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Cad. Brás. Ens. Fís., v. 19, n.2: p. 149-175, ago. 2002 149 O TEMPO NA MECÂNICA: DE COADJUVANTE A PROTAGONISTA +* André Ferrer P. Martins 1 Faculdade de Educação USP João Zanetic Instituto de Física USP São Paulo SP Resumo O presente artigo procura interpretar, à luz dos referenciais epistemológicos de Thomas S. Kuhn e Gaston Bachelard, as diferentes concepções do conceito de tempo na transição do paradigma aristotélico-ptolomaico para a nova mecânica pós-copernicana. É particularmente destacado no artigo o erro cometido por Galileu e Descartes, ao tentarem estabelecer a lei da queda dos corpos, e como a superação de tal obstáculo levou à introdução do conceito de tempo de modo definitivo na análise dos movimentos. Palavra- chave: Tempo, História da Ciência, epistemologia e ensino de Física. Abstract This article seeks to interpret, in the light of the epistemological refer- ences of Thomas S. Kuhn and Gaston Bachelard, the different interpre- tations of the concept of time during the transition from the Aristotelian- Ptolemaic paradigm to the new, post-Copernican mechanics. Particular attention is given to the error committed by Galileo and Descartes, in at- tempting to establish the law of falling bodies, and to how overcoming + Time in mechanics: from supporting actor to protagonist * Recebido:abril de 2001. Aceito: fevereiro de 2002. 1 Aluno de pós-graduação (doutorado), atualmente bolsista da Fapesp. Bolsista da CAPES quando da elaboração do presente trabalho.

Zanetic; Martins - O Tempo Na Mecanica de Coadjuvante a Protagonista - 6618-20145-1-PB

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O Tempo Na Mecanica de Coadjuvante a Protagonista - 6618-20145-1-PB

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  • Cad. Brs. Ens. Fs., v. 19, n.2: p. 149-175, ago. 2002 149

    O TEMPO NA MECNICA: DE COADJUVANTE APROTAGONISTA+*

    Andr Ferrer P. Martins1Faculdade de Educao USPJoo ZaneticInstituto de Fsica USPSo Paulo SP

    Resumo

    O presente artigo procura interpretar, luz dos referenciaisepistemolgicos de Thomas S. Kuhn e Gaston Bachelard, as diferentesconcepes do conceito de tempo na transio do paradigmaaristotlico-ptolomaico para a nova mecnica ps-copernicana. particularmente destacado no artigo o erro cometido por Galileu eDescartes, ao tentarem estabelecer a lei da queda dos corpos, e como asuperao de tal obstculo levou introduo do conceito de tempo demodo definitivo na anlise dos movimentos.

    Palavra- chave: Tempo, Histria da Cincia, epistemologia e ensino de Fsica.

    Abstract

    This article seeks to interpret, in the light of the epistemological refer-ences of Thomas S. Kuhn and Gaston Bachelard, the different interpre-tations of the concept of time during the transition from the Aristotelian-Ptolemaic paradigm to the new, post-Copernican mechanics. Particularattention is given to the error committed by Galileo and Descartes, in at-tempting to establish the law of falling bodies, and to how overcoming

    + Time in mechanics: from supporting actor to protagonist

    * Recebido:abril de 2001.Aceito: fevereiro de 2002.

    1 Aluno de ps-graduao (doutorado), atualmente bolsista da Fapesp. Bolsista da CAPES quando da elaborao do presente trabalho.

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    this obstacle lead to the introduction of the concept of time as definitivein the analysis of movement.Keywords: Time, History of Science, epistemology and Physicsteaching.

    I. Introduo

    Como resultado de uma dissertao de mestrado defendida em 1998 naUSP (Martins, 1998), produziu-se um texto destinado preferencialmente a professoresde cincias em geral, e de fsica em particular, no qual fazemos uma releitura histricado perodo compreendido entre os sculos IV a.C. e XVII d.C. Nosso objetivo foi o deanalisar como o conceito de tempo foi introduzido de modo definitivo no estudo dosmovimentos, e as diferentes concepes desse conceito tanto no mbito do paradigmaaristotlico-ptolomaico como na chamada nova mecnica , representada pelostrabalhos de Coprnico, Galileu, Kepler e Newton, principalmente.

    Em diversos momentos, fizemos uso dos referenciais epistemolgicosoferecidos por Thomas Kuhn (1987) e Gaston Bachelard (1991 e 1996), queclassificamos genericamente sob o rtulo de epistemologias histricas da cincia .No apresentaremos aqui as principais idias desses autores, pois isso tornaria pordemais extenso este trabalho. Mas h, certamente, um bom nmero de referncias quepodem ser consultadas nesse sentido.

    Embora este artigo no contemple vrios outros aspectos histricos efilosficos a respeito da evoluo da compreenso do conceito de tempo, acreditamosque ele fornece elementos que possibilitam, a professores de fsica do ensino mdio oude disciplinas universitrias introdutrias, uma abordagem mais rica desse conceito emsala de aula.

    Segue, ento (com algumas alteraes), o texto produzido.

    II. O tempo na mecnica: de coadjuvante a protagonista

    - Que sucedeu? - perguntou Fogg.- Senhor... - balbuciou Fura-Vidas. Casamento... impossvel.- Impossvel?- Impossvel... para amanh.- Por qu?- Porque amanh... domingo.- Segunda-feira - replicou Fogg.- No... hoje... ... sbado...- Sbado? Impossvel!

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    - Sim, sim, sim! - comeou a gritar Fura-Vidas. O senhor enganou-se num dia! Chegamos vinte e quatro horas antes... Mas agora norestam mais que... dez minutos.

    Julio Verne 1

    Para ns, que temos na Filosofia do No de Bachelard um dos principaisreferenciais tericos no campo epistemolgico (Bachelard, 1991), talvez no haja nadamais natural do que iniciarmos este texto a partir de um erro. Galileu, ao estabelecer alei de queda dos corpos, busca primeiramente relacionar a variao de velocidade doscorpos em queda com a distncia percorrida a partir da origem, e no com o intervalode tempo correspondente. Esse erro , no qual Galileu assume ter incorrido (nosDiscorsi) durante certo tempo, tambm foi cometido por Descartes, como apontaAlexandre Koyr (Koyr, 1986). Por que dois monstros da cincia haveriam detitubear para introduzir o tempo no estudo do movimento de queda? Uma respostasatisfatria a esta questo s poder emergir se conseguirmos compreender o trabalhode ambos no mbito de uma revoluo cientfica, no sentido kuhniano da expresso(Kuhn, 1987).

    Galileu, que ser o objeto mais direto de nossa anlise, um protagonistadessa revoluo que, essencialmente, representou a transio entre dois paradigmas: doaristotlico-ptolomaico para o newtoniano. E justamente por isso que necessitamos,inicialmente, adentrar no universo conceitual do primeiro paradigma. Somente dessaforma poderemos entender a natureza e o porqu da revoluo, a relevncia e a razo do erro galileano, e a ruptura existente entre as vises de mundo representadas por essesparadigmas em geral, e entre os conceitos de tempo a eles associados, em particular.

    II.1. O universo de Aristteles

    Foi no mbito da astronomia que os mais duros golpes foram deferidoscontra a cosmologia aristotlica. O universo heliocntrico de Nicolau Coprnico veio,no sculo XVI, a contribuir no apenas para uma completa reformulao da astronomiasob novas bases, como tambm para uma transformao radical na viso do homem ede seu papel no universo.

    Tratava-se o universo herdado pelos contemporneos de Coprnico de ummundo fechado. Suas razes encontram-se por volta do sculo IV a.C. na Grcia, ondese consolidou a viso de que a Terra era esfrica e encontrava-se imvel no centro do

    1 Verne, 1970, p. 196.

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    universo. Ao seu redor circulavam, presos a esferas, a Lua, o Sol, os demais planetas(Mercrio, Vnus, Marte, Jpiter e Saturno visveis a olho nu, e conhecidos desde aantigidade) e, por ltimo, as estrelas. Alm delas no existia nada: nem espao, nemmatria.

    A esfera fora escolhida por ser a mais perfeita figura da geometria, sendopor isso a melhor opo de que dispunha o Criador para construir o mundo. Essaconcepo aparece no Timeu, de Plato2, onde nos diz o autor que o tempo foi criadojunto com o universo, como uma imagem mbil da eternidade . Entretanto, haviatambm outras razes de natureza observacional que sustentavam a esfericidade daTerra, como o formato da sombra projetada por esta durante um eclipse lunar ou amaneira pela qual os navios desapareciam no horizonte (primeiramente o casco e, porfim, o mastro).

    Quanto imobilidade da Terra, nossos prprios sentidos atestam a seufavor, enquanto o Sol e as estrelas parecem caminhar no cu durante o dia e a noite,circundando-nos. Esse um ponto importante, uma vez que o argumento dos sentidossomou-se a motivaes tericas, estticas e religiosas para sustentar, durante sculos, omodelo cosmolgico em questo.

    Aristteles (384-322), no De Clo, justifica a esfericidade dos cus e aimobilidade da Terra da seguinte forma, como aponta W. D. Ross (1957), em sua obrasobre esse autor:

    A atividade de Deus a vida eterna. Portanto o movimento do cu,que um corpo divino, deve ser eterno, e por esta razo o cu deveser uma esfera rotativa. Mas o centro de um corpo rotativo est emrepouso. Deve haver, pois, uma terra em repouso no centro douniverso. (p. 140 traduo livre)

    O universo, esfrico e geocntrico, explicava, de modo bastante satisfatrio, uma srie de movimentos observados no cu, como o chamado movimento dirio doSol e das estrelas (de leste para oeste), e o movimento para o norte e para o sul doSol, com o passar das estaes, alm dos eclipses. Havia tambm uma justificativa paraa ordem dos astros a partir da Terra (Lua, Mercrio, Vnus, Sol, Marte, Jpiter,Saturno e estrelas), uma vez que, quanto maior a proximidade com a ltima esfera,menor era o atraso para leste (em relao s estrelas) verificado ao longo do tempo nomovimento do astro em questo, que era um movimento observado na prtica.

    2 Plato, 1977, p. 50.

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    No entanto, os planetas apresentavam movimentos mais complexos,conhecidos como movimentos retrgrados. Pareciam errar pelo cu noturno3,interrompendo por um certo perodo o seu movimento para leste e avanando paraoeste, retrocedendo novamente em seguida. Tais movimentos desafiaram desde cedo osarticuladores do universo geocntrico. Dentre eles, Eudoxo e Calipo, ainda no sculoIV a.C., estabeleceram um sistema de esferas homocntricas no qual cada planetapertencia no a uma, mas a um conjunto de armaes esfricas concntricas einterligadas. Embora bastante sofisticado, esse sistema no explicava adequadamente asvariaes de brilho observadas nos planetas, sendo abandonado pelos astrnomos emdetrimento de outra concepo geomtrica mais satisfatria: o sistema de epiciclos edeferentes, desenvolvido por Apolnio e Hiparco entre os sculos III e II a.C. Nele, umcerto planeta era posto a circular sobre uma pequena esfera (o epiciclo), cujo centrogirava sobre uma circunferncia maior (o deferente), conforme indica a figura abaixo:

    J no sculo II a.C., Ptolomeu ser responsvel por uma grande sntese daastronomia grega desenvolvida at ento, e sua obra Almagesto revela uma srie deoutros artifcios geomtricos que foram utilizados pelos astrnomos na tentativa deadequar o modelo s observaes das posies planetrias. Alm de epiciclos edeferentes, havia epiciclos menores, excntricos (crculos cujos centros estariamdeslocados do corpo em torno do qual ocorria o movimento) e equantos (pontostambm deslocados do centro geomtrico do deferente, mas em torno do qual avelocidade de rotao do mesmo deveria ser uniforme).

    O importante nesse ponto percebermos como o problema das posiesplanetrias acabou levando os astrnomos da antigidade a construrem um modelocada vez mais aprimorado e geometrizado do universo, numa tentativa de salvar aesfera, conciliando observao e sentidos . Resgatando novamente os conceitos

    3 Da o prprio nome de planeta , que significa astro errante (em grego).

    Fig. 1- O sistema epiciclo-deferente

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    kuhnianos, esferas homocntricas, epiciclos, deferentes, etc., representariam aarticulao de um paradigma numa prtica identificada com a cincia normal . Namedida em que, como veremos a seguir, o modelo aristotlico-ptolomaico vinculava-sea uma teoria do movimento e da constituio material do universo, sendo aindaincorporado e adaptado por um sistema religioso, tornou-se cada vez mais difcilromper com essa viso de mundo. nesse sentido, de um corpo de conhecimentosarticulado, coeso, estruturado, explicativo de uma certa ordem das coisas , quepodemos falar em paradigma . neste momento que se faz necessria nossadiscusso, para que conceitos como revoluo e incomensurabilidade possam teralguma significao quando emergirmos (Kuhn, op.cit.).

    Embora o sistema de Ptolomeu no conseguisse ajustar-se fielmente sobservaes, dominou como modelo astronmico (no que se refere previsibilidadedas posies dos astros) durante quase 1800 anos. Entretanto, foi o sistema de esferashomocntricas que acabou por ser incorporado cosmologia aristotlica,permanecendo, em parte, aceito durante todo esse perodo. Dessa forma, a realidadeontolgica das armaes esfricas poderia ser descartada por alguns, que lhesimputavam uma realidade metafrica .4

    A cosmologia aristotlica separava rigidamente o universo, finito, em duasregies distintas: o mundo supralunar ou celeste, que se estendia a partir da esfera daLua at a ltima esfera (das estrelas), e o mundo sublunar ou terrestre, situado abaixo da esfera lunar, que continha a Terra. O mundo supralunar era constitudo de ter , umslido cristalino puro, inaltervel e sem peso, compatvel com a eternidade, perfeio eimutabilidade dos cus. As esferas eram consideradas espessas o suficiente para que omovimento dos astros em seu interior pudesse explicar as variaes de brilhoobservadas. O movimento circular de cada esfera, a partir das estrelas, era transmitidos demais, at Lua.

    Enquanto isso, o mundo sublunar constitua-se de quatro elementosfundamentais, tambm ordenados em esferas a partir do centro do universo: terra, gua,ar e fogo. Na ausncia de qualquer distrbio, esses quatro elementos deveriampermanecer em repouso, espelhando a estrutura das esferas celestes. No entanto, aregio sublunar constantemente perturbada, uma vez que o movimento mais imediatoda esfera lunar (e, em ltima instncia, das estrelas) movia a fronteira entre essa e ascamadas inferiores de fogo, gerando correntes que impeliam e misturavam os demaiselementos, em propores variadas. Dessa forma, a composio de cada uma dasesferas no pura , embora haja predominncia do elemento prprio daquela esfera.Adquirindo traos de outros, um elemento transforma suas caractersticas, originando,de acordo com as propores da mistura (causada pelo movimento dos cus), as

    4 Kuhn, 1990, p. 79 e 101-102. Essa no parece ser a posio de Aristteles, para quem as esferas eram reais. Ver Ross, op.cit., p. 143.

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    diversas substncias presentes na Terra. Os cus, portanto, embora separados da Terra,seriam os responsveis pelas mudanas e corrupes nossa volta.

    De modo compatvel e complementar ao exposto acima, na concepoaristotlica do movimento terrestre h a necessidade de uma fora para que os corpossejam alijados de suas posies naturais , s quais tendem a retornar, uma vez que afora cesse. O movimento para cima e para baixo nada mais , portanto, do que aatualizao de uma potncia. De tal sorte que uma pedra, lanada verticalmente paracima, tende a regressar ao Solo, num movimento de retorno ao seu lugar natural , ocentro da Terra e do universo. Esse ponto crucial para compreendermos a importnciado espao na viso de mundo aristotlica, pois, mesmo que a Terra fosse deslocada desua posio atual, ainda assim a pedra mover-se-ia para o ponto geomtrico considerado o centro do universo. Portanto, o centro da terra coincide com o do universo, e esseargumento refora ainda mais a esfericidade e imobilidade da Terra.

    O espao no , entretanto, separado da matria que o preenche. No mundode Aristteles no h vcuo, e o espao um pleno de matria que, por ser contnua,pode ser infinitamente dividida sem que se chegue a um limite.

    Mas, como se situa a questo do tempo na cosmologia aristotlica?Adentramos aqui, certamente, em um ponto de grande interesse para a perspectivacolocada por nosso trabalho. Em sua obra sobre Aristteles, Ross (op.cit.) aponta que otempo , na concepo desse filsofo, infinito em dois sentidos: do ponto de vista daadio, ou seja, no pode esgotar-se por nenhuma adio de partes, e do ponto de vistada diviso, ou seja, divisvel ad infinitum. O infinito temporal no existe, entretanto,simultaneamente, uma vez que cada parte desaparece, embora no deixe de haveroutras.5

    O tempo no existe como um todo dado infinito, pois no est nanatureza de suas partes coexistir; mas, diferente da extenso, otempo potencialmente infinito desde o ponto de vista da adio. Otempo, como a extenso, infinitamente divisvel, mas noinfinitamente dividido. (Ross, op.cit., p. 126 traduo livre)

    Podemos ver como o universo finito de Aristteles no o permiteatribuir extenso a possibilidade de infinitude quanto adio. Por outro lado, clara a nfase ontolgica dada ao presente, na concepo de tempo exposta acima.

    O tempo , tambm, contnuo, pois est ocupado por um movimentocontnuo. E o movimento, por sua vez, contnuo porque se d atravs de um espao

    5 A prpria impossibilidade de um comeo e um fim para o tempo um argumento a favor daidia de infinito.

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    contnuo. Dessa forma, a idia de anterior e posterior relaciona-se com o espao,com o movimento, e em terceiro lugar, com o tempo. Em relao a este, podemosdistinguir um antes e um depois , ou seja, dois agoras com um intervalo(contnuo) entre eles. Esses agoras no seriam as menores partes do tempo. Issoporque, para Aristteles, o intervalo contnuo entre esses dois agoras pode ser(potencialmente) dividido ao infinito. E nenhum contnuo poderia ser composto deindivisveis6. Como argumenta Ross (op.cit.):

    ( ) se em virtude de seus agora o tempo numerado, no devemos supor que os agora so partes do tempo, assim como tampoucosupomos que os pontos so partes da linha. No existe tempomnimo como no existe linha mnima. (p. 133 traduo livregrifo nosso)

    Aristteles relaciona o tempo ao movimento em geral, afirmando que otempo o aspecto numervel do movimento, o nmero do movimento com respeito aoantes e depois . O tempo e o movimento definem-se um ao outro:

    No apenas medimos o movimento pelo tempo, mas tambm otempo pelo movimento, porque eles se definem um ao outro. Otempo marca o movimento, visto que seu nmero, e o movimentomarca o tempo. (Apud G. J. Whitrow, 1993, p. 57)

    O movimento dos cus, portanto, por ser circular, regular e imutvel,forneceria uma medida perfeita desse tempo contnuo ao mesmo tempo em que faz comque o prprio tempo seja contnuo, o que nos lembra a viso platnica de um tempoproduzido pela rotao das esferas celestes.

    Outro ponto importante, assinalado por Ross (op.cit.), o fato deAristteles questionar-se quanto possibilidade de o tempo existir na ausncia da alma,se o tempo poderia existir na ausncia da alma, ou seja, sem algum que possa contar .Nessa hiptese, o tempo em si no existiria, mas apenas o movimento (que seusubstrato ), sem aspecto mensurvel.

    H diversas consideraes a serem feitas a partir dos ltimos pargrafos,que situam a questo temporal na cosmologia aristotlica. Primeiramente, parece-nosclaro, a essa altura, o carter secundrio que o tempo assume dentro deste paradigma.O movimento no relativo ao tempo, embora este seja seu aspecto numervel , mas

    6 Essa questo complexa, e est relacionada prpria definio de contnuo em Aristteles,que, por sua vez, depende de outros termos fundamentais (contato, extremos, etc.). Para maisdetalhes ver Ross, op.cit., p. 134-136.

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    ao lugar. No universo aristotlico, os lugares esto bem determinados em uma rgidahierarquia de um mundo fechado, e o privilgio do espao-matria. O tempo umcoadjuvante que, aparentemente, desapareceria com a ausncia do homem.

    A importncia do espao discutida por Kuhn (1990) quando assevera queesse conceito, na concepo aristotlica, difere radicalmente do espao newtoniano.Este ltimo caracteriza-se pela homogeneidade e isotropia, sendo fisicamente neutro,no existindo nenhuma regio ou direo preferencial para o movimento. Por outrolado, o primeiro caracteriza-se por uma diferenciao de lugares que atuam nomovimento dos corpos. Como coloca Kuhn:

    O prprio espao fornece o impulso que leva o fogo e as pedraspara os seus lugares naturais de repouso na periferia e no centro.As interaes da matria e do espao determinam o movimento e orepouso dos corpos. (p. 121)

    O autor considera ainda que esta viso incorpora certos resduos deconcepes mais primitivas de espao associadas ao espao da vida , segundo asquais, as diferentes regies e direes tm caractersticas diferentes. Kuhn cita comoexemplo o fato de, em muitas sociedades mais antigas, palavras que denotam direesestarem associadas a partes do corpo e refletirem as diferenas dessas partes.

    Chegamos com isso a um segundo ponto a ressaltar a respeito dacosmologia aristotlica. Os resduos de concepes primitivas de espao, como foiexposto acima, relacionam-se a uma viso essencialmente anmica do mundo, onde adistino entre o orgnico e o inorgnico deixa de ser clara, e os objetos parecemser movidos por desejos e motivaes internas. Kuhn, embora saliente que oanimismo no toda a base psicolgica da teoria aristotlica do movimento, refora aidia de que no universo conceitual desse mundo fechado est presente um componenteanmico que, por sua vez, bastante comum nas concepes infantis sobre a natureza.H diversos estudos em educao que relacionam as vises das crianas sobre omovimento com a teoria aristotlica, e evidenciam muitas vezes o carter anmico deambas.

    As pedras de Aristteles no esto vivas, embora o seu universofreqentemente parea estar, pelo menos metaforicamente. (...) Masa sua percepo da pedra ao saltar da mo para atingir o seu lugarnatural no centro do universo no assim to diferente dapercepo da criana sobre o balo que gosta do ar ou da caixa que cai porque gosta de estar a. O vocabulrio mudou; os conceitos so manipulados pela lgica dos adultos; o animismo foi transformado.Mas a maior parte da atrao da doutrina de Aristteles deve

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    residir na naturalidade da percepo que apia a doutrina. (Kuhn,op.cit., p. 119)

    Parece-nos que nesse animismo transformado que se encontraembebido o conceito de tempo em Aristteles. Embora compartilhando de certascaractersticas que estaro presentes no tempo absoluto de Newton, como acontinuidade e a infinitude, tais semelhanas so apenas aparentes. Sua infinitude no atual , mas potencial , e a continuidade no , ontologicamente, congruente com a

    viso newtoniana. Como vimos, o tempo para Aristteles apenas o aspectonumervel do movimento , que adquire algum sentido somente na presena de umaalma que possa contar . A necessidade dessa alma , certamente, um componenteanmico, ainda que a idia de mensurabilidade e de numerao resgate tambm umacerta viso empirista (ou realista ingnua).

    Ser que tal anlise encontra respaldo nas concepes infantis sobre otempo? As crianas costumam associar o tempo a diversos outros conceitos, masprincipalmente com as idias de mudana e movimento . Desse modo, o tempopassa, por exemplo, enquanto uma pessoa est em crescimento, mas no a partir domomento em que se torna adulta. Um estudo com crianas de 7 a 11 anos de idade(Proverbio e Lai, 1989) mostrou que as mais novas estabelecem uma conexo entretempo fsico e tempo meteorolgico ou clima , caminhando aos poucos para um

    conceito mais abstrato de tempo, independente das aes do sujeito ou de fenmenospercebidos por ele. J Piaget, em seus estudos com crianas sobre a noo de tempoevidencia mais precisamente como esse conceito encontra-se inicialmente vinculadocom o deslocamento ou a velocidade nas anlises dos movimentos. Isso ocorre tantoantes quanto depois de estabelecidas as noes de sucesso e simultaneidade de eventos (ou ordem dos acontecimentos) por parte da criana.7 Se, por um lado, alguns aspectosdas concepes infantis paream corresponder a uma outra espcie de animismo (talvez mais elementar e egocntrico), por outro, elas compartilham com a viso aristotlica oque lhes falta: um empirismo que mea o tempo de forma inequvoca, ou um realismoque d a ele uma certa existncia em si e uma certa independncia ontolgica eepistemolgica, ou ainda, uma racionalidade que o incorpore num quadro conceitualpleno, num conjunto de noes sem resduos anmicos Enfim, que o faaindependente de uma alma que o conte , ou de uma mudana que confirme suapassagem.

    7 Piaget, 1981, p. 16-18.

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    Seria importante evocarmos, diante dessa anlise, as doutrinas filosficasde Gaston Bachelard, alm da idia de perfil epistemolgico 8. O conceito de tempocaro cosmologia aristotlica apresentaria, principalmente sob essa perspectiva,elementos das duas primeiras doutrinas consideradas por Bachelard em suahierarquia: o animismo (ou realismo ingnuo) e o empirismo (claro e positivista).Esperamos haver delineado acima aspectos do que poderia ser considerado umconceito anmico de tempo , ainda que de modo incompleto e simplificado. Embora

    no tenhamos discutido em pormenores aquilo que corresponderia a uma visoempirista, parece-nos claro que, da mesma forma que para a massa haveria umaconduta da balana ( a massa o que a balana mede ), no caso do tempo seria

    possvel falarmos em uma conduta do relgio ( o tempo o que o relgio mede , ouseja, o conceito passa a ser definido pelo aparelho de medida).

    Como vimos, seria difcil atribuir um grande peso a tal conceito empiristano paradigma aristotlico, pois no se trata exatamente de medir o tempo, mas de usar a noo de tempo, que supe a possibilidade de numerao, como uma medida domovimento. Mas, quando o movimento circular dos cus apresentado como umamedida perfeita do tempo , e quando este, contnuo, passa a ser referenciado poraquele, salientam-se aspectos de um empirismo que ainda no representa uma conduta

    8 Em A Filosofia do No Bachelard defende que existam certas fases atravessadas durante aevoluo filosfica de um conhecimento cientfico particular, que caminha no sentido de umacoerncia racional. Essas fases iriam do animismo (ou realismo ingnuo) ao ultra-racionalismo,passando pelo realismo (ou empirismo claro e positivista), e pelo racionalismo tradicional. Oultra-racionalismo engloba os denominados racionalismos complexo e dialtico. Pode-se falar emprogresso filosfico dos conceitos, e em hierarquia de doutrinas filosficas , ambas as noes

    fundamentando a idia de perfil epistemolgico .Como exemplo, Bachelard usa o conceito de massa. Em sua forma animista, a massa aparececomo uma apreciao quantitativa grosseira da realidade, relacionada essencialmente s coisasgrandes . A noo empirista de massa estaria vinculada a uma pretensa determinao objetiva eprecisa (Bachelard refere-se a uma conduta da balana ). O conceito racionalista de massanasce, para Bachelard, com a mecnica newtoniana, que o insere num corpo de noes . J norepresenta uma experincia imediata e direta, mas define-se com referncia a outras noes (fora e acelerao), sendo uma espcie de coeficiente de devir . enquanto relao. O racionalismocomplexo seria exemplificado pela noo de massa da teoria da relatividade, onde ela passa a serfuno da velocidade, e no mais heterognea energia. Por ltimo, Bachelard apresenta oconceito de massa presente na mecnica de Dirac como um exemplo do ultra-racionalismodialtico. dentro dessa filosofia dispersa que surge o conceito de perfil epistemolgico, segundo o qualas diferentes doutrinas filosficas encontram, no indivduo, um certo peso relativo , uma certaintensidade de presena . A evoluo do esprito, atravs das fases representadas na hierarquia

    de escolas filosficas, significaria superao de obstculos epistemolgicos (Bachelardenumera e analisa uma srie de tipos de obstculos na obra A Formao do Esprito Cientfico -1996).

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    do relgio , mas que abre caminho para tal. Parece-nos que a importncia atribuda aoespao no permitiu cosmologia aristotlica estabelecer esse conceito empirista clarodo tempo. Embora existissem poca relgios de Sol e de gua, a sombra dognmom ainda devia-se ao movimento do Sol no interior de uma esfera de ter ao

    redor da Terra, e a gua das clepsidras ainda gotejava em direo ao seu lugar natural .

    II.2. A transio

    A superao do ponto de vista aristotlico no foi um processo fcil etranqilo , resultado de alguma experincia crucial ou simplesmente de novosconhecimentos acrescentados a esse saber. Pelo contrrio, a substituio desseparadigma, por outro lado, requer uma revoluo cientfica caracterizada por umaruptura profunda com o conhecimento estabelecido. Seria ingnuo achar que oparadigma aristotlico-ptolomaico pudesse ser substitudo facilmente por outro, ou quealguma simples experincia (como a hipottica experincia realizada por Galileu natorre de Pisa) fosse suficiente para refutar tal viso de mundo. Ser necessria aconstruo de uma nova teoria do movimento , que d conta dos fenmenos sob atica de uma Terra planetria.

    O perodo de gestao dessa nova teoria do movimento foi longo.Ptolomeu, que viveu no sculo II a.C., pode ser considerado umas das ltimas grandesfiguras da cincia antiga. O saber ocidental decaiu sob o domnio romano e com aascenso do pensamento cristo. Resgatado posteriormente pelos rabes durante ainvaso da pennsula Ibrica no sculo VII, ressurgiu na Europa por volta do sculoX, quando as primeiras tradues latinas do rabe passaram a ser aceitas. Ao longo detodo esse perodo o mundo islmico tornou-se um plo de conhecimento.

    Esse processo de recuperao do saber antigo intensifica-se no sculo XIII,com o surgimento das primeiras universidades, que iro abrigar a tradio filosficaconhecida como escolstica. Kuhn aponta que existiam inmeros problemas narecuperao dos textos antigos, fazendo com que parecessem, aos olhos dos medievais,contraditrios e desconexos. Consideravam, por exemplo, que Aristteles e Ptolomeueram quase contemporneos, e pertencentes mesma tradio, quando na verdade opensamento aristotlico era mais filosfico e cosmolgico , enquanto o ptolomaicoera mais matemtico . Isso tudo contribuiu para lanar dvidas sobre toda a tradio.9

    A Igreja teve um papel determinante nesse processo, uma vez quepraticamente concentrou todo o conhecimento durante a Idade Mdia. Entretanto, suaatitude face ao saber dos antigos no foi uniforme ao longo do tempo, o que explicainclusive o declnio e ressurgimento do legado da antigidade clssica. Os primeirostelogos cristos eram hostis com relao ao conhecimento pago , numa poca em

    9 Kuhn, op.cit., p. 127-129.

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    que a f crist procurava afirmar-se. Santo Agostinho (354-430), em particular,representou esse pensamento, muito embora tenha sido influenciado por textosplatnicos. Em suas Confisses, ele apresenta uma longa discusso sobre o tempo, quesurge no contexto de uma indagao de natureza religiosa: o que estaria fazendo Deusantes da criao? . Sua concluso a de que o prprio tempo passou a existir com acriao (aproximando-se da viso platnica). A partir disso, Agostinho passa a tentarresponder o que o tempo? . Para ele, o passado j no existe, e o futuro aindano veio. Numa tentativa de atribuir realidade ao presente , passa a considerar algunsintervalos de tempo (cem anos, um ano, um dia), mostrando que sempre h, emqualquer diviso que se faa, um passado que j no , e um futuro que ainda ser.Conclui que o presente no tem nenhuma durao :

    Se pudermos conceber um espao de tempo que no sejasuscetvel de ser subdividido em mais partes, por mais pequeninasque sejam, s a esse podemos chamar tempo presente. Mas este voato rapidamente do futuro ao passado, que no tem nenhumadurao. Se a tivesse, dividir-se-ia em passado e futuro. Logo, otempo presente no tem nenhum espao. (Agostinho, 1980, p. 219)

    Apesar de afirmar que o presente no tem durao, Agostinho admite quepodemos comparar intervalos de tempo, na poesia ou na msica, e dizer, por exemplo,que uma slaba tem o dobro de tempo de outra . Em conseqncia disso ir negar(afastando-se da viso aristotlica) que o tempo seja o movimento dos corpos, em geral, e dos astros, em particular. No entanto, a concepo de Agostinho compartilha com a de Aristteles um certo componente anmico , uma vez que a medida do tempo realizada, pelo primeiro, por via de seu esprito, por onde passam as expectativasfuturas em direo memria, enquanto que o segundo, como vimos anteriormente,necessita de uma alma que conte.

    Nos sculos XII e XIII, com a hegemonia do cristianismo assegurada,tornaram-se necessrias algumas modificaes para fundir a cosmologia aristotlico-ptolomaica com as inconciliveis teses da Igreja. Desse modo, abandonou-se porexemplo a idia aristotlica de que o universo e o movimento sempre existiram (emclaro confronto com as escrituras), enquanto que a impossibilidade do vazio foiquestionada por alguns limitava o poder infinito de Deus. As esferas homocntricasnum universo geocntrico adaptaram-se perfeitamente viso crist, na qual o serhumano vivia num mundo terreno de corrupes e mudanas, aspirando alcanar asalvao com a elevao de sua alma aos cus eternos e imutveis. Microcosmo emacrocosmo confundem-se e complementam-se; anjos e arcanjos movimentam os cus.No toa que S. Toms de Aquino (1225-1274), telogo que mais contribuiu para afuso , defende a existncia de trs tipos de tempo: a eternidade atemporal

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    (prerrogativa de Deus apenas), o tempo dos anjos e dos corpos celestes (com incio,mas sem fim), e o dos corpos e fenmenos terrestres (uma sucesso com comeo e fimdefinidos). Associa o tempo ao movimento, assim como faz Aristteles, afirmando queo antes e o depois no movimento que constituem a sucesso temporal.Compartilha, entretanto, com Santo Agostinho a noo de que o tempo foi criado juntocom o Universo (Toms de Aquino, 1973).

    II.3. A revoluo de Coprnico

    O Renascimento foi o momento propcio para a revoluo. O impulso dado astronomia pelas navegaes, que exigiam um melhor conhecimento dos cus e umamais precisa marcao do tempo, e pela necessria reforma do calendrio Juliano, uniu-se a diversos fatores de ordem poltica, econmica e social, para formar o caldo queiria alimentar Coprnico, Galileu e Kepler.10 Alm disso, influenciar o pensamentorenascentista a corrente neoplatnica, cujas razes encontram-se nos primeiros sculosda era crist, e que valorizava a matemtica e a geometria, as formas ideais de ummundo incorruptvel contra a evidncia dos sentidos.

    nesse contexto que surge o trabalho de Nicolau Coprnico (1473-1543),de importncia capital para o desenvolvimento de uma nova astronomia e cosmologia.Para ns, que temos na questo do tempo nossa preocupao imediata, a obra deCoprnico no trouxe qualquer contribuio direta. Entretanto, indiretamente, seu papel foi crucial, na medida em que abalou todo um sistema explicativo coerente. Umamudana na astronomia teve que ser acompanhada por uma nova teoria do movimento,e nesse momento que surgir a questo temporal, como veremos.

    O De Revolutionibus Orbium Caelestium, publicado em 1543, era um livroessencialmente tcnico, destinado a astrnomos. Embora tenha propiciado a revoluo,no se tratava de uma obra revolucionria , vinculada que estava antiga tradio.Coprnico tinha objees astronomia de sua poca que, segundo ele, era incapaz dereSolver o problema dos planetas (ao longo dos sculos que separam Ptolomeu deCoprnico acumularam-se pequenos erros das posies planetrias, gerando umaincongruncia maior entre o antigo sistema e as observaes). Sob seus culosneoplatnicos o sistema ptolomaico parecia monstruoso . A mobilidade da Terra

    10 Segundo Koyr, esse perodo, que acabou por destruir a sntese aristotlica, no corresponde(como se diz muitas vezes) a uma poca dotada de esprito crtico ou esprito de cincia . Pelocontrrio, trata-se da poca da mais grosseira e mais profunda superstio, da poca em que acrena na magia e na feitiaria se expandiu de modo prodigioso, infinitamente mais do que naIdade Mdia. Para o historiador, o desenvolvimento da cincia ocorreu margem do espritorenascentista , ao qual Kepler encontra-se mais ligado que Galileu. Ver Koyr, A. - AContribuio Cientfica da Renascena. In: Koyr, 1991, p. 46-55.

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    representava para ele, a princpio, um artifcio matemtico til capaz de minorar asdiscrepncias e trazer uma harmonia para o modelo do universo.

    Em muitos aspectos, o Universo de Coprnico assemelhava-se ao dacosmologia aristotlica: era esfrico, assim como a Terra, e finito. O movimento doscorpos celestes era uniforme, circular e perptuo, ou composto de movimentoscirculares. Esses movimentos seriam naturais numa esfera, o que permite a Coprnicoromper com a tradio e atribuir, de imediato, um movimento de rotao (em torno doprprio eixo) para nosso planeta, o que explicaria a rotao diurna dos astros (de lestepara oeste). Como a imobilidade seria mais nobre e divina que a mudana, argumentao autor que a primeira deveria ser imputada aos cus (e s estrelas), e no Terra. Essa,por sua vez, apresentava mais dois movimentos: o de rotao orbital anual em torno doSol, e um movimento cnico anual do eixo. Esse segundo movimento evidencia maisuma vez a relao de Coprnico com aspectos do pensamento aristotlico, em vias desuperao. Porque imagina a Terra fixa numa esfera que gira em torno do Sol, precisasupor o movimento cnico do eixo para compensar a variao de direo a que eleestaria submetido durante uma rotao anual. Atribuindo a aparncia dos movimentosaos cus e a sua realidade Terra, o modelo copernicano explicava no apenas arotao diurna dos astros, mas o movimento (aparente) do Sol para leste , em relaos estrelas, bem como as estaes do ano. Entretanto, at aqui o novo universo equivalente ao anterior, e quem sabe, mais complicado. com relao aos movimentosdos planetas, no entanto, que a explicao copernicana parece mais simples, uma vezque no so necessrios epiciclos maiores. O movimento retrgrado torna-se tambmum movimento aparente, produzido quando a Terra ultrapassa os planetasexteriores (Marte, Jpiter e Saturno) ou ultrapassada pelos interiores (Mercrio

    e Vnus). Vistos da Terra mvel, os planetas parecem ir e vir em relao ao fundo deestrelas. Qualitativamente, a nova viso mais econmica que a anterior, mas apreviso quantitativa do novo modelo era to boa quanto a dos modelos geocntricoscontemporneos. na ausncia E, para chegar a tal, Coprnico teve que usar epiciclosmenores e excntricos, inclusive para o movimento da Terra. O seu sistema, como umtodo, no mais simples ou mais exato que o de Ptolomeu. Nas palavras de Kuhn,Coprnico no resolveu o problema dos planetas .11

    As principais motivaes para a adeso ao copernicanismo parecem ter sido de natureza esttica . Alm da eliminao dos epiciclos maiores, o novo modelooferecia uma explicao imediata para o fato de Mercrio e Vnus aparecerem sempreprximos ao Sol, bem como vinculava o tamanho relativo das rbitas planetrias,estabelecendo uma certa coerncia para todo o sistema. A harmonia geomtricaainda era uma promessa no heliocentrismo copernicano, mas foi suficiente paraconseguir adeptos dispostos a extrair de sua obra o essencial construo de um novo

    11 Kuhn, op.cit., p. 198-199.

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    universo. Coprnico tornara aguda a crise do paradigma aristotlico-ptolomaico, efornecera uma fundamentao astronmica suficiente para isso. Entretanto, como umpersonagem de transio, seu vnculo a antigas concepes no lhe permitiu construiruma fsica compatvel com o movimento da Terra. Seus sucessores herdariam novosproblemas colocados por sua astronomia, cuja resoluo representaria o processo dearticulao necessrio consolidao da nova cosmologia.

    A oposio s idias de Coprnico foi crescendo cada vez mais durante osculo XVI, acirrando-se no incio do sculo XVII. Mesmo antes da publicao do DeRevolutionibus, Lutero contraps as idias de Coprnico Sagrada Escritura, cujaautoridade mxima ser tambm evocada por Calvino.

    No bojo da luta entre catlicos e protestantes inseriu-se o copernicanismo,apanhando dos dois lados. Estes partidrios de uma interpretao literal da Bblia,forneceram uma oposio feroz, mas a estrutura institucional dos catlicos acaboucontribuindo para uma atitude mais severa. A Inquisio procurou combater fortementea doutrina copernicana, no permitindo a impresso de livros que considerassem a Terra mvel, colocando o De Revolutionibus no ndex (em 1616), impondo a priso eretratao de Galileu (em 1633), entre outros atos.

    No entanto, a Terra se move! E a cada revoluo de nosso planeta tornava-se mais difcil manter a dicotomia celeste-terrestre, prpria do aristotelismo. O trabalhode outros, como Kepler e Galileu, ir pavimentar a estrada que leva nova mecnica.Antes de Kepler, Tycho Brahe (1546-1601) foi o responsvel por uma enorme melhoria das observaes e um aumento da preciso dos dados astronmicos, que sero herdadospor Kepler. Tycho, fiel ao paradigma geocntrico, estabeleceu um modelo decompromisso , que considerava a Terra como corpo central, mas onde os planetas

    deveriam girar volta do Sol. Era equivalente ao modelo copernicano, mas tinha omrito de abandonar o uso de esferas cristalinas , uma vez que a rbita do Sol deveriacruzar a de Marte. Tycho tambm contribuiu no sentido de romper com a idia de

    imutabilidade dos cus, ao observar vrios cometas que, devido ausncia de paralaxe,deveriam deslocar-se alm da esfera lunar. Fenmenos como esses jogavam a favordo sistema de Coprnico, e evidenciavam uma mudana de significado, importncia einterpretao.

    Uma ciso mais profunda com a cosmoviso geocntrica coube a JohannesKepler (1571-1630). Copernicano desde cedo, alm de melhorar certos detalhesmatemticos do modelo heliocntrico, estudar especialmente a rbita de Marte, quecontinha as maiores irregularidades, chegando sua famosa lei das rbitas elpticas.Com isso, no apenas substituiu todos os excntricos e epiciclos da antiga astronomia,como rompeu com a tradio do crculo e do movimento uniforme, uma vez que avelocidade de um planeta deveria variar ao longo de sua rbita, o que o cerne dasegunda lei, conhecida como lei das reas . Fortemente influenciado pelo pensamentoneoplatnico e pitagrico, Kepler considerava o Sol como a causa fsica dos

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    movimentos dos planetas, que eram empurrados em suas rbitas por raios de uma foramotriz (anima motrix), cuja origem era o Sol. Buscou uma srie de outras harmoniasmatemticas e geomtricas no universo, como por exemplo uma relao entrevelocidades orbitais dos planetas e a escala musical, e uma relao das dimenses e donmero das rbitas com os cinco slidos regulares . Sua terceira lei, que relacionavaos diversos planetas entre si por meio de uma relao matemtica simples, umexemplo bem sucedido dessa busca.

    II.4. A nova mecnica

    Chegamos, finalmente, a Galileu Galilei (1564-1642). No mbito daastronomia, o cientista italiano trouxe grandiosas contribuies no sentido daarticulao do modelo copernicano. Com o uso do telescpio, observou os cus comonunca ningum havia visto, e relatou a profuso de estrelas da via-lctea, as montanhasda Lua, as manchas solares, os satlites de Jpiter e as fases de Vnus. Tudo isso eracompatvel com a nova cosmologia que surgia, na qual no havia a separao entre oceleste e o terrestre, entre o incorruptvel dos astros e a corrupo terrena. Entretanto, otelescpio em si no provava o heliocentrismo, e sequer foi reconhecido de imediatocomo um instrumento vlido para as observaes astronmicas. Sua principal funofoi a de popularizar a astronomia copernicana.

    No entanto, o que mais nos importa nesse momento o trabalho efetivo deGalileu na construo de uma nova teoria do movimento. Sem ela, a astronomiacopernicana tornar-se-ia frgil . O movimento da Terra trazia questes para a fsicaterrestre que claramente estavam em desacordo com a viso aristotlica. idia do

    movimento em direo ao lugar natural , Galileu contraps a relatividade domovimento, inaugurando uma nova interpretao natural 12 ou seja, uma nova formade olhar o real, um novo prisma diante dos fenmenos. O espao da fsica tradicionalera absoluto, mas no no sentido newtoniano, e sim devido noo absoluta de lugar,de uma hierarquia rgida e fixa dos elementos no universo geocntrico. Comocompreender a queda vertical dos corpos numa Terra planetria?

    A idia de movimento compartilhado, de composio de movimentos, dadependncia do movimento em relao ao observador (presente nas transformaes deGalileu ), fundamentaro a nova fsica. Mas no nos poderemos deter na anlise de talconstruo repleta de argumentos perspicazes e contundentes, prprios do autor.Voltemo-nos questo do tempo.

    D-se o estabelecimento da lei de queda dos corpos na Terceira Jornada(Do Movimento Local) do Discorsi e Dimostrazioni Matematiche intorno a due nuove

    12 Expresso usada por P. Feyerabend (1977).

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    scienze attenenti alla Mecanica ed ai Movimenti Localli, publicado em 1638. Galileu(pela boca de Salviati) inicia dizendo:

    Vamos expor uma nova cincia a respeito de um tema muitoantigo. No existe na natureza nada anterior ao MOVIMENTO e,com referncia a ele, no poucos e pequenos volumes foram escritospelos filsofos; apesar disso, muitas propriedades dignas de seremconhecidas no foram at o momento nem observadas, nemdemonstradas. (...) no foi demonstrado, que eu saiba, que ummvel, que cai a partir do repouso, percorre em tempos iguaisespaos que mantm entre si a mesma proporo que tm osnmeros mpares sucessivos a partir da unidade. (Galilei, 1988, p.153)

    Segue-se uma definio de movimento uniforme e alguns axiomas eteoremas. Em seguida, Galileu apresenta sua definio de movimento naturalmenteacelerado . aqui que sua opo pelo tempo explicita-se:

    Finalmente, no estudo do movimento naturalmente acelerado,fomos, por assim dizer, conduzidos pela mo graas observaodas regras seguidas habitualmente pela prpria natureza em todasas suas outras manifestaes nas quais ela faz uso de meios maisimediatos, mais simples e mais fceis. (...)Quando, portanto, observo uma pedra que cai de uma certa altura apartir do repouso e que adquire pouco a pouco novos acrscimos de velocidade, por que no posso acreditar que tais acrscimos develocidade no ocorrem segundo a proporo mais simples e maisbvia? Se considerarmos atentamente o problema, noencontraremos nenhum acrscimo mais simples que aquele quesempre se repete da mesma maneira. O que entenderemosfacilmente, se considerarmos a estrita afinidade existente entre otempo e o movimento: do mesmo modo, com efeito, que auniformidade do movimento se define e se concebe com base naigualdade dos tempos e dos espaos (...), assim tambm, medianteuma diviso do tempo em partes iguais, podemos perceber que osaumentos de velocidade acontecem com simplicidade; concebemosno esprito que um movimento uniforme e, do mesmo modo,continuamente acelerado, quando, em tempos iguais quaisquer,adquire aumentos iguais de velocidade. (p. 160)

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    O modo mais simples e bvio ser portanto, para Galileu, aquele no qualacrscimos iguais de velocidade ocorram em tempos iguais. Koyr, entretanto, noslembra que Galileu nem sempre pensou assim. Em seu manuscrito De Motu, escritodurante o perodo em que passou em Pisa, chegou a defender que a acelerao domovimento de queda ocorria somente no incio do movimento, sendo a velocidade finalde queda (proporcional ao peso do objeto) atingida a partir de um dado momento,permanecendo constante depois.13

    Em uma carta posterior a Paolo Sarpi, de 1604, Galileu mostra j conhecera lei de queda, mas parece buscar uma explicao que relacione a velocidade de quedacom a distncia percorrida:

    Refletindo nos problemas do movimento, para os quais, a fim dedemonstrar os acidentes por mim observados, me faltava um princpio absolutamenteindubitvel que pudesse estabelecer como axioma, cheguei a uma proposio queparece suficientemente natural e evidente; estando ela suposta, demonstro depois oresto, nomeadamente que os espaos percorridos pelo movimento natural esto naproporo dupla do tempo e que, por conseguinte, os espaos percorridos em temposiguais so como os nmeros mpares ab unitate e as outras coisas. E o princpio este: que o mvel natural vai aumentando de velocidade na prpria proporo em que seafasta do ponto de partida; (...) (Apud Koyr, op.cit., p. 107 grifo nosso)

    Como vemos, Galileu estava na pista errada! Seu erro, como apontaKoyr, foi, ao instaurar uma nova forma de olhar o fenmeno da queda dos corpos,trazendo definitivamente a matemtica para a fsica, geometrizar em excesso ,tentando atribuir ao espao aquilo que era vlido para o tempo (Descartes incorreutambm nesse erro, do qual no se libertou). Mas o seu princpio no o permitiadeduzir a lei de queda, conhecida por ele. Num trecho posterior dos Discorsi, Sagredoapresenta-nos a antiga proposta de Galileu, relacionando velocidade e espao, qualSalviati responde, afirmando ter cometido o mesmo engano durante certo tempo.

    Salviati ainda ir combater uma objeo de Simplcio que, pensando numgrave ascendente, afirma que esse nunca atingir o repouso, uma vez que h infinitosgraus de lentido pelos quais o grave deve passar. Esse problema dos infinitsimos

    permite a Galileu explicitar-nos sua viso de tempo contnuo, com infinitos instantes:

    Salviati - isso o que aconteceria, Sr. Simplcio, se o mvel sedetivesse durante algum tempo em cada grau de velocidade;acontece, porm, que ele simplesmente passa sem demorar mais queum instante. E, visto que em todo intervalo de tempo, por menor que

    13 Koyr, 1986, p. 83.

  • 168 Martins, A. F. P. e Zanetic, J.

    seja, existem infinitos instantes, estes so suficientes paracorresponder aos infinitos graus de velocidade que diminui. Queesse grave ascendente no permanea durante algum intervalo detempo num mesmo grau de velocidade, fica evidente do seguintemodo: se, fixado um intervalo de tempo determinado, no primeiroinstante desse tempo e tambm no ltimo, se encontrasse que omvel tem o mesmo grau de velocidade, poderia, a partir dessesegundo grau de velocidade, ser igualmente elevado por um espaosemelhante, da mesma maneira que do primeiro foi levado aosegundo e, pela mesma razo, passaria do segundo ao terceiro, para continuar finalmente seu movimento uniforme ao infinito. (Galilei,op.cit., p. 163)

    Essa discusso dos infinitos instantes e graus de velocidades remete-nosao fato de que as noes de contnuo e de infinito, em Galileu, j no representam maiso que representavam para Aristteles. Para o primeiro, uma grandeza contnua seriacomposta por uma infinidade de elementos infinitamente pequenos (os indivisveis ),ou seja, o divisvel seria composto por indivisveis14. J para o segundo, como vimos, ocontnuo infinitamente divisvel, seja ele espacial ou temporal, no poderia sercomposto por indivisveis. Vemos assim como a idia de divisibilidade ao infinito dotempo j no tem o mesmo significado anterior, indicando uma ruptura conceitual.

    Retomando brevemente as indagaes iniciais de nosso texto, diramos queo erro de Galileu mostra a sua dificuldade em romper com uma fsica essencialmenteespacial , onde o tempo era um mero coadjuvante. As idias neoplatnicas que o

    influenciaram tambm contriburam para essa geometrizao em excesso . Outrosaspectos de seu pensamento evidenciam, como vimos com Koyr, seu vnculo(principalmente no incio da carreira) com vises aristotlicas.15 Galileu foi ainda umpersonagem de transio entre dois paradigmas, mas certamente muito mais vinculadoao novo saber. A velha tradio gradualmente perdia o seu lugar.

    14 Gandt (1986) discute a viso de Galileu, que parte da prpria idia de contnuo em Aristtelespara dela tirar concluses bastante diversas. Segundo o pensador italiano, para que uma linhapossa ser dividida e subdividida ao infinito, as partes devem ser em nmero infinito casocontrrio a diviso terminaria e devem ser sem grandeza (e, portanto, indivisveis) casocontrrio formariam, em nmero infinito, uma extenso infinita. Em suma: o contnuo divisvelseria composto por indivisveis.

    15 Por exemplo, com relao lei da inrcia, Galileu parece ter chegado a uma espcie deinrcia circular , ou seja, noo de um movimento circular infinito na ausncia de foras .

    Koyr, op.cit., p. 285-286.

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    A temporalizao do movimento de queda insere-se, portanto, naconstruo de uma teoria do movimento incomensurvel com o paradigma anterior.Esse momento marca de forma indelvel a introduo do conceito de tempo de modoprofundo na mecnica, abrindo o caminho que leva ao tempo absoluto newtoniano.

    Apontada a dificuldade, seria lcito perguntar quais fatores poderiam tercontribudo para essa anlise galileana. Certamente que os trabalhos dos crticosmedievais de Aristteles, como Oresme e Buridan, alm de outros importantes autorescitados por Koyr16, como J. B. Benedetti, representaram boa parte desses fatores.Seriam os nicos? Com um pouco de cautela, arriscaramos dizer que no.

    Os primeiros relgios mecnicos datam do final do sculo XIII, e parecemter sido herdeiros de espcies de calendrios mecnicos , ao mesmo tempo destinadosa marcar o tempo e simular o movimento dos cus. Ornamentavam as grandes catedrais, inicialmente, e aos poucos passaram a existir relgios pblicos. No sculo XIV surge aampulheta, e no sculo XV, os relgios de algibeira. A marcao do tempo nopassava apenas a estar mais presente na vida cotidiana, mas tambm trazia consigomarcas profundas na maneira de encarar o tempo em si. Embora esses relgiosmecnicos primitivos fossem bastante imprecisos, a idia de mecanismo levou quaseque diretamente ao estabelecimento de metforas em relao ao cosmos: o universocomo um relgio. Whitrow (op.cit.) aponta como tal viso j est presenteimplicitamente em Oresme, no sculo XIV, e mais explicitamente em Kepler, j nosculo XVII.

    Se as revolues dos astros assemelhavam-se s de um relgio, esse por sua vez, era cada vez mais usado e importante na Terra (haja visto, por exemplo, oproblema da marcao do tempo para as navegaes). Whitrow afirma que a imagemtpica do tempo no Renascimento era a do destruidor munido de uma foice, e foi aospoucos sendo substituda por vises mais otimistas (inclusive em relao histria) aolongo do sculo XVII.

    A revoluo de que trata este trabalho certamente fruto de uma poca, eportanto no apenas motivada por fatores internos cincia. Ainda que Galileu no setenha valido de relgios mecnicos, o desenvolvimento mais propriamente tecnolgicodos mesmos, prprio de sua poca, alterou a viso comum e cientfica do tempo, o quepode ter contribudo para a temporalizao do movimento de queda.

    Nos Discorsi, Galileu descreve a sua famosa experincia do planoinclinado, de onde deriva a lei s t2. Preocupa-se em relatar o mecanismo de medidado tempo atravs de sua clepsidra :

    16 Koyr, op.cit., p. 58-75. Ver tambm o artigo: Giambattista Benedetti, Crtico de Aristteles.In: Koyr, 1991, p. 128-151.

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    No que diz respeito medida do tempo, empregvamos um granderecipiente cheio de gua, suspenso no alto, o qual, por um pequenoorifcio feito no fundo, deixava cair um fino fio de gua, que erarecolhido num pequeno copo durante todo o tempo em que a boladescia pela canaleta ou por suas partes. As quantidades de guaassim recolhidas eram a cada vez pesadas com uma balana muitoprecisa, sendo as diferenas e propores entre os pesoscorrespondentes s diferenas e propores entre os tempos; e istocom tal preciso que, como afirmei, estas operaes, muitas vezesrepetidas, nunca diferiam de maneira significativa. (Galilei, op.cit., p.176)

    A inexatido inerente s experincias galileanas, manifestada aqui em suamedida do tempo, permite-nos compreender a relutncia do autor em atribuir um valorconcreto acelerao dos corpos em queda. Galileu parece ter percebido a importnciade uma medio mais precisa do tempo, e seus estudos com o pndulo refletem talnecessidade. Entretanto, ele no utilizou o movimento pendular em suas experincias, eser C. Huygens o responsvel no apenas pela construo dos primeiros relgiosmecnicos de pndulo, mas pela determinao correta do valor de g.17

    Aristteles estabelecera que o tempo a medida do movimento . Chegaraa hora, ento, de medi-lo.

    Teria sentido, conseqentemente, retomarmos o referencial bachelardianopara analisar o conceito de tempo em Galileu. J no encontramos aqui os resduosanmicos que salientamos estarem presentes no aristotelismo. A clepsidra substitui aalma que conta , instituindo um empirismo claro, e uma independncia conceitual

    ao tempo. Podemos agora falar em uma conduta do relgio correspondente a umrealismo ingnuo. A medio precisa do tempo define o prprio tempo, assim como abalana define a massa. E que interessante simbiose entre as condutas da balana edo relgio proporciona-nos Galileu, que mede o tempo pesando a gua!

    Essa noo empirista encontra-se fortemente ligada a aspectos daorganizao econmica e social, estando cada vez mais presente na vida do cidadocomum ao longo dos sculos. Ainda hoje, comum pensar-se o tempo como sendoaquilo que o relgio mede , e o horrio de vero , por exemplo, ainda pareceroubar efetivamente uma hora na vida de muitos.

    Voltando a Galileu, ingnuo seria atribuirmos a ele apenas essa viso. Arepresentao que ele faz do tempo por meio de uma linha reta geomtrica, em vriosteoremas e proposies dos Discorsi, abre caminho para o conceito de tempo absolutode Newton, que procuraremos caracterizar a seguir (dentro ainda de uma anlise

    17 Koyr, A. Uma Experincia de Medida. In: Koyr, 1991, p. 271-300.

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    bachelardiana) como uma viso racionalista do tempo. Entretanto, Galileu no explicitaessa viso, no a abstrai inteiramente dos fenmenos, como far Newton.

    A astronomia copernicana abrira a possibilidade de novas especulaessobre o universo. Nos sculos XVI e XVII renascem concepes de um universoinfinito, assim como o atomismo ganha a fora que perdera com a vitria do plenoaristotlico na antigidade. Essas idias misturam-se na cosmologia de Ren Descartes(1598-1650), que imaginou um mundo constitudo de partculas indivisveis, mas quepreenchiam de tal forma o universo que o tornavam um pleno de corpsculos. Estpresente em Descartes a noo de um mecanismo fsico que explicasse o movimentocircular dos astros, representado pelos vrtices de sua cosmologia.

    Kuhn assinala como o rompimento da dicotomia celeste-terrestre tornara aquesto do movimento planetrio um problema de mecnica aplicada . Robert Hooke(1635-1703) e Isaac Newton (1642-1727), utilizando-se do conceito de inrcia deDescartes, daro na mesma poca o salto fundamental e crucial, afirmando que a Luacai como uma ma, ou seja, a mesma fora gravitacional a responsvel pelos doismovimentos. Coube a Newton o estabelecimento de uma lei matemtica para a atrao.

    interessante notar como a idia de gravidade como inata matria ia, decerto modo, de encontro a uma explicao puramente mecnica e corpuscular,parecendo conter elementos da cosmologia de Aristteles. Newton reconheceu essefato, e a busca de uma causa da gravidade o atormentou durante toda a vida. Talvezesse ponto tenha sido bastante motivador para o auxlio que Newton procurou naalquimia e na filosofia hermtica, entre outras influncias.

    Newton inicia o Principia com um conjunto de definies (quantidade dematria, quantidade de movimento, fora centrpeta, etc.), nas quais j aparece o tempo.No esclio da primeira parte, ele afirma no haver definido certas grandezas (entre elaso tempo) por serem bem conhecidas de todos, mas acrescenta:

    Contudo, observo que o leigo no concebe essas quantidades soboutras noes exceto a partir das relaes que elas guardam com osobjetos perceptveis. Da surgem certos preconceitos, para aremoo dos quais ser conveniente distingui-las entre absolutas erelativas, verdadeiras e aparentes, matemticas e comuns.I - O tempo absoluto, verdadeiro e matemtico, por si mesmo e dasua prpria natureza, flui uniformemente sem relao com qualquercoisa externa e tambm chamado de durao; o tempo relativo,aparente e comum alguma medida de durao perceptvel eexterna (seja ela exata ou no uniforme) que obtida atravs domovimento e que normalmente usada no lugar do tempoverdadeiro, tal como uma hora, um dia, um ms, um ano. (Newton,1990, p. 7)

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    Os preconceitos aos quais Newton se refere no incio da citao acimarepresentam justamente as dificuldades de abstrao de um tal conceito absoluto detempo a partir da vida comum. So obstculos, no sentido bachelardiano, como o so aexperincia primeira, o animismo, o substancialismo, entre outros (Bachelard, 1996). Aconcepo newtoniana de tempo absoluto claramente separada do tempo relativo,aparente e comum , que uma medida do primeiro. O tempo absoluto no tem relaocom qualquer coisa externa , uma abstrao. J no h mais espao, em Newton,para uma conduta do relgio , no sentido de um conceito emprico de tempo. Aseparao entre a medida do tempo e o tempo em si permite-nos caracterizar essanoo como um conceito racionalista de tempo, ainda dentro do referencialepistemolgico de Bachelard (Bachelard, 1991).

    Reiterando sua posio, continua Newton um pouco adiante:

    Tempo absoluto, em astronomia, distinguido do tempo relativo,pela equao ou correo do tempo aparente. Porque os diasnaturais so de fato desiguais, apesar de serem comumenteconsiderados como iguais e usados como uma medida de tempo; osastrnomos corrigem essa desigualdade, para que possam medir osmovimentos celestes por um tempo mais rigoroso. Pode ser que nohaja algo como movimento uniforme, onde o tempo possa serrigorosamente medido. Todos os movimentos podem ser aceleradose retardados, mas o fluxo de tempo absoluto no passvel demudanas. A durao ou perseverana da existncia das coisaspermanece a mesma, sejam os movimentos rpidos ou lentos, ou atcompletamente nulos. E, portanto, essa durao deve ser distinguida daquelas que so apenas suas medidas perceptveis, a partir dasquais aquela deduzida atravs da equao astronmica. (p. 8-9)

    Com o clculo infinitesimal e a consolidao da nova cosmologia, insere-seo tempo num outro quadro conceitual completo , fazendo parte de um conjunto denoes que estabelecem outro vnculo entre a razo e o sensvel, superando um realismo imediato.

    No podemos esquecer, no entanto, a relao estabelecida por Newton entre o dt e a ao de Deus no universo, que gerou duras crticas por parte de seucontemporneo Leibniz (1646-1716), para quem o tempo no tem uma existncia

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    independente dos objetos e das pessoas que o concebem. Ao contrrio, a ordemsucessiva das coisas que nos d a noo de tempo, sendo ele, pois, relativo18.

    Para Leibniz, o tempo algo ideal , constituindo-se a partir de relaes, oque no o impede de ser dotado de quantidade :

    Assim, como j deixei dito, supor que Deus tenha criado o mesmomundo mais cedo supor algo de quimrico. fazer do tempo umacoisa absoluta, independente de Deus, ao passo que o tempo devecoexistir com as criaturas, e no se concebe seno pela ordem equantidade de suas mudanas. (Leibniz, 1983, p. 205)

    Alexandre Koyr nos chama a ateno para o fato de que o Deus de Leibniz no o Deus de Newton, e isso est na base da divergncia entre ambos.19 Mais umacitao de Leibniz (com a qual certamente Newton no concordaria) evidencia-nos isso, e nos remete ao que foi dito anteriormente sobre a viso newtoniana do papel de Deus:

    Newton e seus asseclas tm ainda uma divertidssima opiniosobre a obra de Deus. Conforme eles, Deus de vez em quandoprecisa dar corda em seu relgio, porque seno ele deixaria deandar. O cientista no teve viso suficiente para imaginar ummovimento perptuo. (...) Na minha opinio, a mesma fora e vigorsubsiste sempre, passando somente de matria em matria,conforme as leis da natureza e a bela ordem preestabelecida.(Leibniz, op.cit., p. 169)

    Outra importante crtica ao conceito de tempo em Newton deveu-se a E.Mach, que o encarava como um ocioso conceito metafsico 20. Entretanto, at o

    advento da teoria da relatividade, a noo newtoniana de tempo reinar,absoluta.

    Com o trabalho de Newton podemos dizer que se completa a revoluo. Ouniverso aristotlico-ptolomaico fora substitudo por outro, que trouxe um conjunto denovos problemas e possibilidades para a cincia, alm de haver influenciado diversas

    18 A concepo leibniziana do tempo encontra-se, nesse aspecto, bastante sintonizada com aviso relativstica que surgir sculos mais tarde.

    19 Koyr, s/d, p. 232-233.

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    outras reas, tais como a filosofia e a poltica. Tratava-se de uma nova maneira de olhara natureza, que rompia radicalmente com os conceitos da antiga cosmologia, colocandoa perspectiva de um universo mecnico , governado por leis matemticas precisas, efuncionando como um relgio. Ainda que o prprio Newton no ratificasse essa noo,surgiria o determinismo matemtico e cientfico como decorrncia de sua grandiosaobra.

    Ao mundo fechado e hierarquia de lugares sobrepunha-se um mundoinfinito, e um espao homogneo e isotrpico. Com relao ao conceito de tempo,assistimos tambm a uma transio entre incomensurveis: de uma nfase animista-empirista, que vimos estar presente em Aristteles, para o racionalismo caracterstico do novo paradigma, ambas as noes imersas em seus respectivos universos conceituais. Enessa transio, o conceito de tempo passa de mero coadjuvante de uma fsica nomatematizvel a protagonista de uma nova mecnica matematizada.

    III. Referncias bibliogrficas

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    20 No poderemos nos aprofundar aqui nas crticas de Mach a Newton. Quanto a isso, ver: Mach(1949) e Rodrigues (1988).

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