não negava o mundo, mas negava um tipo de mundo injusto e
excludente. Nesse contexto, mediante as narrativas escatológicas os pentecostais adquiriram
empoderamento discursivo para criticar e resistir a esse tipo de mundo.
No caso da mulher, por exemplo, como sujeito subalterno ela é colocada na sombra e
como tal é silenciada. Nas ADs as mulheres encontraram um espaço de enunciação de modo
que lhes foi garantido um lugar de discurso. Desde a década de 1930 que temas como o papel
da mulher na Igreja bem como sua ordenação ministerial são discutidos nas ADs. Apesar das
raras excessões, a consagração de pastoras sempre foi rejeitada nas reuniões convencionais.
Entretanto, desde as origens do pentecostalismo no Brasil as mulheres têm seus espaços
discursivos, ainda que com ambiguidades.
Em 1930, quando ocorreu a primeira Convenção Geral das Assembleias de Deus a
missionária Frida Vingren recebeu uma série de restrições ao seu ministério. Há tempos que ela
já exercia trabalhos ministeriais. Seu marido Gunnar Vingren relatou que “durante a minha
enfermidade, a minha esposa, junto com os obreiros da Igreja, tem assumido a responsabilidade
pela obra” (VINGREN, 1982, p. 56). Mesmo depois da reunião da Convenção ela continuou
sua atuação como redatora do jornal Mensageiro da Paz e usou aquele espaço para se manifestar
contra as decisões que restringiam o ministério feminino. Cinco meses depois da primeira
Convenção Geral, Frida escreveu um texto “Chamado de Deus” mobilizando suas tropas:
Despertemo-nos, para atender o chamado do Rei, alistando-nos nas suas
fileiras. As irmãs das “assembleias de Deus”, que igualmente, como os irmãos
têm recebido o Espírito Santo, e portanto, possuem a mesma responsabilidade
de levar a mensagem aos pecadores precisam convencer-se que precisam fazer
151
mais do que tratar dos deveres domésticos. Sim, podem também, quando
chamadas pelo Espírito Santo, sair e anunciar o Evangelho. Em todas as partes
do mundo, e especialmente no trabalho pentecostal, as irmãs tomam grande
parte na evangelização. Na Suécia, pais pequeno com cerca de 7 milhões de
habitantes, existem um grande número de irmãs evangelistas, que saem por
toda parte anunciando o Evangelho, entrando em lugares novos e trabalhando
exclusivamente no Evangelho. Dirigem cultos, testificam e falam da palavra
do Senhor, aonde há uma porta aberta. (Os que estiveram na convenção em
Natal e ouviram o pastor Lewi Pethrus falar desse assunto sabem que é
verdade). Por qual razão, as irmãs brasileiras hão de ficar atrasadas? Será, que
o campo não chega, ou que Deus não quer? Creio que não. Será falta de
coragem? Na “parada das tropas” a qual teve lugar aqui no Rio, depois da
revolução, tomou também parte, um batalhão de moças do estado de Minas
Gerais, as quais tinha se alistado para a luta (MP, 1º de fevereiro de 1931, p.
6).
O percurso de Frida e de outras mulheres pentecostais migrantes poderia se enquadrar
em metanarrativas como é o caso da personagem Macabéa de Clarisse Lispector em A Hora da
Estrela. Como se sabe, Macabéa migrou do Nordeste com destino ao Rio de Janeiro, tendo ido
morar no bairro de São Cristóvão; seu objetivo era o de fugir da miséria e alcançar melhores
condições de vida. Após atravessar uma série de dificuldades, Macabéa morreu atropelada por
um automóvel Mercedes e naquele momento virou o centro das atenções e conheceu sua hora
da estrela. Naquele momento ela deixou de ser invisível, mesmo sendo uma experiência
ambígua e de morte. As mulheres pentecostais também experenciaram seus momentos de a
hora da estrela. Quando seus corpos entravam em experiências de êxtase ou usavam a palavra
para testemunhar ou pregar elas rompiam por um momento os processos de invisibilidade. Eram
vistas e notadas como alguém, pois ali, naquele espaço pentecostal, a subalterna falava.
O corpo negro-africano também encontrou no pentecostalismo um espaço de superação
dos processos de invisibilidade e subalternidade. A sociedade brasileira é hierarquizada e
racializada, de modo que
significante chave da diferença cultural e racial no estereótipo é o mais visível
dos fetiches, reconhecido como conhecimento geral de uma série de discursos
culturais, históricos e políticos, e representa um papel público no drama racial
que é encenado todos os dias nas sociedades coloniais (BHABA, 1998, p.
121).
Frantz Fanon (2008) em Pele negra, máscaras brancas analisou como um negro se
comporta no mundo dos brancos, na medida em que ele se vê obrigado a assumir características
da branquitude. Quando os muitos negros e negras do Brasil fizeram opção pelo
pentecostalismo eles viram no movimento um espaço onde poderiam vivenciar dimensões de
152
sua negritude? Acreditamos que sim. Essa identidade negra foi vivenciada na dimensão
corporal, seja através das experiências de êxtase ou das expressões musicais. Além disso, a
oportunidade que tiveram de usar a palavra também lhes deu empoderamendo discursivo. Desse
modo, acreditamos que os corpos pentecostais rompiam processos de silenciamento e
invisibilidade e vimos nessas experiências dimensões políticas.
O discurso de que pentecostais eram apolíticos parte do pressuposto de que eles não
quiseram participar dos processos políticos, mas não de que eles não puderam. O assembleiano
Manoel da Conceição Santos é um dos muitos exemplos de pentecostais que quiseram falar,
mas como sujeitos subalternos não podiam e por isso foram silenciados e invisibilizados nos
processos sociais. Além de subalterno, como já visto em nosso trabalho, Manoel também falou
a partir de espaços marginais. Faremos essa análise a seguir.
6.2.2 Espaços Subalternos Pentecostais
Pentecostalismo é uma religião das margens, tendo em vista que foi constituída de
grupos subalternos que ficavam distantes de prospostas culturais hegemônicas e saberes
racionalistas. Entretanto, esse sujeito pentecostal pôde reelaborar sua experiência e fazer das
margens um polo criativo de novos sentidos para a vida e a existência. É estabelecida uma
relação entre os marginalizados e suas crenças a fim de superar a exclusão. Nesse contexto, a
lógica da inércia e alienação é rompida, pois essa relação entre as margens e o imaginário
religioso é potencializadora. Doutrinas do pentecostalismo como ser cheio do Espírito e ser
batizado com o Espírito Santo reforçam a ideia de que se foi transformado e agora se vive numa
nova dimensão e de que é preciso avançar, crescer, desenvolver.
Os marginalizados sentiam-se excluídos pelas classes dominantes, mas escolhidos por
Deus. Isso potencializa um processo dinâmico que faz andar para frente, mudar de vida. A
experiência de ser batizado com o Espírito Santo nos espaços pentecostais estava longe de ser
individual e pessoal; ela tinha que ser partilhada. Não importava se era homem, mulher, velho,
jovem, criança, líder ou leigo. A experiência precisava ser vivida e comungada por toda a
comunidade. Essa dimensão é uma das principais características da teologia pentecostal. Se os
espaços sociais eram marcados pela desigualdade e hierarquização, nas margens os pentecostais
estabeleciam novos parâmetros de convivência humana. Essas novas relações aconteciam para
153
além da rigidez litúrgica e ênfases doutrinárias e dogmáticas. Há, portanto, dimensões político-
sociais nesses espaços subalternos pentecostais.
Ainda nesse espírito de unidade na diversidade, no início de 1946 há um inusitado artigo
publicado no jornal Mensageiro da Paz intitulado “Mensagem do Conselho Mundial de
Igrejas”, escrito por Charles W. Clay, então Secretário Geral de Ação Social da Igreja
Metodista:
O Conselho Mundial de Igrejas, representando 93 Igrejas em 29 países, por
meio de sua Comissão Provisória, na sua primeira reunião depois da Guerra
Mundial, pronunciou recentemente a segunda mensagem que julgamos de
interesse aos evangélicos do Brasil: Um dever especial é colocado sobre as
Igrejas de ajudarem as nações a escolherem o caminho da vida. Os cristãos
são chamados a serem o sal da terra e a luz do mundo. A eles é entregue o
ministério da reconciliação. Nós mesmos damos graças a Deus pela nossa
comunhão ecumênica em Cristo (MP, n. 18, p. 2, 1946).
Consideramos que a publicação dessa mensagem do CMI revela anseios por unidade
dos cristãos no período posterior à Segunda Grande Guerra; isso nos parece ser um indicador
de que o pentecostalismo desse período tinha como uma de suas principais características a
inclusão do diferente.
Nos lugares de marginalização, a experiência é a chave hermenêutica e a efusão do
Espírito promove o nivelamento de posições sociais. Assim, há um enfraquecimento de
hierarquizações e mediações eclesiásticas e desse modo homens e mulheres podiam romper
com processos de invisibilidade. Não queremos dizer com isso que esse espaço pentecostal
fosse isento de tensões oriundas de certas disputas. Todavia, esse lugar de marginalização e
subalternidade atraiu pessoas invisibilizadas, pois a comunidade pentecostal lhes confería
empoderamento discursivo e sentimento de superação dos processos de exclusão social.
Portanto, acreditamos que esses espaços subalternos pentecostais também tinham sua dimensão
política.
Os espaços subalternos e marginalizados eram compreedidos no pentecostaismo como
experiências limiares e que em breve seriam mudadas. Walter Benjamin discutiu a ideia de
limiar, que está relacionada com os ritos de passagem, mudança, transição (BENJAMIN, 2006).
O limiar indica um tempo intermediário e segundo o autor as sociedades contemporâneas vivem
na escassez de experiências limiares. Essas experiências são encontradas nos grupos
milenaristas, onde a dimensão temporal se espacializa e representa a passagem para outro tipo
de mundo. Logo, os grupos subalternos milenaristas vivem no limiar ao mesmo tempo em que
vivem na fronteira “que é também o lugar da elaboração de uma residual concepção de
154
esperança, atravessada pelo milenarismo da espera no advento do tempo novo, um tempo de
redenção, justiça, alegria e fartura. O tempo dos justos” (MARTINS, 2014, p. 10).
6.2.3 Saberes Subalternos Pentecostais
Os saberes subalternos são excluídos, omitidos, silenciados, e/ou ignorados
(MENESES; SANTOS, 2010). Como movimento de crítica à razão moderna o pentecostalismo,
num processo de criatividade nas margens criou outras formas de percepção da realidade, outros
saberes. Todavia, esses saberes pentecostais não foram e ainda não são considerados como
válidos. O discurso de que os pentecostais não têm teólogos nem teologia é um tipo de narrativa
que desqualifica e oculta saberes pentecostais, tendo em vista que eles não são produzidos no
centro, mas nas margens.
No que diz respeito à teologia pentecostal, ela foi e é invisibilizada porque foi concebida
por corpos subalternos em espaços subalternos. Os que negavam a formação teológica formal
e diziam que ela esfriava o crente talvez resistissem às categorias modernas/europeias de
produção de conhecimento. Esses pentecostais preferiam seus saberes subalternos que eram
concebidos em espaços subalternos e esses lugares de marginalização eram um polo
potencializador de conhecimento e de novas formas de se perceber a realidade. Pensamos que
isso é uma postura crítica e até mesmo uma resistência a saberes coloniais. No que diz respeito
a esse outro tipo de conhecimento pentecostal a editoria do jornal Mensageiro da Paz afirmou:
Muitos confundem o conhecimento intellectual, o preparo teológico e o vigor
phsico com o poder do Espírito Santo; assim preparam-se com certas armas,
e julgam-se promptos para enfrentar todas as luctas espirituaes. Entretanto, o
poder e a plenitude do Espírito Santo não dependem desse conhecimento e
não têm nenhuma relação com o mesmo (MP, n.11, p. 6, 1933).
Desse modo, o fazer teológico pentecostal é constituído a partir de uma transversalidade,
onde toda a comunidade participa. Essa teologia narrativa pentecostal tem cores, tons e cheiros
diferentes, pois é concebida a partir da realidade da vida concreta e do cotidiano. Nesse
contexto, a pneumatologia foi um elemento primordial para que novos saberes fossem
concebidos.
Reconhecemos que se passaram décadas para que as principais lideranças das
Assembleias de Deus reconhecessem a importância da reflexão teológica em instituições
próprias de ensino. Mas esse adiamento pode ter sido movido pelo receio de que o saber
155
pentecostal que era produzido e potencializado nas margens perdesse sua dimensão criativa,
participativa e profética. O fenômeno atual em que milhares de pentecostais procuram formação
teológica em instituições de ensino credenciadas pelo MEC talvez seja um sintoma de que
muitos deles já saíram ou desejam sair das margens.
6.3 ARQUÉTIPOS POLÍTICOS EM MENTALIDADES PENTECOSTAIS
Temos defendido a tese de que desde 1930, que é o início do recorte histórico de nossa
tese, há posição e ação política nas ADs. Portanto, questionamos a afirmação do apoliticismo
pentecostal. Não apenas há as referidas posições e ação, como elas podem ser indicadoras de
como mulheres e homens de pertença pentecostal eram políticos. Tanto narrativas como crenças
pentecostais circulam a partir de arquétipos, dentre os quais destacaremos aqui os políticos, a
partir da contribuição de Agamben.
6.3.1 Dimensões Míticas da Política
Agamben (2012b) discute duas teses a respeito da relação entre religião e política: (i) o
Estado moderno está fundamentado em conceitos teológicos secularizados e (ii) a teologia
incorporou conceitos políticos teologizando-os. Desse modo há uma relação de simbiose entre
religião e política, cujos limites entre elas nem sempre são bem compreendidos. Em sua análise
Agambem discorre que desde as monarquias medievais até os governos do Estado moderno a
liturgia eclesiástica e o protocolo profano estão interligados. Com o advento da modernidade a
crença na soberania divina foi transferida para o Estado, de modo que este conceito teológico
foi secularizado. Todavia, isso não significa que esse e outros conceitos teológicos foram
eliminados do imaginário político. Portanto, o governo é poder e glória. Agamben faz uma
análise sobre o culto e a política.
Agamben (2012b) faz uma extensa análise sobre a doxologia angelical da Idade Média
e em que medida ela foi incorporada na estrutura e funcionamento do Estado. Os anjos têm uma
dupla função: a contemplativa, que são aqueles que assistem a Deus; e a função administrativa
que está relacionada com atividade, governo. São esses últimos que têm a função ministerial,
156
os quais estão circunscritos numa cadeia hierárquica de comando na angelologia. Sendo assim,
fica estabelecida uma burocracia angelical, com divisões definidas a partir de graus de força e
poder. Logo, estabeleceu-se um paralelismo entre a hierarquia celeste e hierarquia terrena,
tendo como arquétipo a economia trinitária de operação e governo. Há, portanto,
correspondência entre a burocracia da máquina governamental com a angelologia. É
estabelecida, então, a ideia de um poder sagrado, cuja influência perpassa o reino celestial e as
nações da Terra.
Nesse contexto, os seres angelicais têm a função de publicizar o senhorio político-
religioso do Cristo, publicidade esta manifestada mediante o culto de louvor angelical. Com
efeito, há politicidade na liturgia dos anjos, que são ministros de Deus. Assim, os homens só
alcançam sua cidadania celeste se tomarem parte com os anjos no culto a Deus. Nesse culto de
louvor exalta-se sua soberania e majestade e atributos como a santidade funcionam para
demonstrar a perfeição divina.
O governo para Agamben não é apenas poder, mas é também glória, pois há relações
entre o cerimonial político e a liturgia eclesiástica. Ele faz essa discussão a partir do conceito
de aclamação, que esteve presente tanto nas doxologias angelicais como no aparato litúrgico-
jurídico do império romano. Esse aspecto da liturgia também estaria presente no Estado
moderno, no momento em que é dado ao povo o uso deliberativo da aclamação e da palavra a
fim de legitimar governos. Isso se daria mediante dispositivos democráticos como as eleições,
referendo popular, plebiscito e outras formas de democracia direta que dão ao sujeito soberano
seu poder constituinte.
Há no Novo Testamento termos políticos empregados para se referir à Igreja. Um
exemplo seria o vocábulo ekklesia, que está relacionado com “assembleia dos cidadãos com
pleno direito” (AGAMBEN, 2012b, p. 161). Agamben sugere que o trecho de Hebreus 12.23
“inscritos no livro da vida” seria mais bem traduzido como “inscritos nas listas dos cidadãos da
cidade celestial”. Nessa transcendência escatológica os anjos e os cidadãos do céu se unirão no
culto a Deus. Ao final da discussão Agamben diz haver correlação entre o culto da igreja celeste,
o culto da igreja terrena e a esfera política. Há arquétipos políticos na religião, assim como há
aquétipos religiosos e teológicos na política.
Acreditamos que expressões usadas nos espaços pentecostais como somos povo de
Deus, somos cidadãos da cidade celeste e aguardamos a Nova Jerusalém são concebidas a
partir de arquétipos políticos. Desse modo, são categorias políticas que foram teologizadas. Em
matéria publicada no jornal Mensageiro o editor afirma: “No dia em que Deus dará o céu a seu
povo, além de ser eterno, tudo será perfeito, bom e agradável” (grifo nosso. MP n. 4, p. 1, 1941).
157
Em outro editorial fez-se uma paralelo entre o governo terreno e o reino vindouro. Percebe-se
que a descrição da nova morada que estaria preparada para os fiéis é desenvolvidada a partir de
arquétipos e mentalidades políticas.
Os homens que, de alguma maneira aspiram o poder ou o governo de uma
nação, esforçam-se pos mostrar os vistosos programmas, os grandes projectos,
as profundas reformas que têm vista, e a solução dos difíceis problemas que
os assoberbam e os fazem viver preocupados. Assim prometem ao povo
grandes melhoramentos; a este apesar de saber que as promessas que lhes
fazem, quasi nunca são cumpridas, contudo, sentem-se, por vezes,
enthusiasmado e emocionado, ao pensar na probabilidade da melhoria da sua
condição, na estabelização de medidas justas e equitativas (MP, n. 3, p. 7,
1933).
A fala pentecostal sobre esse reino que virá não aconteceu descolada da realidade. Além
disso, a referida fala não é apenas comparação entre o reino terreno e o reino celestial, mas há
uma fusão entre as linguagens e arquétipos que descrevem modelos de nação terrena e celeste.
Quanto a isso o mesmo editorial do jornal Mensageiro da Paz afirmou:
Nesse reino não haverá pobreza; não haverá também injustiça, pois a equidade
e a justiça são a base do Seu throno e um adorno permamente. Não haverá,
também, nesse reino, fracos ou enfermos. Morador algum dirá: `estou
enfrermo`, porque o povo que nelle vae habitar, será, pelo Senhor, absolvido
da sua iniquidade (MP, n. 3, p. 7, 1933).
O povo como categoria política é mencionado em várias ocasiões no jornal. Em uma
delas a editoria afirmou: “O povo christão, entretanto, tem a promessa certa e infalível de um
reino justo, seguro e sábio, o qual, o Senhor dos Senhores o Rei dos reis, dirigirá” (MP, n. 3, p.
7, 1993). O termo “povo significa etimologicamente prestação pública e a Igreja sempre insistiu
em sublinhar o caráter público do culto litúrgico, em oposição às devoções privadas”
(AGAMBEN, 2012b, p. 193). Mesmo que Agamben tenha falado de liturgia a partir do
catolicismo acreditamos que há arquétipos políticos na construção de narrativas e crenças
pentecostais nas margens. Sendo assim, há uma relação entre culto, o público e o político, de
modo que na celebração litúrgica como ato de exclamação os fiéis se constituem povo - que é
uma categoria política. Logo, pentecostais que falam sobre o céu, falam a partir de arquétipos
e mentalidades políticas.
158
6.3.2 Escatologia e a Crítica à Autoridade Política Hegemônica
Além de questionarmos o discurso do apoliticismo pentecostal, acreditamos que as
narrativas escatológicas do período 1930-1945 estiveram relacionadas com resistência e crítica
social. As referidas narrativas não são a causa de afastamento do mundo da política, mas sim
efeito de processos de exclusão social. Vimos que mentalidades milenaristas foram importantes
em projetos de resistência e crítica social em grupos sociorreligiosos no Brasil. Destacamos no
capítulo inicial de nosso trabalho a escatologia como potencializadora em grupos como os de
Canudos e Contestado.
Acreditamos que as narrativas escatológicas podem ser instrumentalizadas para críticas
a propostas hegemômicas e opressoras. Logo, elas nem sempre estam relacionadas com
alienação, inércia ou fuga da realidade. Discutimos essa temática no capítulo segundo de nossa
tese. Analisaremos aqui alguns outros exemplos de como concepções escatológicas podem
questionar e criticar determinados modelos de Estado e de política.
Walter Benjamin (2013) escreveu um comentário a respeito do texto Die Rettung (O
resgate), da autora alemã Anna Seghers, no qual ela falava sobre a situação dos desempregados
no período do nazismo. Benjamin afirma que “de fato, uma das condições que o nazismo
encontrou para o seu crescimento foi o abalo da consciência de classe a que o proletariado ficou
exposto com o desemprego. O novo livro de Anna Seghers tem a ver com esse processo”
(BENJAMIN, 2013, p. 160). O enredo se desenrola em um povoado, cuja economia girava em
torno de uma mina que foi desativada. Tal situação desencadeou uma série de problemas e
injustiças no povoado.
Para tratar da ascensão do nazismo nesse período, Anna Seghers utilizou a narrativa
apocalítica do Anticristo. O Reino de Deus seria aquela dimensão que traria justiça, paz e
igualdade. Para isso a figura do Cristo teria sido primordial. Todavia, o Anticristo, conforme
descrito em textos escatológicos, é uma imagem inversa do Cristo. Desse modo o Anticristo
como antítese do Cristo, inverte os princípios do Reino de Deus e implanta outro projeto.
Benjamin ao comentar Seghers diz que o nazismo se tornou como o Anticristo, pois inverteu
princípios do socialismo. “Porém, ela é algo como a sua imagem inversa, o aparecimento do
anticristo. Como se sabe, este arremeda a benção que foi anunciada como messiânica. Assim
sendo, o Terceiro Reich arremeda o socialismo” (BENJAMIM, 2013, p. 163). A imagem bíblica
do Anticristo serviu como discurso contrário a um sistema político.
159
A editoria do jornal Mensageiro da Paz publicou uma matéria em que o autor usou uma
narrativa apocalíptica para representar o fascismo: “Chamo esta noite a vossa attenção para os
dizeres do capítulo 13 do Apocalypse começando com o verso 16. Eu fallarei algo sobre
Mussolini” (MP, n. 1, p. 4, 1992). Nesse artigo, o autor descreve a ascensão do fascismo na
Itália e à sua maneira o relaciona com o Anticristo. Já analisamos no capítulo quarto que isso
também aconteceu durante a Guerra Fria, em que a antiga União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas foi relacionada com o Anticristo. Mesmo assim, acreditamos que esse tipo de
narrativa escatológica pode ser um discurso que questiona sistemas políticos hegemônicos.
Em outra matéria publicada no jornal Mensageiro da Paz em que a editoria relacionou
política e escatologia diz que “o tribunal revelará quantos crimes se cometeram em nome da
civilização; quantos males os homens praticaram [...] abusando da posição e autoridade” (MP,
n. 7, p. 6, 1941). Esse tipo de escatologia é importante, tendo em vista que ele desqualifica
determinados modelos políticos. A doutrina de que um Redentor virá impede a formação de
uma autoridade hegemônica. Sendo assim, ela pode ser contestada, pois ela é apenas uma
liderança temporária, que assume em caráter provisório o lugar que de direito pertence ao
messias que virá. Essa espera não é caracterizada por resignação, mas como insatisfação e
recusa do tempo presente. Entretanto, essa recusa do tempo presente não aconteceu nos centros
de poder, mas nos espaços subalternos e nas margens pentecostais.
6.4 PENTECOSTALISMO E A BIOPOTÊNCIA
Conforme já referimos outras vezes, pentecostalismo é uma religião do corpo.
Acreditamos que no primeiro período pesquisado - 1930-1945 - experiências corporais
relacionadas com êxtase e formas de ascetismo tiveram dimensões de empoderamento e
resistência. Desse modo, pode-se falar de uma performatividade política do corpo pentecostal.
Não observamos no período citado relações do pentecostalismo com a biopolítica que diz
respeito ao poder sobre a vida. Já a biopotência é o poder da vida, quando pessoas ou grupos
estabelecem forças contra-hegemônicas na busca pela dignidade humana. Na biopotência os
corpos precarizados resistem aos processos de subalternidade e opressão. Quase sempre, a
referida resistência não acontece a partir de políticas públicas, mas sua força se dá nos espaços
de marginalização.
160
Em 1930-1945 os projetos de resistência pentecostal não estiveram relacionados com
arranjos e dispositivos do Estado moderno. De acordo com Agamben os pobres e
marginalizados vivem num Estado de permanente exceção (AGAMBEN, 2011), logo eles não
apenas não querem, mas também não podem ascender às instâncias maiores do poder. Nesse
modelo, a vida dos indivíduos entra nos cálculos governamentais e mesmo na racionalidade
econômica. Quanto a isso, o autor diz: “Humanidade é o nome respeitoso dado a essa economia
e a seus cálculos minuciosos” (FOUCAULT, 2002, p. 77).
O sistema de governo na modernidade hibridiza estruturas públicas e privadas a fim de
regulamentar e governar a vida. Além de vivermos num contexto de biopolítica, há também um
biocapitalismo que também disputa o controle sobre a vida. Hardt e Negri (2013) discutem o
processo de vampirização por parte do Império em que ele se esforça para regular e modelar a
vida. Hardt e Negri (2001) já haviam apontado para o fato de que, se vivesse em nossos dias,
Francisco de Assis seria um ativista político. Isso se daria a partir de suas práticas de ascetismo
as quais seriam uma resistência à vampirização do Império. Assim, pensamos que os corpos
pentecostais que se moviam a partir de dimensões ascéticas resistiam a esse biocapitalismo; não
queriam ter seus corpos colonizados.
O poder enquanto intencionalidade e instância de circulação permite a instauração de
proposições morais e filosóficas de controle. Na modernidade as instituições usam dispositivos
legais em seus projetos de disciplina, nas relações de força e nas estratégias de poder. Nesse
contexto, a vida está vinculada de maneira integral a mecanismos de modelação da existência,
controle e permanente monitoramento. Um dos muitos desdobramentos disso é que a
subjetividade foi reduzida ao corpo, com um predomínio da dimensão corpórea na identidade,
que poderíamos chamar de uma bioidentidade. Para usar uma expressão de Foucault (2002) há
nos fluxos das relações políticas uma governamentalidade que não pode ser compreendida
como uma ideologia, mas sim com uma tecnologia de poder. Para Foucault (2002) essa
característica de um Estado que cuida da vida tem na teologia pastoral seu principal paradigma.
A biopotência como poder da vida é uma dimensão presente em espaços pentecostais.
A seguir, faremos uma análise sobre como a pneumatologia potencializou a biopotência, de
modo que pentecostais puderam estabelecer novas formas de sociabilidade oposta aos modelos
de exclusão presentes na sociedade brasileira. O resultado disso foi que espaços pentecostais se
tornaram lugares de promoção da dignidade humana.
6.4.1 Pneumatologia como Potencializadora da Biopotência
161
Tem-se em vista que os corpos pentecostais viviam em estado de permanente exceção;
eles criaram nas margens novas formas de afetação e sociabilidade. Essas vidas incluíram
sinergia coletiva, cooperação social e subjetiva. Nesse vazio social produzido pelo estado de
permanente exceção as comunidades pentecostais criaram aquilo que poderíamos chamar de
outra micropolítica da governamentalidade com novos modelos de associação e invenção de
novos espaços-tempo. Nesse contexto, a pneumatologia teve papel importante no movimento
pentecostal.
Tanto a escatologia como a pneumatologia podem ser um polo de resistência ao
paradigma teológico-pastoral do Estado moderno. Já discutimos que o referido paradigma é
uma das bases da biopolítica e pode ter contribuído na constituição e funcionamento de Estados
totalitários. Esses sistemas de governos controlam corpos e decidem quais vidas merecem ser
cuidadas. Nesse contexto, já discutimos que a narrativa escatológica pode questionar
autoridades hegemônicas. Vimos que artigos sobre escatologia publicados no jornal
Mensageiro da Paz do período 1930-1945 refletiam a crença no caráter provisório e temporário
de governos e por isso não se depositava neles esperança.
A pneumatologia, vivenciada principalmente nas margens, é potencializadora da
biopotência e de dimensões da democracia. Gunnar Vingren em matéria no jornal recomendou:
“É necessário que demos liberdade ao Espírito Santo, para que Ele opere livremente, seja por
homem ou por mulher” (MP, n. 1, p. 4, 1930). A concepção de que a experiência com Deus não
necessita de mediadores, exceto pela atuação do Espírito Santo, questiona projetos de poder
hegemônicos.
Nesse pentecostalismo inicial a teologia pastoral como cuidado das almas e dos corpos
é fraca em relação à pneumatologia, tendo em vista que os pentecostais rejeitavam a ideia de
um magistério eclesiástico e acadêmico. Todas e todos da comunidade podiam ser cheios do
Espírito Santo o que proporcionou novas formas de afetação e cooperação. Surgiram, então,
nesses espaços marginalizados micropolíticas e novos modelos hierárquicos, menos rígidos
com o objetivo de incluir.
Antônio Carlos Magalhães (2006) aponta perspectivas a partir da pneumatologia: i)
diversidade, pois o Espírito sempre abre novos horizontes, o que potencializa a criatividade nos
espaços marginais; ii) diálogo, tem em vista que a unidade na diversidade é uma das principais
dimensões da pneumatologia; iii) pluralidade eclesiológica, pois ninguém pode absolutizar
dogmas e esquemas doutrinários. Portanto, acreditamos que nos espaços pentecostais questões
162
relacionadas à classe e raça, por exemplo, foram redimensionadas por essas experiências a partir
da pneumatologia. Todas e todos podiam afetar e ser afetados na comunicabilidade pentecostal.
6.4.2 Pentecostalismo e Dignidade Humana a Partir da Biopotência
As novas configurações comunitárias que surgiram no Brasil a partir do
assembleianismo contribuiriam para uma biotência do coletivo, onde o poder da vida emergia
das experiências, êxtase, ascetismo, cânticos, músicas, testemunhos, culto nos lares e mediante
outras formas de associação e empoderamento da comunidade. Acreditamos que nesses espaços
pentecostais - e nos referimos de maneira mais direta ao período 1930-1945 de nossa pesquisa
-, não se pensou em biopolítica como ferramenta de garantia da dignidade humana. Pudemos
perceber isso ao analisarmos os artigos do jornal Mensageiro da Paz. Aderir ao pentecostalismo
era um convite a novos sentidos para a vida. Portanto, eram corpos excluídos em busca de
dignidade. Quanto a essa biopotência em grupos marginalizados Negri afirma:
A lado do poder, há sempre a potência. Ao lado da dominação, há sempre a
insubordinação. E trata-se de cavar, de continuar a cavar, a partir do ponto
mais baixo: este ponto é simplesmente lá onde as pessoas sofrem, ali onde elas
são mais pobres e mais exploradas; ali onde as linguagens e o sentidos estão
separados de qualquer poder de ação e onde, no entanto, ele existe; pois tudo
isso é a vida e não a morte (NEGRI, 2001, p. 45).
Nas democracias modernas, o corpo é um sujeito político, de modo que ele ganhou
centralidade nesse novo contexto político-jurídico. Dessa forma, quando falamos em direitos
humanos, eles estão subordinados ao Estado. A própria expressão direitos já remete para a
dimensão de aparatos legais que normatizam políticas sobre a vida humana. Agamben tece
críticas à judicialização da dignidade humana a partir das declarações de direitos:
Mas é chegado o momento de cessar de ver as declarações de direitos como
proclamações gratuitas de valores eternos metajurídicos, que tendem (na
verdade sem muito sucesso) vincular o legislador ao respeito pelos princípios
éticos eternos, para então considerá-las de acordo com aquela que é a sua
função histórica real na formação do moderno Estado-nação (AGAMBEN,
2012a, p. 124).
163
Como já discutimos anteriormente, Agamben parece não criticar a ideia de direitos
humanos, mas parece ver certos excessos em atribuir ao Estado a preservação e a decisão sobre
os corpos. Assim como Foucault, Agamben também acredita que as declarações dos direitos
representaram a transição da soberania de ordem divina para a soberania nacional; a vida nua
ao nascer, passa a ser um cidadão e por conta disso está sujeita ao biopoder.
Boaventura de Souza Santos discutiu a tensão dialética entre o Estado e a sociedade
civil, que seria resultado de disputas de grupos hegemônicos que controlam o Estado e os
demais processos sociais. Para o pesquisador português “a tensão deixa, assim, de ser entre
Estado e sociedade civil para ser entre interesses de grupos sociais que se reproduzem melhor
sob a forma de Estado e interesses e grupos sociais que se reproduzem melhor na sociedade
civil” (SANTOS, B., 2006, p. 435). Há situações em que o próprio Estado infringe princípios
da dignidade humana. Um exemplo: os milhares de jovens negros e pobres que são mortos pela
polícia, instituição que tem a função de ser um aparelho disciplinador dos governos. Essas
tensões e conflitos geram uma série de dificuldades em políticas sobre direitos humanos, pois
nem sempre há correspondência entre os interesses do Estado e a vida que pulsa na sociedade
civil.
Os diversos grupos e movimentos sociais que resistem às políticas hegemônicas e
imperialistas na sua relação com o discurso dos direitos humanos foram denominados por
Boaventura de Souza Santos como globalização contra-hegemônica. Já Antônio Negri e
Michael Hardt (2001) falaram sobre a Democracia da Multidão como forma de resistência ao
biopoder e ao império. A referida contestação acontece a partir da biopotência e não mediante
os aparelhos e dispositivos de poder do Estado. Essas vidas e corpos pedem dignidade humana
a partir da criatividade, coletividade e novas formas de cooperação.
Portanto, questionamos a ideia de apoliticismo pentecostal nas primeiras décadas.
Constituída que era na sua maioria de pessoas subalternas elas encontram nesses espaços
marginalizados maneiras de resistir e não aceitar projetos de humilhação e exclusão social.
Quando a referida denominação pentecostal percebeu que tinha força para exercer ação política
para além do biopotência suas lideranças começaram a ingressar na política partidária.
Entretanto, ainda havia aqueles que preferiram biopotência à biopolítica. O próprio jornal
Mensageiro da Paz, em pleno ano de movimentação das lideranças assembleianas para a
Assembleia Nacional Constituinte, publicou a carta de um leitor que alertava:
Sabemos que até agora a igreja vai indo bem. Um tanto reservada no que tange
à política. Não devemos pensar que será, necessariamente, uma benção termos
representantes junto ao governo. A igreja que se envolveu com política,
tornou-se rica e poderosa, mas corrupta (MP, n. 10, p. 4, 1985).
164
Houve e ainda há vozes dissonantes nas Assembleias de Deus quando se trata de apoio
às lideranças pentecostais que entram para a política partidária. Essa é apenas uma das
indicações de que não existe homogeneidade tanto no discurso como em práticas políticas no
interior do pentecostalismo. A atuação da congressista Benedita da Silva na Assembleia
Nacional Constituinte, por exemplo, destoou da atuação de outras lideranças pentecostais do
mesmo período. Apesar da heterogeneidade e de vozes dissonantes, percebe-se que esse
processo deu empoderamento aos pentecostais. O grupo que há décadas foi marginalizado se
viu representado em instâncias de poder. Mas, quais foram as implicações da ascensão e
representatividade política de atores pentecostais?
6.4.3 Das Margens ao Centro
Conforme já discutimos em capítulos anteriores, no final da década de 1970 foram
lançadas as bases de um projeto político de caráter mais denominacional das ADs. Vimos que
naquele período o jornal Mensageiro da Paz dedicou vários artigos a respeito da necessidade
de se acompanhar as discussões políticas do país. Também descrevemos e analisamos o
aumento significativo de parlamentares assembleianos no Congresso Nacional Constituinte. A
editoria do jornal Mensageiro da Paz afirmou:
Nossa igreja tem suficiente potencial para colocar um representante em cada
Estado do parlamento. O compromisso da igreja, nesse caso, não pressupõe
um envolvimento político-partidário, pois a nossa segurança está em Deus,
mas representa um esforço da igreja manifestar sua benéfica influência nas
mais altas esferas da vida pública (MP, n. 8, p. 1, 1985).
A ascensão de políticos das Assembleias de Deus no Brasil difere da ascensão de
políticos das Assembleias de Deus nos Estados Unidos. A AD estadunidense, ao contrário da
brasileira é, historicamente, branca e mais elitizada. Logo, não podemos falar que esse
assembleianismo foi potencializado a partir das margens. Quando lançaram candidaturas suas
pautas políticas no Congresso norte-americano tiveram como eixo central questões morais e
conservadoras. Conforme analisamos no capítulo anterior, a agenda de congressistas
assembleianos também esteve relacionada com questões morais e conservadoras, mas há
diferenças em relação às ADs estadunidenses.
165
Parte considerável de assembleianos eleitos no Congresso Nacional Constituinte na
década de 1980 era oriunda das margens. A Benedita da Silva é um exemplo disso. Outra
diferença entre essas ADs é que na estadunidense não havia a preocupação com a influência da
Igreja Católica, ao contrário das ADs no Brasil que tinham como projeto deter a hegemonia do
catolicismo na relação Estado e religião. Era como se eles pensassem assim: “Estamos há
décadas invisibilizados e nas margens, mas já temos condições de ir para centro”. Esse processo
aumentou os anseios de visibilidade pública do pentecostalismo.
Destacamos quatro características políticas do assembleianismo do período 1978-1988:
i) projeto de maior visibilidade pública; ii) questionamento da hegemonia católica no espaço
público; iii) enquadramento na dimensão biopolítica do Estado e iv) representatividade política
como empoderamento de grupo marginalizado. É um pentecostalismo que deseja sair das
margens.
Terá esse pentecostalismo que chega ao centro o mesmo potencial de transformação se
comparado com aquele que nasceu e se desenvolveu nas margens? A resposta para essa
pergunta demandaria outras pesquisas. Todavia, pensamos que o assembleianismo que esteve
circunscrito em dimensões de biopotência28 no período 1930-1945 fez daquele pentecostalismo
um polo de resistência, crítica e, sobretudo, de estabelecimento de novas formas de cooperação
e sociabilidade. Por isso, defendemos a tese de que desde as primeiras décadas há posição e
ação política nas Assembleias de Deus no Brasil e assim questionamos ao longo do texto a ideia
do apoliticismo.
6.5 CONCLUSÃO
Desde suas origens há um núcleo político no pentecostalismo. As narrativas políticas
circularam a partir de suas crenças e práticas. No que diz respeito às ADs no período 1930-1945
as referidas narrativas políticas foram configuradas a partir da biopotência. Foi nos espaços
subalternos pentecostais que homens e mulheres performatizaram seus corpos a fim resistir e
criticar posturas hegemônicas e excludentes. Para isso, a doutrina escatológica teve papel
28 Isso não significa que depois de 1945 não houve dimensões de biopotência no pentecostalismo. Pelo contrário.
Os pentecostalismos ainda são majoritariamente a religião de subalternos. Entretanto, fizemos a afirmação
acima em razão do recorte histórico da pesquisa. Acreditamos que no período de 1978-1988, a atuação de
parlamentares assembleianos esteve relacionada mais com a biopolítica do que com a biopotência.
166
importante. Através dela, pode-se questionar um tipo de mundo e isso incluiu modelos de
Estado, políticos e propostas imperiais. Neste mesmo contexto, a pneumatologia também
ganhou força nos espaços marginais. Além de ter criticado a razão hegemônica e colonial, o
pneuma soprou nos corpos e os integrou num sistema de cooperação menos excludente e pouco
hierarquizado. Mulheres, homens, adultos, jovens e crianças, todas e todos podiam falar. Nessa
democracia da fala incluiu-se o corpo em sua dimensão extática. Desse modo, pessoas que eram
invisibilizadas romperam processos de silenciamento no assembleianismo. Essa democracia
da multidão, como definiu Negri desencadeou processos de biopotência, que foram vividos para
além das instâncias de poder do Estado.
No período 1978-1988 vimos que setores do assembleianismo desejavam visibilidade
pública; queriam sair das margens. Sendo assim, nossas análises sobre Assembleias de Deus e
política devem levar em consideração o que a eleição de candidatas e candidatos pentecostais
representou para aquela igreja. Mesmo se o apoio a essas candidaturas não tiver sido um
discurso homogêneo nas ADs, esse processo teve relação com empoderamento da comunidade
pentecostal. Entretanto, em certas expressões político-pentecostais a biopotência parece ter
dado lugar à biopolítica. Desse modo, o poder sobre a vida passou a rivalizar com o poder da
vida. Esse processo é favorecido pelo próprio modelo de Estado na modernidade, onde a vida
como espécie entrou nos cálculos e políticas governamentais.
Há, portanto duas dimensões no assembleianismo onde se dão as práticas políticas: a
biopotência e a biopolítica. No que diz respeito à biopotência: i) é potencializada nas margens;
ii) a pneumatologia e escatologia têm papel importante; iii) tem como ponto fundamental o
poder da vida. Já a biopolítica: i) se dá nas instâncias de poder; ii) tem na teologia pastoral seu
paradigma principal; iii) tem como objetivo primordial o poder sobre a vida. Estamos inclinados
a pensar que na biopotência o pentecostalismo é política e na biopolítica são estabelecidas as
relações entre pentecostalismo e política.
7 CONCLUSÃO
167
Pentecostalismo é política. Por isso, questionamos a narrativa do apoliticismo
pentecostal. Desde suas origens no Brasil os corpos pentecostais se movimentam a partir de
fluxos de contestação e crítica a modelos sociais e culturais. Os artigos do jornal Mensageiro
da Paz, órgão oficial das Assembleias de Deus no Brasil, que foram analisados contribuíram
para fundamentação de nossa tese. Os critérios adotados para a escolha dos referidos artigos
foram aqueles que abordaram de maneira direta ou indireta dimensões do chronos, do aiôn e
do kairos. Os autores das matérias foram em sua maioria pessoas de destaque na denominação
pentecostal. Mesmo aqueles artigos que estiveram relacionados com a escatologia foram formas
de manifestar descontentamento. A escatologia em terras brasileiras que estivera relacionada
com as crenças do milenarismo representaram empoderamento discursivo no qual se pôde
manifestar descontentamento com um tipo de mundo.
Acreditamos que podemos denominar de protopentecostalismos expressões da
religiosidade popular católica presentes no Brasil no final do século XIX e início do século XX.
Em nossa pesquisa demos destaque aos movimentos sociorreligiosos de Canudos, Contestado
e de Juazeiro do Norte. Muitas brasileiras e muitos brasileiros que se converteram ao
pentecostalismo tiveram experiências religiosas com esses grupos. Desse modo, pensamos que
eles exerceram influência sobre mentalidades assembleianas. A referida influência é
consideravelmente maior se comparada com aquelas oriundas do conhecido movimento da Rua
Azusa. A religiosidade popular, principalmente aquela de matriz católica, deixou suas marcas
naquele pentecostalismo que nascia no Brasil na primeira metade do século XX. Mesmo que
não tenhamos tido como objetivo comparar a religiosidade popular católica com o
assembleianismo brasileiro no primeiro capítulo vimos que ambos tiveram características muito
comuns.
O Brasil desse primeiro período estudado (1930 - 1945) ainda era caracterizado por
processos de exclusão e marginalização das classes mais pobres e foram elas que fizeram opção
pelo pentecostalismo. Os primeiros missionários suecos que vieram para o Brasil para fundar
ADs também eram originados de situações de marginalização social em seu país. As ADs
estiveram presentes tanto nas metrópoles como na zona rural brasileira e esse fato propiciou um
assembleianismo de mentalidade urbana e outro de mentalidade rural. Também discutimos a
possibilidade de falar de uma concepção escatológica a partir de uma mentalidade rural e outra
concepção escatológica a partir de uma mentalidade urbana. Ambas podem ser caracterizadas
por certa insatisfação com a situação presente.
168
Negros, pobres e mulheres foram os grupos que predominaram no pentecostalismo do
período 1930 a 1945. Essa foi também uma época de significativas transformações na
conjuntura nacional e internacional. Houve a ascensão de impérios e novos regimes políticos.
A partir de nossas análises dos artigos do jornal Mensageiro da Paz constatamos que
assembleianos se posicionaram em relação a esse momento político. Governos, modelos de
Estado e impérios foram criticados e por isso questionamos a ideia do apoliticismo pentecostal.
Para ajudar nossa fundamentação dialogamos com as temporalidades conforme pensadas por
Giorgio Agamben: chronos, aiôn e kairos. O chronos foi discutido a partir do tempo profano
que guarda relações com a história. Já o aiôn esteve relacionado com o fim dos tempos, enquanto
que o kairos, tempo do fim ou o tempo que nos resta. Agamben retoma Walter Benjamim e
relaciona o kairos com o tempo messiânico.
Os artigos que analisamos no jornal Mensageiro da Paz do período 1930-1945 que se
enquadram na dimensão do chronos nos mostraram um pentecostalismo crítico à visão
progressista da história. Mais do que uma visão pessimista, tinha-se uma concepção de que
projetos políticos de Estado eram incapazes de promover justiça e equidade de maneira plena.
A partir disso, escritores do jornal podiam criticar e até mesmo ridicularizar propostas políticas.
Nesse período vimos também heterogeneidade política no assembleianismo. Assim como
houve artigos com críticas à política e a políticos, encontramos também aqueles que
incentivavam a submissão a certas autoridades políticas, como foi o caso do presidente Getúlio
Vargas. Desse modo, ao analisarmos posição e ação política das Assembleias de Deus faz-se
necessário levar em consideração a referida heterogeneidade.
Nesse primeiro período há também considerável número de artigos no jornal
Mensageiro da Paz relacionados à escatologia. Se o discurso sobre o céu é também uma fala
sobre a terra, o aiôn pentecostal foi uma narrativa concebida a partir da vida concreta. Não
relacionamos escatologia com propostas de alienação ou desvinculação dos processos sociais.
Ao longo de nossa pesquisa questionamos a ideia de que a escatologia por si só explica os
motivos pelos quais assembleianos não tiveram uma presença maior na esfera pública.
Acredita-se que escatologia não foi a causa de certo afastamento, mas sim efeito de processos
de exclusão e marginalização nos quais os pentecostais estavam inseridos. É no mínimo
temeroso vincular apoliticismo com escatologia. As narrativas escatológicas foram
empoderamento discursivo para questionar e criticar modelos de sociedade e de Estado. O céu
enquanto lugar de equidade serviu como paradigma para se manifestar descontentamento a
esses modelos terrenos. Além disso, vimos ao longo da pesquisa que embora o discurso
169
escatológico fosse narrativa presente nas mentalidades pentecostais, isso não impediu o
surgimento de lideranças e posições políticas no assembleianismo brasileiro.
O kairos, interpretado aqui como o tempo que nos resta, foi analisado a partir das
expressões de êxtase e de certas formas de ascetismo do assembleianismo brasileiro. Sabe-se
que o pentecostalismo tem no corpo a sua centralidade; logo, a expressão corporal também
assume dimensão política. Os artigos do jornal Mensageiro da Paz do período também
apresentaram discussões sobre a temática do êxtase. Através dele, homens e mulheres excluídos
tiveram a oportunidade de romper processos de silenciamento e invisibilidade social. O êxtase
não pode ser compreendido apenas como uma experiência individual e subjetiva. Ele está ligado
a outros campos semânticos, dialoga com aspectos sociais. Desse modo, acredita-se que essas
experiências de êxtase foram também empoderamento discursivo de subalternos. O ascetismo
também pode ter dimensões críticas e até mesmo revolucionárias. O não fazer, e até mesmo a
deserção é uma posição política. Acredita-se que em certas formas de ascetismo pentecostais
demostraram descontentamento a modelos sociais, políticos e culturais.
O objetivo de nossa tese foi analisar a posição e ação política das Assembleias de Deus
nos períodos 1930-1945 e 1978-1988. Entretanto, desde o início não queríamos deixar os anos
de 1946-1977 no vácuo. Pensando nisso, denominamos esses anos de período intermediário ou
de transição. Nele há importantes acontecimentos da história política brasileira. Uma delas é
que o país viveu uma relativa democracia entre os anos de 1946 e 1964. Depois da ditatura
comandada por Getúlio Vargas os partidos políticos voltaram a funcionar. A relativa
democracia foi interrompida de maneira definitiva em 1964 quando aconteceu o Golpe Militar.
Os anos que se seguiram foram caracterizados pela ditadura dos militares e também por lutas
de grupos e pessoas que desejavam a volta da democracia.
Os últimos anos da década de 1940 também foram caracterizados pelo fortalecimento
do papel de missionários norte-americanos no assembleianismo brasileiro, tendo em vista que
os suecos deixavam de liderar as principais igrejas. Estes missionários atuaram principalmente
na educação teológica, comunicação e literatura. Entretanto, os que mais se destacaram nesse
período foram lideranças assembleianas brasileiras. Temos a primeira ocorrência de
assembleianos na política partidária. Esse processo foi importante, pois a possibilidade de
eleger membros da comunidade pentecostal a cargos públicos dava empoderamento ao grupo
que ainda era marginalizado. Estabeleceu-se, então, uma relação entre religião e cidadania.
Um dos principais nomes desse período foi o pastor Antônio Torres Galvão. De origem
operária, Galvão se tornou um dos principais líderes sindicais no Nordeste brasileiro até chegar
ao posto de governador de Pernambuco, eleito pelo Partido Social Democrático. Também vimos
170
as relações e proximidades do pastor Paulo Leivas Macalão com lideranças políticas
nacionalistas. Outro importante nome desse período foi Manoel da Conceição Santos. Seu lema
“minha perna, minha classe”, uma vez que ele perdeu a perna decorrente dos processos de
tortura, ilustra bem as lutas e perseguição à qual foi submetido por uma sociedade mais justa e
igualitária.
No segundo período de nossa pesquisa - 1978-1988 - analisamos novas configurações
da posição e ação política das Assembleias de Deus no Brasil. No que diz respeito às relações
entre religião e Estado, a Igreja Católica dominava essa relação entre os grupos religiosos do
Brasil. Desse modo, a entrada de grupos evangélicos na política e, de modo especial, a de
pentecostais, representou o questionamento da hegemonia da Igreja Católica em questões de
política. Embora desde fins da década de 1940 tenha havido assembleianos envolvidos em
política partidária, acreditamos que foi em fins da década de 1970 que foram lançadas as bases
de um projeto político de caráter mais corporativista nas Assembleias de Deus. Nomes como
do pastor Joanyr de Oliveira foram importantes nesse processo. Mesmo antes do lançamento
do livro do pastor Josué Sylvestre Irmão vota em irmão, o pastor Joanyr de Oliveira escreveu
no jornal Mensageiro da Paz sobre a importância de assembleianos na política partidária.
Foi no período da reconstitucionalização do Brasil que as lideranças pentecostais se
movimentaram no sentido de eleger representantes ao Congresso Nacional Constituinte de
1986. Na ocasião, um expressivo número de candidatos que pertenciam às Assembleias de Deus
foi eleito. No período o jornal Mensageiro da Paz circulou um expressivo número de artigos
sobre evangélicos e política. Entretanto, mais uma vez se percebeu a heterogeneidade política
de assembleianos. Houve vozes favoráveis e outras contrárias a esse novo momento das
Assembleias de Deus, tudo isso publicado no jornal Mensageiro da Paz. Além disso, houve
parlamentares de pertença pentecostal com ideias conservadoras e outras e outros com
mentalidade progressista. Na década de 1980 já era expressivo o número de pentecostais no
Brasil, mas a maioria ainda estava circunscrita em processos de invisibilidade e silenciamento
social. Ter tantos deputados eleitos poderia significar anseios de visibilidade pública das
Assembleias de Deus. Mais uma vez a comunidade pentecostal que contribuía para a eleição de
candidatos assembleianos sentia-se empoderada. Fizemos essa análise a partir da categoria de
chronos conforme pensada por Agamben.
No que diz respeito aos discursos escatológicos eles continuaram nesse período; ainda
havia anseios pelo abreviamento do tempo e pela chegada de um mundo pleno de justiça e
equidade. Entretanto, aqueles que foram publicados no jornal no período 1978-1988 parecem
ter sido reconfigurados a partir do contexto do mundo bipolarizado: Estados Unidos versus
171
União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. O considerável número de artigos que analisamos
vinculou a URSS com o Anticristo. Nossas análises do kairos aplicadas à posição e ação política
das Assembleias de Deus estiveram centradas na Assembleia Nacional Constituinte, que
resultou na Constituição de 1988. O texto constitucional teve como uma de suas marcas
principais o fortalecimento da biopolítica, de modo que caberia ao Estado o controle e cuidado
da vida a partir da noção de políticas públicas. A partir de Michel Foucault e o próprio
Agamben, discutimos a fundamentação teológica do Estado moderno, que teria na teologia
pastoral um de seus principais paradigmas. Desse modo, um Estado biopolítico contribuiria
para um tipo de atuação evangélica na política partidária e, principalmente, pentecostal que tem
no corpo sua centralidade.
Como alternativa à biopolítica, analisamos a força da biopotência do pentecostalismo
na sua versão fora das instâncias públicas e oficiais de poder. A biopotência que é o poder da
vida foi vivenciada por corpos, espaços e saberes subalternos no interior de práticas
pentecostais. Doutrinas como a escatologia e a pneumatologia foram potencializadoras da
biopotência das margens. Ali foram criadas novas formas de cooperação e sociabilidade que
rompessem processos de invisibilidade e silenciamento social. Entendido assim, o
pentecostalismo vivido nas margens foi um polo que ofereceu dignidade humana. Por isso,
acreditamos que desde 1930, que é o começo de nossa análise, há posição e ação política nas
Assembleias de Deus.
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