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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO) CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE PRIMEIRA VERSÃO ANO VI, Nº221 SETEMBRO - PORTO VELHO, 2007 Volume XX Setembro/Dezembro ISSN 1517-5421 EDITOR NILSON SANTOS CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL - Geografia MIGUEL NENEVÉ - Letras VALDEMIR MIOTELLO - Filosofia Os textos no mínimo 3 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows” deverão ser encaminhados para e-mail: [email protected] CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO TIRAGEM 150 EXEMPLARES EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA ISSN 1517-5421 lathé biosa 221 AS DIMENSÕES E INTERFACES DA LEITURA E DA ESCRITA NA ESCOLA Célio José Borges PRIMEIRA VERSÃO

Volume xx 2007

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO VI, Nº221 SETEMBRO - PORTO VELHO, 2007

Volume XX Setembro/Dezembro

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia FABÍOLA LINS CALDAS - História

JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL - Geografia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO - Filosofia

Os textos no mínimo 3 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for

Windows” deverão ser encaminhados para e-mail:

[email protected]

CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 150 EXEMPLARES

EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 221

AS DIMENSÕES E INTERFACES DA

LEITURA E DA ESCRITA NA ESCOLA

Célio José Borges

PRIMEIRA VERSÃO

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AS DIMENSÕES E INTERFACES DA LEITURA E DA ESCRITA NA ESCOLA

Célio José Borges Coordenação de Formação Continuada – PEE Prof. do Departamento de Educação Física - UNIR

Escrever sobre esse tema tão abrangente e complexo, que vem sendo explorado por vários autores de referencia reconhecida, requer um cuidado bastante

acentuado para não cair em armadilhas da escrita ou incorrer em erros banais.

Assim, o que se pretende com este texto é demonstrar algumas dimensões e interfaces desses temas, no sentido de ajudar a compreende-los em seus

aspectos teóricos e práticos no bojo desse livro que veio sendo construído no processo de formação continuada de professores, desenvolvido pelo projeto Ensinar a

Ensinar.

Um dos enfoques contemplado e desenvolvido entre suas ações foi o do Ler e Escrever e seus desdobramentos e que em conseqüência dessa e de outras experiências

foi se construindo um processo de leitores e escritores tanto por parte do professor, quanto do aluno. Experiências estas que estão retratadas em capitulo próprio.

Procurando demonstrar a relação teoria e prática, na prática, estarei destacando também algumas experiências resultantes de pesquisa realizada em escola

dentro do programa de iniciação cientifica, PIBIC/CNPq. Resultados estes que poderão contribuir para a compreensão do assunto.

Assim e dessa forma, procurarei explorar contornos teóricos e alguns enfoques da Lingüística como espaço da Escrita e Leitura que possibilitem visualizar a

Leitura e Escrita no ambiente da escola de ensino fundamental, bem como a relação teoria e prática a partir de intervenções pedagógicas, explorando alguns vieses do

“Ler e Escrever e seus desdobramentos” destacando alguns enfoques da Contação de Historias e do Clube de Leitura como projeto de extensão na escola.

Recorro, portanto, a estudos e experiências práticas já realizadas, das quais participei do processo de coordenação e de orientação.

Nesse sentido, julgo necessário explorar alguns enfoques determinantes sobre A Escrita e sobre a Leitura, como forma de definí-las e situá-las no espaço e no tempo,

para então situá-las no contexto das teorias e práticas.

1 - A ESCOLA ... A LEITURA ... E A ESCRITA: UMA VISÃO TEORICA

Para fazer esta junção recorro inicialmente a CAGLIARI(2003), que ao discutir o que a escola ensina, enfatiza dentre outros comentários, que o aluno passa

anos e anos, diariamente, em aulas de português, sem necessariamente saber o que se aprende. Sempre as mesmas coisas e as coisas de sempre: aprendendo o

significado das palavras, ... como se escrevem as palavras com X, Ç, SS .... o plural disso ou daquilo ... as categorias gramaticais ... definições ... coletivos ... e vai por

ai a fora, em nome de estar lendo e escrevendo.

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Para CAGLIARI(Ibid):

A escola usa e abusa da força da linguagem para ensinar e para deixar bem claro o lugar de cada um na instituição e até na sociedade, fora dos seus muros. A maneira como se fala, como se deixa falar, sobretudo como se pergunta e como são aceitas as respostas que muitas vezes é usada não para avaliar o desempenho intelectual de um aluno, mas como subterfúgio para lhe dizer que é burro, incapaz ou excelente. É uma forma de mostrar que o autor do livro, a professora, a escola possuem o saber, sem margens de dúvidas, bem como possuem o poder da autoridade disciplinar e moral a que o aluno de se submeter.

A escola via de regra utiliza-se de recursos avaliativos para saber o significado das palavras, tornando-se um jogo para descobrir o que deve ser respondido, a

partir de uma pergunta que, as vezes é endereçada a outra direção.

Isso possibilita interpretar que as dificuldades reais da maioria dos alunos para resolver provas, não esta na falta de conhecimento do aluno, mas no impasse

lingüístico criado pela elaboração das questões que lhes são apresentadas. Da mesma forma pode-se constatar que esse não é um problema só de Língua Portuguesa,

mas também aplica-se a outras disciplinas, como o caso da matemática, onde o problema não esta nas contas, mas no como decifrar aquilo que se deve fazer com os

números. E assim vai acontecendo também com outras disciplinas.

Nessa perspectiva deve-se considerar no contexto escolar a leitura por dois olhares, o do professor e o do aluno e no caso dos professores verificar suas

relações com a leitura. Da mesma forma se faz necessário verificar e compreender quais suas concepções de leitura e de leitor, por se tratar de professores

alfabetizadores.

Tais argumentos se fundamentam no fato de que, segundo Tezzari(2002:191) ... “a leitura é um instrumento que possibilita e que permite o acesso aos bens

culturais produzidos pela nossa sociedade, que são veiculados pela escrita”.

Tal afirmação ainda pode ser reforçada no sentido de que as concepções de leitura do do professor interferem no cotidiano da sala de aula, ou seja, se o

professor tem uma concepção de leitura limitada, restrita a um único processo, ele não terá condições de formar um aluno que seja um leitor efetivo.

Ainda com base em Tezzari (ibid.) por meio de pesquisa, foi possível identificar concepções de leitura nas falas dos professores, o que possibilitou uma reflexão sobre

a prática e sobre os tipos de leitura veiculadas na sala de aula, bem como possibilitou o questionamento sobre que tipos de sujeito as leituras de sala de aula estavam

construindo ou poderiam construir.

Com isso alem de identificar concepções de leitura de professores, também é possível destacar neste momento alguns tipos de leitura, que podem ser

identificados tanto na escola quanto fora dela , tais como: Ler para se informar(jornal); Ler para se divertir(piadas); Ler para se emocionar(poesias e poemas); Ler

para perceber o que não está dito(texto Pau, pão e pano); Ler para aprender a articular as palavras e desenvolver habilidades de expressão oral(Trava-linguas: o rato,

O padre Pedro, O sapo sabichão, o Quero-quero e outos); Ler para tornar consciente o processo de utilização dos conhecimentos prévios(textos de leitura interativa);

Ler para solucionar problemas-desafios (Textos: Máquina registradora, Corrida de carros e charadas que exploram a linguagem); Ler para conhecer melhor(Teste de

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cidadania, Conhecimento globalizado); Ler para seguir instruções(Receitas culinárias, Manuais de instalação de aparelhos eletro-eletrônicos); Ler para se formar, para

retirar conceitos, para selecionar informações e para resumir(Textos teóricos) e ainda o Ler para contar(Literatura infanto-juvenil).

Todas essas formas de leitura possibilitam levar os professores a refletirem a diversidade de textos que podem ser explorados em sala de aula, bem como os

diversos objetivos da leitura.

Se explorados esses aspectos, a possibilidade de ampliar o universo dos olhares para a escrita e leitura será muito maior, pois os professores poderão refletir

sobre suas concepções e terem acesso a autores diversos, possibilitando assim maior e melhor compreensão dos diversos processos de leitura e o papel que a mesma

ocupa na sala de aula.

Uma vez tendo essa visão da leitura, faz-se necessário compreender também alguns aspectos do desenvolvimento da aquisição da escrita.

Para Marques(2002:207), ... “a duvidosa qualidade da escolarização básica, as dificuldades das crianças, nas séries iniciais do ensino fundamental, ao acesso à escrita

não garantem a real possibilidade de aprender a ler e a escrever ao longo dos dois anos iniciais disponíveis para essa aprendizagem”.

Tais circunstâncias sugerem uma reflexão sobre a aprendizagem inicial da linguagem escrita e a prática pedagógica na escola.

Marques(ibid.) levanta algumas questões sobre - O que acontece na mente das crianças em relação aa aquisição da escrita? Qual o papel do professor? Como

o professor é concebido?

Ao mesmo tempo argumenta que as principais linhas de pesquisa têm respostas para essas perguntas, visto que a maior parte dos métodos e teorias

educacionais se baseiam nelas. E ainda que:

A educação sempre expressa uma doutrina pedagógica que, implícita ou explicitamente, se baseia em uma filosofia de vida, em uma concepção de homem e de sociedade. Numa realidade social concreta, o processo educacional formal – especificamente o processo ensino-aprendizagem da linguagem escrita – se dá através de uma instituição específica que é a escola, que é considerada um dos porta-vozes de uma determinada doutrina pedagógica (p. 208).

Nesse contexto é possível compreender que a prática escolar agrega condicionantes sociopolíticos, que possibilitam identificar diferentes pressupostos sobre o

papel da escola, sobre a aprendizagem, sobre o relacionamento professor-aluno e sobre as técnicas pedagógicas. Ainda deve-se levar em consideração que a maneira

como os professores executam seus trabalhos, selecionam e organizam os conteúdos a serem desenvolvidos, acabam por escolherem técnicas de ensino e de

avaliação que têm a ver com os pressupostos teóricos-metodológicos explícitos ou implícitos.

Dentre as teorias de aprendizagem, podem ser identificadas as principais correntes da psicolingüística: tradicional; Piagetiana e Sócio-historica, que explicitam e

explicam o desenvolvimento da linguagem escrita, apresentadas por seus autores principais e que nas quais se baseiam métodos para o ensino da escrita para

crianças.

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Porém não se pretende aqui apresentar o detalhamento das mesmas, apenas identificá-las. Entretanto, para reforçar tal argumentação, ainda recorrendo a

Marques(ibid.), a mesma afirma que: “Compreender como as crianças aprendem a linguagem escrita é, antes de tudo, conhecer o processo a partir das teorias que o

explicam do que conhecer somente as metodologias para ensinar”.

Nessas afirmações fica evidente a necessidade de se compreender e valorizar as relações entre teoria e prática no processo ensino-aprendizagem, no contexto da

escola e da sala de aula.

2 - ASPECTOS E RELAÇÕES TEÓRICO-PRÁTICAS DA LEITURA E ESCRITA

2.1 - O Projeto Ensinar a Ensinar e o Ler, Escrever e seus Desdobramentos

O texto a seguir foi extraído do plano de ação da Linha de Formação Continuada do Projeto Ensinar a Ensinar – 2002/2003, da qual faço parte de sua

coordenação, como forma de destacar e valorizar uma experiência prática e concreta realizada nas séries iniciais de escolas do Ensino Fundamental, rurais, ribeirinhas

e urbanas periféricas da rede Municipal de ensino de Porto Velho, tendo como capacitadora a professora Ms. Sônia Maria Gomes Sampaio.

A linha de ação II - Formação Continuada de Professores, veio trabalhando arduamente através da área de Língua Português, na perspectiva do Ler, escrever e

seus Desdobramentos, com o propósito de fazer crescer nas escolas em que o projeto se fez presente, relações mais fortes com a leitura.

A participação de toda a escola nos processos de leitura veio se tornando o ponto alto da ação, pois abriu caminhos para a oralidade, a discussão, a escrita e a

troca de experiências.

Essa troca de experiências permitiu uma discussão mais ampla acerca das dificuldades que as escolas tinham, e uma das grandes dificuldades era com a leitura.

Dissemos era, visto que a realidade que se apresenta é outra, a partir do momento em que os professores e alunos reconheceram depois com um trabalho de leitura

feito nas escolas, que a ausência da leitura era um problema para ambos.

Os professores buscaram auxílio junto à equipe do “Ler e Escrever e seus desdobramentos” no que foram prontamente atendidos com a proposta de um projeto

de trabalho com a leitura feito por toda a equipe do Ler e Escrever que apresentou a proposta de uma atividade denominada “Clube da Leitura”, que foi pensada e

organizada, com maior ênfase, pela bolsista Daniele Samora, aluna do curso de Letras, orientada pela professora Sônia Maria Gomes Sampaio, que atuou no projeto

como capacitadora de Língua Portuguesa. Atividade esta que deu bons resultados na escola onde a bolsista atuou.

O projeto de leitura aqui destacado nasceu da necessidade de professores, e alunos e da vontade do Ensinar a Ensinar de ajudar os professores, alunos

bolsistas e toda comunidade escolar a se tornarem leitores e escritores a escreverem suas histórias.

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O que justificou tal proposta de trabalho em suas ações foi o fato de que, a dificuldade que a escola demonstrava ao tratar de leitura, manifestada no baixo

nível de leitura que o educando apresentava ao longo das quatro séries iniciais.

Muito se tem falado sobre o que poderia ser feito para melhorar a leitura e a escrita no âmbito da escola, mas pouco se tem empreendido como ação efetiva de

leitura na escola, com raras exceções.

A partir de contatos diretos foi possível perceber que a maioria das escolas da rede pública de ensino tem se limitado a uma prática de leitura que consiste em ler apenas o que é imposto pelas disciplinas, e pelo livro didático. Reduzindo assim a prática da leitura apenas ao ato informativo, visto que, as pessoas não lêem apenas pelo prazer de ler.

A leitura é um processo que proporciona ao leitor: entretenimento, informação, prazer, conhecimento, formação do indivíduo. Esta oferece ao leitor um variado

“leque de opções”, deixando-o livre para escolher os vários gêneros de leitura e para tanto as pessoas deveriam ter a oportunidade de ler não apenas o que é

imposto, mas o que lhes aprouver.

Após dois anos de intervenções pedagógicas realizadas nas escolas atendidas pelo Projeto Ensinar a Ensinar percebeu-se a necessidade da implantação de um

projeto de fortalecimento da leitura e escrita nas mesmas. Este projeto foi elaborado de acordo com a realidade presenciada nas escolas, que estavam desprovidas de

salas de leitura.

Um fator que contribuiu para a quase ausência de leitura nestas comunidades escolares, é que os pais de alunos em sua maioria não são escolarizados logo, não

podem interagir com os filhos em termos de leitura e escrita.

Outro fator que contribuiu também para a não leitura na escola foi o fato dos professores somente terem entrado no processo de formação acadêmica há pouco

tempo, mas isso significa dizer que os professores apresentaram mudanças demonstrando uma nova concepção em relação à leitura.

A partir do que está contextualizado acima e da mudança que ocorreu com os professores e alunos, o Projeto Ensinar a Ensinar acreditou que trabalhar com projetos

de leitura e escrita envolvendo toda a escola seria uma tentativa de viabilizar uma prática mais efetiva de leitura e escrita na sala de aula.

Assim foram traçados como OBJETIVO GERAL, “Estabelecer uma prática constante de leitura e escrita no âmbito da escola, envolvendo professores, alunos e toda a

comunidade escolar na formação de novos leitores”.

E como OBJETIVOS ESPECÍFICOS, pretendeu-se:

• Levar os alunos participantes a praticar a leitura como ato de desenvolvimento pessoal e social. Tendo em vista que a leitura não deve ser praticada apenas

por necessidade imposta pela sociedade, mas como momento de encontro com a arte e de contemplação da estética e beleza do fazer literário: fruição!

• Apreciar a leitura como uma das estratégias de desenvolvimento e motivação para a escrita;

• Possibilitar a formação e exercício da cidadania.

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Em seus pressupostos teóricos baseou-se no fato de que, O Projeto de Leitura e Escrita, implantado na escola, visou contribuir com os procedimentos de aquisição

de uma “leitura do mundo” e da escrita. Para tanto se pretendeu criar uma metodologia e utilizar algumas estratégias de leitura e escrita e também, que se

constituisse num momento de desenvolvimento intelectual para os alunos. As estratégias de leitura e escrita, propostas neste projeto, são sugestões que podem ser

trabalhadas pelos professores em sala de aula.

Os PCN’s (Parâmetros Curriculares Nacionais) apontam como finalidade do ensino nas séries iniciais que os alunos alcancem, ao final do processo, as seguintes

habilidades: ouvir, contar, ler e escrever. Seguindo essa sugestão, que nos parece viável, pode-se criar um ambiente que propicie o desenvolvimento dessas

habilidades. A criação desse ambiente poderá ser uma das construções principais dos profissionais de Educação.

E ainda, as referidas estratégias de leitura e escrita também estão contempladas nos PCN’s da seguinte forma:

Uma estratégia de leitura é um amplo esquema para obter, avaliar e utilizar informação. As estratégias são um recurso para construir significado enquanto se lê. Estratégias de seleção possibilitam ao leitor se ater apenas aos índices úteis, desprezando os irrelevantes; de antecipação permitem supor o que ainda está por vir; de inferência permitem captar o que não está dito explicitamente no texto e de verificação tornam possível o “controle” sobre a eficácia ou não das demais estratégias.

Entretanto, o público, a quem o Projeto pretendeu atingir, concentrou-se nas regiões periféricas, ribeirinhas e comunidades rurais de Porto Velho, nas quais a compreensão da leitura se dá apenas como necessidade de sobrevivência e nunca como lazer.

A esse respeito, com base em suas pesquisas, Magda Soares( ), concluiu:

Pesquisas têm demonstrado que, para essas classes (classes populares), a leitura se apresenta como uma necessidade pragmática: ela é vista como uma qualificação necessária para atender ao modo de produção das sociedades contemporâneas para responder às exigências da cultura dominante, que se organiza, fundamentalmente, pela linguagem escrita. Saber ler ‘para arranjar serviço’, ‘para saber onde a gente pode entrar e onde não pode entrar’, ‘para não precisar pedir a outro que leia a carta que a gente recebeu’, ‘para entender documentos e, assim, não ser enganado’ – são respostas típicas, entre as obtidas de alunos e pais de alunos de classe popular... Em oposição, alunos e pais de alunos das classes privilegiadas apontam a importância da leitura ‘como forma de lazer’, ‘para obter informação sobre outros lugares e outros povos’, ‘para socializar-se’, ‘para integrar-se melhor no mundo’.

Desse modo, constituiu-se ainda, como objetivo do Projeto de Leitura e Escrita o de proporcionar a leitura pela leitura e não ler para responder a um questionário, para interpretar, para reproduzir mecanicamente, ou, simplesmente, para decodificar.

Assim, pensando com Fanny Abramovich: leitura: puro prazer! O trabalho com leitura que se pretendeu efetivar nas escolas não poderia prescindir de um envolvimento de toda a comunidade para que fossem alcançados resultados e para que se construisse uma prática do pensar a partir da leitura e da escrita.

Para a execução desse Projeto de leitura e escrita, utilizou-se como procedimento metodológico as seguintes etapas:

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• Levantamento das experiências e conhecimentos apresentados pelas crianças. Daí o direcionamento do trabalho deu-se a partir dos dados coletados nessa

primeira etapa;

• Contato e manuseio com os mais variados tipos de leitura em todas as situações. Os alunos foram encaminhados à sala de leitura pelo professor onde escolheram

os livros que iriam ler ou apenas folhear. Ficaram a vontade para trocarem os livros, caso o que estivesse manuseando não estivesse lhes agradando;

• Grupos de leitura e propaganda do livro: a turma foi dividida em grupos e o professor coordenava essa atividade escolhendo, em consenso com os alunos, um

livro para cada grupo. Em seguida cada grupo iria à frente e faria a propaganda do seu livro. Os livros foram trocados entre os grupos, onde todos tiveram a

oportunidade de lê-los;

• Teatralização: depois de oportunizar a leitura, o professor organizava, em grupos, a encenação das histórias escolhidas pelos alunos, que adaptadas, se fosse o

caso, por eles e o professor às condições da dramatização;

• Expressão escrita: constituiu etapa final a expressão escrita, tendo sido encaminhada com o devido cuidado de não exigir a escrita obrigatória, mas que ela

surgisse naturalmente.

Contação de História: unindo prazer com aprendizagem

Essa atividade se constituiu no processo do trabalho e foi ganhando espaço junto à equipe do “Ler e Escrever e seus desdobramentos” tendo sido implantada no contexto das intervenções pedagógicas , desde o início do Projeto em 1999, a atividade de Contação de Histórias como desdobramento do Ler e Escrever.

Inicialmente, a Contação de Histórias era realizada por três bolsistas.Porém, com base nos resultados e interesse despertado nos alunos, passou a ser realizada

por todos os bolsistas da área de Língua Portuguesa, pois foi uma necessidade percebida no processo de intervenções.

A atividade de Contação de Histórias foi consolidada, devido a exigência de alunos e professores para que o “Contar” estivesse presente na Escola. Os alunos

interagem com a história ouvindo – interpretando – dialogando – recontando as mesmas. O respaldo do trabalho está na interação Escola-comunidade-Projeto.

O que é a Contação de Histórias? É uma atividade na qual “O contar é considerado como o momento de leitura e interlocução, o resgate de memórias nos níveis pessoal e coletivo”.

Qual objetivo da Contação de Histórias?

Promover a troca de experiências; o prazer de ouvir e contar histórias de qualquer gênero, literário ou não literário; o entretenimento e incentivar a leitura na

Escola.

Qual a metodologia utilizada?

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Para a obtenção de melhores resultados dois procedimentos foram adotados:

“A hora do contar”: o grupo de alunos elegia um tema para a contação de histórias e todos se reúnem para ouvir e falar.

“A Roda de leitura”: professores, alunos e bolsistas se reuniam para ler e contar histórias.

Para a realização desse tipo de atividade faz-se necessário que a escola disponibilize recursos e materiais tais como, dentre outros:

• Sala de leitura (ou espaço equivalente);

• Acervo bibliográfico de literatura;

• Papel sulfite;

• Tesoura;

• Tinta guache;

• Papel pautado;

• Lápis preto, lápis de cor e giz de cera;

Ressalta-se, porém, que os dois primeiro itens do material são indispensáveis.

Dentre as atividades desenvolvidas podem ser destacadas:

• A narrativa oral “quem conta um conto aumenta outro conto”: Atividade que se constitui em organizar a hora do conto que se destine ao exercício da oralidade e

que os temas sejam diversos, embora cada hora do conto tenha um tema central;

• A dramatização – o professor poderá adaptar junto com os alunos um texto lido e escolhido por ambos para uma apresentação de teatro na escola;

• Foram realizadas exposições dos desenhos feitos por alunos a partir do trabalho desenvolvido com narrativas visuais;

• Sugerir que os alunos façam um levantamento das lendas da comunidade e registrem através da escrita para publicação desse trabalho posteriormente;

• Desenvolver, em conjunto com a Educação Física, coreografias para as cantigas de roda, ou seja, explorar a linguagem corporal, o lúdico como mediador das

produções da escrita e da leitura, podendo explorar a perspectiva do corpo para o texto e do texto para o corpo;

• Promover a produção de texto de professores e alunos no decorrer do Projeto pedagógico;

• Produzir histórias contadas pelos alunos através da técnica do baralho Passatore, dentre outras.

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Como conseqüência das atividades desenvolvidas do Lês, Escrever e seus Desdobramentos, foi possível propor também, um outro projeto par viabilização da

leitura e escrita na escola, que foi o Clube da Leitura.

A proposta desse projeto se fundamentou no fato de que as crianças das comunidades rurais, ribeirinhas e urbanas periféricas, em idade escolar, têm pouco

acesso à leitura de livros infantis, revistas e gibis. Em vista disso, percebeu-se que os problemas encontrados nessas comunidades são: a falta destes materiais no

acervo das escolas e falta de um planejamento democrático para que todas as crianças tenham acesso a estes materiais.

Foi possível justificar tal proposta considerando que - O gosto pela leitura desenvolve-se ao longo do processo que se inicia nos primeiros anos de vida, antes da

entrada da criança na escola. Em vista disso, a Literatura Infantil foi inserida no cotidiano escolar com o objetivo de incentivar a leitura e despertar o espírito crítico da

criança, e ainda;

A leitura proporciona o encantamento, a descoberta, o imaginário, o lúdico, o maravilhoso, o fantástico, entre outros adjetivos atribuídos para a mesma palavra;

E que mesmo a leitura tendo tantas virtudes, a sua prática tem sido esquecida. Uma grande responsável por essa situação é a escola, que quando possui livros não os

empresta e quando empresta torna a leitura um ato obrigatório e avaliativo, fazendo-a perder sua significação: a de oferecer entretenimento ao leitor.

Para ABRAMOVICH(1995, p. 152), “... Afinal, ler é um fazer que pode ser saboreado a qualquer hora e que até dispensa companhia.. É um dos poucos brinquedos

com que se pode brincar sozinho (ou junto com os personagens).”

O ato de ler deve ser encarado não só como processo de aquisição de conhecimentos, mas como um ato lúdico. Em geral, a biblioteca (quando há) é o lugar

onde se enclausura o material fantástico que proporciona crescimento, lazer e prazer, tirando assim, a oportunidade dos alunos de manuseá-lo e negando-lhes o

direito de empréstimo.

Levando em consideração que as comunidades mais carentes estão inseridas em uma sociedade que não lhes oferece condições econômicas e culturais para

aquisição de livros, faz-se necessário promover meios para aproximação das crianças dessas comunidades e os livros infantis.

Desta forma, pensou-se em elaborar um projeto de extensão, onde se pudesse incentivar a comunidade a colaborar com a escola, doando livros, revistas e gibis. A

partir do momento que a comunidade escolar começasse a doar o material, a mesma se associaria ao “Clube da leitura” da sua escola, com direito a empréstimo

qualquer material de leitura.

Pensando assim, o mesmo teve como OBJETIVO: “Levar a comunidade a colaborar com a escola, doando livros, revistas e gibis. Ajudando assim, a aumentar o

acervo das escolas e propiciar o acesso de livros infantis as crianças dessas comunidades carentes”.

Nesse sentido, presupôs que “A implantação do projeto como extensão e sua devida continuidade por parte de moradores, alunos e professores das comunidades

inseridas no cotidiano das escolas, poderia melhorar e contribuir para seu sucesso”.

Dessa forma o mesmo foi proposto e desenvolvido tendo como metodologia as seguintes etapas de trabalho:

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• Apresentação da proposta para apreciação e reflexão entre Direção, Professores, Pais e alunos quanto à aceitação e implantação do projeto de extensão.

• Escolha e/ou votação das pessoas que poderão ser responsáveis pelo “Clube da leitura”.

• Elaboração das carteirinhas dos pretendentes a sócios do “Clube da leitura”.

• Organização do caderno de controle de entrada e saída de livros.

• Abertura oficial do “Clube da leitura”.

Este então foi o enfoque que se pretendeu dar para identificar alguns aspectos da leitura e escrita no contexto escolar em escolas de ensino fundamental, numa

perspectiva de visualizar as relações entre teoria e prática, na prática.

REFERÊNCIAS

ABRAMOVICH, Fanny. Literatura infantil; gostosuras e bobices. São Paulo, Scipione, 1989.

BARBOSA, José Juvêncio. Alfabetização e leitura. São Paulo, Cortez, 1991.

CAGLIARI, Luiz Carlos. Alfabetização e lingüística. São Paulo, Scipione, 1989.

ENSINAR A ENSINAR – Plano de trabalho anual da Linha de Ação II – Formação Continuada de Professores – Língua Portuguesa – Ler, Escrever e seus

Desdobramentos – Capacitadora Sônia Maria Gomes Sampaio – Porto Velho: 2002/2003.

KLEIMAN, Ângela. Oficina de leitura; teoria e prática. Campinas, Pontes/Edunicamp, 1993.

LEMLE, Miriam. Guia teórico do alfabetizador. São Paulo, Ática, 1987.

MARQUES, Maria Celeste Said. Desenvolvimento da aquisição da escrita: um panorama teórico. In Leitura e produção de textos: quando as crianças

brincam, lêem e escrevem. Porto Velho, RO: EDUFRO, 2002.

TEBEROSKY, Ana. Aprendendo a escrever. São Paulo, Ática, 1997.

TEZZARI, Neuza e LEÔNCIO, Vânia. O professor e suas relações com a leitura. In Leitura e produção de textos: quando as

crianças brincam, lêem e escrevem. Porto Velho, RO: EDUFRO, 2002.

Page 12: Volume xx 2007

UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO VI, Nº222 OUTUBRO - PORTO VELHO, 2007

Volume XX Setembro/Dezembro

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia

FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL - Geografia

MIGUEL NENEVÉ - Letras VALDEMIR MIOTELLO - Filosofia

Os textos no mínimo 3 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows” deverão ser

encaminhados para e-mail:

[email protected]

CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 150 EXEMPLARES

ISSN 1517-5421 lathé biosa 222

REVENDO O SURREALISMO

Theodor W. Adorno

EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

PRIMEIRA VERSÃO

Page 13: Volume xx 2007

REVENDO O SURREALISMO1

Theodor W. Adorno

Noten zur Literatur: 101-5

A teoria amplamente difundida do surrealismo, como colocada nos Manifestos de Breton e também como dominante nos manuais de introdução, o relaciona

com o sonho, o inconsciente, talvez até com os arquétipos de Jung, que, nas colagens e na escrita automática, teriam encontrado sua linguagem constituída de

imagens e enfim liberta de relação com o "eu" consciente. Por essa teoria, os sonhos manipulariam os elementos do real à semelhança dos procedimentos surrealistas.

No entanto, se entendemos que a arte jamais tenha que se compreender ― e se somos levados a considerar que a autocompreensão da arte e seu valor sejam coisas

incompatíveis ― então não se faz necessário aceitarmos esta visão programática defendida pelos comentadores. O que há de fatal na interpretação da arte, e aliás até

naquelas com responsabilidade filosófica, é que no processo de conceitualização esta se vê forçada a explicar o estranho e o surpreendente em termos do que já é

familiar e, portanto, a excluir a única coisa que realmente haveria a explicar: se as obras de arte demandam explicação, acabam todas, mesmo contra suas intenções,

por cometerem um ato de traição, que as leva ao conformismo. Se, na verdade, o surrealismo fosse apenas uma coleção de ilustrações literárias e gráficas de Jung, e

até de Freud, só duplicaria, de maneira supérflua e com a pretensão de disfarce por metáforas, o que a teoria em si já diz. Seria, também, tão inócuo que não haveria

mais lugar para o escândalo , que é sua intenção e seu elemento vital. Colocá-lo no mesmo plano que a teoria psicológica dos sonhos é dar-lhe um humilhante

carimbo oficial. O refrão "trata-se da figura paterna" provoca a resposta auto-satisfeita "Sim, nós já sabemos"; e, como Cocteau bem compreendeu, se algo não passa

de sonho não causará grandes danos à realidade, por mais danificada que sua imagem já esteja.

Mas esta teoria não faz justiça ao tema. Não é assim que as pessoas sonham, ninguém sonha desse jeito. As criações surrealistas não passam de análogas aos

sonhos ao suspenderem a lógica habitual e as regras da existência empírica, mas, ao fazê-lo, respeitam os objetos que foram retirados à força de seus contextos e

que trazem seus conteúdos, em especial seus conteúdos humanos, mais próximos das formas desses objetos. Esses conteúdos destroem-se, reorganizam-se, mas não

se suprimem. O sonho, com certeza, não procede de modo diferente, mas nele o objeto aparece de forma incomparavelmente mais velada e não se apresenta tão

investido de realidade como no surrealismo, no qual a arte abala profundamente a arte. O sujeito, que no surrealismo age muito mais aberta e livremente do que nos

sonhos, dirige sua energia para sua auto-aniquilação, energia que no sonho absolutamente não é exigida; mas, por tudo isso, torna-se mais objetivo, por assim dizer,

do que no sonho, onde o sujeito, ausente desde o início, fica nos bastidores para colorir e permear tudo que acontece. Os surrealistas chegaram também à descoberta

de que as pessoas, mesmo na situação psicanalítica, não associam o conteúdo como eles ao fazerem poesia. Além disso, nem a espontaneidade das associações

psicanalíticas é, na verdade, espontânea. Todo analista sabe o que lhe custa de esforço e cansaço, de força de vontade, para dominar a expressão involuntária já na

situação psicanalítica, o que não dizer então da situação artística dos surrealistas. Não é o inconsciente em-si que se atualiza no mundo em ruínas dos surrealistas. Se

julgássemos essa pretensão, os símbolos se revelariam bem racionais. Esse tipo de decodificação reduziria a luxuriante multiplicidade do surrealismo a padrões bem

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insuficientes, como o complexo de Édipo, sem conseguir dar conta da força que emana se não de todas as obras do surrealismo, pelo menos de sua idéia. Esta, aliás,

parece ter sido a reação de Freud a propósito de Dali.

Os choques do surrealismo perderam sua virulência após a catástrofe européia,. É como se tivessem salvado Paris ao predispô-la ao medo: a destruição da

cidade sempre lhe foi central. Conceituar o surrealismo nesse sentido não é remontar à psicologia, mas as seus próprios procedimentos artísticos. Sem dúvida, são

esquematizados pela montagem. Seria fácil mostrar que até a própria pintura surrealista opera com seus motivos e que a justaposição descontínua de imagens na

poesia lírica surrealista tem o caráter de montagem. Tais imagens, sabemos, provêm, em parte literalmente e em parte espiritualmente, de ilustrações do final do

século XIX, como reconheceriam os pais da geração de Max Ernst. Desde os anos vinte, houve, fora do campo surrealista, coleções de imagens desse tipo, como Our

Fathers , de Alan Bott, que participaram ― de maneira parasitαria ― do choque surrealista e, ao assim fazκ-lo, como um tipo de delicadeza, pouparam o público da

tensão causada pela estranheza da montagem. Mas a prática propriamente surrealista misturou a esses elementos outros elementos insólitos. São estes, aliás, que,

pela surpresa, deram este jeito familiar, este aspecto de "Onde será que já vi isto antes? ". Portanto, não é de se pensar que a afinidade com a psicanálise esteja num

simbolismo do inconsciente, mas na tentativa de revelar as lembranças da infância de maneira súbita e explosiva. O que o surrealismo acrescenta às ilustrações do

mundo dos objetos é aquele algo da infância que perdemos; estas ilustrações já antiquadas naquele tempo nos impressionaram tanto como hoje as imagens

surrealistas. O aspecto subjetivo disto está no ato da montagem, que tenta ― talvez em vão, mas com propósito inegável ― produzir percepções semelhantes às que

devem ter existido outrora. O ovo gigante, do qual, a qualquer momento, pode saltar o monstro do Julgamento Final, é tão grande porque nós éramos pequenos

demais no dia em que pela primeira vez trememos diante de um ovo.

É o obsoleto que dá este efeito. Na modernidade há algo de paradoxal, pois, mesmo sob o fetiche do sempre igual que lhe é imposto pela produção em

massa, ainda conserva a história. Este paradoxo a aliena e nas "Figuras para as Crianças dos Tempos Modernos" torna-se a expressão de uma subjetividade que se

alienou de si mesma e do mundo. A tensão do surrealismo descarregada no choque é a mesma que existe entre a esquizofrenia e a reificação; não se trata, portanto,

de tensão por motivação psicológica. O sujeito que se dispõe livremente de si mesmo, que se torna absoluto e sem obrigação de dar conta do mundo empírico,

denuncia-se, diante da alienação total, como sendo si mesmo mas destituído de alma, alguém virtualmente morto. As imagens dialéticas do surrealismo são imagens

de uma dialética da liberdade subjetiva num estado de não-liberdade objetiva. Nessas imagens o Weltschmerz2 da Europa torna-se em pedra, à semelhança de Níobe3

ao ter os filhos mortos; nelas a sociedade burguesa abandona toda esperança de sobreviver. Dificilmente algum surrealista terá conhecido a Fenomenologia do

Espírito, de Hegel, mas ali se encontra uma frase que deve ser relacionada à tese mais geral de que a história é o progresso da consciência da liberdade e que pode

dar conta do conteúdo surrealista: "A única obra, o único ato de liberdade universal é, então, a morte, uma morte que carece de dimensão e de realização interiores".

O surrealismo assumiu essa crítica, isso explica, em política, sua oposição impulsiva ao anarquismo, o que, no entanto, é incompatível com sua substância. Tem se

afirmado desta frase de Hegel que o Aufklärung4 se anula ao se realizar; é a este preço ― não como uma linguagem da imediaticidade mas como testemunho da

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regressão da liberdade abstrata na supremacia das coisas e, assim, à mera natureza ― que se poderá compreender o surrealismo. As montagens são as verdadeiras

naturezas mortas. Ao recomporem o obsoleto, criam natureza morta.

Essas imagens são menos algo que vem do íntimo do que fetiches ― fetiches da mercadoria ― em que, outrora, se fixava o subjetivo, a libido. Ι por meio

desses fetiches, e não da introspecção que fazem ressurgir a infância. Os modelos do surrealismo poderiam ser a pornografia. O que se passa com as colagens, o que

está convulsivamente suspenso nelas como as contrações tensas de gozo em torno da boca, assemelha-se às alterações que atingem uma representação pornográfica

no momento de lascívia do voyeur. Bustos cortados, pernas com meias de seda em manequins nas colagens ― eis as marcas da lembrança dos objetos destas tensões

parciais que despertam a libido. O esquecido aí se revela à maneira de uma coisa, morto, como aquilo que o amor desejava, como algo a que desejava se assemelhar,

a que nós nos assemelhamos. O surrealismo aproxima-se em fotografia porque é um despertar súbito de um estado de petrificação. O que toma são imagens; não

invariantes, sujeitos sem consciência e sem história, a que poderiam ser neutralizados pela visão convencional, mas imagines históricas em que o sujeito, no que tem

de mais íntimo, toma consciência de si como exterioridade, como imitação de uma realidade socio-histórica. "Vamos, Joe, toque aquelas músicas dos bons tempos"5.

Nisso, no entanto, o surrealismo torna-se complemento da Sachlichkeit, que surgiu na mesma época. O horror que este sente pelo "crime do ornamento", nas

palavras de Adolf Loos, é mobilizado pelos choques surrealistas. A casa tem um tumor: sua sacada. É esta que o surrealismo vai pintar: cresce uma excrescência de

carne saindo da casa. As imagens infantis da modernidade são a verdadeira incarnação do que a Sachlichkeit dissimula por trás de um tabu, porque isso a faz lembrar

que sua própria essência provém das coisas e de sua incapacidade de lidar com o fato de que sua racionalidade é irracional. O surrealismo recolhe o que a

objetividade nega aos homens; a distorção atesta o que a proibição fez ao objeto do desejo. Por tal distorção, o surrealismo permite salvar o obsoleto, um album de

idiossincracias, em que o sentimento de justiça e de felicidade que os homens se negam em seu próprio mundo tecnificado acaba por esvair-se em fumaça. Mas se

hoje o próprio surrealismo parece obsoleto, isto ocorre porque os homens já se recusam esta consciência negativa que era fixada no negativo fotográfico que é o

surrealismo.

1 Texto original em alemão publicado em 1956. Tradução de Newton Ramos-de-Oliveira. 2 A dor do mundo, expressão indicativa do que os franceses chamaram de "mal de siècle" no período romântico 3 Filha de Tântalo e mulher do rei de Tebas, Anfion. Por ter sete filhos e sete filhas escarneceu de Latona, mãe de apenas dois filhos: Apolo e Diana. Estes, em

vingança, mataram todos os filhos de Níobe, que infeliz converteu-se num rochedo e tornou-se símbolo do amor materno. (Nota do tradutor) 4 O Iluminismo. 5 “Geh, Joe, mach die Musik von damals nach” ― Verso da Bilbao-Song, de Brecht e Kurt Weil na peηa Happy End.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO VI, Nº223 NOVEMBRO - PORTO VELHO, 2007

Volume XX Setembro/Dezembro

ISSN 1517-5421

Desenho da capa: Flávio Dutka

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia FABÍOLA LINS CALDAS - História

JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL - Geografia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO - Filosofia

Os textos no mínimo 3 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for

Windows” deverão ser encaminhados para e-mail:

[email protected]

CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 150 EXEMPLARES

EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 223

A PÓS-MODERNIDADE É MAIS VELHA DO QUE SE SUPÕE

WALDENYR CALDAS

PRIMEIRA VERSÃO

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ISSN 1517 - 5421 17

A pós-modernidade é mais velha do que se supõe

WALDENYR CALDAS

No recém-lançado livro 'Vertigens Pós-Modernas', Luis Carlos Fridman usa principalmente a sociologia e a psicanálise para refletir sobre as mudanças na cultura e no

comportamento humano desde a época do Iluminismo; para ele, as dúvidas sobre o que é pós-moderno no mundo de hoje se devem à imprecisão do termo, que é

vago e inespecífico

O sugestivo título do livro Vertigens Pós-Modernas (Relume Dumará, 100 págs., R$ 18), de Luis Carlos Fridman, procura dar conta das transformações e mudanças

ocorridas na cultura e no comportamento humano desde o Iluminismo até nossos dias. A sociologia e a psicanálise são os principais instrumentos de análise usados

pelo autor.

Ele reconhece que essas vertigens, no entanto, não são tão recentes quanto possa parecer. A expressão pós-moderna aparece muito mais como um termo

usual na literatura científica das ciências humanas, do que propriamente pela pertinência do fenômeno em si. Nesse aspecto, concordamos com o pensador francês

Jean Baudrillard quando diz: "O pós-moderno é tudo aquilo que achamos pós-moderno. Pode ser tudo, ou pode ser nada."

Assim, estamos diante da vaguidão inespecífica do termo. Até porque, se observarmos o espaço cronológico usado pelo autor, podemos dizer que a locomotiva

movida a carvão, o romântico forde-de-bigode, a Internet e o último CD de Madonna são pós-modernos. É necessário muito cuidado e mais precisão para explicarmos

o que é, afinal, o pós-moderno. Autores como Lyotard, Bauman e Giddens, este último considerado o teórico da pós-modernidade, rigorosamente não conceituam nem

situam com precisão o pós-modernismo.

Giddens, aliás, reconhece a imprecisão do termo: "Pós-Modernismo: esta palavra não tem sentido. Usa-se freqüentemente." Ao mesmo tempo, o autor de

Vertigens Pós-Modernas destaca que "a idéia de pós-modernidade pode se prestar a piruetas intelectuais ou mesmo a fecundas interpretações isoladas".

Fredric Jameson tenta conceituá-lo como "uma revolução cultural no âmbito do próprio modo de produção capitalista". Ora, até aí nada de novo, nada de

surpreendente. É natural que o avanço da ciência e da tecnologia tragam mesmo transformações estruturais à sociedade. Especialmente no tocante aos usos,

costumes, tradições, estilos de vida e até nas formas de organização social.

Novos contornos - A concepção de pós-modernidade para Jameson (mas com marcante influência da obra de Braudrillard) passa ainda pelo conceito de

uma "cultura sem profundidade", aquela que melhor representa a sociedade de consumo, etapa do capitalismo tardio posterior à 2.ª Guerra Mundial. Nessa sociedade,

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a cultura adquire novos contornos e importância, em face justamente da repetição exaustiva dos signos e das mensagens nos permitindo inferir, segundo o autor, a

idéia na qual "é possível dizer que tudo na vida social tornou-se cultural".

A liquefação de signos e imagens tornaria muito tênue a distinção entre o que se estabeleceu chamar alta cultura e cultura de massa. Em termos mais claros,

a liquefação de signos e imagens significa o seguinte: uma mensagem publicitária pela televisão, de outdoors nas ruas da cidade, de painéis nas estradas, entre outras

formas de comunicação, seria o equivalente a se conhecer o significado e a importância de Guernica, de Picasso, ou ainda viver na alma o dilema e as agruras de

Joseph K., em O Processo, de Franz Kafka. Haveria, portanto, não um desmerecimento da chamada alta cultura, mas uma equivalência desta à cultura de massa, cujo

denominador comum seria a "cultura de consumo".

Nesse aspecto, Alexis de Tocqueville, em seu livro Democracia na América, de 1840, antecipa-se a todos os conceitos contemporâneos de pós-modernidade.

Ele apenas não usa essa expressão, que mais parece um modismo intelectual, mas detecta o fenômeno com precisão. Observando o comportamento

atomizado da sociedade americana na metade do século 19, o autor lança as bases teóricas daquilo que, mais tarde, outros estudiosos chamariam de sociedade de

massa.

Diz ele que "a primeira coisa que chama a atenção é uma multidão inúmera de homens, todos semelhantes e iguais, ocupados incessantemente na busca de

pequenos vulgares prazeres com os quais saciam suas vidas. Cada qual, vivendo à parte, é estranho ao destino de todo o resto; seus filhos e amigos privados

constituem para ele toda a humanidade".

Reconhece-se, aqui, as bases do que mais tarde autores como Hannah Arendt e Adorno chamariam de "sociedade totalitária". A nivelação, o isolamento, a

perda da individualidade das pessoas privadas e a atomização do conjunto social expõem com clareza a presença de um Estado todo-poderoso e, nem sempre,

democrático.

O livro de Luis Carlos Fridmam, com efeito, faz uma instigante revisão bibliográfica sobre pós-modernidade. Pretende ainda "mostrar que uma boa quantidade

de questões relevantes pôde ser aprofundada no debate acerca da pós-modernidade, com avanços significativos na compreensão da dinâmica na sociedade atual".

Força de trabalho - Em que pese a densidade teórica do seu trabalho, é preciso notar que algumas questões devem ser repensadas especialmente quando o

autor trata das reflexões de Guy Debord em seu livro A Sociedade do Espetáculo. Cito um exemplo: o destaque acerca dos limites ficcionais encontrados no filme

Quero Ser John Malkovich, de Spike Jonze. Ao analisar este filme, o autor considera que "esse magnífico roteiro dramatiza não somente a eventualidade de se comprar

a força de trabalho de alguém, mas também a ilusão de ser o outro. Guy Debord acertou muito mais do que poderia supor". Rigorosamente, pode-se dizer que Debord

inspirou-se no conjunto da obra de Adorno e, mais especialmente, no ensaio intitulado "O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição". É natural, Adorno foi um

dos teóricos mais argutos sobre a sociedade de massa.

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No tocante às questões empíricas, como o futebol e as torcidas, Fridman faz algumas alusões passíveis de discordâncias. Quando ele destaca que agora o

torcedor projeta sua paixão não só ao que ocorre nas quatro linhas do gramado, mas também às tomadas feitas pela televisão sobre o público, evidencia-se uma

obviedade.

É natural que a televisão (embora os protagonistas do espetáculo sejam os jogadores) procure diversificar a imagem durante o jogo sem que, com isso,

introduza imagens alheias ao espetáculo em si. A torcida, parte ativa e integrante do jogo de futebol, tem, como se sabe, influência direta no resultado final de uma

partida. Nesse sentido, não se trata de um "seqüestro midiático" como quer o autor. Além disso, é duvidoso que uma multidão interessada no espetáculo futebolístico

tenha, hoje, "um olho nas câmeras de televisão".

Capital - Em outro momento, Fridman destaca a relação do ídolo midiático com o capital. Suas análises vão ao encontro do que ele chama de "novos

direcionamentos do capital que destinam um lugar central à indústria do entretenimento como um pólo de expansão do sistema".

É verdade e não há como resolver a questão de outra forma. Do mesmo modo, devemos entender que os esportes na chamada sociedade pós-moderna não

passam de meras mercadorias, como de resto toda a indústria do entretenimento.

Assim, é compreensível que as grandes indústrias, em busca de propaganda a da rentabilidade, invista nas associações esportivas e em seus principais atletas,

tornando-os "celebridades". Portanto, é natural, como diz o autor, que haja "novos direcionamentos do capital que destinam um lugar central à indústria do

entretenimento como um pólo de expansão do sistema".

Não podemos ser tão ingênuos em esperar que, numa sociedade em que tudo se mercantiliza, o entretenimento tivesse outro destino que não sua

industrialização. Isto não significa que em termos ideológicos esteja certo ou errado. Esta é uma apreciação que demanda exaustiva discussão e não poderia ser

resumida em poucas linhas.

Boa parte do livro de Fridman ocupa-se da análise do livro de Guy Debord, A Sociedade do Espetáculo. Em certo momento, ele acrescenta que "o pioneirismo

de A Sociedade do Espetáculo está presente em toda essa discussão, resumido na expressão 'anteriormente via-se a degradação do ser em ter e agora chegou-se à

imperiosidade do parecer'".

Ora, este tema já foi exaustivamente tratado por autores como Karl Mannheim, em Sociologia da Cultura, Jean Baudrillard em O Sistema dos Objetos, entre

outros. De qualquer modo, é igualmente importante a indicação de Fridman sobre o livro de Guy Debord.

Desagregação - Da mesma forma, é preciso muita cautela acerca do processo de urbanização da humanidade. Não podemos considerá-lo necessariamente

como um fenômeno desagregador como faz o autor.

O binômio industrialização/urbanização não pode servir de motivo para a desagregação progressiva dos laços familiares, de vizinhança e da religião.

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Até porque as relações com a família se dão no plano das emoções da sociabilidade e do afeto, e não na relação de vizinhança. A distância geográfica, ao

contrário do que diz Fridman, não causa a desagregação familiar. A superação deste fenômeno se dá justamente pelo afeto, pela emocionalidade e não por padrões

racionais difundidos pela modernidade ou, se quisermos, pelos novos ditames da chamada pós-modernidade.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO VI, Nº224 DEZEMBRO - PORTO VELHO, 2007

Volume XX Setembro/Dezembro

ISSN 1517-5421

Desenho da capa: Flávio Dutka

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia FABÍOLA LINS CALDAS - História

JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL - Geografia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO - Filosofia

Os textos no mínimo 3 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for

Windows” deverão ser encaminhados para e-mail:

[email protected]

CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 150 EXEMPLARES

EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 224

SOCIOFOBIA - O COMÉRCIO DA TIMIDEZ

MICHELLE COTTLE

PRIMEIRA VERSÃO

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ISSN 1517 - 5421 22

SOCIOFOBIA - O COMÉRCIO DA TIMIDEZ MICHELLE COTTLE da "The New Republic" Folha online – Mais! – 28.05.200

O surgimento da sociofobia permite vislumbrar a natureza subjetiva da psiquiatria

Você tem dificuldade para falar em público?

Você tem dificuldade para fazer amizades?

Você é uma pessoa tímida?

Se respondeu "sim", poderia participar de um programa de pesquisa financiado pelo Instituto Nacional de Saúde Mental (EUA). Mesmo que você sempre

tenha considerado a timidez um dos elementos de sua personalidade, parece que a ciência médica decidiu que essa característica pode ser na verdade a expressão

de um distúrbio mental crônico. E você não está só, pelo contrário. Segundo a Associação Psiquiátrica Americana (APA), está ocorrendo uma verdadeira epidemia de

timidez patológica. A APA avalia que um oitavo dos americanos, em algum momento da vida, serão vitimados pela doença da ansiedade social -também conhecida

como sociofobia. De acordo com os médicos, a sociofobia pode reduzir a personalidade mais animada a um estado de trêmula introversão. O ator Laurence Olivier e

o rei Jorge 6º da Inglaterra, por exemplo, teriam sido vítimas da sociofobia. Se a proporção de 1 para 8 estiver correta, a sociofobia é a terceira doença mental mais

comum em um país como os Estados Unidos, depois da depressão e do alcoolismo.

Médicos, empresas e cidadãos comuns estão mobilizados para dar o alarme sobre essa ameaça à saúde -disseminando a má notícia de que a sociofobia é

avassaladora, juntamente com a boa notícia de que agora ela pode ser tratada com medicamentos. No ano passado, a indústria farmacêutica SmithKline Beecham

recebeu a aprovação da FDA (agência que regula medicamentos nos EUA) para comercializar o Paxil, um antidepressivo semelhante ao Prozac, para tratamento da

doença. Ao mesmo tempo, uma coalizão de grupos sem fins lucrativos (com apoio financeiro da SmithKline) lançou uma campanha de esclarecimento público sobre

o problema, construída em torno do inteligente slogan: "Imagine ser alérgico a gente".

Resumindo, a sociofobia é o que os médicos às vezes chamam de "diagnóstico quente". A pesquisa e o marketing sobre o tema -afecção que há dez anos

mal tinha registro na literatura profissional- ilustram como certos traços de personalidade antes considerados perturbadores, mas "normais", podem ser

reclassificados como sintomas de uma condição médica que pode ser tratada.

Esse processo tem um lado positivo, é claro. Muitas pessoas que eram prejudicadas pelos sintomas se beneficiaram do maior conhecimento sobre

depressão e sobre os medicamentos existentes para tratá-las. Mas a súbita onda da sociofobia também serve para lembrar que as doenças não aparecem,

simplesmente.

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ISSN 1517 - 5421 23

As definições de doença e de saúde não pertencem exclusivamente ao reino da ciência pura. São também fenômenos sociais, culturais e econômicos. Não

são inventadas, exatamente, mas incutidas e moldadas para aceitação pública por um conjunto de pesquisadores médicos, profissionais de saúde mental,

laboratórios farmacêuticos e grupos de opinião, todos atuando em graus variados de ambição, conhecimento científico, oportunismo e boas intenções. Em geral é

um processo longo e penoso.

Assim, o surgimento da sociofobia permite vislumbrar não tanto a anatomia de uma doença específica, mas a natureza da medicina psiquiátrica, ainda

inerentemente subjetiva, e as forças culturais que ajudam a traçar os limites entre o que nos dizem para considerar normal e o que nos dizem para considerar

patológico.

Um distúrbio como a sociofobia não surge espontaneamente, na forma completa, de algum recesso febril do cérebro humano. Antes que possa estrear

adequadamente, equipes de pesquisadores e psiquiatras, às vezes trabalhando com um mero punhado de sintomas semelhantes encontrados em pacientes

isolados, devem conceituar o problema, defini-lo e avaliar que porcentagem da população poderia sofrer dele. Essa última parte é especialmente importante porque,

para uma doença mental causar verdadeira sensação nas comunidades clínica e empresarial, é preciso que afete muita gente.

Embaraçoso e ridículo

À primeira vista, a sociofobia parece afligir todas as pessoas. Segundo um panfleto editado pela Associação de Distúrbios de Ansiedade da América (ADAA),

"o elemento-chave da sociofobia é a extrema ansiedade em relação à opinião dos outros ou a comportamentos que possam ser embaraçosos ou ridículos". Na

verdade, alguns pesquisadores acreditam que as raízes da sociofobia podem situar-se numa época em que ser julgado e rejeitado pela própria tribo significava o

banimento ou a morte. A ansiedade por se apresentar em público, especialmente, pode se encaixar nesse enredo (o que já se chamou "medo de palco" hoje é

classificado como a forma mais comum de sociofobia).

Quando uma pessoa está diante de um grupo, preparando-se para falar, cantar, dançar ou tocar acordeão, os membros da platéia a estão avaliando -

principalmente se pagaram ingresso. E, se a apresentação estiver de alguma forma ligada à subsistência da pessoa, realmente existe a possibilidade de que um

fracasso prejudique mais que apenas sua auto-estima. Em um nível ainda mais primitivo, temos predisposição para ficar nervosos quando alguém -ou alguma coisa-

nos fita. Os predadores fitam a presa antes de devorá-la. Duelos com o olhar são um modo de estabelecer hierarquias em unidades sociais, tanto humanas quanto

primatas. Nessa perspectiva, alguém que não fique nervoso quando observado fixamente pode ser considerado exceção.

De fato, a psiquiatria inicialmente relutou em definir a sociofobia de forma que abrangesse um grande número de pacientes. O distúrbio só entrou

oficialmente no léxico psiquiátrico em 1980, quando foi incluído na terceira edição do "Manual Diagnóstico e Estatístico de Doenças Mentais" (DSM), o catálogo de

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doenças da APA atualizado periodicamente -e em constante expansão- que codifica tudo, da esquizofrenia à cleptomania. Embora a maioria das condições seja

aceita relativamente sem polêmica, o DSM é um documento de notória maleabilidade, pouco mais isento de tendências sociais e modismos ideológicos do que,

digamos, um semanário de opinião. Por exemplo, durante anos houve uma batalha interna sobre a exclusão da homossexualidade da lista de doenças ligadas à

sexualidade (foi excluída na edição de 1974).

Para pacientes e médicos, o ponto principal do DSM é que, sem um verbete e um número de código no manual, uma condição não tem cobertura do

seguro-saúde (a sociofobia é 300.23). Assim, a APA é incentivada a codificar tantas mutações comportamentais quantas sejam plausíveis. Mas o DSM-3, como é

chamada carinhosamente a edição de 1980, tinha padrões muito precisos do que constitui a sociofobia.

Distúrbio raro

Primeiro, a definição inclui os pacientes que têm medo de apenas uma atividade, seja escrever, comer ou falar em público; as pessoas com ansiedade social

múltipla ou generalizada eram consideradas vítimas de um problema completamente diferente. Além disso, de acordo com o DSM-3, não bastava que a pessoa

temesse uma situação -para se enquadrar, o medo devia obrigá-la a evitar terminantemente essa situação. Era, para o manual, um distúrbio "aparentemente raro".

Em meados dos anos 80, porém, ocorreu uma virada no pensamento acadêmico sobre a sociofobia. No início da década as pesquisas indicavam que apenas

2% ou 3% da população enfrentava o problema; no começo dos anos 90 os índices observados já tinham dois algarismos.

Grupos de defesa da saúde mental atribuem essa mudança a um estudo decisivo publicado em julho de 1985 por Michael R. Liebowitz, diretor da Clínica de

Distúrbios da Ansiedade do Instituto Psiquiátrico do Estado de Nova York. Num artigo intitulado "Sociofobia: Análise de um Distúrbio da Ansiedade Negligenciado",

Liebowitz lamentou a escassez de dados sobre a doença e a falta de consenso sobre os critérios de diagnóstico e incidência. Ele também criticou a definição limitada

do DSM-3, que, como explica hoje, "estreitou e marginalizou" a doença, rotulando desnecessariamente os que têm uma "timidez geral mais grave" como tendo um

distúrbio de personalidade aversiva (um tipo de doença completamente diferente, que, como ressalta o estudo de 1985, em geral era considerada imune a

"intervenções farmacológicas").

O artigo de Liebowitz fez a comunidade médica reavaliar a sociofobia, diz Jerilyn Ross, presidente da ADAA: "As pessoas estavam clamando por

informações". E quanto mais pesquisadores investigaram o distúrbio, mais ele foi aceito pela comunidade psiquiátrica. O primeiro sinal de mudança surgiu quando a

APA flexibilizou a definição de sociofobia. Em 1987, a associação publicou uma versão revisada do DSM-3 (habilmente denominada DSM-3-R).

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ISSN 1517 - 5421 25

Liebowitz participou da equipe consultora encarregada de atualizar o verbete sobre sociofobia. Ele explica que, à luz de análises adicionais, o comitê decidiu

incluir um subtipo genérico da condição. Esse acréscimo, combinado ao uso de questionários de filtragem mais abrangentes, levou ao subsequente aumento dos

índices da doença entre toda a população, diz Liebowitz.

Mais importante, porém, pode ter sido a decisão do comitê de retirar dos critérios de diagnóstico a frase "um desejo compulsivo de evitar". Desde então

uma pessoa poderia ser classificada como sociofóbica se sua ansiedade simplesmente lhe causasse "perturbação intensa". Perguntado sobre essa alteração

semântica crucial, Liebowitz explica: "Acho que a questão principal é que há pessoas que lutam para superar situações difíceis". Estas não passariam no teste da

aversão total, mas também suportam as situações sociais com "enorme esforço pessoal". "Não queremos penalizar essas pessoas", diz. "Não queremos dizer que

para se enquadrar na definição e ter reembolso do tratamento elas devem parar de se esforçar."

Seja qual for o raciocínio, o impacto dessa mudança no diagnóstico foi notável. Um estudo publicado em janeiro de 1994 nos Arquivos de Psiquiatria Geral

avalia em 13% a incidência da sociofobia entre os norte-americanos -a proporção de 1 para 8 hoje em voga. Um estudo posterior, publicado na edição de fevereiro

de 1996 do mesmo periódico, registra conclusões semelhantes. Salientando o aumento dramático em relação à pesquisa anterior, os autores do estudo explicaram

que é sobretudo uma questão de definição: se tivessem usado o padrão da "aversão" do DSM-3, o índice registrado teria caído para 8,3%; caso se limitassem aos

questionários mais estritos dos estudos anteriores, o índice teria caído ainda mais, para 4,8%.

Pessoas normais

Os próprios questionários de pesquisa convidam a uma interpretação ampla da sociofobia. Por exemplo, na primeira fase de uma pesquisa canadense,

perguntou-se às pessoas se em certas situações -como "participar de reuniões sociais" ou "falar para uma grande platéia"- elas tendiam a ficar "muito mais

nervosas", "um pouco mais nervosas" ou "mais ou menos iguais" às outras pessoas. Às que responderam "muito mais" ou "um pouco mais" perguntou-se então que

situação as perturbava mais, em que grau isso tinha um impacto negativo em suas vidas e a que ponto essa perturbação as "incomodava". As opções de resposta

eram "nada", "um pouco", "um grau moderado" ou "demais" (com base nos padrões do DSM-3-R -"interferência ou perturbação intensa"-, essa pesquisa definiu a

taxa de incidência de sociofobia em pouco mais que 7%).

A pesquisa foi feita por telefone -opção que dificilmente propicia uma análise cuidadosa pelos entrevistadores. Mas em qualquer circunstância as perguntas

estariam abertas a mais interpretações. É da natureza humana supor que somos menos descontraídos ou aptos do que os outros para conversar, falar em público,

sermos entrevistados para empregos ou flertar com o sexo oposto. Isso é especialmente verdadeiro na adolescência -que seria a fase de maior ocorrência de

sociofobia.

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Depois de avaliar vários outros modelos de pesquisa igualmente vagos, decidi realizar por conta própria um estudo não-científico. Pedi a alguns colegas de

trabalho na "The New Republic" que fizessem um teste rápido de diagnóstico criado por um psiquiatra da Universidade Duke. Primeiro, os participantes deviam

classificar numa escala de 0 a 4 seu medo ou sua aversão a sete situações sociais: falar em público ou diante de outras pessoas, falar com superiores hierárquicos,

falar com estranhos, sentir-se envergonhado ou humilhado, ser criticado, frequentar reuniões sociais e fazer alguma coisa sendo observado (exceto falar). Em

seguida eles deviam classificar o grau em que as situações sociais lhes causavam rubor, tremor, palpitação ou suor.

O livro de que tirei o teste, "Social Fobia", do médico John R. Marshall, advertia que "não existe uma nota absoluta que indique sociofobia". Como ponto de

comparação, porém, ele explicava que "pacientes numa pesquisa de tratamento para sociofobia tinham notas anteriores ao tratamento entre 19 e 56". Dos 23

funcionários da "The New Republic" que fizeram o teste (os outros supostamente eram tímidos demais), a nítida maioria ficou acima de 19.

Sem dúvida deve ser muito mais excitante trabalhar na pesquisa ou no tratamento de um distúrbio mental que afeta 35 milhões de pessoas do que em

outro que afete, digamos, 2 milhões. Para começar, quanto mais vítimas uma doença faz, maior a pressão para que o governo financie pesquisas sobre ela.

Atualmente existem mais de 20 projetos de pesquisa sobre sociofobia financiados pelos Institutos Nacionais de Saúde (em 1986 havia apenas um).

Mas os dólares do governo representam apenas migalhas da torta das verbas. Diante de uma base de clientes de tamanho suficiente, a indústria

farmacêutica abrirá todos os caminhos. Entrevistado pelo jornal "The New York Times", Liebowitz, que também dá consultoria ao setor farmacêutico, afirmou que,

quando a incidência de sociofobia chegou a 8% ou 9% (em boa parte graças à definição ampliada que ele defendeu), as empresas de medicamentos demonstraram

um agudo interesse pela sina dos sociofóbicos.

Esse interesse com frequência se manifesta na forma de financiamento direto de pesquisas. Outras vezes as empresas canalizam dinheiro por intermédio de

entidades sem fins lucrativos como a APA -cujo site sobre sociofobia na Web é sustentado pela SmithKline- e a ADAA. A campanha "alérgico a gente" é só um dos

diversos projetos da ADAA patrocinados pela indústria farmacêutica.

Participação isenta

Três anos atrás, para facilitar esses empreendimentos conjuntos, a ADAA formou um comitê consultor com representantes de aproximadamente dez

laboratórios farmacêuticos. O comitê ajuda a associação a conceituar e financiar diversos projetos educativos. Ross, da ADAA, descreve a participação do setor

nessas iniciativas como "isenta, mas maravilhosamente producente".

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No entanto os fabricantes de remédios e a ADAA evitam indicar exatamente quem controla que partes desses projetos. Por exemplo, a campanha "alérgico

a gente" é orquestrada pela agência de publicidade da SmithKline, a Cohn & Wolfe Healthcare. Uma parte do trabalho foi feita sem remuneração. O restante,

segundo Ross, foi pago diretamente pela gigante farmacêutica. "Eu faço questão de não me envolver. Nós não queremos saber", ela explica.

Richard Koenig, da SmithKline, insiste, porém, que em projetos desse tipo a companhia simplesmente dá o dinheiro à ADAA, que o distribui como achar

melhor. Ross admite que, devido ao papel da ADAA como grupo de opinião, seus laços com a indústria farmacêutica exigem que ela "ande na linha". Sua política

básica é "nunca fazer nada que promova ou comercialize diretamente medicamentos e coisas relacionadas". Apesar disso, os fabricantes geralmente encontram

meios de deixar suas impressões nos projetos que apóiam.

Um folheto da ADAA sobre sociofobia de 1996, "patrocinado por uma verba educacional da SmithKline Beecham", ressalta que "em geral os medicamentos

são eficazes no tratamento da sociofobia e podem ser usados com ou sem outros tratamentos". Não se mencionam os altos índices de "recaída" ligados ao

tratamento com remédios (o número citado com mais frequência é 50%, seis meses após a interrupção da medicação). Embora não haja dados concretos para

comprovar que a terapia com uma combinação de drogas seja mais eficaz, essa é a opinião geral dos profissionais. "Há menor probabilidade de recaída quando a

pessoa já fez terapia de comportamento cognitivo", diz Ross, que é dona de um centro de tratamento para distúrbios da ansiedade. Uma pessoa que apenas toma

medicamentos não sabe enfrentar situações estressantes que surgem mais adiante, ela explica.

É claro que até a mais desinteressada campanha educativa beneficia os fabricantes de remédios. Cada vez mais a indústria vê como meta de marketing a

comercialização da doença, e não apenas do medicamento para tratá-la. Na "era dos antidepressivos", David Healy, diretor do departamento de medicina

psicológica da Universidade do País de Gales, afirma que "as empresas farmacêuticas evidentemente fabricam remédios, mas menos evidentemente fabricam

opiniões sobre as doenças. Não o fazem forjando novas idéias nos laboratórios farmacêuticos, mas reforçam certas opiniões".

Depressão comercializada

Healy lembra que na década de 60, para promover um antidepressivo, um laboratório "comercializou o conceito de depressão comprando e distribuindo 50

mil exemplares de um livro que ensinava a identificar e tratar a depressão em ambientes médicos". Se os médicos fossem sensibilizados para os indícios da doença,

aumentaria muito a probabilidade de os identificar nos pacientes. Um exemplo mais recente foi o financiamento, por laboratórios, do Dia Nacional de Contenção da

Sociofobia e Outros Distúrbios da Ansiedade. O evento anual -oficialmente patrocinado pela ADAA- cresceu e já conta com 1.600 pontos de avaliação. A ADAA

orgulha-se de que, num desses eventos recentes, 76% dos participantes relataram que "a ansiedade interfere em (suas) vidas cotidianas", e 51% foram

aconselhados a procurar tratamento.

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Em seu livro, Healy nota um padrão emergente no campo da medicina psiquiátrica: sabe-se da existência de um distúrbio mental relativamente raro,

descobre-se o efeito de uma droga psicotrópica sobre o problema e em seguida o índice de diagnósticos aumenta exponencialmente. Ele verifica esse aumento na

história da depressão, do distúrbio do pânico, do distúrbio obsessivo-compulsivo e da sociofobia. "Isso não quer dizer que os psiquiatras ou as empresas

farmacêuticas estejam fabricando doenças mentais", diz o doutor Carl Elliott, professor adjunto no Centro para Bioética da Universidade de Minnesota. "Elas

existem. Mas os limites são muito imprecisos. E, quando se pode ganhar dinheiro com uma droga psicoativa, subitamente surge um grande interesse em expandir

esses limites."

A maioria dos profissionais de saúde mental ressalta a enorme diferença entre a sociofobia e as inseguranças corriqueiras. "É mais que simples timidez"

tornou-se uma espécie de mantra na APA. Mas é difícil distinguir entre um caso "leve" de sociofobia e a timidez "normal". Ross sugere que uma pessoa sociofóbica

é tão dominada pela ansiedade que realmente evita certas situações. Mas não segundo o DMS-3-R (ou o DSM-4, nesse caso). Liebowitz, por sua vez, diz que tudo

existe num espectro. "É uma questão de definição. A sociofobia é uma timidez tão grave que causa verdadeira perturbação ou deixa a pessoa incapacitada, que

realmente interfere em sua vida ou a faz sentir-se arrasada."

Portanto a distinção entre timidez e doença mental é hoje uma questão do que cada indivíduo considera "perturbação intensa" e de quanto a percepção da

própria personalidade confere com a percepção do que deveria ser. A afirmação de que a sociofobia não é "apenas timidez" sugere uma linha divisória que

simplesmente não existe. No fundo, a maioria das pessoas sabe que a timidez -por mais perturbadora que seja- não é uma doença. Mas a sociofobia, estão sempre

nos advertindo, é algo completamente diferente. Não é normal. Se você sente isso, precisa de ajuda. Se 1 em cada 8 americanos, por exemplo, é vítima desse

distúrbio, a probabilidade de que você seja um deles é bem grande, não é? E, mesmo que não seja, talvez fosse ótimo receber uma ajuda farmacológica. A ciência

não pode determinar o ponto exato em que a timidez de uma pessoa é "normal" e não será afetada por drogas.

Busca de satisfação

Assim como o surgimento do Prozac levou muitos yuppies moderadamente ansiosos a experimentá-lo em busca de satisfação, não serão poucos os que

verão nas drogas contra a sociofobia um meio de melhorar a autoconfiança. A experiência do Prozac também mostra que não se pode necessariamente confiar que

os médicos avaliarão com cuidado cada indivíduo antes de rabiscar uma prescrição. Cada vez mais psiquiatras estão saindo de cena enquanto os vendedores de

medicamentos "educam" práticos e internos para identificar e tratar (isto é, medicar) os distúrbios mentais.

Nada disso pretende sugerir que algumas pessoas não estejam sofrendo. Existem os que têm um medo debilitante do intercâmbio social. Raramente saem

de casa. Não conseguem ir à escola ou ter um emprego. É impossível namorar. Mas que o sistema de saúde mental e as empresas farmacêuticas afirmem que 35

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milhões de americanos vagam num mar de timidez patológica ultrapassa os limites do plausível. É mais provável que essa "epidemia" seja uma nova etapa da

cruzada cultural para "medicinalizar" qualquer característica -física ou de comportamento- que não se enquadre nos falsos ideais criados pela cultura pop, pela

publicidade e pelas normas morais e políticas em mutação. E, quanto mais pessoas aceitarem esses ideais definidos culturalmente, menos tolerantes seremos com

as que não aceitem.

"Certamente existe um aspecto cultural muito relevante no fato de a timidez ser considerada vergonhosa", diz Elliott, da Universidade de Minnesota. "Os

americanos parecem considerar a timidez uma grande deficiência social. Escrevemos livros de auto-ajuda para superar a timidez, o que para meus amigos chineses

e japoneses é muito estranho. Nos Estados Unidos supõe-se de modo geral que ser extrovertido é uma tendência natural das pessoas." Realmente pode-se

questionar até que ponto essa epidemia nacional de sociofobia decorre da sensação crescente de que todos devem ser agressivos e impositivos, devem lutar pelo

estrelato. Esqueça a vida tranquila de contemplação. Para obter seus 15 minutos de fama, casais fazem fila para expor os aspectos mais degradantes ou banais de

suas vidas ao escrutínio público, por intermédio de programas de televisão ou da Internet. Temos cada vez menos admiração pelos que não agarram a vida pelo

pescoço. E, se tivermos que tratar um oitavo da população com drogas caras para colocá-la na linha, que seja.

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SUGESTÃO DE LEITURA

O PÓS-MODERNO

JEAN-FRANCOIS LYOTARD José Olympio Editora

RESUMO: Publicado na França ainda em 1979, Lyotard leva adiante o projeto de acelerar a decadência da idéia de verdade, pelo menos tal como ela é entendida por algumas correntes da filosofia moderna. Com o termo Pós-Moderno, pretende antes de tudo designar o conjunto das transformações ocorridas nas regras do jogo da produção cultural e que marcam o advento das sociedades pós-industriais. Sua preocupação básica não é a de avaliar todo o conjunto das modificações sofridas pela herança cultural deixada pelos modernos, mas sim a de avaliar as condições do saber produzido nas sociedades mais avançadas, muito particularmente as condições do saber científico e seu suporte tradicional, a universidade SUMÁRIO: O campo: o saber nas sociedades informatizadas: O problema: a legitimação: O método: os jogos da linguagem: A natureza do vínculo social: a alternativa moderna; a natureza do vínculo social: a perspectiva pós-moderna; pragmática do saber narrativo; pragmática do saber científico: A função narrativa e a legitimação do saber; Os relatos da legitimação do saber; A deslegitimação; A pesquisa e sua legitimação pelo desempenho; O ensino e sua legitimação pelo desempenho; A ciência pós-moderna como pesquisa de instabilidade; A legitimação pela paralogia Áreas de interesse: Literatura, Filosofia, História. Palavras-chave: Cultura; Mudança cultural.