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' e desenvolvimento Um processo sócio-histórico N.Cbam. 159.955.652 V996.Yo 4.ed. Autor: OLIVEIRA, Martha Kohl de. i. 652 Título: Vygotsky :aprendizado e desenvolvimento : um {o 11111111111111111111111111111111111111111111111111 PUC Minas - SG

Vygotsky - Aprendizado e Desenvolvimento - Martha Kohl de Oliveira _ eBook CCS

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  • ' A~rendizado e desenvolvimento Um processo scio-histrico

    N.Cbam. 159.955.652 V996.Yo 4.ed. Autor: OLIVEIRA, Martha Kohl de.

    i.652 Ttulo: Vygotsky :aprendizado e desenvolvimento : um

    { o 11111111111111111111111111111111111111111111111111 ~~9:~3509 PUC Minas - SG

  • Projeto editorial Lidia Chaib

    Edio Heloisa Pimentel

    Assistncia editorial Mauro Tadeu Aristides

    Preparao Adalberto Luis de Oliveira

    . Reviso Luiz Guasco e Lucia na Campos de Carvalho

    Coordenao de arte Alice Reiko Haga, Maria do Cu Pires Passuello, Edson

    Haruo Toyota e Sueli R. Loga Programao visual de capa Luiz Trigo e Ta h Kim Chiang

    Ilustraes de miolo Luiz Trigo

    Fotos Laureni Fochetto

    editora scipione MATRIZ

    Praa Carlos Gomes, 46 01501-040 So Paulo SP www.scipione.com.br

    DIVULGAO Rua Fagundes, 121

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    Expediente

    Direo Luiz Esteves Sallum

    Gerncia editorial Aurelio Gonalves Filho

    Chefia de reviso Miriam de Carvalho Abes Coordenao geral de arte

    Srgio Yutaka Suwaki Edio de arte

    Didier D. C. Dias de Moraes Coordenao de produo

    Jos Antonio Ferraz Gerncia de marketing

    Maria Jos Rosolino Gerncia comercial

    Dorival Polimeno Sobrinho

    2002 ISBN 85-262-1936-7

    4 EDIO (8 impresso)

    Composio e arte-final Dia1te Editora e Come{ciaJ de L~vros

    IMPRESSO E ACABAMENTO Yangraf Fone/Fax: 218-1788

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    OlHe~ra, Martha Kohl de

    pro~!:::~~~~c ~0:~::;~~:::0 I e M:~i~:"~!~~-::t~l ~~~~:,.,.. --so Paulo: Sc1ptooe, 1997. --!Pensamento e ao

    no magtstrtol

    1. Aprendizolgem 2. CrtRnas- Desenvolvu .. ento 3. Educao 4. Vygotsky, Lev Semenovtch, 1896-1934

    I. Titulo. rr. srte.

    C00-370.112

    lndlcea para catalogo temat1co

    1. Pedaqc>ota vyg.otst. nna : Educa..o 370.112

  • Ao Fernando, pelas transformaes em mim

    3

  • SUMRIO

    PREFCIO- por ]aan Valsiner .................... 6 CRONOLOGIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9 INTRODUO ......................................... 13 1. HISTRIA PESSOAL E HISTRIA INTELEC-

    TUAL.................................................. 17 2. A MEDIAO SIMBLICA ..................... 25

    # O uso de instrumentos . .. .. .. . .. . .. .. .. .. .. . . .. 27 # O uso de signos . .. .. . .. . .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. . .. 30 # Os sistemas simblicos e o processo de interna-

    lizao .............................................. 34 3. PENSAMENTO E LINGUAGEM .. . .. .. .. .. . .. . 41

    # O desenvolvimento do pensamento e da lin-guagem ............................................ 43

    # O significado das palavras . .. .. .. .. . .. .. .. .. .. . 48 # O discurso interior e a fala egocntrica . . . . . 51

    4. DESENVOLVIMENTO E APRENDIZADO . .. 55 # O conceito de zona de desenvolvimento pro-

    ximal ............................................... 58 # O papel da interveno pedaggica . . . . . . . . . . 61 # Brinquedo e desenvolvimento . . . . . . . . . . . . . . . . . 65 # A evoluo da escrita na criana . . . . . . . . . . . . . . 68 # Percepo, ateno e memria . .. .. . .. .. .. .. .. 72

    5. O BIOLGICO E O CULTURAL: OS DESDO-BRAMENTOS DO PENSAMENTO DE VY-GOTSKY ............................................. 81 # A base biolgica do funcionamento psicolgi-

    co: a neuropsicologia de Luria . . . . . . . . . . . . . . . . 82 # Os fundamentos culturais e sociais do desen-

    volviJnento cognitivo: a pesquisa intercultural na Asta Central................................... 89

    # A teoria da atividade de Leontiev . . . . . . . . . . . . 96 CONCLUSO ........................................... 101 BIBLIOGRAFIA ......................................... 106 Obras de Vygotsky . .. .. .. .. .. . .. .. . .. .. .. .. . .. .. .. . .. 106 Obras de outros autores .. . . .. . . .. .. . . . . . .. .. .. . .. .. 106 #Obras da autora ...................................... 108

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  • PREFCIO ]AAN VALSINER
  • H muito boas razes para o interesse que temos hoje em dia pela obra de Vygotsky. Sua obra centrou-se, con-sistentemente, na idia da emergncia de novas formas na psych humana sob orientao social. Essa perspecti-va tanto angina/ quanto extremamente pertinente pa-ra as cincias sociais de nossos dias. A maior parte da psi-cologia e das cincias educacionais contemporneas es-to em estagnao t-?evido perspectiva esttica que her-daram da histna das cincias sociais do ocidente nos l-timos sculos. As cincias sociais tendem a encarar a so-ciedade e os seres humanos que a constituem como enti-dades relativamente estticas e no como sistemas com-plexos constantemente submetidos a processos de desen-volvimento. Contudo, nossa realzdade cotidiana oferece-nos, ao contrn, evidncias dessa mudana constante: as cn'tmas se desenvolvem, muitas vezes, de maneira im-previsvel para pais, professores e polticos - todos eles, ou quase todos, tentando fazer com que a gerao mais jovem aprove e seja fiel s vises de mundo que possuem. Porm, como mostra a histna de maneira bastante no-tvel, seus esforos so em grande medida em vo - a gerao mais nova constri seu prpno modo de com-preender o mundo, que apenas parczalmente acompanha o de seus pais, divergindo da compreenso destes de ma-neira sz'gnificativamente inovadora.

    Analogamente, nenhuma cultura ou sociedade or-ganizada de modo imutvel e esttico. Pode parecer que dada sociedade permaneceu por dcadas numa situao de status quo, e somos tentados a descrev-la como est-vel. E a, subitamente, numa sociedade assim aparente-mente bem organizada, tumultuam-se os processos so-czais, e uma nova forma de organizao soczal emerge so-bre as runas das formas soct'ais passadas. Essas novas for-mas podem se tornar temporanamente estveis mas, a seguir, novamente se desintegraro e se reorganizaro. A gerao mais nova que desabrocha - que pode ter ser-vzdo de instrumento para ocasionar a mudana soczal con-creta- construir novas utopzas soczais e procurar viver de conformidade com elas. Esse empenho otimista pode ser efmero - em pouco tempo se descobn"r que essas utopzas no podem ser integralmente implementadas. A total complexidade da vida humana plena de incerte-zas, acontecimentos inesperados, felicidade e sofn'men-to. E em mez a toda essa realidade pitoresca, mas am-plamente su17'ealista, os indivduos inventam coisas di-ferentes, envolvem-se em disputas constantemente no-vas e por vezes acaloradas, matam-se uns aos outros em

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  • nome da "verdade" ou da "ptna ", reconctlzam-se bem co-Jno desenvolvem novas potencialidades, e perdem an-tigas habzlzdades. Nosso mundo real est em permanen-te movimento e transformao. Notvel, em si e por si, que ns, como seres humanos comuns, se;amos capa-zes de suport-lo -pelo menos na maior parte do tempo.

    Essa natureza fluida dos mundos soctal e psicolgico cna uma necesstdade premente de que todas as cinctas soctais venham a on.entar-se para o estudo de processos de desenvolvimento- de pessoas (na psicologta), de ins-tituies soczais (na sociologza) e de culturas em geral (na antropologta cultural). Desnecessn acrescentar que as cinctas soczais apenas comeam a compreender as com-plexidades do desenvolvimento em nossos tempos. Da que o voltar-se para as idtas de Vygotsky fundamenta-se na necessidade concreta de descobnr como conceituar o desenvolvimento. Vygotsky foi um dos poucos estudio-sos da primetra metade deste sculo que insistiu, de ma-nezra persistente e firme, em assumtr uma perspectiva cen-trada no desenvolvimento a respeito de todo tema que abordou. Essa nfose est bem transmitzda neste livro. Em vez de um discurso avalzativo sobre a obra de um ''g-nio'' (como repetidas vezex seus discpulos na Rssta e nos Estados Unidos tm-se refendo a Vygotsky), a auto-ra apresenta as idzas de Vygotsky e suas aplicaes de modo conciso, acessvel ao grande pblico e com tlustra-es pertinentes. A lgica da abordagem de Vygotsky, sobre a gnese da psych humana em seu contexto histn.co-cultural, centrada no desenvolvimento, emer-ge passo a passo das pginas deste livro, e constitui um verdadezro tnbuto obra global de um homem cuja fas-cinao por Hamlet era mais do que simples tpico para anlise literna. O gnio de Vygotsky pode ter estado em sua perseverana na tarefa de resolver o problema do de-senvolvimento - ainda longe de estar resolvzdo neste nos-so final de sculo, mas que precisa ser resolvido. Parais-so, este livro oferece nco matenal para ultenr reflexo e oxal leve muitos leitores a oferecer novas solues a esse momentoso problema.

    Traduo de Llio Loureno de Oliveira

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  • Exemplos de cartazes soviticos sobre eventos culturais da poca de Vygotsky.

    CRONOLOGIA

    1896 Nasce Lev Semenovich Vygotsky, em 17 de novem-bro, na cidade de Orsha, em Bielarus.

    1905 Revoluo popular contra o czar. Acentua-se a cri-se social na Rssia.

    1911 Ingressa pela primeira vez numa instituio esco-lar, aps anos de instruo com tutores particulares.

    1913 Forma-se no curso secundn. Ingressa na Universidade de Moscou, no curso de Direito.

    1914 Passa a freqentar aulas de histria e de filosofia na Universidade Popular de Shanyavskii.

    1916 Escreve ''A tragdia de Hamlet, prncipe da Di-namamz' ', como trabalho de fim de curso na Uni-versidade.

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  • 1917 Forma-se em Direito na Universidade de Moscou. Revoluo Russa. criado o Conselho dos Comis-srios do Povo, presidido por Lnin.

    1917-1923 Vive em Gomei, lecionando literatura e psi-cologia.

    1918 Abre, com o amigo Semyon Dobkin e o primo Da-vid Vygotsky, uma pequena editora de obras de li-teratura (fechada pouco tempo depois, devido a uma crise de fornecimento de papel na Rssia).

    1920 Toma conhecimento de que est tuberculoso. 1922 Centralizao do poder. Stlin nomeado

    secretrio-geral do Partido Comunista. Constitui-o da URSS.

    1924 Faz uma conferncia no li Congresso de Psiconeu-rologia de Leningrado, marco importante em sua histria profissional. Muda-se para Moscou, a con-vite de Kornilov, para trabalhar no Instituto de Psi-cologia de Moscou. Morre Lnin. Stlin assume o poder.

    1925 Escreve o livro Psicologia da arte (publicado na Rs-sia em 1965). Viaja para o exterior pela primeira e nica vez em sua vida. Comea a organizar o Laboratrio de Psicologia para Cncmas Deficientes (transformado, em 1929, no Instituto de Estudos das Dejincias e, aps sua morte, no Instituto Cientfico de Pesquisa sobre De-jincias da Academia de Cincias Pedaggicas).

    1925-1939 Perodo em que, antes de 1962, so publica-dos trabalhos seus (sete artigos diversos) em publi-caes do mundo ocidental.

    1928 Processo de modernizao da URSS: industrializa-o, reforma agrria, alfabetizao.

    1929 Incio da ditadura stalinista. 1934 Morre de tuberculose, em 11 de junho, aos 37 anos

    de idade. Publicao do livro Pensamento e linguagem na URSS.

    1936-1937 Perodo mais violento do regime stalinista.

    1936-1956 As obras de Vygotsky deixam de ser publica-das na URSS, por motivos polticos.

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  • 1953 Morre Stlin; Kruchev sobe ao poder.

    1956 Kruchev d incio ao processo de ''desestaliniza-o '' da URSS.

    1962 Publicao do livro Pensamento e linguagem nos Estados Unidos.

    1982-1984 Edio das obras completas de Vygotsky na URSS.

    1984 Publicao da coletnea A formao social da mente no Brasil.

    1987 Publicao de Pensamento e linguagem ~o Brastf. 1988 Publicao de ''Aprendizagem e desenvolvimen-

    to intelectual na idade escolar'' na coletnea Lin-guagem, desenvolvimento e aprendizagem no Brasil.

  • Introduo

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  • Quando vemos, hoj~, a crescen~e pen~trao das idias de Vygotsky nas areas da ps1colog1a e da educao e, pnncipalmente, quando tomamos contato com o con-tedo de seu pensamento, podemos imagin-lo bastan-te prximo de ns, no tempo e no espao. Esse terico sovitico, entretanto, nasceu ainda no sculo passado, ten-do vivido apenas at a dcada de 30 de nosso sculo, nu-ma situao social, poltica e cientfica completamente diferente da nossa.

    O momento histrico vivido por Vygotsky, na Rssia ps-Revoluo, contribuiu para definir a tarefa intelec-tual a que se dedicou, juntamente com seus colaborado-res: a tentativa de reunir, num mesmo modelo explicati-vo, tanto os mecanismos cerebrais subjacentes ao funcio-namento psicolgico, como o desenvolvimento do indi-vduo e da espcie humana, ao longo de um processo scio-histrico. Esse objetivo terico implica uma abor-dagem qualitativa, interdisciplinar e orientada para os pro-cessos de desenvolvimento do ser humano. O objetivo terico e a abordagem utilizada so de extrema contem-poraneidade, o que provavelmente explica o recente e in-tenso interesse por seu trabalho, no apenas no Brasil, mas em muitos outros pases.

    Vivemos hoje um momento em que as cincias em ge-ral, e as cincias humanas em particular, tendem a bus-car reas de interseco, formas de integrar o conhecimen-to acumulado, de modo a alcanar uma compreenso mais completa de seus objetos. A interdisciplinaridade e a abor-dagem qualitativa tm, pois, forte apelo para o pensa-mento contemporneo.

    Do mesmo modo, a idia do ser humano como imer-so num contexto histrico e a nfase em seus processos de transformao tambm so proposies muito impor-tantes no iderio contemporneo.

    Embora, atualmente, o trabalho de Vygotsky seja bas-tante divulgado e valorizado no ocidente, permaneceu quase que completamente ignorado at 1962, quando seu livro Pensamento e linguagem foi publicado pela primeira vez nos Estados Unidos. Ainda que alguns artigos seus j tivessem sido publicados anteriormente em ingls, suas idias no tinham sido apreciadas e difundidas fora da Unio Sovitica. Isso deveu-se, em parte, situao de isolamento em que a Unio Sovitica se colocava em relao aos centros de produo cientfica europeus e norte-americanos, por meio de barreiras polticas, cultu-rais e lingsticas. Deveu-se tambm a mecanismos in-

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  • O livro A formao social da mente, editado nos Estados Uni-dos em 1978 por um grupo de pesquisadores americanos, inclui uma listagem completa das obras de Vygotsky publicadas na Unio Sovitica e em pases de lngua in-glesa at essa data.

    Sobre o trabalho de Vygotsky, com exceo de algumas teses que o utzfizam como referncia cen-tral, existe no Brasil apenas uma coletnea, recentemente publica-das por um grupo de pesquisado-res da Universidade de Campinas, (6).

    ternos da sociedade sovitica: entre 1936 e 1956, aproxi-madamente, a publicao das obras de Vygotsky, junta-mente com a de muitos outros autores, foi suspensa pela censura violenta do regime stalinista.

    Atualmente, a publicao de textos escritos por Vygotsky e seus colaboradores, bem como de textos so-bre seu trabalho, est em rpida expanso nos pases oci-dentais. No Brasil, onde as tradues tm sido feitas a partir das edies norte-americanas, foram publicados ape-nas dois livros de Vygotsky: A formao social da mente e Pensamento e linguagem. Ji tambm um artigo seu, denominado ''Aprendizagem e desenvolvimento intelec-tual na idade escolar'', na coletnea Linguagem, desen-volvimento e aprendizagem.

    A discusso do pensamento de Vygotsky na rea da educao e da psicologia nos remete a uma reflexo so-bre as relaes entre ele e Piaget. No Brasil, Piaget tem sido a referncia terica bsica nessa rea e a penetrao das idias de Vygotsky sugere, inevitavelmente, esse con-fronto. Esses dois tericos; coincidentemente, nasceram no mesmo ano (1896), mas Vygotsky teve uma vida muito mais curta: Piaget faleceu quase cinqenta anos depois de Vygotsky. Vygotsky chegou a ler e discutir, em seus textos, os dois primeiros trabalhos de Piaget (A lingua-gem e o pensamento da criana, de 1923, e O raciocnio na criana, de 1924). Piaget, por outro lado, s foi to-mar conhecimento da obra de Vygotsky aproximadamente 25 anos depois de sua morte, tendo escrito o texto "Co-mentrios sobre as observaes crticas de Vygotsky'', co-mo apndice edio norte-americana de 1962 do livro Pensamento e linguagem, de Vygotsky. Ao longo dos ca-ptulos que se seguem, comentaremos algumas conver-gncias e divergncias no pensamento desses autores, con-forme sua relao com os temas especficos que estiver-mos abordando.

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  • Histria pessoal e histria intelectual

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  • L ev Semenovich Vygotsky nasceu na cidade de Orsha, prxima a Mensk, capital de Bielarus, pas da hoje extinta Unio Sovitica, em 17 de novembro de 1896.

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    Moscou

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  • Semyon Dobkin era amigo de in-fncia de Vygotsky e de sua fam-lia. Algumas reminiscncias suas esto registradas no livro One is not Bom a Personality: profiles of Soviet Education Psychologists (No se nasce uma personalida-de: perfis de psiclogos da edu-cao soviticos), (11), provavel-mente a pn.ncipal fonte de infor-maes disponvel sobre a vida pessoal de Vygotsky.

    Intelectuais da poca de Vygostky

    O chamado curso de Direito na Universidade de Moscou, na po-ca, era um curso amplo na rea de cincias humanas, incluindo o que atualmente correspondena a Direito e Literatura. Seu trabalho de fim de curso na universidade foi uma anlise do Hamlet, de Shakespeare. Essa anle foi ma tarde incorporada, sob forma mo-dificada, a seu livro Psychology of Art (Psicologia da arte) (1), escn.to em 1925.

    filhos. Segundo Semyon Dobkin, a famlia de Vygotsky era "das mais cultas da cidade". A casa tinha uma at-mosfera intelectualizada, onde pais e filhos debatiam sis-tematicamente sobre diversos assuntos. A biblioteca do pai estava sempre disposio dos filhos e de seus ami-gos para o estudo individual e as reunies de grupos.

    Crescendo nesse ambiente de grande estimulao in-telectual, desde cedo Vygotsky interessou-se pelo estudo e pela reflexo sobre vrias reas do conhecimento. Or-ganizava grupos de estudos com seus amigos, usava muito a biblioteca pblica e aprendeu diversas lnguas, inclusi-ve o esperanto. Gostava muito, tambm, de ler obras de literatura, poesia e teatro, atividade qual dedicou-sedu-rante toda a vida.

    Vladimir Maiakovski (18931930}

    Sergei Eisenstein (1898-1948}

    A maior parte de sua educao formal no foi realiza-da na escola, mas sim em casa, por meio de tutores par-ticulares. Apenas aos 15 anos que ingressou num col-gio privado, onde freqentou os dois ltimos anos do cur-so secundrio, formando-se em 1913. Ingressou, ento, na Universidade de Moscou, fazendo o curso de Direito e formando-se em 1917. Ao mesmo tempo em que se-guia sua carreira universitria principal, freqentou cur-sos de histria e filosofia na Universidade Popular de Shanyavskii. Embora no tenha recebido nenhum ttulo acadmico dessa universidade, a aprofundou seus estu-dos em psicologia, filosofia e literatura, o que foi de gran-de valia em sua vida profissional posterior. Anos mais tar-de, devido a seu interesse em trabalhar com problemas neurolgicos como forma de compreender o funcionamen-to psicolgico do homem, estudou tambm medicina, parte em Moscou e parte em Kharkov.

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  • Do mesmo modo que sua formao acadmica, sua ati-vidade profissional foi muito diversificada. Trabalhou em diferentes localidades dentro da ex-Unio Sovitica, tendo sado do pas uma nica vez, em 192 5, para uma viagem de trabalho a outros pases da Europa. Foi professor e pes-quisador nas reas de psicologia, pedagogia, filosofia, li-teratura, deficincia fsica e mental, atuando em diver-sas instituies de ensino e pesquisa, ao mesmo tempo em que lia, escrevia e dava conferncias.

    Vygotsky trabalhou, tambm, na rea chamada ''pe-dologia'' (cincia da criana, que integra os aspectos bio-lgicos, psicolgicos e antropolgicos). Ele considerava essa disciplina como sendo a cincia bsica do desenvolvimento humano, uma sntese das diferentes disciplinas que es-tudam a criana. Na verdade, ' 'os aspectos da psicologia r.1,

  • Seus dois nicos livros publicados no Brasil no foram escn"tos como livros: so o resultado do agrupa-mento de vrios textos, escn"tos em dtferentes momentos.

    Esta uma das dzferenas impor-tantes entre a produo de Vygotsky e a de Piaget: Piaget, em sua vzda quase cinqenta anos mais longa, construiu uma teona bastante articulada e nos deixou informaes precisas sobre seus trabalhos de investigao.

    No Braszl, ante.r mesmo de ter seu nome associado ao de Vygotsky, Luna j era um autor bastante co-nhecido, particularmente nas reas de neurologza e fonoaudio-logia, com diversos trabalhos pu-blicados em portugus. Isso se de-ve a sua expressiva produo em neuropsicologt'a, espectalmente em distrbios da linguagem, e tambm ao foto de que, tendo vi-vido at 1977, teve sua obra bas-tante dtfundida no ocidente. Leontzev, por sua vez, teve uma produo escn'ta bem menor que a de Luna e menor repercusso no 'Brasil e em outros pases do octdente.

    LURIA, p. 56 (14).

    VAN DER VEER e VALSINER, (28).

    ca literria_, passando por deficincia, linguagem, psico-logia, educao e questes tericas e metodolgicas rela-tivas s cincias humanas.

    Sua morte prematura (37 anos), juntamente com o enorme volume de sua produo intelectual, marcou, de certa forma, o estilo de seus textos escritos: so textos den-sos, cheios de idias, numa mistura de reflexes filosficas, imagens literrias, proposies gerais e dados de pesqui-sa que exemplificam essas proposies gerais. Tambm devido a sua enfermidade, muitos dos textos de Vygotsky no foram originalmente produzidos na forma escrita; fo-ram criados oralmente e ditados a outra pessoa que os copiava, ou anotados taquigraficamente durante suas aulas ou conferncias. Esse fato tambm tem clara influncia no estilo dos textos de Vygotsky.

    Sua produo escrita no chega a constituir um siste-ma explicativo completo, articulado, do qual pudsse-mos extrair uma ''teoria vygotskiana'' bem estruturada. No constituda, tampouco, de relatos detalhados dos seus trabalhos de investigao cientfica, nos quais o lei-tor pudesse obter informaes precisas sobre seus proce-dimentos e resultados de pesquisa. Parecem ser, justa-mente, textos' 'jovens'', escritos com entusiasmo e pres-sa, repletos de idias fecundas que precisariam ser cana-lizadas num programa de trabalho a longo prazo para que pudessem ser explorados em toda a sua riqueza ..

    Esse programa de trabalho existiu, de fato, e as idias de Vygotsky no se limitaram a uma elaborao indivi-dual. Ao contrrio, multiplicaram-se e desenvolveram-se na obra de seus colaboradores, dos quais os mais co-nhecidos entre ns so Alexander Romanovich Luria e Ale-xei Nikolaievich Leontiev.

    A atuao intelectual de Vygotsky parece ter sido muito marcante para as pessoas a seu redor. Ele era um orador brilhante, que encantava a platia que o ouvia. Entre seus alunos e colegas havia muita admirao pelas suas idias, que foram consideradas pontos de partida para elabora-es tericas e projetos de pesquisa posteriores. Luria afir-mava, repetidas vezes, que Vygotsky foi um indivduo muito especial ("1:1m gnio"), que lhe ajudou a alargar e aprofundar a compreenso de-sua tarefa enquanto pes-

    e> quisador: ''No final dos anos 20 o futuro percurso de mi-nha carreira j estava estabelecido. Eu dedicaria meus anos subseqentes ao desenvolvimento dos vrios aspectos do

    e> sistema psicolgico de Vygotsky''. As palavras de um alu: no de Vygotsky tambm evidenciam essa admirao: ''E

    21

  • difcil determinar o que exatamente nos atraa nas expo-sies de Lev Semenovich. Alm de seu contedo pro-fundo e interessante, ns ficvamos fascinados pela sua sinceridade genuna, pelo contnuo esforo em progre-dir no seu raciocnio, com o qual cativava seus ouvintes, [e] pela bela expresso literria de seu pensamento. O prprio som de sua suave voz de bartono, flexvel e rica em entonaes, produzia uma espcie de encanto estti-co. A gente queria muito entrar no efeito hipnotizador da exposio dele e era difcil abster-se do sentimento in-voluntrio de frustrao quando ela acabava''.

    Trecho de carta de Vygotsky a cinco de seus discpulos e colaboradores, Bozhovich, Levina, Morozova, Slavina e Zaporozhec, datada de 15 de abril de 1929.

    "Tive um sentimento de enorme surpresa quando A. R. [Luria], em sua poca, foi o pri-meiro a trilhar esse caminho e quando A. N. [Leontiev] o acompanhou. Agora, junta-se sur-presa a alegria pelo fato de que, pelos traos que se revelam, o grande caminho no visvel ape-nas para mim, nem apenas para ns trs, mas tambm para outras cinco pessoas. O sentimen-to da vastido e do ilimitado do trabalho psico-lgico contemporneo (vivemos um penado de cataclismas geolgicos na psicologt'a) o senti-

    mento que predomina em mim. Isto, porm, toma a situao daqueles poucos que seguem a nova linha da cinct'a (particularmente da cin-cia sobre o homem), infinitamente responsvel, sria no mais alto grau, quase trgico (no no senttdo pattico dessa palavra, mas em seu sen-ttdo maior e mais verdadeiro). preciso, por mil vezes, pr-se prova, fiscalizar-se, enfrentar pe-nosa experincia antes de decidir, pois esse um caminho muito dificil que requer a pessoa de maneira integral". (28)

    Vygotsky, Luria e Leontiev faziam parte de um grupo de jovens intelectuais da Rssia ps-Revoluo, que tra-balhava num clima de grande idealismo e efervescncia intelectual. Baseados na crena da emergncia de uma nova sociedade, seu objetivo mais amplo era a busca do "novo", de uma ligao entre a produo cientfica e o regime social recm-implantado. Mais especificamente, buscavam a construo de uma ''nova psicologia'', que consistisse numa sntese entre duas fortes tendncias pre-sentes na psicologia do incio do sculo. De um lado ha-via a psicologia como cincia natural, que procurava explicar processos elementares sensoriais e reflexos, toman-do o homem basicamente como corpo. Essa tendncia re-laciona-se com a psicologia experimental, que procura aproximar seus mtodos daqueles das outras cincias ex-perimentais (fsica, qumica, etc.), preocupando-se com a quantificao de fenmenos observveis e com a sub-diviso dos processos complexos em partes menores, mais facilmente analisveis. De outro lado havia a psicologia como cincia mental, que descrevia as propriedades dos processos psicolgicos superiores, tornando o homem co-

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  • Processos psicolgicos superiores so aqueles que caracterizam o funcionamento psicolgico tipica-mente hZ

    Vygotsky fez uma conferncta no li Congresso de Psiconeurologta em Leningrado (atual So Peters-burgo), em 1924, sobre as rela-es entre os reflexos condiciona-dos e o comportamento conscien-te do homem, onde apresenta uma proposta de sntese entre processos elementares e conscin-cia. Foi essa proposta que levou Kornilov a convid-lo para traba-lhar no Instituto de Psicologta de Moscou e iniciar, assim, sua par-ticipao no projeto de constru-o da "nova psicologta".

    K.N. Kornilov (1879-1957).

    mo mente, consoencia, esprito. Essa segunda tendn-cia coloca a psicologia como sendo mais prxima da filo-sofia e das cincias humanas, com uma abordagem des-critiva, subjetiva e dirigida a fenmenos globais, sem preo-cupao com a anlise desses fenmenos em componen-tes mais simples.

    Enquanto a psicologia de tipo experimental deixava de abordar as funes psicolgicas mais complexas do ser humano, a psicologia mentalista no chegava a produzir descries desses processos complexos em termos aceit-veis para a cincia. Foi justamente na tentativa de supe-rar essa crise da psicologia que Vygotsky e seus colabora-dores buscaram uma abordagem alternativa, que possi-bilitasse uma sntese entre as duas abordagens predomi-nantes naquele momento.

    importante destacar qual o significado de sntese para Vygotsky, pois essa uma idia constantemente presen-te em suas colocaes e central para sua forma de com-preender os processos psicolgicos. A sntese de dois ele-mentos no a simples soma ou justaposio desses ele-mentos, mas a emergncia de algo novo, anteriormente inexistente. Esse componente novo no estava presente nos elementos iniciais: foi tornado possvel pela intera-o entre esses elementos, num processo de transforma-o que gera novos fenmenos. Assim, a abordagem que busca uma sntese para a psicologia integra, numa mes-ma perspectiva, o homem enquanto corpo e mente, en-quanto ser biolgico e ser social, enquanto membro da espcie humana e participante de um processo histrico.

    Essa nova abordagem para a psicologia fica explcita em trs idias centrais que podemos considerar como sen-do os "pilares" bsicos do pensamento de Vygotsky: as funoes psicolgicas tm um suporte biolgico pois so produtos da atividade cerebral; o funcionamento psicolgico fundamenta-se nas rela-es sociais entre o indivduo e o mundo exterior, as quais desenvolvem-se num pro~esso histrico; a relao homem I mundo uma relao mediada por sistemas simblicos.

    Essas idias sero brevemente delineadas a seguir, e dis-cutidas em maior detalhe ao longo dos prximos captulos.

    A postulao de que o crebro, como o rgo mate-rial, a base biolgica do funcionamento psicolgico to-ca um dos extremos da psicologia humana: o homem, enquanto espcie biolgica, possui uma existncia ma-

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  • teria! que define limites e possibilidades para o seu de-senvolvimento.~O crebro, no entanto, no um sistema de funes fixas e imutveis, mas um sistema aberto, de grande plasticidade, cuja estrutura e modos de funcio-namento so moldados ao longo da histria da espcie e do desenvolvimento individual.! Dadas as imensas pos-sibilidades de realizao humana, essa plasticidade es-sencial: o crebro pode servir a novas funes, criadas na histria do homem, sem que sejam necessrias transfor-maes no rgo fsico. Essa idia da grande flexibilida-de cerebral no supe um caos inicial, mas sim a presena de uma estrutura bsica estabelecida ao longo da evolu-o da espcie, que cada um de seus membros traz con-sigo ao nascer.

    A concepo de uma base material em desenvolvimento ao longo da vida do indivduo e da espcie est direta-mente ligada ao segundo pressuposto do trabalho de Vygotsky, que toca o outro extremo do funcionamento humano: o homem transforma-se de biolgico em scio-histrico, num processo em que a cultura parte essen-cial da constituio da natureza humana. No podemos pensar o desenvolvimento psicolgico como um proces-so abstrato, descontextualizado, universal: o funciona-mento psicolgico, particularmente no que se refere s funes psicolgicas superiores, tipicamente humanas, est baseado fortemente nos modos culturalmente constru-dos de ordenar o real.

    Um conceito central para compreendermos o funda-mento scio-histrico do funcionamento psicolgico o conceito de mediao, que nos remete ao terceiro pres-suposto vygotskiano: a relao do homem com o mundo no uma relao direta, mas uma relao mediada, sen-do os sistemas simblicos os elementos intermedirios en-tre o sujeito e o mundo. O captulo 2, a seguir, inteira-mente dedicado complexa questo da mediao sim-blica.

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    Plasticidade a qualidade daqui lo que "plstico', isto , que pode ser moldado pela ao de elementos externos.

  • A mediao simblica

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  • Vyg~tsky dedicou-se, principalmente.' ao/ e~tudo da-qudo que chamamos de funes ps1colog1eas supe-riores ou processos mentais superiores. Isto , interessou-se por compreender os mecanismos psicolgicos mais sofisti-cados, mais complexos, que so tpicos do ser humano e que envolvem o controle consciente do comportamen-to, a ao intencional e a liberdade do indivduo em re-lao s caractersticas do momento e do espao presentes.

    O ser humano tem a possibilidade de pensar em ob-jetos ausentes, imaginar eventos nunca vividos, planejar aes a serem realizadas em momentos posteriores. Esse tipo de atividade psicolgica considerada ''superior'' na medida em que se diferencia de mecanismos mais ele-mentares tais como aes reflexas (a suco o seio ma-terno pelo beb, por exemplo), reaes automatizadas (o movimento da cabea na direo de um som forte repen-tino, por exemplo) ou processos de associao simples en-tre eventos (o ato de evitar o contato da mo com acha-ma de uma vela, por exemplo).

    Um exemplo interessante ilustra a diferena entre pro-cessos elementares e processos superiores: possvel en-sinar um animal a acender a luz num quarto escuro. Mas o animal no seria capaz de, voluntariamente, deixar de realizar o gesto aprendido porque v uma pessoa dor-mindo no quarto. Esse comportamento de tomada de de-ciso a partir de uma informao nova um comporta-mento superior, tipicamente humano. O mais importante desse tipo de comportamento o seu carter voluntrio, intencional.

    Um conceito central para a compreenso das concep-es vygotskianas sobre o funcionamento psicolgico o conceito de mediao. Mediao, em termos genricos, o processo de interveno de um elemento intermedi-rio numa relao; a relao deixa, ento, de ser direta e passa a ser mediada por esse elemento. Quando um in-divduo aproxima sua mo da chama de uma vela e a re-tira rapidamente ao sentir dor, est estabelecida uma re-lao direta entre o calor da chama e a retirada da mo. Se, no entanto, o indivduo retirar a mo quando ape-nas sentir o calor e lembrar-se da dor sentida em outra ocasio, a relao entre a chama da vela e a retirada da mo estar mediada pela lembrana da experincia an-terior. Se, em outro caso, o indivduo retirar a mo quan-do algum lhe disser que pode se queimar, a relao es-tar mediada pela interveno dessa outra pessoa.

    " [ ... ] o processo simples estmulo-resposta substi-

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    Esse modo de funcionamento psi-colgico, tpico da espcie huma-na, no est presente no indiv-duo desde o seu nascimento. Co-mo veremos nos captulos que se seguem, as atividades psicolgi-cas mais sofisticadas so frutos de um processo de desenvolvimen-to que envolve a interao do or-ganismo individual com o meio fsico e social em que vive. A aquisio da linguagem definir um salto qualitativo no desenvol-vimento do ser humano.

  • s R X

    estmulo resposta elo intermedirio ou elemento mediador

    tudo por um ato complexo, mediado, que representa-mos da seguinte forma:

    S --------------------R ~/ Nesse novo processo o impulso direto para reagir inibi-do, e incorporado um estmulo auxiliar que facilita a complementao da operao por meios indiretos.'' No exemplo da vela, o estmulo (S) seria o calor da chama e a resposta (R) seria a retirada da mo. Numa relao direta entre o indivduo e a vela, necessrio que o calor provoque dor para que a mo seja retirada. A lembrana da dor (isto , algum tipo de representao mental do efeito do calor da chama) ou o aviso de outra pessoa so-bre o risco da queimadura seriam elementos mediado-res, intermedirios entre o estmulo e a resposta. A pre-sena de elementos mediadores introduz um elo a mais nas relaes organismo/meio, tornando-as mais comple-xas. Ao longo do desenvolvimento do indivduo as rela-es mediadas passam a predominar sobre as relaes diretas.

    Vygotsky trabalha, ento, com a noo de que a rela-o do homem com o mundo no uma relao direta, mas, fundamentalmente, uma relao mediada. As fun-es psicolgicas superiores apresentam uma estrutura tal que entre o homem e o mundo real existem mediado-res, ferramentas auxiliares da atividade humana.

    Vygotsky distinguiu dois tipos de elementos media-dores: os instrumentos e o& signos. Embora exista uma analogia entre esses dois tipos de mediadores, eles tm caractersticas bastante diferentes e merecem ser tratados separadamente.

    O uso de instrumentos

    A importncia dos instrumentos na atividade huma-na, para Vygotsky, tem clara ligao com sua filiao te-rica aos postulados marxistas. Vygotsky busca compreen-der as caractersticas do homem atravs do estudo da ori-gem e desenvolvimento da espcie humana, tomando o surgimento do trabalho e a formao da sociedade hu-mana, com base no trabalho, como sendo o processo b-

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  • sico _gue vai marcar o homem como espcie diferencia-da. E o trabalho que, pela ao transformadora do ho-mem sobre a natureza, une homem e natureza e cria a cultura e a histria humanas. No trabalho desenvolvem-se, por um lado, a atividade coletiva e, portanto, as rela-es sooa1s, e, por outro lado, a criao e utilizao de instrumentos.

    Representao de homem utili-zando instrumento em pintura primitiva feita numa caverna.

    Idias marxistas que influenciaram Vygotsky

    Marcado pela orientao predominante na Unio So-vitica ps-revolucionria, Vygotsky via no materialismo histrico e dialtico de MatX e Engels uma fonte importante para suas prprias elabora-es ten'cas. Alguns postula-dos bsicos do matXismo cla-ramente incorporados por Vygotsky so:

    o modo de produo da vida material condiciona a vi-da social, poltica e espin'tual do homem.

    o homem um ser his-tnco, que se constri atravs de suas relaes com o mun-do natural e social. O proces-so de trabalho (transformao

    da natureza) o processo pn-vr!egiado nessas relaes ho-mem/mundo.

    a sociedade humana uma totalidade em constante transformao. um sistema dinmico e contraditn, que precisa ser compreendido co-mo processo em mudana, em desenvolvimento.

    as transformaes quali-tativas ocorrem por meio da chamada "sntese dialtt'ca" onde, a partir de elementos presentes numa determinada situao, fenmenos novos emergem. Essa exatamente a concepo de sntese utt!iza-da por Vygotsky ao longo de toda sua obra.

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    Marx (1818-1883).

    Engels (1820-1895).

  • Dentre os colaboradores de Vygotsky, Alexei Nikolaievich Leontiev (1904-1979) /oi quem mais explorou a questo da rela-o homem/trabalho, formulan-do a chamada ''teona da ativida-de" (~er captulo 5).

    O instrumento um elemento interposto entre o tra-balhador e o objeto de seu trabalho, ampliando as possi-bilidades de transformao da natureza. O machado, por exemplo, corta mais e melhor que a mo humana; a va-silha permite armazenamento de gua. O instrumento feito ou buscado especialmente para um certo objeti-vo. Ele carrega consigo, portanto, a funo para a qual foi criado e o modo de utilizao desenvolvido durante a histria do trabalho coletivo. , pois, um objeto social e mediador da relao entre o indivduo e o mundo.

    Chimpanz usando instrumento.

    Vale a pena destacar que o estu-do do comportamento animal avanou muito nos ltimos anos, produzindo dados aos quais Vygotsky no chegou a ter aces-so. Embora controversos, h da-dos que demonstram um uso mais sofisticado de instrumentos entre pnmatas supen.ores do que o uso sup9sto por Vygotsky nesta comparao.

    importante mencionar que animais tambm utili-zam instrumentos de forma rudimentar. So bastante co-nhecidos os experimentos com chimpanzs que usam varas para alcanar alimentos distantes ou sobem em caixotes para atingir frutas penduradas no teto. Embora esses ins-trumentos tambm tenham uma funo mediadora en-tre indivduo e objeto, Vygotsky os considera como sen-do de natureza diferente da dos instrumentos humanos. Os animais, diferentemente do homem, no produzem, deliberadamente, instrumentos com objetivos especfi-cos, no guardam os instrumentos para uso futuro, no preservam sua funo como conquista a ser transmitida a ovtros membros do grupo social. So capazes de trans-formar o ambiente num momento especfico, mas no desenvolvem sua relao com o meio num processo histrico-cultural, como o homem.

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  • O uso de signos

    ''A inveno e o uso de _signos como meios auxiliares para solucionar um dado problema psicolgico (lembrar, comparar coisas, relatar, escolher, etc.), anloga in-veno e uso de instrumentos, s que agora no campo psicolgico. O signo age como um instrumento da ativi-dade psicolgica de maneira anloga ao papel de um ins-trumento no trabalho''. Os instrumentos, porm, so ele-mentos externos ao indivduo, voltados para fora dele; sua funo provocar mudanas nos objetos, controlar processos da natureza. Os signos, por sua vez, tambm chamados por Vygotsky de ''instrumentos psicolgicos'', so orientados para o prprio sujeito, para dentro do in-divduo; dirigem-se ao controle de aes psicolgicas, seja do prprio indivduo, seja de outras pessoas. So ferra-mentas que auxiliam nos processos psicolgicos e no nas aes concretas, como os instrumentos.

    Ao longo de sua histria, o homem tem utilizado sig-nos como instrumentos psicolgicos em diversas situaes, conforme veremos a seguir. Na sua forma mais elemen-tar o signo uma marca externa, que auxilia o homem em tarefas que exigem memria ou ateno. Assim, por exemplo, a utilizao de varetas ou pedras para registro e controle da contagem de cabeas de gado ou a separa-o de sacos de cereais em pilhas diferentes que identifi-cam seus proprietrios so formas de recorrer a signos que ampliam a capacidade do homem em sua ao no mun-do. Assim como o machado, instrumento de trabalho, corta melhor que a mo humana, as varetas usadas na contagem do gado permitem que o ser humano armaze-ne informa~s sobre quantidades muito superiores s que ele poderia guardar na memria. Isto , as varetas repre-sentam a quantidade de cabeas de gado, a qual pode ser recuperada em momentos posteriores. neste senti-do que as varetas so signos: so interpretveis como re-presentao da realidade e podem referir-se a elementos ausentes do espao e do tempo presentes. A memria me-diada por signos , pois, mais poderosa que a memria no mediada.

    So inmeras as formas de utilizar signos como ins-trumentos que auxiliam no desempenho de atividades psicolgicas. Fazer uma lista de compras por escrito, uti-lizar um mapa para encontrar determinado local, fazer um diagrama para orientar a construo de um objeto,

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  • Quipus, ns feitos pelos incas pa-ra registrar informaes sobre quantidades e outros fatos da vi-da cotidiana.

    dar um n num leno para no esquecer um compromisso so apenas exemplos de como constantemente recorre-mos mediao de vrios tipos de signos para melhorar nossas possibilidades de armazenamento de informaes e de controle da ao psicolgica.

    Vygotsky e seus colaboradores realizaram diversos ex-perimentos para estudar o papel dos signos na atividade psicolgica. Um dos experimentos tinha como objetivo verificar a relao entre a percepo e a ao motora em crianas de quatro e cinco anos, com e sem a interveno de signos mediadores. Numa primeira fase do experimen-to havia um conjunto de figuras e a cada figura corres-pondia uma tecla de um teclado. Quando uma figura era mostrada criana, a tecla correspondente deveria ser pres-sionada. As crianas tinham dificuldade de decidir rapi-damente que tecla apertar, vacilando em seus movimen-tos, indo e vindo entre as vrias teclas, at escolher a que deveria ser pressionada.

    Numa segunda fase do experimento os pesquisadores introduziram marcas identificadoras nas teclas, que au-xiliavam sua correspondncia com as figuras (por exem-plo, a figura de um tren para lembrar cavalo, a figura de uma faca para lembrar po). A introduo dessas mar-cas modificou radicalmente o desempenho das crianas. Em vez de vacilar entre as teclas, fazendo movimentos desordenados, as crianas passaram a focalizar sua aten-o nas marcas, e a selecionar a tecla apropriada a partir da relao estabelecida entre a figura mostrada e o signo que a representava. A relao, antes direta, entre a per-cepo da figura e a escolha da tecla, passou a ser media-da pelas marcas que representavam as vrias figuras.

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  • Atividade direta percepo da figura------------ escolha da tecla

    Atividade mediada percepo da figura

    marcas nas teclas

    Esse processo de mediao possibilitou um comportamen-to mais controlado, uma ao motora dominada por uma escolha prvia. A ao psicolgica tornou-se mais sofisti-cada, menos impulsiva.

    Um outro experimento, conduzido por Leontiev, vi-sava fornecer elementos para a compreenso do papel dos signos mediadores na ateno voluntria e na memria. Leontiev utilizou um jogo infantil tradicional na Europa como base para estruturar a situao experimental. Nes-se jogo uma pessoa faz perguntas a outra, que deve res-ponder sem usar determinadas ''palavras proibidas''. No caso do experimento de Leontiev, as crianas deveriam responder a diversas questes sobre cores, por exemplo: "Qual a cor de um tomate?", "Qual a cor da sua blu-sa?", sem usar o nome de duas cores definidas no expe-rimento como "proibidas" (verde e amarelo, por exemplo).

    Na primeira fase do experimento o pesquisador for-mulava as perguntas oralmente, e a criana simplesmen-te as respondia, como no jogo original. Sua resposta era considerada errada se falasse o nome das cores proibidas. Numa segunda fase, a mesma brincadeira de pergunta-resposta era feita, mas a criana recebia cartes coloridos que podia utilizar, se quisesse, como auxiliares no jogo. Algumas crianas passaram, ento, a utilizar os cartes como suportes externos para sua ateno e memria: se-paravam os cartes com as cores proibidas e, antes de res-ponder s perguntas, olhavam para os cartes, como se estivessem "consultando" uma fonte de informao.

    As crianas que utilizaram os cartes como marcas ex-ternas para a regulao de sua atividade psicolgica co-meteram muito menos erros nessa segunda fase do expe-rimento do que na primeira fase, sem os cartes. Nova-mente, aqui, a atividade psicolgica foi beneficiada pela utilizao de signos como "instrumentos psicolgicos".

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    escolha da tecla

    Esse jogo tambm conheczdo no Braszl, sendo as ''palavras proibi-das" sim, no e porque.

  • Isto , o uso de mediadores aumentou a capacidade de ateno e de memria e, sobretudo, permitiu maior con-trole voluntrio do sujeito sobre sua atividade.

    Esses dois experimentos mencionados so exemplos dos estudos feitos por Vygotsky e seus colaboradores no sen-tido de compreender como o processo de mediao, por meio de instrumentos e signos, fundamental para o de-senvolvimento das funes psicolgicas superiores, dis-tinguindo o homem dos outros animais. A mediao um processo essencial para tornar possvel atividades psi-colgicas voluntrias, intencionais, controladas pelo pr-prio indivduo.

    interessante observar que os processos de mediao tambm sofrem transformaes ao longo do desenvolvi-mento do indivduo. Justamente por constiturem fun-es psicolgicas mais sofisticadas, os processos mediados vo ser construdos ao longo do desenvolvimento, no es-tando ainda presentes nas crianas pequenas. No experi-mento das ''cores proibidas'', que acabamos de descre-ver, por exemplo, s a partir de oito anos, aproxima-damente, que a criana vai comear a beneficiar-se dos cartes, utilizando-os como auxiliares psicolgicos. As crianas menores no se beneficiaram dos cartes como signos de apoio sua atividade psicolgica. Ao resolver esse tipo de tarefa, sua atividade era predominantemen-te direta, no mediada. Sem serem capazes de, delibera-damente, fazerem uso de recursos externos, como os car-tes, essas crianas pequenas lembravam-se ou no das cores proibidas mas no conseguiam controlar sua pr-pria atividade por meio desses signos mediadores.

    Atividade direta

    pergunta------- resposta

    Atividade mediada

    pergunta resposta

    ~ cartes coloridos

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  • Os sistemas simblicos e o processo de internalizao

    Vimos que Vygotsky trabalha com a funo mediado-ra dos instrumentos e dos signos na atividade humana, fazendo uma analogia entre o papel dos instrumentos de trabalho na transformao e no controle da natureza, e Q_papel dos signos enquanto instrumentos psicolgicos, ferramentas auxiliares no controle da atividade psicol-gica. E justamente em sua analogia com os instrumen-tos de trabalho que os signos aparecem como marcas ex-ternas, que fornecem um suporte concreto para a ao do homem no mundo.

    Ao longo da evoluo da espcie humana e do desen-. volvimento de cada indivduo, ocorrem, entretanto, duas mudanas qualitativas fundamentais no uso dos signos. Por um lado, a utilizao de marcas externas vai se trans-formar em processos internos de mediao; esse meca-nismo chamado, por Vygotsky, de processo de interna-lizao. Por outro lado, .so desenvolvidos sistemas sim-blicos, que organizam os signos em estruturas comple-xas e articuladas. Vamos discuti-los em maior detalhe a seguir, pois tanto o processo de internalizao como a uti-lizao de sistemas simblicos so essenciais para o de-senvolvimento dos processos mentais superiores e eviden-ciam a importncia das relaes sociais entre os indiv-duos na construo dos processos psicolgicos.

    interessante retomar, aqui, o experimento das "pa-lavras proibidas" desenvolvido por Leontiev. Conforme mencionamos anteriormente, foi apenas a partir dos oi-to anos, aproximadamente, que as crianas fizeram uso dos cartes como instrumentos psicolgicos; crianas me-nores operaram de forma direta, sem o uso de signos me-diadores. Adultos que participaram do mesmo experimen-to tambm no se beneficiaram da presena dos cartes: seu desempenho na primeira fase do experimento (sem cartes) foi muito semelhante ao da segunda fase (com cartes).

    Vygotsky argumenta que esse resultado no significa uma regresso dos adultos a uma atividade psicolgica no mediada, como a das crianas pequenas. Ao contr-rio, o bom desempenho dos adultos nas duas fases do experimento evidencia que est, sim, havendo mediao, porm que ela est ocorrendo internamente, independen-temente da presena dos cartes. Podemos supor que es-

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    A linguagem o sistema simb-lico bsico de todos os grupos hu-manos. A questo do desenvolvi-mento da linguagem e suas rela-es com o pensamento um dos temas centrais das investigaes de Vygotsky. Esse tema ser ex-plorado no captulo 3.

  • ses sujeitos foram capazes de, por conta prpria, pensar na cor verde como sendo ''proibida'', sem necessitar da existncia fsica de um carto verde para lembr-los dis-so. Ao longo do processo de desenvolvimento, o indiv-duo dei~ de necessitar de marcas externas e passa a uti-lizar signos internos, isto , representaes mentais que substituem os objetos do mundo real. Os signos interna-lizados so, como as marcas exteriores, elementos quere-presentam objetos, eventos, situaes. Assim como um n num leno pode representar um compromisso que no quero esquecer, minha idia de ''me'' representa a pes-soa real da minha me e me permite lidar mentalmente com ela, mesmo na sua ausncia. No caso dos cartes, a idia ''verde = proibido'' substitui o carto verde co-mo signo mediador.

    A prpria idia de que o homem capaz de operar mentalmente sobre o mundo- isto , fazer relaes, pla-nejar, comparar, lembrar, etc. -supe um processo de representao mental. Temos contedos mentais que to-mam o lugar dos objetos, das situaes e dos eventos do mundo real. Quando pensamos em um gato, por exem-plo, no temos na mente, obviamente, o prprio gato; trabalhamos com uma idia, um conceito, uma imagem, uma palavra, enfim, algum tipo de representao, de sig-no, que substitui o gato real sobre o qual pensamos.

    Essa capacidade de lidar com representaes que subs-tituem o prprio real que possibilita ao homem libertar-se do espao e do tempo presentes, fazer relaes men-tais na ausncia das prprias coisas, imaginar, fazer pla-nos e ter intenes. Posso pensar em um gato que no est presente no local em que estou, imaginar um gato sobre uma poltrona que no momento est vazia, preten-der ter um gato em minha casa a partir da prxima se-mana. Essas possibilidades de operao mental no cons-tituem uma relao direta com o mundo real fisicamen-te presente; a relao mediada pelos signos internali-zados que representam os elementos do mundo, liber-tando o homem da necessidade de interao concreta com os objetos de seu pensamento.

    Quando trabalhamos com os processos superiores que caracterizam o funcionamento psicolgico tipicamente hu-mano, as representaes mentais da realidade exterior so, na verdade, os principais mediadores a serem considera-dos na relao do homem com o mundo. justamente a origem dessas representaes que Vygotsky est buscan-do quando nos remete criao e ao uso de instrumen-

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  • tos e de signos externos como mediadores da atividade humana.

    Ao longo da histria da espcie humana- onde o sur-gimento do trabalho propicia o desenvolvimento da ati-vidade coletiva, das relaes sociais e do uso de instru-mentos - as representaes da realidade tm se articu-lado em sistemas simblicos. Isto , os signos no se man-tm como marcas externas isoladas, referentes a objetos avulsos, nem como smbolos usados por indivduos par-ticulares. Passam a ser signos compartilhados pelo con-junto dos membros do grupO social, permitindo a comu-nicao entre os indivduos e o aprimoramento da inte-rao social. Quando um indivduo aprende, por exem-plo, o significado de "cavalo", esse conceito, int~rnali

    ,zado pelo indivduo e compartilhado pelos outros usu-rios da lngua portuguesa, passa a ser uma representao mental que serve como signo mediador na sua compreen-so do mundo. Se algum lhe contar uma histria sobre um cavalo, o indivduo no necessitar do contato direto com esse animal para lidar mentalmente com ele, para compreender a histria. A idia de cavalo far a media-o entre o cavalo real (que pode estar ausente) e a ativi-dade psicolgica do sujeito (pensar sobre o cavalo, imagin-lo nas aes descritas na histria, etc.).

    Os sistemas de representao da realidade - e a lin-guagem o sistema simblico bsico de todos os grupos

    o 1// humanos- so, portanto, sonalmente dados: E o gru-po cultural onde o indivduo se desenvolve que lhe for-nece formas de perceber e organizar o real, as quais vo constituir os instrumentos psicolgicos que fazem a me-diao entre o indivduo e o mundo.

    Enquanto mediadores entre o indivduo e o mundo real, esses sistemas de representao da realidade consis-tem numa espcie de ''filtro'' atravs do qual o homem ser capaz de ver o mundo e operar sobre ele. Quando um indivduo v, por exemplo, um avio, ele capaz de interpretar esse objeto como um avio e no como um amontoado de informaes perceptuais (linhas, formas, cores, sons) caticas ou no compreensveis. O conceito de avio, construdo socialmente, consiste numa repre-sentao mental que faz a mediao entre o indivduo e o objeto real que est no mundo. A palavra "avio", que designa uma certa categoria de objetos do mundo real, um signo mediador entre o indivduo e o avio enquanto elemento concreto.

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  • Avio sobrevoando uma tribo in-dgena.

    Vamos supor a existncia de um grupo cultural onde, por alguma razo, nunca tenham sido vistos avies. Se a um indivduo desse grupo cultural for mostrado, pela primeira vez, um avio, ele no ter condies de interpret-lo como tal; no dispor da representao sim-blica, do instrumental psicolgico que permita a com-preenso desse objeto. a partir de sua experincia com o mundo objetivo e do contato com as formas cultural-mente determinadas de organizao do real (e com os sig-nos fornecidos pela cultura) que os indivduos vo cons-truir seu sistema de signos, o qual consistir numa esp-cie de "cdigo" para decifrao do mundo.

    Uma conseqncia importante dessas colocaes de Vygotsky, diretamente. ligada a um dos' 'pilares'' de seu pensamento, discutidos no primeiro captulo, que os grupos culturais em que as crianas nascem e se desen-volvem funcionam no sentido de produzir adultos que operam psicologicamente de uma maneira particular, de acordo com os modos culturalmente construdos de or-denar o real. importante mencionar que a dimenso socioculrural do desenvolvimento humano no se refere apenas a um amplo cenrio, um pano de funJo onde se desenrola a vida individual. Isto , quando Vygotsky fa-la em cultura no est se reportando apenas a fatores abrangentes como o pas onde o indivduo vive, seu n-vel scio-econmico, a profisso de seus pais. Est falan-do, isto sim, do grupo cultural como fornecendo ao in-divduo um ambiente estruturado, onde todos os elemen-tos so carregados de significado. Toda a vida humana est impregnada de significaes e a influncia do mun-do social se d por meio de processos que ocorrem em

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  • diversos nveis. Assim, se o beb colocado para dormir num bero, numa rede ou numa esteira, se quem alimen-ta a criana a me ou outro adulto, do sexo masculino ou feminino, se o alimento slido levado boca com a mo, com talheres ou com palitos, se existem ou no escolas ou outras instituies onde as crianas so subme-tidas a contedos culturais considerados importantes, estes so apenas exemplos da multiplicidade de fatores que de-finem qual o mundo em que o indivduo vai se desen-volver.

    A interao face a face entre indivduos particulares desempenha um papel fundamental na construo do ser humano: atravs da relao interpessoal concreta com outros homens que o indivduo vai chegar a interiorizar as formas culturalmente estabelecidas de funcionamen-to psicolgico. Portanto, a interao social, seja direta-mente com outros membros da cultura, seja atravs dos diversos elementos do ambiente culturalmente estrutu-rado, fornece a matria-prima para o desenvolvimento psicolgico do indivduo.

    A cultura, entretanto, no pensada por Vygotsky co-mo algo pronto, um sistema esttico ao qual o indivduo se submete, mas como uma espcie de ''palco de nego-ciaes'', em que seus membros esto num constante mo-vimento de recriao e reinterpretao de informaes, conceitos e significados. A vida social um processo di-nmico, onde cada sujeito ativo e onde acontece a in-terao entre o mundo cultural e o mundo subjetivo de cada um. Neste sentido, e novamente associado a sua fi-liao marxista, Vygotsky postula a interao entre v-rios planos histricos: a histria da espcie (filognes(' ), a histria do grupo cultural, a histria do organismo in-dividual da espcie ( ontognese) e a seqncia singular de processos e experincias vividas por cada indivduo.

    O processo pelo qual o indivduo internaliza a matria-prim fornecida pela cultura no , pois, um processo de absoro passiva, mas de transformao, de sntese. Esse processo , para Vygotsky, um dos principais mecanis-mos a serem compreendidos no estudo do ser humano. como se, ao longo de seu desenvolvimento, o indiv-duo ''tomasse posse'' das formas de comportamento for-necidas pela cultura, num processo em que as atividades externas e as funes interpessoais transformam-se em atividades internas, intrapsicolgicas.

    O processo de desenvolvimento do ser humano, mar-cado por sua insero em determinado grupo cultural,

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    Todas as funes no desenvolvi-mento da criana aparecem duas

  • vezes: primeiro, no nvel social, e, depo, no nvel individual; pn!rteiro entre pessoas (interpsi-colgica), e, depois, no interior da criana (intrapsicolgica) ''. VYGOTSKY, p. 64, (2).

    se d' 'de fora para dentro''. Isto , primeiramente o in-divduo realiza aes externas, que sero interpretadas pe-las pessoas a seu redor, de acordo com os significados cul-turalmente estabelecidos. A partir dessa interpretao que ser possvel para o indivduo atribuir significados a suas prprias aes e desenvolver processos psicolgicos internos que podem ser interpretados por ele prprio a partir dos mecanismos estabelecidos pelo grupo cultural e compreendidos por meio dos cdigos compartilhados pelos membros desse grupo.

    Vygotsky utiliza o desenvolvimento do gesto de apon-tar, na criana, como um exemplo que ilustra o processo de internalizao de significados dados culturalmente. Ini-cialmente o beb tenta pegar, com a mo, um objeto-um chocalho, por exemplo - que est fora de seu al-cance. Estica a mo na direo do chocalho fazendo, no ar, um movimento de pegar, sem conseguir toc-lo. Do ponto de vista do beb, este um gesto dirigido ao cho-calho, uma relao externa entre ele e esse chocalho, uma tentativa malsucedida de alcanar um objeto. Quando um adulto v essa cena, entretanto, ocorre uma transfor-mao na situao. Observando a tentativa da criana de pegar o chocalho, o adulto provavelmente reage dando o chocalho para a criana. Na verdade estar interpretando aquele movimento malsucedido de pegar um objeto co-mo tendo o significado ''Eu quero aquele chocalho'.

    Ao longo de vrias experincias semelhantes, a pr-pria criana comea a incorporar o significado atribudo pelo adulto situao e a compreender seu prprio ges-to como sendo um gesto de apontar um objeto deseja-do. Aquele movimento, que era uma relao entre a crian-a e o chocalho, passa a ser dirigido para outra pessoa. O movimento de pegar transforma-se no ato de apon-tar, com uma interao orientada no mais para o obje-to, mas para outra pessoa. O significado do gesto ini-cialmente estabelecido por uma situao objetiva, depois interpretado pelas pessoas que cercam a criana e a se-guir incorporado pela prpria criana, a partir das inter-pretaes dos outros.

    Poderamos explorar o exemplo dado por Vygotsky imaginando um grupo cultural onde o gesto de apontar no exista, ou melhor, no tenha nenhum significado es-tabelecido. Neste caso hipottico, aquele movimento ori-ginal da criana, de tentar pegar um objeto fora de seu alcance, nunca ser interpretado, pelos adultos desse gru-po, como um gesto de apontar; nunca ser, portanto, in-

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  • ternalizado pela criana como tendo um significado que estabelece relaes com as pessoas e, provavelmente, per-manecer como um movimento que relaciona a criana com o objeto.

    As origens das funes psicolgicas superiores devem ser buscadas, assim, nas relaes sociais entre o indiv-duo e os outros homens: para Vygotsky o fundamento do funcionamento psicolgico tipicamente humano so-cial e, portanto, histrico. Os elementos mediadores na relao entre o homem e o mundo- instrumentos, sig-nos e todos os elementos do ambiente humano carrega-dos de significado cultural - so fornecidos pelas rela-es entre os homens. Os sistemas simblicos, e particu-larmente a linguagem, exercem um papel fundamental na comunicao entre os indivduos e no estabelecimen-to de significados compartilhados que permitem inter-pretaes dos objetos, eventos e situaes do mundo real. A linguagem, e suas relaes com o funcionamento psi-colgico do homem, o tema tratado no captulo que se segue.

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  • Pensamento e linguagem

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  • No captll:lo 2 d~scut~~os a importncia do. conceito de medtao stmbohca para Vygotsky. Vtmos que os processos mentais superiores que caractenzam o pen-samento tipicamente humano - aes conscientemente controladas, ateno voluntria, memorizao ativa, pen-samento abstrato, comportamento intencional- so pro-cessos mediados por sistemas simblicos. Como a lingua-gem o sistema simblico bsico de todos os grupos hu-manos, a questo do desenvolvimento da linguagem e suas relaes com o pensamento ocupa lugar central na obra de Vygotsky.

    Vygotsky trabalha com duas funes bsicas da lingua-gem. A principal funo a de intercmbio social: pa-ra se comunicar com seus semelhantes que o homem cria e utiliza os sistemas de linguagem. Essa funo de co-municao com os outros bem visvel no beb que est comeando a aprender a falar: ele no sabe ainda articu-lar palavras, nem capaz de compreender o significado preciso das palavras utilizadas pelos adultos, mas conse-gue comunicar seus desejos e seus estados emocionais aos outros atravs de sons, gestos e expresses. a necessida-de de comunicao que impulsiona, inicialmente, o de-senvolvimento da linguagem.

    Para que a comunicao com outros indivduos seja pos-svel de forma mais sofisticada, no basta, entretanto, que a pessoa manifeste, como o beb, estados gerais como "desconforto" ou "prazer". necessrio que sejam uti-lizados signos, compreensveis por outras pessoas, que tra-duzam idias, sentimentos, vontades, pensamentos, de forma bastante precisa. Como cada indivduo vive sua ex-perincia pessoal de modo muito complexo e particular,

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    ...J o o z

  • o mundo da experincia vivida tem que ser extremamente simplificado e generalizado para poder ser traduzido em signos que possam ser transmitidos a outros.

    A palavra cachorro, por exemplo, tem um significado preciso, compartilhado pelos usurios da lngua portu-guesa. Independentemente dos cachorros concretos que um indivduo conhea, ou do medo de cachorro que al-gum possa ter, a palavra cachorro denomina um certo conjunto de elementos do mundo real. O conceito de ca-chorro pode ser traduzido por essa palavra e ser adequa-damente compreendido por outras pessoas, mesmo que a experincia concreta delas com cachorros seja diferente da do indivduo que utilizou a palavra.

    esse fenmeno que gera a segunda funo da lin-guagem: a de pensamento generalizante. A linguagem ordena o real, agrupando todas as ocorrncias de uma mes-ma classe de objetos, eventos, situaes, sob uma mes-ma categoria conceitual.

    Ao chamar determinado objeto de cachorro estou, en-to, classificando esse objeto na categoria "cachorro" e, portanto, agrupando-o com outros elementos da mesma categoria e, ao mesmo tempo, diferenciando-o de ele-mentos de outras categorias. Um cachorro particular par-te de um conjunto abstrato de objetos que so todos mem-bros da mesma categoria e distingue-se dos membros das categorias ''mesa'', ''girafa'', ''caminho'', etc.

    essa funo de pensamento generalizante que torna a linguagem um instrumento de pensamento: a lingua-gem fornece os conceitos e as formas de organizao do real que constituem a mediao entre o sujeito e o obje-to de conhecimento. A compreenso das relaes entre pensamento e linguagem , pois, essencial para a com-preenso do funcionamento psicolgico do ser humano.

    O desenvolvimento do pensamento e da linguagem

    O pensamento e a linguagem tm origens diferentes e desenvolvem-se segundo trajetrias diferentes e inde-pendentes, antes que ocorra a estreita ligao entre esses dois fenmenos. Vygotsky trabalha com o desenvolvimen-

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  • to da espcie humana e com o desenvolvimento do indi-vduo humano, buscando compreender a origem e a traje-tria desses dois fenmenos.

    Ao buscar compreender a histria da espcie huma-na, Vygotsky erlcontrou, nos estudos feitos com prima-tas superiores, principalmente com chimpanzs, formas de funcionamento intelectual e formas de utilizao de linguagem que poderiam ser tomadas como precursoras do pensamento e da linguagem no ser humano. Consi-derou esses processos como sendo a ''fase pr-verbal do desenvolvimento do pensamento" e a "fase pr-intelec-tual do desenvolvimento da linguagem''.

    Os animais so capazes de utilizar instrumentos como mediadores entre eles e o ambiente para resolver deter-minados problemas. Usam meios indiretos para conse-guir um certo objetivo, como nos experimentos j men-cionados, em que chimpanzs utilizam varas ou sobem em caixotes para alcanar um alimento que est distan-te. Esse tipo de comportamento revela uma espcie de ''inteligncia prtica'', onde existe capacidade de solu-o de problemas e de alterao do ambiente para a ob-teno de determinados fins. Esse modo de funcionamen-to intelectual independente da linguagem, definindo a chamada fase pr-verbal do desenvolvimento do pen-samento.

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    A evoluo de uma espcie cha-mada filo gnese e o desenvolvi-mento de um indivduo chama-do ontognese. Conforme ser discutido em mais detalhe no ca-ptulo 4, Vygotsky preocupa-se constantemente em compreender os aspectos filogenticos e anta-genticos do desenvolvimento humano.

    Chimpanzs em situao de co-municao social.

  • ''Na ausncia de um sistema de signos, lingsticos ou no, so-mente o tipo de comunicao mais primitivo e limitado torna-se possvel. A comunicao por meio de movimentos expressivos, observada principalmente entre os animais, mais uma efuso afetiva do que comunicao. Um ganso amedrontado, pressentin-do subitamente algum pen'go, ao alertar o bando inteiro com seus gn.tos, no est informando aos outros aqutlo que viu, mas antes contagiando-os com seu medo. '' VYGOTSKY, p. 5, (4).

    Ao coletiva em situao de tra-balho: intercmbio, planejamen-to e uso de instrumentos.

    Ao mesmo tempo em que exibem essa forma de pen-samento pr-verbal, os animais tambm se utilizam de uma linguagem prpria. Emitem sons e utilizam gestos e expresses faciais que tm a funo de alvio emocio-nal e constituem, simultaneamente, um meio de conta-to psicolgico com os outros membros do grupo. Esse uso da linguagem pr-intelectual no sentido de que ela no tem ainda funo de signo. Isto , funciona como meio de expresso emocional e de comunicao difusa com os outros, mas no indica significados especficos, compreen-sveis de forma precisa por um interlocutor que compar-tilhe de um sistema de signos.

    Existe, assim, a trajetria do pensamento desvincula-do da linguagem e a trajetria da linguagem indepen-dente do pensamento. Num determinado momento do desenvolvimento filogentico, essas duas trajetrias se unem e o pensamento se torna verbal e a linguagem ra-cional. A associao entre pensamento e linguagem a~ribuda necessidade de intercmbio dos indivduos du-rante o trabalho, atividade especificamente humana. O trabalho uma atividade que exige, por um lado, a uti-lizao de instrumentos para a transformao da nature-za e, por outro lado, o plapejamento, a ao coletiva e, portanto, a comunicao social. Para agir coletivamente e de formas cada vez mais sofisticadas, o grupo humano teve de criar um sistema de comunicao que permitisse troca de informaes especficas, e ao no mundo com base em significados compartilhados pelos vrios indiv-duos empenhados no projeto coletivo. O surgimento do pensamento verbal e da linguagem como sistema de sig-nos um momento crucial no desenvolvimento da esp-cie humana, momento em que o biolgico transforma-se no scio-histrico.

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  • Na evoluo do indivduo, observada desde seu nasci-mento, ocorre um processo semelhante quele descrito para a histria da espcie. Antes de o pensamento e a linguagem se associarem, existe, tambm, na criana pe-quena, uma fase pr-verbal no desenvolvimento do pen-samento e uma fase pr-intelectual no desenvolvimento da linguagem. Antes de dominar a linguagem, a criana demonstra capacidade de resolver problemas prticos, de utilizar instrumentos e meios indiretos para conseguir de-terminados objetivos. Ela capaz, por exemplo, de su- bir numa cadeira para alcanar um brinquedo, ou de dar a volta num sof para pegar uma bolacha que caiu atrs dele. De forma semelhante ao chimpanz, a criana pr-verbal exibe essa espcie de inteligncia prtica, que per-mite a ao no ambiente sem a mediao da linguagem.

    Nessa fase de seu desenvolvimento, a criana, embora no domine a linguagem enquanto sistema simblico, j utiliza manifestaes verbais. O choro, o riso e o bal-bucio da criana pequena tm clara funo de alvio emo-cional, mas tambm servem como meio de contato so-cial, de comunicao difusa com outras pessoas.

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    Essa fase pr-verbal do desenvol-vimento do pensamento pode ser associada ao perodo sensrio-motor descnto por Piaget, no qual a ao da cnima no mundo feita por meio de sensaes e movimentos, sem mediao de representaes simblicas.

  • Assim como ocorreu no desenvolvimento da espcie humana, num determinado momento do desenvolvimen-to da criana (por volta dos dois anos de idade) o percur-so do pensamento encontra-se com o da linguagem e inicia-se uma nova frma de funcionamento psicolgi-co: a fala torna-se intelectual, com funo simblica, ge-neralizante, e o pensamento torna-se verbal, mediado por significados dados pela linguagem. Enquanto no desen-volvimento filogentico foi a necessidade de intercm-bio dos indivduos durante o trabalho que impulsionou a vinculao dos processos de pensamento e linguagem, na ontognese esse impulso dado pela prpria insero da criana num grupo cultural. A interao com mem-bros mais maduros da cultura, que j dispem de uma linguagem estruturada, que vai provocar o salto quali-tativo para o pensamento verbal.

    Fase Pr-lingstica do Pensamento utilizao de instrumentos ~ inteligncia prtica

    Pensamento Verbal e

    transformao do biolgico no scio-histrico

    Fase Pr-intelectual da Linguagem /

    Linguagem Racional

    alvio emocional funo social

    Quando os processos de desenvolvimento do pensa-mento e da linguagem se unem, surgindo, ento, o pen-samento verbal e a linguagem racional, o ser humano passa a ter a possibilidade de um modo de funcionamento psicolgico mais sofisticado, mediado pelo sistema sim-blico da linguagem. importante mencionar que, pa-ra Vygotsky, o surgimento dessa possibilidade no elimina a presena da linguagem sem pensamento (como na lin-guagem puramente emocional ou na repetio autom-tica de frases decoradas, por exemplo), nem do pensamento sem linguagem (nas aes que requerem o uso da inteligncia prtica, do pensamento instrumen-tal). Mas o pensamento verbal passa a predominar na ao psicolgica tipicamente humana. Por isso ele objeto pri-vilegiado dos estudos de psicologia, onde os processos mentais superiores interessam, particularmente, para a compreenso do funcionamento do homem enquanto ser scio-histrico.

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  • O significado das palavras

    Na anlise que Vygotsky faz das relaes entre pensa-mento e linguagem, a questo do significado ocupa lu-gar central. O significado um componente essencial da palavra e , ao mesmo tempo, um ato de pensamento, pois o significado de uma palavra j , em si, uma gene-ralizao. Isto , no significado da palavra que o pen-samento e a fala se unem em pensamento verbal. Ao di-zer sapato, por exemplo, estou enunciando uma pala-vra que tem um determinado significado. Esse significa-do, alm de possibilitar a comunicao entre usurios da lhgua, define um modo de organizar o mundo real de forma que a alguns objetos (os sapatos) essa palavra se aplica e a outros (cadeiras, cachorros, etc.) essa palavra no se aplica.

    no significado que se encontra a unidade das duas funes bsicas da linguagem: o intercmbio social e o pensamento generalizante. So os significados que vo propiciar a mediao simblica entre o indivduo e o mun-do real, constituindo-se no "filtro" atravs do qual o in-divduo capaz de compreender o mundo e agir sobre ele. "O significado de uma palavra representa um aml-

  • tura, juno de duas peas de roupa''; a seguir passou a designar, por analogia, qualquer espcie de juno: a juno de duas paredes, um canto, uma esquina. Meta-foricamente esse significado foi estendido, posteriormente, para o crepsculo, isto , a juno do dia com a noite. A partir da, o perodo completo entre um crepsculo e outro, isto , o perodo de 24 horas que inclui o dia e a noite, passou a ser chamado de sutki.

    SILVEIRA BUENO, (25) e (26). 1> Na lngua portuguesa temos exemplos semelhantes. A palavra mancebo (do latim mancipium) significava, ori-ginalmente, "escravo". Pelo fato de se preferirem escra-vos jovens, fortes, passou a significar "moo, jovem, for-te". Depois o termo passou a designar amante, prova-velmente porque nas casas romanas muitas vezes os jo-vens escravos passavam a amantes de suas senhoras. Da mancebia, designando concubinato, e o verbo amancebar-se. Mancebo tambm significa "cabide onde se pendu-ram roupas, chapus, etc.'', numa reminiscncia do sig-nificado de escravo. A palavra bomio designava o habi-tante da Bomia; como os ciganos vinham da Bomia, essa palavra passou a significar "errante, nmade, des-regrado''.

    De modo similar ao que acontece na histria de uma lngua, a transformao dos significados tambm ocorre no processo de aquisio da linguagem pela criana. O sistema de relaes e generalizaes contido numa pala-vra muda ao longo do desenvolvimento. Ao aprender, por exemplo, a palavra lua, a criana pequena pode aplicar inicialmente essa palavra no s prpria lua, como a abajures, lustres, lanternas e outros focos de luz visveis noite ou em ambientes escuros. Por outro lado, pode pensar que Nescau refere-se apenas ao leite morno com chocolate que sempre toma, no aceitando essa designa-o, por exemplo, para leite gelado com chocolate. Ao tomar posse dos significados expressos pela linguagem, a criana os aplica a seu universo de conhecimentos so-bre o mundo, a seu modo particular de "recortar"sua experincia. Ao longo de seu desenvolvimento, marca-do pela interao verbal com adultos e crianas mais ve-lhas, a criana vai ajustando seus significados de modo a aproxim-los cada vez mais dos conceitos predominan-tes no grupo cultural e lingstico de que faz parte.

    Esse processo de transformao de significados ocorre de forma muito clara nas fases iniciais da aquisio da linguagem, quando tanto o vocabulrio da criana quanto seu conhecimento sobre o mundo concreto em que vive

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  • crescem muito rapidamente a partir de sua experincia pessoal. Mas os significados continuam a ser transforma-dos durante todo o desenvolvimento do indivduo, ga-nhando contornos peculiares quando se inicia o processo de aprendizagem escolar. Ento se realiza a interveno deliberada do educador na formao da estrutura con-ceitual das crianas e adolescentes. As transformaes de significado ocorrem no mais apenas a partir da experin-cia vivida, mas, principalmente, a partir de definies, referncias e ordenaes de diferentes sistemas conceituais, mediadas pelo conhecimento j consolidado na cultura.

    Assim, a criana que aprendeu a distinguir a lua da luz do abajur e da lanterna vai, agora, aprender que a lua um satlite, qu~ gira em torno da Terra, que satli-te um tipo de astro diferente de planetas e estrelas, etc. Novamente o significado da palavra transforma-se, tornando-se cada vez mais prximo dos conceitos esta-belecidos na cultura. No caso especfico do conhecimen-to escolar, o referencial privilegiado dos sistemas concei-tuais o saber acumulado nas diferentes disciplinas cien-tficas.

    A idi;1 da transformao dos significados das palavras est relacionada a um outro aspecto da questo do signi-ficado. Vygotsky distingue dois componentes do signifi-cado da palavra: o significado propriamente dito e o "sen-tido''. O significado propriamente dito refere-se ao sis-tema de relaes objetivas que se formou no processo de desenvolvimento da palavra, consistindo num ncleo re-lativamente estvel de compreenso da palavra, compar-tilhado por todas as pessoas que a utilizam. O sentido, por sua vez, refere-se ao significado da palavra para cada indivduo, composto por relaes que dizem respeito ao contexto de uso da palavra e s vivncias afetivas do in-divduo.

    A palavra carro, por exemplo, tem o significado obje-tivo de ''veculo de quatro rodas, movido a combust-vel, utilizado para o transporte de pessoas". O sentido da palavra carro, entretanto, variar conforme a pessoa que a utiliza e o contexto em que aplicada. Para o mo-torista de txi significa um instrumento de trabalho; pa-ra o adolescente que gosta de dirigir pode significar for-ma de lazer; para um pedestre que j foi atropelado o carro tem um sentido ameaador, que lembra uma situa-o desagradvel, e assim por diante. O sentido da pala-vra liga seu significado objetivo ao contexto de uso da lngua e aos motivos afetivos e pessoais de seus usurios.

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    Em seu livro Pensamento e !in guagem Vygotsky trabalha deta-lhadamente com a questo da formao de conceitos na criana, tanto na situao escolar como fo-ra dela.

  • Relaciona-se com o fato de que a experincia individual sempre mais complexa do que a generalizao contida nos s1gnos.

    O discurso interior e a fala egocntrica

    Conforme vimos no incio deste captulo, a funo generalizante da linguagem que a torna um instrumen-to do pensamento. Ao se utilizar da linguagem o ser hu-mano capaz de pensar de uma forma que no seria pos-svel se ela no existisse: a generalizao e a abstrao s se do pela linguagem.

    Mas o uso da linguagem como instrumento de pensa-mento supe um processo de internalizao da lingua-gem. Isto , no apenas por falar com as outras pessoas que o indivduo d um salto qualitativo para o pensa-mento verbal. Ele tambm desenvolve, gradualmente, o chamado "discurso interior", que uma forma interna de linguagem, dirigida ao prprio sujeito e no a um in-terlocutor externo. um discurso sem vocalizao, vol-tado para o pensamento, com a funo de auxiliar o in-divduo nas suas operaes psicolgicas. Diante do pro-blema de como chegar de carro a um determinado local, por exemplo, uma pessoa ''delibera'' internamente qual o melhor caminho, levando em conta a convenincia dos vrios percursos possveis, o trnsito naquele horrio, etc. Embora apoiando-se em raciocnios, referncias e deci-ses de carter verbal, a pessoa no fala alto, no conver-sa com ningum. Realiza, isto sim, o discurso interior, que uma espcie de dilogo consigo mesma.

    Justamente por ser um dilogo consigo prprio, o dis-curso interior tem uma estrutura peculiar, diferenciando-se da fala exterior. Como no feito para comunicao _om outros, constitui uma espcie de "dialeto pessoal". E fragmentado, abreviado, contendo quase s ncleos de significado e no todas as palavras usadas num dilogo com outros. No exemplo de um dilogo interior para a escolha de um bom percurso de carro, o formato desse discurso seria algo como' 'direita-Brasil-obelisco-Domin-gos" e no a fala completa "Eu vou entrar direita na Avenida Brasil, seguir at o obelisco, fazer o contorno, pegar aquela rua que sobe e chegar at a Domingos de

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  • Moraes''. Essa verso completa seria redundante demais para um dilogo do sujeito consigo mesmo.

    Vygotsky postula para o processo de desenvolvimento do pensamento e da linguagem a mesma trajetria das outras funes psicolgicas. O percurso da atividade so-cial, interpsquica; para a atividade individualizada, in-trapsquica. A criana primeiramente utiliza a fala socia-lizada, com a funo de comunicar, de manter um con-tato social. Com o desenvolvimento que ela passa a ser capaz de utilizar a linguagem como instrumento de pen-samento, com a funo de adaptao pessoal. Isto , a internalizao do discurso um processo gradual, que se completar em fases mais avanadas da aquisio da lin-guagem.

    No estudo da transio entre o discurso socializado e o discurso interior, Vygotsky recorre ''fala egocntri-ca'' como um fenmeno relevante para a compreenso dessa transio.

    Conforme discutimos anteriormente, a funo inicial da linguagem a comunicao social. O beb, membro imaturo de um determinado grupo cultural, vai passar por um processo de aquisio da linguagem que j existe no seu ambiente enquanto sistema compartilhado pelos membros desse grupo cultural. Nas fases iniciais da aqui-sio da linguagem a criana se utiliza, ento, da lingua-gem externa disponvel no seu meio, com a funo de comumcar.

    Num cerro momento do seu desenvolvimento, a criana passa a se utilizar da linguagem egocntrica, falando al-to para si mesma, independentemente da presena de um interlocutor. A fala egocntrica acompanha a atividade da criana, comeando a ter uma funo pessoal, ligada s necessidades do pensamento. utilizada como apoio ao planejamento de seqncias a serem seguidas, como auxiliar na soluo de problemas. Para Vygotsky, o sur-gimento da fala egocntrica, com essa funo claramen-te associada ao pensamento, indica que a trajetria da criana vai, de fato, dos processos socializados para os pro-cessos internos. Isto , ao tomar posse da linguagem, ini-cialmente utilizada apenas com a funo de comunica-o, a criana passa a ser capaz de utiliz-la como instru-mento (interno, intrapsquico) de pensamento. Como esse processo gradual, a fala egocntrica aparece como um procedimento de transio, no qual o discurso j tem a funo que ter como discurso interior, mas ainda tem a forma da fala socializada, externa.

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    Fala egocntrica ou discurso ego-cntrico o discurso da criana quando dialoga alto consigo pr-pna, quando 'fala sozinha" (ou ''pensa alto''). Isso acontece fre-qentemente com cnanas pot;.. volta dos trs ou quatro anos de idade. Ao querer um bn.nquedo que est fora de seu alcance, por exemplo, uma cnana podena di-zer para si prpna: "Vou pegar aquele banquinho e subir nele ... Ih, ele muito baixinho. A ca-deira grande, vou pegar a cadeira ... ''.

  • Piaget (1896-1980).

    interessante mencionar que a questo da fala ego-cntrica o ponto mais explcito de divergncia entre Vygotsky e Piaget. Para Piaget a funo da fala egocn-trica exatamente oposta quela proposta por Vygotsky: ela seria uma transio entre estados mentais individuais no verbais, de um lado, e o discurso socializado e o pen-samento lgico, de outro. Piaget postula uma trajetria ''de dentro para fora'', enquanto Vygotsky considera que o percurso ''de fora para dentro'' do indivduo. O dis-curso egocntrico , portanto, tomado como transio en-tre processos diferentes para cada um desses tericos. Es-sa divergncia discutida detalhadamente por Vygotsky no livro Pensamento e linguagem, publicado na URSS em 1934, e retomada por Piaget no texto escrito no in-cio dos anos 60 e publicado como apndice da edio norte-americana desse livro.

    Trecho da resposta de Piaget aos comentrios de Vygotsky sobre sua obra, (21).

    ''No sem tristeza que um autor descobre, 25 anos depois de sua publicao, a obra de um colega, morto nesse nterim, sobretudo se levado em considerao o fato de que ela contm tantos pontos de interesse imediato para ele, que pode-riam ter sido discutzdos pessoalmente e em deta-lhe. Embora meu amigo A. Lun"a me tivesse informado sobre a posio ao mesmo tempo sim-patizante e crtica de Vygotsky a respeito de meu trabalho, nunca pude ler seus textos ou encontrar-me com ele pessoalmente; e hoje, ao ler seu li-vro, lamento-o profundamente, porque se tives-se sido possvel uma aproximao, poderamos ter chegado a nos entender sobre diversos pontos.

    "[ ... } enquanto o livro de Vygotsky apare-ceu em 1934, meus trabalhos que so por ele dis-cuttdos datam de 1923 e 1924. Pensando de que forma eu poderia realizar esta discusso retros-pectiva, encontrei uma soluo ao mesmo tem-po simples e instrutiva (pelo menos para mim), ou seja, procurar ver se as crticas de Vygotsky justificam-se luz de meus trabalhos posterio-res. A resposta tanto aji'r!nativa como negati-va: a respeito de determinados aspectos estou mais de acordo com Vygotsky do que ten"a esta-do em 1934 e a respeito de outros pontos acre-dito que possuo, hoje, melhores argumentos bara lhe responder. ''

    O desenvolvimento da linguagem e suas relaes com o pensamento so, como acabamos de ver, questes cen-trais na obra de Vygotsky e so por ele abordadas de for-ma complexa e multifacetada. Os diversos aspectos de sua discusso sobre essas questes podem ser sintetizados em.

    VYGOTSKY, p. 108, (4). 1> suas prprias palavras: "[ ... ]a relao entre o pensamento e a palavra no uma coisa mas um processo, um movi-mento contnuo de vaivm do pensamento para a pala-vra, e vice-versa. Nesse processo, a relao entre o pensa-mento e a palavra passa por transformaes que; em si mesmas, podem ser consideradas um desenvolvimento no

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  • sentido funcional. O pensamento no 'simplesmente ex-presso em palavras; por meio delas que ele passa a exis-tir. Cada pensamento tende a relacionar alguma coisa com outra, a estabelecer uma relao entre as coisas. Cada pen-samento se move, amadurece e se desenvolve, desempe-nha uma funo, soluciona um problema. Esse fluxo de pensamento corre como um movimento lntenor atravs de uma srie de planos. Uma anlise da interao do pen-samento e da palavra deve comear com uma investiga-o das fases e dos planos diferentes que um pensamen-to percorre antes de ser expresso em palavras.

    "A primeira coisa que esse estudo revela a necessi-dade de se fazer uma distino entre os dois planos da fala. Tanto o aspecto interior da fala- semntico e sig-nificativo - quanto o exterior - fontico -, embora formem uma verdadeira unidade, tm as suas prprias leis de movimento. A unidade da fala uma unidade complexa, e no homognea.''

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  • Desenvolvimento e aprendizado

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  • O desenvolvimento humano, o aprendizado e as rela-es entre desenvolvimento e aprendizado so temas centrais nos trabalhos de Vygotsky. Sua preocupao com o desenvolvimento do homem est presente em toda sua obra, como ficou evidente nos captulos anteriores. Vygotsky busca compreender a origem e o desenvolvimen-to dos processos psicolgicos ao longo da histria da es-pcie humana e da histria individual. Esse tipo de abor-dagem, que enfatizao processo de desenvolvimento, chamado de abordagem gentica e comum a outras teo-rias psicolgicas.

    As teorias de Jean Piaget e de Henri Wallon so as mais completas e articuladas teorias genticas do desenvolvi-mento psicolgico de que dispomos. Diferentemente des-ses dois estudiosos, Vygotsky no chegou a formular uma concepo estruturada do desenvolvimento humano, a partir da qual pudssemos interpretar o processo de cons-truo psicolgica do nascimento at a idade adulta. Ain-da que o desenvolvimento (da espcie, dos grupos cul-turais, dos indivduos) seja objeto privilegiado de suas investigaes, Vygotsky no nos oferece uma interpreta-o completa do percurso psicolgico do ser humano; oferece-nos, isto sim